“tenho gavetas surpresa” proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar os...
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ANA CLAUDIA GUIMARÃES SENNA
“TENHO GAVETAS-SURPRESA”:
O ARQUIVO DE ANA C.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
São João del-Rei
2015
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ANA CLAUDIA GUIMARÃES SENNA
“TENHO GAVETAS-SURPRESA”:
O ARQUIVO DE ANA C.
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras
da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito
parcial para obtenção para obtenção do título de Mestre em
Letras.
Área de concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura
Linha de pesquisa: Literatura e Memória Cultural
Orientadora: Profª Drª Suely da Fonseca Quintana
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
São João del-Rei
2015
3
ANA CLAUDIA GUIMARÃES SENNA
“TENHO GAVETAS-SURPRESA”: O ARQUIVO DE ANA C.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Profª Drª Suely da Fonseca Quintana – UFSJ (Orientadora)
_______________________________________________
Profª Drª Maria Andreia de Paula Silva – CES/JF
_______________________________________________
Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Junior – UFSJ
_______________________________________________
Prof. Anderson Bastos Martins – UFSJ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E
CRÍTICA DA CULTURA
2015
4
Para Ana C.
5
AGRADECIMENTOS
À Professora Suely pela confiança dedicada a mim ao aceitar o pedido de me
acompanhar nessa orientação intensa. Gratidão por estar ao meu lado o tempo
todo, por todos os ensinamentos e por me acolher, literalmente, em meio a
tantas intempéries.
À CAPES pelo financiamento da pesquisa, possibilitando seu desenvolvimento.
A Flávio Lenz pelo cuidado com a memória da irmã e pela solicitude com que
autorizou o uso do acervo de Ana Cristina Cesar para minha pesquisa.
À Manoela Purcell Daudt D’Oliveira, toda equipe da Coordenadoria de
Literatura e funcionários do Instituto Moreira Salles pela receptividade e
empenho em fornecer os materiais necessários a esta pesquisa.
Aos professores e funcionários do curso de Letras e do Programa de Mestrado
em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei.
À Karina Vale sempre muito solícita.
À Carla e demais funcionários da Biblioteca do Campus Dom Bosco.
Aos meus pais, Sayonara e Luiz Cláudio, pelo amor irrestrito e confiança em
minhas escolhas.
À Maria Clara, Vó Ana e toda a família pelo apoio de sempre.
A Matheus, companheiro nas madrugadas de pesquisa e em todos os estágios
dessa empreitada, obrigada pelo apoio, estímulo e paciência. À sua família
pela acolhida carinhosa.
Aos amigos, grandes incentivadores, que tanto me apoiaram e respeitaram
minhas ausências.
Aos colegas e, agora, amigos que o mestrado me proporcionou: Rafaela
Kelsen, Talita Nassur, Aracele Araújo, Daniela Martins e Henrique Alves; pelas
tardes repletas de conhecimentos e leituras que, certamente, fazem parte deste
trabalho.
6
RESUMO
O arquivo de Ana Cristina Cesar encontra-se sob guarda do Instituto Moreira
Salles, no Rio de Janeiro. A ele foram incorporados dissertações, teses e
matérias de jornais e revistas sobre a poeta, além de documentos enviados por
terceiros, como cartas que receberam de Ana C. Todavia, muito antes de se
tornar um acervo institucionalizado, ele era o arquivo pessoal e literário da
poeta. A proposta deste trabalho é percorrer esse arquivo buscando verificar
os processos de construção e uso do mesmo como ferramenta de trabalho em
seu processo de escritura. Para tal intento, nos amparamos nas teorias sobre a
Crítica Genética e os arquivos literário. Certos de que é impossível fazer a
leitura de um arquivo em sua completude, recorremos ao que diz Walter
Benjamin e Derrida sobre os rastros. Diante de uma poeta acometida pelo mal
de arquivo foi preciso explorar a leitura derridariana da pulsão de morte de que
trata Freud. Com essas leituras traçamos um perfil arquivista de Ana Cristina
Cesar verificando o modo como a poeta se arquiva para si mesma e para a
posteridade.
Palavras-chaves: Ana Cristina Cesar; arquivo literário; rastros; mal de arquivo.
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ABSTRACT
Ana Cristina Cesar’s archive is under the protection of Instituto Moreira Salles,
in Rio de Janeiro. To it were incorporated dissertations, thesis and newspaper
and magazine articles about the poet, besides documents sent by ordinary
people, such as letters received from Ana C. However, much before it turned
into an institutionalized collection, it was the personal and literary archive of the
poet. The purpose of this work is to go through this archive, aiming to verify the
construction processes and the use of it as a working tool in her process of
writing. To this, we looked for support in the theories about the Genetic Criticism
and the literary archives. Assured that it is impossible to completely read a
whole archive, we looked for what Walter Benjamin and Jacques Derrida say
about trace (spur). In front of a poet stricken by the file illness, it was needed to
explore the derridarian interpretation of the “death drive” conceived by Freud.
With these interpretations, we drew an archivist profile of Ana Cristina Cesar,
verifying the way the poet archives herself to herself and to posterity.
Key-words: Ana Cristina Cesar; literary archives; trace; archive fever
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Fac-símile “Índice Onomástico” 47
Figura 2: Capa do livro Cenas de Abril 53
Figura 3: Capa do livro Correspondência Completa 54
Figura 4: Capa do livro Luvas de Pelica 55
Figura 5: Fac-símile “P.A.C P.I.M” 56
Figura 6: Fac-símile “Memórias de uma criança” 57
Figura 7: Fac-símile “Só leia se estiver com o coração puro” 58
Figura 8: Fac-símile interior de “P.A.C P.I.M” 59
Figura 9: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 60
Figura 10: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 61
Figura 11: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 62
Figura 12: Fac-símile interior de “Memórias de uma criança” 63
Figura 13: Fac-símile “Meios de Transporte” 64
Figura 14: Fac-símile interior de “Meios de Transporte” 65
Figura 15: Fac-símile “Páginas impublicáveis” 71
Figura 16: Fac-símile versos manuscritas de “Litoral” 95
Figura 17: Fac-símile versos manuscritas de “Litoral” 96
Figura 18: Fac-símile versos manuscritas de “Litoral” 97
Figura 19: Fac-símile “Diagnóstico precoce” datiloscrito 98
Figura 20: Fac-símile “Diagnóstico precoce” manuscrito 99
Figura 21: Fac-símile “No cais outra vez” manuscrito 101
Figura 22: Fac-símile “Luta de classes” e “Despertar” 102
9
Figura 23: Fac-símile versões de “Despertar” 103
Figura 24: Fac-símile versões de “Despertar” 104
Figura 25: Fac-símile “Por enquanto” datiloscrito 107
Figura 26: Fac-símile versões de “Navegação da palavra” 108
Figura 27: Fac-símile “1” datiloscrito com comentários de Ana C. 110
Figura 28: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 111
Figura 29: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 111
Figura 30: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 112
Figura 31: Fac-símile Papeizinhos de Ana C. 112
Figura 32: Fac-símile Manuscrito passado a limpo – Frente 114
Figura 33: Fac-símile Manuscrito passado a limpo – Verso 114
Figura 34: Fac-símile “A morte e a sua nudez” manuscrito 116
Figura 35: Fac-símile “A noite e a sua nudez” manuscrito 117
Figura 36: Fac-símile “Carta de despedida” datiloscrito 118
Figura 37: Ana C. 128
Figura 38: A máquina de escrever 129
Figura 39: Fac-símile “Índice Onomástico” 2 152
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1. “TENHO GAVETAS-SURPRESA” 17
1.1 As gavetas de escritores 18
1.2 As gavetas-surpresa de Ana C. 26
1.3 Cartas Marcadas: a correspondência de Ana C. 31
1.4 Edições fac-similares, obra e autoria: pontuações 42
1.5 Os livrinhos de Ana C. 52
2. “Uma voz me delineia: VORAZ” 67
2.1 Uma sereia de papel: Ana C. como arquivo 68
2.2 Prontos mas rejeitados: pulsão de morte no arquivo de Ana C. 87
CONSIDERAÇÕES FINAIS 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 123
ANEXOS 127
11
INTRODUÇÃO
Começando com ela, Ana Cristina: Biografia, não. Mulher.
Ana Cristina Cesar nasceu no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1952. Filha de Waldo
Aranha Lenz Cesar e Maria Luiza Cesar foram grandes incentivadores da poeta, que
começou a ditar poemas aos seis anos, antes mesmo de qualquer domínio da escrita;
e aos sete teve seus primeiros poemas publicados na Tribuna da Imprensa.
Além de poeta, ela foi professora, ensaísta e tradutora. Trabalhando sempre, de
alguma maneira com a palavra. Como tradutora, destaca-se seu trabalho com o conto
Bliss, de Katherine Mansfield, seguido de 80 anotações que lhe rendeu o título de
Master of Arts na Universidade de Essex, durante o segundo período em que viveu na
Inglaterra, entre 1979 e1981.Participou ativamente da criação do jornal alternativo
Beijo e militou no jornalismo engajado de seu tempo através de artigos em outros
periódicos da época, como o Opinião.
Ana C. transitou no cenário cultural carioca da década de 1970. Por esse motivo, sua
poesia ao mesmo tempo em que é associada à Poesia Marginal, pelo seu convívio
com poetas atuantes no movimento, afasta-se dela pela sua dicção poética mais
sofisticada e menos voltada para o antiliterário pregado pelos colegas, Ana “viveu os
marginais, colheu alguns frutos ali, mas destoava dos colegas” (MALUFE, 2006, p.23).
Ainda assim acabou tornando-se um dos nomes mais expressivos do movimento e
uma espécie de musa e mito da Geração Mimeógrafo.
Musa pela beleza pela qual é sempre lembrada: “loura, linda, piscando marota aqueles
cílios descoloridos no olho esquerdo, por trás das grossas lentes de míope”
(MORICONI, 2006, p.19). Mito pela marca do emblema que a envolve na vida e na
morte. Em vida pela poesia marcadamente enigmática e de um mistério até mesmo
melancólico. Na morte, por ter sido assinalada pela imposição de seu gesto derradeiro.
Em outubro de 1983, menos de um ano após lançar A teus pés, seu primeiro
livro por grande editora, Ana salta para o fim da própria vida. Pesquisas
envolvendo casos assim, especialmente tratando-se de poetas em plena
produção, acabam por focar nesse gesto indissociável da biografia, mas não
necessariamente da obra, “como se a sombra do suicídio da autora tivesse
caído permanentemente sobre o texto” (CARVALHO, 2003, p.15).
Nossa pesquisa não protagoniza o suicídio como uma questão fundamental.
12
Todavia, se colocar holofotes para esse aspecto e fazer dele fio condutor de
sua escrita não parece justo com sua tão vasta poética, tampouco parece
aceitável desviar o olhar diante do peso do ato final.
Em meio a esse impasse entra em cena o arquivo da escritora. Guardado pelo
Instituto Moreira Salles o arquivo aparece como uma presença de Ana C. em
sua ausência. Configurando um espaço no qual a poeta manifesta-se
subjetivamente a cada caminho trilhado.
Seguindo, Aventura bruta (em versos): trajetória da pesquisa
Foi em meados do quinto período do Curso de Letras que conheci Ana Cristina Cesar.
Uma colega chegava da biblioteca do Campus Dom Bosco trazendo nas mãos o livro
que - só para dizer o mínimo - mudaria os rumos da minha graduação. Não há como
negar, aquela capa com o meu (o nosso) nome impresso em letra cursiva cor-de-rosa
exerceu enorme atração sobre mim. Só depois vi seu rosto na capa com o olhar baixo
na fotografia em preto e branco. Debochei da colega que portava um livro com meu
nome na capa e foi ela quem me sugeriu a leitura, com o argumento de que eu iria
adorar. Desconfio que nem ela sabia o quanto estava certa.
O livro ao qual me refiro é Correspondência Incompleta (1999), organizado por
Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda, um compilado de cartas
escritas por Ana C. e enviadas a quatro amigas entre os anos 1976 e 1980. As cartas
transitam entre os mais diversos assuntos: contam da vida pessoal e sobre viagens,
tratam dos eventos e das pessoas envolvidas no circuito cultural da época, novos
livros ou discos lançados, matérias em revistas, discute-se literatura e o fazer poético
marca presença com os constantes pedidos de crítica e sugestões às suas poesias.
O interesse por escrita de mulheres, cartas e diários íntimos já era latente em mim e
foi com base em algumas dessas cartas que escrevi, sob orientação da Professora
Suely da Fonseca Quintana, meu trabalho de conclusão de curso intitulado
"'ABRANGES UMA ANA': As facetas da formação intelectual de Ana Cristina". O
trabalho foi apresentado em novembro de 2012 e buscava, por meio de seus escritos
poéticos e teóricos, além das cartas, traçar um perfil de sua trajetória intelectual.
Não demorou muito para que a poesia de nuance intimista de Ana Cristina Cesar me
envolvesse e fizesse buscar outros olhares em sua escrita poética. Dessas leituras
13
escrevi o ensaio "Melancolia em Ana C.: Essas areias pesadas..." versando sobre
aspectos de melancolia na obra de Ana C. O ensaio foi apresentado no VI Colóquio
Mulheres em Letras da UFMG1 e publicado nos anais do evento.
O interesse por seus rascunhos apareceu com a leitura do livro Antigos e Soltos:
poemas e prosas da pasta rosa (2008), com fac-símiles dos papéis de Ana Cristina,
organizados pela pesquisadora Viviane Bosi. Surge a partir de então um certo desejo
voyeur de conhecer o processo de criação dos poemas, remexendo, por assim dizer,
na escrivaninha do escritor. Neste momento tomar conhecimento da existência das
Teorias em Crítica Genética, através da fala da Professora Eliana da Conceição
Tolentino em sua comunicação no Ciclo de Palestras: O jornal como recurso didático2,
foi de grande valia para começar a pensar este trabalho.
Para a inscrição no mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del Rei
a proposta inicial, sob o título Uma sereia de papel: a poesia e os rascunhos de Ana
Cristina Cesar na perspectiva da Crítica Genética, pretendia elaborar um trabalho de
análise dos manuscritos baseado nos fundamentos da Crítica Genética. Entretanto, o
projeto parecia longo demais para o curto prazo do mestrado. Além do mais, logo após
minha aprovação no mestrado descobri que havia um artigo escrito por Roberto Zular
cujo título: Sereia de papel: algumas anotações sobre a escrita e a voz em Ana
Cristina Cesar3 muito se aproximava do meu, o que me obrigava a trocá-lo.
As visitas as acervo de Ana Cristina Cesar no Instituto Moreira Salles do Rio de
Janeiro me fizeram conhecer mais de perto o material que eu pretendia pesquisar.
Devido à grande quantidade de papéis e a heterogeneidade que imperava entre eles
tornava-se claro que seria pouco proveitoso selecionar apenas alguns para uma
análise geneticista. Ademais, conhecer a maneira como a poeta organizava seus
cadernos de trabalho desde os primeiros escritos, ainda na infância, sobrepôs um
outro olhar para o arquivo. Dessa forma um novo objeto de pesquisa se impunha: o
próprio gesto de conceber o arquivo latente em Ana C.
De volta às cartas presentes em Correspondência Incompleta (1999) observamos a
pertinência do intento: não são poucas as cartas nas quais Ana C. descreve sua
fixação pelo arquivamento e pela coleção de livros, postais, fotografias, marcadores de
1 VI Colóquio Mulheres em Letras: Literatura e Diversidade (2014) FALE/UFMG. Disponível em:
http://media.wix.com/ugd/030d3a_70fd6b702d6c41c4ab252027dc011752.pdf 2Ciclo de Palestras: O jornal como recurso didático - PIBID - Universidade Federal de São João del Rei
(UFSJ). 2013 3 Apresentado no colóquio Ana Cristina Cesar: peça bliss, realizado pelo Laboratório de Poéticas
Contemporâneas da USP em 2012.
14
páginas, lembranças de viagens... Vimos nisso uma espécie de entrada para percorrer
o arquivo da poeta, que apesar de totalmente catalogado, ainda configura um labirinto
de papéis.
Alguns percalços, desta vez não pelo arquivo, mas ao longo do mestrado, trouxeram
para minha caminhada uma exímia companheira de viagem. A orientação da
Professora Suely da Fonseca Quintana revigorou a pesquisa com novos
embasamentos teóricos fundamentais para a trajetória que pretendíamos traçar.
Foi assim que, além do Mal de Arquivo (2001) que já estava previsto para compor o
arcabouço teórico, outras teorias de Jacques Derrida vieram contribuir para nossa
linha de pensamento: O animal que logo sou (2002), com a ideia de rastro através do
qual percorremos o acervo, e A farmácia de Platão (1992), com o conceito de
phármakon que se tornou tão caro à nossa pesquisa. Esses textos, juntamente com os
conceitos de Pulsão de Morte e a Compulsão à Repetição desenvolvidos por Freud,
ajudam a compor o segundo capítulo da dissertação, no qual procuramos, na primeira
parte, estabelecer Ana Cristina Cesar ao mesmo tempo como uma arquivista e um
arquivo. Na segunda parte, a leitura do acervo aparece como protagonista com a
presença de alguns fac-símiles do acervo e do livro Antigos e Soltos (2008).
Investigamos a relação entre a compulsão pela escrita, ou aquilo que chamo de
"perseguição da palavra", e a pulsão de destruição do acervo. A pulsão de morte
aparece como ponto importante, porém sem que fosse dado um tratamento
psicanalítico ao objeto.
Antes de tudo isso, foi necessária a concepção de um capítulo para tratar da trajetória
das teorias de Crítica Genética – da qual tomamos o objeto de pesquisa, os
manuscritos. Foi preciso, ainda, teorizar os arquivos de escritores, visto que são eles
os suportes de guarda dos manuscritos modernos e ambos interessam à nossa
pesquisa. Para dar conta dessas teorias, o capítulo de abertura da dissertação faz
uma revisão, levantando os conceitos mais relevantes, com suporte de Louis Hay
(2007), Almuth Grésillon (2007), além de um apanhado de artigos esclarecedores de
Eneida Maria de Souza e Reinaldo Marques.
Ainda no primeiro capítulo, reservamos uma seção para tratar especificamente do
acervo de Ana Cristina Cesar instalado na casa da Gávea, sede carioca do Instituto
Moreira Salles. Outro item destrincha a relação de Ana Cristina com sua
correspondência, visto que o já mencionado livro de cartas é para nossa pesquisa
referência literária e teórica. Para fechar o primeiro bloco de discussões, o último
15
subcapítulo se dedica aos “livrinhos” de Ana C., modo carinhoso com que tratava suas
publicações independentes, antes de serem publicadas pela Editora Brasiliense, e
também os “livrinhos” da infância da poeta muito bem elaborados em cadernos, com
capa, ilustrações e até mesmo “editora”. Já nesse momento alguns fac-símiles
reproduzidos do acervo fazem parte da composição da dissertação.
Pesquisar um material de acervo demandou ainda um trabalho burocrático que
envolveu pedidos de autorização a Flávio Lenz, irmão de Ana Cristina e responsável
pelos direitos de imagem; e termos de compromisso e responsabilidade com o
material, firmado com o Instituto Moreira Salles. Burocracias resolvidas, a última etapa
foi a transcrição dos documentos para facilitar a leitura dos manuscritos e compor os
anexos ao trabalho.
16
CAPÍTULO I
“TENHO GAVETAS-SURPRESA”
17
1.1 As gavetas de escritores
Bem aventurado o colecionador!
Bem aventurado o homem privado! (W. Benjamin)4
O escritor argentino Jorge Luis Borges costumava mencionar em entrevistas
que se criou cercado pela enorme biblioteca de seu pai. Já cego e ocupante do
cargo de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina escreveu um poema no
qual dizia imaginar o paraíso como algum tipo de biblioteca5. Para os
pesquisadores em crítica genética e crítica biográfica, o paraíso talvez seja um
pouco mais que isso, considerando-se o interesse patente dessas correntes
contemporâneas em deslindar a biografia intelectual do autor e das obras,
através do conhecimento e estudo dos bastidores da criação literária.
No cenário uma escrivaninha, máquina de escrever posta, luz de luminária,
uma biblioteca ao fundo, lápis, canetas e as gavetas e pastas entupidas de
papéis. Manuscritos, datiloscritos, rasurados, passados a limpo, diversas
versões ora iguais, ora minimamente, ora completamente diferentes. Alguns
com marcas de que foram desamassados, machucados pela insatisfação do
escritor, resíduos que se tornam índices do árduo processo de criação. É
inegável, o recanto do escritor tem morada no imaginário do leitor/pesquisador.
Eneida Maria de Souza, no artigo Biografia – um bem de arquivo (2011), ao
introduzir o leitor à tendência crítica, voltada para as fontes primárias, explica
que a prática não expressa uma visão conservadora, mas a revitalização do
olhar sobre a escrita literária. Para reiterar seu pensamento, Souza cita a
máxima de Jean-Louis Lebrave, crítico francês e um dos responsáveis por
difundir a crítica genética no Brasil, a qual tomamos também de empréstimo: “o
manuscrito será o futuro do texto”6. Visando ao caráter futuro do texto, sobre o
qual expressa Lebrave, muitos trabalhos começaram a ser pensados com o
4 In: Obras escolhidas II – Rua de mão única (2000) 5 Em seu Poemas dos dons (BORGES, 2000) escrito em 1955: “eu, que me figurava o paraíso / tendo uma
biblioteca por modelo.” 6 A expressão foi buscada no texto de Eneida Maria de Souza, “A biografia – um bem de arquivo” (2011,
p.40).
18
olhar voltado para o percurso da escrita.
A Crítica Genética começa a ser difundida, na França, a partir da década de
1960, com seu objetivo principal em percorrer o processo de criação,
apontando alternativas pensadas pelo autor para seu texto, trazendo a público
os bastidores da criação. Ou ainda, com as palavras de Roberto de Oliveira
Brandão na apresentação do livro Criação em Processo: ensaios de crítica
genética (2002):
[...] "mapear" o percurso da escritura, com suas variantes, rasuras, emendas e toda sorte de modificações que configuram a "gênese" do texto como o espaço onde o escritor testa as muitas alternativas que o processo criativo, tanto como experiência pessoal quanto como prática histórica e social da escritura, vai pondo diante de si (p.9).
O processo de mapeamento da escrita ao qual Brandão faz referência diz
respeito a sucessivos atos de descrição dos manuscritos, a fim de que se torne
possível analisar os caminhos de escrita pelos quais o escritor atravessou.
Todavia, alguns trabalhos – e a presente pesquisa integra esse grupo – não
visam mapear com o sentido de estabelecer um itinerário, ou seja, traçar uma
linha que busque alguma origem, que passe por um trajeto, até chegar a um
fim (que talvez seja a obra literária “acabada”, o livro). Nosso interesse, como
se verá adiante, está no manuscrito literário, o protagonista dos processos de
criação, objetificando o manuscrito literário como metonímia do arquivo do
escritor e testemunha dos rastros deixados por ele.
A definição de crítica genética do artigo Devagar: obras (2002) escrito por
Almuth Grésillon, parceira de Lebrave em trabalhos com os manuscritos de
Marcel Proust e também precursora da corrente em nosso país, parece
dialogar melhor com nossa proposta:
Seu objeto: os manuscritos literários, na medida em que trazem o traço de uma dinâmica, a do texto em processo. Seu método: o desnudamento do corpo e do curso da escrita e a construção de uma série de hipóteses sobre as operações de escrita. Sua mira: a literatura como um fazer, como atividade, como movimento (2002, p.147).
Consoantes com a conceituação de Grésillon, nossa pesquisa mira a literatura
como movimento, um gesto inacabado. Porém não partiremos do método de
19
levantamento de hipóteses sobre as possibilidades apontadas pelo autor para
seu texto, já que não é nosso interesse mapear uma origem.
Em Elementos de Crítica Genética – ler os manuscritos modernos (2007),
Grésillon empreende a tarefa de elaborar importante estudo com as principais
definições para a introdução em crítica genética. Entre os conceitos
apresentados pela autora o mais caro deles à nossa pesquisa é a noção de
manuscrito moderno, o qual, segundo ela:
(…) porta os traços de um ato, de uma enunciação em marcha, de uma criação que está sendo feita, com seus avanços e seus bloqueios, seus acréscimos e seus riscos, seus impulsos frenéticos e suas retomadas, seus recomeços e suas hesitações, seus excessos e suas faltas, seus gastos e suas perdas (GRÉSILLON, 2007, p.52).
Referimo-nos, portanto, ao manuscrito moderno. A palavra manuscrito
doravante deixa de corresponder aos antigos pergaminhos escritos à mão e
passa a representar, para nós, o suporte do caos da criação. Se antes eles
eram meras peças isoladas dentro do arquivo, agora recebem o status de "[...]
testemunhas materiais de uma dinâmica criadora" (GRÉSILLON, 2007, p.29).
O trabalho do crítico geneticista é trazer à luz esses documentos em um ato
que aponta para o “desejo de comunhão”, de acordo com Almuth Grésillon,
pois o pesquisador propõe-se a compartilhar e desvendar os segredos da
criação. Ao fazer isso o crítico acaba por extrapolar o texto de alguma forma,
imprime um novo olhar, levantando "[...] hipóteses sobre os caminhos
percorridos pela escritura e sobre as significações possíveis desse processo de
criação [...]" (GRÉSILLON, 2007, p.29 e p.30).
Para Louis Hay, em A literatura dos escritores – Questões de crítica genética
(2007), a morada do autor é o instante da criação. Ali, no tempo da escritura, é
que o autor tem seu momento de sobrevida: “Ele [o texto em devir] é o produto
de um movimento do espírito (pensamento, pulsão, reação), que se faz forma,
e traz à luz o trabalho da pena” (HAY, 2007, p.13), é nesse instante que a
literatura começa. O teórico defende que toda escritura enquanto movimento
que visa à arte pertence à literatura. Eis um dos méritos dessa abordagem
20
crítica, revelar a literatura para além do livro pronto em suas diferentes edições,
englobando o que há entre estas e antes: em seu devir.
O autor destaca ainda o fato de ser único o momento de criação, aquela
experiência não poderá ser nunca vivenciada por outro além do próprio autor.
Neste sentido, o manuscrito aparece como um índice e testemunha do trabalho
executado. Ao debruçar-se sobre esses papéis o crítico no máximo decifrará
“os traços de um ato” e jamais “o movimento de um espírito” (HAY, 2007, p.19),
ou seja, não se trata de um jogo de adivinhações, mas de minuciosa
observação das marcas deixadas no processo de criação literária.
Não significa, no entanto, qualquer busca pela gênese do texto. As noções de
origem já foram refutadas e não serão reivindicadas no presente trabalho.
Apenas interessa pensar a literatura em seu processo, registrada pelos
manuscritos e datiloscritos, por considerar que "[...] desde que o pensamento
ou a imaginação os tocaram [os manuscritos], todos, do documento inerte [...]
até a página inspirada, encontram-se dotados de vida e convocados a
desempenhar seu papel num projeto de escritura", conforme esclarece Hay
(2007, p.17). Ao atinar para a literatura em seu devir, torna-se possível pensar
em métodos, materiais e procedimentos. Essas abordagens, caras a outras
manifestações artísticas como a pintura, pareciam distantes da crítica na arte
literária, antes do aparecimento da crítica genética que “sublinha, assim, a
antiga ambição de procurar na arte seu próprio princípio de explicação” (HAY,
2007, p. 28), agora tangíveis também na literatura.
Ao lançar reflexões acerca da crítica genética contemporânea, Hay vislumbra
um retorno ao passado “a fim de encontrar referências que possam balizar uma
reflexão comum” (HAY, 2007, p. 80), em busca de certa unicidade nos estudos
de crítica genética. Isso porque há uma multiplicidade de acepções suportadas
pela crítica contemporânea que visa ao trabalho com o manuscrito literário.
Trabalhos esses os quais muitas vezes tendem a confundir a manuscritologia
com a crítica genética propriamente dita. Neste sentido, o termo tende a
ampliar o campo de pesquisa passando a abordar não apenas o rascunho
escrito à mão, mas também os escritos à máquina, desenhos,
21
correspondências, bilhetes de trem, postais e outros escritos. Abarcando assim
todo o arquivo do escritor. Apesar da crítica de Louis Hay com relação à
dispersão da crítica, nossa proposta está consoante com a visão mais recente
e ampla da abordagem, a qual visa aos manuscritos enquanto plural, uma
“abundância de objetos” cujos dois aspectos se cruzam, a saber: o material e o
intelectual. Partimos de pontuações que esclarecem o que é a crítica genética
– e a inevitável associação com o manuscrito – para chegar ao ponto que mais
importa para esse trabalho: o arquivo literário.
Considerando que, a partir da primeira parte do século XX, a literatura tomou
como novo rumo a relação entre o autor e sua obra, era de se esperar que
esse trânsito não se limitasse à criação acabada, mas abarcasse toda a
travessia, evidenciando assim o ateliê dos escritores e seus materiais de
trabalho. Entendemos que o arquivo é composto pelo que resta dos processos
de criação pelos quais passou o escritor, destarte, não pareceu viável iniciar
essa pesquisa de outra forma a não ser balizando as noções de manuscrito
moderno. Não visamos, aqui, à análise geneticista dos manuscritos literários,
embora alguns destes façam parte do nosso objeto de pesquisa. Contudo,
somente tomamos de empréstimo alguns postulados da teoria genética para ler
esses manuscritos como um material presente e, até então, engavetado no
laboratório do escritor.
No que tange à gaveta, Gaston Bachelard acusa Bergson de empobrecer a
palavra colocando-a como metáfora da organização do pensamento
racionalista. Disposto a reparar a injustiça, Bachelard não se furtou em dedicar
um capítulo de sua obra A poética do espaço (1988) para tratar das gavetas,
dos cofres e dos armários, essas imagens da intimidade que acompanham o
homem, “grande sonhador de fechaduras”, em seus esconderijos, guardando e,
quando necessário, dissimulando seus segredos. Em Bergson a metáfora é,
desdenhosamente, segundo Bachelard, usada para exprimir os conceitos e
assim classificar os conhecimentos separadamente – um em cada gaveta. Para
o filósofo da poética do espaço há um risco em transformar metáforas em um
pensamento, pois elas são falsas imagens do pensamento e devem ocorrer
apenas com um “acidente de expressão”. Ainda para Bachelard, as gavetas
22
são objetos-sujeitos, pois “Têm, como nós, por nós e para nós, uma intimidade”
(1988, p. 91). As gavetas, aparentemente triviais no cotidiano de um lar,
configuram-se local de grande valor para a vida íntima, preciosos esconderijos
daquilo que não se quer exposto.
Engavetam-se processos considerados causas perdidas, engavetam-se
projetos deixados de lado, engaveta-se o porta-retratos para que não mais
exiba sobre a estante a face de um antigo amor. A gaveta também é o destino
das contas já pagas e das cartas – no tempo em que elas ainda transitavam
entre os lares sem causar estranhamento – e de todas as quinquilharias que
não mais queremos expostas, mas que tampouco intentamos descartar de
maneira definitiva. É possível “encontrar” coisas em gavetas, porque elas são
exímias guardiãs do esquecimento. Paradoxalmente, no entanto, a gaveta não
permite a aniquilação da memória, pois o esquecimento inerente a ela é
parcial, momentâneo, dura apenas o tempo em que ela permanece fechada.
Remexer as próprias gavetas é como visitar seu museu particular, seus
pertences, ainda que sejam absolutamente conhecidos, tornam-se novidades
rememoradas. Esse é o motivo pelo qual organizar uma gaveta de guardados é
tarefa de grande imersão, podendo levar horas, dias, ou não terminar nunca de
fato, se considerarmos que o acúmulo, amontoado ou mesmo o caos ali
instaurado é intrínseco ao ostracismo da gaveta.
Miguel Sanches Neto (2011) teoriza sobre a importância da desordem no
ambiente de trabalho do escritor. Para ele, “as gavetas são as representações
mais próximas do caos original” (2011, p.65). Nesse espaço é permitido ao
escritor engavetar projetos, guardar sua correspondência, fotografias, recortes,
esconder dos leitores aquilo que ainda não está pronto, mas que foi reservado
para o porvir. Ali não é preciso que haja ordem, pois é ele, o colecionador de
seus escritos, que ordena o espaço caótico de seus guardados.
Metáfora ideal para se pensar o arquivo, a gaveta de um escritor é a arca do
seu tesouro. Nela repousam seus rascunhos, várias versões, papéis avulsos,
ideias soltas, manuscritos. Se, conforme Neto (2011) nos mostra, os objetos do
23
escritor/colecionador apontam para fragmentos de sua autobiografia, num
mesmo sentido, em suas gavetas materializam-se as autobiografias de suas
obras ou autobiografia da escrita, pois cada bilhete, cada papel rasurado ali
engavetado remete a narrativas que compõem a escrita do arquivo. Também
suas coleções podem ser tomadas como atos autobiográficos. Isso porque, de
acordo com o ensaio do historiador Ulpiano Bezerra de Meneses (1998), os
objetos materiais podem ser lidos como “processos cognitivos encarnados”, ou
seja, seu valor extrapola o intrínseco, mercadológico e ele passa a conter em si
um valor simbólico, tornando-se objeto de memória. A necessidade do suporte
físico advém da nossa incapacidade humana em armazenar plenamente tudo o
que vivemos. Assim, o fetiche pelos objetos busca sanar o problema da (falta
de) memória com fotografias, objetos familiares, pequenas lembranças dos
lugares por onde passamos ou das pessoas que passaram por nós. Ainda
segundo Meneses, é a própria materialidade dos objetos que propicia essa
fetichização: “(…) a simples durabilidade do artefato, que em princípio costuma
ultrapassar a vida de seus produtores e usuários originais, já o torna apto a
expressar o passado de forma profunda e sensorialmente convincente” (1998,
p.90).
Apesar de expressarem o passado, o compromisso firmado pelas relíquias é
com o presente. Isso porque é no agora, e não no passado, que são
produzidos sentidos fetichizantes para os objetos de memória. O significado só
lhes é imanente no presente, e não no passado, quando não passavam de
objetos e instrumentos de uso comum.
Visando, a partir da coleta dessas coleções de objetos de memória, à
construção ficcional de uma origem – que denuncia certa busca também pela
verdade do arquivo – alguns acervos remontam cenograficamente os
laboratórios de escritores. O exemplo mais próximo está na Universidade
Federal de Minas Gerais que abriga o Acervo de Escritores Mineiros, o qual
recria os escritórios de nomes como Henriqueta Lisboa (1904 – 1985), Murilo
Rubião (1916 – 1991) e Abgar Renault (1901 – 1995), configurando importante
centro de pesquisa e preservação da memória cultural e literária mineira.
Localizado na Biblioteca Central do Campus Pampulha, o acervo instala uma
24
montagem de caráter cenográfico e museográfico. A reprodução do laboratório
de criação do escritor – feito a partir de pesquisas com seus familiares – expõe
mesas de trabalho, estantes com livros, cadeiras ou confortáveis poltronas de
leitura. A presença das máquinas de escrever ou canetas postas sobre a mesa
vislumbram a recriação do instante da escritura – a busca pela origem – e são
um convite ao visitante, leitor do acervo, a participar da intimidade do autor e
sua criação.
Além da montagem mobiliária dos cenários, o fundo conta ainda com suas
bibliotecas, correspondências, manuscritos e datiloscritos, fotografias, pinturas,
documentos pessoais, indumentária, coleções. Documentos raros, como
primeiras edições autografadas, e objetos pessoais de grande valor simbólico,
como óculos e espadas dos imortais da Academia Brasileira de Letras, são
expostos protegidos por vitrines. Ao serem colocados no acervo, esses objetos
são ressignificados, tornando-se agora objetos de memória, pois remetem a
seus antigos donos, de acordo com Reinaldo Marques no ensaio Grafias de
coisas, grafias de vida (2009): "Ao serem apropriadas, as coisas guardam uma
memória dos sujeitos que dela se apropriam. Transformam-se em dispositivos
de construção de subjetividades, minando a clássica oposição entre sujeito e
objeto." (p. 339). Assim os objetos acabam por conter, eles próprios, uma
biografia, carregam em si a história de sua relação com as pessoas pelas quais
eles foram tocados ou às quais eles pertenceram. É o que nos conta Reinaldo
Marques sobre o Diário Alemão, uma série de cahiers que pertenceu a
Guimarães Rosa, com anotações diversas escritas enquanto trabalhou como
cônsul adjunto na Alemanha. Cópias desse material foram parar nos fundos
documentais de Henriqueta Lisboa – sob tutela do Acervo de Escritores
Mineiros da UFMG – entrecruzando assim as biografias dos dois autores e
também a autobiografia material desses objetos.
Não se pode ignorar, contudo, que antes de se alocarem em acervos, museus,
casas de colecionadores e afins, esses objetos já faziam parte de um arquivo:
o arquivo que o escritor faz de si. Seus guardados, sua inscrição, seus objetos,
seu arquivar da própria vida, usando o termo de Philippe Artières (1998). Este
nos ensina, aliás, que: “arquivar a própria vida não é privilégio de homens
ilustres (de escritores ou de governantes). Todo indivíduo, em algum momento
25
da sua existência, por uma razão qualquer, se entrega a esse exercício.” (p.
31). O autor nos prova que a prática arquivística não é exclusividade ou
excentricidade dos escritores, mas algo cuja prática civil e social nos impõe, já
que somente existimos se inscritos em registros diversos que devem ser
mantidos guardados. Nas palavras do teórico:
O indivíduo deve manter seus arquivos pessoais para ver sua identidade reconhecida. Devemos controlar nossas vidas. Nada pode ser deixado ao acaso; devemos manter arquivos para recordar e tirar lições do passado, para preparar para o futuro, mas sobretudo para existir no cotidiano (ARTIÈRES, 1998, p. 14).
A existência condicionada à prática de arquivamento é exemplificada por
Artières com o álbum de fotografias. Portador da memória da família, o álbum é
construído como uma narrativa da linhagem dos antepassados. Os melhores
momentos, as maiores conquistas ficam ali registradas como provas
indubitáveis da boa reputação familiar, a ser preservada para a posteridade.
Se o arquivamento de si, como vimos, não é exclusividade dos escritores, a
diferença, talvez, resida no fato de que os arquivos de escritores não são
meros locais de guarda, mas “usinas de produção de representações do
escritor” (MARQUES, 2012, p.63), mesmo que ainda não estejam recebendo
devidos cuidados e valorização, conforme denuncia Reinaldo Marques,
estudioso dos arquivos literários e um dos curadores responsáveis pelo Acervo
de Escritores Mineiro. Por outro lado, ainda nesse estudo, Marques (2012)
aponta o crescente empenho em mudar esse quadro, principalmente por parte
de universidades e fundações, que, por sua vez, fomentam interesse nas
pesquisas em acervos de escritores e fontes primárias da literatura.
Em outro trabalho, O arquivamento do escritor (2003), ao tratar da sua
experiência com o Acervo de Escritores Mineiro da UFMG, Marques destaca
uma dupla operação de arquivamento presente nos arquivos de escritores: “o
escritor executa uma série de práticas arquivísticas, constituindo arquivos
literários, e, ao mesmo tempo, se arquiva” (p.142). Marques se refere aos
guardados dos escritores, sua biblioteca, seus recortes de jornais e revistas,
seus discos, suas correspondências. Ao criar um importante espólio literário o
escritor fala de si, de suas escolhas, suas preferências, seu cânone. Através de
26
seu arquivo pessoal ele elabora a sua imagem e “preserva a memória de sua
formação e relações afetivas e intelectuais” (MARQUES, 2003, p.142).
Em seu texto Acervos literários e imaginação histórica: o trânsito entre os
saberes (2000), ainda discutindo a questão dos acervos literários, Marques
afirma que o arquivo não é uma realidade pronta e acabada, mas, ao contrário,
“é construído e desconstruído pelo olhar do sujeito, que, ao cumprir nele um
itinerário, deixa suas pegadas, seus vestígios, instituindo um certo roteiro de
viagem” (p.34). Daí a importância de trilhar esses caminhos do arquivo, não
para buscar estabelecer uma ordem, tarefa esta que seria pouco proveitosa,
mas apontar outros caminhos de leitura.
Revisadas as literaturas da crítica genética e dos arquivos de escritores,
delineados nossos objetivos e nossa abordagem, acumulamos arcabouço
teórico para que possamos, enfim, proceder à prática. Vamos nos dedicar, a
partir de agora, à tarefa de abrir as gavetas, percorrer e explorar os arquivos da
poeta carioca Ana Cristina César.
1.2 As gavetas-surpresa de Ana C.
Quando você morrer os caderninhos vão todos
para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias.7
O interesse em manter acervos de escritores aponta para o desejo do
leitor/pesquisador em conhecer os bastidores do processo de criação literária.
Algumas casas de guarda, todavia, não comportam o tratamento museográfico.
Na falta da montagem dos laboratórios dos escritores, a aura visada pelos
pesquisadores fica por conta do desvelamento dos manuscritos.
É o caso do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. A casa da Gávea
construída na década de 1950 abriga, entre outros, o acervo da poeta carioca
Ana Cristina César. Ainda que o acervo de Ana C. não esteja montado
cenograficamente, em suas caixas já totalmente catalogadas e em processo de
digitalização, ele acolhe uma poeta colecionadora de palavras e de relíquias,
bilhetes de trem, guardanapos, postais. Além máquina de escrever, antes um
instrumento de trabalho, agora, dotado de valor simbólico e carregado de
memória, esse objeto corporifica a poeta em meio a seus papéis. É também
7 Ana Cristina César trecho de Luvas de Pelica (In: Poética, 2013, p.55)
27
testemunho dos bastidores de criação e é feito ateliê ou escritório da autora,
com seus papéis manuscritos de poesias. Ali repousam cerca de mil itens entre
sua biblioteca e os papéis das suas "gavetas-surpresa".
O conjunto foi doado pela família, depois de anos encaixotados sob a guarda
de seus pais, Waldo Aranha Lenz Cesar e Maria Luiza Cesar, e do amigo, o
poeta Armando Freitas Filho, a quem Ana C. designou a custódia de seus
textos. Entre os materiais presentes sob a guarda do Instituto está sua
biblioteca, composta por cerca de 797 itens (incluindo livros e periódicos,
revistas de artes e teses de doutorado), 300 documentos de sua produção
intelectual, com manuscritos os mais diversos e muitos cadernos de notas, 40
itens de correspondência, 590 recortes de jornais e de revistas. Além de
matérias de revistas e trabalhos sobre Ana C., desenhos, documentos
audiovisuais e provas de impressão de livros8.
Em carta à amiga Ana Cândida, presente no livro Correspondência Incompleta
(1999), a própria Ana Cristina inventaria seu acervo. De acordo com a poeta
são: “Cartas, fotografias, postais, bilhetinhos, passagens de trem, carteirinhas
de colégio, desenhos... Enfim, toda essa parafernália aguda que todo mundo
deve ter” (CESAR, 1999a, p.241). A reunião de cartas publicadas, aliás, é farta
em passagens, nas quais Ana mostra sua faceta arquivística, conforme
veremos ao longo deste trabalho.
Ana Cristina mostrava em suas cartas que vivia às voltas com seu arquivo
pessoal. Com o intuito de preservar suas correspondências Ana narra à Clara
Alvim a intenção de arquivamento das cartas que recebe: “Enquanto tudo
acontecia chegavam cartas incríveis de Candide e Cecil (já ouviste dela? Está
ÓTIMA!), vão chegando, planejo um baú (ou um arquivo, pra ser moderna) com
bolinhos de envelopes amarrados com fitas azuis e vermelhas” (CÉSAR,
1999a, p.16). A mesma intenção é narrada a Ana Cândida:
Tenho dúvidas de como organizar a correspondência (tenho gavetas, e agora gavetões), que não consigo jogar fora. É que eu acho muito mais interessante guardar dentro do envelope com uma (inexistente mas planejada) fitinha em volta, e depois
8 De acordo com informações contidas na página do espólio de Ana C. No site do Instituto Moreira
Salles.
28
botar tudo num bauzinho (CESAR, 1999a, p. 226).
No pedido de ajuda para organizar seu arquivo de cartas, missivista que era,
acaba por revelar o lugar onde mantém a correspondência, mesmo sendo esta
uma escrita perdida por natureza, nos lembra Artières (1998). Ana C. mostra
também o quanto as cartas lhe são caras pretendendo guardá-las presas a
fitinhas em um baú. Mais que “mero” arquivo, forma-se a imagem de um
verdadeiro tesouro.
A passionalidade do intento, que beira o romanesco, aparece também na
organização da estante de livros descrita para Ana Cândida Perez: “Arrumei a
estante, reclassifiquei todos os livros (os mais úteis e/ou mais amados mais à
mão, os outros bem embaixo, quase perto do lixo)” (CÉSAR, 1999a, p.226). Na
mesma carta ela confessa, sem saber como resolver o problema, o acúmulo de
papéis e livros e a impossibilidade em se desapegar de seu arquivo.
Ana C. guardava muitos papéis, cumprindo a postulação de Philippe Artières
quanto à prática dos arquivos pessoais como gesto de normalidade. Isso
porque, para o historiador:
O anormal é o sem-papéis. O indivíduo perigoso é o homem que escapa ao controle gráfico. Arquivamos portanto nossas vidas, primeiro, em resposta ao mandamento "arquivarás tua vida" – e O farás por meio de práticas múltiplas: manterás cuidadosamente e cotidianamente o teu diário, onde toda noite examinarás o teu dia; conservarás preciosamente alguns papéis colocando-os de lado numa pasta, numa gaveta, num cofre: esses papéis são a tua identidade; enfim, redigirás a tua autobiografia, passarás a tua vida a limpo, dirás a verdade (ARTIÈRES, 1998, p. 11).
A poeta, todavia, não cumpre com a última etapa da proposta de Artières, não
escreveu sua autobiografia, não passou a vida a limpo, conforme recomenda o
autor. Também não conta ainda com uma biografia, já que Ítalo Moriconi
considera Ana Cristina César – O sangue de uma poeta (1996) um ensaio
biográfico para dar subsídio para alguém que decida escrevê-la, diz:
[...] o texto foi pensado como uma espécie de pórtico para uma possível biografia. Ao percorrer essas páginas, sinta-se o leitor como se estivesse diante do relato do início do processo de preparação de uma biografia. Ensaio de ascese. Montagem de andaimes. Sinta-se como se abrisse a primeira gaveta. E dela recuperasse os primeiros manuscritos. Garatujados, riscados, alguns amassados. [...] Meu propósito aqui foi deixar pegadas
29
e senhas (p.20).
Eis que a imagem das gavetas retorna. Moriconi envolve-nos com essa
metáfora que sugere a deflagração dos segredos, mas não se cumpre. Só o
que cumpre é a promessa de apontar caminhos e deixar mais lacunas. O autor
mostra-se ciente das possibilidades ainda não esgotadas de caminhos pelo
acervo de Ana C., justificado pela grande quantidade de escritos deixados por
ela somados à morte prematura. É ele quem diz: “Gaveta de poeta forte morta
precoce é fogo. Sai papel feito coelho de cartola de mágico.” (MORICONI,
1996, p.10). Das gavetas-surpresas à magia de uma miríade de papéis,
bilhetes, cartas, postais; caminhos a serem percorridos.
O ensaio de Moriconi esboça um perfil de Ana Cristina a partir das memórias
que restaram da convivência com a poeta – em meados de 76, nos diz o autor
– e das memórias de outros amigos e familiares de Ana com quem conversou à
cata de informações. Ao longo de todo depoimento, Moriconi visa à
interlocução com “A futura biógrafa de Ana Cristina, provavelmente alguém
tornando-se adulta nesses anos 90 ou mesmo depois, na próxima década [...]”
(1996, p.31), numa espécie de jogo provocativo, no qual o autor dá pistas, na
mesma medida em que insinua ainda haver segredos. Conta, inclusive, com
um capítulo inteiramente dedicado às “Anotações para uma futura biografia”, no
qual o autor sugere algumas entradas, exibindo informações conquistadas ao
longo de seu trabalho na busca de fontes para a escrita do livro. Uma das
preciosas pistas deixadas para a biografia por vir é a lista que relaciona os
Augustos de Ana C. presentes em um poema9: “E assim você, futura biógrafa,
com este livro ganhou também a lista dos quatro Augustos mencionados no
poema famoso de Cenas de Abril” (MORICONI, 1996, p.86).
Na ausência de uma biografia ou autobiografia, o arquivo de Ana Cristina
constitui, de acordo com Miguel Sanches Neto sua autobiografia material, ao
constatar que:
Toda essa variedade de material da escrita, que vai dos arquivos do computador, passando pelos cadernos, pelos livros, lidos e anotados, para chegar aos papéis mais
9 Poema “nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares” (CESAR, 2013, p.23)
30
heterodoxos, aos instrumentos-fetiche, compõem o que poderíamos chamar de autobiografia material do escritor, ou de autobiografia da escrita (2011, p.74).
A particularidade desse gênero autobiográfico, se assim podemos considerar,
está no seu caos inerente, seu caráter múltiplo e não linear. Por essas
características Sanches Neto afirma a necessidade do trabalho da terceira
pessoa do arquivo, o leitor-pesquisador capaz de percorrê-lo e (d)escrevê-lo,
seguindo as inscrições deixadas pelo escritor:
O arquivo literário, nessa perspectiva benjaminiana, ao mesmo tempo que promove a guarda dos haveres da escrita da modernidade, mantém latente o ambiente de criação para que o leitor-pesquisador, ao penetrar nesse território, em contato psicológico intenso com a força dessa coleção, possa, num jogo de alteridade, reordenar sendas a partir do caos criativo (SANCHES NETO, 2011, p. 74).
A perspectiva benjaminiana sobre a qual o autor fala remete à infância do
filósofo alemão Walter Benjamin, cujos ensinamentos apontam para a
desarrumação própria das coleções infantis. Não são poucos os textos em que
Benjamin mostra sua faceta de colecionador. Em Infância em Berlim por volta
de 1900 (2000) o autor descreve, por exemplo, o zelo com que guardava nas
gavetas da escrivaninha um álbum de selos e um conjunto de cartões-postais.
No trecho da obra citado por Sanches Neto, Armários, Benjamin trata da
desordem própria da coleção dos “haveres da infância” (p.124).
Miguel Sanches Neto nos lembra ainda que o colecionador Benjamin, já na
vida adulta, mantivera a perspectiva do caos no ambiente de arquivo.
Desempacotando minha biblioteca, texto de Imagens do pensamento (2000)
deixa claro esse olhar, objetivando adiar para seus livros o destino da estante
com o “suave tédio da ordem” (p.227). Para Benjamin a posse é “uma
desordem na qual o hábito se acomodou de tal modo que ela só pode aparecer
como se fosse ordem” (2000, p. 228). Ana Cristina Cesar, confessando o
prazer pelas classificações e organizações não desmente em nada o que
coloca Benjamin a respeito do verdadeiro colecionador. Isso porque, Ana, ao
expor seus livros ordenando-os, ela projeta neles um sentido de lar e de
companhia:
A estante está bonitinha, penso com amores fetichistas. Olho toda hora, parece que me fazem companhia. Preciso mudar de
31
casa. (Sou eu que não estou mais cabendo nesta casa – 10 anos here.) (CÉSAR, 1999a, p. 226).
Ana cerca-se de sua biblioteca e usa o volume de livros para justificar, de
alguma maneira, o desejo de sair da casa dos pais. Num sentido semelhante,
Benjamin, ao desempacotar a sua biblioteca, tira os livros das caixas e ordena-
os na estante – ainda que negue qualquer que seja o método que usa, para
dispor os livros na estante, configura uma ordem. Nesse exercício, ele edifica
uma das moradas do colecionador, “que tem livros como tijolos” (BENJAMIN,
2000, p. 235). Ana C e Walter Benjamin tornam-se ali residentes em suas
coleções.
1.3 Cartas Marcadas: a correspondência de Ana C.
Quando entre nós só havia uma carta certa
a correspondência completa
o trem os trilhos a janela aberta
uma certa paisagem sem pedras ou
sobressaltos meu salto alto em equilíbrio
o copo d'água a espera do café10
“Depois vocês me escrevam cartas. Eu quero receber cartas. Vocês me
escrevam cartas do que vocês acharam, assim: "Prezada autora". Ah, eu quero
receber cartas" (CESAR, 1999b, p. 273). Assim despede-se Ana Cristina dos
alunos da PUC, onde estivera como convidada, para dar o que seria sua última
entrevista. Do mesmo modo, é com esse pedido que termina muitas de suas
cartas às suas amigas: "Escreve sem comercial!" (CESAR, 1999a, p.48), ou
"Me escreve comprido" (CESAR, 1999a, p.73), faz perguntas, encomenda
livros, tudo para não deixar perder o fio da correspondência, o qual deve ser
cultivado. O gosto manifestado pela correspondência não se restringia ao
desejo de receber cartas, escritora assídua, Ana C. mostrou-se também uma
exímia missivista.
10 Poema do livro A teus pés. In: Poética (CESAR, 2013, p.104)
32
É o que revela Correspondência Incompleta (1999), conjunto organizado por
Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda, o qual compila 93 cartas
escritas pela poeta, entre 1976 e 1980, para quatro amigas Clara Alvim, Cecília
Londres, Ana Candida Perez e a própria Heloisa Buarque de Hollanda. Ao
justificar a ideia de trazer a público esse material, Armando Freitas Filho fala de
uma certeza: “a de que seria interessante mostrar em estado original umas das
principais matrizes de sua criação literária, além de revelar, pura e
simplesmente, a exímia missivista” (CESAR, 1999a, p.9). Todavia, e isto não
deve sair do nosso olhar, é preciso destacar que não se trata, neste momento,
de trabalho com fontes primárias, as quais visam ao texto em seu veículo
original.
Organizadas, além de estarem em novo veículo – a saber: o livro, – as cartas
que saíram das gavetas de Ana Cristina passaram por processo de omissão de
informações, conforme registram os organizadores:
O critério usado para a fixação dos textos foi o bom senso. Foram cortados apenas os trechos que, segundo o ponto de vista das destinatárias e o nosso, pudessem causar constrangimento para as pessoas citadas e respectivas famílias. [...] Sempre que necessário atualizamos a ortografia e introduzimos pontuação, uma vez que as cartas foram escritas ao correr da pena (CESAR, 1999a, p.11).
A nota dos organizadores é clara em “confessar” as interferências e
supressões dos mesmos, ao fazer isso os organizadores afastam a publicação
da noção de fontes primárias, as quais prezam pela fonte originária de
informação.
Todavia, tomaremos as cartas por outro aspecto proeminente: “sua face
desconcertante”, conforme trata Matildes Demétrio dos Santos em Ao sol carta
é farol (1998). Para a autora, essa face é mostrada pela profusão de
revelações, em especial as de cunho teórico, que são expostas aos leitores
quando deflagradas as correspondências de escritores. A correspondência de
escritores, portanto, integra o conjunto de escritos que chamaremos de obra,
pois Ana Cristina manifesta ali a sua prática como escritora, estabelecendo
chaves de leituras de seus textos, conforme veremos adiante, além de discutir
o fazer literário com as correspondentes.
33
Santos é minuciosa em seu estudo sobre a carta que, enquanto gênero
literário, “constitui uma forma historicamente reconhecida de comunicação, com
regras e exigências capazes de distingui-la de outros gêneros” (SANTOS,
1998, p.27). A autora traça um apanhado histórico desde o primeiro manual
epistolográfico do mundo ocidental de Demétrius, passando pelas epístolas
bíblicas, pelas cartas familiares e amorosas até a presença da carta na ficção.
Apesar de reconhecer a importância desse apanhado histórico, devido às
especificidades do nosso trabalho, tomaremos de empréstimo de Santos
apenas o que tange à correspondência de escritores.
Certos de que se trata de um espaço de revelar-se e construir-se, trataremos
das cartas pessoais como integrantes também do gênero autobiográfico.
Consoante com o que trata Michel Foucault sobre a correspondência, ou
“narrativa epistolar de si próprio”, em O que é um autor (1992):
Escrever é pois “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. E deve-se entender por tal que a carta é simultaneamente um olhar que se volve para o destinatário (por meio da missiva que recebe, ele sente-se olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz (p.150).
O autor de uma carta se permite mostrar-se ao escrever sobre si a um outro,
elaborando uma espécie de “jornal de uma vida”11, ou melhor, jornal da própria
vida entregue ao olhar do outro. Dessa maneira, as cartas de Ana C.
aproximam-se também de um diário íntimo, porém com destinatário. A própria
poeta mostra, ao refletir sobre o tema em carta à Maria Cecília Alvim, ter
ciência da confusão entre os gêneros, mostrando dificuldades em dissociá-los:
Preciso acabar com essa mania de transformar carta em diário íntimo, pesado, minucioso [...]. Ai como sou minuciosa. Mas pra que acabar com manias? Não estou mesmo muito boa: estou agora pondo em questão o meu texto (CESAR, 1999a, p.117).
De fato a longa carta que termina com essa reflexão contém ainda outras
tantas: sobre sua situação profissional entre ser professora, jornalista,
tradutora; sobre sua formação intelectual, examinando suas leituras e
defasagens teóricas; por fim longa reflexão de cunho filosófico-existencial
11 Conforme cita Matildes Demétrio dos Santos (1998, p.22).
34
sobre a neurose e a solidão. Ana Cristina passa páginas escrevendo,
pensando, exercitando essa escrita bastante íntima e, de repente, como quem
se lembra de ter um interlocutor interrompe os pensamentos:
Cecília! Porra! Me sinto falando sozinha, que venha esse telefonema louco! [...] Cecília? Cecília? Já estou ficando meio tonta de falar assim sozinha, sem interlocutor, mas completamente com interlocutor (CESAR, 1999a, p.116).
Sentindo-se sozinha, escreve a carta, gênero que presume tanto a solidão do
ato de escrita, quando, por outro lado, a necessidade de um leitor
correspondente, aquele que vai ser interlocutor do ato solitário.
Grande parte das cartas, publicadas em Correspondência Incompleta (1999),
foram enviadas durante o segundo intercâmbio realizado por Ana Cristina para
a Inglaterra, entre 1979 e 1981. Estando longe do contato diário com as
amigas, Ana descreve seus dias, suas atividades, seu humor e muitas vezes as
roupas que estava vestindo. Não se trata somente de relatar às amigas os
grandes acontecimentos da vida no exterior, mas minúcias do cotidiano, como
em “Fiz uma alta sopa de legumes e botei ordem na casa” (CESAR, 1999a,
p.49). O leitor que “viola” essa correspondência tem a impressão de que ela
passa seu dia a limpo, refletindo sobre seus sentimentos com relação aos
acontecimentos, como se faz em diários íntimos, e não apenas empreende
descrições para deixar a correspondente a par dos fatos. Segundo Foucault, a
atitude de “passar em revista seu dia”12, relatando fatos corriqueiros do
cotidiano faz parte da prática epistolar:
não por causa da importância dos acontecimentos que teriam podido marcá-lo, mas justamente na medida em que ele nada tem para deixar de ser igual a todos os outros, atestando assim, não a relevância de uma actividade, mas a qualidade de um modo de ser (1992, p.155)
Ana Cristina revisita seu dia e mostra – a si mesma e às amigas – um relato da
banalidade do cotidiano, tendo naquele momento a chance de fazer um exame
de consciência sobre todo o ocorrido, como em: “No momento estou me
zangando à toa com Christopher (à toa mas tenho razão. Reconhecemos: é
para disfarçar que vou embora)” (CESAR, 1999a, p.72). Ou em assunto ainda
mais banal: “Perdi minhas lentes, merda. Estupidamente, entre cervejas. Virei
12 Foucault (1992, p.156) em referência a Sêneca, Cartas a Lucílio, 83
35
menina de óculos, minha vista arde, saco cheio” (CESAR, 1999a, p.233). A
impressão do leitor violador dessas correspondências, muitas vezes, é de que
essas confissões parecem escritas muito mais para si mesma, como forma de
organização do pensamento, e menos para comunicar de fato à
correspondente.
A atividade de tratar do seu cotidiano, em cartas às amigas distantes, revela
um segundo aspecto, ainda de acordo com Foucault. Trata-se da capacidade
que a carta possui de tornar o remetente presente ao destinatário. A própria
Ana C. inicia muitas cartas comentando esse poder corporificador que a carta
tem, conforme se pode ver nos trechos abaixo:
Tua carta me consola, me aquece, sinto uma paz e não quero dizer nada, quero ficar quieta com esse calor e mais nada. Te sinto perto e terna (CESAR, 1999a, p.281).
Morri de emoção com a tua carta, que meti no bolso e carreguei comigo pra Londres. Entrei no trem e éramos todos estrangeiros em volta da mesinha tomando o chá com leite (CESAR, 1999a, p.31).
Os trechos estão presentes em cartas à Ana Candida e Heloisa Buarque,
respectivamente. Em ambos é possível visualizar a materialidade pessoal que
a carta carrega consigo. É assim que Ana C. metaforiza a presença de Heloísa
em Londres, colocando a carta da amiga no bolso e, da mesma maneira, Ana
Cândida é percebida como se estivesse por perto com a chegada da
correspondência em momento de solidão.
Diante da distância física entre os correspondentes, a carta apresenta esta
outra característica, definida por Matildes Demétrio dos Santos (1998) como
um meio de “superar a distância e manter vivo o elo de intimidade com o
ausente” (p.24). Relatar informações sobre o dia a dia, narrar acontecimentos
grandiosos ou vulgares, emitir e receber conselhos, tudo isso através da
missiva faz com que esta aproxime-os, tornando-os “presentes de uma espécie
de presença imediata e quase física” (FOUCAULT, 1992, p.150).
Apesar dessa aproximação possível da carta com o diário íntimo, é preciso
levar em conta outro aspecto sobre o qual nos alerta Silviano Santiago ao
teorizar sobre o gênero epistolar em Suas cartas, nossas cartas (2006): "A
36
carta tem algo do diário íntimo e tem algo da prosa de ficção" (p.76).
Observaremos, portanto, a ficcionalização como desdobramento do real na
escrita de Ana C., para quem as emoções não são passíveis de serem
narradas, mas sim transformadas em literatura, destacando a diferença entre
escrever com autenticidade e escrever com veracidade: "Se você conseguir
contar tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já
mudou" (CESAR, 1999b, p. 262).
Portanto, além do viés autobiográfico, a carta em Ana Cristina deve ser lida
também como parte de sua obra literária, na qual sujeito lírico e sujeito real se
(con)fundem. Isto porque em várias cartas ela cita - conflitante - a
impossibilidade de sua escrita se dissociar da literatura, por exemplo:
Queria escrever mais puramente. Minhas costelas doem. Reparo na longa demora e na literatura. Reli hoje os cartões-postais que mandava da Europa, todos literatura. "Reparo". "Percebo". "Constato". Ainda formas de distanciamento (CESAR, 1999a, p. 217).
Na escrita dela ficção e autobiografia compõem um mesmo arranjo, numa
indissociável criação. A incapacidade de se eximir da literatura torna possível
encarar suas cartas como exercícios literários, ou, nas palavras de Ítalo
Moriconi: “Toda carta de Ana é um objeto belo de linguagem” (1996, p.89).
Sendo um objeto de linguagem, logo, a carta é um espaço de elaboração, aliás,
mais especificamente de elaboração de si. É de se esperar que apareça mais
de uma Ana C., melhor dizendo, ao elaborar-se para o outro, Ana coloca-se da
maneira como quer ser vista por cada corresponde. Essa consciência do outro
é notada nas cartas pertencentes ao livro, pela diferença no tom e no estilo,
tanto entre os assuntos com cada correspondente, ou mesmo quanto ao tratar
de um mesmo assunto entre elas. O que não é de se espantar, haja vista que a
carta é uma construção para o outro, o destinatário nunca é tirado de mente.
Este pacto é descrito por Santiago como: "O desejo de traduzir um tête-à-tête
sombrio e límpido em que o espelho tanto é a caligrafia [...] na folha de papel
em branco quanto é o correspondente" (2006, p.64).
Se a relação da autora com a carta depende da correspondente em questão,
então, é preciso pensar a relação mantida entre autora e correspondentes fora
37
do universo epistolar. Ao final da edição de Correspondência Incompleta
(1999), na seção “Sobre a correspondência”, o leitor tem acesso a depoimentos
de cada uma das amigas a quem as cartas são endereçadas. Nos depoimentos
elas falam como se conheceram e da relação que viveram com Ana Cristina.
Clara Alvim foi professora dela na PUC e a convivência extrapolou os limites da
Universidade, Ana frequentava sua casa e convivia com seus filhos. Clara
define que "a relação continha sensíveis projeções de mãe e filha" (CESAR,
1999a, p. 298), justificada pelos conselhos dispensados à jovem poeta com
insistência e até mesmo irritação, causando algumas discussões entre as duas.
Heloisa Buarque de Hollanda, que primeiro conheceu a poesia de Ana C.
através de Clara Alvim, e depois, conforme descreve:
Nossa relação, desde os tempos da [rua] Faro, tomou um atalho nesse labirinto. [...] Fui orientadora de sua tese de mestrado, Literatura não é documento, "arquiteta de interiores" de seu apartamento na Gávea (ou casinha como ela preferia), leitora de plantão, capista de vários livros seus, supervisora editorial de outros, ouvinte impassível de complicadíssimos namoros e aparentemente dramáticos impasses existenciais, sua anfitriã em inúmeras estadias em Vargem Grande ou em Búzios (CESAR, 1999a, p.300)
A casa de Heloísa, na Rua Faro, era um ponto de encontro dos poetas,
estudantes, jornalistas, enfim, a turma que estava promovendo a cultura
alternativa da década de 1970. Ao começar a frequentar a casa, para tratar de
assuntos referentes à participação de Ana no livro organizado por Heloisa13,
elas iniciaram um vínculo que, por fim, transitava livremente entre a amizade
intelectual e íntima.
Cecília Londres, também professora da PUC, descreve: "Se Clara se via como
mãe na relação com Ana Cristina, eu me sentia como sua irmã mais velha"
(CESAR, 1999a, p.303), pois Ana a tinha como confidente, embora às vezes se
frustrasse – e se irritasse – com a espera de conselhos que não vinham como
ela queria. Segundo Cecília, elas ficaram amigas justamente diante das
diferenças entre elas, mas, pouco depois, a professora se mudou com o marido
para Londres e a amizade se consolidou através da correspondência.
13 26 poetas hoje (2007) foi organizado por Heloisa Buarque de Hollanda para reunir e publicar os
poemas dos poetas dessa geração de muito bloqueio por parte do circuito editorial.
38
A quarta correspondente é Ana Candida, colega do curso de letras da PUC,
descreve Ana e a relação com a turma da seguinte maneira:
Fui uma espécie de mediadora da sua integração na turma, porque alguns colegas receavam o que parecia ser uma atitude de superioridade dela, mas que eu percebi ser autodefesa. Ana Cristina tinha a fragilidade da “menina prodígio” (CESAR, 1999a, p.305).
A predileção pela literatura foi um dos gatilhos para a amizade e tema
constante na correspondência, definida por ela como uma experiência com a
escritura.
Atenta aos melindres da escrita, Ana Cristina mostra ter consciência do outro
para quem escreve. Em depoimento para os alunos da PUC, realizado em
1983, a autora trata, entre outros assuntos, da escrita de cartas:
Fundamentalmente, carta você escreve para mobilizar alguém, especialmente se a gente entra no terreno da paixão, onde a correspondência fica mais quente. Você quer mobilizar alguém, você quer que, através do seu texto, um determinado interlocutor fique mobilizado. Então é muito dirigido. [...] É alguém que importa numa carta, mesmo que você esteja falando de coisas tuas (CESAR, 1999b, p. 257).
E nós, no estatuto de leitores, temos também consciência dos desdobramentos
de Ana em sua literatura – incluindo as cartas, já que diz não saber abdicar-se
da literatura na correspondência. Ao observar cartas da mesma época, para
diferentes interlocutoras, temos ainda mais clareza desse cuidado com a
enunciação que faz de si. Seguem dois trechos de cartas:
Trecho I - 28/07/1977:
Tenho visto Locomotivas e eis o meu nível afetivo. Me comovo com Celeste (i.e. me identifico). Henry Miller é incrível. (relendo notei que taquei o Miller depois da Rede Globo. Pra não dar tão má impressão assim...) (CESAR, 1999a, p. 154).
Trecho II - 31/07/1977:
Nestas férias li Miller e vi Locomotivas. Certo dia meu nível afetivo era exatamente Miller com Locomotivas. Li a Amiga aqui no sítio. Já sei quem vai casar com quem. É émmerdant. Mas não me furto ao prazer insano da transa entre Ilka Soares (mulher mais velha que esconde sua paixão, mas não está se agüentando) e Denis Carvalho (o garotão dominado pela mãe que destrói todos os seus namoros; Ilka Soares é a confidente!) O resto da novela são fofocas de cabeleireiro (CESAR, 1999a, p. 263).
39
As cartas foram endereçadas a Cecília e Ana Candida, respectivamente.
Ambas as cartas, que datam apenas três dias de distância, tratam dos
assuntos da semana: a ressaca moral do "porre" que tomou com Cacaso, a
volta de Montenegro ao Rio de Janeiro, agitando o meio intelectual com uma
nova proposta de revista a ser lançada e, o que destaco nos trechos acima, o
que a poeta anda lendo e assistindo na televisão.
Ao observar o trecho extraído da carta enviada à professora Cecília Londres
não é difícil notar o modo sucinto como fala da novela e logo na sequência
assume falar de sua leitura para encobrir o que poderia causar má impressão
sobre a poeta. Na carta seguinte, à colega Ana Candida, ela não apenas fala
da telenovela longamente, como também "confessa" leitura da revista de fofoca
Amiga que traz o "resumo da semana". A leitura de Tropic of Cancer, de Miller
aparece primeiro, mas todo o destaque vai para a telenovela. Apesar de se
demorar mais na novela, vale observar, que Ana procura mostrar desdém
diante da atividade pouco valorizada no meio acadêmico: “É émmerdant. Mas
não me furto ao prazer[...]”. Como quem confessa fazer algo pouco importante,
mas respalda-se, mostrando a banalidade de tal atividade, escapando de
competir em nível de intelectualidade da colega com quem geralmente discute
e traduz poesia.
Quando Ana Cristina chega em Colchester, em 1979, ela escreve à Heloisa e
Cecília, para responder cartas de "boas vindas" que recebeu delas e contar da
chegada. Em carta à primeira, a poeta fala da cidade, do curso, da rua onde
está morando. Em outra carta, também à Heloisa, ela conta da mudança de
curso, passa o telefone do quarto onde mora, coloca um desenho (um croqui)
do quarto e diz: "A vida é um sossego. Cozinho e faço shopping o tempo todo"
(CESAR, 1999a, p. 37).
Já na carta à segunda correspondente, uma Ana Cristina mais doce, mais
esperançosa com a chegada em Colchester, feliz com a "casinha" nova,
escreve:
Hoje foi dia de montar a casinha [...]: um bom quarto num casarão antigo de 3 andares. Banheiro completo (com chuveiro) ao lado, geladeira bem em frente, no corredor. No quarto tem cama, escrivaninha, mesa, armário, fogão (duas bocas, forno & grill), banca com armário embaixo, pia com água quente e fria, lareira a gás, poltrona. É atapetado e
40
horrivelmente rosa choque. Vou decorar aos poucos (CESAR, 1999a, p. 167).
Deixando claros os papéis de uma e outra em seu convívio: com Heloisa divide
questões íntimas e questões intelectuais; com Cecília volta a figura da irmã a
quem precisa mostrar-se feliz em seu novo projeto de vida. Ademais, esta era a
“amiga normal”, conforme narra Cecília sobre uma fala de Ana C. para a
própria avó, desejando ter também marido, filhos e casinha bem estabelecidos.
Era preciso que Ana mostrasse à amiga/irmã mais velha – e à si mesma,
naturalmente – que também podia viver nesses parâmetros.
Se as temáticas diferenciam-se em um aspecto, as cartas consoam: o
tratamento carinhoso com que Ana costuma começar as cartas. Matildes
Demétrio dos Santos, caracteriza os missivistas pela maneira como evocam
seus destinatários na correspondência. Ela mostra que:
Um código de endereçamento expressivo e personalíssimo determina a forma de transmissão da mensagem. Mário de Andrade, ao tratar com amigos do coração, tinha por hábito brincar carinhosamente com o nome de cada um deles. Manuel Bandeira atendia pelos cognomes: “Manuelucho”, “Manuel dear”, “Manú”, “Meu poeta querido” (1998, p.25).
Também Ana Cristina possuía o hábito de Mário de Andrade, descrito pela
pesquisadora. Cecília atendia por Cecil, Heloisa Buarque por Helô e Ana
Candida por Candide. Clara não ganhou cognome, mas era sempre chamada
“minha muito querida”, como também era chamada Cecília. Helô vinha quase
sempre acompanhado de “love”, “amor”, “paixão”, “dearest of my life”. O
vocativo para Candide, que nas primeiras cartas era chamada friamente de
“Ana”, aparece nas últimas missivas acompanhado por carinhos ingleses,
consonantes com a temática que mais as aproximava: “Candide, Darling”,
“Dear”, “Dearest”.
O fato de que algumas dessas correspondentes foram também professoras de
Ana Cristina, chama atenção por outro detalhe. De acordo com Silviano
Santigo “no universo da literatura, a carta existe para que o discípulo se dirija
ao mestre. O discípulo precisa ser reconhecido enquanto tal” (2006, p.65).
Clara Alvim, Maria Cecília Fonseca e Heloisa Buarque de Hollanda foram
professoras de Ana na PUC, dessa forma, retomando os pedidos de crítica de
seus poemas e a constante troca de material para pesquisa como livros,
41
revistas e mesmo contatos com pessoa do meio cultural da época, evidencia-
se o olhar da discípula Ana C. em busca de respaldo naquelas que foram suas
mestras. Há momentos em que esse direcionamento fica bastante nítido, como
na carta que abre o compilado. Ana Cristina se mostra hesitante diante do
papel em branco a ser remetido à professora Clara Alvim e justifica-se:
Já tentei começar carta pra você algumas vezes – no imaginário, na máquina e na presença iluminada da Helô. Fico vacilante e boba todas as vezes: ora muda, ora prolixa. Acho sempre que tenho que produzir something witty and brilliant, no teu tom "certo" – mas pra escrever carta preciso renunciar pelo menos pela metade à literatura [ou à pose ou ao fetiche – sem querer ainda identifico os três e, é claro, não consigo mais "fazer literatura"], o que é particularmente difícil na tua frente (CESAR, 1999a, p. 15).
Heloísa Buarque, por quem nutria amizade evidenciada pelo apelido carinhoso
“Helô”, aparece como uma “presença iluminada” e Clara Alvim, para quem a
carta e endereçada, é lembrada pelo “tom “certo”” o qual, de alguma maneira,
distancia a aluna, dificultando o início da correspondência.
Santiago expõe em seu artigo – que é antes uma introdução à publicação da
correspondência de Carlos Drummond de Andrade a Mário de Andrade –
algumas razões que justifiquem a violação da correspondência de escritores.
Entre os motivos elencados pelo autor está a possibilidade de estabelecer
novas leituras, ou seja, a chance de que as cartas estejam imbricadas com
chaves que abram novas interpretações. Sua leitura, então,
Visa a enriquecer, pelo estabelecimento de jogos intertextuais, a compreensão da obra artística (poema, conto, romance...), ajudando a decodificar certos temas que ali estão dramatizados, ou expostos de maneira relativamente hermética [...] (SANTIAGO, 2006, p.63).
A possibilidade de ler as cartas de Ana Cristina como suporte tanto literário
quanto teórico de sua própria escrita, muito contribui para a compreensão de
sua escrita poética. Isso porque, as cartas de Ana Cristina são exercícios de
escrita, funcionando, em certa medida, como os hypomnematas de que trata
Foucault. Se estes são caderninhos nos quais se anotam “citações, fragmentos
de obras, exemplos e acções de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se
tinha lido, reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à
memória” (FOUCAULT, 1992, p.135), também as cartas se nutriam de escritos
42
semelhantes que, posteriormente, poderiam vir a desencadear um poema. De
modo geral, os escritos de Ana C. estavam alinhavados por este fio condutor
que é fazer de todo escrito matéria de poesia. Assim, as cartas, bem como
outros caderninhos e papéis avulsos, fazem parte de uma “memória material
das coisas lidas, ouvidas ou pensadas” (FOUCAULT, 1992, p.135).
Ana Cristina ao lançar-se à correspondência exerce sempre um movimento
ambivalente, primeiro por se tratar tanto de uma obra literária quanto de obra
teórica (de si, da própria produção, do fazer literário). E em segundo lugar, pelo
sentido duplo de escrita para o outro e de inscrição de si, não abandonando a
nítida orientação de ritmos, temáticas e discursos conforme o destinatário da
carta escrita. Ao sair das gavetas de Ana C. e, ao mesmo tempo, jamais
deixando de pertencer a elas – já que o próprio título de Correspondência
Incompleta (1999) indica a ausência de outras epístolas no livro organizado –
as cartas de Ana Cristina configuram material fundamental para melhor
compreensão de sua escrita e de seu perfil como intelectual e escritora.
1.4 Edições fac-similares, obra e autoria: pontuações
[...] existem apenas rascunhos. O conceito de texto
definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço.
(Borges)14
Na esteira dos estudos do livro em devir, reverbera-se outro fenômeno que não
deve ser ignorado. Trata-se do boom editorial mercadológico envolvendo
edições fac-similares e genéticas. Ambas, de acordo com Élida Lois em
Edições críticas (2011), podem ser compreendidas a partir da relação com o
manuscrito moderno, ou melhor, a partir da reação causada pelo surgimento do
manuscrito moderno no final do século XVIII:
[…] quando apareceu a noção de “manuscrito moderno”, como um novo artefato da tecnologia da palavra, foi reconhecida a existência de uma nova etapa na história das modalidades de escrita e, consequentemente, começaria a ser elaborada de forma paulatina uma nova teoria da edição (LOIS, 2011, p.79).
As edições fac-similares reproduzem, em páginas acessíveis aos leitores,
cópias digitalizadas dos originais dos manuscritos, outrora acessados apenas
por pesquisadores em acervos e casas de coleção. Já a edição genética “tem
14 In: Discussão (1986, p.72)
43
como objetivo oferecer prototextos, apresentando exaustivamente, dentro de
uma ordem cronológica de seu aparecimento, os testemunhos de uma gênese”
(LOIS, 2011, p. 82), ou seja, ela não apenas apresenta a representação do
manuscrito, mas preocupa-se em trilhar o processo de escrita com estudo
geneticista.
O sucesso dessas publicações confirma o sintoma já anunciado nestas
reflexões: a existência de certo fetiche por parte dos leitores diante dos
laboratórios dos escritores e os processos de escrita. Para satisfazer o leitor
ávido de curiosidade pelos bastidores da criação, Hay (2007) confirma que:
É preciso hoje que um manuscrito seja rasurado para atingir, nas vendas, uma alta que o autor não teria sonhado enquanto vivo. É preciso que ele seja rascunho para que as grandes exposições e as grandes edições conheçam o sucesso (p.28).
Neste sentido, o caso de Ana Cristina Cesar torna-se exemplo pontual. A
edição organizada por Viviana Bosi de Antigos e soltos – poemas e prosas da
pasta rosa (2008), contempla os leitores com centenas de páginas que
reproduzem as de uma mítica pasta-arquivo da poeta. A Pasta Rosa, como
ficou conhecida, foi encontrada por Maria Luiza Cesar, mãe de Ana C., anos
depois de sua morte e foi parcialmente publicada em bela edição fac-similar
pelo Instituto Moreira Salles, organizada por Viviana Bosi. A pasta, segundo
descreve Bosi, “grande, de capa dura e de coloração rosa que ficou marrom
com o tempo” (2008, p.9), é dividida em sete subpastas com uma coletânea de
cerca de 10 anos em papéis que vão desde versões de poemas a antigas
redações escolares. Lançado em 2008, o livro está esgotado nas livrarias,
somente podendo ser adquirido em sebos, na qualidade de livro raro o que
disparou seu preço no mercado.
Seguindo a tendência editorial da “presença” de manuscritos, em edições fac-
similares, a Ateliê Editorial lançou em 2006 as 36 páginas que fariam parte do
sétimo livro das memórias de Pedro Nava, Cera das Almas (2006). O texto
inédito que ficou inacabado devido ao suicídio do autor em 1984, agora é
trazido a público em duas partes. Primeiro aparecem as páginas digitadas em
formatação típica e em seguida aparecem as cópias dos datiloscritos repletos
de comentários, acréscimos, cortes, rasuras, desenhos e explicações em
cantos de páginas. Ao relançar as obras esgotadas do autor, a editora também
acrescentou ao final algumas páginas copiadas de seu acervo, o qual encontra-
se sob guarda da Fundação Casa Rui Barbosa, doado pela viúva Antonieta
Penido Nava, no ano seguinte à morte do escritor.
44
Um último exemplo, Os caminhos do sertão de João Guimarães Rosa. Trata-se
de um box limitado e numerado, lançado pela editora Saraiva em 2011. Além
de uma versão exclusiva do Grande Sertão: Veredas e um livro com
depoimentos escritos por renomados escritores brasileiros com suas leituras da
obra, o box ainda contém A boiada. O livro reúne fac-símiles impressos em
cores de folhas datiloscritas abarrotadas de anotações e rasuras dos cadernos
da viagem às imensidões do sertão por Guimarães Rosa. As veredas em devir
escritura.
Trazer a público os manuscritos do escritor, essa atitude que extrapola o
voyeurismo inicial de simplesmente remexer suas gavetas, impõe uma pauta
que não deve ser negligenciada. O que pode ser considerado como obra em
meio a todo o material? Como lidar com as cartas escritas por um escritor?
Como o organizador/pesquisador pode definir no espólio de um escritor aquilo
que pode ser publicado na sua ausência (ou à sua revelia)?
Pensar os escritos de Ana C. exige colocar em xeque esse tipo de
questionamento, tendo em vista que a maior parte do que está publicado se
deu em tempo póstumo. Inéditos e dispersos (2008) e Correspondência
Incompleta (1999) foram organizados por Armando Freitas Filho. O primeiro
organiza poemas encontrados nas caixas dos papéis de Ana C. os quais
estavam sob sua tutela – por ordem expressa da poeta, foi publicado pela
primeira vez em 1985 pela Editora Brasiliense. O segundo, em parceria com
Heloísa Buarque de Hollanda, com parte das cartas escritas por Ana Cristina e
enviadas a quatro correspondentes. Para completar a seleção: Antigos e Soltos
– Poemas e prosas da pasta rosa (2008), a bela edição fac-similar dos
manuscritos e datiloscritos da Pasta Rosa organizado por Viviana Bosi; e, mais
recentemente, Poética (2013) que além de reunir, como o próprio nome
explicita, toda a poética de Ana C. traz ainda uma seleção de inéditos
garimpados do acervo da poeta pelo pesquisador Mariano Marovatto em Visita
à oficina. Diante da presença de toda essa publicação produzida sem o
consentimento da autora, cumpre questionar: cabe ao conjunto de manuscritos
guardados pelo Instituto Moreira Sales o status de obra?
Antes de intentar uma resposta, um desvio se faz necessário já que a própria
definição de obra faz-se discutível dentro da teoria literária. É oportuno,
portanto, abrir um parêntese para dedicarmo-nos ao estudo desse conceito.
Roland Barthes, no ensaio “Da obra ao texto” integrante do livro O rumor da
língua (2004), pontua em sete proposições as diferenças entre a obra e o texto.
45
Para o autor, “O Texto não deve ser entendido como um objeto computável.”,
mas a obra sim “é um fragmento de substância, ocupa alguma porção do
espaço dos livros” (BARTHES, 2004, p.67). A obra, então, é o corpo material
necessário para suportar o texto, que por sua vez não se trata de algo palpável,
mas “um campo metodológico”: a obra produz textos.
Tratar da obra de um autor, num primeiro momento, significa considerar os
livros por ele publicados. Porém, ao examinar as gavetas de um escritor, em
especial de um escritor já morto, como é o caso da nossa pesquisa,
percebemos ali uma série de materiais que em muito se assemelham às obras
publicadas em vida. Outros, todavia, parecem menos consoantes. É preciso ter
em mente que, mesmo visando como obra o material publicado pelo autor, é
possível que verifiquemos textos heterogêneos entre si, por isso a busca por
homogeneidade faz-se pouco proveitosa. Ao irromper às gavetas é preciso que
a noção de obra como homogênea seja deixada de lado, já que cada material
ali presente é passível de receber uma leitura que fará com que ele seja ou não
incorporado à obra, na medida em que ajude a compreendê-la em algum
aspecto. As cartas de um escritor, por exemplo, trabalham a favor da obra em
dois âmbitos: em seu aspecto teórico, agindo muitas vezes como a chave de
compreensão para muitos textos; e como obra literária, já que muitas vezes o
autor não consegue abdicar da escrita poética e, ao escrever cartas aos
amigos, acaba por fazer literatura.
Considerando o pensamento de Roland Barthes pode-se encarar o material
presente no acervo de Ana Cristina Cesar enquanto obra, em primeiro lugar
pela sua materialidade, pelo fato de que “se vê (nas livrarias, nos fichários, nos
programas de exame)” (BARTHES, 2004, p.67). Acrescentamos ainda entre
parênteses que essa obra pode ser vista e manipulada – no sentido de tocada
com as mãos – nas pastas onde o material ocupa fisicamente um espaço, no
Instituto Moreira Salles.
O segundo aspecto, diz respeito à filiação, pois para Barthes “A obra é tomada
num processo de filiação. Postula-se uma determinação do mundo (da raça, da
História) sobre a obra, correlação das obras entre si e uma apropriação da obra
ao seu autor” (2004, p.71). Isso significa dizer que o material presente no
espólio de Ana Cristina está ligado filialmente a ela, à sua escrita, ao seu
método. Se esse material, do qual Ana Cristina é antes a proprietária, não for
considerado como sua obra de que outra maneira ele poderia ser designado
preservando os direitos autorais de quem os escreveu? Por isso Roland
46
Barthes pontua: “a ciência literária ensina então a respeitar o manuscrito e as
intenções declaradas do autor [...]” (2004, p.71), num sentido de que, se aquele
material foi escrito e mantido pela poeta em seu arquivo, é necessário que ele
seja tratado como algo construído e deixado, como uma herança, pelo autor:
uma obra.
Destituídos do caráter de obra, da relação de pertencimento entre escrito e
escritor, a inscrição do autor ficaria prejudicada, dessa forma ele seria tomado
como um “autor de papel”. Na leitura de Barthes, quando um autor escreve
como um “eu de papel” não se estabelecem relações entre sua vida e obra:
é a obra de Proust, de Genet, que permite ler a vida deles como um texto: a palavra “bio-grafia” readquire um sentido forte, etimológico; e, ao mesmo tempo, a sinceridade da enunciação, verdadeira “cruz” da moral literária, torna-se um falso problema: também o eu que escreve o texto nunca é mais do que um eu de papel (2004, p.72).
Nos escritos de Ana Cristina sua inscrição é tão marcadamente própria, o que
impede, quase sempre, a dissociação entre vida e obra. Entretanto é possível
vislumbrar também os momentos em que a poeta se metamorfoseia em uma
outra Ana, que atua como esse autor de papel de que fala Barthes, nesses
momentos vida e obra se dissociam. Ainda que seus escritos não sejam
claramente autobiográficos, há em cada um deles a marca indissociável de si,
sua inscrição. Ana filia sua obra à sua autoria. Obra esta que, por sua vez,
aparece repleta das filiações que Ana C. carrega enquanto escreve. Leva para
seu texto suas predileções, seu cânone pessoal, conforme prova o índice
onomástico ao final da edição de A teus pés, com a lista dos nomes aos quais
a poeta faz referência ou mesmo rouba versos.
47
Figura 1 (ACC_Pi_Meios de Transporte_000392-051) Acervo Instituto Moreira Salles15
A versão manuscrita do índice onomástico não é a mesma da que foi publicada
em 1983 pela editora Brasiliense, entre os cortes nomes como Roland Barthes,
Emily Brontë e T.S. Eliot. Lewis Carroll tem seu nome cortado já na lista
15 Ver Anexo 3
48
manuscrita, assim como o de Walt Whitman, porém este foi colocado na lista
publicada junto a outros acréscimos como Ângela Carneiro e Cecília Meireles.
O escritor inglês T.S. Eliot, apesar de ter sido cortado da lista dos nomes da
filiação criada por Ana Cristina para si, é, certamente, um dos autores aos
quais Ana C. faz referência. Na palestra oferecida ao curso “Literatura de
Mulheres no Brasil”, em 1983, transcrito e incorporado à seção ‘Escritos no Rio’
do livro Crítica e Tradução (1999), a autora fala um pouco sobre a escrita de
Eliot ao falar sobre a poesia moderna:
Eu acho que esse corte [na poesia, o corte do não dito, daquilo que fica por dizer] está ligado muito à poesia moderna. A poesia moderna é uma poesia que se lanceta. Ela é toda cheia de arestas, é angulosa, não tem, digamos, um desenvolvimento coerente, linear. [...] Ela tem a ver, mesmo, com alguma coisa do urbano, que é assim cortado, caótico, fragmentado. Ela é fragmentária (CESAR, 1999b, p.261).
Ana C. não diz diretamente sobre sua identificação com a poesia moderna,
tratando-a com algum distanciamento, como se não fosse essa parte de sua
estética, mas quando se lê muitas de suas poesias, esse diálogo com a poesia
moderna aparece. Poemas que fazem referência à conversação, na qual os
cortes aparecem, também são comuns, especialmente em A teus pés:
Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico, produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das asas batendo freneticamente. Apuro técnico. [...] Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de ontem. Gertrude: estas são idéias bem comuns. Apresenta a jazz-band. Não, toca blues com ela. Esta é a minha vida Atravessa a ponte. É sempre um pouco tarde. Não presta atenção em mim. Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio. Estamos em cima da hora. Daydream. [...] Estamos parados, Você lê sem parar, eu ouço uma canção. Agora estamos em movimento. Atravessamos a grande ponte olhando o grande rio e os três Barcos colados imóveis no meio. [...] Agora é a sua vez. Do you believe in love...? Estão está.
49
Não insisto mais (CESAR, 2013, p.77, trechos selecionados e grifo nosso).
Assim como fala sobre o poema de Eliot, no qual ele “coloca uma cena duma
cartomante jogando cartas e, de repente, ele corta, ele está em Londres,
atravessando uma rua; de repente, ele corta, está no fundo do mar falando com
as sereias [...]” (CESAR, 1999b, p.261), da mesma maneira o poema acima
transcrito é todo elaborado a partir da ideia de corte, lembrando a imagem
cinematográfica, de fragmentos, de incompletude. Importante notar ainda
referência à poeta e ao coloquialismo de Gertrude Stein, cujo nome está
presente no índice onomástico.
Carlos Drummond de Andrade é outra figura ilustre que compõe o índice de
Ana Cristina. A “homenagem” ao autor aparece em “O Homem público nº 1”,
cujos versos foram roubados aleatoriamente de uma de suas crônicas e
montado, como em um pastiche, na elaboração do poema, conforme confessa
a própria poeta:
Agora, sabe o que é esse poema? Esse poema não é meu literalmente. Aí é que existe uma questão da autoria que é sempre balançada. Você nunca sabe direito quem é o autor... Autoria é uma coisa muito esquisita. Isso aqui é uma crônica do Drummond. O Drummond escreveu uma crônica e isso aí são fragmentos, palavras da crônica de Drummond (CESAR, 1999b, p.272).
O episódio descrito por Ana Cristina traz à tona outra importante questão que
permeia tanto as noções de obra e publicação quanto a poética de Ana C. em
si: a autoria. A relação dela com essa “coisa muito esquisita” é sempre
bastante problemática, já que a autora rouba confessamente versos de outros
escritores num constante diálogo com sua tradição, conforme assinala Maria
Lúcia de Barros Camargo, em sua análise Atrás dos Olhos Pardos: uma leitura
da poesia de Ana Cristina Cesar (2003):
É evidente que toda obra literária tem relação com a tradição que a antecede, seja por influências, seja por adesão, por mímese, por negação, por resistência, por releitura ou recuperação [...] Mas em Ana Cristina a relação com a tradição literária não vai se limitar a influências, nem será apenas prática epigonal da modernidade. É o processo construtivo da obra, conscientemente planejado e elaborado: paródias, pastiches, apropriação de versos, alusões e referências diretas a autores amados, a amigos e a outras artes (p. 118).
A partir do momento em que seu cânone pessoal deixa de ser apenas um eco
e passa a configurar uma reverberação do outro, enquanto método de trabalho,
50
a questão de autoria passa a ser um ponto de indagações na poética de Ana C.
A crítica literária, do final da década de 1960, foi marcada pelo apagamento do
autor decretada por Roland Barthes no texto A morte do autor (1968). Para
Michel Foucault em O que é um autor? (2000) no entanto, não basta aniquilar a
presença do autor, é preciso compreender o que há nesse espaço deixado pela
figura do autor, nas palavras do filósofo:
Mas não chega, evidentemente, repetir a afirmação oca de que o autor desapareceu. Do mesmo modo, não basta repetir indefinidamente, que Deus e o homem morreram de uma morte conjunta. Trata-se, sim, de localizar o espaço deixado vazio pelo desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto (p.41).
A impossibilidade de manter esse espaço vazio está na necessidade de se
vincular uma obra a alguém que a tenha escrito e o nome próprio do autor
funciona como um arquivo, um agrupamento dessas obras a ele atribuídas,
possui então uma função classificativa. Ora, se o nome do autor exerce
basicamente uma função no contexto da obra, a morte do autor, de acordo com
Foucault, faz surgir a necessidade daquilo que define como a função autor.
Essa função autor é definida na obra de Foucault por quatro características,
entre as quais uma que particularmente interessa à função exercida por Ana
Cristina em sua obra, trata-se da função como objetos de apropriação: “Os
textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores [...] na
medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em
que os discursos se tornaram transgressores” (FOUCAULT, 2000, p.47). A
autoria enquanto função passa pelo sentido de pertencimento da obra como
um produto. Vimos, em Barthes, que o produto proveniente da obra é o texto e
este pode ser retomado, enquanto a obra jamais pode ser reescrita. O que Ana
Cristina faz é justamente recriar textos, retomando-os, a fim de que a sua
própria obra se crie, assim, quando a poeta rouba trechos de Drummond ela
retira a autoria do escritor e imprime a sua assinatura.
Outra característica do autor, segundo Foucault, é “uma espécie de foco de
expressão, que, sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta da mesma
maneira, e com o mesmo valor, nas obras, nos rascunhos, nas cartas, nos
51
fragmentos, etc” (FOUCAULT, 2000, p.53-54). A função autor, portanto, é aquilo
que permite buscar um sentido de unidade mesmo diante de um conjunto que
não comporta a homogeneidade. Ou seja, ainda que a união de todo esse
material presente no acervo de Ana C., suas cartas e sua obra publicada em
vida seja tão plural entre si, há algo que os une de alguma maneira – a função
autor.
Apesar de defender um recalcamento da figura do autor, Foucault reconhece
que “o anonimato literário não nos é suportável; apenas o aceitamos a título de
enigma” (2000, p.49-50). Retomando a pergunta inicial que move as reflexões
de Foucault: “Que importa quem fala?” Para a crítica textual não importa, pois
mais vale o que Ana C. fez daqueles textos de outros autores do que
propriamente quem primeiro os pronunciou – ou escreveu. Para a crítica
biográfica, no entanto, importa conhecer os autores aos quais Ana C. remete,
pois suas preferências literárias muito têm a nos dizer acerca de seus métodos.
Faz-se necessário, portanto, que a figura do autor retorne à cena. Mas dessa
vez não mais como aquela figura aurática que precedia o texto e legitimava sua
obra, mas despertado pelo que o próprio Barthes, ao reconhecer o desejo do
leitor pelo autor, anuncia como uma virada biográfica:
Para mim (…), a virada se deu no momento de O prazer do texto: abalo do superego teórico, volta aos textos amados, “desrecalque” do autor → Pareceu-me que também à minha volta, um gosto se declarava, aqui e ali, por aquilo que poderíamos chamar – para não abordar o problema das definições – a nebulosa biográfica (Diários, Biografias, Entrevistas personalizadas Memórias etc.) (…) A “curiosidade” biográfica desenvolveu-se então, livremente, em mim (BARTHES, 2005, p.168).
É embalado pelo retorno do autor que desponta-se o interesse pelas suas
gavetas – e de trabalhos como este. Em seu arquivo pessoal o autor emana
através de seus papéis manuscritos, reescritos, rasurados, fragmentários. Ali
ele “reaparece com seu traço e resíduo, sua marca autoral”, conforme pontua
Eneida Maria de Souza (2009, p.130). Ainda que disfarçando-se atrás de
óculos escuros ou de poemas encobertos pelos enigmas, Ana Cristina exerce a
autoria e a posse de seus textos ainda que neles versem textos de outros.
52
1.5 Os livrinhos de Ana C.
Ana Cristina Cesar é identificada dentro da literatura brasileira como integrante
de uma geração de poetas que confeccionava seus livros artesanalmente e
distribuía-os, os poetas marginais. De acordo com definição de Eucanaã
Ferraz, para a apresentação do livro Poesia Marginal – Palavra e livro (2013),
essa geração de 1970 estava produzindo poesia num tempo em que:
Sabia-se na carne – literalmente – o que se sabe: que toda palavra é ação e toda ação é política. Fazendo o ato poético crescer para fora de seus limites convencionais – a margem pode ser, muitas vezes, mais vasta do que se imagina –, os poetas misturaram poesia e futebol, poesia e carnaval, poesia e música, poesia e artes plásticas, poesia e teatro, trazendo ao território da palavra tudo o que expressasse a urgência de contrapor à solidão o companheirismo, à incerteza a esperança, à violência a alegria, ao autoritarismo a liberdade, à morte a vida (p.7).
Frederico Coelho (2013), ao fazer uma revisão do movimento marginal da
década de 1970, descreve-o como uma máquina de futuros: “Uma máquina
cujas engrenagens, mais velozes que a energia que as alimenta, geram
descompassos inevitáveis com seu tempo. São os desencontros entre aqueles
que vivem da fabulação e os dias práticos do mundo” (p.11). Para o ensaísta,
essa geração, cujo motor era a transgressão, buscava outras formas de
publicação, não por princípios anti-mercadológicos, mas por falta de abertura
desse mercado à nova geração de poetas. O mimeógrafo, hoje um símbolo
dessa poesia, aparece como uma saída prática para essa “escrita urgente”, ou
seja, “o poeta é marginal porque escapa das limitações do mercado editorial
oficial e publica seus poemas de forma artesanal ou independente” (COELHO,
2013, p.25 – p.26).
Heloísa Buarque de Hollanda organizou em 1975 um livro com alguns desses
nomes, 26 poetas hoje (2007) buscando imprimir um retrato da geração de
poetas da época, cujos livrinhos transitavam, até então, bem distantes do
mercado editorial. Segundo a organizadora os livrinhos circulavam nos bares e
em portas de teatro em edições mimeografadas ou em offset. O movimento é
descrito por Hollanda da seguinte maneira:
Frente ao bloqueio sistemático das editoras, um circuito
53
paralelo de produção e distribuição independente vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia. Planejadas ou realizadas em colaboração direta com o autor, as edições apresentam uma face charmosa, afetiva e, portanto, particularmente funcional (2007, p.9).
No início da década de 1980 a editora Brasiliense começa a despertar para o
interesse nessa produção com a coleção Cantadas Literárias inaugurada pela
poeta Ana Cristina Cesar em 1982. Todavia, sem dúvidas, é a produção
independente e artesanal que dá o tom e caracteriza a geração.
Antes de lançar A teus pés (1982), pela editora Brasiliense, os três livros
anteriores de Ana Cristina Cesar pertencem à fase do mimeógrafo, ou seja,
foram publicados em edições independentes. Os créditos ao livro Cenas de
Abril, impresso na Cia. Brasileira de Artes Gráficas, revelam que ele foi lançado
em junho/julho de 1979 e que participaram da “Equipe do coração” (CESAR,
2013, p.16) Luis Olavo Fontes na produção e Heloísa Buarque de Hollanda no
projeto gráfico.
Figura 2: (FERRAZ, 2013, p.113)
54
Correspondência Completa foi lançado no mesmo ano. Com esse título irônico,
no livro encontra-se apenas uma carta, escrita por Julia ao misterioso
remetente “My dear”. O livrinho, de apenas 10,5 x 7 cm, carrega ainda outra
brincadeira, em seus créditos lê-se “2ª edição” (CESAR, 2013, p.45), quando,
na verdade, não há uma edição anterior. Heloisa Buarque de Hollanda, que
novamente assina o projeto gráfico, e Armando Freitas Filho, que aparece nos
créditos como assessor editorial, buscaram nesse livrinho a inspiração para o
título Correspondência Incompleta do compilado, naturalmente incompleto, de
cartas de Ana C.
Figura 3: (FERRAZ, 2013, p.112)
A respeito dessas produções, Heloisa Buarque de Hollanda (2007) destaca “a
tão frequente presença do autor no ato da venda o que de certa forma recupera
para a literatura o sentido de relação humana” (p.10), este geralmente
participava de todo o processo, da criação poética à distribuição. Ana Cristina é
uma das poetas que se preocupava com todo o processo de criação dos
livrinhos. Em cartas à Heloisa Buarque, Ana descreve com entusiasmo o
processo de criação de Luvas de Pelica (1980), elaborado durante sua viagem
à Inglaterra e publicado com o selo da nova coleção Capricho, criada por ela
em parceria com o poeta Eudoro Augusto:
55
Hoje saímos para fotografar porque além de fazer casinha sem parar estou transando um livrinho. Fechei o texto e resolvi fazer no ato. O irmão do Chris tem uma off-set na garagem, em Yorkshire. Já tive a primeira aprendizagem. Mão-de-obra seremos nós. [...] descobri uma lojas diabólicas em Londres, onde você senta e fica folheando milhares de mostruários de papel. Comprei o catálogo letraset e passei as tardes brincando. E uma caneta Rotring porque sou eu que vou compor o livro à mão (CESAR, 1999a, p.65-66).
Um mês depois, outra carta revela o livro impresso e o início do processo
artesanal da composição:
1º) Meu livro está quase pronto. Mandei compor num tipo tiffany light. Como é que fala nos créditos? “Composto no lugar tal em tipo Tiffany light?” Soa estranho. A composição vem em rolos inteiros de papel, agora faço o artwork com tesoura e cola. Perdendo o mistério (CESAR, 1999a, p.71).
Figura 4: (FERRAZ, 2013, p.114)
56
Não estando no Rio de Janeiro, Ana C. narra ainda o projeto de distribuição de
Luvas de Pelica, pedindo sugestões da correspondente:
[...] eu precisava demais de um esquema de distribuição que me substitua eficazmente. [...] Então quero um agente (pergunta pra Lula, Pedro ou André também) na base de 50%. [...] Calculo que o livro chegue aí em dezembro ou janeiro. O agente seria eficiente, profissional, rápido, urgente. Divulgar & circular. Funcionará? Terminará aqui carreira de autogestão? (CESAR, 1999a, p.71-72)
A ampla participação do autor, conforme cita Heloisa Buarque, “determina, sem
dúvida, um produto gráfico integrado, de imagem pessoalizada, o que sugere e
ativa uma situação mais próxima do diálogo [...]” (2007, p.9). O ato reitera o
compromisso da literatura produzida entres os anos 1970 e 1980 de romper
com o elitismo e eruditismo aproximando o público e mostrando que “lugar de
poesia é na calçada”.
Na trajetória de Ana Cristina a concepção do material é elaborada com zelo. A
presença de várias capas e provas de livros guardadas em seu acervo
comprovam a dedicação aplicada a eles. O capricho vinha desde a infância,
quando transformava cadernos em livros autorais com direito a capa e marca
da “Editôra Problemas Universais” presente em muitos deles.
Figura 5: ACC_Pi_Poemas de Ana Cristina Cesar_000443-001) Acervo Instituto Moreira Salles
57
Figura 6: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_001) Acervo Instituto Moreira Salles
58
Figura 7: (ALMEIDA, 2013)
59
Apesar da tenra idade, Ana Cristina já se via como “a autôra”, conforme assina
a folha de rosto do caderno pequeno de capa cor de vinho e em cuja lombada
se lê: “Poesias de Ana Cristina – PIM – Poesia e Inspiração Minha”. Os
poemas ali presentes datam do ano de 1961, ou seja, a autora tinha apenas
nove anos.
Com o mesmo título “Poesia e Inspiração Minha” foi produzido outro caderno,
este grande de atas com a capa verde escura hoje já escurecida pelo tempo.
Ali constam poesias escritas de 1962 e 1963. A parte de trás da capa, porém,
anuncia o retorno da poeta ao seu livrinho no ano 1967, agora uma
adolescente sentindo o amadurecimento de sua poesia, julga seus textos e
retoma o caderno com nova produção e anuncia: “Não me chamem de poetisa
que rima com latrina”.
Figura 8: (ACC_Pi_Poemas de Ana Cristina Cesar_000443-043) Acervo Instituto Moreira Salles16
Nos demais livrinhos mais poesias, grades narrativas, histórias de férias,
lembranças dos sonhos e fatos do cotidiano tornam-se matéria literária para a
jovem poeta. Entre os cadernos, até mesmo, uma autobiografia feita ainda na
16 Ver Anexo 4.
60
infância contando do dia do nascimento e histórias da infância que já apontam
para o gosto pela escritura:
“Mas... no dia 23 de dezembro (aniversário da mamãe), de 1953, caí da cadeira e quebrei meu braço! (esquerdo, mas como ainda não escrevia, não me importei). Adiante, a poeta apresenta, ali, seu talento para a poesia: “gosto muito de contar histórias para minhas colegas, na classe. Minha mãe ouve e escreve o que eu digo. São poesias inocentes e puras de uma criança”.
Figura 9: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_005) Acervo Instituto Moreira Salles17
17 Ver Anexo 5
61
Figura 10: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_015) Acervo Instituto Moreira Salles
62
Figura 11: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_016) Acervo Instituto Moreira Salles
63
Figura 12: (ACC_Pi_Memórias de uma criança_028) Acervo Instituto Moreira Salles
Este caderno apresenta também vestígios do passado, ainda recente, de Ana:
o cartão que anuncia seu nascimento, o exame de raio-x exigido pelo Colégio
Bennett, um ditado escolar de 1958, um cartão de natal com a fotografia da
64
turma do colégio, uma carta que recebeu da escritora Lúcia Benedetti
elogiando-a pela sua poesia publicada no jornal da escola. Memórias de uma
criança configura, pois, um arquivo infante e infantil de Ana Cristina.
Já adulta, o gosto por transformar cadernos em livros foi preservado, de certa
maneira, como mostra o caderno “Meios de transporte”:
Figura 13: (ACC_Pi_Meios de transporte_000392-001) Acervo Instituto Moreira Salles
O caderno de atas de capa preta foi usado por Ana Cristina para desenvolver,
provavelmente, o projeto do que seria o A teus pés, título que, aliás, não
aparece em momento nenhum ao longo do caderno. Entre os nomes
sugeridos: Meios de Transporte, Branco e Blue e ainda Bem Objetivo (Edição
Bilíngue). O que torna a suposição plausível é a presença de muitos textos
publicados no livro da editora Brasiliense e a presença do já citado índice
onomástico. A lápis, no topo da primeira página de manuscritos de poemas a
frase indica “o início de tudo”:
65
Figura 14: (ACC_Pi_Meios de Transporte_000391-003) Acervo Instituto Moreira Salles18
18 Ver Anexo 6.
66
O poema que daria início ao livro em potencial é o mesmo que inaugura A teus
pés, porém em versão diferente da que foi publicada. Um poema por página,
como num livro mesmo, e em cada uma delas marcas de retorno ao texto com
alterações, cortes, rasuras e sinalizações, como pontos de interrogação e “ok”,
que sugerem escolhas daqueles que devem ser publicados. A respeito dessa
manutenção do arquivo trataremos adiante.
Por ora, coube-nos visualizar a materialização do desejo de Ana em mostrar-se
“autôra” de livros desde muito criança. A presença deste tipo de material, bem
como sua permanência no acervo tantos anos depois, apontam, mais uma vez,
para uma Ana Cristina apegada a seus papéis, arquivista de si.
67
CAPÍTULO II
“Uma voz me delineia: VORAZ”
68
2.1 Uma sereia de papel: Ana C. como arquivo
A história está completa: wide sargasso sea, azul
azul que não me espanta, e canta como uma
sereia de papel19
O diário íntimo permite em sua concepção a bricolagem: mistura de materiais,
gêneros, recortes, colagens, textos de outros. Configurando-se como um
suporte heterogêneo em si mesmo, o diário é aquele que recolhe e guarda os
restos do vivido. À sua semelhança configura-se o arquivo: heterogêneo, plural,
múltiplo e também residual, incompleto, fragmentário. Ana Cristina não
escreveu sua autobiografia em vida, conforme já comentamos no primeiro
capítulo. Seus escritos, portanto são os únicos testemunhos autógrafos de sua
inscrição.
Não devemos, contudo, confundir inscrição de si com escrita confessional.
Somente rasgos de verdade são permitidos na poética de Ana Cristina. Por
escrever nas imediações da escrita do íntimo armava-se para defender a
distância entre a verdade e a literatura. Em sua última entrevista – um evento
para os alunos da PUC, antes que o tema da escrita de si entre em pauta, Ana
já começa falando da contracapa de A teus pés (1983) assinada pelo amigo e
também escritor Caio Fernando Abreu que escreve20: “Fascinada por cartas,
diários íntimos ou o que ela chama de “cadernos terapêuticos”, Ana C. concede
ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia
pelo buraco da fechadura.” (CESAR, 2013, p.446). Ana praticamente emenda
sua apresentação pessoal ao assunto da quarta capa do livro:
[...] vou falar uma coisa de cara. Vou falar da contracapa do livro. Essa contracapa foi escrita pelo Caio Fernando Abreu, que é um escritor que eu gosto muito, um amigo, e que vai pegar os meus textos exatamente por um lado que eu queria desmontar aqui, que é um lado de cartas... e diários íntimos... e correspondências... e revelações... e ocultamentos. E queria dizer pra vocês que isso é desmontado em A teus pés (CESAR, 1999b, p.256).
19 Publicado em A teus pés. In: Poética (CESAR, 2013, p.91) 20 O texto foi publicado nos apêndices do livro Poética (2013).
69
Querer “desmontar” uma ideia é saber que se trata de uma ideia plausível, um
caminho de leitura. Sinuoso, mas um caminho. Incerto, mas um caminho.
Trilhá-lo exige conhecer as artimanhas e a astúcia de Ana Cristina em
esconder-se em seus escritos. Vale lembrar ainda que, segundo Leonor Arfuch
– ao tratar da entrevista no livro O espaço biográfico (2010) –, no momento da
entrevista, o escritor constrói um personagem daquilo que quer passar para o
seu público. O espaço midiático é um espaço biográfico de elaboração de si, no
qual o escritor “administra tão bem sua imagem pública que acaba fazendo de
sua vida sua obra” (ARFUCH, 2010, p.218). Ana Cristina ao apresentar-se para
seus leitores naquele auditório cuida da imagem de poeta que quer passar,
assim como também cuidou dessa imagem ao escrever seus diários simulacros
para A teus pés (1983). A entrevista configura o momento de unir essas duas
obras, o livro e a poeta, em prol de uma verdade que não é real, mas a verdade
do texto:
Agora nessa conversa, nesse pacto aqui nosso, eu puxei que a gente pode cair que nem um patinho na armadilha da intimidade, achar que estou revelando minha intimidade ou escondendo minha intimidade e não é isso, sabe? Podemos puxar outros. Ler é meio puxar fios, e não decifrar (CESAR, 1999b, p.264).
É pela chance de ser lida pela decifração da subjetividade que Ana Cristina,
como uma esfinge, constrói sua poesia cheia de enigmas e mina as
possibilidades de interpretação ao longo da entrevista, colocando o leitor como
aquele que “pode cair que nem um patinho” (1999b, p.263) se insistir na leitura
“autobiografílica21” de seu texto. Essa guarda levantada pela poeta é também
matéria de poesia, como em “Três cartas a Navarro”, série de cartas escritas
por Ana C. assinadas por um remetente “R.”, para o destinatário Navarro:
Navarro,
Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não per-
mitas que digam que são produtos de uma mente doentia!
Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo biografílico.
Ratazanas esses psicólogos da literatura – roem o que
encontram com o fio e o ranço de suas analogias baratas.
Já basta o que fizeram ao Pessoa. É preciso mais uma
vez uma nova geração que saiba escutar o palrar os
signos.
21 Em referência ao termo criado por Ana Cristina em Três Cartas a Navarro, para designar a leitura de
um autor pela sua biografia.
70
R. (CESAR, 2008, p.17).
A série é constantemente citada para exemplificar artigos cujos objetos de
estudos tratam da tão problemática relação entre vida e obra no que tange à
poética de Ana Cristina Cesar, como se esta, assinando “R.”, estivesse fazendo
o pedido de que seus poemas não fossem analisados por um viés psicanalítico.
Mais que repetir um lugar comum, insistir no uso desse poema é reafirmar sua
pertinência. Não cometeremos a ingenuidade de ler a assinatura do eu-lírico R.
do remetente como alguma voz reverberante de Ana C., contudo, não podemos
ignorar a recorrência com a qual a temática da escrita de si aparece na
literatura e nas cartas da poeta.
Seu repertório é marcado pela escrita do íntimo, muitas vezes erroneamente
lida como escrita do próprio íntimo através de leituras que visam aproximar vida
e obra como coincidentes, desconsiderando a faceta fingidora do poeta, como
cita Pessoa, ou seja, o trabalho de ficção que há mesmo na proximidade com o
tom confessional. Assim, a poesia de Ana tangencia o íntimo, apostando na
recriação de gêneros que trabalham com a intimidade como as cartas, bilhetes
e páginas de um diário. Ao transmutar esses gêneros em literatura, a verdade
que o leitor espera emanar deles cai por terra, pois se tornam simulacros de
diários e bilhetes envoltos de segredos fingidos.
Exemplo pontual do jogo de revelar e esconder falsas confidências, travado
entre a poeta e seus leitores, lê-se no poema a seguir, presente no livro A teus
pés (1999), no qual Ana convida: “Vamos tomar chá das cinco e eu te conto
minha grande história/ passional, que guardei a sete chaves/[...]”, mas logo
deixa claro que não pretende entregar as chaves: “Eu nem respondo. Não sou
dama nem mulher moderna. / Nem te conheço” (CESAR, 2013, p.81). E o leitor
volta à estaca zero das revelações.
Eu-lírico e poeta, conforme tratamos, não se fundem na poesia de Ana C., mas
constantemente se confundem no conflituoso espaço da escrita,
embaralhando-se a fim de que nem um nem outro se desnude diante do leitor.
O biográfico, quando se deixa emergir, o faz através de referências
incompletas, enigmas, códigos, iniciais misteriosas. É o caso de “Páginas
impublicáveis”. O texto em prosa poética narra um acontecimento envolvendo
71
um homem e uma mulher, tratados apenas como ele e ela, e a vontade dela
em reprimir certo desejo descrito diante da justificava da amizade que já
domina o relacionamento:
Figura 15: (CESAR, 2008, p.151)
72
É possível observar que no final da prosa o narrador se trai e manifesta-se ora
em terceira, ora em primeira pessoa, dando, talvez, pistas de que se trata de
uma confidência íntima de si. Até aqui o jogo entre o “deslize” para a primeira
pessoa poderia tranquilamente ser lido apenas como um dos recurso da dicção
confessional nada confessional de Ana. Seria uma maneira literária de
expressar dificuldades nos relacionamentos amorosos quando o objeto do
desejo está encarnado em um ser que também é amigo. Ao confrontarmos
“Páginas impublicáveis” com trechos das cartas trocadas com as amigas,
somos compelidos a fazer inferências sobre quem é “A.C” da dedicatória
manuscrita à caneta azul no canto da página. A codificação “De A.C pro A.C”
torna aceitável que julguemos o poema em prosa como um exercício de
ficcionalização de um acontecimento real pelo qual passou Ana Cristina com
Cacaso, cujo o nome é Antônio Carlos de Brito.
Isso posto, é possível estabelecer uma relação entre o poema escrito em prosa
e o caso narrado por Ana atualizando para as amigas, Maria Cecília Fonseca e
Ana Cândida Perez, os últimos acontecimentos no Rio:
Ligara eu pro Cacaso que me disse, referindo-se ao porre: “se você soubesse o que você fez naquela noite, não gostaria nada”. E: “é preciso ser um samurai 24h por dia!” Ao perguntar por que, ouvi que samurai é um rigoroso, de um fino rigor sempre alerta. Fiquei écrasée com a bronquinha, veja só! Me pareceu terrível o Cacaso não me amar, não admitir deslizes. [...] No porre fiquei declarando amor ao Cacaso e dizendo pra ele parar de estudar. [...] Agora quando penso no porre fico chateada, mal ou bem não tinha eu nada que ficar intervindo no Cacaso. É difícil entender que a nossa história é só nossa, é intransferível, incomparável, são outras as materialidades e os pesos. Alfabetização (CESAR, 1999, p.153, grifos nossos).
Em carta à Ana Cândida nova peça: “No Rio, tomei um porre de uísque
nacional na casa do Cacaso.” (CESAR, 1999, p.262). As cartas foram escritas
em datas próximas, 28 e 31 de julho de 1977, respectivamente. A leitura das
mesmas permite inferir um acontecimento envolvendo Ana Cristina e Cacaso, o
qual tomamos como verídico levando em conta que está sendo narrado em
carta íntima, a princípio sem intenções literárias.
A página não está entre os textos publicados em vida pela autora, mas seu
datiloscrito integrava uma seção de poemas ordenado pela arquivista como
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Prontos mas rejeitados, sobre a qual nos deteremos adiante. Apontando que a
Ana C. que se permite desvelar-se em poesia, ainda que de maneira implícita e
codificada, destina a página escrita à alcunha de impublicável, rejeita-a, tranca
a sete chaves.
Impublicáveis mesmo – pelo menos até agora – estão os seus diários íntimos.
A existência deles é a priori apenas uma suspeita que pode ser levantada tanto
pela proximidade com a qual Ana C. se apropria do gênero em suas poesias,
nos permitindo apontar intimidade com o formato; quanto por falas como o
trecho abaixo de carta escrita à Maria Cecília, no qual Ana assume “dizer” algo
ao diário íntimo:
Somente a dicção nobre poderia a tais alturas consolar-me,
dizia eu recentemente pro diário íntimo, cheio de páginas bem
escritas e inacabadas na impotência. Na verdade eu tenho é
pena de mim e escrever seria chafurdar nessa pena, ditar
consolos. O tom seco dos textos “modernos” querem exorcizar,
tematizar a pena, e não afundar nela (1999a, p.164).
A literatura de Ana C. dialoga com os gêneros confessionais, ainda que
inconfessando-se, conforme já comentamos. Em seus textos de cunho crítico,
escritos principalmente na década de 1970 para jornais e revistas22, a teórica
Ana Cristina já ensaiava assuntos que associavam “literatura-invenção” e
“literatura-diário”23. De acordo com Maria Lucia de Barros Camargo, em seu
estudo sobre a poesia de Ana C. “Atrás dos olhos pardos” (2003), os artigos de
Ana Cristina, especialmente aqueles publicados no final de 1976, lançavam
luzes para a problemática envolvendo as relações entre ficção e realidade
pensadas a partir dos gêneros literários em obras e autores diferentes entre si.
Segundo Camargo (2003):
Trata-se de ver as relações entre literatura e biografia, literatura e documento, literatura e história, romance e confissão. E, portanto, de pensar o diário e a correspondência como formas que permitem a elaboração dessas questões a partir do texto. Certamente não foi para fazer confissão que Ana Cristina escreveu e publicou seus fragmentos de diário íntimo. Foi para fazer literatura (p.60).
A afirmativa pontual da autora confirma que os diários íntimos da poeta, na
verdade simulacros de diários, elevam a questão da escrita de si em Ana C. a
22 Reunidos em Crítica e Tradução (CESAR, 1999) 23“Para conseguir suportar essa tonteira” in Crítica e Tradução (1999, p. 167)
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outro nível: o fazer literário e o fazer a si mesma enquanto literatura. Escrita e
inscrição.
Em entrevistas com os amigos de Ana C. é comum que eles tratem da
compulsão pela escrita pela qual passava a poeta, confirmada também pelo
grande número de escritos em guardanapos de papel. Em depoimento ao
programa "Entrelinhas" da TV Cultura, Armando Freitas Filho fala que a amiga
tinha algo como um impulso pela escrita, escrevendo, até mesmo no ar, na
ausência de lápis e papel, enquanto falava ou pensava. Ítalo Moriconi (1996),
ao conversar com a mãe de Ana Cristina e verificar a mesma maneira de
movimentar as mãos enquanto fala, descreveu nostálgico e poeticamente o
gesto:
Como era intensa a gesticulação das mãos de Ana Cristina! [...] Mas ela falava ainda mais com as mãos, femininas no branco delicado da pele, mas masculinas no jeito brusco com que pontuavam suas afirmativas quando o que estava em pauta era a Ana muito segura, muito conclusiva, muito ordenadora do real. A sedutora falava com a voz, com os olhos. Mas quem mandava eram as mãos (MORICONI, 1996, p.87-88).
Por tudo isso fica difícil imaginar que a poeta não mantivesse um diário com
seus registros mais íntimos, todavia, em seus papéis sob guarda do Instituto
Moreira Salles ele não se encontra. Não sendo possível saber, portanto, se
Ana livrou-se dele antes de sua morte; se a família, resguardando sua imagem
e a dos amigos ali inscritos, optou por mantê-lo em segredo; ou mesmo se não
passa de um mito do imaginário de pesquisadores ansiosos por respostas,
chaves, decifrações, obscurantismos biografílicos – parafraseando a poeta.
Dessa forma, na ausência do seu diário, essa pesquisa se apropria do arquivo
de Ana C. como seu local de inscrição, seu diário, seu espaço (auto)biográfico.
A pesquisadora argentina Leonor Arfuch em seu trabalho O espaço biográfico:
dilemas da subjetividade contemporânea (2010) lida com as diferentes
configurações da biografia (e autobiografia). Os dilemas, os quais o subtítulo
evoca, são as vicissitudes da construção discursiva do eu possibilitadas, além
das formas tradicionais, pelas mídias contemporâneas. Por tratar-se de uma
construção discursiva, Arfuch lança sobre essas formas de (auto)biografia uma
leitura através de seu caráter dialógico, lembrando Mikhail Bakhtin, em que
para falar si reverbera-se o encontro de muitas vozes.
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Ao empregar o termo espaço biográfico de Philippe Lejeune24 resignificando-o,
Arfuch visa ao estudo dos gêneros (auto)biográficos diante da reconfiguração
da subjetividade, considerando novos espaços de inscrição e narrativa do eu.
Para a autora a definição de "espaço biográfico" contemporâneo se expande
para além dos gêneros canônicos como biografias, autobiografias, memórias,
envolvendo toda uma tendência de inscrição da subjetividade em diferentes
aspectos. Possibilitando, assim, a delimitação de um universo e fazendo uma
leitura desse espaço “enquanto horizonte analítico para dar conta da
multiplicidade, lugar de confluência e circulação, de semelhanças de família,
proximidades e diferenças” (ARFUCH, 2010, p.22).
Assim, se, de acordo com a proposta de Arfuch, a subjetividade
contemporânea se manifesta pelas biografias, autobiografias, confissões,
memórias, diários íntimos, correspondências, os talk shows e reality shows, por
que não acrescentar a esse espaço biográfico os arquivos como locais de
guarda e narrativa da memória?
Apesar da nova espacialização proposta pela pesquisadora argentina conduzir
aos recursos midiáticos novos e antigos – das entrevistas aos talks ou reality
shows –, parece possível incorporar o arquivo a este espaço biográfico. Isso se
pensarmos que também o arquivo, assim como o que se agrega a tal espaço,
inscreve-se em uma espacialidade
onde confluíam num dado momento formas dissimilares, suscetíveis de serem consideradas numa interdiscursividade sintomática, por si só significantes, mas sem renunciar a uma temporalização, a uma busca de heranças e genealogias, a postular relações de presença e ausência (ARFUCH, 2010, p.22).
Assim, justifica Arfuch o empréstimo metafórico do termo espaço biográfico de
Lejeune. O arquivo cujo espaço de convergências heterogêneas permite a
inscrição daquele que se arquiva, é um lugar de manifestação da subjetividade
e da escrita de si, portanto pode ser lido como integrante do espaço biográfico.
Nossa aproximação entre esses espaços passa pela necessidade levantada
pelo escritor de construir-se em cada um desses lugares de elaboração de si.
24De acordo com Leonor Arfuch, o espaço biográfico para Lejeune (1980) compreendia “a ‘um passo
além’ de sua tentativa infrutífera de aprisionar a ‘especificidade’ da autobiografia como centro de um
sistema de gêneros literários afins.” (ARFUCH, 2010, p. 22).
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Ou seja, tanto no arquivo quanto no momento da entrevista ao público o
escritor é levado a criar uma imagem, promovendo uma “apresentação muito
cuidada de si” (ARFUCH, 2010, p.217).
Ao falar, em uma entrevista, sobre a impossibilidade da escrita da intimidade,
Ana Cristina fornece ao leitor uma chave de interpretação: “Se você vai ler esse
diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa...” (CESAR, 1999b, p.
259). Da mesma maneira com que a intimidade, a confissão, a escrita de si
escapa na elaboração poética ela também escapa do arquivo. Escapar,
todavia, significa que em algum momento ela estava ali e fugiu, perdeu-se,
deixando apenas fragmentos dessa intimidade, rastros de si.
Jeanne Marie Gagnebin problematiza a questão do rastro em Benjamin em seu
ensaio Apagar os rastros, recolher os restos25 (2012), tratando do paradoxo
“presença de uma ausência e ausência de uma presença” (p.27), inerente ao
pensamento benjaminiano sobre o rastro. Dentro dessa concepção, o rastro
aparece como um vestígio que sobrevive ao que escapa, aquilo que está
presente. Todavia por sua incompletude e seu caráter vestigial, está também
ausente, o signo não pode ser percebido como um todo. A fragilidade dessa
sobrevivência, condicionada ao sentido paradoxal, faz com que o conceito,
segundo Gagnebin, se estabeleça cercado pela ameaça “de ser apagado ou de
não ser mais reconhecido como signo de algo que assinala” (2012, p.27).
A escrita, enquanto elemento que é residual, sobrevive temerária subordinada
à interpretação. A preocupação de Ana Cristina com seu texto ultrapassa o
instante de criação, sendo o leitor – ou, o que deixar para o leitor? Como será
lido aquilo que ficou no arquivo? – parte das questões que perpassam sua
inscrição. Ana deixou um arquivo repleto de fragmentos cujo sentido inicial – se
é que existiu um sentido pensado como tal – não poderá jamais ser
recuperado. Mesmo para alguém que tinha intimidade com a escrita de Ana C.
definir esses escritos como poemas é um trabalho de recolher os restos,
resignificar os rastros. Assim se deu a concepção de Inéditos e Dispersos26 de
Ana Cristina César; a Armando Freitas Filho “coube dar título à obra e
25 O ensaio integra o livro Walter Benjamin: Rastro, aura e história (2012), organizado por Sabrina
Sedlmayer e Jaime Ginzburg. 26 Primeira edição data 1985.
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selecionar, na compilação feita, e dentro dos limites dessa edição, aquilo que
me pareceu, literariamente falando, mais conseguido e acabado”27 (CESAR,
2013, p.465), os textos ali presentes foram publicados, portanto, como poemas.
Entre eles, verificamos uma série de escritos datados dos primeiros anos da
década de 1980 nos quais a poeta faz uso do gênero confessional do diário. O
poema em prosa “dia 16 de outubro de 1983” joga com o segredo a ser
desvendado – mistério que cerca o diário íntimo – e a consciência de que
aquele que escreve mantém sua inscrição, seu testemunho:
Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei fora algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu queria deixar. É outro. Outro agora. Acredite se puder. Rejane por perto acompanhando meus progressos. Peço a ela encarecidamente que me faça o favor de lembrá-los. Eu mesma me exercito, mas que péssima memória! Notas, Armando. A memória Fraca para os progressos! Chega desse lero, Poesia virá quando puder. [...] Lembra que o diário era alimento cotidiano? Que importa a má fama depois que estamos Mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho. Diário não tem graça, mas esquenta, pega-se de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro prateado. Leiam se forem capazes (CESAR, 2013, p.309, grifos da autora).
Também a memória aparece como o grande problema da autobiografia, a
impossibilidade inerente a ela de permitir a completude. Assim, inconfessa
como de costume, o poema em prosa deixa claro que esse testemunho não
será nunca completo. A inscrição daquele que se registra é incompleta,
residual e deixa apenas um rastro do que foi.
Ao escrever “Joguei fora algumas coisas já escritas porque não era o
testemunho que eu queria deixar” Ana C. nos permite fazer uma leitura a partir
do que estabelece Gagnebin sobre o desejo de manutenção ou apagamento do
passado. Essa manutenção – ou manipulação? – do passado é possibilitada
pelas marcas que escolhemos deixar, os rastros que permitiremos ao outro
seguir.
27 O texto aparece na introdução feita por Armando Freitas Filho para a primeira edição de Inéditos e
dispersos (1985).
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Ainda no poema-diário, há um questionamento quanto à importância de se
deixar um testemunho: “Que importa a má fama depois que estamos Mortos?
Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho.” Importa o
testemunho, confirmando a tese que Gagnebin tece das leituras de Benjamin,
retomando em sua etimologia a palavra grega sèma, comumente traduzida
como rastro ou vestígio, mas cujo significado original está ligado a “túmulo”.
Num mesmo sentido, o verbo alemão cavar (graben), usado para remeter à
busca pelos rastros aproximando o trabalho do investigador de arquivos ao
arqueólogo, possui o mesmo radical de túmulo (grab). Assinalando, de acordo
com Gagnebin, o destaque dado por Benjamin à questão da morte quando
trata do rastro. Diz a teórica:
O verdadeiro lembrar, a rememoração, salva o passado, porque precede não só à sua conservação, mas lhe assinala um lugar preciso de sepultura no chão do presente, possibilitando o luto e a continuação da vida (GAGNEBIN, 2012, p.35).
O desejo de permanência é acentuado pelo desejo de deixar sua marca na
Terra para a posteridade. O paradoxo se dá quando junto desse está o desejo
de apagar dados, escolher o que fica, manipular a própria existência, escolher
o testemunho. O que fica para ser recolhido são os rastros.
À maneira com que a teórica afirma com relação à entrega de coleções de
livros, manter papéis também é uma forma de deixar “testemunhos de uma
mínima continuidade da própria existência” (GAGNEBIN, 2012, p.28). Quem
escreve, portanto, deixa – e sabe que deixa – um testemunho.
Também Jaime Ginzburg, em seu texto A interpretação do rastro em Walter
Benjamin (2012), se propõe a fazer uma leitura do conceito de rastro na obra
do filósofo alemão. Para o autor: “Observar um rastro no chão, um bilhete de
uma viagem feita no passado, uma fotografia, assim como contemplar um
espaço em ruína, pode envolver o esforço de pensar na existência à luz das
perdas [...]” (GINZBURG, 2012, p.109). A mediação do conceito está em
estabelecer uma leitura que não vise à totalidade, pois, como já esclareceu, o
termo sugere fragmento e restos, partes com as quais se pretende apenas
vislumbrar o todo. Assim, uma passagem de trem diz de uma viagem, um
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bilhete diz de uma interlocução, uma fotografia diz de um evento ocorrido. Os
objetos arquiváveis configuram um passado em ruínas que somente pode ser
revisitado em sua incompletude, através dos rastros. Pensar o rastro é
estabelecer relações entre o que resta e o que está ausente:
A partir de um resíduo, elemento restante de uma trajetória realizada, é possível elaborar uma perspectiva de compreensão ampla. A expressão “miragens”, utilizada por Benjamin, sustenta a ambiguidade do que é observado: é algo que pode ser visto, mas ao mesmo tempo é uma ilusão de ótica (GINZBURG, 2012, p.109).
O olhar para o arquivo pautado pela perspectiva do rastro nos permite tomar de
empréstimo a metáfora de Benjamin retomada por Ginzburg. À maneira das
miragens o arquivo constitui uma presença de elementos reais, por outro lado
ele não é nunca revelador de um todo. As ausências do arquivo, tudo aquilo
que por tantas razões foi suprimido, os rastros que foram apagados, revelam
sua natureza numa ilusão, não de ótica, mas de totalidade.
Ginzburg considera o rastro como uma chave de conhecimento. Para o autor:
Tratar um objeto como rastro implica admitir que ele tem mais de um significado possível. Além de sua presença imediata, nele se encontra uma cifra que pode ser tomada como condição para entender o que houve ou supor o que haverá (GINZBURG, 2012, p.112).
Trabalhar com os textos da oficina de trabalho da poeta é, sem dúvidas,
adentrar ao arquivo com uma penca de chaves em mãos, perseguindo a
metáfora. Cada papel ali deixado evoca uma presença imediata e tantas
ausências que jamais poderemos esclarecer – tampouco visamos. As chaves
também são caras a Ana Cristina, pois o termo faz-se presente em sua poética
de segredos. Assim, quando ao final do poema em prosa “dia 16 de outubro de
1983” o eu-lírico provoca: “leiam se forem capazes”28 sinalizando ciência de
que a poesia está repleta de cifras a serem – ou não – desvendadas.
A lesma que aparece ao final do poema deixando um rastro prateado é ela
mesma um fragmento das leituras de Ana Cristina. Sylvia Plath, a poeta
americana de quem foi tradutora em parceria com Ana Cândida, escreve em
28 Inéditos e dispersos (CESAR, 1998, p.201)
80
Os adormecidos29: “A lesma deixa um rastro prata” (2007, p.13). Ana Cristina
não traduziu esse poema, mas certamente teve contato com ele e dele se
apropria, deixando, assim como a lesma, um rastro, um indício que leve à
Sylvia Plath.
Impossibilitada de deixar pegadas, a lesma deixa um rastro. Ambos, pegada e
rastro, remetem aos vestígios deixados pelo homem comum, pelos escritores e
também pelos animais. De volta às Cartas a Navarro, que aparecem no início
desse bloco de discussões, o segundo dos já citados poemas-cartas faz
também uso de outras metáforas que remetem à animalidade:
Navarro, A animalidade dos signos me inquieta. Versos a galope descem alamedas a pisotear-me a alma ou batem asas entre pombos pardos da noite. Enchem o banheiro, perturbam os inquilinos, escapam pelas frestas em forma de lombri- gas. Ó melancólica impertinência das metáforas! Tenho pena de mim mesmo, pena torpe de animais aflitos. Ao animá-los me dobro sobre a pena e choro. Meus ouvidos vomitam ritmos, lágrimas, obedeço. Tenho medo de dizer que a forma das letras oculta amor, desejo, e a tua esquiva pessoa ao meu redor. Na próxima tentativa (e cinco espinhos são) não soltarei mais que balbucios. R.
A animalidade dos signos que perturba a voz poética que ressoa da carta-
poema, de alguma maneira, também incomoda Jacques Derrida. Na
conferência intitulada O animal que logo sou: (a seguir) (2002), o filósofo se
empenha em questionar o conceito de homem, partindo das particularidades
que diferem os homens dos demais animais. A motivação de sua fala, segundo
o próprio autor, se deu ao confessar a “experiência perturbadora”30 em ver-se
nu diante de seu gato que o olhava. A anedota desencadeia as reflexões
acerca das ipseidades humana e animal: “O animal nos olha e estamos nus
diante dele. E pensar começa, talvez, aí” (DERRIDA, 2002, p.57).
A nudez que move o pensar também está presente na palavra. Para Derrida
(2002): “O vestuário seria o próprio do homem, um dos ‘próprios do homem’”
(p.17). Inerente ao homem ele veste-se de roupas e igualmente de palavras,
29 Título original The sleepers, traduzido por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça. In:
PLATH, Sylvia. Poemas. Edição bilíngue. São Paulo: Iluminuras, 2007. 30 Derrida (2002, p. 33)
81
pois necessita tecer narrativas orais e escritas para si. A consciência da nudez
faz com que o homem além de se vestir, vista também as palavras, atribuindo a
elas significações. O arquivo está repleto de palavras nuas, diante dele o
homem se permite olhar para si e para o outro – que é a própria escrita. Mas
diferente do animal que simplesmente olha o homem nu, o homem não suporta
a nudez do arquivo e o (re)veste de sentidos, porque é próprio do homem vestir
e nomear os outros viventes.
As questões relativas à animalidade e aos viventes são retomadas por Derrida
desde a gênese da tradição cristã – desde Adão, enquanto aquele cuja tarefa
foi assujeitar os animais a ele, nomeando-os, domando-os e adestrando-os –
passando também pela mitologia grega e a forte presença de seres mistos de
animais com humanos. Ainda nessa mesma conferência Derrida se dedica a
traçar sua zoo-auto-bio-bibliografia31, ou seja, uma espécie de autobiografia
pela sua bibliografia, revisitando os momentos nos quais se valeu do vivente
animal para estabelecer suas teorias ao longo de sua obra.
Na carta-poema de Ana Cristina Cesar as metáforas animalescas buscam a
melhor maneira de se expressar. Em Derrida (2002), por outro lado, o homem
aparece como único animal capaz de responder ao nome, atender aos
chamamentos em detrimento dos demais animais, os quais não detêm o poder
da palavra. O filósofo destaca, ainda, a singular capacidade humana de dar
nomes aos outros animais o que, segundo o autor, remetendo a Walter
Benjamin, expõe certa tristeza profunda da natureza:
Esse luto melancólico refletiria uma impossível resignação; protestaria em silêncio contra a fatalidade inaceitável desse silêncio mesmo: ter sido destinado ao mutismo (stummbeit) e à ausência de linguagem (Sprachlosigkeit) [...] (DERRIDA, 2002, p.41).
Essa ausência de linguagem citada tanto por Benjamin quanto por Derrida é o
que constitui o ferimento animal de ter recebido o nome e ser, com isso,
privado do poder de nomear o outro e a si mesmo. A essência da animalidade
está na incapacidade de ir além de balbucios.
31Derrida (2002, p. 65)
82
A importância do nome está em sua perpetuidade. O nome, bem como sua
palavra escrita, permanece na ausência do vivente. Nessa lógica, o arquivo
sobrevive ao arconte, ou seja, uma Ana arquivável – e em partes arquivada –
sobrevive à finitude da Ana poeta precocemente morta. A escrita e o arquivo
aparecem como uma questão de sobrevivência.
A partir dessa concepção dos homens como aqueles “viventes que se deram a
palavra para falar de uma só voz do animal e para designar nele o único que
teria ficado sem resposta, sem palavra para responder” (DERRIDA, 2002, p.
62), cunha-se novo termo derridariano, Animot, homônimo em francês de
animais (animaux) e acrescido de mot, que significa palavra, é definido pelo
franco-argelino como:
Nem uma espécie, nem um gênero, nem um indivíduo, é uma irredutível multiplicidade vivente de mortais, e mais que um duplo clone ou uma mot-valise [palavra entrecruzada], uma espécie de híbrido monstruoso [...] (DERRIDA, 2002, p.77 – p.78 – grifo nosso.).
Trata-se da capacidade do vivente em deixar um rastro, a escritura de si, o
arquivo. A própria palavra mot-valise, usada no sentido de amálgama,
referindo-se à aglutinação das palavras que resultou no neologismo animots,
acima de tudo remete-nos inegavelmente à mala, valise, guarda, o
arquivamento da palavra, do escrito, enfim, ao arquivo.
Em Luvas de Pelica (1980)32, Ana Cristina envolve-se nessa metáfora. A poeta
escreve um epílogo no qual o eu-lírico encontra uma elegante valise de couro
marrom que guarda, além das finas luvas de pelica, uma coleção de postais.
Encenando uma apresentação de mágico circense a personagem abre a mala
com a “chave mestra em cerimônias do tipo, se me permitem a brincadeira”
(CESAR, 2013, p.72) – volta aí a figura das chaves, que remete ao mistério, ao
segredo – e descreve o momento de abrir a mala da seguinte maneira:
A valise de couro conterá objetos de toucador? Não, meus amigos. Como todos podem ver, mediante uma ligeira rotação que faço
32 1980 refere-se ao ano em que foi publicado pela primeira vez, em edição independente. O livro foi
posteriormente incorporado às edições de A teus pés. As citações que aqui transcrevemos são referentes
ao compilado mais recente de todos os livros de Ana C.: Poética, lançado pela Editora Cia das Letras em
2013.
83
na cadeira sobre a qual ela se encontra, a valise contém apenas papel... cartões... dezenas, talvez centenas de cartões-postais. Estranha valise! [...] Meus amigos, isto é uma valise, não é uma cartola com coelhos (CESAR, 2013, p.73).
Ana C. descreve, acima de tudo, uma sequência de encenações que vai muito
além da teatral cena do mágico no circo, sendo a principal delas a do próprio
arquivo que encena, fazendo de conta que é capaz de guardar a memória, mas
somente consegue armazenar em sua valise os restos.
Diante das sobras da memória e do arquivo, impera a necessidade de falar
novamente do rastro, já que o acesso ao arquivo só é possível a partir dos
resíduos que demarcam seus caminhos, suas entradas. O rastro, na
perspectiva de Derrida (2002), é tratado como outra característica particular do
animal que somos e não dos outros animais, aos quais foi negado, junto ao
poder de resposta, o poder de mentir e de apagar seus traços. Dessa forma, ao
homem é reservado o poder de tentar controlar seus rastros, permitindo sua
presença e ausência. Assim:
a assinatura de um animal poderia ainda apagar ou confundir seu rastro. Melhor dizendo, deixá-lo apagar-se, não poder impedi-lo de se apagar. E essa possibilidade – traçar, apagar ou confundir sua assinatura, deixá-la perder-se – seria então de grande alcance (DERRIDA, 2002, p.63).
Sendo uma questão de assinatura, grafia, linguagem, trata-se, pois, de uma
questão do único animal que pode exercê-la: o ser humano. O acesso – ou não
– aos arquivos é determinado pela presença consciente dos rastros daquela
assinatura, daquela vivência de si.
Assim, diante da capacidade responder, nomear, arquivar-se e autorizar (ou
não) o acesso aos seus rastros, Derrida (2002) trata o homem como o único
ser que se registra conscientemente, ou seja, o único capaz de autobiografar-
se. Neste momento, Derrida responde uma importante questão que ronda toda
a obra: “O animal que eu sou fala?” (2002, p.62). Não somente fala como
dissimula a fala, como é capaz de dissimular o arquivo, pela sua capacidade de
encobrir os rastros.
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A proximidade entre os gêneros confessionais e autobiográfico tende a
confundi-los ou colocá-los como se fossem iguais. Ciente de certas diferenças
pontuais entre eles o filósofo faz relevante diferenciação entre autobiografia e
confissão:
A autobiografia torna-se confissão quando o discurso sobre si não dissocia a verdade da revelação, portanto da falta, do mal e dos males. E sobretudo de uma verdade que seria devida, de uma dívida em verdade que precisaria ser quitada (DERRIDA, 2002, p.44 – p.45).
Segundo Derrida (2002), esconder ou faltar com a verdade configura uma
experiência do mal. Essas postulações de verdade e de mal são atravessadas
por um sentido bastante cristão no qual, diante do confessionário, deve-se
dizer a verdade para quitar com Deus a dívida que é o pacto de servidão e
obediência entre Ele e os homens. A autobiografia por sua vez tem o pacto
com a escrita e esta não tem qualquer compromisso com a verdade.
Por isso o filósofo questiona se houve em algum momento uma autobiografia
virgem de toda confissão, ou seja, que não tenha sido jamais tocada pela
palavra nua. Se a confissão está no nível da verdade e da nudez da palavra – a
palavra virgem de qualquer nomeação –, isso justifica a proximidade com que
Ana Cristina apropria-se dos gêneros confessionais, mas sempre fazendo
deles simulacros. O desejo de olhar para si e ver-se nua conflita-se com a
incapacidade como homem e como poeta, de, diante da palavra nua, omitir-se
de tecer para ela uma narrativa que a vista e com isso dissimule seus rastros.
Ana é portanto um animal autobiográfico, que, nas palavras de Derrida (2002)
“seria essa espécie de homem ou de mulher que escolhe ou que não pode se
impedir de ceder, por caráter, à confidência autobiográfica. Aquele ou aquela
que trabalha de bom grado com a autobiografia” (p.89). Ana C. escolhe não
ceder à palavra nua, não ceder ao desvelamento confessional de si. Ela
manuseia seu arquivo e com isso trabalha com e não no terreno da
autobiografia.
A autobiografia, que aparece em Derrida (2002) coabitando o mesmo domínio
de: “a escritura de si do vivente, o rastro do vivente para si, o ser para si, a
auto-afecção ou auto-infecção como memória ou arquivo do vivente [...]”
85
(DERRIDA, 2002, p.87), é para o filósofo acometida do risco da auto-infecção,
do envenenamento, já que trabalha com o resíduo da memória. Também o
arquivo, como uma inscrição autobiográfica, pode ser entendido sob o prisma
da ideia derridiana de phármakon, veneno e remédio, agindo no paradoxo de
preservar a memória e, sob o mesmo movimento, traindo-a na impossibilidade
de retê-la senão de maneira vestigial, fragmentária, incompleta.
Para melhor compreender esse elemento faz-se necessário visitar outra obra
na qual Jacques Derrida desenvolve a ideia: A farmácia de Platão (2005). O
pharmakon é a escritura, cujo maior problema é a sua encenação inerente, a
não verdade a ela condicionada:
A escritura já é, portanto, encenação. A incompatibilidade do escrito e do verdadeiro anuncia-se claramente no momento em que Sócrates se põe a contar como os homens são levados para fora de si, ausentam-se de si mesmos, esquecem-se e morrem na volúpia do canto (DERRIDA, 2005, p.12 – p.13).
Se na escrita a verdade revela-se enquanto uma encenação, a escrita do
arquivo, da mesma maneira se distancia do sentido de verdade. Diz Sócrates,
segundo Derrida (2005), que a escrita afasta o homem de si mesmo, tornando
impraticável a escrita de si como um relato confessional – naquele sentido
cristão já citado de verdade absoluta que se deve a Deus. É ainda o próprio
Sócrates que compara o phármakon aos textos escritos, ao mesmo tempo
remédio e veneno. E o filósofo franco-argelino segue o pensamento do filósofo
grego apontando a diferença entre o método de ensino em que os alunos vão
caminhando e ouvindo o mestre que não responde, mas induz os alunos ao
pensamento (maiêutica) e o “novo” método: “Desde já a escritura, o
phármakon, o descaminho” (DERRIDA, 2005, p.15).
Podemos observar que em sua trajetória Ana Cristina Cesar também faz da
escritura seu descaminho. Trilhando vários gêneros, apropriando-se da escrita
de tantos escritores, transitando, inclusive, por vários trabalhos que passassem
pela intermediação da escrita: poeta, ensaísta, tradutora, professora e
jornalista. Mesmo antes de saber escrever a palavra falada não parecia
suficiente para Ana Cristina, por isso ditava os poemas para que sua mãe os
escrevesse. A poeta soube desde cedo que a escrita suplementa a fala, como
86
sol e lua – uma das metáfora usada por Derrida para explicar: “A escritura
como suplemento da fala” (2005, p.34). Elas não são complementares uma a
outra, porque são completas cada uma em si. Mas suplementares, se
acrescentam ainda que diante da completude de ambas.
De volta à escrita como phármakon, Derrida (2005) acentua que traduzi-la
como remédio ou como veneno depende de cada tradutor, pois ela transita
entre os dois polos. O que nem sempre faz diferença, já que “A escritura não é
melhor, segundo Platão, como remédio do que como veneno. [...] Não há
remédio inofensivo. O phármakon não pode jamais ser simplesmente benéfico.”
(2005, p.46). Ainda que administrada para fins terapêuticos – com boa intenção
– a palavra não está nua, conforme o próprio Derrida em O animal que logo
sou (2002), está sempre vestida, carregada de sentidos. Cabe ao pharmakeús,
que é o mágico, feiticeiro, envenenador e é também o médico e o escritor,
administrar a dose certa– escolher as palavras – para matar ou curar.
A escritura é ainda parricida, o filho perdido que mata o pai – o autor. Perdida
por natureza, pois não há garantias de que o suporte exterior à memória se
preserve das condições físicas, nem mesmo quando mantidas em arquivo, seu
suplemento, restando a ela somente o caráter vestigial:
A escritura e a fala são, pois, agora, dois tipos de rastros, dois valores do rastro; um, a escritura, é o rastro perdido, semente não viável, tudo o que no esperma se gasta sem reserva, força extraviada fora do campo da vida, incapaz de engendrar, de se repor e regenerar a si mesma. Ao contrário, a fala viva faz frutificar o capital, ela não desvia a potência seminal para um gozo sem paternidade (DERRIDA, 2005, p.103).
Enquanto representação da representação, simulacro do pensamento, não há
também garantias de que seja compreendida em sua totalidade. Ao encarnar
seu pensamento em papel o autor se mata, diferente da fala em que ele se
mantém como o suporte, a escritura, portanto só pode ser tomada pelos restos.
O conceito de rastro, além de remeter aos já citados vestígios e fragmentos,
lembra-nos um gesto animalesco. Derrida, ao tratar do animal que somos não
se furtou em tratar dessas questões, desenvolvendo o conceito de rastro. O
título original em francês da conferência “L’animal que donc je suis” apresenta
87
uma ambiguidade não comportada pela tradução para a língua portuguesa. “Je
suis” tanto pode ser lido como “eu sou”, quanto como o verbo “suivre” (seguir)
conjugados na primeira pessoa do presente do modo indicativo, conforme nos
informa o tradutor Fábio Landa em nota. Seguir o animal, segundo Derrida é
estar depois dele: “Em todos os casos se eu estou depois dele, o animal vem
pois antes de mim, mais cedo do que eu [...]” (2002, p.28). Seguir o animal é
assumi-lo como outro, o “completamente outro33” que chamamos animal que
pode ser seguido porque é capaz de deixar rastros.
O subtítulo da obra de Derrida (2002), A seguir, também pode ser lido
enquanto metáfora da pesquisa em acervos. Da mesma maneira como o
homem é aquele que segue – o animal, o outro –, o pesquisador dos acervos é
aquele cujo itinerário é traçado a partir do “seguir”, “prosseguir”, “ser depois”
(DERRIDA, 2002, p.14). É aquele capaz de perseguir o arquivo que já está
pronto enquanto prática do arquivista, mas cujas significações e leituras
abrangem cada rastro percorrido pelo pesquisador.
O arquivo de Ana C. oscila como nos versos: “Autobiografia. / Não, biografia. /
Mulher” (CESAR, 2013, p.77), transitando entre os gêneros. Pode ser
percorrido encarando seus objetos como rastros de uma possível – e,
naturalmente, fragmentária – autobiografia. Num outro sentido, pode ser
vislumbrado como a biografia de uma outra Ana C., não mais mulher, mas ser
de papel. Uma arquivista, outra arquivável. Ambas – a Ana que escreve e a
Ana que se inscreve – conflitam-se na forma de uma sereia de papel: um
híbrido de animal – que deixa rastros, mulher – capaz de encobri-los – e
arquivo. Neste caso, porém, diferente do que descreve na poesia em que cita a
sereia de papel, a história não está completa, diante do arquivo não é possível
se completar.
2.2 Prontos mas rejeitados: pulsão de morte no arquivo de Ana C.
Volta e meia vasculho esta sacola preta à cata de um três por quatro [...]
33 DERRIDA (2002, p. 29)
88
Nesta volta e meia vira e mexe acabo achando ouro na sacola.
Fabulosas iscas do futuro.34
Percorrendo as ruinas que compõem o arquivo de Ana Cristina pudemos
observar, até então, os métodos de elaboração de si. É através do arquivo que
Ana Cristina biografa os outros de si, autobiografa-se e ficcionaliza-se. A poeta
faz de seu arquivo um palco e encena seus tantos papéis através da escrita.
Mostrando-se aficionada pelos bilhetes de trem, que remetem às viagens;
pelas cartas, as quais remetem aos amigos distantes; as redações escolares
que remetem às primeiras fases de escritura; e com todo esse material compõe
ela mesma o seu arquivo, ao qual foram incorporados outros documentos,
compondo agora o acervo Ana Cristina César guardado sob os cuidados do
Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro.
Todavia, e é preciso não perder de vista esse ponto, todo esse material
heterogêneo que faz parte de um só organismo, que é o arquivo, não pode
jamais ser tomado como algo completo. Não apenas diante da própria
impossibilidade física de se guardar tudo, o que já configura um rompimento
definitivo com a ideia de completude que, às vezes, se tem diante de um
arquivo tão vasto, mas especialmente porque todo arquivo é antes uma forma
de elaboração de si. Sendo um método de organizar a própria vida e dar a ela
uma narrativa material, o arquivo deve ser encarado como um ato de forjar no
duplo sentido: impressão e falsidade – e a própria impressão no seu duplo,
sendo aquilo que se imprime e num outro sentido o que tange à incerteza – ter
uma impressão. É o que define Jacques Derrida em sua obra Mal de Arquivo –
uma impressão freudiana (2001), na qual o filósofo expõe as suas impressões
sobre o pai da psicanálise os quais serão tomados enquanto arquivos.
Em sua possibilidade de construção de si, o arquivo revela, portanto, uma
preocupação com o eu. Preocupação que deve ser pensada com cuidado em
casos como de Ana Cristina, que decretou ela mesma o fim de sua vida. Ana
C. escolheu deixar os seus guardados, recomendando que ficassem sob a
guarda de Armando Freitas Filho, então, parece possível dizer dos seus
34 Poema sem título publicado em Poética (CESAR, 2013, p. 116).
89
arquivos como uma inscrição dela pensada para a posteridade.35Também
Derrida (2001) ao refletir sobre o arquivo compreende-o como uma questão
para o futuro, uma garantia ou, conforme define o próprio Derrida: "O arquivo
sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro." (DERRIDA,
2001, p.31). O penhor, vale pontuar, é sempre de algum objeto de valor do
qual se abre mão temporariamente para que em seu lugar se receba uma
quantia em dinheiro, um empréstimo que deverá ser pago no futuro para que
se receba de volta o objeto.
Nos poéticos ensaios reunidos em O casaco de Marx: roupas, memória, dor
(2012) Peter Stallybrass trabalha com a noção de que os objetos possuem
vidas sociais, dando um enfoque especial às roupas, fio condutor que une os
três ensaios do livro. No texto que dá título à obra, o autor narra a trajetória do
casaco que pertenceu ao filósofo Karl Marx. A vestimenta comporta-se ali como
mercadoria de troca que se alimenta do próprio trabalho humano, metáfora
cruel e irônica do capitalismo contra o qual Marx preconizava. Segundo narra
Stallybrass o casaco passava um tempo vestindo à rigor seu dono, para que o
mesmo pudesse frequentar a Biblioteca Nacional e seguir seus estudos
durante o inverno alemão; e, passadas as estações mais frias, o casaco era
penhorado para que Marx usasse o dinheiro para comprar papéis para que
pudesse escrever O capital.
Diante dessa história, Stallybrass (2012) teoriza acerca das noções de penhor
e memória. Para o pesquisador: “[...] penhorar um objeto é desnudá-lo de
memória” (2012, p.65). Se é certo que um objeto carrega a memória daquele a
quem pertenceu, somente despido de sua particularidade histórica o casaco
pôde se tornar mercadoria com valor de troca, pois as memórias não são
contabilizáveis, ou seja, na loja de penhores, transformadas em mercadoria, os
objetos perdem sua memória, estas desvalorizadas pelo penhor.
O arquivo, todavia, é um penhor do futuro, no presente dele – enquanto faz-se
presente – é ainda animado pela memória daquela que o construiu. Se, no
futuro, por algum motivo perder-se no arquivo algum referencial, por exemplo,
35 Claro que por si só o suicídio de Ana Cristina não significa escolha por deixar os manuscritos. Apenas
estamos levando em conta que sua morte aparece como gesto pensado, haja vista que a poeta já havia
buscado a morte anteriormente, não foi um ato aparentemente repentino como aponta o suicídio do
escritor Pedro Nava, por exemplo.
90
se Ana Cristina deixasse de ser uma poeta conhecida, seu arquivo perderia o
valor de memória da poeta e passaria a configurar apenas como um conjunto
de escritos do passado. O arquivo não será nunca um penhor no presente
enquanto estiver assombrado pela presença de sua arconte, mas do futuro,
quando estará à mercê das leituras que se poderá fazer dele.
Sujeito mesmo a muitas interpretações, o arquivo de Ana C. elaborado pela
Ana C. é rico em documentos os mais diversos. Livros, cartas, bilhetes, muitos
caderninhos, anotações em guardanapo... Esse é o tipo de material no qual
Ana constrói sua trajetória arquivando-os, de modo especial em uma pasta
sanfonada que metaforiza uma memória arraigada em objeto, uma memória
passível de ser arquivada: a pasta rosa.
Conforme já descrita na primeira parte deste trabalho, a mítica pasta sanfonada
possui subdivisões pelas quais Ana Cristina distribuiu uma coletânea plural e
heterogênea de papéis. E como o desejo do arquivo impõe a necessidade de
classificação e catalogação, Ana C., desempenhando o papel de arquivista, dá
as ordens em seus papéis e os ordena colocando-os sob categorizações. A
questão da ordem aparece aqui conforme descreve Jacques Derrida, em sua
obra Mal de Arquivo – uma impressão freudiana (2001), para quem:
[...] não haveria arquivamento sem título (e portanto sem nome e sem princípio arcôntico de legitimação, sem lei, sem critério de classificação e de hierarquização, sem ordem e sem ordem no duplo sentido desta palavra) (DERRIDA, 2001, p.56).
Em cada seção um nome que busque definir o conjunto de materiais ali
presentes: Prontos mas rejeitados; Inacabados; rascunhos/primeiras versões;
cópias; “O livro”; antigos & soltos.
Naturalmente, não é possível apontar qualquer certeza quanto à distribuição
original dos materiais pela pasta, em primeiro lugar por ser infrutífera a busca
pela origem, já refutada. Acrescenta-se a isso o fato de que a pasta foi
remexida por outras mãos: em um primeiro momento as mãos de Maria Luiza
Cesar – que foi quem encontrou a pasta – e em outros momentos pelos
pesquisadores que, convidados pela família de Ana C., tiveram acesso à pasta
antes da mesma ser enviada ao acervo. Ainda assim, é possível prever, por
exemplo, que a pasta “antigos & soltos” contivesse materiais dispersos, textos
91
sem data ou muito antigos, gêneros não mais praticados, bilhetes nos quais
perdeu-se a referência do assunto, enfim, tudo aquilo que não cabia bem em
nenhuma das outras “gavetas” e, para que não ficasse inclassificável, acabou
se aglomerando em categorias mais amplas – como aquelas gavetas em que
se guarda aquilo tudo que não tem lugar nas demais, objetos realmente antigos
e soltos. Ali estão alguns textos escritos entre 1970 e 1973. Olhando para
essas datas e para a palavra ‘antigos’ que nomeia a pasta é possível pensar –
julgando que eles foram colocados ali pelas mãos de Ana C. e não pelas
demais – que a pasta foi organizada alguns anos mais tarde, em um tempo
longe o bastante para que algo escrito em 1973 fosse tomado como antigo.
Sabendo que Ana Cristina morreu em 1983 fica a suspeita de que a pasta rosa
pode ter sido projetada próximo ao falecimento da poeta.
É certo que a morte emblemática de Ana Cristina acaba por mitificar sua obra.
Um suicídio no auge da juventude e da produção – Ana acabara de lançar A
teus pés pela Editora Brasiliense – desencadeia uma olhar sobre sua obra, já
estigmatizada pela melancolia e a morte rondante, fazendo com que ela seja
lida, quase sempre, buscando-se em cada poema um bilhete suicida.
Não pretendemos que a morte de Ana Cristina protagonize este trabalho,
entretanto, o gesto do suicídio se impõe diante da análise do arquivo.
Pensando na possibilidade desses escritos terem sido organizados pela poeta
com o pensamento no fim da vida em um penúltimo ato, antecessor ao gesto
derradeiro, fica a chance de ser ele um arquivo suicida – um arquivo que se
inclina para a morte. Apesar de ser um organismo vivo e, embora incompleto,
passível de infinitos desdobramentos, o arquivo anuncia a morte, pois só existe
como obra, passível de ser lida e estudada, após a morte de seu arconte. É,
pois, um ato de morte que propicia que o arquivo ganhe vida. É a partir desse
ponto que o arquivo passa a nos assombrar com o paradoxo derridariano de
vida e morte.
A teoria derridariana trabalha tanto em A farmácia de Platão (2005) quanto em
Mal de Arquivo (2001) com duplos paradoxais. Um par de conceitos que ao
mesmo tempo em que se contradizem são suplementares um ao outro. Na
primeira obra, conforme vimos, a noção de phármakon é interpretada como a
92
escrita que aparece como um remédio para curar a falta de memória, mas,
acaba por se mostrar um veneno, pois não passa de um suporte artificial que
fará com que as pessoas deixem de se lembrar, esquecendo:
É em aparência que a escritura é benéfica para a memória, ajudando-a do interior, por seu movimento próprio, a conhecer o verdadeiro. Mas, na verdade, a escritura é essencialmente nociva, exterior à memória, produtora não de ciência, mas de opinião, não de verdade, mas de aparência (DERRIDA, 2005, p.50).
A escritura não é a memória. É um suporte externo diante do qual o escritor
examina a memória, seleciona e transcreve elaborando um inventário daquilo
que está na memória viva. Esses passos distanciam a escrita de qualquer
proximidade com a verdade enquanto única e absoluta.
Seguindo ainda os paradoxos derridarianos sobre o phármakon, que é cura e
veneno, adiante, na mesma obra, o escritor fazendo referência à mitologia
egípcia apresenta Thot. Ele é o deus da escritura – e por isso é o arquivista dos
deuses – e é também o deus da morte. Derrida destaca que “isso é evidente”36,
pois a escrita é a morte da memória e ainda da própria escritura, a qual não
possui qualquer garantia de sobrevivência pela fragilidade de seu suporte. Por
outro lado, Thot é ainda o deus da medicina, pois conhece a ciência e a magia,
sabe dosar, sendo por isso capaz de jogar com as noções de cura e veneno. O
deus do phármakon, em sua ambivalência é o veneno e é remédio, vida e
morte.
Anos mais tarde, o paradoxo que ronda a escrita é novamente colocado em
pauta. O mal de arquivo derridariano é a própria impossibilidade de verdade
inerente à escrita, a qual forma arquivos do mal: “dissimulados ou destruídos,
interditados, desviados, ‘recalcados’” (DERRIDA, 2001, p.7), ou seja, sempre
distantes das noções de verdade e de completude.
O mal de arquivo indica ainda o desejo de memória, de preservação e de
consignação; todavia esses desejos coexistem em contraste com perdas
inerentes ao gesto de guarda. Assim como há perda da memória viva ao extrair
um evento da memória e colocá-lo em papel, através da escrita, pois trata-se
de um suporte exterior a ela, por isso incapaz de contê-la em totalidade. Ao
36 DERRIDA, 2005, p.36
93
reunir esses escritos há também muitas perdas, visto que toda seleção envolve
escolha e esta, por sua vez, requer eleger alguns documentos em detrimento
de outros, os quais serão descartados.
Para tratar das perdas do arquivo Jacques Derrida (2001) recorre à psicanálise,
com os pressupostos freudianos para a pulsão de morte ou de destruição ou,
ainda, de agressão. De acordo com a leitura de Derrida essa é uma pulsão
silenciosa que trabalha destruindo o arquivo hypomnésico:
Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus “próprios” traços – que já não podem desde então serem chamados “próprios”. Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente (DERRIDA, 2001, p.21).
Essa pulsão é, pois, anarquívoca e arquiviolítica, trabalha anarquizando o
arquivo, revolvendo-o de qualquer ordem; e violando-o. O mal de arquivo é,
portanto, a ameaça causada pela pulsão de morte ao desejo de arquivo.
De volta às sete subpastas do arquivo de Ana C, entre todas elas, aquela que
mais nos chama atenção é a primeira, ordenada sob um nome que, além de
dar título também a esta seção, funciona como uma espécie de metáfora do
mal de arquivo em Ana C.: "Prontos mas rejeitados". O título primeiramente
suscita alguns questionamentos (embora não pareça ser possível respondê-
los). Como definir um poema como pronto? Ou ainda, como definir um poema
como pronto dentro de um arquivo em constante manutenção? Quem os
rejeitou? A poeta? Por que alguém que os define como prontos os rejeita ainda
que não os descarte? Viviana Bosi descreve essa seção da seguinte maneira:
Na primeira seção, intitulada “Prontos mas rejeitados”, deparamo-nos com o grupo de escritos mais bem acabados. Não à toa, um índice escrito à mão arrola os nomes de vários textos nela constantes. Indicando a intenção de futura publicação, um título geral é sugerido: “Cartas marcadas”. E uma epígrafe: “baralhar bem antes de ler” (2008, p.9).
O estranhamento causado pela existência de uma pasta, um arquivo, composto
por um material que, embora estivesse pronto e aparentemente intencionada à
publicação, deveria ter sido descartado - por ser rejeitado - pode ser explicado
pela expressão de Derrida: um mal de arquivo. A tensão entre a pulsão de
morte e o desejo de arquivo. Ali a pulsão de destruição, cujo trabalho está na
"vocação silenciosa de queimar o arquivo e levar à amnésia" (DERRIDA, 2001,
94
p.23), entra em confronto com o perfil arquivista de uma poeta que deseja este
arquivo como lugar externo que assegure a possibilidade de memória.
Neste sentido, não é forçoso apontar uma possível semelhança da pasta rosa à
ideia de Bloco Mágico como o suporte externo que mais se assemelha ao
aparelho psíquico de registro e de memorização, ideia essa desenvolvida por
Derrida a partir de Freud37. Nessa aproximação a pasta rosa funciona como
suporte externo em que se articulam os sistemas mnésicos e hypomnésicos, à
forma de versões de poemas, manuscritos, observações, todos em constantes
reprodução e repetição, condição indissociável à pulsão de destruição,
segundo Derrida. Assim como o Bloco Mágico, também o modelo incorpora "o
que parecia contradizer, sob a forma de uma pulsão de destruição, a pulsão
mesma de conservação que poderíamos chamar também pulsão de arquivo"
(DERRIDA, 2001, p.32).
Freud, em Além do princípio do prazer (2006) assinala que os instintos
narcísicos se contrapõem aos instintos sexuais, estes visam à conservação da
vida, aqueles tendem à morte. Todavia, por ambos ronda o instinto de morte,
pois mesmo para a reprodução – conservação da vida – há a morte de
algumas células para que se formem outras as quais darão origem à vida. O
instinto do eu busca a sublimação, com isso aplica sua energia não à
reprodução, mas à produção de algo – geralmente por vias da criatividade,
como a arte, por exemplo. Pensando nesse sentido freudiano o arquivo se
forma pelo instinto narcísico do eu enquanto método de organizar a vida e com
isso driblar a morte, atendendo assim ao princípio do prazer.
A repetição em Freud (2006) também é um fator interessante para se pensar
nas repetições presente no arquivo. Para o psicanalista “a compulsão à
repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente” (FREUD, 2006, p.30),
na tentativa de retorno ao estado primordial do pensamento – sabemos,
todavia, que esse retorno às origens não é possível. Apesar da condição para o
gozo ser a novidade, de acordo com Freud, a repetição não age contra o
37 É preciso destacar que há diferenças com o modelo de Bloco Mágico proposto por Freud, entretanto,
para que não se perca o foco, trabalharemos apenas com as considerações de Derrida a respeito desse
aparelho.
95
princípio do prazer, pois também o reencontro com o reprimido constitui forma
constantemente adiada de prazer.
Ao longo das páginas dispersas pela pasta rosa muitos poemas são
exaustivamente reescritos em versões idênticas ou muito próximas. Seguem
abaixo três páginas ao longo das quais são escritas e reescritas, em pelo
menos dezesseis versões, o poema Litoral.
Figura 16: (CESAR, 2008, p.199)38
38 Ver Anexo 7.
96
Figura 17: (CESAR, 2008, p.200)
97
Figura 18: (CESAR, 2008, p.201)
A repetição parece tanto uma maneira de lapidar o poema, dar a ele seu
melhor contorno, as melhores, mais exatas palavras; quanto remete à busca de
que trata Freud do estado primordial do pensamento. Ou seja, é como se
através da reescrita do poema fosse possível recuperar sua forma original de
quando ele foi pensado pela primeira vez. Diante da impossibilidade desse ato,
98
fica a primeira alternativa: trabalhar o poema, repetindo-o até ficar diferente,
parafraseando Manoel de Barros39.
Algumas repetições no arquivo de Ana C., de fato, parecem visar esse “ficar
diferente” de que trata Manoel de Barros. Através da presença de várias
versões de poemas é possível em alguns momentos vislumbrar os restos do
processo de criação, conforme observamos no poema Diagnóstico precoce, o
qual aparece datiloscrito e apresentando apenas uma pequena rasura. O
poema aparece arquivado na pasta registrada por Ana C. como "Prontos mas
rejeitados", por isso pode-se tomá-lo como uma versão definitiva, pronta, do
poema:
Figura 19: (CESAR, 2008, p.67)
39 “Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom de estilo” (no poema Uma didática da invenção In: O livro das ignorãças. Rio de
Janeiro: Record, 2000. p. 11)
99
Adiante, o mesmo aparece em aparente processo de criação rodeado por outro
poema datiloscrito, este assinado por outro autor, Lui40:
Figura 20: (CESAR, 2008, p.68)41
40 Como era conhecido o poeta e amigo Luis Olavo Fontes.
100
A página chama atenção por revelar fragmentos do irrecuperável instante da
criação. Além do poema de Lui, é possível verificar a presença de um verso do
poema Assalto42 de Carlos Drummond de Andrade escrito a lápis no canto
superior esquerdo. Aparentemente isolados, a versão manuscrita em hidrocor
vermelha de Diagnóstico precoce, cujo título original foi riscado à lápis e
modificado para Diagnóstico tardio, estabelece um diálogo entre os poemas,
costurando-os. De Lui ela extrai o verso "tarde pra ver com olhos límpidos",
confessando o furto no manuscrito e despistando-o na versão datiloscrita ao
omitir a palavra “recitando” – que se refere ao namorado autor da poesia; de
Drummond, vítima frequente de suas pilhagens poéticas, como já citamos, ela
copia a frase colocada à lápis no canto: "uma doença grave esse amor sem
braços", as inicias do autor, que aparecem entre parênteses na versão
manuscrita, foram retiradas da versão datiloscrita. A repetição ali visava à
criação de um terceiro elemento.
Ainda pensando no poema Diagnóstico precoce, além dos roubos praticados
pela poeta aos versos de outros poetas, é possível observar também outro
aspecto de seu processo de criação. A temática presente nesse poema
aparece novamente em outro manuscrito na elaboração do poema No cais
outra vez:
41 Ver Anexo 8. 42 "uma doença grave esse amor sem braços". O poema Assalto foi publicado em A rosa do povo, 1945.
101
Figura 21: (CESAR, 2008, p.69)43
43 Ver Anexo 9.
102
O namorado que parte para a Europa aparece em ambas composições: o
mesmo “namorado” do Diagnóstico precoce/tardio? Fica aparente que Ana
Cristina sofre a “perseguição das palavras”. Chamamos a isso a necessidade
que a poeta mostra em seus escritos de percorrer o sentido de uma ideia,
palavra ou expressões, fazendo com que ela experimente, obsessivamente, as
várias maneiras de fazer com que as ideias saiam para o papel, tornando-se
poesia.
Também aponta para essa “perseguição da palavra” a presença de outros
manuscritos que retomam a ideia dos manuscritos do poema Litoral44, já
citados anteriormente.
Figura 22: (CESAR, 2008, p.229)45
44 Deliberamos usar como título da série de versões “Litoral”, mas não há qualquer registro de qual seria a
primeira versão ou a mais recente.
103
Figura 23: (CESAR, 2008, p.230)
45 Ver Anexo 10.
104
Figura 24: (CESAR, 2008, p.231)
105
As mesmas ideias de amor e de versos que escapam – ou desfilam, ou ainda,
“vem descendo” – aparecem em novos projetos de poemas em elaboração,
conforme sugere-se pela mudança de títulos e de formato do poema. Ao final
de um dos documentos uma frase escrita pela poeta chama atenção por
condizer com o atordoamento que parece sofrer diante dessas ideias que a
perseguem e com as quais pretende conduzir sua produção poética: “A
literatura é nada me tirando o sono. Os ratos que morrem na banheira.”
Derrida (2001), em um sentido consonante, pensa a repetição como uma
condição para o futuro:
Como pensar esta repetição fatal, a repetição em geral em relação à memória e ao arquivo? É fácil perceber, e até interpretar, a necessidade de uma tal relação, se ao menos, como somos naturalmente tentados a fazer, associarmos o arquivo à repetição e à repetição ao passado. Mas aqui trata-se do futuro e do arquivo como experiência irredutível do futuro (DERRIDA, 2001, p.88).
A repetição, embora pareça voltar-se para o passado – repetir algo que já
existe – ela volta-se para o futuro, assim como o arquivo é uma questão de
futuro. Assim, a perseguição da palavra liga-se também ao novo, ao que está
por vir.
De volta à série de poemas perseguidos pela ideia ‘do namorado que vai para
a Europa’, também a questão biográfica mencionada no poema pode ser
analisada: “Ostento biográficas palavras embora maneta sem luneta.” Ana C.
foi namorada de Lui no ano em que a poesia foi escrita, 1974. Em entrevista à
professora Mazé Lemos para a Revista Z Cultural o poeta relata detalhes da
época, entregando algumas peças que podem envolver os quebra-cabeças que
são os manuscritos. Fontes revela na entrevista que passou um tempo fora do
Brasil:
ocorreu que em 1976 eu saí do Brasil e só retornei em 79. A poesia marginal estava no auge quando parti. Eu acabara de lançar um livro Papéis de Viagem, que era como eu estava me sentindo: tirando os papéis de viagem para partir. Para mim foram apenas três anos – 74/75/76 – participando do
106
movimento de poesia marginal. Mas, foram três anos muito intensos em que fiz três livros [...](FONTES46)
A perseguição da palavra aparenta aqui ser também uma perseguição do
biográfico, se pensarmos que esse namorado o qual: “Deixa publicado dois
livros e parte para a Europa com um terceiro debaixo do braço”. Se pudesse
ser confirmada essa hipótese poderíamos atribuir essas poesias ao ano de
1976, quando Luis Olavo Fontes afirma ter deixado o Rio de Janeiro. Já nessa
época Ana possuía muita poesia “rejeitada” por ela mesma em seu acervo
pessoal, mas, segundo Fontes: “Ela escrevia muito, mas não queria publicar,
não se sentia segura. Ela dizia também que não possuía uma quantidade
suficiente de poemas para fazer um livro de qualidade, algo com que eu não
concordava” (FONTES). A fala do então namorado reitera uma hipótese que
pode ser vislumbrada por todo o seu arquivo, o quanto Ana Cristina era crítica
de si mesma.
Ao exercitar sua escrita, Ana Cristina impõe também uma personalidade
autocrítica, comprovada pelo constante diálogo com seu texto, revezando-se
no papel de autora e crítica. É o que a poeta mostra ao dialogar com seus
rascunhos escrevendo às margens do papel frases como: "gosto só disso"
marcando uma parte do poema, ou questionando-se "o que pensar desse
poema?".
46 Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/desentranhando-luis-olavo-fontes-entrevista-por-
mase-lemos/
107
Figura 25: (CESAR, 2008, p.35)
Manter esse tipo de documento em arquivo aponta para um adiamento em
buscar essas respostas, poder dar, enfim, o poema como acabado. A escrita é
parricida, conforme trata Derrida (2005), a cada poema dado como pronto Ana
assinalaria sua morte como autora, como pai daquele escrito. Talvez seja essa
consciência da completa falta de controle sobre o texto tornado público que faz
com que a poeta aparente tamanha dificuldade em realmente concebê-lo
simplesmente como pronto, sem um “mas”, deixando tantos arquivados na
pastinha de “inacabados”.
Ana Cristina demonstra em seus guardados não apenas ter uma consciência
arquivística como também a consciência deste arquivo como promessa,
108
"responsabilidade para amanhã", como trata Derrida (DERRIDA, 2001, p. 50).
Seu arquivo não apenas funciona para falar de si em sua ausência - após sua
morte, mas sua manutenção é para uso em vida, como material de pesquisa
para sua produção literária. Isso porque seu arquivo aponta para a leitura futura
e retorno ao material, através de alterações cromáticas pelo uso de canetas de
cores variadas, dos bilhetes deixados por ela mesma em rascunhos, ou em
retomadas de versos ou temáticas em momentos aparentemente distantes.
Páginas como esta permitem essa linha de pensamento.
Figura 26: (CESAR, 2008, p.247)47
47 Ver Anexo 11.
109
É possível vislumbrar mais de um retorno ao texto que está grafado em caneta
azul, usando grafite, caneta preta e uma pequena intervenção de caneta
vermelha que retoma duas palavras que estão no segundo parágrafo do
manuscrito em tinta azul. As alterações cromáticas no arquivo de Ana Cristina
Cesar também chamaram a atenção de Flora Süssekind, uma das primeiras
pesquisadoras a acessar o arquivo muito antes de sua composição sob guarda
do Instituto Moreira Salles. No livro Até segunda ordem não me risque nada –
Os cadernos, rascunhos e a poesia em vozes de Ana Cristina Cesar (2007)
cuja pesquisa esclarece a importância de se observar: “[...] o papel da cor em
seus rascunhos, sobretudo nos dos anos 80, o que, por vezes, aponta para
diálogo insuspeitados na escrita de diversos poemas de um mesmo período”
(SÜSSEKIND, 2007, p. 8). Para a pesquisadora as alterações cromáticas
apontam ainda diálogo com o próprio texto configurando mais um aspecto de
encenação do arquivo. Assim a presença de diferentes cores nos documentos
de Ana C. “teatralizam” o arquivo, “Nunca em uníssono, porém... Em contraste.
Enfatizado às vezes por canetas de cores diferentes. Às vezes pela simples
aproximação cromática do que se opõe” (SÜSSEKIND, 2007, p. 45). É para
conversar com sua produção que Ana Cristina mantém suas pastas de poemas
ditos “inacabados”.
O volume dos poemas definidos como “inacabados” era tanto que Ana
reservou para eles duas seções da pasta. Adiar o término dos poemas,
mantendo-os no arquivo, acaba por determinar outra característica desse
arquivo. Se para Derrida (2001): “pensamos o futuro a partir de um evento
arquivado [...]” (p.102), da mesma maneira, com a possibilidade de visitar
esses materiais deixados de lado em algum momento, a poeta tem a chance
de decidir quais versos inacabados retomará a escrita, quais projetos
abandonará de vez ou repesará, enfim, o arquivo de Ana Cristina é mantido
com o pensamento no porvir.
110
Figura 27: (CESAR, 2008, p.185)48
48 Ver Anexo 12.
111
De acordo com informações da organizadora de Antigos e soltos – poemas e
prosas da pasta rosa (2008), Viviana Bosi, a parte datiloscrita desse
documento refere-se ao corpo do texto daquilo que viria a ser um romance
anunciado nestes pequenos bilhetes que trazem a estrutura do projeto, o qual
não se concretizou.
Figura 28: (CESAR, 2008, p.181)49
Figura 29:(CESAR, 2008, p.181)
49 Ver Anexo 13.
112
Figura 30:(CESAR, 2008, p.183)
Figura 31: (CESAR, 2008, p.183)
113
A segunda parte do documento, manuscrita com hidrocor cor-de-rosa, aponta
para um retorno ao arquivo. Esse material faz parte da série de inacabado que
fica à mercê do desejo de manutenção do arquivo, voltando a ele para buscar
inspiração, retomar antigos projetos ou mesmo para (auto)criticar um método
ou uma temática antiga. Pelo que descreve nessa segunda parte, a poeta
encontrou o manuscrito e passou a limpo na máquina de escrever. Ao se
debruçar sobre seus guardados, Ana rememora a provável época e o momento
em que concebeu aquele escrito: “lembro até da “situação inspiradora”, do
insight que nós tivemos naquele tempo sobre a situação”. Diante do
desvelamento da memória, Ana projeta o futuro: “Sinto vontade de continuar
[...]. Penso até em colocar no início do trabalho: “em homenagem a C., musa
inspiradora”!”. E, por fim, julga ser melhor abandonar de vez o projeto: “Que
acesso de babaquice. Durante a cópia datilografação eu pensei muitas
associações, agora deixa pra lá. Adeus batucada.”
Passar a limpo algo que encontra em seu acervo é um gesto que pode ser
observado ao longo de seus documentos. Como a arquivista que é, Ana
Cristina mostra, inclusive, a constante preocupação em descrever as datas de
elaboração e de cópia.
114
Figura 32: (CESAR, 2008, p.335) 50 Figura 33: (CESAR, 2008, p.336)
No documento acima fica nítida a preocupação e manutenção arquivística ao
passar a limpo o texto grafado a grafite e à tinta azul, sobrepostos. No verso da
folha temos a grafite uma data (11.02.71) e logo abaixo lê-se a caneta: "a
caneta 2.5.71". A tinta evoca permanência, durabilidade e até mesmo respaldo,
em detrimento do lápis, o qual, por sua vez, faz pensar em algo que pode ser
facilmente apagado, efemeridade e possibilidade de alteração. Por isso, por
exemplo, usamos caneta para assinar documentos, contratos, talões de
cheque. Todavia, na economia arquivística, é o grafite que costuma ser usado
50 Ver Anexo 14.
115
para anotações dos curadores nos documentos, como a numeração de
páginas, por exemplo, já que a tinta pode, a longo prazo, desbotar e danificar o
papel devido a reações químicas entre eles.
No entanto o gesto de Ana Cristina ao passar seu texto a caneta estabelece
uma característica mais próxima do sentido do palimpsesto que da lógica
arquivística em si. Ao reescrever sobre o papel escrito a lápis, Ana Cristina
(re)apropria-se do papel e do escrito, ocasionando desdobramentos que fazem
parte do processo da escrita em devir. Pois ela reescreve, mas modifica
algumas partes, não copia os erros nem as rasuras da primeira versão. Da
mesma maneira com a qual o palimpsesto ao receber um novo escrito arquiva
uma nova inscrição sobre os vestígios de um texto anterior.
Outro elemento destacado pelo documento é o cuidado de Ana Cristina Cesar
em manter o registro das datas, em documentos, pode ser vista em quase
todos os seus papéis e é certificada pela própria Ana em carta à amiga Ana
Cândida, presente no livro Correspondência Incompleta (1999):
Tenho dúvidas de como organizar a correspondência [...]Tenho problemas burocráticos: como botar tuas cartas em ordem cronológica? (Nunca têm data). (Escreve no envelope, como nesta última.) (E eu esqueci de ir numerando.) (E acabaram por se embaralhar com mexidas) (CESAR, 1999, p. 226).
Ao colocar datas em seus papéis Ana Cristina mostra mais uma vez
consciência da noção de arquivo como objeto para o futuro, deixando rastros
para si e para a posteridade.
A fragilidade do suporte mnésico, que desde a antiguidade estimula cientistas e
filósofos à elaboração de suplementos artificiais hypomnésicos do qual a
escrita é o mais fundamental, fomenta no arquivista o desejo de memória.
Ainda que haja no arquivo de Ana C. muitos papéis dispersos, ao longo de
alguns documentos e cadernos de Ana Cristina é possível perceber a presença
de bilhetes que introduzem o assunto ou justificam o motivo daquele escrito.
116
Figura 34: (CESAR, 2008, p.321)51
51 Ver Anexo 15.
117
Figura 35: (CESAR, 2008, p.323)52
Buscando afastar-se do mal maior no arquivo que é o esquecimento – sua
sentença de morte –, Ana revela sua motivação para aquela poesia,
confessando ainda a inspiração no poema A noite53 de Gonçalves Dias. Na
página seguinte, ainda atordoada pela poesia, a poeta reflete sobre a
necessidade de fazer notas explicativas que se refiram “ao que nos leva a
escrever poesia”. Para responder ao questionamento Ana C. propaga o próprio
sentido que designa o arquivo: “A falta sem fronteiras, as memórias não mais 52 Ver Anexo 16 53 Publicado em Segundos Cantos, 1848.
118
memórias, o presente total e tranquilo sem a morte ou com o passado
indefinível. Ao infinito deixo minha ânsia, nela espero e nela vivo.”. Ana sabe
que o presente total e tranquilo do momento de elaboração da poesia, tirando-a
da memória para que não morra, mas tenha uma (sobre)vida. A escrita visa o
infinito que é o futuro e é o arquivo.
Vida e morte, enquanto pulsões latentes que se refratam e se aproximam,
marcam presença nas temáticas dos escritos de Ana C. Vagando pelos
“Antigos & soltos” da pasta rosa encontramos um texto no qual essas pulsões
parecem conviver de maneira melancolicamente pacífica:
Figura 36: (CESAR, 2008, p.375)
119
Não julgaremos o conteúdo pelo seu título, este colocado depois à caneta
hidrocor preta entre aspas sobre o texto datiloscrito. Não trataremos dele como
um bilhete suicida, até mesmo porque não é possível identificar a data e as
circunstâncias em que foi escrito. O que gostaríamos de sublinhar é a seguinte
frase: “digamos que é hora de começar a escrever “as memórias”. [...] munir-se
de exemplos. contando-as criticamente. este projeto me atrai.”. Pensar em
iniciar um novo projeto é algo que está diretamente ligado ao sentido de vida.
Para proceder o audacioso projeto de escrever “as memórias”, em especial, é
preciso pensar que ainda se tem muito tempo de vida para que haja tempo
hábil para escrever as próprias histórias. Venha de exemplo o escritor Pedro
Nava, o qual decidido a narrar suas histórias publicou seis volumes e deu fim à
vida antes que tivesse escrito a metade dos anos de sua vida em suas
memórias. É preciso tempo para dedicar-se às memórias. Todavia o texto
rompe com essa ideia de longevidade quando o eu-lírico anuncia: “acho que
vou me suicidar”. A palavra “espanto” escrita na parte de baixo do papel reflete
o pensamento do leitor diante do paradoxo entre uma vida longa e uma morte
abrupta.
Sofrer o mal de arquivo é ser tocado por esses desejos que irrompem uma
contradição interna: a memória e o esquecimento. Por isso, a pulsão de
destruição da memória, ela mesma, opera, paradoxalmente, em favor da
conservação, já que não haveria arquivo se não se cogitasse a possibilidade de
esquecimento. Os escritos de Ana C. envolvem textos prontos e até rejeitados,
sim, mas mantidos guardados, resguardados da finitude radical que ronda os
interstícios da memória.
O arquivo de Ana Cristina César é a sacola preta a qual a poeta se refere no
poema que usamos como epígrafe. Volta e meia o arquivo é vasculhado e é
daquele emaranhado de palavras abandonadas, perdidas, rascunhadas e
inacabadas que a poeta retira seu ouro: “Fabulosas iscas do futuro”.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esse trabalho objetivamos traçar o perfil arquivista de Ana Cristina Cesar,
observando a maneira com que seu arquivo pessoal e literário é construído
como material de guarda e instrumento de pesquisa, sendo visitado por ela nos
momentos de exercício de sua escrita para retomar temáticas ou avaliar sua
própria produção. O arquivo trabalha, pois, em auxílio ao movimento de escrita
de Ana C, conforme foi possível observar através dos fac-símiles estudados ao
longo do trabalho.
Pudemos observar que a pesquisa em acervos trabalha com o fragmentário,
com o incompleto, com os rastros de escritas, muitas vezes, inacabadas, mas
em todas as vezes genuína, por trazer consigo uma marca autoral, sendo
índice de uma inscrição do sujeito escritor. Ao longo do arquivo, o autor existe
como a marca vestigial que dá certa unidade aos manuscritos sempre tão
heterogêneos. O arquivo só existe, pois, vinculado a uma autoria, que neste
caso tem Ana Cristina como primeira arconte.
Vimos ainda como o conceito de obra para Roland Barthes ajuda a
compreender o status dos escritos presentes em um acervo, pela sua
materialidade e pela filiação que a poeta faz de seus escritos a ela, imprimindo
constantemente sua assinatura. Além do mais, destituídos do caráter de obra
não seria possível que tantos poemas póstumos de Ana Cristina Cesar fossem
publicados por seus organizadores.
Dessa forma, entendemos que o arquivamento é uma prática de construção
social, na qual o sujeito procura guardar seus papéis e seus objetos para a
posteridade, a fim de que aqueles itens materializem a memória que ele quer
deixar de si para os outros, um testemunho. Se é construção é também
elaboração, ou seja, cria-se uma espécie de narrativa material a partir de
escolhas daquilo que se quer latente, em detrimento daquilo que se quer
manter recalcado. Escolhas estas que envolvem também as pulsões
arquivísticas de vida e morte, visto que o desejo de guarda da memória só é
capaz de arquivar uma memória já morta. Por isso, também, a verdade está
sempre distante do arquivo, não por ser uma mentira, mas por ser uma
121
encenação do sujeito que se arquiva.
A prática arquivística como injunção social é para todos. Não apenas figuras
ilustres encenam seus arquivos, escritores e autoridades, também o homem
comum arquiva sua vida através de documentos e fotografias que lhe garantem
uma autobiografia material fragmentária de sua vida. A diferença que
vislumbramos entre esses arquivos é meramente estética, já que se valoriza –
ou deveríamos valorizar – o acervo de escritores, especialmente depois de
mortos, pretendendo encontrar ali respostas para análise de suas obras e,
quem sabe até mesmo uma obra inédita que possa ser explorada pelo
mercado editorial. É o que tem sido feito da obra de Ana Cristina Cesar.
A escrita arrebatadora e misteriosa, a beleza e a juventude, o suicídio precoce;
foram os ingredientes necessários para a mitificação da poeta e o engate para
o sucesso dessas publicações póstumas, propiciadas pela grande quantidade
de papéis do acervo deixado pela poeta. A maior parte do que se tem
publicado de Ana C. foi organizado pelos curadores de sua obra
postumamente, à revelia da escritora.
Isso porque Ana publicou em vida apenas três livrinhos em produções
independentes e, depois, a reunião deles com poemas inéditos lançados por
grande editora. O primeiro livrinho foi lançado apenas em 1979, anos depois de
seus colegas de geração. Essa informação parece desencontrada diante do
arquivo que percorremos. A presença do vasto material encontrado no acervo e
a tenra idade com que começou a ditar seus escritos, fazem refletir sobre a
demora de Ana Cristina em lançar-se às publicações mimeografadas.
Uma possível resposta emana do próprio corpo do arquivo. Através das
rasuras assíduas e do constante diálogo com seu texto Ana mostra-se,
podemos inferir, insegura com seus escritos e acometida por um rigor
autocrítico que, se por um lado fez surgir uma exímia poeta, crítica de seu
tempo e leitora de uma tradição; por outro lado, acabou mostrando-se menos
em vida e mais na morte, promovendo as temidas leituras “biografílicas” de sua
produção.
Conhecemos menos a Ana C. poeta e mais a Ana C. escritora em sua oficina
122
de produção em meio aos papéis que ela própria não soube determinar se
eram poemas. Coube a outros definir, em meio à profusão de versões e
escritos diversos, quais deles são poesias. A necessidade de mais visitas
críticas ao acervo se deve justamente a isto: perceber o funcionamento dos
exercícios de escrita de Ana Cristina Cesar como um compromisso maior com
a palavra, desierarquizando os textos ali presentes, tratando de igual para igual
desde o texto mais limpo de rasuras, passando pelos mais machucados pela
inquietação da inspiração, chegando aos mais retalhados e condenados aos
restos. O “resto dos escritos” de maneira alguma perturba a integridade da obra
em pesquisas deste cunho, pois é exatamente em busca deles que adentramos
às gavetas.
Fazer buscas em um arquivo, especialmente de uma poeta que já não mais
está viva, como é o caso do nosso trabalho, é irromper fronteiras sabendo que
nem sempre encontraremos respostas. Não visamos à obra fechada, acabada,
mas às possibilidades colocadas diante do escritor, das quais dão testemunho
os manuscritos com suas rasuras, seus acréscimos, suas supressões. Só
assim é possível flagrar Ana C. em sua atividade primordial: a escrita.
123
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127
ANEXOS
128
NOTA AOS ANEXOS
Constam nestes anexos, além de algumas fotografias, a transcrição de alguns
fac-símiles com os quais trabalhamos ao longo da dissertação. Transcrevemos
aqueles manuscritos que, de acordo com nosso julgamento, apresentavam
dificuldade na leitura devido à caligrafia e as rasuras. Optamos ainda por não
transcrever todo o manuscrito, mas apenas aquilo que mais importava nas
análises propostas. Em alguns casos usamos a transcrição feita por Viviana
Bosi, organizadora da edição fac-similar de Antigos e Soltos: poemas e prosas
da pasta rosa (2008), os demais foram transcritos por nós. As transcrições
aparecem nos anexos de acordo com a ordem em que aparecem no corpo da
dissertação, ou seja, de acordo com a paginação da Lista de Figuras.
129
Anexo 1
54
54 Ana Cristina Cesar no lançamento do livro A teus pés, Rio de Janeiro, 1982. Autor: Agência IstoÉ
Figura 37: (BR IMS CLIT ACC Dico 0016e) Acervo Instituto Moreira Salles
128
Anexo 2
Figura 38: Máquina de escrever de Ana C. _ Acervo Instituto Moreira Salles
129
Anexo 3
Alvim, Francisco {certas vozes claras
Eudoro, Augusto {objetos obscuros voando
Bandeira, Manoel
Barthes, Roland
Bishop, Elizabeth
Brontë, Emily?
Buarque, Helô
Carroll, Lewis?
Dickinson, Emily
Drummond, Carlos
Eliot, TS
Freitas, Armando
Holiday, Billie
Hunter, Alberta
Kleinman, Mary
Mansfield, Katherine
Melin, Angela
Mendes, Murilo
Paz, Octavio
Pedrosa, Vera
Rhips, Jean
Stein, Gertrude
Svevo, Ítalo
Waller, Fats
Whitman, Walt?55
55 Transcrição nossa para figura 1 (p.47)
131
131
Anexo 4
NÃO ME CHAMEM DE POETISA QUE RIMA COM LATRINA
Deitei sôbre um esquilo aquático e assoprei o ventre
- dizia certa vez uma vespa intranqüila
Até que as palavras não fazem todo sentido
- dizia hoje a poeta quieta
1-9-68
A tinta chupa tinta,
Quiengraçado!
MANCHA Tenho 16 anos
Sou viúva
De família azul
De cabelos esvoaçantes
(E nada rebeldes)
Sou genial sob todos os pontos de vista,
Inclusive de perfil
A poesia é uma mentira, mora
Pelo menos me tira a verdade relativa
E ativa a circulação sanguínea
A Pedra Filosofal é um tanto ou quanto bêsta
Plutatcoplatãoplauto
Plutãoturcotãopauto
Platacotãopuloplau
Desisto: tenho 16 anos.
E perdi-me agora rabiscando-te.
1-9-68
Ana Cretina Cesar56
56 Transcrição nossa para Figura 8 (p.59)
131
Anexo 5
I
Nasci. Nasci numa segunda feira, no dia 2 de junho de 1952. Minha mãe era Maria Luiza Cesar,
e meu pai Waldo Aranha Lenz Cesar.
Foi na maternidade Carmela Dutra. Eu era rosada, careca e de olhos azuis.
Minha vovó Maria Luiza, mãe da mamãe, me criou, porém eu morava em Niterói, na rua Mariz
e Barros, 75, 402.
Andei com 10 mêses e meio.
Em dezembro, no mesmo ano em que nasci, fui para Campos do Jordão. Porém passei muito
bem.
Mas... no dia 23 de dezembro, (aniversário da mamãe), de 1953, caí da cadeira e quebrei57
*****
meu braço! (esquerdo, mas como ainda não escrevia não me importei). Fiquei engessada 1
mês!
Orei pela primeira vez:
Pápá do céu, bligado Jesus.
Amén.
Aos 2 anos e meio, Flávio nasceu. Foi no dia 22 de dezembro. Ele nasceu em Niterói.
Eu já estava no colégio. Colégio Bennett. Eram minhas professoras: zilá Veiga Reis e Mathilde
Alganiz. A princípio chorava, mas depois adorei e brincava muito de “mãe e filha”.
Eis aí alguma foto do meu colégio:58
57 Transcrição nossa para a Figura 9 (p.60) 58 Transcrição nossa para a Figura 10 (p.61)
131
*****
IV
1958. Ano nôvo, alegre, despreocupado.
Estou no Intermediário professora ( e até hoje) D. Néya e D. Simone.
Lembro-me muito dêste curso, apesar de passados já cinco anos.
Gosto muito de contar histórias para minhas colegas, na classe.
Minha mãe ouve e escreve o que eu digo. São poesias inocentes e puras de uma criança. [...]59
E qual não foi minha surpresa quando, em cima da poesia, estavam escritas as palavras:
Parabéns, Excelente,
Belo Trabalho!
Eu não esperava tanto êxito...
Nas férias de julho, D. Norma pediu que nós fizéssemos em um caderno, cinco cópias e cinco
ditados. Até hoje, quando folheio aquêle caderno ilustrado e escrito eu penso: “Pôxa, férias
são férias!”...
Uma agradável surprêsa foi quando recebi uma cata de Lúcia Benedetti, , escritora de peças
infantis, muito famosa:
(Eu tinha dado algumas poesias minhas para ela ler [...]60
59 Transcrição nossa para a Figura 11 (p.62) 6060 Transcrição nossa para a Figura 12 (p.63)
131
Anexo 6
O início de tudo
Sumária (????) O anjo que registra
Foram esses jovens deuses e deusas nos exercícios de {espada }esgrima
Que a fizeram começar a escrever, depois.
Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando
Uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico,
produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
O suborno no bordel.
Primeiro ato da imaginação.
Eu tenho uma ideia.
Eu não tenho a menor ideia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Você pensa que é menor.
Um menor que precisa de mentor.
A imaginação feminina.
Deixe ver.
A imaginação feminina no papel.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às 3 da tarde.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às 3 da tarde.
Biografia. Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the kid.
135
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que seu amor de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.61
61 Transcrição nossa para Figura 14 (p.65)
135
Anexo 7
Litoral
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz
fraca cobre a fuga naufraga
ondas mornas imóveis
meu amor escapa esta superfície
irrespirável enreda
o vôo o movimento
inverso não mais teus ossos
águas sem sopro onde uma
temporada apenas
neste inferno.62
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz
fraca cobre a fuça naufraga
meu amor escapa outra vez esta
superfície
irrespirável (o vôo o movimento
superfície irrespirável (não o vôo
o movimento inverso
barriga mole de
peixe
62 (CESAR, 2008, p.198). 7
meu amor águas
meu amor escapa outra vez esta superfície
irrespirável o vôo o movimento
inverso não mais teus ossos águas
sem sopro) uma temporada apenas
neste inferno
Litoral
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz
fraca cobre a fuga naufraga
ondas mornas imóveis
meu amor escapa esta superfície
irrespirável o vôo o movimento
inverso fenda
meu amor águas
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz fraca
cobre a fuga naufraga ondas
mornas imóveis
as ondas fogem plurais quem dera
o vôo o movimento inverso não mais
tuas ossadas
135
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz fraca
cobre a fuga naufraga
imóveis naufraga
ondas mornas imóveis
sem mãos o vôo o movimento
inverso nçao mais teus ossos
uma temporada apenas
neste inferno sem sopro contra as
minhas
o amor escapa esta superfície
irrespirável sem á
sem águas onde uma temporada apenas
neste inferno.
superfície irrespirável naufrágio
quem dera o vôo o movimento inverso
não mais teus ossos sem sopro
Litoral
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz fraca
cobre a sua fuga em ondas mornas
superfície irrespirável naufrágio
(o vôo o movimento
inverso não mais teus ossos águas
sem sopro
meu amor escapa outra vez pela
azão*
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz
fraca cobre a fuga naufraga
ondas mornas imóveis
sem o vôo
as amor escapa superfície
irrespirável
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz fraca
cobre a fuga redige o
***
Litoral
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz
fraca cobre a fuga redige ousadia
ouvida oumorte as ondas fogem imóveis
135
as ondas fogem plurais
desta alquimia envelhecida/quem dera
te ainda se ouve
se
o vôo um movimento inverso não mais
tuas ossadas entre as minhas
irrespirável superfície
***
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz
fraca cobre a fuga redige ousadia
ouvida oumorte naufráguas
***
o amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz fraca
cobre a fuga redige ousadia
ouvida oumorte naufráguas mornas
imóveis
***
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz
fraca cobre a fuga exata das águas
irrespirável superfície
o amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso
a voz fraca cobre a fuga
redige ousadia ouvida oumorte
naufráguas mornas imóveis
as ondas fogem
meu amor escapa outra vez pela
fenda calada do verso a voz fraca
cobre a sua fuga exata naufraga
águas mornas imóveis
as ondas fogem plurais desta
velhice desenganada com palavras
irrespi supero
quem dera o vôo
o movimento inverso não mais
tuas ossadas63
63 Demais versões de Litoral são transcrições
nossas para as figuras 16, 17 e 18 (p. 95 a p.97)
Anexo 8
Diagnóstico precoce tardio
fraturo as duas mãos no carnaval “uma doença grave esse
amor sem braços” (CDA) Me surpreendo em
trânsito, malas e carroças, palavras
escaramuçam gesso. Releio as outras do namorado
que fugiu pra Europa recitando “as
“mulheres tarde pra ver com olhos límpidos” Generalizar para
não assustar. Dúbia sentença política!
Ostento
biográficas
palavras
embora
maneta e sem luneta. Tarde demais
esse amor sem dedos.64
64 Transcrições nossas para Figura 20 (p.99)
Uma doença grave
esse amor sem braços
CDA 97
Fraturo as duas mãos no carnaval
me surpreendo em trânsito
malas a carregar
não sei conversar
pra te namorar
na verdade não sei fazer nada
às vezes pego do papel cravo desenhos
que para minha satisfação pessoal chamo poema
tarde para ver com olhos límpidos
o poeta batido por remelas e astigmatismo
Lui
30.12.74
Anexo 9
No cais outra vez
todos
os amigos estão fazendo poeminha-minuto, frases relâmpagos golpes ou
bobagens. O namorado se retira uma semana e produz catorze poemas
de qualidade. Programa-se uma coleção de poesia Intensa movimentação nos
círculos literários! depois parte para a Europa. Deixa publicado
dois livros e parte para a Europa com um terceiro
debaixo do braço. Certamente lá produzirá o quarto.
E eu não produzo nada mordo as cordas
a âncora esse abandono
e uma partida seca na goela.65
65 Transcrições nossas para Figura 21 (p.101)
Anexo 10
luta de classes
meu verso vem descendo desfila na alameda cavalos corcéis garbosos umbrais greta sublime folhagem bate ao peito do fidalgo
Súbito o cérebro classe dominante
arrepia seu galope pressentimento
em vão a metafísica comparece
consolar o nobre arrepiado*
o estampido movimento estampido dessas rodas
ruge com descaso à fidalguia
Temporada no inferno
meu amor escapa outra vez pela
fenda calda do verso a voz
fraca cobre a fuga naufraga
ondas mornas imóveis
meu amor escapa outra vez desta
superfície irrespirável faz
o movimento inverso peixe
vivo
Quando penso no corpo do meu ex-namorado
acho que já esqueci, Cacaso, acho que
esqueci.
meus versos vem descendo a alameda
tropel de fogosos corcéis
cocheiro incólume ou cadáver pisoteado
não sei bem ainda
não atinjo a exatidão dos prados
ainda escuro
o ponto onde se troca fácil o sono pela
noite
Despertar
meus versos vem descendo a alameda
tropel de corcéis fogosos
cocheiro incólume ou corpo pisado –
pensei bem ainda
não atinjo a precisão dos prados
ainda escuro
o ponto onde se troca fácil o sono pela
noite
17
meus versos vem descendo a alameda num golpe curto
cocheiro incólume ou corpo pisado – nem sei bem ainda
o poeta não atinge a precisão dos prados
meus versos descem a alameda num galope curto
cocheiro incólume ou corpo pisado
o poeta
não atinge a precisão dos prados
A literatura é nada me tirado o sono.
os ratos que morrem na banheira.
18
meu verso desce
meu verso desfila na alameda umbrais
cavalos garbosos
faz pose de fidalgo
ereta sublime branca a folhagem bate ao
peito do
meu verso vem descendo a alameda umbrais
cavalos garbosos
ereta sublime branca a folhagem bate ao
peito do fidalgo
pose real
onde o cérebro classe dominante
arrepia seu galope pressentimento
em vão a metafísica comparece
consolar o nobre arrepiado
escolhido movimento dessas rodas
com descaso à fidalguia
soninas faz que não66
66 Transcrições nossas das versões de Luta de Classes, Temporada no inferno e Despertar para figuras 22,
23 e 24 (p.102 a p.104)
19
Anexo 11
encavalgam-se os versos
aflitos animalescos destes cerrados um certo ódio nas
paredes da poesia
portões de ferro a segurar-me a manga
mas acima de tudo
amo as bestas e as feras
nos seus refúgios ou
soltas nas trevas
as patas calcinadas pelo furor
da página
navegação da palavra
encavalgam-se os versos
aflitos animalescos destes cerrados um certo ódio nas
paredes da poesia67
67 Transcrições nossas para Figura 26 (p.109)
20
Anexo 12
(corpo do texto do que seria o começo do romance)
O fogo arde o corpo da vela. Não há luz além desta do fogo tento.
A sopa não prestava, era antes um símbolo das noites sem ardências
nem suspeitas. Diana cabe na sala nua. Eu sou Diana em mitológico
cansaço. Diana depositou os instrumentos de trabalho no tapete.
Queria cortar meu cabelo, virar deusa esvoaçante, cair em repouso
absoluto, desistir de fazer vontades. Fazer vontades. Não existem
vontades. O verdadeiro é além da vontade. Mas não. Diana está é
certa no cumprimento das hipóteses. Eu acho também que ler a estas
horas é melhor do que ir para a cama que nos separa em altitude de
espera. Ou antes eu devo voltar? De agora não mais. Posso ver os
livros e folhas de Diana no chão. Minha cabeça está suja, meus pés
frios, há pela casa o silêncio das ilhas reais. Estou deserta e sem
alternância. Lembro-me de uma série de fatos sem importância. Luto
contra a importância dos meus próprios instrumentos de Diana. A cor
estéril. Não é bem isso que eu quero dizer. Quando eu me referir a
Diana estarei também falando de todas as outras dentro de mim. Diana
é mais fácil, simplifica-se o percurso. Dizer “eu” afinal é esforço
a mais ou facilitação barata. E inverídica. Não dirás o teu nome em
vão. Por isso eu digo Diana nome dado e apreendido. Nome que nasceu
comigo ainda não me pertence. Porque eu deixei o trabalho, me sumo
na linguagem ou sumo com o que importa: o tempo, a virgindade do tempo,
a água, o corpo. Nem o medo intrínseco na ilha e os barulhos que não
vem devem existir. Diana depôs a vida de Diana: metonímias sem suti-
leza. Eu não explico nada do que é esta frase: uma metonímia sutil.
Depor os meus livros e lembrar não é ser hermética. Meu nome é Diana,
21
que devo estar esperando o homem que me foi concedido. Este homem é
sem importância. E as coisas ou importam ou não. Eu falo nele por
querer falar das minhas limitações, como um detalhe de vida. Eu anoto.
este homem que osta do que Diana não gosta. Diana cumpre o seu dever.
Diana não vai rompê-lo nem deixar de abordar a cama do homem de
vez em quando. E dizer “nós” para os anos, arredondando o tempo.
(Anotado a mão em seguida:)
Isso daí deve de ser de outubro de 1970. Acompanhado
de projetos de continuação estruturada. Quase 2 anos
depois o velho fascínio à tona. Eu acho isto
daí muito interessante. Bato na máquina capenga,
sublinho, objetivo o trabalho, cada vez menos
meu, mais de fora, até pertencer a quem
por acaso o tiver. Sinto vontade de continuar,
lembro até da “situação inspiradora”, do
insight que nós tivemos naquele tempo sobre a
situação. Penso até em coloca no início
do trabalho: “em homenagem a C., musa
inspiradora”! Que acesso de babaquice. Durante
a datilografação eu pensei muitas associa-
ções, agora deixa pra lá. Adeus batucada.
1.8.7268
68 (CESAR, 2008, p.184).
22
Anexo 13
Situação:
1ª parte x. casada com homem bem + velho
aspectos:
solidão – ausência – descobertas – relações
com o marido – longa doença
2ª parte lembranças do passado
Aspectos:
Infância – filha + nova 2º casamento do
pai; muitos irmãos; vida fechada, solidão; obscu-
ridade; medos
adolescência – noivado um rapaz vários
anos; tudo acaba um dia
casamento – não se explica. absurdo.
obscuridade outra vez – :
3ª parte redenção
(não é um romance cíclico)
aspectos:
?
importância do romance:
todos os fatos começam de dentro para
fora; é uma viagem em busca de um
significado para o presente, estando-se
oprimida entre o passado e a ausência69
69 (CESAR, 2008, p.180) para figuras 28 a 31 (p.112 e p.113) Viviana Bosi coloca ainda a seguinte nota:
“Este grupo, bem como os seguintes, faz parte de um grupo de papeizinhos de rascunho e anuncia, pelo
seu conteúdo, o projeto de um futuro romance. Nas próximas páginas temos os desdobramentos desta
23
Anexo 14
Teve os olhos ingênuos de repente pela dor e sua mudez.
Porque perdia o pálido excessivo e o riso
do corpo largo. Mudou de
cor, havia então um tom amarelado fechando
suas medidas. Embora perfeito, seu andar
não mais fremia do sensual ainda intacto –
a dor fê-la mansa, ausente, inconsciência,
talvez mais agudamente sensitiva e tatilmente
aberta do que as mulheres donas totais
de si e do mundo. Não mais levantou rápida
e riu ante o desejo dos outros risos:
seus movimentos demarcavam
o verdadeiramente importante, além, além
das febres de espera ou posse.
Hoje eu tenho – ela disse. E sentiu
dentro do buraco da dor
tomando seu espaço por completo.
A princípio tentara abstrair o centro
a dilacerando, mas então
veio em direção ao centro e nele
se fez uma: onde o corpo absoluto
gravita lento, descoberto
de espuma, riso, palavra.70
idéia que não se concretizou.” 70 (CESAR, 2008, p.334) para Figura 32 (p.114).
24
Anexo 15
A noite e sua nudez,
a voz da menina em admiração aberta,
alternância de sátira ou silencio entristecido
hoje sou testemunha da noite e sua nudez,
hoje assisto ao testemunho da menina e seu amor calado
há entre nós a pouca distância de quem sabe para sempre
e muito que nos separa
é o mudo do meu presente.
a menina, olhos de menina,
grandes na nudez da noite, no passageiro da criação,
nos sonhos sonhados, suspeitados,
a voz e o silêncio sobre o que sempre soubemos,
entre a paixão da menina
e o desejo da paixão que me anima,
ainda ausente como estou,
menina que perdi,
além do primeiro das coisas.
6.11.70
a partir de um estudo do roman-
tismo interrompido por um telefonema
da Eliane. De volta entrevi Gonçalves Dias:
“Eu amo a noite taciturna e queda!
Amo a doce mudez que ela derrama...”
da mudez à nudez, por que não?71
71 (CESAR, 2008, p.320) para Figura 34 (p.116)
25
Anexo 16
eu quero a aceitação dos sorrisos estrangeiros entusiasmos percebidos o chuvisco na noite com frio chuva e terra eu chuva e terra indivisível na escuridão da vizinhança neste noturno tédio e as notas miúdas de pacificação eu quero sóis distantes do medo
Esses momentos de vida raros e preciosos – é preciso permanecer, com eles traço em direção ao eterno, posto que são breves e intocáveis. Imobilidade. Estou aprendendo o que esquecerei até o próximo.
vidas de passados vivo, longe, sem palavras nem criaturas
6/11/1970 Qualquer nota sobre poesia deve se referir ao que nos leva a escrever poesia. Não há nada mais fatal que o silêncio da noite avançando o fim de sábado. T.A. Arne e saudades em vagas. Hoje sinto exatamente o movimento da poesia, que nasce da ânsia incompleta, à falta do que nos complete e aos nossos movimentos. O silêncio e o apaziguamento do cravo clássico fazem a noite de poesia. A falta sem fronteiras, as memórias não mais memórias, o presente total e tranqüilo sem a morte, ou com o passado indefinível. Ao infinito deixo minha ânsia, nela espero e dela vivo.72
72 (CESAR, 2008, p.322) para Figura 35 (p.117)
26
Anexo 17
Figura 39: (CESAR, 2013, p.124)