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Tecnologia e cultura no projeto da habitação latino-americana: um olhar sobre o conjunto Padre Manoel da Nóbrega Yasmin Arielly Cavalcante¹, Raquel Regina Martini Paula Barros² ¹Arquiteta e Urbanista, Faculdade de Engenharia, Arquitetura e Urbanismo-FEAU, Universidade Metodista de Piracicaba-UNIMEP, Santa Bárbara d’Oeste, Brasil, e-mail: [email protected] ²Arquiteta e Urbanista, Professora Dr.ª, FEAU, UNIMEP, e-mail: [email protected] Palavras-chave: América Latina, Habitação coletiva de interesse social, Cultura, Tecnologia, Arquitetura, Cidade. RESUMO A questão da moradia nas cidades latino-americanas está relacionada a um processo de urbanização acelerado, com forte imigração rural – urbano, poucos recursos, espacialização da desigualdade socioeconômica com grande parcela de sua população marginalizada e excluída, acentuando conflitos. Adotando-se a linha de pensamento de que a América Latina se desenvolveu sob a perspectiva eurocêntrica, que se refletiria em suas produções de modo distorcido principalmente no que se refere ao provimento da habitação para a população de baixa renda, o cenário que predomina no território latino-americano é muito precário e complexo, ainda nos dias de hoje. Grande parte dos projetos habitacionais promovidos por órgãos administrativos públicos são caracterizados por uma insensibilidade e simplismo que geram espaços indistintos, de baixa qualidade construtiva e estética, despreocupados com a cultura de seus moradores e com a efetiva apropriação de suas áreas, além de não propiciar a possibilidade de adaptabilidade. Tal cenário predomina no Brasil há décadas. Todavia, sobretudo em um recorte temporal local em fins dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, é possível identificar alguns indícios de reação a tal conjuntura na produção habitacional de promoção pública no país. Nesse sentido, o trabalho destaca o conjunto Padre Manoel da Nóbrega em Campinas, SP, de autoria de Joaquim Guedes, que é analisado por meio da verificação de seu grau de afinidade com critérios propostos a partir de projeto latino- americano emblemático, o PREVI em Lima, no Peru, considerado exemplar construído e vivo de uma trajetória entre tecnologia e cultura que caracteriza período de inflexão e o esboço de transformações, na arquitetura e na cidade latino-americanas, que acontecem depois do Movimento Moderno. O estudo contribui para o projeto da habitação coletiva contemporânea no sentido de resgatar a importância do (re)conhecimento dos valores da cultura na moradia considerando a atual conjuntura de déficit habitacional que continua a suscitar, nos dias de hoje, soluções simplistas de enfoque quantitativo viabilizado por avanços em tecnologia. 1. Introdução A acelerada urbanização das cidades latino-americanas que ocorreu sem planejamento com a forte imigração rural – urbano desenvolveu territórios desiguais e fez com que a questão da habitação surgisse como um de seus principais problemas. A demanda por habitação era altíssima, enquanto os governos produziam moradias, que em sua maioria eram no formato de megablocos modernos reproduzidos em diferentes localidades e que não atendiam às reais necessidades de seus moradores, do outro lado a população excluída desses processos, solucionavam seus problemas através de técnicas informais de autoconstrução que eram realizadas nas periferias das cidades. Em meados de 1970 esses assentamentos informais passaram a ser analisados e foram vistos como parte do problema, pois acentuavam a segregação social e a precariedade, mas também foram considerados como possíveis núcleos transformadores da arquitetura, pois apresentavam maneiras rápidas, flexíveis, com maior liberdade experimental e adaptável a diferentes contextos sociais e territoriais, possibilidades participativas de seus usuários nos espaços públicos e privados, buscando atender objetivos

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Tecnologia e cultura no projeto da habitação latino-americana: um olhar sobre o conjunto Padre Manoel da Nóbrega Yasmin Arielly Cavalcante¹, Raquel Regina Martini Paula Barros² ¹Arquiteta e Urbanista, Faculdade de Engenharia, Arquitetura e Urbanismo-FEAU, Universidade Metodista de Piracicaba-UNIMEP, Santa Bárbara d’Oeste, Brasil, e-mail: [email protected] ²Arquiteta e Urbanista, Professora Dr.ª, FEAU, UNIMEP, e-mail: [email protected] Palavras-chave: América Latina, Habitação coletiva de interesse social, Cultura, Tecnologia, Arquitetura, Cidade.

RESUMO

A questão da moradia nas cidades latino-americanas está relacionada a um processo de urbanização acelerado, com forte imigração rural – urbano, poucos recursos, espacialização da desigualdade socioeconômica com grande parcela de sua população marginalizada e excluída, acentuando conflitos. Adotando-se a linha de pensamento de que a América Latina se desenvolveu sob a perspectiva eurocêntrica, que se refletiria em suas produções de modo distorcido principalmente no que se refere ao provimento da habitação para a população de baixa renda, o cenário que predomina no território latino-americano é muito precário e complexo, ainda nos dias de hoje. Grande parte dos projetos habitacionais promovidos por órgãos administrativos públicos são caracterizados por uma insensibilidade e simplismo que geram espaços indistintos, de baixa qualidade construtiva e estética, despreocupados com a cultura de seus moradores e com a efetiva apropriação de suas áreas, além de não propiciar a possibilidade de adaptabilidade. Tal cenário predomina no Brasil há décadas. Todavia, sobretudo em um recorte temporal local em fins dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, é possível identificar alguns indícios de reação a tal conjuntura na produção habitacional de promoção pública no país. Nesse sentido, o trabalho destaca o conjunto Padre Manoel da Nóbrega em Campinas, SP, de autoria de Joaquim Guedes, que é analisado por meio da verificação de seu grau de afinidade com critérios propostos a partir de projeto latino-americano emblemático, o PREVI em Lima, no Peru, considerado exemplar construído e vivo de uma trajetória entre tecnologia e cultura que caracteriza período de inflexão e o esboço de transformações, na arquitetura e na cidade latino-americanas, que acontecem depois do Movimento Moderno. O estudo contribui para o projeto da habitação coletiva contemporânea no sentido de resgatar a importância do (re)conhecimento dos valores da cultura na moradia considerando a atual conjuntura de déficit habitacional que continua a suscitar, nos dias de hoje, soluções simplistas de enfoque quantitativo viabilizado por avanços em tecnologia.

1. Introdução

A acelerada urbanização das cidades latino-americanas que ocorreu sem planejamento com a forte imigração rural – urbano desenvolveu territórios desiguais e fez com que a questão da habitação surgisse como um de seus principais problemas. A demanda por habitação era altíssima, enquanto os governos produziam moradias, que em sua maioria eram no formato de megablocos modernos reproduzidos em diferentes localidades e que não atendiam às reais necessidades de seus moradores, do outro lado a população excluída desses processos, solucionavam seus problemas através de técnicas informais de autoconstrução que eram realizadas nas periferias das cidades. Em meados de 1970 esses assentamentos informais passaram a ser analisados e foram vistos como parte do problema, pois acentuavam a segregação social e a precariedade, mas também foram considerados como possíveis núcleos transformadores da arquitetura, pois apresentavam maneiras rápidas, flexíveis, com maior liberdade experimental e adaptável a diferentes contextos sociais e territoriais, possibilidades participativas de seus usuários nos espaços públicos e privados, buscando atender objetivos

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políticos e morais de serviço para todos (CASTRO; ARAVECCHIA-BOTAS, 2014; MONTANER, 2010; BALLENT, 2004).

A partir desse momento uma nova forma de consciência integrando aspectos culturais e um olhar mais crítico à arquitetura moderna produzida e à forma de urbanização da cidade acontece, e passa a considerar a existência da cidade latino-americana expressada por meio de uma construção cultural, conectando culturas próximas ou distantes entre si, apresentando características e influências distintas, independentes e únicas, em sua realidade e forma de crescimento (GORELIK, 2005). No Brasil, a complexidade da questão habitacional é amplamente reconhecida e requer um enfoque mais direto sobre as cidades e, sobretudo as metrópoles, onde processos desarticulados de ocupação aumentaram a desigualdade socioeconômica e associam-se a enormes desafios ambientais e humanos. A promoção pública da habitação coletiva de interesse social, via de regra, não tem considerado a realidade local e suas contextualizações históricas e comportamentais, utilizando fórmulas de projeto simplistas e com baixa qualidade construtiva e estética que desconsidera questões culturais e as demandas atuais e futuras de seus moradores, além de possuir um modelo repetitivo de implantação urbanística sem a efetiva apropriação de seus espaços (COMAS, 1986; BRUNA, 2010; CASTRO; ARAVECCHIA-BOTAS, 2014).

O presente estudo partiu do eixo de discussão proposto por Ballent (2004) – que relaciona tecnologia e cultura aplicada à habitação de baixo custo e elege o Proyecto Experimental de Vivienda-PREVI como exemplar que sintetiza importante transição – e almejou estabelecer paralelo entre os diferentes contextos do momento histórico dos anos de 1960 e 1970, tendo por estudo de caso um exemplar contemporâneo ao projeto peruano, o conjunto Padre Manoel da Nóbrega. O PREVI é destacado por muitos autores como sendo símbolo da história política e da arquitetura de habitação em massa do segundo pós-guerra, por seus avanços tecnológicos, projetuais e reflexões realizadas (BARROS; PINA, 2012; LUCAS et al., 2012; GARCÍA-HUIDOBRO et al., 2008; BALLENT, 2004). Os critérios para análise do objeto de estudo local foram elaborados em sintonia com preceitos já identificados no PREVI que, em maior ou menor grau, questionam preceitos modernistas (CASTRO; ARAVECCHIA-BOTAS, 2014; BARROS; PINA, 2012; LUCAS et al., 2012; MONTANER, 2010; BALLENT, 2004).

Em sintonia com os objetivos do grupo da FAUUSP Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina, coordenado pelas Prof.ªs Nilce Aravecchia e Ana Castro, a pesquisa aqui apresentada buscou agregar contribuição para a formação de uma compreensão mais geral e coletiva, investigando os canais de intercâmbio, as redes de sociabilidade, contatos e afinidades entre os arquitetos e urbanistas latino-americanos. Considerando-se o alto déficit habitacional dos grandes centros urbanos da América Latina e a necessária qualidade do projeto e de sua inserção urbana, torna-se relevante investigar e refletir sobre a sua questão habitacional, tanto do ponto de vista formal e projetual quanto do ponto de vista sociocultural, abordando as implicações coletivas do projetar. 2. Questão habitacional na América Latina: Lima e Campinas, anos de 1960 e 1970

Durante o período colonial na América Latina, a Europa consolidou-se como potência e centralidade mundial por meio de suas conquistas e dominações às terras e povos de outros continentes. Seu controle sobre o continente latino-americano atravessou todo tipo de expressividade dos povos dominados, desde o domínio sobre identidades geoculturais e históricas, até o controle da subjetividade, da cultura e de toda forma de conhecimento (QUIJANO, 2005). Novas ideologias foram impostas e empregadas a respeito da América Latina, a caracterizando como um novo continente, “tábula rasa”, um laboratório de experimentações sociais e políticas, reprodutora de culturas estrangeiras e que segundo o crítico Mário Pedrosa seria “condenado ao moderno” (GORELIK, 2005). Ignorou-se por muito tempo que a América Latina é um território completamente heterogêneo e diversificado que

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não consegue ser encaixado em um ideal de representação, pois seu surgimento é por meio de uma construção cultural, inventada pelo ser humano, que a transforma em uma colcha de retalhos de diversas culturas.

Na América Latina a arquitetura social começou a ser produzida a partir do final da década de 1930 e início de 1940, como resultado da demanda habitacional que surgia com a explosão urbana populacional nas grandes metrópoles. O morador diante de sua necessidade e sem auxílio público passa a construir sua própria moradia de forma improvisada e precária. Surgem assim os assentamentos informais e precários dos países latino-americanos, as villas miséria, barriadas e favelas, com suas famílias possuindo renda mínima, alta densidade populacional e ocupando extensas áreas no território.

Nesses territórios utilizava-se a mão de obra do próprio morador na construção das habitações, gastando mais energia física e obtendo precariedade construtiva, com mais riscos vindos da falta de acompanhamento técnico na obra, mas, em paralelo, haviam ganhos relacionados a liberdade de criação de espaços habitáveis que os grandes conjuntos habitacionais não proporcionavam (CORVALAN et al., 2009).

Barriadas foi o nome dado aos assentamentos informais do Peru, que alcançaram proporções gigantescas principalmente na capital Lima. No Brasil houve um expresso aumento de favelas a partir da década de 1960 nas principais metrópoles do país.

Diante deste cenário em 1950 é percebido por estudiosos e teóricos da América Latina a necessidade de buscar um campo próprio de ciências sociais com possibilidade de diversas experimentações modernizadoras e de discussões sobre temas urbanos, regionais e latino-americanos com diversas instituições locais e internacionais, avançando sobre a antropologia, o relativismo cultural, expandindo o diálogo com a arquitetura, as políticas de moradia social e de urbanização como propostas desenvolvimentistas.

Muitas foram as produções teóricas e as propostas de solução realizadas para o problema habitacional, cruzando ideários da vanguarda arquitetônica do século XX com novas discussões políticas e sociológicas encontradas na América Latina (GORELIK, 2005). Um dos principais nomes que foram referência deste período na AL foi o arquiteto John Turner que trabalhou com as barriadas e desenvolveu questionamentos sobre as políticas de moradia popular do país e criticou a inviabilidade técnica dos conjuntos habitacionais produzidos como forma de erradicar as áreas urbanas consolidadas mais pobres, posteriormente, influenciado por essas discussões fez parte da organização do exemplar PREVI em Lima. Iniciativa que alcançou maiores reflexões e resultados reais, tendo início no ano 1966, como crítica e intermédio do megabloco com as barriadas, trazendo novas soluções e formas de fazer habitações com qualidade (GORELIK, 2005; CHAVEZ; VILORIA; ZIPPERER, 2009; CORVALAN et al., 2009).

No Brasil órgãos públicos surgiram com o intuito de prover habitações para a população de baixa renda no país, dentre eles destacam-se IAPs, FCP, DHP, BNH e COHAB. A arquitetura que era produzida por esses órgãos do governo caracterizava-se pela monotonia e indistinção de seus edifícios verticalizados, seguindo padrões mínimos que não respondiam aos aspectos sociais e que eram repetidos à exaustão em uma produção massiva que se expandiu em direção à periferia das cidades. Produção que se agravava pela falta de infraestrutura e equipamentos de serviços, sem uma implantação que dialogasse com seu entorno, com grandes movimentações de terra e depredação ambiental (SANVITTO, 2011; MEDRANO; RECAMÁN, 2014).

A adequação da arquitetura a essa nova realidade foi progressiva, destacando-se os anos de 1970 como mais ricos e produtivos na busca de novas soluções construtivas, na racionalização da construção por meio da pré-fabricação e industrialização, com a investigação e desenvolvimento de soluções de desenho e tecnologia nova ou existente. Por meio da produção industrial de elementos modulares em série, com forma e tamanho de fácil

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manuseio, aumentava-se a eficácia dos recursos. A participação dos usuários na construção acarretava habitações de baixo custo (BALLENT, 2004; KOURY, 2014) e resultava em novas alternativas de moradias mais flexíveis e baratas, construídas em menor escala, apresentando maior qualidade tanto no projeto como no resultado final de sua execução.

Neste período foi produzido em Campinas um conjunto habitacional de autoria de Joaquim e Liliana Guedes. O projeto se destaca por sua qualidade projetual em meio a limitações advindas de restrições orçamentárias, de forma a atender as necessidades de seus moradores em áreas mínimas, em um projeto de escala mais reduzida (SANVITTO, 2011; BARON, 1999). Entre outros projetos analisados, Anelli (2011) considera que este projeto apresenta indícios da progressiva assimilação de paradigmas urbanísticos disseminados pelo Team X em contraposição aos da Carta de Atenas.

3. Proyecto Experimental de Vivienda-PREVI

Lima tinha grande importância econômica nacional, mas sofria uma série de problemas habitacionais que foram se aprofundando desde os anos 1930 com a migração da população rural a cidade. Surgiram, então, as barriadas, assentamentos informais e espontâneos para moradias improvisadas, construídos de modo rápido e flexível, produzidos por seus moradores, com ordenação na escala urbana, através de pensamento racional que direcionava os arruamentos e a divisão dos lotes, tornando-se alvo de muitos estudos e observações nacionais e internacionais sobre aspectos de marginalidade e de morfologia (BALLENT, 2004; CASTRO, ARAVECCHIA-BOTAS, 2014; MADRAZO, et al., 2009).

John Turner surge como um dos primeiros teóricos a escrever sobre autoconstrução, a partir de seus estudos sobre as barriadas, o que fortaleceu suas ideias para o pensamento de uma arquitetura sem arquitetos. Sua experiência e relações internacionais permitiram que se tornasse um dos organizadores do PREVI-Proyecto Experimental de Vivienda, em Lima.

PREVI trata-se de um concurso internacional realizado em Lima, durante o governo do presidente e também arquiteto Fernando Belaúnde Terry, em 1966, financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Tinha por objetivo encontrar conceitos inovadores e novas técnicas, que renovassem a política pública para a habitação no país. Foi dividido em três etapas sendo a etapa PP1 a primeira e única realmente executada, que consistia na construção de unidades habitacionais novas com desenho urbano, equipamentos e serviços.

O arquiteto inglês Peter Land foi convidado a coordenar a PP1, composta por 13 arquitetos internacionais e 13 arquitetos nacionais, todos reunidos para pensar a cidade latino-americana com enfoque na produção habitacional para famílias vindas das barriadas. Foram convidados arquitetos renomados na discussão internacional do momento que proporcionou ao concurso grande repercussão (BALLENT, 2004).

Em 1974 foram construídas 500 unidades para o PP1, das 26 propostas apresentadas, tornando o objetivo do concurso o mais amplo o possível. As moradias deveriam possuir área de 60m² a 120m²; era necessário que existisse a possibilidade de crescimento vertical nas unidades; os estacionamentos não poderiam ser individuais, sendo necessário que se pensasse em bolsões próximos às unidades para estacionar os veículos; a prioridade seria dada ao pedestre, com a quantidade de ruas limitada ao seu mínimo; 4 tipos de configurações familiares a serem resolvidas na tipologia; no projeto das unidades deveria ser previsto diferentes faixas de custo; o planejamento urbano deveria relacionar-se com serviços comunitários, assentamentos próximos e com a infraestrutura existente (BARROS; PINA, 2012; MADRAZO, et al., 2009).

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Dentre as propostas destacaram-se os resultados construtivos divididos em três grupos, o primeiro seria das unidades que seriam construídas por meio da industrialização pesada, o segundo grupo da alvenaria racionalizada, e o terceiro que constrói com processos racionalizados, no emprego de peças leves feitas na própria obra (LUCAS et al., 2012).

Conforme Barros e Pina (2012) esses critérios considerados mais importantes também tinham interessantes traços e composições, destacados por sua implantação que agrega habitações assobradadas em fita (Figura 1). A circulação vertical é presente em todas as habitações e uma parcela considerável dos projetos integra a circulação horizontal à área social.

Figura 1: Implantação do PP1. Vista da Alameda Central do PREVI.

(a) (b) Fonte: (a) Barros (2015, p.9 ); (b) Mateo (s/d).

O PP1 priorizou o crescimento contínuo ao longo do tempo e a racionalização construtiva, realidades comuns a América Latina. Muitas propostas permitiam processos participativos durante o projeto e no pós-execução, o que gerava valiosas possibilidades experimentais e capacidade adaptativa interna das habitações, com mudança de usos e expansão de áreas. Deu destaque à montagem cultural sobrepondo e mesclando o centro com a periferia, o conhecimento acadêmico e a cultura popular, entre a tecnologia aprimorada e os processos artesanais, superando barreiras orçamentárias e conseguindo atender as necessidades de seus moradores. Enfatizou às implicações coletivas que são desafios constantes, com os laços sociais sendo reforçados na comunidade e com a vizinhança ganha significado. Com seu desenho e construção desenvolveu novas ou existentes soluções, otimizando recursos em eficiência e economia (LUCAS et al., 2012).

Também foram explorados métodos para o uso de habitações compactas, com baixa altura e com alta densidade populacional, contrariando o que era produzido pela arquitetura moderna do período (BARROS e PINA, 2012; MADRAZO, et al., 2009). Foi o momento de ultrapassar antigas ideologias do arquiteto como organizador do ideal de espaço para as moradias das classes operárias e marginalizadas da cidade, para o exemplo de arquiteto que observa e aprende com as estratégias utilizadas por essas pessoas e que as absorve em seus processos projetuais e criativos. Anelli (2011, apud CASTRO; ARAVECCHIA-BOTAS, 2014) acredita que muitas das propostas apresentadas neste projeto resgatam indícios da progressiva assimilação de paradigmas urbanísticos disseminados pelo Team X em contraposição aos da Carta de Atenas.

4. Conjunto Habitacional Padre Manoel da Nóbrega

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Joaquim Guedes buscava em suas criações alcançar respostas às necessidades das pessoas e compreensão de seus valores, suas identidades, transformações, tensões, adaptações, estilos de vida e comportamentos que influenciassem no desenvolvimento humano. Joaquim foi aluno de Vilanova Artigas e através desta aproximação teve conhecimento e foi influenciado por suas ideologias e ensinos. Sempre foi bem próximo ao canteiro de obras, o que o motivou na escolha do racionalismo construtivo, o adaptando e o explorando conforme às necessidades das pessoas e do tempo. Tinha intenção de simplificar a realização da obra, por isso suas escolhas utilizam soluções ortogonais e o uso de linhas retas (CAMARGO, 2000). Priorizando sempre a questão da ventilação, iluminação, insolação e conforto ambiental em seus projetos. Foram suas características desenvolvidas como arquiteto e urbanista que o levaram a ser escolhido pela COHAB de Campinas a desenvolver o projeto de um novo conjunto habitacional no município.

Campinas também passou por intenso fluxo migratório de pessoas vindas de outras localidades e expulsas do campo, atraídas pela oferta de empregos nas indústrias. A questão habitacional agravou-se no município, com o surgimento de muitas favelas e cortiços, intensificando a necessidade de produção de habitações a população de mais baixa renda. É criada então a COHAB-CP em 1965, que passa a adquirir grandes glebas de terra em áreas não urbanizadas e periféricas, sem infraestrutura para a construção de conjuntos habitacionais. Anelli (2011) aponta que esses conjuntos começam a ser influenciados pelo urbanismo progressista, separando e distinguindo funções urbanas, conforme já descrito na Carta de Atenas: habitar, trabalhar, divertir-se e circular. Então, a COHAB de Campinas cria um amplo plano para a construção de um bairro na periferia urbana do município com o nome de “Conjunto Padre Manoel de Nóbrega”, constituído por 2.024 unidades, em que 1096 são casas e 928 apartamentos, além de equipamentos comunitários, o primeiro bairro da companhia a mesclar esses tipos de construções e serviços (CONSTANTINO, 1997).

Junto a este bairro foi proposto e implantado também um conjunto de edifícios de autoria de Joaquim Guedes e Liliana Guedes, levando o mesmo nome do bairro, chamado Conjunto Habitacional Padre Manoel da Nóbrega, projetado entre 1973 e 1974, com ambos os arquitetos vinculados à arquitetura moderna e com possíveis influências da tendência Brutalista, que caracterizava a Arquitetura Paulista do período de seu desenvolvimento. Sua destinação abrangia famílias de baixa renda, que não optaram por mutirões de autoconstrução, e eram egressas de favelas com renda incerta e atendidas pelas companhias estaduais de habitação (CONSTANTINO, 1997).

Segundo Guedes (1974), houve muitas limitações ao projeto desde o orçamento até o prazo para a realização da obra, de apenas três meses, a restrição das áreas mínimas para a organização dos espaços, e a própria construção limitada apenas a seus elementos essenciais estruturantes. Foram utilizados métodos elaborados estruturalmente flexíveis até então inéditos em seus trabalhos.

O conjunto está situado a cerca de 6,5km do centro de Campinas. No início da ocupação isso foi um problema tendo em vista a dificuldade de acesso ao local e de locomoção de muitas famílias precisando arcar com um custo adicional referente ao transporte (SANVITTO, 2011). A área destinada a habitação coletiva ocupa 6ha e é composta por quatro quadras com forma planimétrica irregular, situadas na cabeceira de outros quarteirões retangulares que são ocupados por habitações unifamiliares. A implantação contrasta com o entorno de quarteirões menores que foram parcelados de forma homogênea. O número de barras de edifícios modulares em cada quarteirão varia conforme a área do quarteirão a ser ocupado (Figura 2).

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Figura 2: Vista aérea localizando o conjunto em relação ao centro da cidade. Vista aérea das quatro quadras do Conjunto.

Fonte: Adaptado de Google Earth (2016).

O condomínio Sírius (Quadra A41) e Antares (Quadra A55) foram entregues em 1977 junto com a segunda fase do bairro, Sirius, o maior de todos com 17 blocos e 272 unidades de apartamentos, e o condomínio Antares com 11 blocos com 176 unidades de apartamentos. Já o condomínio Centaurus (Quadras A2 e A6), composto pelas outras duas quadras menores, foi entregue junto com a terceira fase, em 1979, possuindo uma quadra com 10 blocos e 160 unidades de apartamentos e outra quadra possuindo 4 blocos com 64 apartamentos (CONSTANTINO, 1997).

O projeto de 672 apartamentos e com 42 edifícios no total, teve como concepção uma fita simples implantada no terreno acidentado sobre platôs buscando a menor movimentação de terra possível, com 4 pavimentos e 4 apartamentos por andar, número que reduziria as circulações por andar, alinhando-se junto à circulação horizontal em uma galeria aberta atendido por uma caixa de escada situada no extremo de cada bloco. O comprimento de cada barra individual é de aproximadamente 26,00 metros enquanto sua dimensão transversal, somando-se galeria aberta e apartamento, com 7,50 metros (SABBAG, 1985).

A implantação (Figura 3a) foi definida sobretudo em função da orientação solar possível a cada bloco, com três inflexões de 20 a 35 graus relacionados ao eixo norte-sul, evitando a monotonia na implantação e fazendo com que suas faces não se localizassem paralelas trazendo privacidade visual às aberturas dos apartamentos. Essa acomodação permitiu que houvesse menor movimentação de terra e uma configuração de diferentes espaços vazios sem previsão de uso. Trouxe também, flexibilidade quanto à escala do prédio na possibilidade de junção e otimização de até duas barras unidas por uma pequena inflexão e junta de dilatação (Figura 3b).

Figura 3: Implantação dos blocos do conjunto. Detalhe da junta de dilatação em um dos blocos.

(a) b

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Fonte: (a) Elaboração própria (2017); (b)Arquivo pessoal (2016).

Por fim todos os blocos possuem vistas valorizadas, da sala e do quarto principal, que não estão direcionadas sobre seus vizinhos, e seus espaços de entradas ou serviços chegam até pátios comuns externos com dimensões ordenadas. A disposição da implantação dos edifícios foi fator condicionante para o projeto interno dos apartamentos. Segundo o projeto as áreas externas em meio aos blocos e aos acessos entre a rua e os edifícios serviriam como área de lazer e permanência dos moradores, sem definição de uso, não existindo espaço no interior para estacionamento (SABBAG, 1985; GUEDES, 1974; PINI, 1996; ANELLI, 2011).

Os edifícios recebem insolação e iluminação por duas faces opostas, com possibilidade de fenestração da luz, pois a extremidade das barras conserva-se como empenas cegas, técnica utilizada amplamente pelo Brutalismo Paulista. A circulação de acesso seria realizada em uma face, através de um corredor externo de 1,50m, que liga os edifícios as áreas comuns abertas e que serviria de proteção ao sol.

Segundo Sanvitto (2001) cada apartamento possui aproximadamente 6,50 metros de largura por 6,00 metros de profundidade. Sua composição básica é composta por cinco ambientes, com diferentes arranjos permitindo sua flexibilidade interna referente às aberturas, portas e paredes. As disposições oferecidas dos cômodos possibilitariam de forma especializada até dois quartos (fixos ou opcionais), e uma sala polivalente, podendo esta ser subdividida para abrigar mais um dormitório se assim desejassem, mais cozinha e banheiro. A planta do pavimento tipo (Figura 4) se repete nos blocos.

Figura 4: Planta do pavimento-tipo.

Fonte: Sanvitto (2011, p.7).

Segundo Guedes (1974), a lavanderia foi instalada na cobertura dos blocos porque no interior do apartamento não haveria dimensões satisfatórias, principalmente para a secagem de roupas, e sua presença “perturbaria a planta”. As propostas dos sistemas construtivos eram convencionais, com componentes de concreto armado e os planos verticais em tijolos furados, revestidos por argamassa caiada de branco, e os planos horizontais em lajes nervuradas pré-fabricadas, e esquadrias de madeira, escolhidos como resposta ao rigor econômico imposto ao projeto. A cobertura e os apartamentos seriam revestidos com lajes pré-fabricadas. Escadas e caixas d’água eram em concreto armado. Marquises seriam de laje pré-fabricada e detalhes não estruturais seriam em concreto.

5. ANÁLISE DO OBJETO DE ESTUDO

Apresenta-se a seguir a análise do conjunto a partir do memorial descritivo (GUEDES, 1974) e das visitas a campo.

Porte do conjunto projetado e construído e sua inserção urbana:

O projeto do Padre Manoel da Nóbrega foi pensado para 700 unidades de apartamentos com porte pequeno-médio se comparado a demais produções do período na América Latina. Inserido a cerca de 6,5 km do centro de Campinas, seu diálogo com o entorno não é a mesmo em todas as quadras. As quadras do Conjunto Antares e Sirius possuem mais diálogo e

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abertura ao entorno e se encaixam melhor na malha urbana. Já o Conjunto Centaurus é mais excluído de seu entorno, talvez pela localização margeando um espaço de vazio urbano que o distancia das demais quadras do conjunto, e a forma como foi encaixado de costas aos quarteirões de moradias unifamiliares trazendo a sensação de uma negação ao espaço, se fechando dentro de si mesmo.

Resposta projetual às especificidades do lugar e seus moradores nas escalas da implantação e da habitação: Inicialmente o projeto limitava a apropriação dos moradores no sentido de exigir do morador adaptar-se a ele. As áreas dos apartamentos apesar de facilitarem a flexibilidade com a possibilidade inserção de paredes eram pequenos, algumas famílias não gostaram de ter a cozinha na entrada da moradia, a localização das lavanderias era de dificultoso acesso, haviam alguns acessos dentro do terreno que só aconteciam através da escada e as linhas de ônibus eram muito reduzidas dentro do bairro. Ao longo do tempo algumas dessas dificuldades foram sendo vencidas porque os moradores conseguiram adaptar o local conforme suas necessidades, e porque investimentos foram chegando ao bairro, como as linhas de ônibus que hoje ligam o local ao centro, facilitando o acesso ao bairro. Eventual participação dos moradores no projeto e na sua execução: Não foram encontrados registros de envolvimento dos futuros moradores no projeto ou na execução da obra. Materiais e processos construtivos previstos em projeto e efetivamente adotados:

O sistema construtivo utilizado foi bastante convencional e seguiu definições anteriores no projeto, com o uso do concreto armado, tijolos furados, lajes pré-fabricadas, detalhes em concreto nas fachadas. Os revestimentos previstos também foram os adotados, até o momento que iniciaram as primeiras reformas e modificações nas fachadas. Já as esquadrias foram especificadas em madeira no projeto, mas na prática apenas as portas e janelas dos corredores eram de madeira na entrega dos apartamentos. As esquadrias nas paredes opostas foram substituídas por janelas de ferro.

Tipologia de agregação das habitações e relação com processo construtivo e configuração dos espaços:

Blocos em lâminas com acessos externos por meio de corredores que ligam até 4 apartamentos. O projeto trouxe a independência de alguns blocos e a ligação de outros, por meio de juntas de dilatação. O bloco típico trás privacidade ao inserir a escada lateralmente. Os blocos agrupados também respeitam a questão de intimidade e privacidade por bloco e pavimento, inserindo uma mesma escada para uso entre dois blocos.

Antecedentes projetuais, conceitos e preceitos arquitetônicos e urbanísticos de influência no projeto:

Conforme o ideário da época observa-se muitas influências na obra de Guedes. A tipologia estrutural em concreto utilizada no suporte e nas estruturas que delimitam a forma dos edifícios referenciam diretamente as obras de Le Corbusier, limitando-se ao uso em apenas elementos essenciais (PINI, 1996). A Ville Contemporaine e algumas das propostas para o Rio de Janeiro feita pelo arquiteto francês, exploram a liberdade de acessos, encontros e fluxos nos corredores, retomados posteriormente por jovens arquitetos europeus do segundo pós-guerra, Georges Candilis, e o casal Alison e Peter Smithson, integrantes do Team X. É junto a esta retomada dos conceitos de Le Corbusier feita por Candilis e os Smithsons que Guedes teria maior identificação. Há afinidade do Conjunto com o ideário moderno reproduzindo as superquadras, na tentativa de segregar o pedestre e o automóvel, ocupando os térreos com habitações e permitindo o uso coletivo do solo, mas neste item existem controversas sobre sua real eficiência. Guedes (1974) não se referencia apenas na forma, mas nos próprios conceitos, quando cita em seu Memorial Descritivo o incômodo em estar contribuindo, mesmo

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que indiretamente, com sua técnica e seu projeto, no fortalecimento das condições sócio econômicas alarmantes e desiguais.

Uso e apropriação dos espaços do conjunto, eventuais mudanças e adaptações realizadas (visitas a campo):

Com o passar dos anos, aconteceram substituições e reformas nos apartamentos. Elementos construtivos em madeira, compondo esquadrias e portas, foram substituídos por esquadrias metálicas (Figura 5a). Vedações foram construídas sobre as galerias de acesso para aumentar a área útil dos apartamentos. O guarda-corpo das sacadas foi perfurado para a inserção de grades, ou foram transformados em paredes com janelas e portas (Figura 5b).

Figura 5: Vista das esquadrias metálicas. Vista de fachada com modificações.

Fonte: Arquivo pessoal (2016).

Observa-se apropriação (privatizações) dos espaços de circulação dos blocos e apartamentos, principalmente aqueles no piso térreo com a inserção de grades nos acessos, controlando a circulação. Muitos dos apartamentos nas extremidades dos blocos opostos ao lado da escada também apresentam o mesmo elemento, criando barreiras entre a ligação da moradia com o exterior, através da construção de muros, paredes e grades, o que demonstra o não alcance da privacidade no projeto original.

A ideia ousada de lavanderias na laje de cobertura não foi totalmente aceita. Os moradores do térreo não as utilizam, e para as substituir construíram sua própria lavanderia à frente da cozinha, avançando em seu recuo de circulação na frente da unidade (Figura 8). Os espaços livres que existiam entre os blocos ao longo do tempo foram sendo ocupados com garagens construídas pelos próprios moradores (Figura 9). Modificações voltadas para o lazer também ocorreram. Construção de uma quadra poliesportiva e quiosque (Sirius), e instalação de um playground improvisado para crianças (Centaurus).

Figura 6: Conjunto Antares: Vista do apartamento térreo. Vista das áreas livres com garagens.

Fonte: Arquivo pessoal (2017).

Na sequência, apresenta-se a análise do objeto de estudo local segundo os critérios propostos a partir do projeto exemplar.

Adoção de processos de envolvimento dos moradores no projeto e ou na construção;

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Não foram adotados processos envolvendo os moradores no projeto e/ou na construção, segundo a pesquisa bibliográfica e as visitas realizadas. Os moradores apenas tiveram contato com o conjunto após a finalização da obra. Inclusão de diversidade de pessoas e de programas de moradia; mescla de usos;

Não foram encontrados registros de que o arquiteto teve acesso ao perfil dos moradores cadastrados junto à COHAB-CP para obter maiores informações a respeito do perfil das famílias contempladas pelo programa habitacional. Portanto analisando o Memorial Descritivo do Projeto observa-se que houve o cuidado de proporcionar a adequação dos apartamentos a várias possíveis configurações familiares, desde o número de membros à possibilidade de aumentar ou diminuir o número de cômodos. Mescla de usos não há, por conta dos próprios termos da COHAB que não permite usos mistos nos blocos de apartamentos destinados exclusivamente a moradia, sendo verificado que em cada conjunto é feita vistoria rigorosa por parte dos porteiros de cada condomínio quanto a isto.

Viabilização de mudanças incrementais: flexibilidade espacial e ou possibilidades de expansão;

O Projeto trás consigo a possibilidade de flexibilização de ambientes (sala e quartos), através da inclusão ou não de paredes no ambiente interno, possibilitando a integração de até dois quartos no apartamento, caso opte-se por apenas um quarto, a sala ganha maiores dimensões. Estas alterações foram previstas no memorial descritivo e nas plantas, permitidos e aprovados pela COHAB, mas além dessas alterações existem outras, referentes a mudanças feitas por decisão do próprio morador nas fachadas dos edifícios e na ocupação de áreas coletivas, que tornam-se privadas, é o caso das mudanças de esquadrias; avanço das fachadas nos corredores, principalmente nos níveis térreos, aumentando suas áreas internas e acrescentando janelas, ou acrescentando lavanderias; colocação de toldos em portas e janelas; ocupação da laje de piso dos corredores de todos os pavimentos pelos apartamentos das extremidades opostas a escada aumentando suas áreas úteis e utilizando fechamentos em alvenaria, ou grades; troca dos revestimentos e acabamentos externos por outros materiais; construção de coberturas na extensão de toda lavanderia localizada na parte superior dos blocos; abertura dos guarda corpos das sacadas por grades ou vidros; uso dos espaços livres do terreno para construção de garagens individuais, onde cada morador construiu a sua, alterações que demonstram a riqueza de variações culturais e de necessidades apresentadas por cada família, trazendo em cada expressão de mudança a característica intrínseca do morador. Uso de materiais e processos de construção: materiais produzidos localmente e elementos modulares de fácil manuseio; Racionalização do canteiro com a pré-fabricação leve e a possibilidade do emprego da mão-de-obra dos próprios moradores, em substituição à pré-fabricação pesada; Não houve uso de materiais e processos de construção com materiais produzidos localmente e elementos modulares de fácil manuseio, nem racionalização do canteiro com a pré-fabricação leve e a possibilidade do emprego da mão-de-obra dos próprios moradores em substituição à pré-fabricação pesada, pois foi idealizado no projeto e realizado na construção o uso de um sistema construtivo bem convencional, composto por concreto armado e tijolos furados nos planos verticais. Configuração espacial: tipologias de agregação das habitações que conformem espaços de vivência variados, da proteção ao convívio, que estabeleçam relação com a rua e em articulação nas diferentes escalas da moradia na cidade.

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As habitações são agregadas em blocos em lâminas e foram implantadas no terreno de modo sinuoso, aparentemente em função do formato irregular dos terrenos e da topografia variada. O acesso às habitações dos pisos superiores se dá por caixa de escada vertical e circulação horizontal posicionada na lateral dos blocos, proporcionando a possibilidade de ventilação cruzada. A insolação é garantida pela orientação das lâminas no sentido aproximadamente norte-sul, com aberturas a leste-oeste. A forma como os blocos situam-se no terreno criou diversos espaços vazios de forma irregular e inconstante, criando sensação de abertura e de estreitamento conforme se adentra o espaços entre os edifícios, não havendo um horizonte longínquo à vista, deparando-se com a face de um dos edifícios nestes ângulos. A proximidade dos blocos com os espaços de circulação e pátios abertos trás maior sensação de segurança, mas esta sensação varia por quadra. Na quadra Centaurus foi observado que nas fachadas de fronte ao vazio urbano, há uma não circulação de moradores e pessoas por ali, causando um maior estranhamento e insegurança. Os blocos se fecham para si, com a parte dos corredores de circulação voltados para dentro do terreno, mas com as janelas dos quartos e salas voltados à rua. Depois da ocupação e com o passar do tempo muros e grades foram inseridos ao redor de cada quadra, o que tornou os espaços das quadras que anteriormente poderiam ter mais circulação e ligação com o entorno em espaços privados pertencentes a cada condomínio.

6. Considerações Finais

A partir do estudo de caso brasileiro, o presente estudo almejou obter indícios, na esfera local, de uma trajetória entre tecnologia e cultura no projeto da habitação coletiva de interesse social que caracteriza um período de inflexão e o esboço de transformações, na arquitetura e na cidade latino-americana, que acontecem depois do Movimento Moderno. Tal abordagem permitiu estabelecer paralelo entre os diferentes contextos do mesmo momento histórico e também identificar certo grau de autonomia em aspectos de sua concepção, sobretudo no que se refere: à configuração espacial de lâminas delgadas que conformam espaços de vivência variados e estabelecem relação com a rua, articulando as diferentes escalas da moradia na cidade; à concepção projetual que permite a inclusão de uma diversidade de pessoas sobretudo por meio da flexibilidade espacial interna; ao uso e apropriação dos espaços do conjunto ao longo dos anos, atestando a viabilização de mudanças incrementais e dotando esses espaços de identidade nas escalas de cada moradia e de seu conjunto. Com os dados obtidos foi possível caracterizar o Conjunto Padre Manoel da Nóbrega nas escalas da inserção urbana, da implantação do conjunto e da habitação em si. Foi também possível analisar o objeto de estudo por meio daqueles critérios propostos em sintonia com preceitos já identificados no PREVI, que em maior ou menor grau questionam preceitos modernistas.

O objeto de estudo local foi analisado por meio da verificação do grau de afinidade do projeto com os critérios propostos. Um maior grau de afinidade com um maior número de critérios significaria a existência de preceitos modernistas em transformação e de uma autonomia em aspectos de sua concepção. Ao verificar-se aquele grau de afinidade com os critérios propostos foi possível identificar, parcialmente, alguns preceitos modernistas em transformação. Foram identificados alguns avanços em desenho e experimentações de tipologias, a possibilidade de flexibilização de ambientes com inclusão de cômodos, além da própria implantação das lâminas no terreno, que se adequa ao formato irregular dos terrenos, à sua topografia e a busca pela melhor orientação solar. Todavia, o projeto ainda segue alguns dos preceitos modernistas, sobretudo no que se refere ao seu modo de execução. Supõe-se que isto seja de responsabilidade maior da organização financiadora da obra do que do próprio arquiteto, devido às restrições de custo e de tempo de execução.

No caso do PREVI, projeto balizador para análise do objeto de estudo local houve um maior suporte e apoio internacional até mesmo de órgão das Nações Unidas para o projeto, isso

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envolve investimentos, e conferiu uma maior liberdade de experimentação projetual. O Conjunto Padre Manoel da Nóbrega não contava com tantas reflexões diversas sobre um mesmo campo, visto que não foi objeto de concurso, e o tempo destinado ao projeto foi pequeno. Não há indícios de contatos mais próximos ou visitas do arquiteto ou de sua equipe ao local de implantação durante a elaboração do projeto ou de sua execução. Ao que tudo indica, não houve acompanhamento do arquiteto após a entrega do projeto à COHAB-CP, que se encarregou da execução e das alterações que fossem necessárias.

Tendo por referência a cultura local, a proposta não usual de lavanderia de uso coletivo localizada na cobertura dos blocos pode ser considerada uma tentativa de mudança por parte do próprio autor. Todavia, ao longo dos anos a ideia não foi apropriada pela maior parte dos moradores.

Com tantas influências culturais vindas de localidades variadas, o lugar onde elas se expressam mais visivelmente parece ser na moradia. Ali existe o encontro das influências materializadas na personalização de seu habitar. No Conjunto Padre Manoel da Nóbrega o espaço de cada morador parece único. Essa identidade é bastante visível após algumas décadas de ocupação, demonstrando que o projeto permitiu tal apropriação pelos usuários.

O estudo contribui para o projeto da habitação coletiva contemporânea no sentido de resgatar a importância do (re)conhecimento dos valores da cultura na moradia considerando a atual conjuntura de déficit habitacional que continua a suscitar, nos dias de hoje, soluções simplistas de enfoque quantitativo viabilizado por avanços em tecnologia.

Agradecimentos As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP pelo apoio à Pesquisa de Iniciação Científica (Processo 2015/227654); aos moradores dos conjuntos Antares e Sirius pela receptividade em visitas e consultas entre 2016 e 2017.

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