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UNIDADE 12 – 01/11/2017 A ANÁLISE LINGUÍSTICA NA INTERMEDIAÇÃO DOS PROCESSOS DE COMPREENSÃO E DE PRODUÇÃO TEXTUAL Professora Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu – Uerj Tem sido recorrente nos debates sobre o ensino de Língua Portuguesa nos diferentes anos de escolaridade a discussão centrada no papel que o ensino de gramática deve exercer frente aos vários desafios que os anos básicos de escolaridade nos exigem. Nunca é demais relembrar que, a despeito de tantos e tantos empreendimentos em relação a o que ensinar e como ensinar, os nossos resultados vêm deixando a desejar quanto ao desenvolvimento da proficiência discursiva de nossos estudantes. A recorrente pergunta é por que nossos estudantes leem e escrevem tão aquém das expectativas, ou melhor, por que seus textos e seus respectivos desempenhos não demonstram de forma contundente o conhecimento amplo da língua. Por ser uma discussão muito abrangente, talvez, não consigamos mapear todos os vértices desse problema. Entretanto, podemos repensar algumas premissas básicas no desenvolvimento do processo ensinar-aprender que se podem constituir em base solidificada para as escolhas metodológicas que devem ser feitas pelo docente ao pensar em seu planejamento para as aulas de leitura e de escrita em Língua Portuguesa. Não se pode deixar de afirmar que o ato de ler é um processo complexo que mobiliza diferentes condições. No nosso dia a dia, estamos permanentemente inseridos em situações de leitura. Lemos todo o tempo, ainda que nem sempre tenhamos a consciência desse ato, de como ele está permeando nossa vivência diária. Entender essa prática é pensar sobre a intrínseca relação entre a leitura e a sociedade. Ler é um ato de afirmação social, uma atividade situada em um contexto sócio-histórico que permite a interação de um indivíduo com outros indivíduos. Marcuschi (2001, p. 11) afirma que “ler e compreender um texto são vistos como processos ativos, criativos e reconstrutivos”. Por isso, a leitura envolve uma capacidade decodificadora, ou seja, o domínio do código, que faz o leitor entender a composição e a combinação das palavras e das

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UNIDADE 12 – 01/11/2017

A ANÁLISE LINGUÍSTICA NA INTERMEDIAÇÃO DOS PROCESSOS DE COMPREENSÃO E DE PRODUÇÃO TEXTUAL

Professora Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu – Uerj

Tem sido recorrente nos debates sobre o ensino de Língua Portuguesa nos diferentes anos de escolaridade a discussão centrada no papel que o ensino de gramática deve exercer frente aos vários desafios que os anos básicos de escolaridade nos exigem. Nunca é demais relembrar que, a despeito de tantos e tantos empreendimentos em relação a o que ensinar e como ensinar, os nossos resultados vêm deixando a desejar quanto ao desenvolvimento da proficiência discursiva de nossos estudantes. A recorrente pergunta é por que nossos estudantes leem e escrevem tão aquém das expectativas, ou melhor, por que seus textos e seus respectivos desempenhos não demonstram de forma contundente o conhecimento amplo da língua. Por ser uma discussão muito abrangente, talvez, não consigamos mapear todos os vértices desse problema. Entretanto, podemos repensar algumas premissas básicas no desenvolvimento do processo ensinar-aprender que se podem constituir em base solidificada para as escolhas metodológicas que devem ser feitas pelo docente ao pensar em seu planejamento para as aulas de leitura e de escrita em Língua Portuguesa. Não se pode deixar de afirmar que o ato de ler é um processo complexo que mobiliza diferentes condições. No nosso dia a dia, estamos permanentemente inseridos em situações de leitura. Lemos todo o tempo, ainda que nem sempre tenhamos a consciência desse ato, de como ele está permeando nossa vivência diária. Entender essa prática é pensar sobre a intrínseca relação entre a leitura e a sociedade. Ler é um ato de afirmação social, uma atividade situada em um

contexto sócio-histórico que permite a interação de um indivíduo com outros indivíduos.

Marcuschi (2001, p. 11) afirma que “ler e compreender um texto são vistos como processos ativos, criativos e reconstrutivos”. Por isso, a leitura envolve uma capacidade decodificadora, ou seja, o domínio do código, que faz o leitor entender a composição e a combinação das palavras e das

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frases em uma língua. Mas, ao mesmo tempo, é uma atividade de criação porque, baseado no texto, o leitor necessita extrapolar essa decodificação e perpassar pelos universos construídos no texto, depreendidos, lidos, também, com base nas experiências sociais e culturais vivenciadas por esse leitor para a compreensão plena do texto. Parte-se de um pressuposto de que a organização do sistema alfabético da escrita deve ser acompanhada da compreensão de que o uso do sistema linguístico está sempre inserido em um determinado contexto social. Portanto, não se trata de uma extração de sentidos, mas de uma combinação de sentidos, porque esse sistema está inserido discursivamente. A decodificação do texto não se basta para o processo de compreensão textual. Por isso, faz-se necessário que o estudante compreenda que a língua materna é geradora de significação e integradora da organização do mundo e da construção do conhecimento. A fim de entendermos o processo pelo qual passamos quando iniciamos a leitura de um texto, apresentam-se a seguir três diferentes textos, a fim de entendermos as estratégias utilizadas no ato do processamento da leitura.

Passemos à leitura do texto 1

Museu Nacional anuncia descoberta do maior dinossauro carnívoro do Brasil

O Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) anunciou hoje (16) a descoberta do maior dinossauro carnívoro do Brasil. Batizada de Oxalaia quilombensis, a espécie faz parte do grupo de espinossaurídeos, dinossauros com crânio alongado e espinhos que formam uma espécie de vala nas costas.

Acredita-se que o animal, que media entre 12 e 14 metros (do crânio à ponta da cauda) e pesava entre 5 e 7 toneladas, viveu há cerca de 95 milhões de anos, no litoral do Maranhão. Antes da descoberta do Oxalaia quilombesis, o maior dinossauro carnívoro brasileiro era o Pycnonemosaurus, que media 9 metros.

Descrição da

espécie

descoberta.

Responde

à possível

hipótese

Há outras

descobertas desse

porte no Brasil?

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Segundo a pesquisadora Elaine Machado, do Museu Nacional, a espécie foi identificada a partir de um conjunto de fósseis, com partes do maxilar e dentes do dinossauro, encontrado em 1999, na Ilha de Cajual, no Maranhão. A identificação da espécie e a divulgação da descoberta, no entanto, demoraram 12 anos.

“Ele era o réptil dominante da Ilha do Cajual. E esse é um grupo de dinossauros que desperta grande interesse não só aqui no Brasil quanto lá fora, porque tem características diferentes de outros dinossauros carnívoros. E, por ter sido uma das estrelas do filme Jurassic Park, ele chama muito atenção”, disse.

O dinossauro brasileiro também é considerado o segundo maior espinossaurídeo do mundo,

ficando atrás apenas do Spinosaurus aegyptiacus, identificado em 1915, no Egito. Duas espécies de espinossaurídeos já haviam sido descobertas no Brasil, na Bacia do Araripe: Irritator challengeri e

Angaturama limai. O nome Oxalaia é uma homenagem à divindade africana Oxalá e quilombensis se remete ao fato de que a Ilha do Cajual já foi um quilombo, onde viveram descendentes de escravos [...].

Abdala, Vítor. Repórter de Agência Brasil. 16/03/2011. https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2011/03/16. Acessado em 8 de setembro de 2017.

O texto intitulado “Museu Nacional anuncia a descoberta do maior dinossauro carnívoro do Brasil” é um texto informativo, denominado como texto referencial, em que predomina a denotação porque tem como objetivo divulgar uma informação, no caso, sobre uma descoberta científica. É um texto veiculado em jornal digital de grande circulação. O título traz em sua essência a sumarização do que vai ser exposto ao longo do texto. Uma dificuldade inicial talvez seja a identificação do que seja Museu Nacional, pois, situado no Rio de Janeiro, pode não ser de conhecimento de todos os leitores.

Fala da pesquisadora. Discurso indireto.

E no discurso direto.

Explicação sobre o nome da

espécie descoberta.

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É importante entender, entretanto, que nem sempre as dificuldades são as mesmas para cada leitor. Para um leitor que tem uma relação com aquele estado, parentes que lá moram, já tenha passado um período de sua vida por lá, já tenha visitado o museu, de imediato este leitor aciona/depreende o sentido. É interessante observar que há muitos e muitos filmes sobre a temática dos dinossauros, direcionados tanto para o público infantil quanto para os jovens e os adultos. É justamente essa a comparação feita ao longo da notícia – que o animal descoberto foi protagonista do famoso filme Jurassic Park. Portanto, o leitor aciona seus conhecimentos ao ter o INPUT do texto, num processo de construção de redes de significados. Nesse caso, independente das pistas textuais, o leitor aciona seus próprios conhecimentos para desvendar o sentido e imputar significado ao que está sendo lido. Deve-se observar, entretanto, que o texto pode oferecer pistas para a construção dessas redes. O início do texto, primeiro parágrafo, situa o leitor na nova descoberta, anunciada no título, registra o nome do bicho, sua espécie, fazendo uma rápida descrição física do animal.

O segundo parágrafo, iniciado com o verbo acredita-se na terceira pessoa + a partícula se, mostra impessoalidade e distanciamento, de certa forma, necessário ao texto de descoberta científica. Traz informações relevantes para o tema do texto, que gira em torno das características presumidas do dinossauro, indicando o local de sua existência – litoral do Maranhão. Cabe ao leitor entender que a descoberta foi feita por pesquisadores do Rio de Janeiro, de um predador que viveu no Maranhão, um dos estados brasileiros do Nordeste. A seguir, a pesquisadora ganha voz no texto, ao ser trazido, no terceiro parágrafo, o que se denomina testemunho de autoridade: “Segundo a pesquisadora Elaine Machado”. Logo em seguida, a voz da pesquisadora aparece no quarto parágrafo, esmiuçando as características da espécie identificada. É interessante observar que esse discurso direto é marcado pelo uso das aspas, terminando o parágrafo com o verbo dizer, que marca o discurso direto.

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A seleção de informações é uma estratégia muito importante de leitura. Não lidamos com todas as informações do texto. Portanto, faz parte do processamento de leitura o entendimento daquilo que o produtor do texto seleciona para o leitor. O que um leitor proficiente precisa entender é que a forma de construção do título permite ao leitor a construção de algumas hipóteses. Trata-se de uma nova descoberta? A quem se assemelha esse novo réptil? Há outras descobertas desse tipo no Brasil? O desenvolvimento das informações ocorre com as analogias (comparações) que estão sendo estabelecidas. Dada a natureza informativa do texto, há um grau mais elevado de informações explícitas em detrimento das informações implícitas. Mas deve-se entender que se trata de um fragmento de texto, então há informações que podem não estar ali cotadas. Além das comparações entre descobertas existentes no texto, o último parágrafo traz explicações sobre o nome científico dado à nova espécie. O que se pode observar a partir da análise proposta é que o leitor proficiente precisa ir resgatando os sentidos do texto que estão entrelaçados pela seleção e pela combinação das palavras que marcam aquilo que se quer dizer. Nesse sentido, leitura e recursos linguísticos estão estreitamente relacionados. Passemos à leitura do texto 2, uma cena reproduzida em uma tira em quadrinhos do

famoso Laerte, quadrinista importante do cenário brasileiro.

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Diferentemente do texto 1, o texto 2 é uma tira em quadrinhos, em linguagem mista, em que predomina a linguagem não verbal. Há um alto grau de inferência que cabe ao leitor acionar, por intermédio de seus diferentes conhecimentos. a) Parece ser um espaço familiar: um cômodo de uma casa, provavelmente um banheiro ou uma

cozinha devido ao piso, denominado frio, normalmente utilizado nesses espaços.

b) O tipo de sapato utilizado, uma espécie de pantufa, é uma pista para esse espaço familiar indicado

em (a).

c) Tem-se a impressão de que o personagem, que só tem as pernas aparecendo, pode estar em

frente à pia ou em frente ao espelho.

d) Para entender a fala do inseto, o leitor tem de acionar seus conhecimentos de mundo para entender que a barata é um inseto que causa nojo e asco nas pessoas. É comum se dizer que o

gênero feminino tem esse sentimento muito forte em relação a esse inseto.

e) A fala do inseto demonstra que é conhecedor desse sentimento.

f) A posição dos pés e a direção que os insetos tomam indicam que vão se achegar aos pés e às pernas do personagem humano.

g) A caveirinha sobre o inseto que fala pode nos indicar sua liderança, pode indicar que tem um pensamento pior (mais malvado) do que o de seu companheiro.

h) A fala do inseto descarta qualquer possibilidade de ser um personagem do gênero masculino, pois diz o nome ao se dirigir ao outro inseto: Dona Lila.

O entendimento das pistas na junção do verbal e do não verbal pode auxiliar na depreensão mais ampla do texto pelo leitor. Para a leitura, partimos do contextual, da base que é o texto. Entretanto, tanto no texto 1 quanto no 2, precisamos acionar conhecimentos de nosso repertório para juntarmos ao que está explícito e ao que está implícito e mergulharmos na sua finalidade, no seu propósito para a depreensão de sentidos. Em ambos os textos, acionamos esses diferentes conhecimentos, deflagrando o processamento cognitivo de apreensão de sentidos ancorado nas informações que aparecem na superfície textual.

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Também não se pode deixar de registrar que, dada a natureza diferente dos textos, cada um deles nos exige mais ou menos esforços para a depreensão dos sentidos, já que as informações podem compor um maior espectro de explicitudes (texto 1) ou de implicitudes (texto 2). A análise desses dois textos constitui-se em uma tentativa de concretizar o que acionamos na abstração cognitiva para a leitura e o entendimento dos referidos textos e sua relação com a análise linguística. Passemos à análise de outro texto.

Ilha de Fernando de Noronha

O Arquipélago de Fernando de Noronha pertence ao estado brasileiro de Pernambuco e é

formado por 21 ilhas, numa extensão de 26 km², tendo uma principal – a maior de todas – também chamada Fernando de Noronha, como única ilha habitada, onde vive uma população de

apenas 3.012 habitantes. Ali, o turismo é desenvolvido de forma sustentável, criando a oportunidade do encontro equilibrado do homem com a natureza em um dos santuários

ecológicos mais importantes do mundo.

Adaptado de www.ilhadenoronha.com.br/ailha/ailha.php

Esse é um texto do gênero propaganda em que predomina a informação sobre o tema central – a

Ilha de Fernando de Noronha, título do texto, inclusive. É importante o leitor perceber que, nas três primeiras linhas, o texto apresenta o arquipélago, do qual a ilha faz parte, com suas características:

• É um arquipélago pertencente ao território brasileiro.

• Está localizado no estado de Pernambuco.

• Formado por 21 ilhas.

Identificar o tema central

é uma habilidade.

Estas são algumas das

informações

explícitas. Estão

claramente

apresentadas no

texto.

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• O arquipélago tem extensão de 26 km².

• A maior das ilhas é a de Fernando de Noronha, única habitada.

Da terceira para a quarta linha, o foco das informações passa a ser a Ilha de Fernando de Noronha.

• Única ilha habitada.

• População de 3.012 habitantes.

• Santuário ecológico.

• Um dos mais importantes do mundo.

• Ilha que se propõe ao equilíbrio entre o homem e a natureza.

Por ser um texto informativo, a explicitude é predominante. Entretanto, há uma informação explícita que leva o leitor a ter de “mergulhar“ nas entrelinhas do texto. Veja lá: “[...] também chamada Fernando de Noronha, como única ilha habitada, onde vive uma população de apenas 3.012 habitantes.” Trata-se de uma população pequena. A palavra que ancora essa informação implícita é apenas.

É preciso deixar registrada a importância desse “mergulho” no texto não só para a compreensão do mesmo, mas para o desenvolvimento da capacidade de leitura do estudante. Nesse sentido, é importante, também, inferir o sentido das palavras. Vamos ver outro fragmento do texto: “[...] o turismo é desenvolvido de forma sustentável [...]”

É provável que a expressão em negrito seja conhecida dos alunos dos anos de escolaridade sobre os quais estamos nos debruçando. Entretanto, também, é importante que nós, professores, mostremos a eles como podemos depreender sentidos por meio do contexto.

Há mudança de

foco no texto,

chegando ao tema

central. Com

informações

explícitas.

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Dessa forma, é interessante discutir o que é SUSTENTÁVEL, aquilo que se pode sustentar, mantendo-se constante ou estável, equilibrado por um longo período, mostrando que no texto há informações ancoradas que nos permitem entender esse sentido: “[...] criando a oportunidade do encontro equilibrado do homem com a natureza em um dos santuários ecológicos mais importantes do mundo”. Além disso, a palavra santuário demonstra essa perspectiva de equilíbrio

e de sagrado.

Como foi dito inicialmente, o tema central do texto é a Ilha de Fernando de Noronha, sua descrição. Como sabemos disso? Uma primeira pista, sem dúvida, está no título do texto. Mas não se restringe a isso. O texto traz pistas que devem ser entendidas pelo leitor. Volte ao texto e veja todas as marcações em negrito. As expressões e as palavras em negrito formam as redes de significados entre os termos, formando o tecido do texto, cujo núcleo é Fernando de Noronha, como já dito, tema central do fragmento. É tão importante que o leitor em formação entenda esse entrelaçar do texto! É por isso que nossas Orientações Curriculares não se preocupam em meramente identificar, por exemplo, as classes de palavras. Mais importante do que identificar a classe da palavra ou da expressão (se é um substantivo ou um adjetivo) é entender sua função, as relações que estabelece no texto, relacionando sentidos no processamento do mesmo. Após esse entendimento funcional do processo de seleção e combinação de palavras, a identificação pode se tornar consequência. Analise, agora, o seguinte trecho: “[...] o turismo é desenvolvido de forma sustentável, criando a oportunidade do encontro equilibrado do homem com a natureza [...]” A forma sustentável do turismo tem como consequência propiciar oportunidades de equilíbrio entre o homem e a natureza. Portanto, tem-se, nesse trecho, a relação causa e consequência. Assim: Fato: investimento no turismo sustentável.

Causa: necessidade de equilíbrio entre o homem e a natureza. Consequência: criar a oportunidade para que esse equilíbrio aconteça na Ilha.

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Veja como é importante o mergulho no texto, permitindo com que nós entendamos suas tessituras, suas redes. Levar a entender essas redes de significado é propiciar ao aluno a estreita relação entre a gramática da língua e a leitura dos textos desta língua. Assim, na perspectiva aqui defendida, essas são atitudes metodológicas a serem utilizadas pelo professor para o ensino da leitura. Além disso, colega, chamo a atenção como professora para a grandeza de informações de um curto texto. Como há dados e estratégias de leitura a serem acionadas e discutidas, sempre mediadas pelo texto! No processo de intermediação da compreensão, há de se pensar sobre a função da produção de textos, o que a atividade de escrita requer de quem produz. Para refletirmos sobre isso, vamos analisar dois textos produzidos por estudante do 9º ano de escolaridade.

Por que a planta morreu?

A planta morreu porque o mundo está muito poluído. O desperdício de água está muito grande, porque tem muita gente jogando água fora, nós temos que cuidar das nossas coisas, nós temos que fazer consumos conscientes porque sem isso nós estamos perdidos. No Nordeste tem pessoas precisando de água e nós estamos sofrendo jogando água fora. O calor está matando por causa da poluição pode haver o efeito estufa. O mundo está muito doente, o caso do ebóla está descontrolado. Já matou cinco mil pessoas já tirou cinco mil vidas. Esse é mais um de 1000 motivos da planta morrer. Trata-se de um texto produzido por estudante do final do 9º ano de escolaridade. Observa-se que o autor tem domínio do código da escrita da língua portuguesa com suas convenções. Há, apenas, um erro de acentuação gráfica (ebóla). Há pleno domínio da organização sintática das frases da língua, combinadas de forma clara e coerente, de acordo com a prescrição gramatical. As unidades

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vocabulares revelam a temática proposta que parece ser circunscrita à problemática da área das ciências. Ainda que o texto seja formado por quatro parágrafos e que consigamos depreender três partes essenciais do texto, a saber: começo, meio e fim, essa organização não parece ocorrer de forma coesa. Na verdade, não há ligação entre partes do texto, havendo saltos temáticos entre os diferentes parágrafos. Assim, vejamos:

A planta morreu porque o mundo está muito poluído. O desperdício de água está muito grande, porque tem muita gente jogando água fora, nós temos que cuidar das nossas coisas, nós temos que fazer consumos conscientes porque sem isso nós estamos perdidos. Qual a relação entre o primeiro e o segundo parágrafos? O mundo está muito poluído porque há um grande desperdício de água? Na verdade, essa relação não existe. São duas frases que mantêm algum grau de coerência entre si, visto que tratam de uma temática comum, mas não guardam ligação, coesão. Consegue-se perceber estreita relação entre o terceiro e o segundo parágrafos, cujo elemento de ligação é a água e seu desperdício. O próprio terceiro parágrafo retoma a ideia de poluição expressa no primeiro. Entretanto, os períodos que formam os parágrafos parecem flashes de informações. Tem-se a sensação de que o enunciador tomou conhecimentos vários sobre a poluição e o meio ambiente e reproduz em seu texto uma exposição de situações que revelam esse desajuste que o meio ambiente vem sofrendo. Outro fato interessante diz respeito à pergunta do título. A que planta se refere? O uso do artigo definido – a planta – denota que não se trata de um termo genérico. Essa planta faz parte de uma história contada? É fruto de experiência científica realizada em sala de aula? O texto é um relatório de atividades em que o produtor tem de desenvolver uma exposição científica sobre o tema? Enfim, são questionamentos importantes que não têm como ser respondidos com o texto apresentado, que contém falhas de coerência e de ligação entre as partes. Ao mesmo tempo, há de se registrar que não se trata de períodos aleatórios, porque o último parágrafo resgata o início do texto, preservando a caracterização de que a conclusão retoma a introdução do texto.

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É provável que essa análise nos dê indícios de por que essa produção não atende de forma plena nossas expectativas em relação a um texto escrito. Deparamo-nos com dois problemas: i) inadequação do uso de sinais de pontuação, que não chega a trazer um ruído de compreensão, mas atesta as dificuldades do enunciador no uso das regras de pontuação; ii) falta de contextualização, para que o leitor possa entender o discurso em que o texto está inserido. Podemos inferir determinados contextos, mas jamais teremos a certeza desses contextos porque o texto não tem autonomia, não oferece pistas para o leitor sobre esses contextos. Esse segundo problema está intrinsecamente relacionado às características peculiares das modalidades oral e escrita da língua. A fala é menos contextualizada do que a escrita porque os enunciadores, na oralidade, estão próximos e, por isso, processam de imediato as situações comunicativas, fazendo e refazendo os entendimentos. Em contrapartida, a escrita necessita de mais contextualização, dado o distanciamento entre enunciadores, o que nos exige, como produtores de texto, um esforço de retomada de elementos tanto em nível textual quanto em nível contextual. Isso precisa ser aprendido, é uma habilidade importantíssima para o pleno domínio da escrita. Por isso, dizemos que apenas o domínio da gramática, da ortografia não nos garante o domínio pleno da língua. Ao que parece, nosso autor assistiu a um filme, a uma exposição oral, leu algum texto e sua tarefa de escrita parece tentar resolver uma situação de cunho científico. Por isso, provavelmente, “entramos num trem em movimento” na leitura desse texto, em que não temos conhecimento da rota inicial realizada por esse trem. Do ponto de vista da análise linguística, o uso do artigo definido nas três primeiras linhas, incluindo o título, reforça a ideia desse trem em movimento, pois o artigo definido marca informações dadas, conhecidas. O exposto até aqui nos mostra que a consciência pragmática é fundamental para ter pleno domínio da escrita, a despeito, evidentemente, do domínio ortográfico e do domínio sintático. Ratifica-se que o autor do texto analisado tem pleno domínio da organização sintática. Logo, o nosso conhecimento de escrita extrapola as questões gramaticais, levando-nos a afirmar que a consciência pragmática, de uso da língua, precisa, efetivamente, ser ensinada na escola quando se pensa a escrita.

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Nesse sentido, a escrita não é apenas o texto que eu escrevo, mas o texto que leio. Por isso, o desenvolvimento de habilidades de leitura é importante para o desenvolvimento da capacidade de escrita. Mas, de fato, o estudante precisa ter a consciência dessas diferentes possibilidades de uso. Essa é a diferença entre o texto produzido pelo estudante e os três textos analisados anteriormente. Pode-se afirmar, com total certeza, que o domínio pleno da escrita é um processo bem mais longo do que o processo de aquisição da fala e requer o desenvolvimento de diferentes competências que, juntas, formam a competência discursiva em uma determinada língua. Assim:

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Passemos, por fim, à análise do último texto.

Internação ou Abandono?

O uso de drogas e de substâncias químicas causa grandes problemas de saúde, além da possibilidade de gerarem uma dependência química no usuário. Essas pessoas podem chegar a cometer crimes para sustentar seus vícios, causando um aumento na criminalidade nas ruas. Vários tentam criar meios de remover esses dependentes químicos das ruas, com o intuito de combater seus vícios e reduzir o mínimo os níveis de criminalidade que é alimentada pela vontade incontrolável dos viciados em conseguir suas drogas. Um modo de tratar essas pessoas é a internação em centros de reabilitação. É uma alternativa que removeria essas pessoas da rua, além de combater seus vícios. Alguns podem achar essa ideia ineficiente, porque pode não ser muito produtivo levar alguém para a reabilitação contra sua vontade. Assim a pessoa ficaria desmotivada e tentaria sair daquele lugar a qualquer custo, não cooperando com seu tratamento. Porém, abandonar essas pessoas na rua pode tanto diminuir a segurança nas ruas, quanto aumentar o número de viciados, já que ele pode entrar em contato com outras pessoas, levando-as para o mundo das drogas. A internação é a melhor saída, porque você retira estas pessoas da rua, concedendo-as uma nova chance de vida. A criminalidade é reduzida e as pessoas se sentem menos ameaçadas ao circular por locais antes infestados de viciados, que fariam de tudo para conseguir mais drogas. Internação ou abandono? é um texto argumentativo produzido por aluno do 9º ano de escolaridade cujo objetivo é mostrar uma posição clara sobre tema bastante polêmico acerca da internação compulsória dos dependentes de drogas. Não vamos propor uma análise profunda do texto, mas é inegável o pleno domínio de escrita que o autor do texto demonstra. Há quatro parágrafos bem desenvolvidos, atendendo às exigências de composição de um texto argumentativo, com tese e argumentos que sustentam a tese. O texto está dividido em introdução, desenvolvimento e conclusão, mantendo-se um fio condutor tópico – dependentes químicos e sua remoção –, o que

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garante a coesão textual. Podemos discordar da tese defendida, mas o texto tem autonomia discursiva para seu entendimento. Não sabemos se esse tema é fruto de uma discussão em sala de aula, se foi lido algum texto sobre o tema. Sua organização, entretanto, reflete o projeto de dizer do enunciador. Da mesma forma que o texto anterior, o enunciador domina a organização sintática das frases, além de selecionar e de combinar os sintagmas de acordo com suas necessidades, as unidades lexicais, o que imprime ao texto um caráter coeso. Outro ponto favorável ao texto em análise é o domínio da organização em parágrafos, bem como o domínio da norma culta-padrão da língua. Neste ponto, merece uma observação, no último parágrafo, o uso do verbo conceder (“concedendo-as uma nova chance de vida”). O verbo conceder é transitivo indireto. Sua regência na construção – concedendo a alguém uma nova chance de vida – exige o pronome LHE e não o pronome A (sempre funcionando como objeto direto). Os dois exemplos de textos dos estudantes nos levam a afirmar que há, nos anos finais da escolaridade básica, um maior domínio da prescrição gramatical. Entretanto, esse domínio não é suficiente para se escrever bem, para a produção de um texto com autonomia, ou seja, de um texto que seja entendido pelo leitor. O desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita conta com o conhecimento do sistema da língua composto por uma gramática. Para se entender o que se lê e o que se escreve, além desse conhecimento, precisa-se ter, de forma clara, a quem se escreve, por que se escreve, com que finalidade escrevo, a fim de ser capaz de situar o leitor no “meu querer dizer”. Esses conhecimentos precisam ser ensinados na escolaridade básica como parte intrínseca do desenvolvimento de habilidades do falante (produtor de sentidos) de uma língua. Vimos defendendo que o problema sério que a sociedade brasileira enfrenta em relação ao ensino de leitura/escrita não se restringe ao método escolhido pelo docente. Trata-se de um problema bem mais complexo, pois:

a) Em primeiro lugar, trata-se de um problema voltado para o conceito de leitura/escrita adotado, que também perpassa pelo conceito de língua e de linguagem. É vigente, infelizmente, um

conceito voltado para a decodificação.

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b) Em seguida, está fortemente sustentado no como se avalia o processo de leitura/escrita, que

perpassa pela indagação de quem está no centro desse processo: o estudante ou o professor?

c) Em terceiro lugar, deve-se questionar a função da leitura/escrita no projeto pedagógico da

escola. Está sob a responsabilidade de quem? Ensina-se a ler/a escrever para quê?

d) Em quarto lugar, ainda se coloca como um objetivo a parte o ensino da gramática, ignorando-se a estreita relação da análise linguística como ferramenta para a construção da língua, tanto em

sua modalidade oral quanto na modalidade escrita – portanto, indissociáveis.

e) Por fim, qual (quais) a(s) metodologia(s) adotada(s) para o desafio em tela? Esta metodologia não pode e não deve aparecer sozinha, mas deve estar coadunada com os conceitos e os

teóricos que devem embasar a prática pedagógica.

Espero, por fim, que estas reflexões efetivamente contribuam para um novo olhar para o que se faz em sala de aula e que propiciem um entendimento mais aprofundado para o que se ensina em Língua Portuguesa e o como se ensina a leitura, a escrita e a análise linguística. Referências Bibliográficas

KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria & prática. 11. ed. Campinas, SP: Pontes, 1993. 102 p. MARCUSCHI. Luiz Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In. DIONÍSIO, Angela P.; MACHADO, Anna R.; BEZERRA, Mª Auxiliadora (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2010. 246 p. SME. Orientações Curriculares de Língua Portuguesa. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2009. SME. Leitura, escrita e análise linguística: alguns pressupostos teórico-metodológicos. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2013. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Penso, 1998. 194 p. ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro. Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Editora Ática, 1988. 115 p.