teatro para crianÇas teatro para todos, de teresa duarte

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3 Agradecimentos (p. 5) Prefácio (p. 7) INTRODUÇÃO (p. 11) I. Panorâmica do teatro para públicos jovens antes do 25 de Abril CAPÍTULO 1. QUEDA DA MONARQUIA Contextualização (p. 17) E o Teatro para crianças? (p. 19) A criança – modelo (p. 20) O Teatro do Infante (p. 22) Um projecto adequado? (p. 23) Afinal que teatro? (p.25) CAPÍTULO 2. REPÚBLICA O ideário republicano (p. 28) Escola – teatro: uma obsessão republicana (p. 30) Breve análise temática (p. 34) Não há regra sem excepção (p. 37) O Teatro comercial feito por crianças (p. 40) À guisa de conclusão (p. 43) CAPÍTULO 3. ESTADO NOVO Enquadramento político e sociocultural (p. 49) E o Teatro? (p. 56) Teatro infantil – permanência ou mudança? (p. 57) Teatro Nacional D. Maria II (p. 67) Teatro da Mocidade (p. 80) Teatro do Gerifalto (p. 84) Teatro de Fantoches de Branca – Flor (p. 92) Pré-revolução: o teatro nos anos 60-70 (p. 95) Teatro para crianças, que evolução? (p. 98) Uma lufada de ar fresco (p.107) À guisa de conclusão (p. 110) II. Panorâmica do teatro para públicos jovens depois do 25 de Abril CAPÍTULO 4. DEMOCRACIA Revolução de Abril (p. 117) Asas abertas, asas cortadas (p. 122) Instituições privadas - o papel da Fundação Calouste Gulbenkian (p. 126) Sociedade civil e comunidade artística (p. 131) Expressão dramática – a mal-amada (p. 134) Associação Portuguesa de Expressão Dramática (p. 136) Escola do Espectador (p. 141) Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude (p. 142) Teatro recupera tempo perdido (p. 162) Novo Teatro, novos grupos (p. 163) Uma produção teórica invejável (p. 169) Outros tempos (p. 171) Temáticas inovadoras (p. 172) Literatura e Teatro (p. 174) Memórias e identidades (p. 176) Do realismo à magia (p. 185) Novos códigos, novas leituras (p. 197) À guisa de conclusão (p. 202) ÍNDICE

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CAPÍTULO 1. QUEDA DA MONARQUIA

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Page 1: TEATRO PARA CRIANÇAS TEATRO PARA TODOS, de Teresa Duarte

3

Agradecimentos (p. 5)Prefácio (p. 7)

INTRODUÇÃO (p. 11)

I. Panorâmica do teatro para públicos jovens antes do 25 de Abril

CAPÍTULO 1. QUEDA DA MONARQUIAContextualização (p. 17)E o Teatro para crianças? (p. 19)A criança – modelo (p. 20)O Teatro do Infante (p. 22)Um projecto adequado? (p. 23)Afinal que teatro? (p.25)

CAPÍTULO 2. REPÚBLICAO ideário republicano (p. 28)Escola – teatro: uma obsessão republicana (p. 30)Breve análise temática (p. 34)Não há regra sem excepção (p. 37)O Teatro comercial feito por crianças (p. 40)À guisa de conclusão (p. 43)

CAPÍTULO 3. ESTADO NOVOEnquadramento político e sociocultural (p. 49)E o Teatro? (p. 56)Teatro infantil – permanência ou mudança? (p. 57)Teatro Nacional D. Maria II (p. 67)Teatro da Mocidade (p. 80)Teatro do Gerifalto (p. 84)Teatro de Fantoches de Branca – Flor (p. 92)Pré-revolução: o teatro nos anos 60-70 (p. 95)Teatro para crianças, que evolução? (p. 98)Uma lufada de ar fresco (p.107)À guisa de conclusão (p. 110)

II. Panorâmica do teatro para públicos jovens depois do 25 de Abril

CAPÍTULO 4. DEMOCRACIA Revolução de Abril (p. 117)Asas abertas, asas cortadas (p. 122)Instituições privadas - o papel da Fundação Calouste Gulbenkian (p. 126)Sociedade civil e comunidade artística (p. 131)Expressão dramática – a mal-amada (p. 134)Associação Portuguesa de Expressão Dramática (p. 136)Escola do Espectador (p. 141)Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude (p. 142)Teatro recupera tempo perdido (p. 162)Novo Teatro, novos grupos (p. 163)Uma produção teórica invejável (p. 169)Outros tempos (p. 171)Temáticas inovadoras (p. 172)Literatura e Teatro (p. 174)Memórias e identidades (p. 176)Do realismo à magia (p. 185)Novos códigos, novas leituras (p. 197)À guisa de conclusão (p. 202)

ÍNDICE

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PERCURSOS TEATRAISO Bando (p. 207)Unidade de Infância do CCE (p. 227)Papa-Léguas (p. 244)TIL (p. 247)Pé de Vento (p. 248)Joana (p. 261)José Caldas (p. 267)Art’ Imagem (p. 282)

PALAVRAS FINAIS (p. 287)

ANEXOS

A - Entrevistas a actores e encenadores:

Irene Cruz – Teatro Aberto (p. 295)João Mota – Teatro da Comuna (p. 299)João Luiz – Teatro Pé de Vento (p. 307)José Caldas – Associação Cultural Quinta Parede (p. 316)Ana Mourato e Suzete Bragança – Teatro Joana (p. 324)Mário Jorge - Teatro Papa-Léguas (p. 329)

B – Memórias e depoimentos:

José Leitão – O Fazer a Festa Trinta Anos Depois (p. 339)Fernando Jorge – Sementes – Mostra Internacional de Artes para o Pequeno Público (p. 343)José Mascarenhas – Teatro para Crianças – Teatro para Todos (p. 343)João Brites – Frequentar o Teatro para Presenciar uma Experiência Única (p. 344)José Caldas – Uma Estética da Resistência (p. 346)Maurice Yendt – Rencontre ATINJ 2010 au Porto (p. 348)Gisèle Barret – Expresión Dramática Versus Teatro y Viceversa (p. 349)

C - Outra realidade – a palavra a grupos mais recentes:

Arte Pública (p. 354)Pim Teatro (p. 354)Teatrão (p. 356)Teatro Extremo (p. 356)Teatro Babá (p. 357)Quinta Parede (p. 357)Lua Cheia (p. 357)Espelho Mágico (p. 358)Teatro do Elefante (p. 359)3 em Pipa (p. 359)Teatro de Formas Animadas (p. 359)Teatro da Mandrágora (p. 360)

D - Notas de rodapé (p. 362)

E - Siglas (p. 373)

F - Créditos (p. 385)

G - Breve resenha legislativa (p. 374)

H - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (p. 386)

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17I. Panorâmica do teatro para públicos jovens antes do 25 de Abril

QUEDA DA MONARQUIA

Contextualização

Segundo Joaquim Vieira, nos últimos anos da monarquia, o teatro “É o espectáculo das multidões. As lotações esgotam para ver e ouvir a representação dramática da actriz Virgínia (da Silva) ou de Eduardo Brazão, a farsa de Ângela Pinto ou de José António Vale, a voz de Palmira Bastos ou da Companhia Rosas & Brazão. Quem tem tempo livre e 500 réis para uma plateia vai ao teatro”1.

De acordo com o mesmo autor existiam, entre 1908-1910, cerca de cento e cinquenta salas de teatro espalhadas por todo o país, para além das sociedades recreativas, das representações de feira e do teatro ambulante, que percorria a província, dando assim a conhecer o teatro a outro tipo de públicos.

Todas as classes e grupos sociais se podiam deleitar com o seu tipo preferido de teatro: “Os teatros centrais estão especializados por géneros: vai-se ao D. Maria II e ao D. Amélia

Proporcionar às crianças um passatempo que a partir do divertimento lhes incuta princípios de moral, conhecimentos sobre a grande variedade de objectos que as

cercam, as maravilhas da natureza, a história pátria, etc., etc., é esse o nosso intento, apresentando o projecto de um teatro adequado à infância.

Projecto para o Estabelecimento de um Teatro Adequado à Infância.

Teatro Nacional D. Maria II - Meados do sec. XIX (ed. do Teatro) © Garizo do Carmo

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18 CAPÍTULO 1

(futuro S. Luiz) para o teatro declamado e a alta comédia, ao Ginásio para a farsa, ao Príncipe Real (futuro Apolo) para o melodrama, ao Condes, ao Avenida e ao Variedades para a revista, ao Trindade, ao Condes e ao Avenida (de novo) para a opereta ou ao S. Carlos e ao Coliseu para a ópera”2.

Já anteriormente, aquando da inauguração do Teatro de D. Maria II, tinham surgido mais duas salas de teatro: o Teatro de D. Fernando, no Largo de Santa Justa e, o Teatro do Ginásio, na Rua Nova da Trindade perto do Chiado.

Para além destes teatros existiam ainda os particulares, que se impunham pela sua apa-rência luxuosa, no caso de serem pertença de pessoas abastadas e os mais modestos, propriedade de clubes de bairro ou de associações recreativas e culturais.

As peças representadas nos vários teatros aqui indicados eram sujeitas a uma apertada censura que zelava pela prática dos bons costumes, pelo respeito ao governo e pela religião. Durante o liberalismo, essa legislação sofreu algumas alterações, passando a ser reconhecida a liberdade de expressão em consonância com os padrões morais reinantes. Foi, igualmente, abolida a censura que imperava sobre os livros e jornais. Contudo, o Decreto-Lei de 15 de Novembro de 1836, da autoria de Almeida Garrett, criou a figura censória do Inspector-Geral, que faria vigorar as directrizes educativas e moralizadoras que nessa época eram apanágio da arte de Tália.

Alguns anos mais tarde, a questão da censura sobre a actividade teatral passa para a competência dos sócios do Conservatório, sendo da responsabilidade da Inspecção– –Geral dos Teatros e Espectáculos do Reino.

Aliás, é sobejamente conhecida a postura de Alexandre Herculano relativamente à fun-ção dos censores e à sua suposta competência. Claro que as peças podiam ser repre-sentadas sem licenciamento, desde que não fossem à cena em palcos subsidiados. Daí se compreender o facto de os autores tentarem o seu licenciamento a todo o custo, pois, isso dava-lhes a garantia de elas serem sempre representadas. Frequentemente, o poder justificava a necessidade da censura, invocando que, de ou-tro modo, seriam levadas à cena peças de um nível moral e literário assustador. O acto de censura, de acordo com o poder reinante, relacionava-se, pois, com a qualidade de excelência que se pretendia.

O Diário do Governo de 28 de Junho de 1841 estabelecia que a censura prévia deveria limitar-se a “[...] alguma indispensável, correcção nos erros de linguagem e em obser-var quaisquer defeitos que ofendam os bons costumes”.

Embora, algumas vozes, incluindo a de Alexandre Herculano, se manifestem contra estas medidas, a verdade é que a 3 de Fevereiro de 1846 é publicado um decreto que diz essencialmente respeito ao Teatro Nacional de D. Maria II, onde se encontram espe-cificadas as normas relativas à censura dramática e à fiscalização dos cartazes.

Se insistimos sobre esta questão da censura é porque ela será uma constante ao longo do percurso que nos propomos traçar, umas vezes impondo-se de forma mais dura,

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19I. Panorâmica do teatro para públicos jovens antes do 25 de Abril

outras de forma mais subtil e ardilosa e, outras ainda, sob a capa de necessidades pe-dagógicas e didácticas. A censura funcionou sempre como arma utilizada pelo poder para neutralizar a força que o acto teatral transmite aos cidadãos.

Porém, com o estertor da monarquia, a grande paixão pelo teatro, manifestada quer pelos diferentes públicos, quer pelo próprio rei e governo, ia perdendo élan e já se começava a pressentir que algo ia mudar dentro em breve. E, efectivamente, novos ventos sopraram, quer no plano político – com o regicídio – quer no plano teatral, com a perda constante de espectadores, seduzidos pela novidade dos animatógrafos e das companhias de circo.

Teatro Politeama em Palermo, Sicília - © 2012, Paula Carichas

E o teatro para crianças?

Pela leitura das breves notas já atrás adiantadas sobre a actividade teatral dos últi-mos anos da monarquia, podemos constatar que o teatro para crianças e jovens não se encontrava integrado naquele quadro referencial. Os primeiros textos dramáticos destinados a crianças situam-se nos últimos anos do século XIX, o que não significa que anteriormente o teatro não fosse visto e até representado por crianças e jovens. Basta recuarmos ao teatro religioso medieval, que decorria essencialmente nas igrejas e, ao teatro profano (momos e entremezes) que antecederam os autos vicentinos, bem como a algumas peças de literatura de cordel, para constatarmos que estes se dirigiam a todos os públicos, aparecendo as crianças e os jovens, não só como espectadores, mas também como actores meramente figurativos, na medida em que lhes não era concedida a palavra.

Podemos ainda referir a acção desenvolvida pelos jesuítas, durante cerca de dois sécu-los, no que diz respeito ao teatro escolar, que deixou marcas tão profundas, que ainda hoje se repercutem na persistência da relação teatro-escola.

Não sendo nosso objectivo abordar o período que antecede a República, não pode-mos contudo, deixar de fazer referência a alguns nomes que lançaram as sementes do teatro para crianças em Portugal, nomeadamente o de Maria Rita Chiappe Cadet, professora e escritora que nos finais do século XIX, entre 1883 e 1885, escreveu os pri-meiros textos dramáticos destinados a crianças 3. Essas peças deram lugar a algumas

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20 CAPÍTULO 1

representações feitas pelas próprias crianças, quer em locais públicos, quer privados e, geralmente, em contexto escolar ou familiar, tendo como público-alvo os adultos que aplaudiam e elogiavam a actuação das crianças.

Rita Chiappe escreveu, pois, essas peças para serem representadas pelas próprias crian-ças, dado que, na sua perspectiva, o colégio e a família constituíam espaços de actua-ção privilegiados. Escreveu-as, igualmente, com o intuito de transmitir uma mensagem bem clara às crianças: terem sempre e, independentemente das situações, uma condu-ta exemplar.

A criança modelo

Vejamos, através de alguns excertos, como esses textos são verdadeiros manuais de conduta.

Na peça “Aninhas ou a Caridade numa Flor”, Ana era uma menina rica e um modelo de virtudes, a quem os pais davam muito afecto. Aos 8 anos já fazia “ [...] modestos fatinhos para as crianças pobres, a quem chamava: bonecas animadas, e votava pro-funda simpatia [...]” 4. Um dia, Aninhas conheceu Alexandrina, uma menina pálida, magra, esfarrapada, cheirando a miséria e a fome. Alexandrina ao ver o jardim de Aninhas não se conteve e exclamou: “Que linda roseira esta! Quem me dera ter uma assim, para dar a minha irmã, coitada!” Então Aninhas pediu licença à mãe e foi com a criada a casa da pobre, levando-lhe o vaso com a rosa e um “ [...] fatinho seu, que lhe pareceu estar bem à altura da pequena Alexandrina, ainda quase novo, de cor escura e liso, como convinha a crianças pobres, a quem não se devem dar ideias de luxo e de grandeza”. Nessa ida a casa da pobre, Aninhas notou que “ [...] apesar da miséria e da doença, reinava ali um asseio inexcedível [...] e percebeu uma coisa importante em que nunca tinha sequer pensado, [...]. É que nem só o pão e o vestuário podem dar alegria aos pobres” 5.

Ao regressar a casa, Aninhas foi logo recompensada com duas bonitas camélias ofere-cidas pelo pai: “Era o justo prémio da sua caridade angélica, a merecida paga de acções tão boas e tão nobres” 6.

Na peça “A Boneca”, a Maria de 6 anos ouve a mãe contar um sonho e toma-o por realidade. Nesse sonho, a mãe dirige-se ao outro lado da rua onde existe uma casa de penhores e aí deixa todas as suas jóias. Perante isto, Maria resolve ir empenhar a sua boneca Lili para dar o dinheiro à mãe, pensando que a sua família tinha ficado de sú-bito muito pobre. Por esta boa acção foi muito elogiada pela família tendo concluído: “Deus devolve sempre em dobro o que se lhe dá; e, graças a ele, ainda somos ricos, hei-de obter da mamã outra Lili” 7.

Em “O Dia de Anos da Mamã”, a Maria tinha uma libra e pensa em comprar um presente para a mãe, mas vê uma família tão miserável que decide dar-lhe o dinheiro, em vez de comprar a dita prenda, como inicialmente tinha pensado 8. Obviamente que esta boa acção é recompensada pelos pais.

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21I. Panorâmica do teatro para públicos jovens antes do 25 de Abril

Em “O Segredo de Gabriela”, esta, desobedecendo à mãe, decide fazer um enxoval, às escondidas, para uma antiga criada que foi despedida por ter faltado ao respeito à família. Diz Gabriela, ao entregar a oferta à irmã da antiga criada: “Toma! Pobrezinha!.. Vai-te, que pode vir alguém!..”, responde Joaninha: “É tão boa, tão caridosa, minha querida menina! (quer-lhe beijar a mão) ”. Entretanto, Margarida, irmã de Gabriela, descobre o segredo e comenta, (comovida) “Não, não, tu és um anjo!.. o teu nobre procedimento, a tua santa caridade [...]” 9.

“O Canário da Florista” que vivia feliz na sua gaiola dourada, sem nunca ter conhecido a liberdade, “Nascera entre os arames de um viveiro, não tinha gozado nunca a som-bra verdejante da floresta, nem bebera da água corrente dos arroios: não podia pois ter saudades das campinas e dos prados que não vira, nem das moitas floridas onde jamais havia pousado” 10. Contudo, um dia o canário fugiu e essa imprudência quase lhe custou a vida, pois esteve prestes a ser comido por um gato. Então, optou por voltar para a gaiola onde estava seguro e era bem tratado. A liberdade parece tê-lo assustado em vez de o alegrar. Assim, até o canário voltou ao bom caminho. Também ele era um animal exemplar.

Em “Henrique e Augusto ou os Inconvenientes da Curiosidade”, a curiosidade do meni-no Henrique fez com que partisse um centro de mesa, sendo o criado da casa acusado e despedido por D. Amélia, sua patroa. Primeiro, Henrique pensou em calar-se e não confessar a sua acção, mas depois condoído pela sorte do criado, contou o seu erro e D. Amélia mandou gravar numa argola, que lhe ofereceu, o seguinte: “A voz da cons-ciência prevalece contra os defeitos de um coração bem formado; - e Augusto levou aquela prenda para o colégio, e a todas as refeições recordava o dia memorável em que a nobreza de alma fizera dele um menino exemplar” 11.

Para além da semelhança temática, deve ainda destacar-se que a maioria destas peças decorria no mesmo espaço físico ou cénico: num quarto de estudo ou numa sala de estudo (a ligação do teatro à escola era por demais evidente) num ambiente de famílias ricas, sendo que habitualmente as personagens não se aventuravam para fora desse espaço protegido, salvo algumas incursões pelo jardim ou pela quinta. Era praticamen-te uma excepção a ida dos ricos a casa dos pobres, como constatámos em “Aninhas ou a Caridade numa Flor” ou em “A Boneca”, em que a Maria vai à casa de penhores, local onde só os pobres necessitavam de ir.

Na peça “O Canário da Florista”, vemos que a liberdade é uma coisa perigosa e assim sendo deve optar-se pela segurança. A obediência à família é uma constante, havendo contudo uma excepção na peça “O Segredo de Gabriela”, dado o acto caritativo ser feito às escondidas.

Outro aspecto a ter em conta é a utilização de didascálias em praticamente todas as peças. A título de exemplo, referimos em “A Mascarada Infantil”: “O teatro representa um quarto de estudo. Porta ao fundo, portas laterais, um toucador, um balde; do ou-tro lado um guarda-fato, uma cómoda, um sofá, uma secretária com livros, candeeiro com abat-jour, um castiçal com vela sobre o toucador e um outro sobre uma pequena mesa junto ao sofá. Cena I NOEMI e LYDIA). NOEMI (sentada à secretária, escreve; LYDIA num sofazinho, faz crochet, tendo ao pé de si uma pequena mesa onde está uma vela.

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22 CAPÍTULO 1

Ouvem-se as 8 horas. Larga a pena e volta-se para a irmã) ” 12.

Esta peça, pela forma como se encontra tematicamente estruturada, provoca uma du-pla ilusão no espectador. Por um lado, temos a peça em si e, por outro, temos como que outra peça dentro da primeira como se o teatro estivesse dentro do teatro.

Outras peças foram consultadas e, de uma forma geral, podemos considerar que todas apresentam um final moralista: as boas acções são sempre recompensadas, o asseio reina entre os pobres e miseráveis na medida das suas possibilidades, pois mesmo que andem esfarrapados andam sempre limpinhos, não invejam os ricos, vivem resignados com a sua condição e ficam cheios de gratidão pelas ajudas que estes lhes dão. As crianças ricas, de um modo geral, têm uma alma pura e boa e, mesmo quando se afas-tam dos princípios que devem seguir, acabam sempre por se arrepender e remediar os seus erros. Não existe um olhar crítico sobre a diferenciação de classes ou grupos sociais, nem qualquer interrogação para o facto de isso acontecer. Entre ricos e pobres há como que um muro, que separa uns para um lado e outros para o outro.

Outros autores

Para além de Rita Chiappe existiam outros autores nomeadamente, Alfredo Mesquita, Rangel de Lima e Sousa Bastos, cujas peças eram geralmente publicadas em pequenos caderninhos destinados a crianças e senhoras, integrados na colecção Teatro Escolhido – Próprio para Amadores e de Agrado Certo, da responsabilidade da primeira casa do país que editou literatura teatral, fundada em 1876 – a Livraria Económica, em Lisboa.

Tratava-se, geralmente, de peças com um único acto, que se resumiam a duas ou três páginas e abordavam temas tão pobres que, provavelmente, até para as próprias crianças, seriam destituídos de interesse.

O Teatro do Infante

Podemos concluir que não existia verda-deiro teatro para crianças, na medida em que os textos dramáticos eram somente representados pelas próprias crianças. Tanto quanto nos foi possível averiguar, não existia teatro destinado a crianças representado por actores adultos profis-sionais. Através da leitura de A Gambiarra, ficámos a conhecer a existência do Teatro

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23I. Panorâmica do teatro para públicos jovens antes do 25 de Abril

do Infante. Nas páginas desse semanário, diz o crítico Daniel Alves: “A petizada conti-nua representando alternadamente ‘A História da Carochinha’ e ‘A Descoberta da Ín-dia’... Proximamente a conhecida oratória ‘O Santo António’... vai luxuosamente [ser] posta em cena”13.

No mesmo semanário, encontrámos uma crítica relativa à peça Santo António, oratória de Braz Martins, assinada por Barão Puck, que dizia o seguinte: “ [...] Esteve-se bem naquele meio e passaram-se três horas deveras agradáveis, pois que o conjunto do desempenho é realmente bom. Os pequenos artistas interpretando com consciência, sendo para o teatro verdadeiras promessas, fizeram-nos por vezes esquecer que têm entre cinco a treze anos e supusemo-nos em frente de artistas feitos e com larga prá-tica” 14. Segue-se o nome dos “artistas” e bastantes elogios aos ensaiadores, ao cenó-grafo e ao maestro.

Citaremos ainda uma outra notícia recolhida no mesmo jornal que, nos dá conta do fim do Teatro do Infante.

Diz-nos Martim Feyo: “Confirmou-se a notícia que demos acerca do Teatro do Infante suspender os seus espectáculos [...]. Quando se tratou de levar a efeito a ideia de um teatro para crianças, construído com arte e revestido de encantos, que, ao mesmo tempo prendesse a atenção dos pequenitos e recompensasse o gosto dos pais ou dos tutores, […] imaginámos nós que se cuidava de organizar um centro de estudos práti-cos, em que a moral, nas suas diversas manifestações, fosse servida aos espíritos novos por essa forma, na verdade, muito aceitável e muito intuitiva.Abriu o teatro, e vimos melhor ou pior satisfeitas as nossas esperanças, se bem que não concordemos em que seja prestar um bom serviço ao raciocínio em botão dar-lhes a entender que os seus semelhantes da espécie podem muito bem ser carochinhas ou centopeias, nem que os animais, se não falam, já tiveram talvez essa prodigiosa facul-dade!Mas a seguir veio uma pantomima que decerto as crianças não compreenderam. De-pois veio a Oratória (1854) [...] cheia de milagres e de coisas sobrenaturais, que, sobre ser de moldes gastos, apenas servia para incutir nos espíritos dos minúsculos especta-dores falsas teorias”15.

O autor destas críticas refere ainda outras razões para o encerramento do Teatro do Infante, nomeadamente a desorganização, a falta de orientação e a má selecção das peças que levaram o teatro à falência.

Com um pouco de ousadia, poderíamos afirmar que este autor era um precursor do primeiro embrião de um teatro para todos, quando refere que as peças não deveriam interessar apenas às crianças, mas também aos adultos que as acompanhavam.

Um projecto adequado?

A partir destas breves notas e das peças de Rita Chiappe, constatamos que o teatro poético e imaginativo era preterido pelo teatro realista, e ainda que o conceito de teatro infantil consistia em peças “representadas” por crianças para outras crianças e

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24 CAPÍTULO 1

para adultos. Contudo, na época, tal opção não significava, de modo algum, falta de interesse por esta actividade, antes pelo contrário, a preocupação pelo desenvolvi-mento deste tipo de teatro era bem visível. Basta atentarmos no Projecto para o Esta-belecimento de um Teatro Adequado à Infância, publicado no ano de 1888, do qual se transcrevem alguns excertos:

“A felicidade de um povo não se decreta. É princípio estabelecido que educar a moci-dade de hoje é preparar a felicidade da sociedade futura.Se a educação é indispensável para o progresso das ciências e das artes, só a educação pode produzir o bem-estar das nações. Dai à criança uma boa educação, e ela reconhecerá com a consciência do dever, a ne-cessidade imperiosa de instruir-se para não vir a ser um ente inútil na sociedade.Forçar as faculdades intelectuais das crianças em prejuízo das morais, é um grande erro. O desenvolvimento de umas e de outras deve ser gradual e harmonioso. [...]. [...] É sabido que a criança saindo da escola ou do colégio não encontra divertimento algum que lhe seja apropriado para passar algumas das suas horas de ócio. O teatro e o circo com as suas representações próprias para adultos, ou não lhe despertam inte-resse e aborrecem-lhe, ou então muitas vezes acordam-lhe na alma sentimentos que longe de a beneficiarem, prejudicam-na.Proporcionar às crianças um passatempo que a partir do divertimento lhes incuta prin-cípios de moral, conhecimentos sobre a grande variedade de objectos que as cercam, as maravilhas da natureza, a história pátria, etc., etc., é esse o nosso intento, apresen-tando o projecto de um teatro adequado à infância.Imagine-se que vastidão de assuntos para prender a atenção das crianças, oferecen-do-lhes em espectáculo atraente: trechos de história, sessões de física e mecânica, prelecções sobre a indústria, etc., e tudo isto de uma forma que, longe de ter o carácter de lição, as entusiasme, e lhes avive o desejo de repetirem mais vezes tão salutar en-tretenimento.É também à literatura que compete dar todo o realce a esta empresa, porque, no dra-ma ou na comédia, a exposição das leis da física e da mecânica, a das combinações da química; a do adiantamento, enfim, das ciências depende em grande parte o bom êxito do nosso plano. Para levar a efeito um estabelecimento desta ordem, requer-se um certo capital e por isso a admissão aos espectáculos tem de ser paga, mas ainda assim não nos esquece-mos dos desprotegidos da fortuna [….]” 16.

Seguidamente, são referidas várias entidades que albergavam crianças desprotegi-das, nomeadamente a Associação das Creches e as Casas de Beneficência, que deve-riam usufruir do referido projecto, e às quais seriam distribuídos bilhetes para que as crianças pudessem assistir aos espectáculos. Seriam, igualmente, oferecidos bilhetes à Câmara Municipal de Lisboa para serem distribuídos pelas escolas. A entidade assim projectada – o Teatro Adequado à Infância - apresentaria espectáculos diurnos e noc-turnos. Seria um bazar permanente, com objectos e actividades só para uso das crian-ças: livros, brinquedos, jogos, exercícios de ginástica e música, entre outros. A moral e a decência teriam obrigatoriamente de ser mantidas. Para conseguir o capital adequado ao orçamento estimado para o desenvolvimento desse projecto, essa entidade deveria lançar uma subscrição de obrigações, que seriam posteriormente amortizadas, conso-ante as regras estabelecidas previamente.

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Page 11: TEATRO PARA CRIANÇAS TEATRO PARA TODOS, de Teresa Duarte

25I. Panorâmica do teatro para públicos jovens antes do 25 de Abril

O citado documento, que cremos revestir-se de grande interesse e importância, per-mite-nos ajuizar, de modo mais concreto, as concepções tidas nessa época no que se refere ao teatro infantil. Vemos, pois, que se tratava de um mero instrumento de traba-lho que ajudava as crianças e os jovens, por um lado, a aprenderem matérias escolares consideradas mais áridas e de difícil apreensão e, por outro lado, a preencherem os seus tempos de ócio de uma forma educativa e moral. Merece ainda destaque a pre-ocupação tida com as crianças mais desfavorecidas e o facto de algumas receitas de bilheteira serem entregues às associações que as albergavam.

Afinal que teatro?

Através deste breve percurso, que acabámos de apresentar, pode concluir-se que, em-bora o teatro dedicado às crianças constituísse uma preocupação do poder, obedecia a esquemas próprios, que em nada contribuíam para a qualidade artística dos espec-táculos, ou melhor, das produções apresentadas. Em nossa opinião, não se pode falar verdadeiramente de teatro, pois tratava-se afinal de uma actividade escolar que se regia por dois objectivos fundamentais: cativar os alunos para a apreensão de matérias consideradas menos atraentes e servir de exemplo, apontando caminhos conducentes a uma moral reguladora dos bons costumes.

Nem os textos, nem a sua representação, permitiam e muito menos envolviam qual-quer olhar crítico sobre o que quer que fosse, nem mesmo aquela tensão/transgressão subjacente à verdadeira arte dramática.

Também não parece ter existido um verdadeiro teatro de amadores ou de profissionais que tivesse como público-alvo as crianças. Mas, existia pelo menos um grupo cujos actores eram as próprias crianças, sendo o seu público constituído por adultos – estamos a falar do Teatro do Infante. Tal situação parece-nos algo insólita, mas encontra-se suficientemen-te documentada para sabermos que era real. Efectivamente, consideramos existir algo de contraditório entre o facto de as crianças só “representarem”, em princípio, em espaços es-colares ou familiares e, ao mesmo tempo, trabalharem por conta de empresários para pú-blicos adultos, sendo lançadas praticamente como “profissionais” em espaços comerciais.

Pequenos actores da peça Gentil Mignon, representada no conservatório em 1907. Mascarar-se (sobretudo no Carnaval) é das práticas preferidas na infância

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