“tenho gavetas surpresa” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os...

154
ANA CLAUDIA GUIMARÃES SENNA “TENHO GAVETAS-SURPRESA”: O ARQUIVO DE ANA C. PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA São João del-Rei 2015

Upload: vuanh

Post on 01-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

ANA CLAUDIA GUIMARÃES SENNA

“TENHO GAVETAS-SURPRESA”:

O ARQUIVO DE ANA C.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

São João del-Rei

2015

Page 2: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

2

ANA CLAUDIA GUIMARÃES SENNA

“TENHO GAVETAS-SURPRESA”:

O ARQUIVO DE ANA C.

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras

da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito

parcial para obtenção para obtenção do título de Mestre em

Letras.

Área de concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura

Linha de pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Orientadora: Profª Drª Suely da Fonseca Quintana

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

São João del-Rei

2015

Page 3: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

3

ANA CLAUDIA GUIMARÃES SENNA

“TENHO GAVETAS-SURPRESA”: O ARQUIVO DE ANA C.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Profª Drª Suely da Fonseca Quintana – UFSJ (Orientadora)

_______________________________________________

Profª Drª Maria Andreia de Paula Silva – CES/JF

_______________________________________________

Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Junior – UFSJ

_______________________________________________

Prof. Anderson Bastos Martins – UFSJ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E

CRÍTICA DA CULTURA

2015

Page 4: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

4

Para Ana C.

Page 5: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

5

AGRADECIMENTOS

À Professora Suely pela confiança dedicada a mim ao aceitar o pedido de me

acompanhar nessa orientação intensa. Gratidão por estar ao meu lado o tempo

todo, por todos os ensinamentos e por me acolher, literalmente, em meio a

tantas intempéries.

À CAPES pelo financiamento da pesquisa, possibilitando seu desenvolvimento.

A Flávio Lenz pelo cuidado com a memória da irmã e pela solicitude com que

autorizou o uso do acervo de Ana Cristina Cesar para minha pesquisa.

À Manoela Purcell Daudt D’Oliveira, toda equipe da Coordenadoria de

Literatura e funcionários do Instituto Moreira Salles pela receptividade e

empenho em fornecer os materiais necessários a esta pesquisa.

Aos professores e funcionários do curso de Letras e do Programa de Mestrado

em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei.

À Karina Vale sempre muito solícita.

À Carla e demais funcionários da Biblioteca do Campus Dom Bosco.

Aos meus pais, Sayonara e Luiz Cláudio, pelo amor irrestrito e confiança em

minhas escolhas.

À Maria Clara, Vó Ana e toda a família pelo apoio de sempre.

A Matheus, companheiro nas madrugadas de pesquisa e em todos os estágios

dessa empreitada, obrigada pelo apoio, estímulo e paciência. À sua família

pela acolhida carinhosa.

Aos amigos, grandes incentivadores, que tanto me apoiaram e respeitaram

minhas ausências.

Aos colegas e, agora, amigos que o mestrado me proporcionou: Rafaela

Kelsen, Talita Nassur, Aracele Araújo, Daniela Martins e Henrique Alves; pelas

tardes repletas de conhecimentos e leituras que, certamente, fazem parte deste

trabalho.

Page 6: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

6

RESUMO

O arquivo de Ana Cristina Cesar encontra-se sob guarda do Instituto Moreira

Salles, no Rio de Janeiro. A ele foram incorporados dissertações, teses e

matérias de jornais e revistas sobre a poeta, além de documentos enviados por

terceiros, como cartas que receberam de Ana C. Todavia, muito antes de se

tornar um acervo institucionalizado, ele era o arquivo pessoal e literário da

poeta. A proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar

os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em

seu processo de escritura. Para tal intento, nos amparamos nas teorias sobre a

Crítica Genética e os arquivos literário. Certos de que é impossível fazer a

leitura de um arquivo em sua completude, recorremos ao que diz Walter

Benjamin e Derrida sobre os rastros. Diante de uma poeta acometida pelo mal

de arquivo foi preciso explorar a leitura derridariana da pulsão de morte de que

trata Freud. Com essas leituras traçamos um perfil arquivista de Ana Cristina

Cesar verificando o modo como a poeta se arquiva para si mesma e para a

posteridade.

Palavras-chaves: Ana Cristina Cesar; arquivo literário; rastros; mal de arquivo.

Page 7: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

7

ABSTRACT

Ana Cristina Cesar’s archive is under the protection of Instituto Moreira Salles,

in Rio de Janeiro. To it were incorporated dissertations, thesis and newspaper

and magazine articles about the poet, besides documents sent by ordinary

people, such as letters received from Ana C. However, much before it turned

into an institutionalized collection, it was the personal and literary archive of the

poet. The purpose of this work is to go through this archive, aiming to verify the

construction processes and the use of it as a working tool in her process of

writing. To this, we looked for support in the theories about the Genetic Criticism

and the literary archives. Assured that it is impossible to completely read a

whole archive, we looked for what Walter Benjamin and Jacques Derrida say

about trace (spur). In front of a poet stricken by the file illness, it was needed to

explore the derridarian interpretation of the “death drive” conceived by Freud.

With these interpretations, we drew an archivist profile of Ana Cristina Cesar,

verifying the way the poet archives herself to herself and to posterity.

Key-words: Ana Cristina Cesar; literary archives; trace; archive fever

Page 8: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Fac-símile “Índice Onomástico” 47

Figura 2: Capa do livro Cenas de Abril 53

Figura 3: Capa do livro Correspondência Completa 54

Figura 4: Capa do livro Luvas de Pelica 55

Figura 5: Fac-símile “P.A.C P.I.M” 56

Figura 6: Fac-símile “Memórias de uma criança” 57

Figura 7: Fac-símile “Só leia se estiver com o coração puro” 58

Figura 8: Fac-símile interior de “P.A.C P.I.M” 59

Figura 9: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 60

Figura 10: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 61

Figura 11: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 62

Figura 12: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 63

Figura 13: Fac-símile “Meios de Transporte” 64

Figura 14: Fac-símile interior de “Meios de Transporte” 65

Figura 15: Fac-símile “Páginas impublicáveis” 71

Figura 16: Fac-símile versos manuscritas de “Litoral” 95

Figura 17: Fac-símile versos manuscritas de “Litoral” 96

Figura 18: Fac-símile versos manuscritas de “Litoral” 97

Figura 19: Fac-símile “Diagnóstico precoce” datiloscrito 98

Figura 20: Fac-símile “Diagnóstico precoce” manuscrito 99

Figura 21: Fac-símile “No cais outra vez” manuscrito 101

Figura 22: Fac-símile “Luta de classes” e “Despertar” 102

Page 9: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

9

Figura 23: Fac-símile versões de “Despertar” 103

Figura 24: Fac-símile versões de “Despertar” 104

Figura 25: Fac-símile “Por enquanto” datiloscrito 107

Figura 26: Fac-símile versões de “Navegação da palavra” 108

Figura 27: Fac-símile “1” datiloscrito com comentários de Ana C. 110

Figura 28: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 111

Figura 29: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 111

Figura 30: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 112

Figura 31: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 112

Figura 32: Fac-símile Manuscrito passado a limpo – Frente 114

Figura 33: Fac-símile Manuscrito passado a limpo – Verso 114

Figura 34: Fac-símile “A morte e a sua nudez” manuscrito 116

Figura 35: Fac-símile “A noite e a sua nudez” manuscrito 117

Figura 36: Fac-símile “Carta de despedida” datiloscrito 118

Figura 37: Ana C. 128

Figura 38: A máquina de escrever 129

Figura 39: Fac-símile “Índice Onomástico” 2 152

Page 10: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. “TENHO GAVETAS-SURPRESA” 17

1.1 As gavetas de escritores 18

1.2 As gavetas-surpresa de Ana C. 26

1.3 Cartas Marcadas: a correspondência de Ana C. 31

1.4 Edições fac-similares, obra e autoria: pontuações 42

1.5 Os livrinhos de Ana C. 52

2. “Uma voz me delineia: VORAZ” 67

2.1 Uma sereia de papel: Ana C. como arquivo 68

2.2 Prontos mas rejeitados: pulsão de morte no arquivo de Ana C. 87

CONSIDERAÇÕES FINAIS 120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 123

ANEXOS 127

Page 11: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

11

INTRODUÇÃO

Começando com ela, Ana Cristina: Biografia, não. Mulher.

Ana Cristina Cesar nasceu no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1952. Filha de Waldo

Aranha Lenz Cesar e Maria Luiza Cesar foram grandes incentivadores da poeta, que

começou a ditar poemas aos seis anos, antes mesmo de qualquer domínio da escrita;

e aos sete teve seus primeiros poemas publicados na Tribuna da Imprensa.

Além de poeta, ela foi professora, ensaísta e tradutora. Trabalhando sempre, de

alguma maneira com a palavra. Como tradutora, destaca-se seu trabalho com o conto

Bliss, de Katherine Mansfield, seguido de 80 anotações que lhe rendeu o título de

Master of Arts na Universidade de Essex, durante o segundo período em que viveu na

Inglaterra, entre 1979 e1981.Participou ativamente da criação do jornal alternativo

Beijo e militou no jornalismo engajado de seu tempo através de artigos em outros

periódicos da época, como o Opinião.

Ana C. transitou no cenário cultural carioca da década de 1970. Por esse motivo, sua

poesia ao mesmo tempo em que é associada à Poesia Marginal, pelo seu convívio

com poetas atuantes no movimento, afasta-se dela pela sua dicção poética mais

sofisticada e menos voltada para o antiliterário pregado pelos colegas, Ana “viveu os

marginais, colheu alguns frutos ali, mas destoava dos colegas” (MALUFE, 2006, p.23).

Ainda assim acabou tornando-se um dos nomes mais expressivos do movimento e

uma espécie de musa e mito da Geração Mimeógrafo.

Musa pela beleza pela qual é sempre lembrada: “loura, linda, piscando marota aqueles

cílios descoloridos no olho esquerdo, por trás das grossas lentes de míope”

(MORICONI, 2006, p.19). Mito pela marca do emblema que a envolve na vida e na

morte. Em vida pela poesia marcadamente enigmática e de um mistério até mesmo

melancólico. Na morte, por ter sido assinalada pela imposição de seu gesto derradeiro.

Em outubro de 1983, menos de um ano após lançar A teus pés, seu primeiro

livro por grande editora, Ana salta para o fim da própria vida. Pesquisas

envolvendo casos assim, especialmente tratando-se de poetas em plena

produção, acabam por focar nesse gesto indissociável da biografia, mas não

necessariamente da obra, “como se a sombra do suicídio da autora tivesse

caído permanentemente sobre o texto” (CARVALHO, 2003, p.15).

Nossa pesquisa não protagoniza o suicídio como uma questão fundamental.

Page 12: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

12

Todavia, se colocar holofotes para esse aspecto e fazer dele fio condutor de

sua escrita não parece justo com sua tão vasta poética, tampouco parece

aceitável desviar o olhar diante do peso do ato final.

Em meio a esse impasse entra em cena o arquivo da escritora. Guardado pelo

Instituto Moreira Salles o arquivo aparece como uma presença de Ana C. em

sua ausência. Configurando um espaço no qual a poeta manifesta-se

subjetivamente a cada caminho trilhado.

Seguindo, Aventura bruta (em versos): trajetória da pesquisa

Foi em meados do quinto período do Curso de Letras que conheci Ana Cristina Cesar.

Uma colega chegava da biblioteca do Campus Dom Bosco trazendo nas mãos o livro

que - só para dizer o mínimo - mudaria os rumos da minha graduação. Não há como

negar, aquela capa com o meu (o nosso) nome impresso em letra cursiva cor-de-rosa

exerceu enorme atração sobre mim. Só depois vi seu rosto na capa com o olhar baixo

na fotografia em preto e branco. Debochei da colega que portava um livro com meu

nome na capa e foi ela quem me sugeriu a leitura, com o argumento de que eu iria

adorar. Desconfio que nem ela sabia o quanto estava certa.

O livro ao qual me refiro é Correspondência Incompleta (1999), organizado por

Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda, um compilado de cartas

escritas por Ana C. e enviadas a quatro amigas entre os anos 1976 e 1980. As cartas

transitam entre os mais diversos assuntos: contam da vida pessoal e sobre viagens,

tratam dos eventos e das pessoas envolvidas no circuito cultural da época, novos

livros ou discos lançados, matérias em revistas, discute-se literatura e o fazer poético

marca presença com os constantes pedidos de crítica e sugestões às suas poesias.

O interesse por escrita de mulheres, cartas e diários íntimos já era latente em mim e

foi com base em algumas dessas cartas que escrevi, sob orientação da Professora

Suely da Fonseca Quintana, meu trabalho de conclusão de curso intitulado

"'ABRANGES UMA ANA': As facetas da formação intelectual de Ana Cristina". O

trabalho foi apresentado em novembro de 2012 e buscava, por meio de seus escritos

poéticos e teóricos, além das cartas, traçar um perfil de sua trajetória intelectual.

Não demorou muito para que a poesia de nuance intimista de Ana Cristina Cesar me

envolvesse e fizesse buscar outros olhares em sua escrita poética. Dessas leituras

Page 13: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

13

escrevi o ensaio "Melancolia em Ana C.: Essas areias pesadas..." versando sobre

aspectos de melancolia na obra de Ana C. O ensaio foi apresentado no VI Colóquio

Mulheres em Letras da UFMG1 e publicado nos anais do evento.

O interesse por seus rascunhos apareceu com a leitura do livro Antigos e Soltos:

poemas e prosas da pasta rosa (2008), com fac-símiles dos papéis de Ana Cristina,

organizados pela pesquisadora Viviane Bosi. Surge a partir de então um certo desejo

voyeur de conhecer o processo de criação dos poemas, remexendo, por assim dizer,

na escrivaninha do escritor. Neste momento tomar conhecimento da existência das

Teorias em Crítica Genética, através da fala da Professora Eliana da Conceição

Tolentino em sua comunicação no Ciclo de Palestras: O jornal como recurso didático2,

foi de grande valia para começar a pensar este trabalho.

Para a inscrição no mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del Rei

a proposta inicial, sob o título Uma sereia de papel: a poesia e os rascunhos de Ana

Cristina Cesar na perspectiva da Crítica Genética, pretendia elaborar um trabalho de

análise dos manuscritos baseado nos fundamentos da Crítica Genética. Entretanto, o

projeto parecia longo demais para o curto prazo do mestrado. Além do mais, logo após

minha aprovação no mestrado descobri que havia um artigo escrito por Roberto Zular

cujo título: Sereia de papel: algumas anotações sobre a escrita e a voz em Ana

Cristina Cesar3 muito se aproximava do meu, o que me obrigava a trocá-lo.

As visitas as acervo de Ana Cristina Cesar no Instituto Moreira Salles do Rio de

Janeiro me fizeram conhecer mais de perto o material que eu pretendia pesquisar.

Devido à grande quantidade de papéis e a heterogeneidade que imperava entre eles

tornava-se claro que seria pouco proveitoso selecionar apenas alguns para uma

análise geneticista. Ademais, conhecer a maneira como a poeta organizava seus

cadernos de trabalho desde os primeiros escritos, ainda na infância, sobrepôs um

outro olhar para o arquivo. Dessa forma um novo objeto de pesquisa se impunha: o

próprio gesto de conceber o arquivo latente em Ana C.

De volta às cartas presentes em Correspondência Incompleta (1999) observamos a

pertinência do intento: não são poucas as cartas nas quais Ana C. descreve sua

fixação pelo arquivamento e pela coleção de livros, postais, fotografias, marcadores de

1 VI Colóquio Mulheres em Letras: Literatura e Diversidade (2014) FALE/UFMG. Disponível em:

http://media.wix.com/ugd/030d3a_70fd6b702d6c41c4ab252027dc011752.pdf 2Ciclo de Palestras: O jornal como recurso didático - PIBID - Universidade Federal de São João del Rei

(UFSJ). 2013 3 Apresentado no colóquio Ana Cristina Cesar: peça bliss, realizado pelo Laboratório de Poéticas

Contemporâneas da USP em 2012.

Page 14: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

14

páginas, lembranças de viagens... Vimos nisso uma espécie de entrada para percorrer

o arquivo da poeta, que apesar de totalmente catalogado, ainda configura um labirinto

de papéis.

Alguns percalços, desta vez não pelo arquivo, mas ao longo do mestrado, trouxeram

para minha caminhada uma exímia companheira de viagem. A orientação da

Professora Suely da Fonseca Quintana revigorou a pesquisa com novos

embasamentos teóricos fundamentais para a trajetória que pretendíamos traçar.

Foi assim que, além do Mal de Arquivo (2001) que já estava previsto para compor o

arcabouço teórico, outras teorias de Jacques Derrida vieram contribuir para nossa

linha de pensamento: O animal que logo sou (2002), com a ideia de rastro através do

qual percorremos o acervo, e A farmácia de Platão (1992), com o conceito de

phármakon que se tornou tão caro à nossa pesquisa. Esses textos, juntamente com os

conceitos de Pulsão de Morte e a Compulsão à Repetição desenvolvidos por Freud,

ajudam a compor o segundo capítulo da dissertação, no qual procuramos, na primeira

parte, estabelecer Ana Cristina Cesar ao mesmo tempo como uma arquivista e um

arquivo. Na segunda parte, a leitura do acervo aparece como protagonista com a

presença de alguns fac-símiles do acervo e do livro Antigos e Soltos (2008).

Investigamos a relação entre a compulsão pela escrita, ou aquilo que chamo de

"perseguição da palavra", e a pulsão de destruição do acervo. A pulsão de morte

aparece como ponto importante, porém sem que fosse dado um tratamento

psicanalítico ao objeto.

Antes de tudo isso, foi necessária a concepção de um capítulo para tratar da trajetória

das teorias de Crítica Genética – da qual tomamos o objeto de pesquisa, os

manuscritos. Foi preciso, ainda, teorizar os arquivos de escritores, visto que são eles

os suportes de guarda dos manuscritos modernos e ambos interessam à nossa

pesquisa. Para dar conta dessas teorias, o capítulo de abertura da dissertação faz

uma revisão, levantando os conceitos mais relevantes, com suporte de Louis Hay

(2007), Almuth Grésillon (2007), além de um apanhado de artigos esclarecedores de

Eneida Maria de Souza e Reinaldo Marques.

Ainda no primeiro capítulo, reservamos uma seção para tratar especificamente do

acervo de Ana Cristina Cesar instalado na casa da Gávea, sede carioca do Instituto

Moreira Salles. Outro item destrincha a relação de Ana Cristina com sua

correspondência, visto que o já mencionado livro de cartas é para nossa pesquisa

referência literária e teórica. Para fechar o primeiro bloco de discussões, o último

Page 15: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

15

subcapítulo se dedica aos “livrinhos” de Ana C., modo carinhoso com que tratava suas

publicações independentes, antes de serem publicadas pela Editora Brasiliense, e

também os “livrinhos” da infância da poeta muito bem elaborados em cadernos, com

capa, ilustrações e até mesmo “editora”. Já nesse momento alguns fac-símiles

reproduzidos do acervo fazem parte da composição da dissertação.

Pesquisar um material de acervo demandou ainda um trabalho burocrático que

envolveu pedidos de autorização a Flávio Lenz, irmão de Ana Cristina e responsável

pelos direitos de imagem; e termos de compromisso e responsabilidade com o

material, firmado com o Instituto Moreira Salles. Burocracias resolvidas, a última etapa

foi a transcrição dos documentos para facilitar a leitura dos manuscritos e compor os

anexos ao trabalho.

Page 16: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

16

CAPÍTULO I

“TENHO GAVETAS-SURPRESA”

Page 17: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

17

1.1 As gavetas de escritores

Bem aventurado o colecionador!

Bem aventurado o homem privado! (W. Benjamin)4

O escritor argentino Jorge Luis Borges costumava mencionar em entrevistas

que se criou cercado pela enorme biblioteca de seu pai. Já cego e ocupante do

cargo de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina escreveu um poema no

qual dizia imaginar o paraíso como algum tipo de biblioteca5. Para os

pesquisadores em crítica genética e crítica biográfica, o paraíso talvez seja um

pouco mais que isso, considerando-se o interesse patente dessas correntes

contemporâneas em deslindar a biografia intelectual do autor e das obras,

através do conhecimento e estudo dos bastidores da criação literária.

No cenário uma escrivaninha, máquina de escrever posta, luz de luminária,

uma biblioteca ao fundo, lápis, canetas e as gavetas e pastas entupidas de

papéis. Manuscritos, datiloscritos, rasurados, passados a limpo, diversas

versões ora iguais, ora minimamente, ora completamente diferentes. Alguns

com marcas de que foram desamassados, machucados pela insatisfação do

escritor, resíduos que se tornam índices do árduo processo de criação. É

inegável, o recanto do escritor tem morada no imaginário do leitor/pesquisador.

Eneida Maria de Souza, no artigo Biografia – um bem de arquivo (2011), ao

introduzir o leitor à tendência crítica, voltada para as fontes primárias, explica

que a prática não expressa uma visão conservadora, mas a revitalização do

olhar sobre a escrita literária. Para reiterar seu pensamento, Souza cita a

máxima de Jean-Louis Lebrave, crítico francês e um dos responsáveis por

difundir a crítica genética no Brasil, a qual tomamos também de empréstimo: “o

manuscrito será o futuro do texto”6. Visando ao caráter futuro do texto, sobre o

qual expressa Lebrave, muitos trabalhos começaram a ser pensados com o

4 In: Obras escolhidas II – Rua de mão única (2000) 5 Em seu Poemas dos dons (BORGES, 2000) escrito em 1955: “eu, que me figurava o paraíso / tendo uma

biblioteca por modelo.” 6 A expressão foi buscada no texto de Eneida Maria de Souza, “A biografia – um bem de arquivo” (2011,

p.40).

Page 18: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

18

olhar voltado para o percurso da escrita.

A Crítica Genética começa a ser difundida, na França, a partir da década de

1960, com seu objetivo principal em percorrer o processo de criação,

apontando alternativas pensadas pelo autor para seu texto, trazendo a público

os bastidores da criação. Ou ainda, com as palavras de Roberto de Oliveira

Brandão na apresentação do livro Criação em Processo: ensaios de crítica

genética (2002):

[...] "mapear" o percurso da escritura, com suas variantes, rasuras, emendas e toda sorte de modificações que configuram a "gênese" do texto como o espaço onde o escritor testa as muitas alternativas que o processo criativo, tanto como experiência pessoal quanto como prática histórica e social da escritura, vai pondo diante de si (p.9).

O processo de mapeamento da escrita ao qual Brandão faz referência diz

respeito a sucessivos atos de descrição dos manuscritos, a fim de que se torne

possível analisar os caminhos de escrita pelos quais o escritor atravessou.

Todavia, alguns trabalhos – e a presente pesquisa integra esse grupo – não

visam mapear com o sentido de estabelecer um itinerário, ou seja, traçar uma

linha que busque alguma origem, que passe por um trajeto, até chegar a um

fim (que talvez seja a obra literária “acabada”, o livro). Nosso interesse, como

se verá adiante, está no manuscrito literário, o protagonista dos processos de

criação, objetificando o manuscrito literário como metonímia do arquivo do

escritor e testemunha dos rastros deixados por ele.

A definição de crítica genética do artigo Devagar: obras (2002) escrito por

Almuth Grésillon, parceira de Lebrave em trabalhos com os manuscritos de

Marcel Proust e também precursora da corrente em nosso país, parece

dialogar melhor com nossa proposta:

Seu objeto: os manuscritos literários, na medida em que trazem o traço de uma dinâmica, a do texto em processo. Seu método: o desnudamento do corpo e do curso da escrita e a construção de uma série de hipóteses sobre as operações de escrita. Sua mira: a literatura como um fazer, como atividade, como movimento (2002, p.147).

Consoantes com a conceituação de Grésillon, nossa pesquisa mira a literatura

como movimento, um gesto inacabado. Porém não partiremos do método de

Page 19: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

19

levantamento de hipóteses sobre as possibilidades apontadas pelo autor para

seu texto, já que não é nosso interesse mapear uma origem.

Em Elementos de Crítica Genética – ler os manuscritos modernos (2007),

Grésillon empreende a tarefa de elaborar importante estudo com as principais

definições para a introdução em crítica genética. Entre os conceitos

apresentados pela autora o mais caro deles à nossa pesquisa é a noção de

manuscrito moderno, o qual, segundo ela:

(…) porta os traços de um ato, de uma enunciação em marcha, de uma criação que está sendo feita, com seus avanços e seus bloqueios, seus acréscimos e seus riscos, seus impulsos frenéticos e suas retomadas, seus recomeços e suas hesitações, seus excessos e suas faltas, seus gastos e suas perdas (GRÉSILLON, 2007, p.52).

Referimo-nos, portanto, ao manuscrito moderno. A palavra manuscrito

doravante deixa de corresponder aos antigos pergaminhos escritos à mão e

passa a representar, para nós, o suporte do caos da criação. Se antes eles

eram meras peças isoladas dentro do arquivo, agora recebem o status de "[...]

testemunhas materiais de uma dinâmica criadora" (GRÉSILLON, 2007, p.29).

O trabalho do crítico geneticista é trazer à luz esses documentos em um ato

que aponta para o “desejo de comunhão”, de acordo com Almuth Grésillon,

pois o pesquisador propõe-se a compartilhar e desvendar os segredos da

criação. Ao fazer isso o crítico acaba por extrapolar o texto de alguma forma,

imprime um novo olhar, levantando "[...] hipóteses sobre os caminhos

percorridos pela escritura e sobre as significações possíveis desse processo de

criação [...]" (GRÉSILLON, 2007, p.29 e p.30).

Para Louis Hay, em A literatura dos escritores – Questões de crítica genética

(2007), a morada do autor é o instante da criação. Ali, no tempo da escritura, é

que o autor tem seu momento de sobrevida: “Ele [o texto em devir] é o produto

de um movimento do espírito (pensamento, pulsão, reação), que se faz forma,

e traz à luz o trabalho da pena” (HAY, 2007, p.13), é nesse instante que a

literatura começa. O teórico defende que toda escritura enquanto movimento

que visa à arte pertence à literatura. Eis um dos méritos dessa abordagem

Page 20: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

20

crítica, revelar a literatura para além do livro pronto em suas diferentes edições,

englobando o que há entre estas e antes: em seu devir.

O autor destaca ainda o fato de ser único o momento de criação, aquela

experiência não poderá ser nunca vivenciada por outro além do próprio autor.

Neste sentido, o manuscrito aparece como um índice e testemunha do trabalho

executado. Ao debruçar-se sobre esses papéis o crítico no máximo decifrará

“os traços de um ato” e jamais “o movimento de um espírito” (HAY, 2007, p.19),

ou seja, não se trata de um jogo de adivinhações, mas de minuciosa

observação das marcas deixadas no processo de criação literária.

Não significa, no entanto, qualquer busca pela gênese do texto. As noções de

origem já foram refutadas e não serão reivindicadas no presente trabalho.

Apenas interessa pensar a literatura em seu processo, registrada pelos

manuscritos e datiloscritos, por considerar que "[...] desde que o pensamento

ou a imaginação os tocaram [os manuscritos], todos, do documento inerte [...]

até a página inspirada, encontram-se dotados de vida e convocados a

desempenhar seu papel num projeto de escritura", conforme esclarece Hay

(2007, p.17). Ao atinar para a literatura em seu devir, torna-se possível pensar

em métodos, materiais e procedimentos. Essas abordagens, caras a outras

manifestações artísticas como a pintura, pareciam distantes da crítica na arte

literária, antes do aparecimento da crítica genética que “sublinha, assim, a

antiga ambição de procurar na arte seu próprio princípio de explicação” (HAY,

2007, p. 28), agora tangíveis também na literatura.

Ao lançar reflexões acerca da crítica genética contemporânea, Hay vislumbra

um retorno ao passado “a fim de encontrar referências que possam balizar uma

reflexão comum” (HAY, 2007, p. 80), em busca de certa unicidade nos estudos

de crítica genética. Isso porque há uma multiplicidade de acepções suportadas

pela crítica contemporânea que visa ao trabalho com o manuscrito literário.

Trabalhos esses os quais muitas vezes tendem a confundir a manuscritologia

com a crítica genética propriamente dita. Neste sentido, o termo tende a

ampliar o campo de pesquisa passando a abordar não apenas o rascunho

escrito à mão, mas também os escritos à máquina, desenhos,

Page 21: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

21

correspondências, bilhetes de trem, postais e outros escritos. Abarcando assim

todo o arquivo do escritor. Apesar da crítica de Louis Hay com relação à

dispersão da crítica, nossa proposta está consoante com a visão mais recente

e ampla da abordagem, a qual visa aos manuscritos enquanto plural, uma

“abundância de objetos” cujos dois aspectos se cruzam, a saber: o material e o

intelectual. Partimos de pontuações que esclarecem o que é a crítica genética

– e a inevitável associação com o manuscrito – para chegar ao ponto que mais

importa para esse trabalho: o arquivo literário.

Considerando que, a partir da primeira parte do século XX, a literatura tomou

como novo rumo a relação entre o autor e sua obra, era de se esperar que

esse trânsito não se limitasse à criação acabada, mas abarcasse toda a

travessia, evidenciando assim o ateliê dos escritores e seus materiais de

trabalho. Entendemos que o arquivo é composto pelo que resta dos processos

de criação pelos quais passou o escritor, destarte, não pareceu viável iniciar

essa pesquisa de outra forma a não ser balizando as noções de manuscrito

moderno. Não visamos, aqui, à análise geneticista dos manuscritos literários,

embora alguns destes façam parte do nosso objeto de pesquisa. Contudo,

somente tomamos de empréstimo alguns postulados da teoria genética para ler

esses manuscritos como um material presente e, até então, engavetado no

laboratório do escritor.

No que tange à gaveta, Gaston Bachelard acusa Bergson de empobrecer a

palavra colocando-a como metáfora da organização do pensamento

racionalista. Disposto a reparar a injustiça, Bachelard não se furtou em dedicar

um capítulo de sua obra A poética do espaço (1988) para tratar das gavetas,

dos cofres e dos armários, essas imagens da intimidade que acompanham o

homem, “grande sonhador de fechaduras”, em seus esconderijos, guardando e,

quando necessário, dissimulando seus segredos. Em Bergson a metáfora é,

desdenhosamente, segundo Bachelard, usada para exprimir os conceitos e

assim classificar os conhecimentos separadamente – um em cada gaveta. Para

o filósofo da poética do espaço há um risco em transformar metáforas em um

pensamento, pois elas são falsas imagens do pensamento e devem ocorrer

apenas com um “acidente de expressão”. Ainda para Bachelard, as gavetas

Page 22: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

22

são objetos-sujeitos, pois “Têm, como nós, por nós e para nós, uma intimidade”

(1988, p. 91). As gavetas, aparentemente triviais no cotidiano de um lar,

configuram-se local de grande valor para a vida íntima, preciosos esconderijos

daquilo que não se quer exposto.

Engavetam-se processos considerados causas perdidas, engavetam-se

projetos deixados de lado, engaveta-se o porta-retratos para que não mais

exiba sobre a estante a face de um antigo amor. A gaveta também é o destino

das contas já pagas e das cartas – no tempo em que elas ainda transitavam

entre os lares sem causar estranhamento – e de todas as quinquilharias que

não mais queremos expostas, mas que tampouco intentamos descartar de

maneira definitiva. É possível “encontrar” coisas em gavetas, porque elas são

exímias guardiãs do esquecimento. Paradoxalmente, no entanto, a gaveta não

permite a aniquilação da memória, pois o esquecimento inerente a ela é

parcial, momentâneo, dura apenas o tempo em que ela permanece fechada.

Remexer as próprias gavetas é como visitar seu museu particular, seus

pertences, ainda que sejam absolutamente conhecidos, tornam-se novidades

rememoradas. Esse é o motivo pelo qual organizar uma gaveta de guardados é

tarefa de grande imersão, podendo levar horas, dias, ou não terminar nunca de

fato, se considerarmos que o acúmulo, amontoado ou mesmo o caos ali

instaurado é intrínseco ao ostracismo da gaveta.

Miguel Sanches Neto (2011) teoriza sobre a importância da desordem no

ambiente de trabalho do escritor. Para ele, “as gavetas são as representações

mais próximas do caos original” (2011, p.65). Nesse espaço é permitido ao

escritor engavetar projetos, guardar sua correspondência, fotografias, recortes,

esconder dos leitores aquilo que ainda não está pronto, mas que foi reservado

para o porvir. Ali não é preciso que haja ordem, pois é ele, o colecionador de

seus escritos, que ordena o espaço caótico de seus guardados.

Metáfora ideal para se pensar o arquivo, a gaveta de um escritor é a arca do

seu tesouro. Nela repousam seus rascunhos, várias versões, papéis avulsos,

ideias soltas, manuscritos. Se, conforme Neto (2011) nos mostra, os objetos do

Page 23: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

23

escritor/colecionador apontam para fragmentos de sua autobiografia, num

mesmo sentido, em suas gavetas materializam-se as autobiografias de suas

obras ou autobiografia da escrita, pois cada bilhete, cada papel rasurado ali

engavetado remete a narrativas que compõem a escrita do arquivo. Também

suas coleções podem ser tomadas como atos autobiográficos. Isso porque, de

acordo com o ensaio do historiador Ulpiano Bezerra de Meneses (1998), os

objetos materiais podem ser lidos como “processos cognitivos encarnados”, ou

seja, seu valor extrapola o intrínseco, mercadológico e ele passa a conter em si

um valor simbólico, tornando-se objeto de memória. A necessidade do suporte

físico advém da nossa incapacidade humana em armazenar plenamente tudo o

que vivemos. Assim, o fetiche pelos objetos busca sanar o problema da (falta

de) memória com fotografias, objetos familiares, pequenas lembranças dos

lugares por onde passamos ou das pessoas que passaram por nós. Ainda

segundo Meneses, é a própria materialidade dos objetos que propicia essa

fetichização: “(…) a simples durabilidade do artefato, que em princípio costuma

ultrapassar a vida de seus produtores e usuários originais, já o torna apto a

expressar o passado de forma profunda e sensorialmente convincente” (1998,

p.90).

Apesar de expressarem o passado, o compromisso firmado pelas relíquias é

com o presente. Isso porque é no agora, e não no passado, que são

produzidos sentidos fetichizantes para os objetos de memória. O significado só

lhes é imanente no presente, e não no passado, quando não passavam de

objetos e instrumentos de uso comum.

Visando, a partir da coleta dessas coleções de objetos de memória, à

construção ficcional de uma origem – que denuncia certa busca também pela

verdade do arquivo – alguns acervos remontam cenograficamente os

laboratórios de escritores. O exemplo mais próximo está na Universidade

Federal de Minas Gerais que abriga o Acervo de Escritores Mineiros, o qual

recria os escritórios de nomes como Henriqueta Lisboa (1904 – 1985), Murilo

Rubião (1916 – 1991) e Abgar Renault (1901 – 1995), configurando importante

centro de pesquisa e preservação da memória cultural e literária mineira.

Localizado na Biblioteca Central do Campus Pampulha, o acervo instala uma

Page 24: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

24

montagem de caráter cenográfico e museográfico. A reprodução do laboratório

de criação do escritor – feito a partir de pesquisas com seus familiares – expõe

mesas de trabalho, estantes com livros, cadeiras ou confortáveis poltronas de

leitura. A presença das máquinas de escrever ou canetas postas sobre a mesa

vislumbram a recriação do instante da escritura – a busca pela origem – e são

um convite ao visitante, leitor do acervo, a participar da intimidade do autor e

sua criação.

Além da montagem mobiliária dos cenários, o fundo conta ainda com suas

bibliotecas, correspondências, manuscritos e datiloscritos, fotografias, pinturas,

documentos pessoais, indumentária, coleções. Documentos raros, como

primeiras edições autografadas, e objetos pessoais de grande valor simbólico,

como óculos e espadas dos imortais da Academia Brasileira de Letras, são

expostos protegidos por vitrines. Ao serem colocados no acervo, esses objetos

são ressignificados, tornando-se agora objetos de memória, pois remetem a

seus antigos donos, de acordo com Reinaldo Marques no ensaio Grafias de

coisas, grafias de vida (2009): "Ao serem apropriadas, as coisas guardam uma

memória dos sujeitos que dela se apropriam. Transformam-se em dispositivos

de construção de subjetividades, minando a clássica oposição entre sujeito e

objeto." (p. 339). Assim os objetos acabam por conter, eles próprios, uma

biografia, carregam em si a história de sua relação com as pessoas pelas quais

eles foram tocados ou às quais eles pertenceram. É o que nos conta Reinaldo

Marques sobre o Diário Alemão, uma série de cahiers que pertenceu a

Guimarães Rosa, com anotações diversas escritas enquanto trabalhou como

cônsul adjunto na Alemanha. Cópias desse material foram parar nos fundos

documentais de Henriqueta Lisboa – sob tutela do Acervo de Escritores

Mineiros da UFMG – entrecruzando assim as biografias dos dois autores e

também a autobiografia material desses objetos.

Não se pode ignorar, contudo, que antes de se alocarem em acervos, museus,

casas de colecionadores e afins, esses objetos já faziam parte de um arquivo:

o arquivo que o escritor faz de si. Seus guardados, sua inscrição, seus objetos,

seu arquivar da própria vida, usando o termo de Philippe Artières (1998). Este

nos ensina, aliás, que: “arquivar a própria vida não é privilégio de homens

ilustres (de escritores ou de governantes). Todo indivíduo, em algum momento

Page 25: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

25

da sua existência, por uma razão qualquer, se entrega a esse exercício.” (p.

31). O autor nos prova que a prática arquivística não é exclusividade ou

excentricidade dos escritores, mas algo cuja prática civil e social nos impõe, já

que somente existimos se inscritos em registros diversos que devem ser

mantidos guardados. Nas palavras do teórico:

O indivíduo deve manter seus arquivos pessoais para ver sua identidade reconhecida. Devemos controlar nossas vidas. Nada pode ser deixado ao acaso; devemos manter arquivos para recordar e tirar lições do passado, para preparar para o futuro, mas sobretudo para existir no cotidiano (ARTIÈRES, 1998, p. 14).

A existência condicionada à prática de arquivamento é exemplificada por

Artières com o álbum de fotografias. Portador da memória da família, o álbum é

construído como uma narrativa da linhagem dos antepassados. Os melhores

momentos, as maiores conquistas ficam ali registradas como provas

indubitáveis da boa reputação familiar, a ser preservada para a posteridade.

Se o arquivamento de si, como vimos, não é exclusividade dos escritores, a

diferença, talvez, resida no fato de que os arquivos de escritores não são

meros locais de guarda, mas “usinas de produção de representações do

escritor” (MARQUES, 2012, p.63), mesmo que ainda não estejam recebendo

devidos cuidados e valorização, conforme denuncia Reinaldo Marques,

estudioso dos arquivos literários e um dos curadores responsáveis pelo Acervo

de Escritores Mineiro. Por outro lado, ainda nesse estudo, Marques (2012)

aponta o crescente empenho em mudar esse quadro, principalmente por parte

de universidades e fundações, que, por sua vez, fomentam interesse nas

pesquisas em acervos de escritores e fontes primárias da literatura.

Em outro trabalho, O arquivamento do escritor (2003), ao tratar da sua

experiência com o Acervo de Escritores Mineiro da UFMG, Marques destaca

uma dupla operação de arquivamento presente nos arquivos de escritores: “o

escritor executa uma série de práticas arquivísticas, constituindo arquivos

literários, e, ao mesmo tempo, se arquiva” (p.142). Marques se refere aos

guardados dos escritores, sua biblioteca, seus recortes de jornais e revistas,

seus discos, suas correspondências. Ao criar um importante espólio literário o

escritor fala de si, de suas escolhas, suas preferências, seu cânone. Através de

Page 26: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

26

seu arquivo pessoal ele elabora a sua imagem e “preserva a memória de sua

formação e relações afetivas e intelectuais” (MARQUES, 2003, p.142).

Em seu texto Acervos literários e imaginação histórica: o trânsito entre os

saberes (2000), ainda discutindo a questão dos acervos literários, Marques

afirma que o arquivo não é uma realidade pronta e acabada, mas, ao contrário,

“é construído e desconstruído pelo olhar do sujeito, que, ao cumprir nele um

itinerário, deixa suas pegadas, seus vestígios, instituindo um certo roteiro de

viagem” (p.34). Daí a importância de trilhar esses caminhos do arquivo, não

para buscar estabelecer uma ordem, tarefa esta que seria pouco proveitosa,

mas apontar outros caminhos de leitura.

Revisadas as literaturas da crítica genética e dos arquivos de escritores,

delineados nossos objetivos e nossa abordagem, acumulamos arcabouço

teórico para que possamos, enfim, proceder à prática. Vamos nos dedicar, a

partir de agora, à tarefa de abrir as gavetas, percorrer e explorar os arquivos da

poeta carioca Ana Cristina César.

1.2 As gavetas-surpresa de Ana C.

Quando você morrer os caderninhos vão todos

para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias.7

O interesse em manter acervos de escritores aponta para o desejo do

leitor/pesquisador em conhecer os bastidores do processo de criação literária.

Algumas casas de guarda, todavia, não comportam o tratamento museográfico.

Na falta da montagem dos laboratórios dos escritores, a aura visada pelos

pesquisadores fica por conta do desvelamento dos manuscritos.

É o caso do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. A casa da Gávea

construída na década de 1950 abriga, entre outros, o acervo da poeta carioca

Ana Cristina César. Ainda que o acervo de Ana C. não esteja montado

cenograficamente, em suas caixas já totalmente catalogadas e em processo de

digitalização, ele acolhe uma poeta colecionadora de palavras e de relíquias,

bilhetes de trem, guardanapos, postais. Além máquina de escrever, antes um

instrumento de trabalho, agora, dotado de valor simbólico e carregado de

memória, esse objeto corporifica a poeta em meio a seus papéis. É também

7 Ana Cristina César trecho de Luvas de Pelica (In: Poética, 2013, p.55)

Page 27: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

27

testemunho dos bastidores de criação e é feito ateliê ou escritório da autora,

com seus papéis manuscritos de poesias. Ali repousam cerca de mil itens entre

sua biblioteca e os papéis das suas "gavetas-surpresa".

O conjunto foi doado pela família, depois de anos encaixotados sob a guarda

de seus pais, Waldo Aranha Lenz Cesar e Maria Luiza Cesar, e do amigo, o

poeta Armando Freitas Filho, a quem Ana C. designou a custódia de seus

textos. Entre os materiais presentes sob a guarda do Instituto está sua

biblioteca, composta por cerca de 797 itens (incluindo livros e periódicos,

revistas de artes e teses de doutorado), 300 documentos de sua produção

intelectual, com manuscritos os mais diversos e muitos cadernos de notas, 40

itens de correspondência, 590 recortes de jornais e de revistas. Além de

matérias de revistas e trabalhos sobre Ana C., desenhos, documentos

audiovisuais e provas de impressão de livros8.

Em carta à amiga Ana Cândida, presente no livro Correspondência Incompleta

(1999), a própria Ana Cristina inventaria seu acervo. De acordo com a poeta

são: “Cartas, fotografias, postais, bilhetinhos, passagens de trem, carteirinhas

de colégio, desenhos... Enfim, toda essa parafernália aguda que todo mundo

deve ter” (CESAR, 1999a, p.241). A reunião de cartas publicadas, aliás, é farta

em passagens, nas quais Ana mostra sua faceta arquivística, conforme

veremos ao longo deste trabalho.

Ana Cristina mostrava em suas cartas que vivia às voltas com seu arquivo

pessoal. Com o intuito de preservar suas correspondências Ana narra à Clara

Alvim a intenção de arquivamento das cartas que recebe: “Enquanto tudo

acontecia chegavam cartas incríveis de Candide e Cecil (já ouviste dela? Está

ÓTIMA!), vão chegando, planejo um baú (ou um arquivo, pra ser moderna) com

bolinhos de envelopes amarrados com fitas azuis e vermelhas” (CÉSAR,

1999a, p.16). A mesma intenção é narrada a Ana Cândida:

Tenho dúvidas de como organizar a correspondência (tenho gavetas, e agora gavetões), que não consigo jogar fora. É que eu acho muito mais interessante guardar dentro do envelope com uma (inexistente mas planejada) fitinha em volta, e depois

8 De acordo com informações contidas na página do espólio de Ana C. No site do Instituto Moreira

Salles.

Page 28: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

28

botar tudo num bauzinho (CESAR, 1999a, p. 226).

No pedido de ajuda para organizar seu arquivo de cartas, missivista que era,

acaba por revelar o lugar onde mantém a correspondência, mesmo sendo esta

uma escrita perdida por natureza, nos lembra Artières (1998). Ana C. mostra

também o quanto as cartas lhe são caras pretendendo guardá-las presas a

fitinhas em um baú. Mais que “mero” arquivo, forma-se a imagem de um

verdadeiro tesouro.

A passionalidade do intento, que beira o romanesco, aparece também na

organização da estante de livros descrita para Ana Cândida Perez: “Arrumei a

estante, reclassifiquei todos os livros (os mais úteis e/ou mais amados mais à

mão, os outros bem embaixo, quase perto do lixo)” (CÉSAR, 1999a, p.226). Na

mesma carta ela confessa, sem saber como resolver o problema, o acúmulo de

papéis e livros e a impossibilidade em se desapegar de seu arquivo.

Ana C. guardava muitos papéis, cumprindo a postulação de Philippe Artières

quanto à prática dos arquivos pessoais como gesto de normalidade. Isso

porque, para o historiador:

O anormal é o sem-papéis. O indivíduo perigoso é o homem que escapa ao controle gráfico. Arquivamos portanto nossas vidas, primeiro, em resposta ao mandamento "arquivarás tua vida" – e O farás por meio de práticas múltiplas: manterás cuidadosamente e cotidianamente o teu diário, onde toda noite examinarás o teu dia; conservarás preciosamente alguns papéis colocando-os de lado numa pasta, numa gaveta, num cofre: esses papéis são a tua identidade; enfim, redigirás a tua autobiografia, passarás a tua vida a limpo, dirás a verdade (ARTIÈRES, 1998, p. 11).

A poeta, todavia, não cumpre com a última etapa da proposta de Artières, não

escreveu sua autobiografia, não passou a vida a limpo, conforme recomenda o

autor. Também não conta ainda com uma biografia, já que Ítalo Moriconi

considera Ana Cristina César – O sangue de uma poeta (1996) um ensaio

biográfico para dar subsídio para alguém que decida escrevê-la, diz:

[...] o texto foi pensado como uma espécie de pórtico para uma possível biografia. Ao percorrer essas páginas, sinta-se o leitor como se estivesse diante do relato do início do processo de preparação de uma biografia. Ensaio de ascese. Montagem de andaimes. Sinta-se como se abrisse a primeira gaveta. E dela recuperasse os primeiros manuscritos. Garatujados, riscados, alguns amassados. [...] Meu propósito aqui foi deixar pegadas

Page 29: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

29

e senhas (p.20).

Eis que a imagem das gavetas retorna. Moriconi envolve-nos com essa

metáfora que sugere a deflagração dos segredos, mas não se cumpre. Só o

que cumpre é a promessa de apontar caminhos e deixar mais lacunas. O autor

mostra-se ciente das possibilidades ainda não esgotadas de caminhos pelo

acervo de Ana C., justificado pela grande quantidade de escritos deixados por

ela somados à morte prematura. É ele quem diz: “Gaveta de poeta forte morta

precoce é fogo. Sai papel feito coelho de cartola de mágico.” (MORICONI,

1996, p.10). Das gavetas-surpresas à magia de uma miríade de papéis,

bilhetes, cartas, postais; caminhos a serem percorridos.

O ensaio de Moriconi esboça um perfil de Ana Cristina a partir das memórias

que restaram da convivência com a poeta – em meados de 76, nos diz o autor

– e das memórias de outros amigos e familiares de Ana com quem conversou à

cata de informações. Ao longo de todo depoimento, Moriconi visa à

interlocução com “A futura biógrafa de Ana Cristina, provavelmente alguém

tornando-se adulta nesses anos 90 ou mesmo depois, na próxima década [...]”

(1996, p.31), numa espécie de jogo provocativo, no qual o autor dá pistas, na

mesma medida em que insinua ainda haver segredos. Conta, inclusive, com

um capítulo inteiramente dedicado às “Anotações para uma futura biografia”, no

qual o autor sugere algumas entradas, exibindo informações conquistadas ao

longo de seu trabalho na busca de fontes para a escrita do livro. Uma das

preciosas pistas deixadas para a biografia por vir é a lista que relaciona os

Augustos de Ana C. presentes em um poema9: “E assim você, futura biógrafa,

com este livro ganhou também a lista dos quatro Augustos mencionados no

poema famoso de Cenas de Abril” (MORICONI, 1996, p.86).

Na ausência de uma biografia ou autobiografia, o arquivo de Ana Cristina

constitui, de acordo com Miguel Sanches Neto sua autobiografia material, ao

constatar que:

Toda essa variedade de material da escrita, que vai dos arquivos do computador, passando pelos cadernos, pelos livros, lidos e anotados, para chegar aos papéis mais

9 Poema “nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares” (CESAR, 2013, p.23)

Page 30: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

30

heterodoxos, aos instrumentos-fetiche, compõem o que poderíamos chamar de autobiografia material do escritor, ou de autobiografia da escrita (2011, p.74).

A particularidade desse gênero autobiográfico, se assim podemos considerar,

está no seu caos inerente, seu caráter múltiplo e não linear. Por essas

características Sanches Neto afirma a necessidade do trabalho da terceira

pessoa do arquivo, o leitor-pesquisador capaz de percorrê-lo e (d)escrevê-lo,

seguindo as inscrições deixadas pelo escritor:

O arquivo literário, nessa perspectiva benjaminiana, ao mesmo tempo que promove a guarda dos haveres da escrita da modernidade, mantém latente o ambiente de criação para que o leitor-pesquisador, ao penetrar nesse território, em contato psicológico intenso com a força dessa coleção, possa, num jogo de alteridade, reordenar sendas a partir do caos criativo (SANCHES NETO, 2011, p. 74).

A perspectiva benjaminiana sobre a qual o autor fala remete à infância do

filósofo alemão Walter Benjamin, cujos ensinamentos apontam para a

desarrumação própria das coleções infantis. Não são poucos os textos em que

Benjamin mostra sua faceta de colecionador. Em Infância em Berlim por volta

de 1900 (2000) o autor descreve, por exemplo, o zelo com que guardava nas

gavetas da escrivaninha um álbum de selos e um conjunto de cartões-postais.

No trecho da obra citado por Sanches Neto, Armários, Benjamin trata da

desordem própria da coleção dos “haveres da infância” (p.124).

Miguel Sanches Neto nos lembra ainda que o colecionador Benjamin, já na

vida adulta, mantivera a perspectiva do caos no ambiente de arquivo.

Desempacotando minha biblioteca, texto de Imagens do pensamento (2000)

deixa claro esse olhar, objetivando adiar para seus livros o destino da estante

com o “suave tédio da ordem” (p.227). Para Benjamin a posse é “uma

desordem na qual o hábito se acomodou de tal modo que ela só pode aparecer

como se fosse ordem” (2000, p. 228). Ana Cristina Cesar, confessando o

prazer pelas classificações e organizações não desmente em nada o que

coloca Benjamin a respeito do verdadeiro colecionador. Isso porque, Ana, ao

expor seus livros ordenando-os, ela projeta neles um sentido de lar e de

companhia:

A estante está bonitinha, penso com amores fetichistas. Olho toda hora, parece que me fazem companhia. Preciso mudar de

Page 31: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

31

casa. (Sou eu que não estou mais cabendo nesta casa – 10 anos here.) (CÉSAR, 1999a, p. 226).

Ana cerca-se de sua biblioteca e usa o volume de livros para justificar, de

alguma maneira, o desejo de sair da casa dos pais. Num sentido semelhante,

Benjamin, ao desempacotar a sua biblioteca, tira os livros das caixas e ordena-

os na estante – ainda que negue qualquer que seja o método que usa, para

dispor os livros na estante, configura uma ordem. Nesse exercício, ele edifica

uma das moradas do colecionador, “que tem livros como tijolos” (BENJAMIN,

2000, p. 235). Ana C e Walter Benjamin tornam-se ali residentes em suas

coleções.

1.3 Cartas Marcadas: a correspondência de Ana C.

Quando entre nós só havia uma carta certa

a correspondência completa

o trem os trilhos a janela aberta

uma certa paisagem sem pedras ou

sobressaltos meu salto alto em equilíbrio

o copo d'água a espera do café10

“Depois vocês me escrevam cartas. Eu quero receber cartas. Vocês me

escrevam cartas do que vocês acharam, assim: "Prezada autora". Ah, eu quero

receber cartas" (CESAR, 1999b, p. 273). Assim despede-se Ana Cristina dos

alunos da PUC, onde estivera como convidada, para dar o que seria sua última

entrevista. Do mesmo modo, é com esse pedido que termina muitas de suas

cartas às suas amigas: "Escreve sem comercial!" (CESAR, 1999a, p.48), ou

"Me escreve comprido" (CESAR, 1999a, p.73), faz perguntas, encomenda

livros, tudo para não deixar perder o fio da correspondência, o qual deve ser

cultivado. O gosto manifestado pela correspondência não se restringia ao

desejo de receber cartas, escritora assídua, Ana C. mostrou-se também uma

exímia missivista.

10 Poema do livro A teus pés. In: Poética (CESAR, 2013, p.104)

Page 32: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

32

É o que revela Correspondência Incompleta (1999), conjunto organizado por

Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda, o qual compila 93 cartas

escritas pela poeta, entre 1976 e 1980, para quatro amigas Clara Alvim, Cecília

Londres, Ana Candida Perez e a própria Heloisa Buarque de Hollanda. Ao

justificar a ideia de trazer a público esse material, Armando Freitas Filho fala de

uma certeza: “a de que seria interessante mostrar em estado original umas das

principais matrizes de sua criação literária, além de revelar, pura e

simplesmente, a exímia missivista” (CESAR, 1999a, p.9). Todavia, e isto não

deve sair do nosso olhar, é preciso destacar que não se trata, neste momento,

de trabalho com fontes primárias, as quais visam ao texto em seu veículo

original.

Organizadas, além de estarem em novo veículo – a saber: o livro, – as cartas

que saíram das gavetas de Ana Cristina passaram por processo de omissão de

informações, conforme registram os organizadores:

O critério usado para a fixação dos textos foi o bom senso. Foram cortados apenas os trechos que, segundo o ponto de vista das destinatárias e o nosso, pudessem causar constrangimento para as pessoas citadas e respectivas famílias. [...] Sempre que necessário atualizamos a ortografia e introduzimos pontuação, uma vez que as cartas foram escritas ao correr da pena (CESAR, 1999a, p.11).

A nota dos organizadores é clara em “confessar” as interferências e

supressões dos mesmos, ao fazer isso os organizadores afastam a publicação

da noção de fontes primárias, as quais prezam pela fonte originária de

informação.

Todavia, tomaremos as cartas por outro aspecto proeminente: “sua face

desconcertante”, conforme trata Matildes Demétrio dos Santos em Ao sol carta

é farol (1998). Para a autora, essa face é mostrada pela profusão de

revelações, em especial as de cunho teórico, que são expostas aos leitores

quando deflagradas as correspondências de escritores. A correspondência de

escritores, portanto, integra o conjunto de escritos que chamaremos de obra,

pois Ana Cristina manifesta ali a sua prática como escritora, estabelecendo

chaves de leituras de seus textos, conforme veremos adiante, além de discutir

o fazer literário com as correspondentes.

Page 33: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

33

Santos é minuciosa em seu estudo sobre a carta que, enquanto gênero

literário, “constitui uma forma historicamente reconhecida de comunicação, com

regras e exigências capazes de distingui-la de outros gêneros” (SANTOS,

1998, p.27). A autora traça um apanhado histórico desde o primeiro manual

epistolográfico do mundo ocidental de Demétrius, passando pelas epístolas

bíblicas, pelas cartas familiares e amorosas até a presença da carta na ficção.

Apesar de reconhecer a importância desse apanhado histórico, devido às

especificidades do nosso trabalho, tomaremos de empréstimo de Santos

apenas o que tange à correspondência de escritores.

Certos de que se trata de um espaço de revelar-se e construir-se, trataremos

das cartas pessoais como integrantes também do gênero autobiográfico.

Consoante com o que trata Michel Foucault sobre a correspondência, ou

“narrativa epistolar de si próprio”, em O que é um autor (1992):

Escrever é pois “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. E deve-se entender por tal que a carta é simultaneamente um olhar que se volve para o destinatário (por meio da missiva que recebe, ele sente-se olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz (p.150).

O autor de uma carta se permite mostrar-se ao escrever sobre si a um outro,

elaborando uma espécie de “jornal de uma vida”11, ou melhor, jornal da própria

vida entregue ao olhar do outro. Dessa maneira, as cartas de Ana C.

aproximam-se também de um diário íntimo, porém com destinatário. A própria

poeta mostra, ao refletir sobre o tema em carta à Maria Cecília Alvim, ter

ciência da confusão entre os gêneros, mostrando dificuldades em dissociá-los:

Preciso acabar com essa mania de transformar carta em diário íntimo, pesado, minucioso [...]. Ai como sou minuciosa. Mas pra que acabar com manias? Não estou mesmo muito boa: estou agora pondo em questão o meu texto (CESAR, 1999a, p.117).

De fato a longa carta que termina com essa reflexão contém ainda outras

tantas: sobre sua situação profissional entre ser professora, jornalista,

tradutora; sobre sua formação intelectual, examinando suas leituras e

defasagens teóricas; por fim longa reflexão de cunho filosófico-existencial

11 Conforme cita Matildes Demétrio dos Santos (1998, p.22).

Page 34: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

34

sobre a neurose e a solidão. Ana Cristina passa páginas escrevendo,

pensando, exercitando essa escrita bastante íntima e, de repente, como quem

se lembra de ter um interlocutor interrompe os pensamentos:

Cecília! Porra! Me sinto falando sozinha, que venha esse telefonema louco! [...] Cecília? Cecília? Já estou ficando meio tonta de falar assim sozinha, sem interlocutor, mas completamente com interlocutor (CESAR, 1999a, p.116).

Sentindo-se sozinha, escreve a carta, gênero que presume tanto a solidão do

ato de escrita, quando, por outro lado, a necessidade de um leitor

correspondente, aquele que vai ser interlocutor do ato solitário.

Grande parte das cartas, publicadas em Correspondência Incompleta (1999),

foram enviadas durante o segundo intercâmbio realizado por Ana Cristina para

a Inglaterra, entre 1979 e 1981. Estando longe do contato diário com as

amigas, Ana descreve seus dias, suas atividades, seu humor e muitas vezes as

roupas que estava vestindo. Não se trata somente de relatar às amigas os

grandes acontecimentos da vida no exterior, mas minúcias do cotidiano, como

em “Fiz uma alta sopa de legumes e botei ordem na casa” (CESAR, 1999a,

p.49). O leitor que “viola” essa correspondência tem a impressão de que ela

passa seu dia a limpo, refletindo sobre seus sentimentos com relação aos

acontecimentos, como se faz em diários íntimos, e não apenas empreende

descrições para deixar a correspondente a par dos fatos. Segundo Foucault, a

atitude de “passar em revista seu dia”12, relatando fatos corriqueiros do

cotidiano faz parte da prática epistolar:

não por causa da importância dos acontecimentos que teriam podido marcá-lo, mas justamente na medida em que ele nada tem para deixar de ser igual a todos os outros, atestando assim, não a relevância de uma actividade, mas a qualidade de um modo de ser (1992, p.155)

Ana Cristina revisita seu dia e mostra – a si mesma e às amigas – um relato da

banalidade do cotidiano, tendo naquele momento a chance de fazer um exame

de consciência sobre todo o ocorrido, como em: “No momento estou me

zangando à toa com Christopher (à toa mas tenho razão. Reconhecemos: é

para disfarçar que vou embora)” (CESAR, 1999a, p.72). Ou em assunto ainda

mais banal: “Perdi minhas lentes, merda. Estupidamente, entre cervejas. Virei

12 Foucault (1992, p.156) em referência a Sêneca, Cartas a Lucílio, 83

Page 35: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

35

menina de óculos, minha vista arde, saco cheio” (CESAR, 1999a, p.233). A

impressão do leitor violador dessas correspondências, muitas vezes, é de que

essas confissões parecem escritas muito mais para si mesma, como forma de

organização do pensamento, e menos para comunicar de fato à

correspondente.

A atividade de tratar do seu cotidiano, em cartas às amigas distantes, revela

um segundo aspecto, ainda de acordo com Foucault. Trata-se da capacidade

que a carta possui de tornar o remetente presente ao destinatário. A própria

Ana C. inicia muitas cartas comentando esse poder corporificador que a carta

tem, conforme se pode ver nos trechos abaixo:

Tua carta me consola, me aquece, sinto uma paz e não quero dizer nada, quero ficar quieta com esse calor e mais nada. Te sinto perto e terna (CESAR, 1999a, p.281).

Morri de emoção com a tua carta, que meti no bolso e carreguei comigo pra Londres. Entrei no trem e éramos todos estrangeiros em volta da mesinha tomando o chá com leite (CESAR, 1999a, p.31).

Os trechos estão presentes em cartas à Ana Candida e Heloisa Buarque,

respectivamente. Em ambos é possível visualizar a materialidade pessoal que

a carta carrega consigo. É assim que Ana C. metaforiza a presença de Heloísa

em Londres, colocando a carta da amiga no bolso e, da mesma maneira, Ana

Cândida é percebida como se estivesse por perto com a chegada da

correspondência em momento de solidão.

Diante da distância física entre os correspondentes, a carta apresenta esta

outra característica, definida por Matildes Demétrio dos Santos (1998) como

um meio de “superar a distância e manter vivo o elo de intimidade com o

ausente” (p.24). Relatar informações sobre o dia a dia, narrar acontecimentos

grandiosos ou vulgares, emitir e receber conselhos, tudo isso através da

missiva faz com que esta aproxime-os, tornando-os “presentes de uma espécie

de presença imediata e quase física” (FOUCAULT, 1992, p.150).

Apesar dessa aproximação possível da carta com o diário íntimo, é preciso

levar em conta outro aspecto sobre o qual nos alerta Silviano Santiago ao

teorizar sobre o gênero epistolar em Suas cartas, nossas cartas (2006): "A

Page 36: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

36

carta tem algo do diário íntimo e tem algo da prosa de ficção" (p.76).

Observaremos, portanto, a ficcionalização como desdobramento do real na

escrita de Ana C., para quem as emoções não são passíveis de serem

narradas, mas sim transformadas em literatura, destacando a diferença entre

escrever com autenticidade e escrever com veracidade: "Se você conseguir

contar tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já

mudou" (CESAR, 1999b, p. 262).

Portanto, além do viés autobiográfico, a carta em Ana Cristina deve ser lida

também como parte de sua obra literária, na qual sujeito lírico e sujeito real se

(con)fundem. Isto porque em várias cartas ela cita - conflitante - a

impossibilidade de sua escrita se dissociar da literatura, por exemplo:

Queria escrever mais puramente. Minhas costelas doem. Reparo na longa demora e na literatura. Reli hoje os cartões-postais que mandava da Europa, todos literatura. "Reparo". "Percebo". "Constato". Ainda formas de distanciamento (CESAR, 1999a, p. 217).

Na escrita dela ficção e autobiografia compõem um mesmo arranjo, numa

indissociável criação. A incapacidade de se eximir da literatura torna possível

encarar suas cartas como exercícios literários, ou, nas palavras de Ítalo

Moriconi: “Toda carta de Ana é um objeto belo de linguagem” (1996, p.89).

Sendo um objeto de linguagem, logo, a carta é um espaço de elaboração, aliás,

mais especificamente de elaboração de si. É de se esperar que apareça mais

de uma Ana C., melhor dizendo, ao elaborar-se para o outro, Ana coloca-se da

maneira como quer ser vista por cada corresponde. Essa consciência do outro

é notada nas cartas pertencentes ao livro, pela diferença no tom e no estilo,

tanto entre os assuntos com cada correspondente, ou mesmo quanto ao tratar

de um mesmo assunto entre elas. O que não é de se espantar, haja vista que a

carta é uma construção para o outro, o destinatário nunca é tirado de mente.

Este pacto é descrito por Santiago como: "O desejo de traduzir um tête-à-tête

sombrio e límpido em que o espelho tanto é a caligrafia [...] na folha de papel

em branco quanto é o correspondente" (2006, p.64).

Se a relação da autora com a carta depende da correspondente em questão,

então, é preciso pensar a relação mantida entre autora e correspondentes fora

Page 37: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

37

do universo epistolar. Ao final da edição de Correspondência Incompleta

(1999), na seção “Sobre a correspondência”, o leitor tem acesso a depoimentos

de cada uma das amigas a quem as cartas são endereçadas. Nos depoimentos

elas falam como se conheceram e da relação que viveram com Ana Cristina.

Clara Alvim foi professora dela na PUC e a convivência extrapolou os limites da

Universidade, Ana frequentava sua casa e convivia com seus filhos. Clara

define que "a relação continha sensíveis projeções de mãe e filha" (CESAR,

1999a, p. 298), justificada pelos conselhos dispensados à jovem poeta com

insistência e até mesmo irritação, causando algumas discussões entre as duas.

Heloisa Buarque de Hollanda, que primeiro conheceu a poesia de Ana C.

através de Clara Alvim, e depois, conforme descreve:

Nossa relação, desde os tempos da [rua] Faro, tomou um atalho nesse labirinto. [...] Fui orientadora de sua tese de mestrado, Literatura não é documento, "arquiteta de interiores" de seu apartamento na Gávea (ou casinha como ela preferia), leitora de plantão, capista de vários livros seus, supervisora editorial de outros, ouvinte impassível de complicadíssimos namoros e aparentemente dramáticos impasses existenciais, sua anfitriã em inúmeras estadias em Vargem Grande ou em Búzios (CESAR, 1999a, p.300)

A casa de Heloísa, na Rua Faro, era um ponto de encontro dos poetas,

estudantes, jornalistas, enfim, a turma que estava promovendo a cultura

alternativa da década de 1970. Ao começar a frequentar a casa, para tratar de

assuntos referentes à participação de Ana no livro organizado por Heloisa13,

elas iniciaram um vínculo que, por fim, transitava livremente entre a amizade

intelectual e íntima.

Cecília Londres, também professora da PUC, descreve: "Se Clara se via como

mãe na relação com Ana Cristina, eu me sentia como sua irmã mais velha"

(CESAR, 1999a, p.303), pois Ana a tinha como confidente, embora às vezes se

frustrasse – e se irritasse – com a espera de conselhos que não vinham como

ela queria. Segundo Cecília, elas ficaram amigas justamente diante das

diferenças entre elas, mas, pouco depois, a professora se mudou com o marido

para Londres e a amizade se consolidou através da correspondência.

13 26 poetas hoje (2007) foi organizado por Heloisa Buarque de Hollanda para reunir e publicar os

poemas dos poetas dessa geração de muito bloqueio por parte do circuito editorial.

Page 38: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

38

A quarta correspondente é Ana Candida, colega do curso de letras da PUC,

descreve Ana e a relação com a turma da seguinte maneira:

Fui uma espécie de mediadora da sua integração na turma, porque alguns colegas receavam o que parecia ser uma atitude de superioridade dela, mas que eu percebi ser autodefesa. Ana Cristina tinha a fragilidade da “menina prodígio” (CESAR, 1999a, p.305).

A predileção pela literatura foi um dos gatilhos para a amizade e tema

constante na correspondência, definida por ela como uma experiência com a

escritura.

Atenta aos melindres da escrita, Ana Cristina mostra ter consciência do outro

para quem escreve. Em depoimento para os alunos da PUC, realizado em

1983, a autora trata, entre outros assuntos, da escrita de cartas:

Fundamentalmente, carta você escreve para mobilizar alguém, especialmente se a gente entra no terreno da paixão, onde a correspondência fica mais quente. Você quer mobilizar alguém, você quer que, através do seu texto, um determinado interlocutor fique mobilizado. Então é muito dirigido. [...] É alguém que importa numa carta, mesmo que você esteja falando de coisas tuas (CESAR, 1999b, p. 257).

E nós, no estatuto de leitores, temos também consciência dos desdobramentos

de Ana em sua literatura – incluindo as cartas, já que diz não saber abdicar-se

da literatura na correspondência. Ao observar cartas da mesma época, para

diferentes interlocutoras, temos ainda mais clareza desse cuidado com a

enunciação que faz de si. Seguem dois trechos de cartas:

Trecho I - 28/07/1977:

Tenho visto Locomotivas e eis o meu nível afetivo. Me comovo com Celeste (i.e. me identifico). Henry Miller é incrível. (relendo notei que taquei o Miller depois da Rede Globo. Pra não dar tão má impressão assim...) (CESAR, 1999a, p. 154).

Trecho II - 31/07/1977:

Nestas férias li Miller e vi Locomotivas. Certo dia meu nível afetivo era exatamente Miller com Locomotivas. Li a Amiga aqui no sítio. Já sei quem vai casar com quem. É émmerdant. Mas não me furto ao prazer insano da transa entre Ilka Soares (mulher mais velha que esconde sua paixão, mas não está se agüentando) e Denis Carvalho (o garotão dominado pela mãe que destrói todos os seus namoros; Ilka Soares é a confidente!) O resto da novela são fofocas de cabeleireiro (CESAR, 1999a, p. 263).

Page 39: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

39

As cartas foram endereçadas a Cecília e Ana Candida, respectivamente.

Ambas as cartas, que datam apenas três dias de distância, tratam dos

assuntos da semana: a ressaca moral do "porre" que tomou com Cacaso, a

volta de Montenegro ao Rio de Janeiro, agitando o meio intelectual com uma

nova proposta de revista a ser lançada e, o que destaco nos trechos acima, o

que a poeta anda lendo e assistindo na televisão.

Ao observar o trecho extraído da carta enviada à professora Cecília Londres

não é difícil notar o modo sucinto como fala da novela e logo na sequência

assume falar de sua leitura para encobrir o que poderia causar má impressão

sobre a poeta. Na carta seguinte, à colega Ana Candida, ela não apenas fala

da telenovela longamente, como também "confessa" leitura da revista de fofoca

Amiga que traz o "resumo da semana". A leitura de Tropic of Cancer, de Miller

aparece primeiro, mas todo o destaque vai para a telenovela. Apesar de se

demorar mais na novela, vale observar, que Ana procura mostrar desdém

diante da atividade pouco valorizada no meio acadêmico: “É émmerdant. Mas

não me furto ao prazer[...]”. Como quem confessa fazer algo pouco importante,

mas respalda-se, mostrando a banalidade de tal atividade, escapando de

competir em nível de intelectualidade da colega com quem geralmente discute

e traduz poesia.

Quando Ana Cristina chega em Colchester, em 1979, ela escreve à Heloisa e

Cecília, para responder cartas de "boas vindas" que recebeu delas e contar da

chegada. Em carta à primeira, a poeta fala da cidade, do curso, da rua onde

está morando. Em outra carta, também à Heloisa, ela conta da mudança de

curso, passa o telefone do quarto onde mora, coloca um desenho (um croqui)

do quarto e diz: "A vida é um sossego. Cozinho e faço shopping o tempo todo"

(CESAR, 1999a, p. 37).

Já na carta à segunda correspondente, uma Ana Cristina mais doce, mais

esperançosa com a chegada em Colchester, feliz com a "casinha" nova,

escreve:

Hoje foi dia de montar a casinha [...]: um bom quarto num casarão antigo de 3 andares. Banheiro completo (com chuveiro) ao lado, geladeira bem em frente, no corredor. No quarto tem cama, escrivaninha, mesa, armário, fogão (duas bocas, forno & grill), banca com armário embaixo, pia com água quente e fria, lareira a gás, poltrona. É atapetado e

Page 40: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

40

horrivelmente rosa choque. Vou decorar aos poucos (CESAR, 1999a, p. 167).

Deixando claros os papéis de uma e outra em seu convívio: com Heloisa divide

questões íntimas e questões intelectuais; com Cecília volta a figura da irmã a

quem precisa mostrar-se feliz em seu novo projeto de vida. Ademais, esta era a

“amiga normal”, conforme narra Cecília sobre uma fala de Ana C. para a

própria avó, desejando ter também marido, filhos e casinha bem estabelecidos.

Era preciso que Ana mostrasse à amiga/irmã mais velha – e à si mesma,

naturalmente – que também podia viver nesses parâmetros.

Se as temáticas diferenciam-se em um aspecto, as cartas consoam: o

tratamento carinhoso com que Ana costuma começar as cartas. Matildes

Demétrio dos Santos, caracteriza os missivistas pela maneira como evocam

seus destinatários na correspondência. Ela mostra que:

Um código de endereçamento expressivo e personalíssimo determina a forma de transmissão da mensagem. Mário de Andrade, ao tratar com amigos do coração, tinha por hábito brincar carinhosamente com o nome de cada um deles. Manuel Bandeira atendia pelos cognomes: “Manuelucho”, “Manuel dear”, “Manú”, “Meu poeta querido” (1998, p.25).

Também Ana Cristina possuía o hábito de Mário de Andrade, descrito pela

pesquisadora. Cecília atendia por Cecil, Heloisa Buarque por Helô e Ana

Candida por Candide. Clara não ganhou cognome, mas era sempre chamada

“minha muito querida”, como também era chamada Cecília. Helô vinha quase

sempre acompanhado de “love”, “amor”, “paixão”, “dearest of my life”. O

vocativo para Candide, que nas primeiras cartas era chamada friamente de

“Ana”, aparece nas últimas missivas acompanhado por carinhos ingleses,

consonantes com a temática que mais as aproximava: “Candide, Darling”,

“Dear”, “Dearest”.

O fato de que algumas dessas correspondentes foram também professoras de

Ana Cristina, chama atenção por outro detalhe. De acordo com Silviano

Santigo “no universo da literatura, a carta existe para que o discípulo se dirija

ao mestre. O discípulo precisa ser reconhecido enquanto tal” (2006, p.65).

Clara Alvim, Maria Cecília Fonseca e Heloisa Buarque de Hollanda foram

professoras de Ana na PUC, dessa forma, retomando os pedidos de crítica de

seus poemas e a constante troca de material para pesquisa como livros,

Page 41: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

41

revistas e mesmo contatos com pessoa do meio cultural da época, evidencia-

se o olhar da discípula Ana C. em busca de respaldo naquelas que foram suas

mestras. Há momentos em que esse direcionamento fica bastante nítido, como

na carta que abre o compilado. Ana Cristina se mostra hesitante diante do

papel em branco a ser remetido à professora Clara Alvim e justifica-se:

Já tentei começar carta pra você algumas vezes – no imaginário, na máquina e na presença iluminada da Helô. Fico vacilante e boba todas as vezes: ora muda, ora prolixa. Acho sempre que tenho que produzir something witty and brilliant, no teu tom "certo" – mas pra escrever carta preciso renunciar pelo menos pela metade à literatura [ou à pose ou ao fetiche – sem querer ainda identifico os três e, é claro, não consigo mais "fazer literatura"], o que é particularmente difícil na tua frente (CESAR, 1999a, p. 15).

Heloísa Buarque, por quem nutria amizade evidenciada pelo apelido carinhoso

“Helô”, aparece como uma “presença iluminada” e Clara Alvim, para quem a

carta e endereçada, é lembrada pelo “tom “certo”” o qual, de alguma maneira,

distancia a aluna, dificultando o início da correspondência.

Santiago expõe em seu artigo – que é antes uma introdução à publicação da

correspondência de Carlos Drummond de Andrade a Mário de Andrade –

algumas razões que justifiquem a violação da correspondência de escritores.

Entre os motivos elencados pelo autor está a possibilidade de estabelecer

novas leituras, ou seja, a chance de que as cartas estejam imbricadas com

chaves que abram novas interpretações. Sua leitura, então,

Visa a enriquecer, pelo estabelecimento de jogos intertextuais, a compreensão da obra artística (poema, conto, romance...), ajudando a decodificar certos temas que ali estão dramatizados, ou expostos de maneira relativamente hermética [...] (SANTIAGO, 2006, p.63).

A possibilidade de ler as cartas de Ana Cristina como suporte tanto literário

quanto teórico de sua própria escrita, muito contribui para a compreensão de

sua escrita poética. Isso porque, as cartas de Ana Cristina são exercícios de

escrita, funcionando, em certa medida, como os hypomnematas de que trata

Foucault. Se estes são caderninhos nos quais se anotam “citações, fragmentos

de obras, exemplos e acções de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se

tinha lido, reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à

memória” (FOUCAULT, 1992, p.135), também as cartas se nutriam de escritos

Page 42: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

42

semelhantes que, posteriormente, poderiam vir a desencadear um poema. De

modo geral, os escritos de Ana C. estavam alinhavados por este fio condutor

que é fazer de todo escrito matéria de poesia. Assim, as cartas, bem como

outros caderninhos e papéis avulsos, fazem parte de uma “memória material

das coisas lidas, ouvidas ou pensadas” (FOUCAULT, 1992, p.135).

Ana Cristina ao lançar-se à correspondência exerce sempre um movimento

ambivalente, primeiro por se tratar tanto de uma obra literária quanto de obra

teórica (de si, da própria produção, do fazer literário). E em segundo lugar, pelo

sentido duplo de escrita para o outro e de inscrição de si, não abandonando a

nítida orientação de ritmos, temáticas e discursos conforme o destinatário da

carta escrita. Ao sair das gavetas de Ana C. e, ao mesmo tempo, jamais

deixando de pertencer a elas – já que o próprio título de Correspondência

Incompleta (1999) indica a ausência de outras epístolas no livro organizado –

as cartas de Ana Cristina configuram material fundamental para melhor

compreensão de sua escrita e de seu perfil como intelectual e escritora.

1.4 Edições fac-similares, obra e autoria: pontuações

[...] existem apenas rascunhos. O conceito de texto

definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço.

(Borges)14

Na esteira dos estudos do livro em devir, reverbera-se outro fenômeno que não

deve ser ignorado. Trata-se do boom editorial mercadológico envolvendo

edições fac-similares e genéticas. Ambas, de acordo com Élida Lois em

Edições críticas (2011), podem ser compreendidas a partir da relação com o

manuscrito moderno, ou melhor, a partir da reação causada pelo surgimento do

manuscrito moderno no final do século XVIII:

[…] quando apareceu a noção de “manuscrito moderno”, como um novo artefato da tecnologia da palavra, foi reconhecida a existência de uma nova etapa na história das modalidades de escrita e, consequentemente, começaria a ser elaborada de forma paulatina uma nova teoria da edição (LOIS, 2011, p.79).

As edições fac-similares reproduzem, em páginas acessíveis aos leitores,

cópias digitalizadas dos originais dos manuscritos, outrora acessados apenas

por pesquisadores em acervos e casas de coleção. Já a edição genética “tem

14 In: Discussão (1986, p.72)

Page 43: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

43

como objetivo oferecer prototextos, apresentando exaustivamente, dentro de

uma ordem cronológica de seu aparecimento, os testemunhos de uma gênese”

(LOIS, 2011, p. 82), ou seja, ela não apenas apresenta a representação do

manuscrito, mas preocupa-se em trilhar o processo de escrita com estudo

geneticista.

O sucesso dessas publicações confirma o sintoma já anunciado nestas

reflexões: a existência de certo fetiche por parte dos leitores diante dos

laboratórios dos escritores e os processos de escrita. Para satisfazer o leitor

ávido de curiosidade pelos bastidores da criação, Hay (2007) confirma que:

É preciso hoje que um manuscrito seja rasurado para atingir, nas vendas, uma alta que o autor não teria sonhado enquanto vivo. É preciso que ele seja rascunho para que as grandes exposições e as grandes edições conheçam o sucesso (p.28).

Neste sentido, o caso de Ana Cristina Cesar torna-se exemplo pontual. A

edição organizada por Viviana Bosi de Antigos e soltos – poemas e prosas da

pasta rosa (2008), contempla os leitores com centenas de páginas que

reproduzem as de uma mítica pasta-arquivo da poeta. A Pasta Rosa, como

ficou conhecida, foi encontrada por Maria Luiza Cesar, mãe de Ana C., anos

depois de sua morte e foi parcialmente publicada em bela edição fac-similar

pelo Instituto Moreira Salles, organizada por Viviana Bosi. A pasta, segundo

descreve Bosi, “grande, de capa dura e de coloração rosa que ficou marrom

com o tempo” (2008, p.9), é dividida em sete subpastas com uma coletânea de

cerca de 10 anos em papéis que vão desde versões de poemas a antigas

redações escolares. Lançado em 2008, o livro está esgotado nas livrarias,

somente podendo ser adquirido em sebos, na qualidade de livro raro o que

disparou seu preço no mercado.

Seguindo a tendência editorial da “presença” de manuscritos, em edições fac-

similares, a Ateliê Editorial lançou em 2006 as 36 páginas que fariam parte do

sétimo livro das memórias de Pedro Nava, Cera das Almas (2006). O texto

inédito que ficou inacabado devido ao suicídio do autor em 1984, agora é

trazido a público em duas partes. Primeiro aparecem as páginas digitadas em

formatação típica e em seguida aparecem as cópias dos datiloscritos repletos

de comentários, acréscimos, cortes, rasuras, desenhos e explicações em

cantos de páginas. Ao relançar as obras esgotadas do autor, a editora também

acrescentou ao final algumas páginas copiadas de seu acervo, o qual encontra-

se sob guarda da Fundação Casa Rui Barbosa, doado pela viúva Antonieta

Penido Nava, no ano seguinte à morte do escritor.

Page 44: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

44

Um último exemplo, Os caminhos do sertão de João Guimarães Rosa. Trata-se

de um box limitado e numerado, lançado pela editora Saraiva em 2011. Além

de uma versão exclusiva do Grande Sertão: Veredas e um livro com

depoimentos escritos por renomados escritores brasileiros com suas leituras da

obra, o box ainda contém A boiada. O livro reúne fac-símiles impressos em

cores de folhas datiloscritas abarrotadas de anotações e rasuras dos cadernos

da viagem às imensidões do sertão por Guimarães Rosa. As veredas em devir

escritura.

Trazer a público os manuscritos do escritor, essa atitude que extrapola o

voyeurismo inicial de simplesmente remexer suas gavetas, impõe uma pauta

que não deve ser negligenciada. O que pode ser considerado como obra em

meio a todo o material? Como lidar com as cartas escritas por um escritor?

Como o organizador/pesquisador pode definir no espólio de um escritor aquilo

que pode ser publicado na sua ausência (ou à sua revelia)?

Pensar os escritos de Ana C. exige colocar em xeque esse tipo de

questionamento, tendo em vista que a maior parte do que está publicado se

deu em tempo póstumo. Inéditos e dispersos (2008) e Correspondência

Incompleta (1999) foram organizados por Armando Freitas Filho. O primeiro

organiza poemas encontrados nas caixas dos papéis de Ana C. os quais

estavam sob sua tutela – por ordem expressa da poeta, foi publicado pela

primeira vez em 1985 pela Editora Brasiliense. O segundo, em parceria com

Heloísa Buarque de Hollanda, com parte das cartas escritas por Ana Cristina e

enviadas a quatro correspondentes. Para completar a seleção: Antigos e Soltos

– Poemas e prosas da pasta rosa (2008), a bela edição fac-similar dos

manuscritos e datiloscritos da Pasta Rosa organizado por Viviana Bosi; e, mais

recentemente, Poética (2013) que além de reunir, como o próprio nome

explicita, toda a poética de Ana C. traz ainda uma seleção de inéditos

garimpados do acervo da poeta pelo pesquisador Mariano Marovatto em Visita

à oficina. Diante da presença de toda essa publicação produzida sem o

consentimento da autora, cumpre questionar: cabe ao conjunto de manuscritos

guardados pelo Instituto Moreira Sales o status de obra?

Antes de intentar uma resposta, um desvio se faz necessário já que a própria

definição de obra faz-se discutível dentro da teoria literária. É oportuno,

portanto, abrir um parêntese para dedicarmo-nos ao estudo desse conceito.

Roland Barthes, no ensaio “Da obra ao texto” integrante do livro O rumor da

língua (2004), pontua em sete proposições as diferenças entre a obra e o texto.

Page 45: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

45

Para o autor, “O Texto não deve ser entendido como um objeto computável.”,

mas a obra sim “é um fragmento de substância, ocupa alguma porção do

espaço dos livros” (BARTHES, 2004, p.67). A obra, então, é o corpo material

necessário para suportar o texto, que por sua vez não se trata de algo palpável,

mas “um campo metodológico”: a obra produz textos.

Tratar da obra de um autor, num primeiro momento, significa considerar os

livros por ele publicados. Porém, ao examinar as gavetas de um escritor, em

especial de um escritor já morto, como é o caso da nossa pesquisa,

percebemos ali uma série de materiais que em muito se assemelham às obras

publicadas em vida. Outros, todavia, parecem menos consoantes. É preciso ter

em mente que, mesmo visando como obra o material publicado pelo autor, é

possível que verifiquemos textos heterogêneos entre si, por isso a busca por

homogeneidade faz-se pouco proveitosa. Ao irromper às gavetas é preciso que

a noção de obra como homogênea seja deixada de lado, já que cada material

ali presente é passível de receber uma leitura que fará com que ele seja ou não

incorporado à obra, na medida em que ajude a compreendê-la em algum

aspecto. As cartas de um escritor, por exemplo, trabalham a favor da obra em

dois âmbitos: em seu aspecto teórico, agindo muitas vezes como a chave de

compreensão para muitos textos; e como obra literária, já que muitas vezes o

autor não consegue abdicar da escrita poética e, ao escrever cartas aos

amigos, acaba por fazer literatura.

Considerando o pensamento de Roland Barthes pode-se encarar o material

presente no acervo de Ana Cristina Cesar enquanto obra, em primeiro lugar

pela sua materialidade, pelo fato de que “se vê (nas livrarias, nos fichários, nos

programas de exame)” (BARTHES, 2004, p.67). Acrescentamos ainda entre

parênteses que essa obra pode ser vista e manipulada – no sentido de tocada

com as mãos – nas pastas onde o material ocupa fisicamente um espaço, no

Instituto Moreira Salles.

O segundo aspecto, diz respeito à filiação, pois para Barthes “A obra é tomada

num processo de filiação. Postula-se uma determinação do mundo (da raça, da

História) sobre a obra, correlação das obras entre si e uma apropriação da obra

ao seu autor” (2004, p.71). Isso significa dizer que o material presente no

espólio de Ana Cristina está ligado filialmente a ela, à sua escrita, ao seu

método. Se esse material, do qual Ana Cristina é antes a proprietária, não for

considerado como sua obra de que outra maneira ele poderia ser designado

preservando os direitos autorais de quem os escreveu? Por isso Roland

Page 46: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

46

Barthes pontua: “a ciência literária ensina então a respeitar o manuscrito e as

intenções declaradas do autor [...]” (2004, p.71), num sentido de que, se aquele

material foi escrito e mantido pela poeta em seu arquivo, é necessário que ele

seja tratado como algo construído e deixado, como uma herança, pelo autor:

uma obra.

Destituídos do caráter de obra, da relação de pertencimento entre escrito e

escritor, a inscrição do autor ficaria prejudicada, dessa forma ele seria tomado

como um “autor de papel”. Na leitura de Barthes, quando um autor escreve

como um “eu de papel” não se estabelecem relações entre sua vida e obra:

é a obra de Proust, de Genet, que permite ler a vida deles como um texto: a palavra “bio-grafia” readquire um sentido forte, etimológico; e, ao mesmo tempo, a sinceridade da enunciação, verdadeira “cruz” da moral literária, torna-se um falso problema: também o eu que escreve o texto nunca é mais do que um eu de papel (2004, p.72).

Nos escritos de Ana Cristina sua inscrição é tão marcadamente própria, o que

impede, quase sempre, a dissociação entre vida e obra. Entretanto é possível

vislumbrar também os momentos em que a poeta se metamorfoseia em uma

outra Ana, que atua como esse autor de papel de que fala Barthes, nesses

momentos vida e obra se dissociam. Ainda que seus escritos não sejam

claramente autobiográficos, há em cada um deles a marca indissociável de si,

sua inscrição. Ana filia sua obra à sua autoria. Obra esta que, por sua vez,

aparece repleta das filiações que Ana C. carrega enquanto escreve. Leva para

seu texto suas predileções, seu cânone pessoal, conforme prova o índice

onomástico ao final da edição de A teus pés, com a lista dos nomes aos quais

a poeta faz referência ou mesmo rouba versos.

Page 47: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

47

Figura 1 (ACC_Pi_Meios de Transporte_000392-051) Acervo Instituto Moreira Salles15

A versão manuscrita do índice onomástico não é a mesma da que foi publicada

em 1983 pela editora Brasiliense, entre os cortes nomes como Roland Barthes,

Emily Brontë e T.S. Eliot. Lewis Carroll tem seu nome cortado já na lista

15 Ver Anexo 3

Page 48: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

48

manuscrita, assim como o de Walt Whitman, porém este foi colocado na lista

publicada junto a outros acréscimos como Ângela Carneiro e Cecília Meireles.

O escritor inglês T.S. Eliot, apesar de ter sido cortado da lista dos nomes da

filiação criada por Ana Cristina para si, é, certamente, um dos autores aos

quais Ana C. faz referência. Na palestra oferecida ao curso “Literatura de

Mulheres no Brasil”, em 1983, transcrito e incorporado à seção ‘Escritos no Rio’

do livro Crítica e Tradução (1999), a autora fala um pouco sobre a escrita de

Eliot ao falar sobre a poesia moderna:

Eu acho que esse corte [na poesia, o corte do não dito, daquilo que fica por dizer] está ligado muito à poesia moderna. A poesia moderna é uma poesia que se lanceta. Ela é toda cheia de arestas, é angulosa, não tem, digamos, um desenvolvimento coerente, linear. [...] Ela tem a ver, mesmo, com alguma coisa do urbano, que é assim cortado, caótico, fragmentado. Ela é fragmentária (CESAR, 1999b, p.261).

Ana C. não diz diretamente sobre sua identificação com a poesia moderna,

tratando-a com algum distanciamento, como se não fosse essa parte de sua

estética, mas quando se lê muitas de suas poesias, esse diálogo com a poesia

moderna aparece. Poemas que fazem referência à conversação, na qual os

cortes aparecem, também são comuns, especialmente em A teus pés:

Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico, produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das asas batendo freneticamente. Apuro técnico. [...] Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de ontem. Gertrude: estas são idéias bem comuns. Apresenta a jazz-band. Não, toca blues com ela. Esta é a minha vida Atravessa a ponte. É sempre um pouco tarde. Não presta atenção em mim. Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio. Estamos em cima da hora. Daydream. [...] Estamos parados, Você lê sem parar, eu ouço uma canção. Agora estamos em movimento. Atravessamos a grande ponte olhando o grande rio e os três Barcos colados imóveis no meio. [...] Agora é a sua vez. Do you believe in love...? Estão está.

Page 49: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

49

Não insisto mais (CESAR, 2013, p.77, trechos selecionados e grifo nosso).

Assim como fala sobre o poema de Eliot, no qual ele “coloca uma cena duma

cartomante jogando cartas e, de repente, ele corta, ele está em Londres,

atravessando uma rua; de repente, ele corta, está no fundo do mar falando com

as sereias [...]” (CESAR, 1999b, p.261), da mesma maneira o poema acima

transcrito é todo elaborado a partir da ideia de corte, lembrando a imagem

cinematográfica, de fragmentos, de incompletude. Importante notar ainda

referência à poeta e ao coloquialismo de Gertrude Stein, cujo nome está

presente no índice onomástico.

Carlos Drummond de Andrade é outra figura ilustre que compõe o índice de

Ana Cristina. A “homenagem” ao autor aparece em “O Homem público nº 1”,

cujos versos foram roubados aleatoriamente de uma de suas crônicas e

montado, como em um pastiche, na elaboração do poema, conforme confessa

a própria poeta:

Agora, sabe o que é esse poema? Esse poema não é meu literalmente. Aí é que existe uma questão da autoria que é sempre balançada. Você nunca sabe direito quem é o autor... Autoria é uma coisa muito esquisita. Isso aqui é uma crônica do Drummond. O Drummond escreveu uma crônica e isso aí são fragmentos, palavras da crônica de Drummond (CESAR, 1999b, p.272).

O episódio descrito por Ana Cristina traz à tona outra importante questão que

permeia tanto as noções de obra e publicação quanto a poética de Ana C. em

si: a autoria. A relação dela com essa “coisa muito esquisita” é sempre

bastante problemática, já que a autora rouba confessamente versos de outros

escritores num constante diálogo com sua tradição, conforme assinala Maria

Lúcia de Barros Camargo, em sua análise Atrás dos Olhos Pardos: uma leitura

da poesia de Ana Cristina Cesar (2003):

É evidente que toda obra literária tem relação com a tradição que a antecede, seja por influências, seja por adesão, por mímese, por negação, por resistência, por releitura ou recuperação [...] Mas em Ana Cristina a relação com a tradição literária não vai se limitar a influências, nem será apenas prática epigonal da modernidade. É o processo construtivo da obra, conscientemente planejado e elaborado: paródias, pastiches, apropriação de versos, alusões e referências diretas a autores amados, a amigos e a outras artes (p. 118).

A partir do momento em que seu cânone pessoal deixa de ser apenas um eco

e passa a configurar uma reverberação do outro, enquanto método de trabalho,

Page 50: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

50

a questão de autoria passa a ser um ponto de indagações na poética de Ana C.

A crítica literária, do final da década de 1960, foi marcada pelo apagamento do

autor decretada por Roland Barthes no texto A morte do autor (1968). Para

Michel Foucault em O que é um autor? (2000) no entanto, não basta aniquilar a

presença do autor, é preciso compreender o que há nesse espaço deixado pela

figura do autor, nas palavras do filósofo:

Mas não chega, evidentemente, repetir a afirmação oca de que o autor desapareceu. Do mesmo modo, não basta repetir indefinidamente, que Deus e o homem morreram de uma morte conjunta. Trata-se, sim, de localizar o espaço deixado vazio pelo desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto (p.41).

A impossibilidade de manter esse espaço vazio está na necessidade de se

vincular uma obra a alguém que a tenha escrito e o nome próprio do autor

funciona como um arquivo, um agrupamento dessas obras a ele atribuídas,

possui então uma função classificativa. Ora, se o nome do autor exerce

basicamente uma função no contexto da obra, a morte do autor, de acordo com

Foucault, faz surgir a necessidade daquilo que define como a função autor.

Essa função autor é definida na obra de Foucault por quatro características,

entre as quais uma que particularmente interessa à função exercida por Ana

Cristina em sua obra, trata-se da função como objetos de apropriação: “Os

textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores [...] na

medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em

que os discursos se tornaram transgressores” (FOUCAULT, 2000, p.47). A

autoria enquanto função passa pelo sentido de pertencimento da obra como

um produto. Vimos, em Barthes, que o produto proveniente da obra é o texto e

este pode ser retomado, enquanto a obra jamais pode ser reescrita. O que Ana

Cristina faz é justamente recriar textos, retomando-os, a fim de que a sua

própria obra se crie, assim, quando a poeta rouba trechos de Drummond ela

retira a autoria do escritor e imprime a sua assinatura.

Outra característica do autor, segundo Foucault, é “uma espécie de foco de

expressão, que, sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta da mesma

maneira, e com o mesmo valor, nas obras, nos rascunhos, nas cartas, nos

Page 51: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

51

fragmentos, etc” (FOUCAULT, 2000, p.53-54). A função autor, portanto, é aquilo

que permite buscar um sentido de unidade mesmo diante de um conjunto que

não comporta a homogeneidade. Ou seja, ainda que a união de todo esse

material presente no acervo de Ana C., suas cartas e sua obra publicada em

vida seja tão plural entre si, há algo que os une de alguma maneira – a função

autor.

Apesar de defender um recalcamento da figura do autor, Foucault reconhece

que “o anonimato literário não nos é suportável; apenas o aceitamos a título de

enigma” (2000, p.49-50). Retomando a pergunta inicial que move as reflexões

de Foucault: “Que importa quem fala?” Para a crítica textual não importa, pois

mais vale o que Ana C. fez daqueles textos de outros autores do que

propriamente quem primeiro os pronunciou – ou escreveu. Para a crítica

biográfica, no entanto, importa conhecer os autores aos quais Ana C. remete,

pois suas preferências literárias muito têm a nos dizer acerca de seus métodos.

Faz-se necessário, portanto, que a figura do autor retorne à cena. Mas dessa

vez não mais como aquela figura aurática que precedia o texto e legitimava sua

obra, mas despertado pelo que o próprio Barthes, ao reconhecer o desejo do

leitor pelo autor, anuncia como uma virada biográfica:

Para mim (…), a virada se deu no momento de O prazer do texto: abalo do superego teórico, volta aos textos amados, “desrecalque” do autor → Pareceu-me que também à minha volta, um gosto se declarava, aqui e ali, por aquilo que poderíamos chamar – para não abordar o problema das definições – a nebulosa biográfica (Diários, Biografias, Entrevistas personalizadas Memórias etc.) (…) A “curiosidade” biográfica desenvolveu-se então, livremente, em mim (BARTHES, 2005, p.168).

É embalado pelo retorno do autor que desponta-se o interesse pelas suas

gavetas – e de trabalhos como este. Em seu arquivo pessoal o autor emana

através de seus papéis manuscritos, reescritos, rasurados, fragmentários. Ali

ele “reaparece com seu traço e resíduo, sua marca autoral”, conforme pontua

Eneida Maria de Souza (2009, p.130). Ainda que disfarçando-se atrás de

óculos escuros ou de poemas encobertos pelos enigmas, Ana Cristina exerce a

autoria e a posse de seus textos ainda que neles versem textos de outros.

Page 52: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

52

1.5 Os livrinhos de Ana C.

Ana Cristina Cesar é identificada dentro da literatura brasileira como integrante

de uma geração de poetas que confeccionava seus livros artesanalmente e

distribuía-os, os poetas marginais. De acordo com definição de Eucanaã

Ferraz, para a apresentação do livro Poesia Marginal – Palavra e livro (2013),

essa geração de 1970 estava produzindo poesia num tempo em que:

Sabia-se na carne – literalmente – o que se sabe: que toda palavra é ação e toda ação é política. Fazendo o ato poético crescer para fora de seus limites convencionais – a margem pode ser, muitas vezes, mais vasta do que se imagina –, os poetas misturaram poesia e futebol, poesia e carnaval, poesia e música, poesia e artes plásticas, poesia e teatro, trazendo ao território da palavra tudo o que expressasse a urgência de contrapor à solidão o companheirismo, à incerteza a esperança, à violência a alegria, ao autoritarismo a liberdade, à morte a vida (p.7).

Frederico Coelho (2013), ao fazer uma revisão do movimento marginal da

década de 1970, descreve-o como uma máquina de futuros: “Uma máquina

cujas engrenagens, mais velozes que a energia que as alimenta, geram

descompassos inevitáveis com seu tempo. São os desencontros entre aqueles

que vivem da fabulação e os dias práticos do mundo” (p.11). Para o ensaísta,

essa geração, cujo motor era a transgressão, buscava outras formas de

publicação, não por princípios anti-mercadológicos, mas por falta de abertura

desse mercado à nova geração de poetas. O mimeógrafo, hoje um símbolo

dessa poesia, aparece como uma saída prática para essa “escrita urgente”, ou

seja, “o poeta é marginal porque escapa das limitações do mercado editorial

oficial e publica seus poemas de forma artesanal ou independente” (COELHO,

2013, p.25 – p.26).

Heloísa Buarque de Hollanda organizou em 1975 um livro com alguns desses

nomes, 26 poetas hoje (2007) buscando imprimir um retrato da geração de

poetas da época, cujos livrinhos transitavam, até então, bem distantes do

mercado editorial. Segundo a organizadora os livrinhos circulavam nos bares e

em portas de teatro em edições mimeografadas ou em offset. O movimento é

descrito por Hollanda da seguinte maneira:

Frente ao bloqueio sistemático das editoras, um circuito

Page 53: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

53

paralelo de produção e distribuição independente vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia. Planejadas ou realizadas em colaboração direta com o autor, as edições apresentam uma face charmosa, afetiva e, portanto, particularmente funcional (2007, p.9).

No início da década de 1980 a editora Brasiliense começa a despertar para o

interesse nessa produção com a coleção Cantadas Literárias inaugurada pela

poeta Ana Cristina Cesar em 1982. Todavia, sem dúvidas, é a produção

independente e artesanal que dá o tom e caracteriza a geração.

Antes de lançar A teus pés (1982), pela editora Brasiliense, os três livros

anteriores de Ana Cristina Cesar pertencem à fase do mimeógrafo, ou seja,

foram publicados em edições independentes. Os créditos ao livro Cenas de

Abril, impresso na Cia. Brasileira de Artes Gráficas, revelam que ele foi lançado

em junho/julho de 1979 e que participaram da “Equipe do coração” (CESAR,

2013, p.16) Luis Olavo Fontes na produção e Heloísa Buarque de Hollanda no

projeto gráfico.

Figura 2: (FERRAZ, 2013, p.113)

Page 54: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

54

Correspondência Completa foi lançado no mesmo ano. Com esse título irônico,

no livro encontra-se apenas uma carta, escrita por Julia ao misterioso

remetente “My dear”. O livrinho, de apenas 10,5 x 7 cm, carrega ainda outra

brincadeira, em seus créditos lê-se “2ª edição” (CESAR, 2013, p.45), quando,

na verdade, não há uma edição anterior. Heloisa Buarque de Hollanda, que

novamente assina o projeto gráfico, e Armando Freitas Filho, que aparece nos

créditos como assessor editorial, buscaram nesse livrinho a inspiração para o

título Correspondência Incompleta do compilado, naturalmente incompleto, de

cartas de Ana C.

Figura 3: (FERRAZ, 2013, p.112)

A respeito dessas produções, Heloisa Buarque de Hollanda (2007) destaca “a

tão frequente presença do autor no ato da venda o que de certa forma recupera

para a literatura o sentido de relação humana” (p.10), este geralmente

participava de todo o processo, da criação poética à distribuição. Ana Cristina é

uma das poetas que se preocupava com todo o processo de criação dos

livrinhos. Em cartas à Heloisa Buarque, Ana descreve com entusiasmo o

processo de criação de Luvas de Pelica (1980), elaborado durante sua viagem

à Inglaterra e publicado com o selo da nova coleção Capricho, criada por ela

em parceria com o poeta Eudoro Augusto:

Page 55: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

55

Hoje saímos para fotografar porque além de fazer casinha sem parar estou transando um livrinho. Fechei o texto e resolvi fazer no ato. O irmão do Chris tem uma off-set na garagem, em Yorkshire. Já tive a primeira aprendizagem. Mão-de-obra seremos nós. [...] descobri uma lojas diabólicas em Londres, onde você senta e fica folheando milhares de mostruários de papel. Comprei o catálogo letraset e passei as tardes brincando. E uma caneta Rotring porque sou eu que vou compor o livro à mão (CESAR, 1999a, p.65-66).

Um mês depois, outra carta revela o livro impresso e o início do processo

artesanal da composição:

1º) Meu livro está quase pronto. Mandei compor num tipo tiffany light. Como é que fala nos créditos? “Composto no lugar tal em tipo Tiffany light?” Soa estranho. A composição vem em rolos inteiros de papel, agora faço o artwork com tesoura e cola. Perdendo o mistério (CESAR, 1999a, p.71).

Figura 4: (FERRAZ, 2013, p.114)

Page 56: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

56

Não estando no Rio de Janeiro, Ana C. narra ainda o projeto de distribuição de

Luvas de Pelica, pedindo sugestões da correspondente:

[...] eu precisava demais de um esquema de distribuição que me substitua eficazmente. [...] Então quero um agente (pergunta pra Lula, Pedro ou André também) na base de 50%. [...] Calculo que o livro chegue aí em dezembro ou janeiro. O agente seria eficiente, profissional, rápido, urgente. Divulgar & circular. Funcionará? Terminará aqui carreira de autogestão? (CESAR, 1999a, p.71-72)

A ampla participação do autor, conforme cita Heloisa Buarque, “determina, sem

dúvida, um produto gráfico integrado, de imagem pessoalizada, o que sugere e

ativa uma situação mais próxima do diálogo [...]” (2007, p.9). O ato reitera o

compromisso da literatura produzida entres os anos 1970 e 1980 de romper

com o elitismo e eruditismo aproximando o público e mostrando que “lugar de

poesia é na calçada”.

Na trajetória de Ana Cristina a concepção do material é elaborada com zelo. A

presença de várias capas e provas de livros guardadas em seu acervo

comprovam a dedicação aplicada a eles. O capricho vinha desde a infância,

quando transformava cadernos em livros autorais com direito a capa e marca

da “Editôra Problemas Universais” presente em muitos deles.

Figura 5: ACC_Pi_Poemas de Ana Cristina Cesar_000443-001) Acervo Instituto Moreira Salles

Page 57: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

57

Figura 6: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_001) Acervo Instituto Moreira Salles

Page 58: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

58

Figura 7: (ALMEIDA, 2013)

Page 59: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

59

Apesar da tenra idade, Ana Cristina já se via como “a autôra”, conforme assina

a folha de rosto do caderno pequeno de capa cor de vinho e em cuja lombada

se lê: “Poesias de Ana Cristina – PIM – Poesia e Inspiração Minha”. Os

poemas ali presentes datam do ano de 1961, ou seja, a autora tinha apenas

nove anos.

Com o mesmo título “Poesia e Inspiração Minha” foi produzido outro caderno,

este grande de atas com a capa verde escura hoje já escurecida pelo tempo.

Ali constam poesias escritas de 1962 e 1963. A parte de trás da capa, porém,

anuncia o retorno da poeta ao seu livrinho no ano 1967, agora uma

adolescente sentindo o amadurecimento de sua poesia, julga seus textos e

retoma o caderno com nova produção e anuncia: “Não me chamem de poetisa

que rima com latrina”.

Figura 8: (ACC_Pi_Poemas de Ana Cristina Cesar_000443-043) Acervo Instituto Moreira Salles16

Nos demais livrinhos mais poesias, grades narrativas, histórias de férias,

lembranças dos sonhos e fatos do cotidiano tornam-se matéria literária para a

jovem poeta. Entre os cadernos, até mesmo, uma autobiografia feita ainda na

16 Ver Anexo 4.

Page 60: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

60

infância contando do dia do nascimento e histórias da infância que já apontam

para o gosto pela escritura:

“Mas... no dia 23 de dezembro (aniversário da mamãe), de 1953, caí da cadeira e quebrei meu braço! (esquerdo, mas como ainda não escrevia, não me importei). Adiante, a poeta apresenta, ali, seu talento para a poesia: “gosto muito de contar histórias para minhas colegas, na classe. Minha mãe ouve e escreve o que eu digo. São poesias inocentes e puras de uma criança”.

Figura 9: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_005) Acervo Instituto Moreira Salles17

17 Ver Anexo 5

Page 61: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

61

Figura 10: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_015) Acervo Instituto Moreira Salles

Page 62: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

62

Figura 11: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_016) Acervo Instituto Moreira Salles

Page 63: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

63

Figura 12: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_028) Acervo Instituto Moreira Salles

Este caderno apresenta também vestígios do passado, ainda recente, de Ana:

o cartão que anuncia seu nascimento, o exame de raio-x exigido pelo Colégio

Bennett, um ditado escolar de 1958, um cartão de natal com a fotografia da

Page 64: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

64

turma do colégio, uma carta que recebeu da escritora Lúcia Benedetti

elogiando-a pela sua poesia publicada no jornal da escola. Memórias de uma

criança configura, pois, um arquivo infante e infantil de Ana Cristina.

Já adulta, o gosto por transformar cadernos em livros foi preservado, de certa

maneira, como mostra o caderno “Meios de transporte”:

Figura 13: (ACC_Pi_Meios de transporte_000392-001) Acervo Instituto Moreira Salles

O caderno de atas de capa preta foi usado por Ana Cristina para desenvolver,

provavelmente, o projeto do que seria o A teus pés, título que, aliás, não

aparece em momento nenhum ao longo do caderno. Entre os nomes

sugeridos: Meios de Transporte, Branco e Blue e ainda Bem Objetivo (Edição

Bilíngue). O que torna a suposição plausível é a presença de muitos textos

publicados no livro da editora Brasiliense e a presença do já citado índice

onomástico. A lápis, no topo da primeira página de manuscritos de poemas a

frase indica “o início de tudo”:

Page 65: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

65

Figura 14: (ACC_Pi_Meios de Transporte_000391-003) Acervo Instituto Moreira Salles18

18 Ver Anexo 6.

Page 66: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

66

O poema que daria início ao livro em potencial é o mesmo que inaugura A teus

pés, porém em versão diferente da que foi publicada. Um poema por página,

como num livro mesmo, e em cada uma delas marcas de retorno ao texto com

alterações, cortes, rasuras e sinalizações, como pontos de interrogação e “ok”,

que sugerem escolhas daqueles que devem ser publicados. A respeito dessa

manutenção do arquivo trataremos adiante.

Por ora, coube-nos visualizar a materialização do desejo de Ana em mostrar-se

“autôra” de livros desde muito criança. A presença deste tipo de material, bem

como sua permanência no acervo tantos anos depois, apontam, mais uma vez,

para uma Ana Cristina apegada a seus papéis, arquivista de si.

Page 67: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

67

CAPÍTULO II

“Uma voz me delineia: VORAZ”

Page 68: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

68

2.1 Uma sereia de papel: Ana C. como arquivo

A história está completa: wide sargasso sea, azul

azul que não me espanta, e canta como uma

sereia de papel19

O diário íntimo permite em sua concepção a bricolagem: mistura de materiais,

gêneros, recortes, colagens, textos de outros. Configurando-se como um

suporte heterogêneo em si mesmo, o diário é aquele que recolhe e guarda os

restos do vivido. À sua semelhança configura-se o arquivo: heterogêneo, plural,

múltiplo e também residual, incompleto, fragmentário. Ana Cristina não

escreveu sua autobiografia em vida, conforme já comentamos no primeiro

capítulo. Seus escritos, portanto são os únicos testemunhos autógrafos de sua

inscrição.

Não devemos, contudo, confundir inscrição de si com escrita confessional.

Somente rasgos de verdade são permitidos na poética de Ana Cristina. Por

escrever nas imediações da escrita do íntimo armava-se para defender a

distância entre a verdade e a literatura. Em sua última entrevista – um evento

para os alunos da PUC, antes que o tema da escrita de si entre em pauta, Ana

já começa falando da contracapa de A teus pés (1983) assinada pelo amigo e

também escritor Caio Fernando Abreu que escreve20: “Fascinada por cartas,

diários íntimos ou o que ela chama de “cadernos terapêuticos”, Ana C. concede

ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia

pelo buraco da fechadura.” (CESAR, 2013, p.446). Ana praticamente emenda

sua apresentação pessoal ao assunto da quarta capa do livro:

[...] vou falar uma coisa de cara. Vou falar da contracapa do livro. Essa contracapa foi escrita pelo Caio Fernando Abreu, que é um escritor que eu gosto muito, um amigo, e que vai pegar os meus textos exatamente por um lado que eu queria desmontar aqui, que é um lado de cartas... e diários íntimos... e correspondências... e revelações... e ocultamentos. E queria dizer pra vocês que isso é desmontado em A teus pés (CESAR, 1999b, p.256).

19 Publicado em A teus pés. In: Poética (CESAR, 2013, p.91) 20 O texto foi publicado nos apêndices do livro Poética (2013).

Page 69: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

69

Querer “desmontar” uma ideia é saber que se trata de uma ideia plausível, um

caminho de leitura. Sinuoso, mas um caminho. Incerto, mas um caminho.

Trilhá-lo exige conhecer as artimanhas e a astúcia de Ana Cristina em

esconder-se em seus escritos. Vale lembrar ainda que, segundo Leonor Arfuch

– ao tratar da entrevista no livro O espaço biográfico (2010) –, no momento da

entrevista, o escritor constrói um personagem daquilo que quer passar para o

seu público. O espaço midiático é um espaço biográfico de elaboração de si, no

qual o escritor “administra tão bem sua imagem pública que acaba fazendo de

sua vida sua obra” (ARFUCH, 2010, p.218). Ana Cristina ao apresentar-se para

seus leitores naquele auditório cuida da imagem de poeta que quer passar,

assim como também cuidou dessa imagem ao escrever seus diários simulacros

para A teus pés (1983). A entrevista configura o momento de unir essas duas

obras, o livro e a poeta, em prol de uma verdade que não é real, mas a verdade

do texto:

Agora nessa conversa, nesse pacto aqui nosso, eu puxei que a gente pode cair que nem um patinho na armadilha da intimidade, achar que estou revelando minha intimidade ou escondendo minha intimidade e não é isso, sabe? Podemos puxar outros. Ler é meio puxar fios, e não decifrar (CESAR, 1999b, p.264).

É pela chance de ser lida pela decifração da subjetividade que Ana Cristina,

como uma esfinge, constrói sua poesia cheia de enigmas e mina as

possibilidades de interpretação ao longo da entrevista, colocando o leitor como

aquele que “pode cair que nem um patinho” (1999b, p.263) se insistir na leitura

“autobiografílica21” de seu texto. Essa guarda levantada pela poeta é também

matéria de poesia, como em “Três cartas a Navarro”, série de cartas escritas

por Ana C. assinadas por um remetente “R.”, para o destinatário Navarro:

Navarro,

Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não per-

mitas que digam que são produtos de uma mente doentia!

Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo biografílico.

Ratazanas esses psicólogos da literatura – roem o que

encontram com o fio e o ranço de suas analogias baratas.

Já basta o que fizeram ao Pessoa. É preciso mais uma

vez uma nova geração que saiba escutar o palrar os

signos.

21 Em referência ao termo criado por Ana Cristina em Três Cartas a Navarro, para designar a leitura de

um autor pela sua biografia.

Page 70: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

70

R. (CESAR, 2008, p.17).

A série é constantemente citada para exemplificar artigos cujos objetos de

estudos tratam da tão problemática relação entre vida e obra no que tange à

poética de Ana Cristina Cesar, como se esta, assinando “R.”, estivesse fazendo

o pedido de que seus poemas não fossem analisados por um viés psicanalítico.

Mais que repetir um lugar comum, insistir no uso desse poema é reafirmar sua

pertinência. Não cometeremos a ingenuidade de ler a assinatura do eu-lírico R.

do remetente como alguma voz reverberante de Ana C., contudo, não podemos

ignorar a recorrência com a qual a temática da escrita de si aparece na

literatura e nas cartas da poeta.

Seu repertório é marcado pela escrita do íntimo, muitas vezes erroneamente

lida como escrita do próprio íntimo através de leituras que visam aproximar vida

e obra como coincidentes, desconsiderando a faceta fingidora do poeta, como

cita Pessoa, ou seja, o trabalho de ficção que há mesmo na proximidade com o

tom confessional. Assim, a poesia de Ana tangencia o íntimo, apostando na

recriação de gêneros que trabalham com a intimidade como as cartas, bilhetes

e páginas de um diário. Ao transmutar esses gêneros em literatura, a verdade

que o leitor espera emanar deles cai por terra, pois se tornam simulacros de

diários e bilhetes envoltos de segredos fingidos.

Exemplo pontual do jogo de revelar e esconder falsas confidências, travado

entre a poeta e seus leitores, lê-se no poema a seguir, presente no livro A teus

pés (1999), no qual Ana convida: “Vamos tomar chá das cinco e eu te conto

minha grande história/ passional, que guardei a sete chaves/[...]”, mas logo

deixa claro que não pretende entregar as chaves: “Eu nem respondo. Não sou

dama nem mulher moderna. / Nem te conheço” (CESAR, 2013, p.81). E o leitor

volta à estaca zero das revelações.

Eu-lírico e poeta, conforme tratamos, não se fundem na poesia de Ana C., mas

constantemente se confundem no conflituoso espaço da escrita,

embaralhando-se a fim de que nem um nem outro se desnude diante do leitor.

O biográfico, quando se deixa emergir, o faz através de referências

incompletas, enigmas, códigos, iniciais misteriosas. É o caso de “Páginas

impublicáveis”. O texto em prosa poética narra um acontecimento envolvendo

Page 71: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

71

um homem e uma mulher, tratados apenas como ele e ela, e a vontade dela

em reprimir certo desejo descrito diante da justificava da amizade que já

domina o relacionamento:

Figura 15: (CESAR, 2008, p.151)

Page 72: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

72

É possível observar que no final da prosa o narrador se trai e manifesta-se ora

em terceira, ora em primeira pessoa, dando, talvez, pistas de que se trata de

uma confidência íntima de si. Até aqui o jogo entre o “deslize” para a primeira

pessoa poderia tranquilamente ser lido apenas como um dos recurso da dicção

confessional nada confessional de Ana. Seria uma maneira literária de

expressar dificuldades nos relacionamentos amorosos quando o objeto do

desejo está encarnado em um ser que também é amigo. Ao confrontarmos

“Páginas impublicáveis” com trechos das cartas trocadas com as amigas,

somos compelidos a fazer inferências sobre quem é “A.C” da dedicatória

manuscrita à caneta azul no canto da página. A codificação “De A.C pro A.C”

torna aceitável que julguemos o poema em prosa como um exercício de

ficcionalização de um acontecimento real pelo qual passou Ana Cristina com

Cacaso, cujo o nome é Antônio Carlos de Brito.

Isso posto, é possível estabelecer uma relação entre o poema escrito em prosa

e o caso narrado por Ana atualizando para as amigas, Maria Cecília Fonseca e

Ana Cândida Perez, os últimos acontecimentos no Rio:

Ligara eu pro Cacaso que me disse, referindo-se ao porre: “se você soubesse o que você fez naquela noite, não gostaria nada”. E: “é preciso ser um samurai 24h por dia!” Ao perguntar por que, ouvi que samurai é um rigoroso, de um fino rigor sempre alerta. Fiquei écrasée com a bronquinha, veja só! Me pareceu terrível o Cacaso não me amar, não admitir deslizes. [...] No porre fiquei declarando amor ao Cacaso e dizendo pra ele parar de estudar. [...] Agora quando penso no porre fico chateada, mal ou bem não tinha eu nada que ficar intervindo no Cacaso. É difícil entender que a nossa história é só nossa, é intransferível, incomparável, são outras as materialidades e os pesos. Alfabetização (CESAR, 1999, p.153, grifos nossos).

Em carta à Ana Cândida nova peça: “No Rio, tomei um porre de uísque

nacional na casa do Cacaso.” (CESAR, 1999, p.262). As cartas foram escritas

em datas próximas, 28 e 31 de julho de 1977, respectivamente. A leitura das

mesmas permite inferir um acontecimento envolvendo Ana Cristina e Cacaso, o

qual tomamos como verídico levando em conta que está sendo narrado em

carta íntima, a princípio sem intenções literárias.

A página não está entre os textos publicados em vida pela autora, mas seu

datiloscrito integrava uma seção de poemas ordenado pela arquivista como

Page 73: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

73

Prontos mas rejeitados, sobre a qual nos deteremos adiante. Apontando que a

Ana C. que se permite desvelar-se em poesia, ainda que de maneira implícita e

codificada, destina a página escrita à alcunha de impublicável, rejeita-a, tranca

a sete chaves.

Impublicáveis mesmo – pelo menos até agora – estão os seus diários íntimos.

A existência deles é a priori apenas uma suspeita que pode ser levantada tanto

pela proximidade com a qual Ana C. se apropria do gênero em suas poesias,

nos permitindo apontar intimidade com o formato; quanto por falas como o

trecho abaixo de carta escrita à Maria Cecília, no qual Ana assume “dizer” algo

ao diário íntimo:

Somente a dicção nobre poderia a tais alturas consolar-me,

dizia eu recentemente pro diário íntimo, cheio de páginas bem

escritas e inacabadas na impotência. Na verdade eu tenho é

pena de mim e escrever seria chafurdar nessa pena, ditar

consolos. O tom seco dos textos “modernos” querem exorcizar,

tematizar a pena, e não afundar nela (1999a, p.164).

A literatura de Ana C. dialoga com os gêneros confessionais, ainda que

inconfessando-se, conforme já comentamos. Em seus textos de cunho crítico,

escritos principalmente na década de 1970 para jornais e revistas22, a teórica

Ana Cristina já ensaiava assuntos que associavam “literatura-invenção” e

“literatura-diário”23. De acordo com Maria Lucia de Barros Camargo, em seu

estudo sobre a poesia de Ana C. “Atrás dos olhos pardos” (2003), os artigos de

Ana Cristina, especialmente aqueles publicados no final de 1976, lançavam

luzes para a problemática envolvendo as relações entre ficção e realidade

pensadas a partir dos gêneros literários em obras e autores diferentes entre si.

Segundo Camargo (2003):

Trata-se de ver as relações entre literatura e biografia, literatura e documento, literatura e história, romance e confissão. E, portanto, de pensar o diário e a correspondência como formas que permitem a elaboração dessas questões a partir do texto. Certamente não foi para fazer confissão que Ana Cristina escreveu e publicou seus fragmentos de diário íntimo. Foi para fazer literatura (p.60).

A afirmativa pontual da autora confirma que os diários íntimos da poeta, na

verdade simulacros de diários, elevam a questão da escrita de si em Ana C. a

22 Reunidos em Crítica e Tradução (CESAR, 1999) 23“Para conseguir suportar essa tonteira” in Crítica e Tradução (1999, p. 167)

Page 74: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

74

outro nível: o fazer literário e o fazer a si mesma enquanto literatura. Escrita e

inscrição.

Em entrevistas com os amigos de Ana C. é comum que eles tratem da

compulsão pela escrita pela qual passava a poeta, confirmada também pelo

grande número de escritos em guardanapos de papel. Em depoimento ao

programa "Entrelinhas" da TV Cultura, Armando Freitas Filho fala que a amiga

tinha algo como um impulso pela escrita, escrevendo, até mesmo no ar, na

ausência de lápis e papel, enquanto falava ou pensava. Ítalo Moriconi (1996),

ao conversar com a mãe de Ana Cristina e verificar a mesma maneira de

movimentar as mãos enquanto fala, descreveu nostálgico e poeticamente o

gesto:

Como era intensa a gesticulação das mãos de Ana Cristina! [...] Mas ela falava ainda mais com as mãos, femininas no branco delicado da pele, mas masculinas no jeito brusco com que pontuavam suas afirmativas quando o que estava em pauta era a Ana muito segura, muito conclusiva, muito ordenadora do real. A sedutora falava com a voz, com os olhos. Mas quem mandava eram as mãos (MORICONI, 1996, p.87-88).

Por tudo isso fica difícil imaginar que a poeta não mantivesse um diário com

seus registros mais íntimos, todavia, em seus papéis sob guarda do Instituto

Moreira Salles ele não se encontra. Não sendo possível saber, portanto, se

Ana livrou-se dele antes de sua morte; se a família, resguardando sua imagem

e a dos amigos ali inscritos, optou por mantê-lo em segredo; ou mesmo se não

passa de um mito do imaginário de pesquisadores ansiosos por respostas,

chaves, decifrações, obscurantismos biografílicos – parafraseando a poeta.

Dessa forma, na ausência do seu diário, essa pesquisa se apropria do arquivo

de Ana C. como seu local de inscrição, seu diário, seu espaço (auto)biográfico.

A pesquisadora argentina Leonor Arfuch em seu trabalho O espaço biográfico:

dilemas da subjetividade contemporânea (2010) lida com as diferentes

configurações da biografia (e autobiografia). Os dilemas, os quais o subtítulo

evoca, são as vicissitudes da construção discursiva do eu possibilitadas, além

das formas tradicionais, pelas mídias contemporâneas. Por tratar-se de uma

construção discursiva, Arfuch lança sobre essas formas de (auto)biografia uma

leitura através de seu caráter dialógico, lembrando Mikhail Bakhtin, em que

para falar si reverbera-se o encontro de muitas vozes.

Page 75: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

75

Ao empregar o termo espaço biográfico de Philippe Lejeune24 resignificando-o,

Arfuch visa ao estudo dos gêneros (auto)biográficos diante da reconfiguração

da subjetividade, considerando novos espaços de inscrição e narrativa do eu.

Para a autora a definição de "espaço biográfico" contemporâneo se expande

para além dos gêneros canônicos como biografias, autobiografias, memórias,

envolvendo toda uma tendência de inscrição da subjetividade em diferentes

aspectos. Possibilitando, assim, a delimitação de um universo e fazendo uma

leitura desse espaço “enquanto horizonte analítico para dar conta da

multiplicidade, lugar de confluência e circulação, de semelhanças de família,

proximidades e diferenças” (ARFUCH, 2010, p.22).

Assim, se, de acordo com a proposta de Arfuch, a subjetividade

contemporânea se manifesta pelas biografias, autobiografias, confissões,

memórias, diários íntimos, correspondências, os talk shows e reality shows, por

que não acrescentar a esse espaço biográfico os arquivos como locais de

guarda e narrativa da memória?

Apesar da nova espacialização proposta pela pesquisadora argentina conduzir

aos recursos midiáticos novos e antigos – das entrevistas aos talks ou reality

shows –, parece possível incorporar o arquivo a este espaço biográfico. Isso se

pensarmos que também o arquivo, assim como o que se agrega a tal espaço,

inscreve-se em uma espacialidade

onde confluíam num dado momento formas dissimilares, suscetíveis de serem consideradas numa interdiscursividade sintomática, por si só significantes, mas sem renunciar a uma temporalização, a uma busca de heranças e genealogias, a postular relações de presença e ausência (ARFUCH, 2010, p.22).

Assim, justifica Arfuch o empréstimo metafórico do termo espaço biográfico de

Lejeune. O arquivo cujo espaço de convergências heterogêneas permite a

inscrição daquele que se arquiva, é um lugar de manifestação da subjetividade

e da escrita de si, portanto pode ser lido como integrante do espaço biográfico.

Nossa aproximação entre esses espaços passa pela necessidade levantada

pelo escritor de construir-se em cada um desses lugares de elaboração de si.

24De acordo com Leonor Arfuch, o espaço biográfico para Lejeune (1980) compreendia “a ‘um passo

além’ de sua tentativa infrutífera de aprisionar a ‘especificidade’ da autobiografia como centro de um

sistema de gêneros literários afins.” (ARFUCH, 2010, p. 22).

Page 76: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

76

Ou seja, tanto no arquivo quanto no momento da entrevista ao público o

escritor é levado a criar uma imagem, promovendo uma “apresentação muito

cuidada de si” (ARFUCH, 2010, p.217).

Ao falar, em uma entrevista, sobre a impossibilidade da escrita da intimidade,

Ana Cristina fornece ao leitor uma chave de interpretação: “Se você vai ler esse

diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa...” (CESAR, 1999b, p.

259). Da mesma maneira com que a intimidade, a confissão, a escrita de si

escapa na elaboração poética ela também escapa do arquivo. Escapar,

todavia, significa que em algum momento ela estava ali e fugiu, perdeu-se,

deixando apenas fragmentos dessa intimidade, rastros de si.

Jeanne Marie Gagnebin problematiza a questão do rastro em Benjamin em seu

ensaio Apagar os rastros, recolher os restos25 (2012), tratando do paradoxo

“presença de uma ausência e ausência de uma presença” (p.27), inerente ao

pensamento benjaminiano sobre o rastro. Dentro dessa concepção, o rastro

aparece como um vestígio que sobrevive ao que escapa, aquilo que está

presente. Todavia por sua incompletude e seu caráter vestigial, está também

ausente, o signo não pode ser percebido como um todo. A fragilidade dessa

sobrevivência, condicionada ao sentido paradoxal, faz com que o conceito,

segundo Gagnebin, se estabeleça cercado pela ameaça “de ser apagado ou de

não ser mais reconhecido como signo de algo que assinala” (2012, p.27).

A escrita, enquanto elemento que é residual, sobrevive temerária subordinada

à interpretação. A preocupação de Ana Cristina com seu texto ultrapassa o

instante de criação, sendo o leitor – ou, o que deixar para o leitor? Como será

lido aquilo que ficou no arquivo? – parte das questões que perpassam sua

inscrição. Ana deixou um arquivo repleto de fragmentos cujo sentido inicial – se

é que existiu um sentido pensado como tal – não poderá jamais ser

recuperado. Mesmo para alguém que tinha intimidade com a escrita de Ana C.

definir esses escritos como poemas é um trabalho de recolher os restos,

resignificar os rastros. Assim se deu a concepção de Inéditos e Dispersos26 de

Ana Cristina César; a Armando Freitas Filho “coube dar título à obra e

25 O ensaio integra o livro Walter Benjamin: Rastro, aura e história (2012), organizado por Sabrina

Sedlmayer e Jaime Ginzburg. 26 Primeira edição data 1985.

Page 77: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

77

selecionar, na compilação feita, e dentro dos limites dessa edição, aquilo que

me pareceu, literariamente falando, mais conseguido e acabado”27 (CESAR,

2013, p.465), os textos ali presentes foram publicados, portanto, como poemas.

Entre eles, verificamos uma série de escritos datados dos primeiros anos da

década de 1980 nos quais a poeta faz uso do gênero confessional do diário. O

poema em prosa “dia 16 de outubro de 1983” joga com o segredo a ser

desvendado – mistério que cerca o diário íntimo – e a consciência de que

aquele que escreve mantém sua inscrição, seu testemunho:

Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei fora algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu queria deixar. É outro. Outro agora. Acredite se puder. Rejane por perto acompanhando meus progressos. Peço a ela encarecidamente que me faça o favor de lembrá-los. Eu mesma me exercito, mas que péssima memória! Notas, Armando. A memória Fraca para os progressos! Chega desse lero, Poesia virá quando puder. [...] Lembra que o diário era alimento cotidiano? Que importa a má fama depois que estamos Mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho. Diário não tem graça, mas esquenta, pega-se de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro prateado. Leiam se forem capazes (CESAR, 2013, p.309, grifos da autora).

Também a memória aparece como o grande problema da autobiografia, a

impossibilidade inerente a ela de permitir a completude. Assim, inconfessa

como de costume, o poema em prosa deixa claro que esse testemunho não

será nunca completo. A inscrição daquele que se registra é incompleta,

residual e deixa apenas um rastro do que foi.

Ao escrever “Joguei fora algumas coisas já escritas porque não era o

testemunho que eu queria deixar” Ana C. nos permite fazer uma leitura a partir

do que estabelece Gagnebin sobre o desejo de manutenção ou apagamento do

passado. Essa manutenção – ou manipulação? – do passado é possibilitada

pelas marcas que escolhemos deixar, os rastros que permitiremos ao outro

seguir.

27 O texto aparece na introdução feita por Armando Freitas Filho para a primeira edição de Inéditos e

dispersos (1985).

Page 78: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

78

Ainda no poema-diário, há um questionamento quanto à importância de se

deixar um testemunho: “Que importa a má fama depois que estamos Mortos?

Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho.” Importa o

testemunho, confirmando a tese que Gagnebin tece das leituras de Benjamin,

retomando em sua etimologia a palavra grega sèma, comumente traduzida

como rastro ou vestígio, mas cujo significado original está ligado a “túmulo”.

Num mesmo sentido, o verbo alemão cavar (graben), usado para remeter à

busca pelos rastros aproximando o trabalho do investigador de arquivos ao

arqueólogo, possui o mesmo radical de túmulo (grab). Assinalando, de acordo

com Gagnebin, o destaque dado por Benjamin à questão da morte quando

trata do rastro. Diz a teórica:

O verdadeiro lembrar, a rememoração, salva o passado, porque precede não só à sua conservação, mas lhe assinala um lugar preciso de sepultura no chão do presente, possibilitando o luto e a continuação da vida (GAGNEBIN, 2012, p.35).

O desejo de permanência é acentuado pelo desejo de deixar sua marca na

Terra para a posteridade. O paradoxo se dá quando junto desse está o desejo

de apagar dados, escolher o que fica, manipular a própria existência, escolher

o testemunho. O que fica para ser recolhido são os rastros.

À maneira com que a teórica afirma com relação à entrega de coleções de

livros, manter papéis também é uma forma de deixar “testemunhos de uma

mínima continuidade da própria existência” (GAGNEBIN, 2012, p.28). Quem

escreve, portanto, deixa – e sabe que deixa – um testemunho.

Também Jaime Ginzburg, em seu texto A interpretação do rastro em Walter

Benjamin (2012), se propõe a fazer uma leitura do conceito de rastro na obra

do filósofo alemão. Para o autor: “Observar um rastro no chão, um bilhete de

uma viagem feita no passado, uma fotografia, assim como contemplar um

espaço em ruína, pode envolver o esforço de pensar na existência à luz das

perdas [...]” (GINZBURG, 2012, p.109). A mediação do conceito está em

estabelecer uma leitura que não vise à totalidade, pois, como já esclareceu, o

termo sugere fragmento e restos, partes com as quais se pretende apenas

vislumbrar o todo. Assim, uma passagem de trem diz de uma viagem, um

Page 79: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

79

bilhete diz de uma interlocução, uma fotografia diz de um evento ocorrido. Os

objetos arquiváveis configuram um passado em ruínas que somente pode ser

revisitado em sua incompletude, através dos rastros. Pensar o rastro é

estabelecer relações entre o que resta e o que está ausente:

A partir de um resíduo, elemento restante de uma trajetória realizada, é possível elaborar uma perspectiva de compreensão ampla. A expressão “miragens”, utilizada por Benjamin, sustenta a ambiguidade do que é observado: é algo que pode ser visto, mas ao mesmo tempo é uma ilusão de ótica (GINZBURG, 2012, p.109).

O olhar para o arquivo pautado pela perspectiva do rastro nos permite tomar de

empréstimo a metáfora de Benjamin retomada por Ginzburg. À maneira das

miragens o arquivo constitui uma presença de elementos reais, por outro lado

ele não é nunca revelador de um todo. As ausências do arquivo, tudo aquilo

que por tantas razões foi suprimido, os rastros que foram apagados, revelam

sua natureza numa ilusão, não de ótica, mas de totalidade.

Ginzburg considera o rastro como uma chave de conhecimento. Para o autor:

Tratar um objeto como rastro implica admitir que ele tem mais de um significado possível. Além de sua presença imediata, nele se encontra uma cifra que pode ser tomada como condição para entender o que houve ou supor o que haverá (GINZBURG, 2012, p.112).

Trabalhar com os textos da oficina de trabalho da poeta é, sem dúvidas,

adentrar ao arquivo com uma penca de chaves em mãos, perseguindo a

metáfora. Cada papel ali deixado evoca uma presença imediata e tantas

ausências que jamais poderemos esclarecer – tampouco visamos. As chaves

também são caras a Ana Cristina, pois o termo faz-se presente em sua poética

de segredos. Assim, quando ao final do poema em prosa “dia 16 de outubro de

1983” o eu-lírico provoca: “leiam se forem capazes”28 sinalizando ciência de

que a poesia está repleta de cifras a serem – ou não – desvendadas.

A lesma que aparece ao final do poema deixando um rastro prateado é ela

mesma um fragmento das leituras de Ana Cristina. Sylvia Plath, a poeta

americana de quem foi tradutora em parceria com Ana Cândida, escreve em

28 Inéditos e dispersos (CESAR, 1998, p.201)

Page 80: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

80

Os adormecidos29: “A lesma deixa um rastro prata” (2007, p.13). Ana Cristina

não traduziu esse poema, mas certamente teve contato com ele e dele se

apropria, deixando, assim como a lesma, um rastro, um indício que leve à

Sylvia Plath.

Impossibilitada de deixar pegadas, a lesma deixa um rastro. Ambos, pegada e

rastro, remetem aos vestígios deixados pelo homem comum, pelos escritores e

também pelos animais. De volta às Cartas a Navarro, que aparecem no início

desse bloco de discussões, o segundo dos já citados poemas-cartas faz

também uso de outras metáforas que remetem à animalidade:

Navarro, A animalidade dos signos me inquieta. Versos a galope descem alamedas a pisotear-me a alma ou batem asas entre pombos pardos da noite. Enchem o banheiro, perturbam os inquilinos, escapam pelas frestas em forma de lombri- gas. Ó melancólica impertinência das metáforas! Tenho pena de mim mesmo, pena torpe de animais aflitos. Ao animá-los me dobro sobre a pena e choro. Meus ouvidos vomitam ritmos, lágrimas, obedeço. Tenho medo de dizer que a forma das letras oculta amor, desejo, e a tua esquiva pessoa ao meu redor. Na próxima tentativa (e cinco espinhos são) não soltarei mais que balbucios. R.

A animalidade dos signos que perturba a voz poética que ressoa da carta-

poema, de alguma maneira, também incomoda Jacques Derrida. Na

conferência intitulada O animal que logo sou: (a seguir) (2002), o filósofo se

empenha em questionar o conceito de homem, partindo das particularidades

que diferem os homens dos demais animais. A motivação de sua fala, segundo

o próprio autor, se deu ao confessar a “experiência perturbadora”30 em ver-se

nu diante de seu gato que o olhava. A anedota desencadeia as reflexões

acerca das ipseidades humana e animal: “O animal nos olha e estamos nus

diante dele. E pensar começa, talvez, aí” (DERRIDA, 2002, p.57).

A nudez que move o pensar também está presente na palavra. Para Derrida

(2002): “O vestuário seria o próprio do homem, um dos ‘próprios do homem’”

(p.17). Inerente ao homem ele veste-se de roupas e igualmente de palavras,

29 Título original The sleepers, traduzido por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça. In:

PLATH, Sylvia. Poemas. Edição bilíngue. São Paulo: Iluminuras, 2007. 30 Derrida (2002, p. 33)

Page 81: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

81

pois necessita tecer narrativas orais e escritas para si. A consciência da nudez

faz com que o homem além de se vestir, vista também as palavras, atribuindo a

elas significações. O arquivo está repleto de palavras nuas, diante dele o

homem se permite olhar para si e para o outro – que é a própria escrita. Mas

diferente do animal que simplesmente olha o homem nu, o homem não suporta

a nudez do arquivo e o (re)veste de sentidos, porque é próprio do homem vestir

e nomear os outros viventes.

As questões relativas à animalidade e aos viventes são retomadas por Derrida

desde a gênese da tradição cristã – desde Adão, enquanto aquele cuja tarefa

foi assujeitar os animais a ele, nomeando-os, domando-os e adestrando-os –

passando também pela mitologia grega e a forte presença de seres mistos de

animais com humanos. Ainda nessa mesma conferência Derrida se dedica a

traçar sua zoo-auto-bio-bibliografia31, ou seja, uma espécie de autobiografia

pela sua bibliografia, revisitando os momentos nos quais se valeu do vivente

animal para estabelecer suas teorias ao longo de sua obra.

Na carta-poema de Ana Cristina Cesar as metáforas animalescas buscam a

melhor maneira de se expressar. Em Derrida (2002), por outro lado, o homem

aparece como único animal capaz de responder ao nome, atender aos

chamamentos em detrimento dos demais animais, os quais não detêm o poder

da palavra. O filósofo destaca, ainda, a singular capacidade humana de dar

nomes aos outros animais o que, segundo o autor, remetendo a Walter

Benjamin, expõe certa tristeza profunda da natureza:

Esse luto melancólico refletiria uma impossível resignação; protestaria em silêncio contra a fatalidade inaceitável desse silêncio mesmo: ter sido destinado ao mutismo (stummbeit) e à ausência de linguagem (Sprachlosigkeit) [...] (DERRIDA, 2002, p.41).

Essa ausência de linguagem citada tanto por Benjamin quanto por Derrida é o

que constitui o ferimento animal de ter recebido o nome e ser, com isso,

privado do poder de nomear o outro e a si mesmo. A essência da animalidade

está na incapacidade de ir além de balbucios.

31Derrida (2002, p. 65)

Page 82: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

82

A importância do nome está em sua perpetuidade. O nome, bem como sua

palavra escrita, permanece na ausência do vivente. Nessa lógica, o arquivo

sobrevive ao arconte, ou seja, uma Ana arquivável – e em partes arquivada –

sobrevive à finitude da Ana poeta precocemente morta. A escrita e o arquivo

aparecem como uma questão de sobrevivência.

A partir dessa concepção dos homens como aqueles “viventes que se deram a

palavra para falar de uma só voz do animal e para designar nele o único que

teria ficado sem resposta, sem palavra para responder” (DERRIDA, 2002, p.

62), cunha-se novo termo derridariano, Animot, homônimo em francês de

animais (animaux) e acrescido de mot, que significa palavra, é definido pelo

franco-argelino como:

Nem uma espécie, nem um gênero, nem um indivíduo, é uma irredutível multiplicidade vivente de mortais, e mais que um duplo clone ou uma mot-valise [palavra entrecruzada], uma espécie de híbrido monstruoso [...] (DERRIDA, 2002, p.77 – p.78 – grifo nosso.).

Trata-se da capacidade do vivente em deixar um rastro, a escritura de si, o

arquivo. A própria palavra mot-valise, usada no sentido de amálgama,

referindo-se à aglutinação das palavras que resultou no neologismo animots,

acima de tudo remete-nos inegavelmente à mala, valise, guarda, o

arquivamento da palavra, do escrito, enfim, ao arquivo.

Em Luvas de Pelica (1980)32, Ana Cristina envolve-se nessa metáfora. A poeta

escreve um epílogo no qual o eu-lírico encontra uma elegante valise de couro

marrom que guarda, além das finas luvas de pelica, uma coleção de postais.

Encenando uma apresentação de mágico circense a personagem abre a mala

com a “chave mestra em cerimônias do tipo, se me permitem a brincadeira”

(CESAR, 2013, p.72) – volta aí a figura das chaves, que remete ao mistério, ao

segredo – e descreve o momento de abrir a mala da seguinte maneira:

A valise de couro conterá objetos de toucador? Não, meus amigos. Como todos podem ver, mediante uma ligeira rotação que faço

32 1980 refere-se ao ano em que foi publicado pela primeira vez, em edição independente. O livro foi

posteriormente incorporado às edições de A teus pés. As citações que aqui transcrevemos são referentes

ao compilado mais recente de todos os livros de Ana C.: Poética, lançado pela Editora Cia das Letras em

2013.

Page 83: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

83

na cadeira sobre a qual ela se encontra, a valise contém apenas papel... cartões... dezenas, talvez centenas de cartões-postais. Estranha valise! [...] Meus amigos, isto é uma valise, não é uma cartola com coelhos (CESAR, 2013, p.73).

Ana C. descreve, acima de tudo, uma sequência de encenações que vai muito

além da teatral cena do mágico no circo, sendo a principal delas a do próprio

arquivo que encena, fazendo de conta que é capaz de guardar a memória, mas

somente consegue armazenar em sua valise os restos.

Diante das sobras da memória e do arquivo, impera a necessidade de falar

novamente do rastro, já que o acesso ao arquivo só é possível a partir dos

resíduos que demarcam seus caminhos, suas entradas. O rastro, na

perspectiva de Derrida (2002), é tratado como outra característica particular do

animal que somos e não dos outros animais, aos quais foi negado, junto ao

poder de resposta, o poder de mentir e de apagar seus traços. Dessa forma, ao

homem é reservado o poder de tentar controlar seus rastros, permitindo sua

presença e ausência. Assim:

a assinatura de um animal poderia ainda apagar ou confundir seu rastro. Melhor dizendo, deixá-lo apagar-se, não poder impedi-lo de se apagar. E essa possibilidade – traçar, apagar ou confundir sua assinatura, deixá-la perder-se – seria então de grande alcance (DERRIDA, 2002, p.63).

Sendo uma questão de assinatura, grafia, linguagem, trata-se, pois, de uma

questão do único animal que pode exercê-la: o ser humano. O acesso – ou não

– aos arquivos é determinado pela presença consciente dos rastros daquela

assinatura, daquela vivência de si.

Assim, diante da capacidade responder, nomear, arquivar-se e autorizar (ou

não) o acesso aos seus rastros, Derrida (2002) trata o homem como o único

ser que se registra conscientemente, ou seja, o único capaz de autobiografar-

se. Neste momento, Derrida responde uma importante questão que ronda toda

a obra: “O animal que eu sou fala?” (2002, p.62). Não somente fala como

dissimula a fala, como é capaz de dissimular o arquivo, pela sua capacidade de

encobrir os rastros.

Page 84: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

84

A proximidade entre os gêneros confessionais e autobiográfico tende a

confundi-los ou colocá-los como se fossem iguais. Ciente de certas diferenças

pontuais entre eles o filósofo faz relevante diferenciação entre autobiografia e

confissão:

A autobiografia torna-se confissão quando o discurso sobre si não dissocia a verdade da revelação, portanto da falta, do mal e dos males. E sobretudo de uma verdade que seria devida, de uma dívida em verdade que precisaria ser quitada (DERRIDA, 2002, p.44 – p.45).

Segundo Derrida (2002), esconder ou faltar com a verdade configura uma

experiência do mal. Essas postulações de verdade e de mal são atravessadas

por um sentido bastante cristão no qual, diante do confessionário, deve-se

dizer a verdade para quitar com Deus a dívida que é o pacto de servidão e

obediência entre Ele e os homens. A autobiografia por sua vez tem o pacto

com a escrita e esta não tem qualquer compromisso com a verdade.

Por isso o filósofo questiona se houve em algum momento uma autobiografia

virgem de toda confissão, ou seja, que não tenha sido jamais tocada pela

palavra nua. Se a confissão está no nível da verdade e da nudez da palavra – a

palavra virgem de qualquer nomeação –, isso justifica a proximidade com que

Ana Cristina apropria-se dos gêneros confessionais, mas sempre fazendo

deles simulacros. O desejo de olhar para si e ver-se nua conflita-se com a

incapacidade como homem e como poeta, de, diante da palavra nua, omitir-se

de tecer para ela uma narrativa que a vista e com isso dissimule seus rastros.

Ana é portanto um animal autobiográfico, que, nas palavras de Derrida (2002)

“seria essa espécie de homem ou de mulher que escolhe ou que não pode se

impedir de ceder, por caráter, à confidência autobiográfica. Aquele ou aquela

que trabalha de bom grado com a autobiografia” (p.89). Ana C. escolhe não

ceder à palavra nua, não ceder ao desvelamento confessional de si. Ela

manuseia seu arquivo e com isso trabalha com e não no terreno da

autobiografia.

A autobiografia, que aparece em Derrida (2002) coabitando o mesmo domínio

de: “a escritura de si do vivente, o rastro do vivente para si, o ser para si, a

auto-afecção ou auto-infecção como memória ou arquivo do vivente [...]”

Page 85: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

85

(DERRIDA, 2002, p.87), é para o filósofo acometida do risco da auto-infecção,

do envenenamento, já que trabalha com o resíduo da memória. Também o

arquivo, como uma inscrição autobiográfica, pode ser entendido sob o prisma

da ideia derridiana de phármakon, veneno e remédio, agindo no paradoxo de

preservar a memória e, sob o mesmo movimento, traindo-a na impossibilidade

de retê-la senão de maneira vestigial, fragmentária, incompleta.

Para melhor compreender esse elemento faz-se necessário visitar outra obra

na qual Jacques Derrida desenvolve a ideia: A farmácia de Platão (2005). O

pharmakon é a escritura, cujo maior problema é a sua encenação inerente, a

não verdade a ela condicionada:

A escritura já é, portanto, encenação. A incompatibilidade do escrito e do verdadeiro anuncia-se claramente no momento em que Sócrates se põe a contar como os homens são levados para fora de si, ausentam-se de si mesmos, esquecem-se e morrem na volúpia do canto (DERRIDA, 2005, p.12 – p.13).

Se na escrita a verdade revela-se enquanto uma encenação, a escrita do

arquivo, da mesma maneira se distancia do sentido de verdade. Diz Sócrates,

segundo Derrida (2005), que a escrita afasta o homem de si mesmo, tornando

impraticável a escrita de si como um relato confessional – naquele sentido

cristão já citado de verdade absoluta que se deve a Deus. É ainda o próprio

Sócrates que compara o phármakon aos textos escritos, ao mesmo tempo

remédio e veneno. E o filósofo franco-argelino segue o pensamento do filósofo

grego apontando a diferença entre o método de ensino em que os alunos vão

caminhando e ouvindo o mestre que não responde, mas induz os alunos ao

pensamento (maiêutica) e o “novo” método: “Desde já a escritura, o

phármakon, o descaminho” (DERRIDA, 2005, p.15).

Podemos observar que em sua trajetória Ana Cristina Cesar também faz da

escritura seu descaminho. Trilhando vários gêneros, apropriando-se da escrita

de tantos escritores, transitando, inclusive, por vários trabalhos que passassem

pela intermediação da escrita: poeta, ensaísta, tradutora, professora e

jornalista. Mesmo antes de saber escrever a palavra falada não parecia

suficiente para Ana Cristina, por isso ditava os poemas para que sua mãe os

escrevesse. A poeta soube desde cedo que a escrita suplementa a fala, como

Page 86: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

86

sol e lua – uma das metáfora usada por Derrida para explicar: “A escritura

como suplemento da fala” (2005, p.34). Elas não são complementares uma a

outra, porque são completas cada uma em si. Mas suplementares, se

acrescentam ainda que diante da completude de ambas.

De volta à escrita como phármakon, Derrida (2005) acentua que traduzi-la

como remédio ou como veneno depende de cada tradutor, pois ela transita

entre os dois polos. O que nem sempre faz diferença, já que “A escritura não é

melhor, segundo Platão, como remédio do que como veneno. [...] Não há

remédio inofensivo. O phármakon não pode jamais ser simplesmente benéfico.”

(2005, p.46). Ainda que administrada para fins terapêuticos – com boa intenção

– a palavra não está nua, conforme o próprio Derrida em O animal que logo

sou (2002), está sempre vestida, carregada de sentidos. Cabe ao pharmakeús,

que é o mágico, feiticeiro, envenenador e é também o médico e o escritor,

administrar a dose certa– escolher as palavras – para matar ou curar.

A escritura é ainda parricida, o filho perdido que mata o pai – o autor. Perdida

por natureza, pois não há garantias de que o suporte exterior à memória se

preserve das condições físicas, nem mesmo quando mantidas em arquivo, seu

suplemento, restando a ela somente o caráter vestigial:

A escritura e a fala são, pois, agora, dois tipos de rastros, dois valores do rastro; um, a escritura, é o rastro perdido, semente não viável, tudo o que no esperma se gasta sem reserva, força extraviada fora do campo da vida, incapaz de engendrar, de se repor e regenerar a si mesma. Ao contrário, a fala viva faz frutificar o capital, ela não desvia a potência seminal para um gozo sem paternidade (DERRIDA, 2005, p.103).

Enquanto representação da representação, simulacro do pensamento, não há

também garantias de que seja compreendida em sua totalidade. Ao encarnar

seu pensamento em papel o autor se mata, diferente da fala em que ele se

mantém como o suporte, a escritura, portanto só pode ser tomada pelos restos.

O conceito de rastro, além de remeter aos já citados vestígios e fragmentos,

lembra-nos um gesto animalesco. Derrida, ao tratar do animal que somos não

se furtou em tratar dessas questões, desenvolvendo o conceito de rastro. O

título original em francês da conferência “L’animal que donc je suis” apresenta

Page 87: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

87

uma ambiguidade não comportada pela tradução para a língua portuguesa. “Je

suis” tanto pode ser lido como “eu sou”, quanto como o verbo “suivre” (seguir)

conjugados na primeira pessoa do presente do modo indicativo, conforme nos

informa o tradutor Fábio Landa em nota. Seguir o animal, segundo Derrida é

estar depois dele: “Em todos os casos se eu estou depois dele, o animal vem

pois antes de mim, mais cedo do que eu [...]” (2002, p.28). Seguir o animal é

assumi-lo como outro, o “completamente outro33” que chamamos animal que

pode ser seguido porque é capaz de deixar rastros.

O subtítulo da obra de Derrida (2002), A seguir, também pode ser lido

enquanto metáfora da pesquisa em acervos. Da mesma maneira como o

homem é aquele que segue – o animal, o outro –, o pesquisador dos acervos é

aquele cujo itinerário é traçado a partir do “seguir”, “prosseguir”, “ser depois”

(DERRIDA, 2002, p.14). É aquele capaz de perseguir o arquivo que já está

pronto enquanto prática do arquivista, mas cujas significações e leituras

abrangem cada rastro percorrido pelo pesquisador.

O arquivo de Ana C. oscila como nos versos: “Autobiografia. / Não, biografia. /

Mulher” (CESAR, 2013, p.77), transitando entre os gêneros. Pode ser

percorrido encarando seus objetos como rastros de uma possível – e,

naturalmente, fragmentária – autobiografia. Num outro sentido, pode ser

vislumbrado como a biografia de uma outra Ana C., não mais mulher, mas ser

de papel. Uma arquivista, outra arquivável. Ambas – a Ana que escreve e a

Ana que se inscreve – conflitam-se na forma de uma sereia de papel: um

híbrido de animal – que deixa rastros, mulher – capaz de encobri-los – e

arquivo. Neste caso, porém, diferente do que descreve na poesia em que cita a

sereia de papel, a história não está completa, diante do arquivo não é possível

se completar.

2.2 Prontos mas rejeitados: pulsão de morte no arquivo de Ana C.

Volta e meia vasculho esta sacola preta à cata de um três por quatro [...]

33 DERRIDA (2002, p. 29)

Page 88: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

88

Nesta volta e meia vira e mexe acabo achando ouro na sacola.

Fabulosas iscas do futuro.34

Percorrendo as ruinas que compõem o arquivo de Ana Cristina pudemos

observar, até então, os métodos de elaboração de si. É através do arquivo que

Ana Cristina biografa os outros de si, autobiografa-se e ficcionaliza-se. A poeta

faz de seu arquivo um palco e encena seus tantos papéis através da escrita.

Mostrando-se aficionada pelos bilhetes de trem, que remetem às viagens;

pelas cartas, as quais remetem aos amigos distantes; as redações escolares

que remetem às primeiras fases de escritura; e com todo esse material compõe

ela mesma o seu arquivo, ao qual foram incorporados outros documentos,

compondo agora o acervo Ana Cristina César guardado sob os cuidados do

Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro.

Todavia, e é preciso não perder de vista esse ponto, todo esse material

heterogêneo que faz parte de um só organismo, que é o arquivo, não pode

jamais ser tomado como algo completo. Não apenas diante da própria

impossibilidade física de se guardar tudo, o que já configura um rompimento

definitivo com a ideia de completude que, às vezes, se tem diante de um

arquivo tão vasto, mas especialmente porque todo arquivo é antes uma forma

de elaboração de si. Sendo um método de organizar a própria vida e dar a ela

uma narrativa material, o arquivo deve ser encarado como um ato de forjar no

duplo sentido: impressão e falsidade – e a própria impressão no seu duplo,

sendo aquilo que se imprime e num outro sentido o que tange à incerteza – ter

uma impressão. É o que define Jacques Derrida em sua obra Mal de Arquivo –

uma impressão freudiana (2001), na qual o filósofo expõe as suas impressões

sobre o pai da psicanálise os quais serão tomados enquanto arquivos.

Em sua possibilidade de construção de si, o arquivo revela, portanto, uma

preocupação com o eu. Preocupação que deve ser pensada com cuidado em

casos como de Ana Cristina, que decretou ela mesma o fim de sua vida. Ana

C. escolheu deixar os seus guardados, recomendando que ficassem sob a

guarda de Armando Freitas Filho, então, parece possível dizer dos seus

34 Poema sem título publicado em Poética (CESAR, 2013, p. 116).

Page 89: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

89

arquivos como uma inscrição dela pensada para a posteridade.35Também

Derrida (2001) ao refletir sobre o arquivo compreende-o como uma questão

para o futuro, uma garantia ou, conforme define o próprio Derrida: "O arquivo

sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro." (DERRIDA,

2001, p.31). O penhor, vale pontuar, é sempre de algum objeto de valor do

qual se abre mão temporariamente para que em seu lugar se receba uma

quantia em dinheiro, um empréstimo que deverá ser pago no futuro para que

se receba de volta o objeto.

Nos poéticos ensaios reunidos em O casaco de Marx: roupas, memória, dor

(2012) Peter Stallybrass trabalha com a noção de que os objetos possuem

vidas sociais, dando um enfoque especial às roupas, fio condutor que une os

três ensaios do livro. No texto que dá título à obra, o autor narra a trajetória do

casaco que pertenceu ao filósofo Karl Marx. A vestimenta comporta-se ali como

mercadoria de troca que se alimenta do próprio trabalho humano, metáfora

cruel e irônica do capitalismo contra o qual Marx preconizava. Segundo narra

Stallybrass o casaco passava um tempo vestindo à rigor seu dono, para que o

mesmo pudesse frequentar a Biblioteca Nacional e seguir seus estudos

durante o inverno alemão; e, passadas as estações mais frias, o casaco era

penhorado para que Marx usasse o dinheiro para comprar papéis para que

pudesse escrever O capital.

Diante dessa história, Stallybrass (2012) teoriza acerca das noções de penhor

e memória. Para o pesquisador: “[...] penhorar um objeto é desnudá-lo de

memória” (2012, p.65). Se é certo que um objeto carrega a memória daquele a

quem pertenceu, somente despido de sua particularidade histórica o casaco

pôde se tornar mercadoria com valor de troca, pois as memórias não são

contabilizáveis, ou seja, na loja de penhores, transformadas em mercadoria, os

objetos perdem sua memória, estas desvalorizadas pelo penhor.

O arquivo, todavia, é um penhor do futuro, no presente dele – enquanto faz-se

presente – é ainda animado pela memória daquela que o construiu. Se, no

futuro, por algum motivo perder-se no arquivo algum referencial, por exemplo,

35 Claro que por si só o suicídio de Ana Cristina não significa escolha por deixar os manuscritos. Apenas

estamos levando em conta que sua morte aparece como gesto pensado, haja vista que a poeta já havia

buscado a morte anteriormente, não foi um ato aparentemente repentino como aponta o suicídio do

escritor Pedro Nava, por exemplo.

Page 90: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

90

se Ana Cristina deixasse de ser uma poeta conhecida, seu arquivo perderia o

valor de memória da poeta e passaria a configurar apenas como um conjunto

de escritos do passado. O arquivo não será nunca um penhor no presente

enquanto estiver assombrado pela presença de sua arconte, mas do futuro,

quando estará à mercê das leituras que se poderá fazer dele.

Sujeito mesmo a muitas interpretações, o arquivo de Ana C. elaborado pela

Ana C. é rico em documentos os mais diversos. Livros, cartas, bilhetes, muitos

caderninhos, anotações em guardanapo... Esse é o tipo de material no qual

Ana constrói sua trajetória arquivando-os, de modo especial em uma pasta

sanfonada que metaforiza uma memória arraigada em objeto, uma memória

passível de ser arquivada: a pasta rosa.

Conforme já descrita na primeira parte deste trabalho, a mítica pasta sanfonada

possui subdivisões pelas quais Ana Cristina distribuiu uma coletânea plural e

heterogênea de papéis. E como o desejo do arquivo impõe a necessidade de

classificação e catalogação, Ana C., desempenhando o papel de arquivista, dá

as ordens em seus papéis e os ordena colocando-os sob categorizações. A

questão da ordem aparece aqui conforme descreve Jacques Derrida, em sua

obra Mal de Arquivo – uma impressão freudiana (2001), para quem:

[...] não haveria arquivamento sem título (e portanto sem nome e sem princípio arcôntico de legitimação, sem lei, sem critério de classificação e de hierarquização, sem ordem e sem ordem no duplo sentido desta palavra) (DERRIDA, 2001, p.56).

Em cada seção um nome que busque definir o conjunto de materiais ali

presentes: Prontos mas rejeitados; Inacabados; rascunhos/primeiras versões;

cópias; “O livro”; antigos & soltos.

Naturalmente, não é possível apontar qualquer certeza quanto à distribuição

original dos materiais pela pasta, em primeiro lugar por ser infrutífera a busca

pela origem, já refutada. Acrescenta-se a isso o fato de que a pasta foi

remexida por outras mãos: em um primeiro momento as mãos de Maria Luiza

Cesar – que foi quem encontrou a pasta – e em outros momentos pelos

pesquisadores que, convidados pela família de Ana C., tiveram acesso à pasta

antes da mesma ser enviada ao acervo. Ainda assim, é possível prever, por

exemplo, que a pasta “antigos & soltos” contivesse materiais dispersos, textos

Page 91: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

91

sem data ou muito antigos, gêneros não mais praticados, bilhetes nos quais

perdeu-se a referência do assunto, enfim, tudo aquilo que não cabia bem em

nenhuma das outras “gavetas” e, para que não ficasse inclassificável, acabou

se aglomerando em categorias mais amplas – como aquelas gavetas em que

se guarda aquilo tudo que não tem lugar nas demais, objetos realmente antigos

e soltos. Ali estão alguns textos escritos entre 1970 e 1973. Olhando para

essas datas e para a palavra ‘antigos’ que nomeia a pasta é possível pensar –

julgando que eles foram colocados ali pelas mãos de Ana C. e não pelas

demais – que a pasta foi organizada alguns anos mais tarde, em um tempo

longe o bastante para que algo escrito em 1973 fosse tomado como antigo.

Sabendo que Ana Cristina morreu em 1983 fica a suspeita de que a pasta rosa

pode ter sido projetada próximo ao falecimento da poeta.

É certo que a morte emblemática de Ana Cristina acaba por mitificar sua obra.

Um suicídio no auge da juventude e da produção – Ana acabara de lançar A

teus pés pela Editora Brasiliense – desencadeia uma olhar sobre sua obra, já

estigmatizada pela melancolia e a morte rondante, fazendo com que ela seja

lida, quase sempre, buscando-se em cada poema um bilhete suicida.

Não pretendemos que a morte de Ana Cristina protagonize este trabalho,

entretanto, o gesto do suicídio se impõe diante da análise do arquivo.

Pensando na possibilidade desses escritos terem sido organizados pela poeta

com o pensamento no fim da vida em um penúltimo ato, antecessor ao gesto

derradeiro, fica a chance de ser ele um arquivo suicida – um arquivo que se

inclina para a morte. Apesar de ser um organismo vivo e, embora incompleto,

passível de infinitos desdobramentos, o arquivo anuncia a morte, pois só existe

como obra, passível de ser lida e estudada, após a morte de seu arconte. É,

pois, um ato de morte que propicia que o arquivo ganhe vida. É a partir desse

ponto que o arquivo passa a nos assombrar com o paradoxo derridariano de

vida e morte.

A teoria derridariana trabalha tanto em A farmácia de Platão (2005) quanto em

Mal de Arquivo (2001) com duplos paradoxais. Um par de conceitos que ao

mesmo tempo em que se contradizem são suplementares um ao outro. Na

primeira obra, conforme vimos, a noção de phármakon é interpretada como a

Page 92: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

92

escrita que aparece como um remédio para curar a falta de memória, mas,

acaba por se mostrar um veneno, pois não passa de um suporte artificial que

fará com que as pessoas deixem de se lembrar, esquecendo:

É em aparência que a escritura é benéfica para a memória, ajudando-a do interior, por seu movimento próprio, a conhecer o verdadeiro. Mas, na verdade, a escritura é essencialmente nociva, exterior à memória, produtora não de ciência, mas de opinião, não de verdade, mas de aparência (DERRIDA, 2005, p.50).

A escritura não é a memória. É um suporte externo diante do qual o escritor

examina a memória, seleciona e transcreve elaborando um inventário daquilo

que está na memória viva. Esses passos distanciam a escrita de qualquer

proximidade com a verdade enquanto única e absoluta.

Seguindo ainda os paradoxos derridarianos sobre o phármakon, que é cura e

veneno, adiante, na mesma obra, o escritor fazendo referência à mitologia

egípcia apresenta Thot. Ele é o deus da escritura – e por isso é o arquivista dos

deuses – e é também o deus da morte. Derrida destaca que “isso é evidente”36,

pois a escrita é a morte da memória e ainda da própria escritura, a qual não

possui qualquer garantia de sobrevivência pela fragilidade de seu suporte. Por

outro lado, Thot é ainda o deus da medicina, pois conhece a ciência e a magia,

sabe dosar, sendo por isso capaz de jogar com as noções de cura e veneno. O

deus do phármakon, em sua ambivalência é o veneno e é remédio, vida e

morte.

Anos mais tarde, o paradoxo que ronda a escrita é novamente colocado em

pauta. O mal de arquivo derridariano é a própria impossibilidade de verdade

inerente à escrita, a qual forma arquivos do mal: “dissimulados ou destruídos,

interditados, desviados, ‘recalcados’” (DERRIDA, 2001, p.7), ou seja, sempre

distantes das noções de verdade e de completude.

O mal de arquivo indica ainda o desejo de memória, de preservação e de

consignação; todavia esses desejos coexistem em contraste com perdas

inerentes ao gesto de guarda. Assim como há perda da memória viva ao extrair

um evento da memória e colocá-lo em papel, através da escrita, pois trata-se

de um suporte exterior a ela, por isso incapaz de contê-la em totalidade. Ao

36 DERRIDA, 2005, p.36

Page 93: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

93

reunir esses escritos há também muitas perdas, visto que toda seleção envolve

escolha e esta, por sua vez, requer eleger alguns documentos em detrimento

de outros, os quais serão descartados.

Para tratar das perdas do arquivo Jacques Derrida (2001) recorre à psicanálise,

com os pressupostos freudianos para a pulsão de morte ou de destruição ou,

ainda, de agressão. De acordo com a leitura de Derrida essa é uma pulsão

silenciosa que trabalha destruindo o arquivo hypomnésico:

Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus “próprios” traços – que já não podem desde então serem chamados “próprios”. Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente (DERRIDA, 2001, p.21).

Essa pulsão é, pois, anarquívoca e arquiviolítica, trabalha anarquizando o

arquivo, revolvendo-o de qualquer ordem; e violando-o. O mal de arquivo é,

portanto, a ameaça causada pela pulsão de morte ao desejo de arquivo.

De volta às sete subpastas do arquivo de Ana C, entre todas elas, aquela que

mais nos chama atenção é a primeira, ordenada sob um nome que, além de

dar título também a esta seção, funciona como uma espécie de metáfora do

mal de arquivo em Ana C.: "Prontos mas rejeitados". O título primeiramente

suscita alguns questionamentos (embora não pareça ser possível respondê-

los). Como definir um poema como pronto? Ou ainda, como definir um poema

como pronto dentro de um arquivo em constante manutenção? Quem os

rejeitou? A poeta? Por que alguém que os define como prontos os rejeita ainda

que não os descarte? Viviana Bosi descreve essa seção da seguinte maneira:

Na primeira seção, intitulada “Prontos mas rejeitados”, deparamo-nos com o grupo de escritos mais bem acabados. Não à toa, um índice escrito à mão arrola os nomes de vários textos nela constantes. Indicando a intenção de futura publicação, um título geral é sugerido: “Cartas marcadas”. E uma epígrafe: “baralhar bem antes de ler” (2008, p.9).

O estranhamento causado pela existência de uma pasta, um arquivo, composto

por um material que, embora estivesse pronto e aparentemente intencionada à

publicação, deveria ter sido descartado - por ser rejeitado - pode ser explicado

pela expressão de Derrida: um mal de arquivo. A tensão entre a pulsão de

morte e o desejo de arquivo. Ali a pulsão de destruição, cujo trabalho está na

"vocação silenciosa de queimar o arquivo e levar à amnésia" (DERRIDA, 2001,

Page 94: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

94

p.23), entra em confronto com o perfil arquivista de uma poeta que deseja este

arquivo como lugar externo que assegure a possibilidade de memória.

Neste sentido, não é forçoso apontar uma possível semelhança da pasta rosa à

ideia de Bloco Mágico como o suporte externo que mais se assemelha ao

aparelho psíquico de registro e de memorização, ideia essa desenvolvida por

Derrida a partir de Freud37. Nessa aproximação a pasta rosa funciona como

suporte externo em que se articulam os sistemas mnésicos e hypomnésicos, à

forma de versões de poemas, manuscritos, observações, todos em constantes

reprodução e repetição, condição indissociável à pulsão de destruição,

segundo Derrida. Assim como o Bloco Mágico, também o modelo incorpora "o

que parecia contradizer, sob a forma de uma pulsão de destruição, a pulsão

mesma de conservação que poderíamos chamar também pulsão de arquivo"

(DERRIDA, 2001, p.32).

Freud, em Além do princípio do prazer (2006) assinala que os instintos

narcísicos se contrapõem aos instintos sexuais, estes visam à conservação da

vida, aqueles tendem à morte. Todavia, por ambos ronda o instinto de morte,

pois mesmo para a reprodução – conservação da vida – há a morte de

algumas células para que se formem outras as quais darão origem à vida. O

instinto do eu busca a sublimação, com isso aplica sua energia não à

reprodução, mas à produção de algo – geralmente por vias da criatividade,

como a arte, por exemplo. Pensando nesse sentido freudiano o arquivo se

forma pelo instinto narcísico do eu enquanto método de organizar a vida e com

isso driblar a morte, atendendo assim ao princípio do prazer.

A repetição em Freud (2006) também é um fator interessante para se pensar

nas repetições presente no arquivo. Para o psicanalista “a compulsão à

repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente” (FREUD, 2006, p.30),

na tentativa de retorno ao estado primordial do pensamento – sabemos,

todavia, que esse retorno às origens não é possível. Apesar da condição para o

gozo ser a novidade, de acordo com Freud, a repetição não age contra o

37 É preciso destacar que há diferenças com o modelo de Bloco Mágico proposto por Freud, entretanto,

para que não se perca o foco, trabalharemos apenas com as considerações de Derrida a respeito desse

aparelho.

Page 95: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

95

princípio do prazer, pois também o reencontro com o reprimido constitui forma

constantemente adiada de prazer.

Ao longo das páginas dispersas pela pasta rosa muitos poemas são

exaustivamente reescritos em versões idênticas ou muito próximas. Seguem

abaixo três páginas ao longo das quais são escritas e reescritas, em pelo

menos dezesseis versões, o poema Litoral.

Figura 16: (CESAR, 2008, p.199)38

38 Ver Anexo 7.

Page 96: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

96

Figura 17: (CESAR, 2008, p.200)

Page 97: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

97

Figura 18: (CESAR, 2008, p.201)

A repetição parece tanto uma maneira de lapidar o poema, dar a ele seu

melhor contorno, as melhores, mais exatas palavras; quanto remete à busca de

que trata Freud do estado primordial do pensamento. Ou seja, é como se

através da reescrita do poema fosse possível recuperar sua forma original de

quando ele foi pensado pela primeira vez. Diante da impossibilidade desse ato,

Page 98: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

98

fica a primeira alternativa: trabalhar o poema, repetindo-o até ficar diferente,

parafraseando Manoel de Barros39.

Algumas repetições no arquivo de Ana C., de fato, parecem visar esse “ficar

diferente” de que trata Manoel de Barros. Através da presença de várias

versões de poemas é possível em alguns momentos vislumbrar os restos do

processo de criação, conforme observamos no poema Diagnóstico precoce, o

qual aparece datiloscrito e apresentando apenas uma pequena rasura. O

poema aparece arquivado na pasta registrada por Ana C. como "Prontos mas

rejeitados", por isso pode-se tomá-lo como uma versão definitiva, pronta, do

poema:

Figura 19: (CESAR, 2008, p.67)

39 “Repetir repetir – até ficar diferente.

Repetir é um dom de estilo” (no poema Uma didática da invenção In: O livro das ignorãças. Rio de

Janeiro: Record, 2000. p. 11)

Page 99: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

99

Adiante, o mesmo aparece em aparente processo de criação rodeado por outro

poema datiloscrito, este assinado por outro autor, Lui40:

Figura 20: (CESAR, 2008, p.68)41

40 Como era conhecido o poeta e amigo Luis Olavo Fontes.

Page 100: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

100

A página chama atenção por revelar fragmentos do irrecuperável instante da

criação. Além do poema de Lui, é possível verificar a presença de um verso do

poema Assalto42 de Carlos Drummond de Andrade escrito a lápis no canto

superior esquerdo. Aparentemente isolados, a versão manuscrita em hidrocor

vermelha de Diagnóstico precoce, cujo título original foi riscado à lápis e

modificado para Diagnóstico tardio, estabelece um diálogo entre os poemas,

costurando-os. De Lui ela extrai o verso "tarde pra ver com olhos límpidos",

confessando o furto no manuscrito e despistando-o na versão datiloscrita ao

omitir a palavra “recitando” – que se refere ao namorado autor da poesia; de

Drummond, vítima frequente de suas pilhagens poéticas, como já citamos, ela

copia a frase colocada à lápis no canto: "uma doença grave esse amor sem

braços", as inicias do autor, que aparecem entre parênteses na versão

manuscrita, foram retiradas da versão datiloscrita. A repetição ali visava à

criação de um terceiro elemento.

Ainda pensando no poema Diagnóstico precoce, além dos roubos praticados

pela poeta aos versos de outros poetas, é possível observar também outro

aspecto de seu processo de criação. A temática presente nesse poema

aparece novamente em outro manuscrito na elaboração do poema No cais

outra vez:

41 Ver Anexo 8. 42 "uma doença grave esse amor sem braços". O poema Assalto foi publicado em A rosa do povo, 1945.

Page 101: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

101

Figura 21: (CESAR, 2008, p.69)43

43 Ver Anexo 9.

Page 102: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

102

O namorado que parte para a Europa aparece em ambas composições: o

mesmo “namorado” do Diagnóstico precoce/tardio? Fica aparente que Ana

Cristina sofre a “perseguição das palavras”. Chamamos a isso a necessidade

que a poeta mostra em seus escritos de percorrer o sentido de uma ideia,

palavra ou expressões, fazendo com que ela experimente, obsessivamente, as

várias maneiras de fazer com que as ideias saiam para o papel, tornando-se

poesia.

Também aponta para essa “perseguição da palavra” a presença de outros

manuscritos que retomam a ideia dos manuscritos do poema Litoral44, já

citados anteriormente.

Figura 22: (CESAR, 2008, p.229)45

44 Deliberamos usar como título da série de versões “Litoral”, mas não há qualquer registro de qual seria a

primeira versão ou a mais recente.

Page 103: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

103

Figura 23: (CESAR, 2008, p.230)

45 Ver Anexo 10.

Page 104: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

104

Figura 24: (CESAR, 2008, p.231)

Page 105: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

105

As mesmas ideias de amor e de versos que escapam – ou desfilam, ou ainda,

“vem descendo” – aparecem em novos projetos de poemas em elaboração,

conforme sugere-se pela mudança de títulos e de formato do poema. Ao final

de um dos documentos uma frase escrita pela poeta chama atenção por

condizer com o atordoamento que parece sofrer diante dessas ideias que a

perseguem e com as quais pretende conduzir sua produção poética: “A

literatura é nada me tirando o sono. Os ratos que morrem na banheira.”

Derrida (2001), em um sentido consonante, pensa a repetição como uma

condição para o futuro:

Como pensar esta repetição fatal, a repetição em geral em relação à memória e ao arquivo? É fácil perceber, e até interpretar, a necessidade de uma tal relação, se ao menos, como somos naturalmente tentados a fazer, associarmos o arquivo à repetição e à repetição ao passado. Mas aqui trata-se do futuro e do arquivo como experiência irredutível do futuro (DERRIDA, 2001, p.88).

A repetição, embora pareça voltar-se para o passado – repetir algo que já

existe – ela volta-se para o futuro, assim como o arquivo é uma questão de

futuro. Assim, a perseguição da palavra liga-se também ao novo, ao que está

por vir.

De volta à série de poemas perseguidos pela ideia ‘do namorado que vai para

a Europa’, também a questão biográfica mencionada no poema pode ser

analisada: “Ostento biográficas palavras embora maneta sem luneta.” Ana C.

foi namorada de Lui no ano em que a poesia foi escrita, 1974. Em entrevista à

professora Mazé Lemos para a Revista Z Cultural o poeta relata detalhes da

época, entregando algumas peças que podem envolver os quebra-cabeças que

são os manuscritos. Fontes revela na entrevista que passou um tempo fora do

Brasil:

ocorreu que em 1976 eu saí do Brasil e só retornei em 79. A poesia marginal estava no auge quando parti. Eu acabara de lançar um livro Papéis de Viagem, que era como eu estava me sentindo: tirando os papéis de viagem para partir. Para mim foram apenas três anos – 74/75/76 – participando do

Page 106: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

106

movimento de poesia marginal. Mas, foram três anos muito intensos em que fiz três livros [...](FONTES46)

A perseguição da palavra aparenta aqui ser também uma perseguição do

biográfico, se pensarmos que esse namorado o qual: “Deixa publicado dois

livros e parte para a Europa com um terceiro debaixo do braço”. Se pudesse

ser confirmada essa hipótese poderíamos atribuir essas poesias ao ano de

1976, quando Luis Olavo Fontes afirma ter deixado o Rio de Janeiro. Já nessa

época Ana possuía muita poesia “rejeitada” por ela mesma em seu acervo

pessoal, mas, segundo Fontes: “Ela escrevia muito, mas não queria publicar,

não se sentia segura. Ela dizia também que não possuía uma quantidade

suficiente de poemas para fazer um livro de qualidade, algo com que eu não

concordava” (FONTES). A fala do então namorado reitera uma hipótese que

pode ser vislumbrada por todo o seu arquivo, o quanto Ana Cristina era crítica

de si mesma.

Ao exercitar sua escrita, Ana Cristina impõe também uma personalidade

autocrítica, comprovada pelo constante diálogo com seu texto, revezando-se

no papel de autora e crítica. É o que a poeta mostra ao dialogar com seus

rascunhos escrevendo às margens do papel frases como: "gosto só disso"

marcando uma parte do poema, ou questionando-se "o que pensar desse

poema?".

46 Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/desentranhando-luis-olavo-fontes-entrevista-por-

mase-lemos/

Page 107: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

107

Figura 25: (CESAR, 2008, p.35)

Manter esse tipo de documento em arquivo aponta para um adiamento em

buscar essas respostas, poder dar, enfim, o poema como acabado. A escrita é

parricida, conforme trata Derrida (2005), a cada poema dado como pronto Ana

assinalaria sua morte como autora, como pai daquele escrito. Talvez seja essa

consciência da completa falta de controle sobre o texto tornado público que faz

com que a poeta aparente tamanha dificuldade em realmente concebê-lo

simplesmente como pronto, sem um “mas”, deixando tantos arquivados na

pastinha de “inacabados”.

Ana Cristina demonstra em seus guardados não apenas ter uma consciência

arquivística como também a consciência deste arquivo como promessa,

Page 108: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

108

"responsabilidade para amanhã", como trata Derrida (DERRIDA, 2001, p. 50).

Seu arquivo não apenas funciona para falar de si em sua ausência - após sua

morte, mas sua manutenção é para uso em vida, como material de pesquisa

para sua produção literária. Isso porque seu arquivo aponta para a leitura futura

e retorno ao material, através de alterações cromáticas pelo uso de canetas de

cores variadas, dos bilhetes deixados por ela mesma em rascunhos, ou em

retomadas de versos ou temáticas em momentos aparentemente distantes.

Páginas como esta permitem essa linha de pensamento.

Figura 26: (CESAR, 2008, p.247)47

47 Ver Anexo 11.

Page 109: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

109

É possível vislumbrar mais de um retorno ao texto que está grafado em caneta

azul, usando grafite, caneta preta e uma pequena intervenção de caneta

vermelha que retoma duas palavras que estão no segundo parágrafo do

manuscrito em tinta azul. As alterações cromáticas no arquivo de Ana Cristina

Cesar também chamaram a atenção de Flora Süssekind, uma das primeiras

pesquisadoras a acessar o arquivo muito antes de sua composição sob guarda

do Instituto Moreira Salles. No livro Até segunda ordem não me risque nada –

Os cadernos, rascunhos e a poesia em vozes de Ana Cristina Cesar (2007)

cuja pesquisa esclarece a importância de se observar: “[...] o papel da cor em

seus rascunhos, sobretudo nos dos anos 80, o que, por vezes, aponta para

diálogo insuspeitados na escrita de diversos poemas de um mesmo período”

(SÜSSEKIND, 2007, p. 8). Para a pesquisadora as alterações cromáticas

apontam ainda diálogo com o próprio texto configurando mais um aspecto de

encenação do arquivo. Assim a presença de diferentes cores nos documentos

de Ana C. “teatralizam” o arquivo, “Nunca em uníssono, porém... Em contraste.

Enfatizado às vezes por canetas de cores diferentes. Às vezes pela simples

aproximação cromática do que se opõe” (SÜSSEKIND, 2007, p. 45). É para

conversar com sua produção que Ana Cristina mantém suas pastas de poemas

ditos “inacabados”.

O volume dos poemas definidos como “inacabados” era tanto que Ana

reservou para eles duas seções da pasta. Adiar o término dos poemas,

mantendo-os no arquivo, acaba por determinar outra característica desse

arquivo. Se para Derrida (2001): “pensamos o futuro a partir de um evento

arquivado [...]” (p.102), da mesma maneira, com a possibilidade de visitar

esses materiais deixados de lado em algum momento, a poeta tem a chance

de decidir quais versos inacabados retomará a escrita, quais projetos

abandonará de vez ou repesará, enfim, o arquivo de Ana Cristina é mantido

com o pensamento no porvir.

Page 110: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

110

Figura 27: (CESAR, 2008, p.185)48

48 Ver Anexo 12.

Page 111: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

111

De acordo com informações da organizadora de Antigos e soltos – poemas e

prosas da pasta rosa (2008), Viviana Bosi, a parte datiloscrita desse

documento refere-se ao corpo do texto daquilo que viria a ser um romance

anunciado nestes pequenos bilhetes que trazem a estrutura do projeto, o qual

não se concretizou.

Figura 28: (CESAR, 2008, p.181)49

Figura 29:(CESAR, 2008, p.181)

49 Ver Anexo 13.

Page 112: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

112

Figura 30:(CESAR, 2008, p.183)

Figura 31: (CESAR, 2008, p.183)

Page 113: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

113

A segunda parte do documento, manuscrita com hidrocor cor-de-rosa, aponta

para um retorno ao arquivo. Esse material faz parte da série de inacabado que

fica à mercê do desejo de manutenção do arquivo, voltando a ele para buscar

inspiração, retomar antigos projetos ou mesmo para (auto)criticar um método

ou uma temática antiga. Pelo que descreve nessa segunda parte, a poeta

encontrou o manuscrito e passou a limpo na máquina de escrever. Ao se

debruçar sobre seus guardados, Ana rememora a provável época e o momento

em que concebeu aquele escrito: “lembro até da “situação inspiradora”, do

insight que nós tivemos naquele tempo sobre a situação”. Diante do

desvelamento da memória, Ana projeta o futuro: “Sinto vontade de continuar

[...]. Penso até em colocar no início do trabalho: “em homenagem a C., musa

inspiradora”!”. E, por fim, julga ser melhor abandonar de vez o projeto: “Que

acesso de babaquice. Durante a cópia datilografação eu pensei muitas

associações, agora deixa pra lá. Adeus batucada.”

Passar a limpo algo que encontra em seu acervo é um gesto que pode ser

observado ao longo de seus documentos. Como a arquivista que é, Ana

Cristina mostra, inclusive, a constante preocupação em descrever as datas de

elaboração e de cópia.

Page 114: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

114

Figura 32: (CESAR, 2008, p.335) 50 Figura 33: (CESAR, 2008, p.336)

No documento acima fica nítida a preocupação e manutenção arquivística ao

passar a limpo o texto grafado a grafite e à tinta azul, sobrepostos. No verso da

folha temos a grafite uma data (11.02.71) e logo abaixo lê-se a caneta: "a

caneta 2.5.71". A tinta evoca permanência, durabilidade e até mesmo respaldo,

em detrimento do lápis, o qual, por sua vez, faz pensar em algo que pode ser

facilmente apagado, efemeridade e possibilidade de alteração. Por isso, por

exemplo, usamos caneta para assinar documentos, contratos, talões de

cheque. Todavia, na economia arquivística, é o grafite que costuma ser usado

50 Ver Anexo 14.

Page 115: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

115

para anotações dos curadores nos documentos, como a numeração de

páginas, por exemplo, já que a tinta pode, a longo prazo, desbotar e danificar o

papel devido a reações químicas entre eles.

No entanto o gesto de Ana Cristina ao passar seu texto a caneta estabelece

uma característica mais próxima do sentido do palimpsesto que da lógica

arquivística em si. Ao reescrever sobre o papel escrito a lápis, Ana Cristina

(re)apropria-se do papel e do escrito, ocasionando desdobramentos que fazem

parte do processo da escrita em devir. Pois ela reescreve, mas modifica

algumas partes, não copia os erros nem as rasuras da primeira versão. Da

mesma maneira com a qual o palimpsesto ao receber um novo escrito arquiva

uma nova inscrição sobre os vestígios de um texto anterior.

Outro elemento destacado pelo documento é o cuidado de Ana Cristina Cesar

em manter o registro das datas, em documentos, pode ser vista em quase

todos os seus papéis e é certificada pela própria Ana em carta à amiga Ana

Cândida, presente no livro Correspondência Incompleta (1999):

Tenho dúvidas de como organizar a correspondência [...]Tenho problemas burocráticos: como botar tuas cartas em ordem cronológica? (Nunca têm data). (Escreve no envelope, como nesta última.) (E eu esqueci de ir numerando.) (E acabaram por se embaralhar com mexidas) (CESAR, 1999, p. 226).

Ao colocar datas em seus papéis Ana Cristina mostra mais uma vez

consciência da noção de arquivo como objeto para o futuro, deixando rastros

para si e para a posteridade.

A fragilidade do suporte mnésico, que desde a antiguidade estimula cientistas e

filósofos à elaboração de suplementos artificiais hypomnésicos do qual a

escrita é o mais fundamental, fomenta no arquivista o desejo de memória.

Ainda que haja no arquivo de Ana C. muitos papéis dispersos, ao longo de

alguns documentos e cadernos de Ana Cristina é possível perceber a presença

de bilhetes que introduzem o assunto ou justificam o motivo daquele escrito.

Page 116: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

116

Figura 34: (CESAR, 2008, p.321)51

51 Ver Anexo 15.

Page 117: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

117

Figura 35: (CESAR, 2008, p.323)52

Buscando afastar-se do mal maior no arquivo que é o esquecimento – sua

sentença de morte –, Ana revela sua motivação para aquela poesia,

confessando ainda a inspiração no poema A noite53 de Gonçalves Dias. Na

página seguinte, ainda atordoada pela poesia, a poeta reflete sobre a

necessidade de fazer notas explicativas que se refiram “ao que nos leva a

escrever poesia”. Para responder ao questionamento Ana C. propaga o próprio

sentido que designa o arquivo: “A falta sem fronteiras, as memórias não mais 52 Ver Anexo 16 53 Publicado em Segundos Cantos, 1848.

Page 118: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

118

memórias, o presente total e tranquilo sem a morte ou com o passado

indefinível. Ao infinito deixo minha ânsia, nela espero e nela vivo.”. Ana sabe

que o presente total e tranquilo do momento de elaboração da poesia, tirando-a

da memória para que não morra, mas tenha uma (sobre)vida. A escrita visa o

infinito que é o futuro e é o arquivo.

Vida e morte, enquanto pulsões latentes que se refratam e se aproximam,

marcam presença nas temáticas dos escritos de Ana C. Vagando pelos

“Antigos & soltos” da pasta rosa encontramos um texto no qual essas pulsões

parecem conviver de maneira melancolicamente pacífica:

Figura 36: (CESAR, 2008, p.375)

Page 119: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

119

Não julgaremos o conteúdo pelo seu título, este colocado depois à caneta

hidrocor preta entre aspas sobre o texto datiloscrito. Não trataremos dele como

um bilhete suicida, até mesmo porque não é possível identificar a data e as

circunstâncias em que foi escrito. O que gostaríamos de sublinhar é a seguinte

frase: “digamos que é hora de começar a escrever “as memórias”. [...] munir-se

de exemplos. contando-as criticamente. este projeto me atrai.”. Pensar em

iniciar um novo projeto é algo que está diretamente ligado ao sentido de vida.

Para proceder o audacioso projeto de escrever “as memórias”, em especial, é

preciso pensar que ainda se tem muito tempo de vida para que haja tempo

hábil para escrever as próprias histórias. Venha de exemplo o escritor Pedro

Nava, o qual decidido a narrar suas histórias publicou seis volumes e deu fim à

vida antes que tivesse escrito a metade dos anos de sua vida em suas

memórias. É preciso tempo para dedicar-se às memórias. Todavia o texto

rompe com essa ideia de longevidade quando o eu-lírico anuncia: “acho que

vou me suicidar”. A palavra “espanto” escrita na parte de baixo do papel reflete

o pensamento do leitor diante do paradoxo entre uma vida longa e uma morte

abrupta.

Sofrer o mal de arquivo é ser tocado por esses desejos que irrompem uma

contradição interna: a memória e o esquecimento. Por isso, a pulsão de

destruição da memória, ela mesma, opera, paradoxalmente, em favor da

conservação, já que não haveria arquivo se não se cogitasse a possibilidade de

esquecimento. Os escritos de Ana C. envolvem textos prontos e até rejeitados,

sim, mas mantidos guardados, resguardados da finitude radical que ronda os

interstícios da memória.

O arquivo de Ana Cristina César é a sacola preta a qual a poeta se refere no

poema que usamos como epígrafe. Volta e meia o arquivo é vasculhado e é

daquele emaranhado de palavras abandonadas, perdidas, rascunhadas e

inacabadas que a poeta retira seu ouro: “Fabulosas iscas do futuro”.

Page 120: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esse trabalho objetivamos traçar o perfil arquivista de Ana Cristina Cesar,

observando a maneira com que seu arquivo pessoal e literário é construído

como material de guarda e instrumento de pesquisa, sendo visitado por ela nos

momentos de exercício de sua escrita para retomar temáticas ou avaliar sua

própria produção. O arquivo trabalha, pois, em auxílio ao movimento de escrita

de Ana C, conforme foi possível observar através dos fac-símiles estudados ao

longo do trabalho.

Pudemos observar que a pesquisa em acervos trabalha com o fragmentário,

com o incompleto, com os rastros de escritas, muitas vezes, inacabadas, mas

em todas as vezes genuína, por trazer consigo uma marca autoral, sendo

índice de uma inscrição do sujeito escritor. Ao longo do arquivo, o autor existe

como a marca vestigial que dá certa unidade aos manuscritos sempre tão

heterogêneos. O arquivo só existe, pois, vinculado a uma autoria, que neste

caso tem Ana Cristina como primeira arconte.

Vimos ainda como o conceito de obra para Roland Barthes ajuda a

compreender o status dos escritos presentes em um acervo, pela sua

materialidade e pela filiação que a poeta faz de seus escritos a ela, imprimindo

constantemente sua assinatura. Além do mais, destituídos do caráter de obra

não seria possível que tantos poemas póstumos de Ana Cristina Cesar fossem

publicados por seus organizadores.

Dessa forma, entendemos que o arquivamento é uma prática de construção

social, na qual o sujeito procura guardar seus papéis e seus objetos para a

posteridade, a fim de que aqueles itens materializem a memória que ele quer

deixar de si para os outros, um testemunho. Se é construção é também

elaboração, ou seja, cria-se uma espécie de narrativa material a partir de

escolhas daquilo que se quer latente, em detrimento daquilo que se quer

manter recalcado. Escolhas estas que envolvem também as pulsões

arquivísticas de vida e morte, visto que o desejo de guarda da memória só é

capaz de arquivar uma memória já morta. Por isso, também, a verdade está

sempre distante do arquivo, não por ser uma mentira, mas por ser uma

Page 121: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

121

encenação do sujeito que se arquiva.

A prática arquivística como injunção social é para todos. Não apenas figuras

ilustres encenam seus arquivos, escritores e autoridades, também o homem

comum arquiva sua vida através de documentos e fotografias que lhe garantem

uma autobiografia material fragmentária de sua vida. A diferença que

vislumbramos entre esses arquivos é meramente estética, já que se valoriza –

ou deveríamos valorizar – o acervo de escritores, especialmente depois de

mortos, pretendendo encontrar ali respostas para análise de suas obras e,

quem sabe até mesmo uma obra inédita que possa ser explorada pelo

mercado editorial. É o que tem sido feito da obra de Ana Cristina Cesar.

A escrita arrebatadora e misteriosa, a beleza e a juventude, o suicídio precoce;

foram os ingredientes necessários para a mitificação da poeta e o engate para

o sucesso dessas publicações póstumas, propiciadas pela grande quantidade

de papéis do acervo deixado pela poeta. A maior parte do que se tem

publicado de Ana C. foi organizado pelos curadores de sua obra

postumamente, à revelia da escritora.

Isso porque Ana publicou em vida apenas três livrinhos em produções

independentes e, depois, a reunião deles com poemas inéditos lançados por

grande editora. O primeiro livrinho foi lançado apenas em 1979, anos depois de

seus colegas de geração. Essa informação parece desencontrada diante do

arquivo que percorremos. A presença do vasto material encontrado no acervo e

a tenra idade com que começou a ditar seus escritos, fazem refletir sobre a

demora de Ana Cristina em lançar-se às publicações mimeografadas.

Uma possível resposta emana do próprio corpo do arquivo. Através das

rasuras assíduas e do constante diálogo com seu texto Ana mostra-se,

podemos inferir, insegura com seus escritos e acometida por um rigor

autocrítico que, se por um lado fez surgir uma exímia poeta, crítica de seu

tempo e leitora de uma tradição; por outro lado, acabou mostrando-se menos

em vida e mais na morte, promovendo as temidas leituras “biografílicas” de sua

produção.

Conhecemos menos a Ana C. poeta e mais a Ana C. escritora em sua oficina

Page 122: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

122

de produção em meio aos papéis que ela própria não soube determinar se

eram poemas. Coube a outros definir, em meio à profusão de versões e

escritos diversos, quais deles são poesias. A necessidade de mais visitas

críticas ao acervo se deve justamente a isto: perceber o funcionamento dos

exercícios de escrita de Ana Cristina Cesar como um compromisso maior com

a palavra, desierarquizando os textos ali presentes, tratando de igual para igual

desde o texto mais limpo de rasuras, passando pelos mais machucados pela

inquietação da inspiração, chegando aos mais retalhados e condenados aos

restos. O “resto dos escritos” de maneira alguma perturba a integridade da obra

em pesquisas deste cunho, pois é exatamente em busca deles que adentramos

às gavetas.

Fazer buscas em um arquivo, especialmente de uma poeta que já não mais

está viva, como é o caso do nosso trabalho, é irromper fronteiras sabendo que

nem sempre encontraremos respostas. Não visamos à obra fechada, acabada,

mas às possibilidades colocadas diante do escritor, das quais dão testemunho

os manuscritos com suas rasuras, seus acréscimos, suas supressões. Só

assim é possível flagrar Ana C. em sua atividade primordial: a escrita.

Page 123: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

123

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Elizama. As palavras da menina Ana C. Blog do IMS. 2013. Disponível em:

http://www.blogdoims.com.br/ims/as-palavras-da-menina-ana-c-por-elizama-almeida

<acesso em 10 de novembro de 2015>.

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea.

Trad.: Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.

11, n.21, 1998. (p.9 – p.34).

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad.: Antonio de Padua Danesi. São

Paulo: Martins Fontes, 1988.

BARTHES, Roland. A preparação do romance II. A obra como vontade. Notas

de curso no Collège de France 1978 – 1980. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São

Paulo. Martins Fontes: 2005.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BENJAMIN, Walter. Imagens do pensamento. In: Obras escolhidas II. Trad.: Rubens

Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense,

2000 (Rua de mão única). (p.143 – p.274).

BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim por volta de 1900. In: Obras escolhidas II.

Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5ª ed. São

Paulo: Brasiliense, 2000 (Rua de mão única). (p.71 – p.142).

BORGES, Jorge Luis. Obras completas de Jorge Luis Borges. Vol.2 (1952-1972).

Vários tradutores. São Paulo: Globo, 2000.

BRANDÃO, Roberto de Oliveira. Apresentação. In: ZULAR, Roberto (Org.) Criação

em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002. (p.9 - p.12).

CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia

de Ana Cristina Cesar. Chapecó: Argos, 2003.

CARVALHO, Ana Cecília. A poética do suicídio em Sylvia Plath. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2003).

CESAR, Ana Cristina. Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa. Org.:

Viviana Bosi. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008

CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. Org.: Armando Freitas Filhos e

Heloísa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a.

CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999b.

Page 124: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

124

CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

COELHO, Frederico. Quantas margens cabem em um poema? – Poesia marginal

ontem, hoje e além. In: FERRAZ, Eucanaã. (Org.) Poesia Marginal: palavra e livro.

São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2013.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 3ª ed. Trad.: Rogério Costa. São Paulo:

Iluminuras, 2005.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:

Relume Dumará, 2001.

DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (a seguir). Trad.: Fábio Landa. São

Paulo: Editora UNESP, 2002.

FERRAZ, Eucanaã. (Org.). Poesia Marginal: palavra e livro. São Paulo: Instituto

Moreira Salles, 2013.

FONTES, Luis Olavo. Desentranhando Luis Olavo Fontes. Entrevistado por Masé

Lemos. Revista Z Cultural. Ano VI. Disponível em:

http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/desentranhando-luis-olavo-fontes-entrevista-por-

mase-lemos/ <acesso em 10 de novembro de 2015>.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. 3ª ed. Trad.: Antonio F. Cascais e Eduardo

Cordeiro. S.L: Passagens, 1992.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. 4ª ed. Trad.: Antonio F. Cascais e Eduardo

Cordeiro. S.L: Passagens, 2000.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: Obras psicológicas

completas de Sigmund Freud; edição standard brasileira. Vol. XVIII: Além do

princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920 – 1922). Imago

Editora: Rio de Janeiro, 2006. (p.13 – p.71).

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SEDLMAYER,

Sabrina. GINZBURG, Jaime. (Orgs.) Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo

Horizonte: UFMG, 2012 (p.26 – p.38).

GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter Benjamin. In: SEDLMAYER,

Sabrina. GINZBURG, Jaime. (Orgs.) Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo

Horizonte: UFMG, 2012 (p.107 – p.132).

GRÉSILLON, Almuth. Devagar: obras (2002). In: ZULAR, Roberto (Org.) Criação em

processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002. (p. 147 – p.174).

GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos.

Trad.: Cristina de Campos Velho Birck... [et al]; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

HAY, Louis. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Trad.: Cleonice

Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

Page 125: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

125

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org). 26 poetas hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro:

Aeroplano Editora, 2007.

LOIS, Élida. Edições críticas. In: SOUZA, Eneida Maria de; e MIRANDA, Wander Melo.

(Org.) Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. (p.64 - p.75)

MALUFE, Annita Costa. Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar. São

Paulo: Annablume; Fapespe, 2006.

MARQUES, Reinaldo. Acervos literários e imaginação histórica: o trânsito entre os

saberes. In: Ipotesi – Revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, v. 4, n.2, p.29 –

p.37, jul./dez.2000.

MARQUES, Reinaldo. Grafias de coisas, grafias de vidas. In: MARQUES, Reinaldo;

SOUZA, Eneida Maria de. (Org.) Modernidades alternativas na América Latina.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. (p.327 - p.350).

MARQUES, Reinaldo. O arquivamento do escritor. In: SOUZA, Eneida Maria de; e

MIRANDA, Wander Mello (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial,

2003. p.141 - p.156.

MARQUES, Reinaldo. O arquivo literário e as imagens do escritor. In: MARTINS,

Anderson Bastos; SOUZA, Eneida Maria de; TOLENTINO, Eliana da Conceição. (Org.)

O futuro do presente: arquivo, gênero, discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2012. (p. 59 - p. 89).

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Memória e cultura material: documentos pessoais no

espaço público. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 11, n. 21, 1998. (p.89 –

p.103).

MORICONI, Ítalo. Ana Cristina Cesar, o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro:

Relume Dumará, 1996.

PLATH, Sylvia. Poemas. Edição bilíngue. Trad.: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício

Arruda Mendonça São Paulo: Iluminuras, 2007.

SANCHES NETO, Miguel. Autobiografia material. In: SOUZA, Eneida Maria de; e

MIRANDA, Wander Melo. (Org.) Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2011. (p.64 - p.75).

SANTIAGO, Silviano. Suas cartas, nossas cartas. In: Ora (direis) puxar conversa!.

Belo Horizonte/UFMG, 2006.

SANTOS, Matildes Demétrio dos. Ao sol carta é farol: a correspondência de Mário de

Andrade e outros missivistas. São Paulo: Annablume, 1998.

SOUZA, Eneida Maria de. Biografia – um bem de arquivo. In: Janelas Indiscretas:

ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. (p.39 – p.51).

Page 126: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

126

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica genética e crítica biográfica. Patrimônio e memória.

Vol. 4, n.2. São Paulo: Unesp, 2009. p.129 - p.138.

STALYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Trad.: Tomaz Tadeu.

3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

SÜSSEKIND, Flora. Até segunda ordem não me risque nada: os cadernos

rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007

Page 127: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

127

ANEXOS

Page 128: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

128

NOTA AOS ANEXOS

Constam nestes anexos, além de algumas fotografias, a transcrição de alguns

fac-símiles com os quais trabalhamos ao longo da dissertação. Transcrevemos

aqueles manuscritos que, de acordo com nosso julgamento, apresentavam

dificuldade na leitura devido à caligrafia e as rasuras. Optamos ainda por não

transcrever todo o manuscrito, mas apenas aquilo que mais importava nas

análises propostas. Em alguns casos usamos a transcrição feita por Viviana

Bosi, organizadora da edição fac-similar de Antigos e Soltos: poemas e prosas

da pasta rosa (2008), os demais foram transcritos por nós. As transcrições

aparecem nos anexos de acordo com a ordem em que aparecem no corpo da

dissertação, ou seja, de acordo com a paginação da Lista de Figuras.

Page 129: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

129

Anexo 1

54

54 Ana Cristina Cesar no lançamento do livro A teus pés, Rio de Janeiro, 1982. Autor: Agência IstoÉ

Figura 37: (BR IMS CLIT ACC Dico 0016e) Acervo Instituto Moreira Salles

Page 130: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

128

Anexo 2

Figura 38: Máquina de escrever de Ana C. _ Acervo Instituto Moreira Salles

Page 131: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

129

Anexo 3

Alvim, Francisco {certas vozes claras

Eudoro, Augusto {objetos obscuros voando

Bandeira, Manoel

Barthes, Roland

Bishop, Elizabeth

Brontë, Emily?

Buarque, Helô

Carroll, Lewis?

Dickinson, Emily

Drummond, Carlos

Eliot, TS

Freitas, Armando

Holiday, Billie

Hunter, Alberta

Kleinman, Mary

Mansfield, Katherine

Melin, Angela

Mendes, Murilo

Paz, Octavio

Pedrosa, Vera

Rhips, Jean

Stein, Gertrude

Svevo, Ítalo

Waller, Fats

Whitman, Walt?55

55 Transcrição nossa para figura 1 (p.47)

Page 132: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

131

Page 133: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

131

Anexo 4

NÃO ME CHAMEM DE POETISA QUE RIMA COM LATRINA

Deitei sôbre um esquilo aquático e assoprei o ventre

- dizia certa vez uma vespa intranqüila

Até que as palavras não fazem todo sentido

- dizia hoje a poeta quieta

1-9-68

A tinta chupa tinta,

Quiengraçado!

MANCHA Tenho 16 anos

Sou viúva

De família azul

De cabelos esvoaçantes

(E nada rebeldes)

Sou genial sob todos os pontos de vista,

Inclusive de perfil

A poesia é uma mentira, mora

Pelo menos me tira a verdade relativa

E ativa a circulação sanguínea

A Pedra Filosofal é um tanto ou quanto bêsta

Plutatcoplatãoplauto

Plutãoturcotãopauto

Platacotãopuloplau

Desisto: tenho 16 anos.

E perdi-me agora rabiscando-te.

1-9-68

Ana Cretina Cesar56

56 Transcrição nossa para Figura 8 (p.59)

Page 134: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

131

Anexo 5

I

Nasci. Nasci numa segunda feira, no dia 2 de junho de 1952. Minha mãe era Maria Luiza Cesar,

e meu pai Waldo Aranha Lenz Cesar.

Foi na maternidade Carmela Dutra. Eu era rosada, careca e de olhos azuis.

Minha vovó Maria Luiza, mãe da mamãe, me criou, porém eu morava em Niterói, na rua Mariz

e Barros, 75, 402.

Andei com 10 mêses e meio.

Em dezembro, no mesmo ano em que nasci, fui para Campos do Jordão. Porém passei muito

bem.

Mas... no dia 23 de dezembro, (aniversário da mamãe), de 1953, caí da cadeira e quebrei57

*****

meu braço! (esquerdo, mas como ainda não escrevia não me importei). Fiquei engessada 1

mês!

Orei pela primeira vez:

Pápá do céu, bligado Jesus.

Amén.

Aos 2 anos e meio, Flávio nasceu. Foi no dia 22 de dezembro. Ele nasceu em Niterói.

Eu já estava no colégio. Colégio Bennett. Eram minhas professoras: zilá Veiga Reis e Mathilde

Alganiz. A princípio chorava, mas depois adorei e brincava muito de “mãe e filha”.

Eis aí alguma foto do meu colégio:58

57 Transcrição nossa para a Figura 9 (p.60) 58 Transcrição nossa para a Figura 10 (p.61)

Page 135: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

131

*****

IV

1958. Ano nôvo, alegre, despreocupado.

Estou no Intermediário professora ( e até hoje) D. Néya e D. Simone.

Lembro-me muito dêste curso, apesar de passados já cinco anos.

Gosto muito de contar histórias para minhas colegas, na classe.

Minha mãe ouve e escreve o que eu digo. São poesias inocentes e puras de uma criança. [...]59

E qual não foi minha surpresa quando, em cima da poesia, estavam escritas as palavras:

Parabéns, Excelente,

Belo Trabalho!

Eu não esperava tanto êxito...

Nas férias de julho, D. Norma pediu que nós fizéssemos em um caderno, cinco cópias e cinco

ditados. Até hoje, quando folheio aquêle caderno ilustrado e escrito eu penso: “Pôxa, férias

são férias!”...

Uma agradável surprêsa foi quando recebi uma cata de Lúcia Benedetti, , escritora de peças

infantis, muito famosa:

(Eu tinha dado algumas poesias minhas para ela ler [...]60

59 Transcrição nossa para a Figura 11 (p.62) 6060 Transcrição nossa para a Figura 12 (p.63)

Page 136: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

131

Anexo 6

O início de tudo

Sumária (????) O anjo que registra

Foram esses jovens deuses e deusas nos exercícios de {espada }esgrima

Que a fizeram começar a escrever, depois.

Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando

Uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico,

produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das

asas batendo freneticamente.

Apuro técnico.

Os canais que só existem no mapa.

O aspecto moral da experiência.

O suborno no bordel.

Primeiro ato da imaginação.

Eu tenho uma ideia.

Eu não tenho a menor ideia.

Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.

Você pensa que é menor.

Um menor que precisa de mentor.

A imaginação feminina.

Deixe ver.

A imaginação feminina no papel.

Memórias de Copacabana. Santa Clara às 3 da tarde.

Memórias de Copacabana. Santa Clara às 3 da tarde.

Biografia. Autobiografia. Não, biografia.

Mulher.

Papai Noel e os marcianos.

Billy the kid versus Drácula.

Drácula versus Billy the kid.

Page 137: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

135

Muito sentimental.

Agora pouco sentimental.

Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que seu amor de ontem.

Gertrude: estas são idéias bem comuns.

Apresenta a jazz-band.61

61 Transcrição nossa para Figura 14 (p.65)

Page 138: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

135

Anexo 7

Litoral

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz

fraca cobre a fuga naufraga

ondas mornas imóveis

meu amor escapa esta superfície

irrespirável enreda

o vôo o movimento

inverso não mais teus ossos

águas sem sopro onde uma

temporada apenas

neste inferno.62

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz

fraca cobre a fuça naufraga

meu amor escapa outra vez esta

superfície

irrespirável (o vôo o movimento

superfície irrespirável (não o vôo

o movimento inverso

barriga mole de

peixe

62 (CESAR, 2008, p.198). 7

meu amor águas

meu amor escapa outra vez esta superfície

irrespirável o vôo o movimento

inverso não mais teus ossos águas

sem sopro) uma temporada apenas

neste inferno

Litoral

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz

fraca cobre a fuga naufraga

ondas mornas imóveis

meu amor escapa esta superfície

irrespirável o vôo o movimento

inverso fenda

meu amor águas

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz fraca

cobre a fuga naufraga ondas

mornas imóveis

as ondas fogem plurais quem dera

o vôo o movimento inverso não mais

tuas ossadas

Page 139: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

135

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz fraca

cobre a fuga naufraga

imóveis naufraga

ondas mornas imóveis

sem mãos o vôo o movimento

inverso nçao mais teus ossos

uma temporada apenas

neste inferno sem sopro contra as

minhas

o amor escapa esta superfície

irrespirável sem á

sem águas onde uma temporada apenas

neste inferno.

superfície irrespirável naufrágio

quem dera o vôo o movimento inverso

não mais teus ossos sem sopro

Litoral

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz fraca

cobre a sua fuga em ondas mornas

superfície irrespirável naufrágio

(o vôo o movimento

inverso não mais teus ossos águas

sem sopro

meu amor escapa outra vez pela

azão*

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz

fraca cobre a fuga naufraga

ondas mornas imóveis

sem o vôo

as amor escapa superfície

irrespirável

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz fraca

cobre a fuga redige o

***

Litoral

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz

fraca cobre a fuga redige ousadia

ouvida oumorte as ondas fogem imóveis

Page 140: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

135

as ondas fogem plurais

desta alquimia envelhecida/quem dera

te ainda se ouve

se

o vôo um movimento inverso não mais

tuas ossadas entre as minhas

irrespirável superfície

***

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz

fraca cobre a fuga redige ousadia

ouvida oumorte naufráguas

***

o amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz fraca

cobre a fuga redige ousadia

ouvida oumorte naufráguas mornas

imóveis

***

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz

fraca cobre a fuga exata das águas

irrespirável superfície

o amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso

a voz fraca cobre a fuga

redige ousadia ouvida oumorte

naufráguas mornas imóveis

as ondas fogem

meu amor escapa outra vez pela

fenda calada do verso a voz fraca

cobre a sua fuga exata naufraga

águas mornas imóveis

as ondas fogem plurais desta

velhice desenganada com palavras

irrespi supero

quem dera o vôo

o movimento inverso não mais

tuas ossadas63

63 Demais versões de Litoral são transcrições

nossas para as figuras 16, 17 e 18 (p. 95 a p.97)

Page 141: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

Anexo 8

Diagnóstico precoce tardio

fraturo as duas mãos no carnaval “uma doença grave esse

amor sem braços” (CDA) Me surpreendo em

trânsito, malas e carroças, palavras

escaramuçam gesso. Releio as outras do namorado

que fugiu pra Europa recitando “as

“mulheres tarde pra ver com olhos límpidos” Generalizar para

não assustar. Dúbia sentença política!

Ostento

biográficas

palavras

embora

maneta e sem luneta. Tarde demais

esse amor sem dedos.64

64 Transcrições nossas para Figura 20 (p.99)

Uma doença grave

esse amor sem braços

CDA 97

Fraturo as duas mãos no carnaval

me surpreendo em trânsito

malas a carregar

não sei conversar

pra te namorar

na verdade não sei fazer nada

às vezes pego do papel cravo desenhos

que para minha satisfação pessoal chamo poema

tarde para ver com olhos límpidos

o poeta batido por remelas e astigmatismo

Lui

30.12.74

Page 142: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

Anexo 9

No cais outra vez

todos

os amigos estão fazendo poeminha-minuto, frases relâmpagos golpes ou

bobagens. O namorado se retira uma semana e produz catorze poemas

de qualidade. Programa-se uma coleção de poesia Intensa movimentação nos

círculos literários! depois parte para a Europa. Deixa publicado

dois livros e parte para a Europa com um terceiro

debaixo do braço. Certamente lá produzirá o quarto.

E eu não produzo nada mordo as cordas

a âncora esse abandono

e uma partida seca na goela.65

65 Transcrições nossas para Figura 21 (p.101)

Page 143: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

Anexo 10

luta de classes

meu verso vem descendo desfila na alameda cavalos corcéis garbosos umbrais greta sublime folhagem bate ao peito do fidalgo

Súbito o cérebro classe dominante

arrepia seu galope pressentimento

em vão a metafísica comparece

consolar o nobre arrepiado*

o estampido movimento estampido dessas rodas

ruge com descaso à fidalguia

Temporada no inferno

meu amor escapa outra vez pela

fenda calda do verso a voz

fraca cobre a fuga naufraga

ondas mornas imóveis

meu amor escapa outra vez desta

superfície irrespirável faz

o movimento inverso peixe

vivo

Quando penso no corpo do meu ex-namorado

acho que já esqueci, Cacaso, acho que

esqueci.

Page 144: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

meus versos vem descendo a alameda

tropel de fogosos corcéis

cocheiro incólume ou cadáver pisoteado

não sei bem ainda

não atinjo a exatidão dos prados

ainda escuro

o ponto onde se troca fácil o sono pela

noite

Despertar

meus versos vem descendo a alameda

tropel de corcéis fogosos

cocheiro incólume ou corpo pisado –

pensei bem ainda

não atinjo a precisão dos prados

ainda escuro

o ponto onde se troca fácil o sono pela

noite

Page 145: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

17

meus versos vem descendo a alameda num golpe curto

cocheiro incólume ou corpo pisado – nem sei bem ainda

o poeta não atinge a precisão dos prados

meus versos descem a alameda num galope curto

cocheiro incólume ou corpo pisado

o poeta

não atinge a precisão dos prados

A literatura é nada me tirado o sono.

os ratos que morrem na banheira.

Page 146: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

18

meu verso desce

meu verso desfila na alameda umbrais

cavalos garbosos

faz pose de fidalgo

ereta sublime branca a folhagem bate ao

peito do

meu verso vem descendo a alameda umbrais

cavalos garbosos

ereta sublime branca a folhagem bate ao

peito do fidalgo

pose real

onde o cérebro classe dominante

arrepia seu galope pressentimento

em vão a metafísica comparece

consolar o nobre arrepiado

escolhido movimento dessas rodas

com descaso à fidalguia

soninas faz que não66

66 Transcrições nossas das versões de Luta de Classes, Temporada no inferno e Despertar para figuras 22,

23 e 24 (p.102 a p.104)

Page 147: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

19

Anexo 11

encavalgam-se os versos

aflitos animalescos destes cerrados um certo ódio nas

paredes da poesia

portões de ferro a segurar-me a manga

mas acima de tudo

amo as bestas e as feras

nos seus refúgios ou

soltas nas trevas

as patas calcinadas pelo furor

da página

navegação da palavra

encavalgam-se os versos

aflitos animalescos destes cerrados um certo ódio nas

paredes da poesia67

67 Transcrições nossas para Figura 26 (p.109)

Page 148: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

20

Anexo 12

(corpo do texto do que seria o começo do romance)

O fogo arde o corpo da vela. Não há luz além desta do fogo tento.

A sopa não prestava, era antes um símbolo das noites sem ardências

nem suspeitas. Diana cabe na sala nua. Eu sou Diana em mitológico

cansaço. Diana depositou os instrumentos de trabalho no tapete.

Queria cortar meu cabelo, virar deusa esvoaçante, cair em repouso

absoluto, desistir de fazer vontades. Fazer vontades. Não existem

vontades. O verdadeiro é além da vontade. Mas não. Diana está é

certa no cumprimento das hipóteses. Eu acho também que ler a estas

horas é melhor do que ir para a cama que nos separa em altitude de

espera. Ou antes eu devo voltar? De agora não mais. Posso ver os

livros e folhas de Diana no chão. Minha cabeça está suja, meus pés

frios, há pela casa o silêncio das ilhas reais. Estou deserta e sem

alternância. Lembro-me de uma série de fatos sem importância. Luto

contra a importância dos meus próprios instrumentos de Diana. A cor

estéril. Não é bem isso que eu quero dizer. Quando eu me referir a

Diana estarei também falando de todas as outras dentro de mim. Diana

é mais fácil, simplifica-se o percurso. Dizer “eu” afinal é esforço

a mais ou facilitação barata. E inverídica. Não dirás o teu nome em

vão. Por isso eu digo Diana nome dado e apreendido. Nome que nasceu

comigo ainda não me pertence. Porque eu deixei o trabalho, me sumo

na linguagem ou sumo com o que importa: o tempo, a virgindade do tempo,

a água, o corpo. Nem o medo intrínseco na ilha e os barulhos que não

vem devem existir. Diana depôs a vida de Diana: metonímias sem suti-

leza. Eu não explico nada do que é esta frase: uma metonímia sutil.

Depor os meus livros e lembrar não é ser hermética. Meu nome é Diana,

Page 149: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

21

que devo estar esperando o homem que me foi concedido. Este homem é

sem importância. E as coisas ou importam ou não. Eu falo nele por

querer falar das minhas limitações, como um detalhe de vida. Eu anoto.

este homem que osta do que Diana não gosta. Diana cumpre o seu dever.

Diana não vai rompê-lo nem deixar de abordar a cama do homem de

vez em quando. E dizer “nós” para os anos, arredondando o tempo.

(Anotado a mão em seguida:)

Isso daí deve de ser de outubro de 1970. Acompanhado

de projetos de continuação estruturada. Quase 2 anos

depois o velho fascínio à tona. Eu acho isto

daí muito interessante. Bato na máquina capenga,

sublinho, objetivo o trabalho, cada vez menos

meu, mais de fora, até pertencer a quem

por acaso o tiver. Sinto vontade de continuar,

lembro até da “situação inspiradora”, do

insight que nós tivemos naquele tempo sobre a

situação. Penso até em coloca no início

do trabalho: “em homenagem a C., musa

inspiradora”! Que acesso de babaquice. Durante

a datilografação eu pensei muitas associa-

ções, agora deixa pra lá. Adeus batucada.

1.8.7268

68 (CESAR, 2008, p.184).

Page 150: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

22

Anexo 13

Situação:

1ª parte x. casada com homem bem + velho

aspectos:

solidão – ausência – descobertas – relações

com o marido – longa doença

2ª parte lembranças do passado

Aspectos:

Infância – filha + nova 2º casamento do

pai; muitos irmãos; vida fechada, solidão; obscu-

ridade; medos

adolescência – noivado um rapaz vários

anos; tudo acaba um dia

casamento – não se explica. absurdo.

obscuridade outra vez – :

3ª parte redenção

(não é um romance cíclico)

aspectos:

?

importância do romance:

todos os fatos começam de dentro para

fora; é uma viagem em busca de um

significado para o presente, estando-se

oprimida entre o passado e a ausência69

69 (CESAR, 2008, p.180) para figuras 28 a 31 (p.112 e p.113) Viviana Bosi coloca ainda a seguinte nota:

“Este grupo, bem como os seguintes, faz parte de um grupo de papeizinhos de rascunho e anuncia, pelo

seu conteúdo, o projeto de um futuro romance. Nas próximas páginas temos os desdobramentos desta

Page 151: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

23

Anexo 14

Teve os olhos ingênuos de repente pela dor e sua mudez.

Porque perdia o pálido excessivo e o riso

do corpo largo. Mudou de

cor, havia então um tom amarelado fechando

suas medidas. Embora perfeito, seu andar

não mais fremia do sensual ainda intacto –

a dor fê-la mansa, ausente, inconsciência,

talvez mais agudamente sensitiva e tatilmente

aberta do que as mulheres donas totais

de si e do mundo. Não mais levantou rápida

e riu ante o desejo dos outros risos:

seus movimentos demarcavam

o verdadeiramente importante, além, além

das febres de espera ou posse.

Hoje eu tenho – ela disse. E sentiu

dentro do buraco da dor

tomando seu espaço por completo.

A princípio tentara abstrair o centro

a dilacerando, mas então

veio em direção ao centro e nele

se fez uma: onde o corpo absoluto

gravita lento, descoberto

de espuma, riso, palavra.70

idéia que não se concretizou.” 70 (CESAR, 2008, p.334) para Figura 32 (p.114).

Page 152: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

24

Anexo 15

A noite e sua nudez,

a voz da menina em admiração aberta,

alternância de sátira ou silencio entristecido

hoje sou testemunha da noite e sua nudez,

hoje assisto ao testemunho da menina e seu amor calado

há entre nós a pouca distância de quem sabe para sempre

e muito que nos separa

é o mudo do meu presente.

a menina, olhos de menina,

grandes na nudez da noite, no passageiro da criação,

nos sonhos sonhados, suspeitados,

a voz e o silêncio sobre o que sempre soubemos,

entre a paixão da menina

e o desejo da paixão que me anima,

ainda ausente como estou,

menina que perdi,

além do primeiro das coisas.

6.11.70

a partir de um estudo do roman-

tismo interrompido por um telefonema

da Eliane. De volta entrevi Gonçalves Dias:

“Eu amo a noite taciturna e queda!

Amo a doce mudez que ela derrama...”

da mudez à nudez, por que não?71

71 (CESAR, 2008, p.320) para Figura 34 (p.116)

Page 153: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

25

Anexo 16

eu quero a aceitação dos sorrisos estrangeiros entusiasmos percebidos o chuvisco na noite com frio chuva e terra eu chuva e terra indivisível na escuridão da vizinhança neste noturno tédio e as notas miúdas de pacificação eu quero sóis distantes do medo

Esses momentos de vida raros e preciosos – é preciso permanecer, com eles traço em direção ao eterno, posto que são breves e intocáveis. Imobilidade. Estou aprendendo o que esquecerei até o próximo.

vidas de passados vivo, longe, sem palavras nem criaturas

6/11/1970 Qualquer nota sobre poesia deve se referir ao que nos leva a escrever poesia. Não há nada mais fatal que o silêncio da noite avançando o fim de sábado. T.A. Arne e saudades em vagas. Hoje sinto exatamente o movimento da poesia, que nasce da ânsia incompleta, à falta do que nos complete e aos nossos movimentos. O silêncio e o apaziguamento do cravo clássico fazem a noite de poesia. A falta sem fronteiras, as memórias não mais memórias, o presente total e tranqüilo sem a morte, ou com o passado indefinível. Ao infinito deixo minha ânsia, nela espero e dela vivo.72

72 (CESAR, 2008, p.322) para Figura 35 (p.117)

Page 154: “TENHO GAVETAS SURPRESA” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em seu processo

26

Anexo 17

Figura 39: (CESAR, 2013, p.124)