“tenho origem, tenho raça, tenho história”: os sambas ... · o contexto histórico da cidade...

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“Tenho origem, tenho raça, tenho história”: os sambas enredos afro-brasileiros da Nenê de Vila Matilde e a Lei 10.639/03. Emerson Porto Ferreira 1 Palavras-Chave: Samba-Enredo, Negritude, Escola de Samba. Resumo: O seguinte artigo apresenta uma mostra dos resultados obtidos na dissertação a respeito dos sambas afrobrasileiros da Nenê de Vila Matilde. Ao longo de seus 69 anos a escola da Zona Leste de São Paulo, com seus participantes de maioria preta, colocaram dentro da escrita do cotidiano do carnaval paulistano a identidade e a estética africana em seus desfiles assumindo para si o nome de quilombo do samba. Ao longo da pesquisa percebemos que tais sambas apresentam um recurso didático importante para implementação da Lei 10.639/03. Além disso, fomos também analisando que o discurso dentro da Nenê acompanha as movimentações ocorridas dentro do Movimento Negro, em São Paulo. Assim o que propomos, é a possível inserção que tais sambas e a escola em si, se tornam como um recurso didático em sala de aula, na valorização histórica do negro e no combate ao racismo, bem como na busca de uma interculturalidade e transgressão do currículo existente em sala de aula, que ainda valoriza uma única cultura e um tecnicismo no seu conteúdo. A NEGRA HERANÇA QUE BALANÇA A POESIA. No dia 24 de fevereiro de 2001, na passarela Grande Otelo na cidade de São Paulo, adentrava por volta das seis horas da manhã, no domingo de carnaval um desfile que tinha como função mostrar a história do negro por meio de sua grandeza dentro da história mundial e brasileira. Em casa assistindo aos desfiles estava o autor que aqui escreve esse artigo, com nove anos aprendendo no sofá da casa uma história não muito comum sobre o passado. O enredo do ano de 2001 da Nenê intitulado Voei, Voei, e na Vila aportei, Onde me deram uma coroa de Rei foi o último titulo da agremiação azul e branca. O seu percurso narrativo começa com Ilê Ifé, passava pelo nascimento da humanidade, pela negritude egípcia, a indiana, e além de diversas outras presenças do negro dentro do ensino de música, na literatura e na política e na própria constituição da identidade histórica brasileira. A Nenê de Vila Matilde, a escola em questão que abordou tal enredo, foi fundada em 1949, em um contexto em que o samba paulistano passava por diversas provações dentro de uma sociedade profundamente racista como a paulistana. Como seu fundador Seu Nenê dizia, “no inicio, quem fazia samba era visto como crioulo doido e, se era branco maloqueiro” (SILVA, p. 13, 2000). Essa é uma entre várias mostras na 1 Mestre em Educação, no Programa Educação: História, Política, Sociedade, PUC-SP.

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Page 1: “Tenho origem, tenho raça, tenho história”: os sambas ... · O contexto histórico da cidade de São Paulo nos anos iniciais do século XX era de contrastes e de apagamentos

“Tenho origem, tenho raça, tenho história”: os sambas enredos afro-brasileiros da Nenê de Vila Matilde e a Lei 10.639/03.

Emerson Porto Ferreira1 Palavras-Chave: Samba-Enredo, Negritude, Escola de Samba. Resumo: O seguinte artigo apresenta uma mostra dos resultados obtidos na dissertação a respeito dos sambas afrobrasileiros da Nenê de Vila Matilde. Ao longo de seus 69 anos a escola da Zona Leste de São Paulo, com seus participantes de maioria preta, colocaram dentro da escrita do cotidiano do carnaval paulistano a identidade e a estética africana em seus desfiles assumindo para si o nome de quilombo do samba. Ao longo da pesquisa percebemos que tais sambas apresentam um recurso didático importante para implementação da Lei 10.639/03. Além disso, fomos também analisando que o discurso dentro da Nenê acompanha as movimentações ocorridas dentro do Movimento Negro, em São Paulo. Assim o que propomos, é a possível inserção que tais sambas e a escola em si, se tornam como um recurso didático em sala de aula, na valorização histórica do negro e no combate ao racismo, bem como na busca de uma interculturalidade e transgressão do currículo existente em sala de aula, que ainda valoriza uma única cultura e um tecnicismo no seu conteúdo.

A NEGRA HERANÇA QUE BALANÇA A POESIA.

No dia 24 de fevereiro de 2001, na passarela Grande Otelo na cidade de São

Paulo, adentrava por volta das seis horas da manhã, no domingo de carnaval um

desfile que tinha como função mostrar a história do negro por meio de sua grandeza

dentro da história mundial e brasileira. Em casa assistindo aos desfiles estava o autor

que aqui escreve esse artigo, com nove anos aprendendo no sofá da casa uma história

não muito comum sobre o passado.

O enredo do ano de 2001 da Nenê intitulado Voei, Voei, e na Vila aportei, Onde

me deram uma coroa de Rei foi o último titulo da agremiação azul e branca. O seu

percurso narrativo começa com Ilê Ifé, passava pelo nascimento da humanidade, pela

negritude egípcia, a indiana, e além de diversas outras presenças do negro dentro do

ensino de música, na literatura e na política e na própria constituição da identidade

histórica brasileira.

A Nenê de Vila Matilde, a escola em questão que abordou tal enredo, foi

fundada em 1949, em um contexto em que o samba paulistano passava por diversas

provações dentro de uma sociedade profundamente racista como a paulistana. Como

seu fundador Seu Nenê dizia, “no inicio, quem fazia samba era visto como crioulo doido

e, se era branco maloqueiro” (SILVA, p. 13, 2000). Essa é uma entre várias mostras na

1 Mestre em Educação, no Programa Educação: História, Política, Sociedade, PUC-SP.

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dificuldade que o samba na cidade de São Paulo passou ao longo de seus anos de

formação.

A Nenê foi fundada no bairro da Vila Matilde, na Zona Leste de São Paulo, em

uma formação social de maioria preta. A Nenê dentro da sua retórica de caminhada ao

longo de sua formação seguiu uma defesa pela presença constante da afirmação

positiva do negro dentro da sociedade, acima disso, a escola tem como sua premissa

em seus 22 desfiles negros uma valorização da cultura negra assumindo sempre uma

visualidade de positividade, se denominando o Quilombo do Samba.

De maneira paralela aos seus enredos de temática afrobrasileira, a Nenê segue

uma retórica parecida com o que o Movimento Negro ao longo de sua trajetória de luta

seguiu e segue dentro da sociedade brasileira. Em um diálogo quase oculto, a partir da

década de 80 os enredos da escola começam a produzir dentro de sua temática

aspectos de questionamento e de empoderamento do negro, diferente de seus enredos

anteriores, em que possuíam uma visão estereotipada ou até mesmo de senso comum.

Foi a partir dessa análise que chegamos à hipótese que tais sambas enredos

podem possui valor significativo para a implementação da Lei 10.639/03. Tal Lei

promulgada em 2003, no então governo Luis Inácio Lula da Silva (PT) altera os artigos

Art. 26, 26A e 79B da LDB de 1996. Porém ao longo de seus 15 anos de implantação

dificuldades e sucessos foram dos variados, mas, a discussão sobre a pauta racial não

entrou em queda pelo contrário, as publicações, pesquisas e buscas de implementação

da Lei sempre foram buscadas para serem usadas nos mais diferentes níveis de

ensino.

Esse artigo assim propõe apresentar os resultados mais relevantes que

alcançamos dentro da pesquisa de Mestrado em Educação, apresentada ao programa

de Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (PUC-SP), na orientação da Prof.ª Dra. Helenice Ciampi. Abordaremos

primeiramente aspectos do Movimento Negro e o diálogo com o carnaval paulistano no

que chamamos de diálogo oculto. Em um segundo momento, como a Nenê

desenvolveu seus enredos negros. E em seguida, apontaremos como tais sambas

podem possuir alcance dentro de sala de aula, em especial dentro do ensino de

história. É a negra herança de uma escola de samba, que há 69 anos balança a poesia

no carnaval brasileiro.

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O POLÍTICO E CUTURAL: ASPECTOS DE DIÁLOGO DO MOVIMENTO NEGRO NA

CIDADE DE SÃO PAULO

Se tivesse que começar tudo novamente, eu começaria do mesmo jeito. É isso que eu quero deixar para os meus netos, para os netos dos outros, para o Brasil. Por que a alegria de fazer carnaval não tem igual. (ALVES, 2000, p. 14).

Alberto Alves da Silva, mineiro, ex-metalúrgico, filho de um carioca e de uma

mineira, neto de negros escravizados de maneira assertiva descreveu bem o

sentimento que o mesmo possui perante sua escola de samba, que carrega até os dias

de hoje, mesmo após seu falecimento, o seu apelido: a Nenê de Vila Matilde.

Seu Nenê era um exímio frequentador dos bailes negros que ocorriam no centro

da cidade, em que a negritude se reunia de maneira “segura” para fugir da opressão

racista que a então cidade dos antigos e decadentes barões de café ofereciam a gente

negra da cidade. O contexto histórico da cidade de São Paulo nos anos iniciais do

século XX era de contrastes e de apagamentos históricos e de sua população preta. O

processo de imigração fez inchar a cidade de italianos, espanhóis e outros povos que

vinham ocupar os trabalhos estratégicos na cidade, além de se alocarem nas regiões

periféricas do centro, na região da Liberdade, Barra Funda e Bela Vista. Coube a

população negra oriunda do interior, os trabalhos de força e de serviço informal, e que

acarretou posteriormente o seu deslocamento habitacional para a periferia da periferia.

Mas de forma indireta, foi esse fluxo imigratório, aliado a um passado de

resistência pelas ruas que a população negra faria desse espaço da cidade um meio de

propagar sua cultura e identidade. Jose Geraldo Vinci de Moraes (1995) aponta que

esses encontros nas ruas foram um meio de legitimar uma cultura e uma retórica de

resistência, mesmo em uma cidade que perseguia as manifestações pretas. Por isso

mesmo que coube a uma resistência inteligente de usar os espaços desses salões

negros; ou do período de festividades nas irmandades religiosas, na Festa de Pirapora,

e acima de tudo, no carnaval, como um meio de se integrar a lógica de uma cidade

racista e higienista.

Assim sendo “é possível perceber a luta incansável da população negra para se

integrar em um sociedade que realmente a eles parecia renunciar” (MORAES, 1995, p.

67). O carnaval preto paulistano especificamente que surge nos caiapós, grupos de

negros que saiam ao fim das procissões religiosas batucando, e que se sedimenta no

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samba de Pirapora, e ganha maturidade nos cordões carnavalescos no inicio dos anos

30, e que se estabelece como escola de samba em 1937, com a Lavapés, escola

localizada ainda hoje na Baixada do Glicério/Liberdade, são símbolos de uma (re)

existência do negro na cidade de São Paulo.

Analisando essa formação cultural negra na cidade de São Paulo podemos

perceber que os aspectos culturais foram uma forma de se inserir na retórica da

cidade. Como Michel de Certeau (1994) coloca, os grupos marginalizados dentro das

cidades fazem da arte uma forma de descentralizar a retórica da cidade. O que aqui

coloco é que essas agremiações paulistanas fazem da arte e da cultura um modo de

colocar um novo prisma no discurso dominante existente. Como Certeau (1994) coloca

sobre quem é marginalizado, como um novo discurso ideológico, em que se formam,

estilos dentro destas trocas sociais “de invenções técnicas e um estilo de resistência

moral, isto é, uma economia do “dom” (de generosidade como revanche), uma estética

de “golpes” (de operação de artistas) e uma ética de tenacidade (mil maneiras de negar

à ordem estabelecida o estatuto da lei, de sentido ou fatalidade)” (CERTEAU, 1994, p.

89).

Por isso mesmo, se formos pensar com a ideia de Certeau (1994), podemos

postular a hipótese que as agremiações e instituições carnavalescas na cidade de São

Paulo de matriz e de contingência negra, tinham e tem um olhar próprio de se enxergar

dentro da cidade. A cultura da escola de samba não é necessariamente algo que pode

ser taxado como alheio ao que existe dentro da sociedade e de seus discursos, uma

vez que ela reflete de forma oculta o que é produzido em sua volta.

Dessa maneira, Guilherme Faria (2014) em artigo sobre o Movimento Negro e o

carnaval na cidade do Rio de Janeiro, talvez seja um pouco radical em colocar que

exista um apagamento histórico do Movimento Negro as escolas de samba. O que aqui

coloco e que defendo é que o Movimento Negro, principalmente em seus anos de

maior intensidade, não via no discurso cultural das comunidades negras um meio de

legitimar sua causa, o que não quer dizer que não existia diálogo entre as duas formas

de reexistência na cidade. O que quero dizer é que de maneira oculta as escolas de

samba mudaram a forma como elas viam sua identidade e como se colocavam dentro

da história, principalmente em uma cidade tão excludente e racista como São Paulo,

que apagou e ainda apaga seu passado negro.

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A preferência pelo discurso político nos anos 60 e início dos 70 refletia uma

visualidade de defesa em uma sociedade mergulhada em uma ditadura militar, o que

explicaria não se aproximar, por exemplo, do que as escolas de samba produziam. É

no meio da década de 70 e inicio dos anos 80 que o Movimento Negro começa a

perceber dentro dos centros culturais uma forma de expansão de seu discurso. Como

Amílcar Pereira (2013) coloca a respeito do Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN),

na fala de Thereza Santos “criamos a CECAN e fomos ampliando o trabalho. Depois de

temporada no MASP, fizemos apresentações [da peça E agora falamos... Nós] em

escolas, no tuca, na quadra da Mocidade Alegre, enfim em vários lugares” (PEREIRA,

2013, p, 181).

Outro exemplo de como existe um diálogo entre o discurso cultural e o político,

se encontra na figura de Hamilton Cardoso, jornalista negro, do interior de São Paulo, e

liderança do Movimento Negro paulistano. Flavio Nogueira e Flavia Reis (2014) em

artigo sobre a trajetória de Hamilton Cardoso apontam, que até a década de 70,

Cardoso na seção paulista do Movimento Negro, “a questão cultural não era central

para construção política; tratava-se, na verdade, de um meio para acessar a

comunidade” (OLIVEIRA; RIOS, 2014, p. 516). Esse posicionamento para Cardoso e

seus companheiros estava em diálogo com uma cidade que era operária, e industrial e

com forte crescimento urbano, o que fez do discurso político um meio de legitimar suas

ações, mais que o discurso cultural, visto como algo menor ou de mediação.

O próprio Hamilton Cardoso, no inicio dos 80 iria ser um pioneiro na mudança de

olhar sobre as instituições culturais, principalmente as escolas de sambas, sendo o

próprio um dos colunistas no período carnavalesco do jornal Folha de São Paulo, com

matérias engajadas, como uma entrevista com Seu Nenê, chamado pelo jornalista de

O patriarca do samba paulistano. Isso coloca aquilo que venho defendendo: em uma

sociedade que se constitui em redes de interação, em que um determinado discurso

nunca se encontra isolado na retórica do cotidiano, as escolas de samba de alguma

forma se apropriaram do discurso do Movimento Negro, e vice versa. A questão cultural

no fim da ditadura militar passa a ter maior centralidade para entender o caráter do

“confronto racial brasileiro e, por extensão, a singularidade do racismo de nosso país”

(NOGUEIRA; RIOS, 2014, p. 522).

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Essa discussão é importante, pois serve de arcabouço para analisarmos como

os sambas de temática afro-brasileira da Nenê de Vila Matilde se apresentam em seus

69 anos de história. Como podemos perceber a história da formação do carnaval da

cidade de São Paulo é imbricada e com diversas tentativas de silenciamento e

repressão, que no tempo presente apenas mudaram seus protagonistas (o que daria

outro artigo). O carnaval em si é uma festa de resistência negra, em um modo de

formação especifico e com distintas culturas. As culturas, os discursos e as pessoas

num todo se deslocam e mudam o seu cotidiano, e pouco a pouco, as escolas de

samba foram se apropriando desse discurso. Logo é certo falarmos que o Movimento

Negro não ignorou as escolas de samba, pelo contrário, cada discurso seja o cultural

ou o político encontraram caminhos para em seu espaço e tempo poderem se

encontrar. Partindo dessa aproximação entre Movimento Negro e Escola de Samba,

que agora iremos olhar a fundo os sambas de temática afro-brasileira da Nenê de Vila

Matilde.

SOU DA NEGRITUDE, O FRUTO E A RAIZ: A QUILOMBO AZUL E BRANCO DA

ZONA LESTE.

É dali da Escola de Samba que começou. Cantava, dançava, saia para rua a polícia vinha, batia. E o negro, ele é forte. Ele luta, ele tá lutando, ele tá conseguindo. Conseguiu. Porque, quando que o samba podia? Não podia falar de samba, de batuque, e hoje o negro tá lá com o samba dele, tá fazendo batuque dele e tá continuando. Com todo o sofrimento, ele tá vencendo. (Hercília Joaquina do Amaral, baiana da Nenê em entrevista concedida ao autor deste artigo)

Uma das coisas que chamam atenção ao adentrar na quadra da Nenê de Vila

Matilde é o orgulho de uma negritude que molda sua identidade. Como a entrevistada

em questão bem pontua, dentro da Nenê a luta pela busca de uma positividade da

negritude é algo que se coloca dentro não só de seus enredos e samba enredos, mas

acima de tudo na composição de seu cotidiano.

Por isso mesmo que a escolha pela escola de samba da Zona Leste de São

Paulo ocorreu na pesquisa de mestrado intitulada Sou da Negritude, o fruto e a raiz: os

sambas afro-brasileiros da Nenê de Vila Matilde como recurso didático a Lei 10.639/03.

Na pesquisa desenvolvemos uma dupla hipótese: se tais sambas enredos seriam de

fato utilizáveis dentro de sala de aula na implementação de tal Lei; e como utilizar e

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poder extrair de tais letras, enredos e outros aspectos dos mais diversos que compõem

uma escola de samba, para serem utilizados em sala de aula, atentando sempre os

desafios que o ensino básico brasileiro enfrenta em seu cotidiano.

Um dos meios de tentar desenvolver tal impasse foi analisar não apenas o

discurso existente dentro dos sambas e enredos da escola, mas, de analisar em um

trabalho de campo, acompanhando o dia a dia da escola para observar aspectos

formadores da cultura escolar que a Nenê desenvolveu em seus 69 anos de história.

Aqui o termo cultura escolar é o mesmo desenvolvido dentro do estudo da educação.

Para Viñao Frago (2002) existem dentro de uma instituição múltiplas formas de

ver e se integrar no ambiente escolar, múltiplas culturas existentes que estão em

contato com o mundo exterior. Um exemplo disso é como cada escola lida com as

mudanças curriculares, as reformas existentes e outras diversas ações do mundo

burocrático que agem nela. Para Viñao Frago (2002) a relação entre cultura escolar,

currículo e reforma é algo que sempre vai ocorrer, porém, mesmo com sucessivas

mudanças propostas, cada escola tem dentro de sua cultura escolar uma

sedimentação:

A cultura escolar seria em resumo, algo que as sucessivas reformas só conseguem arranhar superficialmente, que as sobrevive, e que constitui um sedimento formado ao longo do tempo. Um sedimento configurado, sim, por camadas mais entrecruzadas que superpostas que, ao modo arqueológico, é possível desenterrar e separar. É nesse sentido que se pode dizer que a tarefa do historiador é fazer a arqueologia da escola. (VINÃO, 2002, p.74)

Nesse sentido, olhar a Nenê dentro de seu aspecto de formação como uma

escola de ensino básico foi determinante para entender os discursos, as regras e a

visualidade que a comunidade possui do que existe dentro da forma geral do carnaval,

com suas regras e regulamentos, e os seus aspectos internos, que sedimentaram na

identidade da escola a negritude e uma visualidade do negro, que está determinada na

ideia de sua inserção dentro da história.

Por isso mesmo, que analisar o discurso do Movimento Negro dentro da cidade

de São Paulo foi importante para visualizar como a temática da negritude existe dentro

da escola. Embora na dissertação nos direcionássemos para seis de seus sambas

enredos, olhar a discografia como um todo da escola nos faz perceber como a temática

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africana e afro-brasileira é vista e interpretada pela escola. Ao todo temos em números:

dois enredos de temática religiosa (1984 e 2018); três enredos com temas de Cidades,

Estados ou Países (1989, 2006 e 2015); quatro enredos de abordagem histórica (1956,

1957, 2001 e 2012); cinco enredos de Heróis e Personagens (1954, 1959, 1966, 1981

e 1982) e também, cinco enredos de temática abstrata na sua construção (1963, 1968,

1978, 1980 e 1997)

Ao vermos a composição das escolhas que a escola desenvolve em seus

enredos da temática em questão observamos uma predominância grande de enredos

com o subtema abstrato, ou seja, com uma narrativa não linear da história, em uma

narrativa utópica de visualizar uma sociedade em que o negro se encontra em um

papel de representação de positividade. Outro subtema que tem destaque na escola é

o de heróis e personagens, em que se sobressaem duas figuras Zumbi do Palmares

que é enredo na escola em 1954 e 1982, e Chica da Silva enredo em 1959 e 2012.

Com menor destaque, e se distinguindo das demais escolas de samba na cidade de

São Paulo, temos os enredos de temática religiosa, em que a escola não se integra

dentro deste discurso, realizando apenas duas homenagens em 1984 para Oxumarê e

em 2018 para Iemanjá. Essa análise dos temas é importante, pois tais escolhas

representam um imaginário e um reflexo construído de sua comunidade, o que faz um

enredo de matriz religiosa ser mais bem aceito em uma agremiação como a Vai-Vai, do

que a Nenê de Vila Matilde, em “uma imagem que ela faz de seu próprio lugar

discursivo e dos lugares ocupados pelos outros” (ORTIS, 1998, p. 122).

Na dissertação analisamos com mais afinco seis obras da escola com um

espaço de tempo diferente para compreendermos como que o negro é visto dentro da

escola: o enredo de 1959 sobre Chica da Silva, o enredo de 1978 Sonho de um Rei

Negro, o enredo de 1982 sobre Zumbi dos Palmares, o samba de 1989 Eu tenho

Origem em alusão a cultura de matriz africana no Brasil, o samba de 1997 Narciso

Negro sobre o negro no Brasil e o samba de 2012 também sobre Chica da Silva, porém

em um abstração de sua história, onde, a mesma recebe no Palácio da Nenê as

grandes personalidades negras.

Ao analisarmos a construção desses enredos de 1959 até o ano de 2012,

podemos perceber que existe uma mudança grande dentro do modo de visualizar o

negro dentro da história. Os enredos de 1959 e 1978 possuem em sua narrativa e no

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tratamento de sua temática uma visão um pouco estereotipada. Temos uma Chica da

Silva que é “exótica” e com “caprichos”, em na representação de uma mulata que

ascendeu ao poder tendo o marido como uma figura de posse de sua vida. Já o enredo

de 1978 que versava sobre o sonho do negro de ser inserido dentro da sociedade de

maneira positiva embora trate de aspectos como o enaltecimento de Carolina de Jesus,

Zumbi e outros heróis, como uma realeza dentro da sociedade, o seu fim e o modo

como a letra trata o assunto é um tanto quanto romantizada em uma miscigenação, em

que existe uma irmandade ao seu fim, sem questionamentos sobre o racismo.

A mudança na forma de abordar os temas de temática afrobrasileira muda a

partir de 1980, exatamente quando o discurso do Movimento Negro começa a se

aproximar das instituições culturais. Vale lembrar que a Nenê é pioneira nos enredo de

temática negra no Brasil, quando em 1959 coloca como protagonista um desfile com

um samba enredo em homenagem à Chica da Silva, mas ainda permeada de uma

visão do livro didático da história. O livro didático era a principal fonte dentro da

construção dos enredos em uma época em que não existia a figura do carnavalesco. É

a mescla de uma identidade negra da Nenê, de resistência dentro da cidade de São

Paulo; mais uma influência do Movimento Negro de aproximação de seu discurso

dentro destas instituições; e a figura do carnavalesco, que se apresentam enredos com

uma pesquisa mais apurada em uma nova visualidade dos assuntos dentro da Nenê.

O desfile de 1982 vem depois dos desfiles de 1980, enaltecendo a resistência do

samba no Brasil e do desfile de 1981, em homenagem a grande personalidade do

samba carioca Candeia, que fundou a Escola de Samba Quilombo, que contestou a

realidade do negro e do samba dentro da sociedade brasileira. E assim, em 1982, que

a escola da Zona Leste dá uma virada definitiva nos seus enredos de temática

afrobrasileira com um enredo contestador da própria visão existente de Zumbi dentro

da história. Como um dos compositores do samba Jangada aponta em entrevista à

Folha de S. Paulo, “o negro no Brasil modificou a sua posição, desde os tempos da

escravidão (...) as escolas de samba são hoje “quilombos permitidos pela sociedade

branca”” (TAIAR, 1982, p. 33). E isso se manifesta dentro do samba no trecho “se cuida

branco que o negro não tem senhor” ou “Zumbi lutou/ até que sua morte o libertou/ e

uma nova era começou”.

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E continuando a mesma ideia de contestação e de um posicionamento mais

firme no discurso de negritude, o samba de 1989 da escola comemorava os 40 anos da

agremiação afirmando que sua origem era preta, e de como isso era determinante

dentro da escola. Em Eu tenho origem a escola propunha em seu tema uma

importância da não estereotipização da cultura de matriz africana, e de como tal

reflexão era um meio de acabar “com a divisão entre culturas de classe” (FOLHA DE S.

PAULO, 1989). E como a letra do samba bem aponta “não quero ser alienado à cultura/

e nem escravo do luxuoso carnaval/ quero manter a tradição/ do meu samba pé no

chão, na avenida central” em uma crítica ao modo como a cultura do carnaval de

origem negra, estava sendo “escravizada”, em um modelo de apropriação do

protagonismo do negro, em que a escola responde dizendo que sua origem é preta, da

Zona Leste e da periferia de São Paulo.

Já em 1997, em um dos clássicos do carnaval paulistano, a Nenê levou ao

Anhembi o enredo Narciso Negro. O nome do enredo bem sugestivo é um panfleto ao

empoderamento do negro em sociedade, em que como um Narciso iria se enxergar

dentro de uma representatividade positiva de sua imagem, tal como a sinopse do

enredo propõe:

Narciso Negro trata o negro olhando para si mesmo, não como pária social na condição de encarcerado, vagabundo, malandro, vítima indefesa do cruel processo de exclusão social, mas, antes de tudo o enredo apresenta uma visão alegre, crítica e humorada do negro, orgulhoso de seu passado, consciente de seu presente e otimista em seu futuro (Roberto Telles de Souza, sinopse enredo Narciso Negro, 1996).

Como o trecho da sinopse aponta, o que foi colocado na avenida refletia os

avanços que a luta antirracista vinha conseguindo no Brasil, mesmo que em passos

lentos. Um olhar otimista da imagem e que se projeta a um futuro orgulhoso de si,

mostra como que ao longo do tempo a visão da escola sobre a negritude e até mesmo

sobre si própria foi mudando para uma visão mais de enfretamento e de

empoderamento, que se retifica no desfile de 2012.

No enredo Chica convida... No palácio da Nenê a festa é para você! no ano de

2012 a escola colocava uma outra visualidade da própria Francisca que havia sido

enredo em 1959. Se na década de 50 o olhar era de uma mulata aqui o olhar é de uma

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negra forra, “uma rainha”, que ao se reconhecer em sua grandeza recebe seus filhos e

abre as portas do Quilombo do Samba que é a Nenê, para Abdias Nascimento,

Chiquinha Gonzaga, Dom Obá II, Anastácia, Chico Rei e entre outros personagens em

um conclave negro, onde o orgulho da raça é mostrado nas diferentes esferas da

sociedade.

Como Monique Augras (1999) aponta “o samba enredo, sintetiza todo um

processo de produção típico do imaginário popular, onde, transparecem tanto o ethos

do grupo, como seus códigos de representação e os mecanismos utilizados para

assegurar a sua sobrevivência” (AUGRAS, 1999, p. 08). Em outras palavras, o

entendimento de uma escola de samba perpassa no discurso que ela constrói de si

mesma, que aqui chamo de cultura escolar do samba, que assim como uma escola de

ensino básico, está sempre em contato com o seu ambiente externo. O que mostra que

a Nenê em seus sambas enredos de temática afrobrasileira e na sua identidade se

posicionaram em um enfretamento de uma sociedade que até a década de 60 não via

as escolas de samba e o deslocamento dessa gente preta na cidade com prazer. É a

partir desta questão dos temas dos enredos, do Movimento Negro e do carnaval que

partimos para como podemos usar tais sambas dentro de sala de aula na disciplina de

história.

EU TENHO ORIGEM, TENHO RAÇA E TENHO HISTÓRIA: O SAMBA ENREDO DA

NENÊ DENTRO DO ENSINO DE HISTÓRIA.

Ao longo desse artigo foram pontuadas algumas questões importantes para se

entender toda dimensão que envolve o estudo dos enredos de uma escola de samba,

em especial, no direcionamento dos desfiles da Nenê de Vila Matilde. Uma das

grandes dificuldades enfrentadas dentro da dissertação era apresentar que cada

samba, que cada escola de samba e que cada grupo que envolve uma agremiação,

entre eles, os compositores de tais sambas, possuem especificidades e

particularidades como o próprio gênero samba enredo tem em sua gênese.

Diferente de outras obras musicais, o samba enredo é antes de tudo um quesito

de uma competição com o objetivo único de narrar de maneira didática ao público o

que a escola apresenta na sua estética visual (alegorias e fantasias) e corporal

(comissão de frente, casal de mestre sala e porta bandeira e dos componentes em seu

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deslocamento no sambódromo). Mas devido ao aspecto popular e de didatização de

certos temas, o samba enredo conseguiu com o tempo se tornar uma obra fora de sua

função, sendo um gênero genuinamente brasileiro. O primeiro samba enredo que

segue uma sinopse é da escola de samba Império Serrano, em 1949, com o enredo

Exaltação a Tiradentes, e em São Paulo o primeiro samba é da Nenê de Vila Matilde,

em 1956, com o enredo Casa Grande e Senzala.

Por ser uma obra com diversas particularidades, seu uso em sala de aula

necessita de um tratamento mais direcionado dentro de sala de aula, em uma ação que

denominamos de Dimensão Carnavalizada. O samba enredo em sala de aula deve ser

sempre encarado como uma fonte, que possui significados e interpretações de seu

tempo. Sendo assim, o samba enredo é originado não apenas do talento de quem o

compõem. Antes de ele surgir, passa pela construção da sinopse escrita pelo

carnavalesco, que irá pontuar junto com a escola aquilo que deve ser enfatizado ou

não. Só depois disso, e ao passar pelo processo de disputa da escolha do samba

enredo (que pode passar ou não por eliminatória, dependendo muito de cada escola), é

que a agremiação conhece seu samba enredo.

Assim, em algumas escolas certos sambas possuem um DNA especifico. No

caso da Nenê por exemplo, temos a presença de samba enredos mais populares e

com uma mensagem mais direta ao que se quer dizer. E nos seus enredos e sambas

negros podemos identificar a presença de alguns eixos como a ideia de negritude, de

realeza e voz ativa dentro da história, e alguns casos no campo da cultura e religião de

matriz africana. Desta forma, ao analisar tais sambas não podemos nos limitar apenas

a sua letra, mas no seu entorno como um todo.

É o analisar o samba em seu contexto como um todo, que chamamos de

Dimensão Carnavalizada, que pode ser vista: primeiro, pelo o que o enredo de cada

escola propõe que abrange seu tema, o que o carnavalesco dimensiona dentro de tal

tema, o sujeito que o enredo coloca como voz ativa, e como tal sujeito se encaixa

dentro da letra do samba que é gerado. Segundo, em compreender o tempo do enredo,

e em como o samba consegue projetar experiências estéticas das mais diversas, em

que toda a obra de samba enredo, se torna poema épico com um passado que sempre

é abordado, um presente que é questionado e em um futuro sempre utópico de

resolução. E terceiro, como o compositor se insere dentro desta obra, e como a escola

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em sua cultura escolar interfere no processo de criação, mesmo tendo que seguir a

requisitos específicos para sua produção. E aqui a origem da escola e a sua intimidade

com tais temas é essencial.

Para poder fazer tal análise vou me atentar a dois sambas enredos da Nenê

sobre a Chica da Silva. Enquanto que o samba de 1959 coloca um prisma mais

subalterno de Chica da Silva, em que ela é apenas a mulher, mulata; em 2012, ela tem

uma voz ativa e mais empoderada, o que reflete e muito, no olhar a personagem em

sua singularidade e poder. Quanto ao sujeito, em 1959 temos o marido de Chica como

narrador das ações, enquanto que em 2012 é a própria Chica que narra sua história e

descreve os convidados reunidos para a sua congregação de personagens negros.

E isso se torna ainda mais importante se formos perceber o tempo histórico e

como o próprio carnaval paulistano se desenvolvia. Em 1959, estamos falando em uma

época em que os desfiles ocorriam na antiga Av. São João, sem nenhum apoio da

prefeitura e com uma organização dos enredos e dos desfiles ainda muito de laços de

familiaridade, baseada nas redes de solidariedade dentro destas comunidades. Sendo

assim, os enredos seguiam o que os livros didáticos narravam, e que se refletia em

samba enredos descritivos na composição dos autores do samba, que tinham certa

mobilidade de criação. Diferente de 2012, onde as escolas recebem investimento não

só do certo público, como de empresas do ramo privado, e desfilam dentro de um

sambódromo com suas regras e limitações de regulamento e de tempo; em que os

desfiles possuem uma sinopse, uma pesquisa, que influência os compositores, e nesse

sentido o discurso político e acadêmico interfere nessa pesquisa.

Sem contar o discurso existente dentro da temática afrobrasileira, em que em

1959 ainda estamos de uma sociedade que excluía dos centros de discurso a

intelectualidade negra, e que em 2012 já coloca como pauta de discussão a

importância do Movimento Negro para a formação de uma sociedade mais real com

nossa formação histórica.

E em um último ponto, estamos falando de uma dimensão simbólica e

imaginativa, que a Dimensão Carnavalizada proporciona. Ao simbólico aqui nos

referimos aos diversos signos que compõem uma canção na sua identidade de

documento (HERMETO, 2012); e que projeta ao estudante a possibilidade de criar um

imaginário, de se deslocar de uma realidade e o colocar em um mundo com uma nova

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perspectiva da história. Uma experiência estética, que gera “uma suspensão provisória

da casualidade do mundo, das relações conceituais que nossa linguagem forja. Ela se

dá como a percepção global de um universo do qual fazemos parte e com o qual

estamos em relação” (DUARTE JR., 1981, p. 84).

UM QUILOMBO DO SAMBA!

Estudar uma escola de samba é um trabalho muito árduo e que não permite ao

pesquisador olhar seu “objeto” como algo frio. Uma escola de samba transpira vida,

pulsa em uma ancestralidade negra, onde representa toda uma comunidade ou um

bairro, ou uma cidade. A Nenê de Vila Matilde e seus sambas enredos possuem um

potencial de força de representação dentro de sala de aula importante, e que merece

destaque assim como outras diversas escolas de samba no Brasil.

Seria presunção dizer que o samba enredo seria um salvador da implementação

da Lei 10.639/03, mas, um olhar as suas dimensões mais importantes pode ser um

meio para podermos realizar o que Petronilha Gonçalves (2010) pontua de um

enegrecimento do currículo. Devemos em sala de aula enriquecer e colocar aos

estudantes uma nova perspectiva de analisar a história do negro. Vejo o samba enredo

como um meio de colocar o negro como protagonista, como um locutor de um passado

que lhe é próprio e que interfere dentro da nossa história pública. Como Petronilha

pontua: gerar uma africanidade dentro de sala de aula:

Estudar Africanidade Brasileiras significa tomar conhecimento, observar, analisar um jeito peculiar de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver e de lutar pela dignidade própria, bem como pela de todos os descendentes de africanos, mais ainda de todos os que a sociedade marginaliza. (SILVA, 2010, p. 50)

Em tempos que a liberdade é tão ameaçada, em que reexistir é um ato político

de auto reconhecimento, as escolas de samba ao longo de sua história se tornaram

verdadeiros quilombos urbanos de uma sabedoria ancestral. Se no passado o

Movimento Negro passou por certas divergências com entidades culturais, talvez no

tempo presente o discurso político aliado ao discurso cultural das escolas de samba é

um instrumento potente dentro de sala de aula. O samba enredo se torna um meio de

desvelar em nossas escolas como o carnaval enxerga o seu passado. Que no caso da

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Nenê, em seus 69 anos de história, com seus 11 títulos, se tornou o “palácio” da

negritude, um verdadeiro Quilombo do Samba.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUGRAS, Monique. Medalhas e brasões: a história do brasil no samba. Rio de Janeiro: CPDOC, 1992. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: modos de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. SILVA, Petronilha B. Gonçalves. Estudos Afro-Brasileiros: africanidade. In: ABRAMOWICZ, Anete, GOMES, Nilma Lino, Educação e raça: perspectivas políticas , pedagógicas e estéticas. Belo Horizonte: Ed, Autêntica, 2010. ALVES, Alberto. BRAIA, Ana. Memórias do Seu Nenê da Vila Matilde. São Paulo: Lemos-Editorial, 2000. DUARTE JÚNIOR, João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Ed. Cortes, 1981. FARIAS, Guilherme José Motta. As escolas de samba e os movimentos negros nos anos 1960: uma página em branco na historiografia brasileira. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 29 – 46 nov. 2014. FOLHA DE S. PAULO. Como cada escola vai contar o seu enredo. Jornal Folha de S. Paulo, Edição 1º, p. 05, nº 19386, fevereiro, 1982 HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de história: palavras, sons, e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. MORAES, José Geraldo Vinci de. As sonoridades paulistanas: a música popular na cidade de São Paulo – final do século XIX ao início do século XX. Rio de Janeiro: Funarte, 1995. OLIVEIRA, Fábio Nogueira de; RIOS, Flavia. Consciência negra e socialismo: mobilização racial e redes socialistas na trajetória de Hamilton Cardoso (1953-1999). Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 4, n. 2, jul-dez, 2014, p. 507 – 530. ORTIZ, Elsa Maria Nitshe. O sujeito do samba enredo. Linguagens & Ensino. Pelotas, v. 1, n. 2, 1998, p. 115 – 132. TAIAR, Cida. As raras novidades nos enredos. Jornal Folha de S. Paulo, Edição 1º, p. 33, fevereiro, nº 19284, janeiro, 1982. VIÑAO-FRAGO, Antonio. Sistemas educativos, culturas escolares y reformas. MADRID, Espanha: Editora Morata, 2002.