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Teatro Carlos Alberto13 fevereiro – 1 março 2015

tradução Alexandra Moreira da Silvacenografia e figurinos Catarina Barrosdesenho de luz Jorge Ribeirosonoplastia Luís Alyassistência de encenação Carla Miranda

interpretação Maria do Céu Ribeiro A RaparigaPaulo Mota O Primeiro BoyAntónio Júlio O Segundo Boy

coprodução As Boas Raparigas… TNSJ

dur. aprox. 1:10M/12 anos

qua 19:00 qui-sáb 21:00 dom 16:00

MuSic ‑hAll (1989) de Jean ‑Luc Lagarce

encenação rogério de carvaLho

o TnSJ É MeMBRo da

MUSIC ‑HALLeSTReIa

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Sobre os gozões das cidades do passado,e preenchemos o tempo,fazemos de conta que existimos,e de qualquer forma, representamos – até me apetece chorar, não parece, mas até me apetece chorar e às vezes choro, mas discretamente, com lentidão e desenvoltura, e ainda há cinco minutos, sem que me vejam,choro sob a maquilhagem e o disfarce, e sem fungadelas intempestivas, sou hábil –e faço batota até aos limites da batotice,e são muito longínquos esses limites,e nunca os esgoto,faço batota até ao limite da batotice,os olhos fixos neste buraco negro onde sei que não há ninguém.

Music ‑Hall

Como em todas as noites, nessa cidade como em todas as outras cidades – há vinte ou trinta anos? trinta anos… –, a Rapariga representará a sua pequena história, fará momices, tem jeito para momices, trauteará cançonetas e esboçará uns passinhos de dança. Relatando, como em todas as noites, nessa cidade como em todas as outras cidades, o dia terrível que termina, e diversas humilhações e acasos. Como em todas as noites, os dois boys, esgotados, fatigados, sonhando fugir, fugindo, os dois boys farão momices, têm jeito para momices, os dois boys acompanhá ‑la ‑ão, enganá ‑la ‑ão, farão de conta.

Jean ‑Luc Lagarce, a propósito de Music ‑Hall

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“Onde é que eu ia?”Music ‑Hall fala ‑nos de um bando de atores nómadas, em situação ‑limite,

no fim da linha. Quase entre a vida e a morte, resta ‑lhes muito pouco. E se não vivem a vida, contam ‑na. Falam. Muito. Com memória.

Temem pelo seu próprio futuro, mas arriscam sempre. Falam. E assim fogem do presente para conseguir estar nele. Há anos que este espetáculo de music ‑hall começou. Não sabemos quando.

Não importa. O que importa é repetir e encontrar as palavras certas para avançar. E ficar em palco. Resistir.

A Rapariga persiste e continua a sua batalha, por uma porta ao fundo da cena, pelo seu banquinho à prova de fogo, pelo seu espetáculo, pelo seu pequeno final de vida. Ela fica e continuará a reivindicar a ausência de condições, a bater ‑se contra a incompreensão pela vida de artista.

Uma tournée interminável que se vai sucedendo com as falas dela e os movimentos de cena deles.

Ela abre memórias, lembranças, imagens fantasmagóricas de um passado não tão envelhecido assim e eles corrigem ‑se em permanência. E regressam ao início. Sempre em correção.

Music ‑Hall fala ‑nos disso. Do recomeçar. Da necessidade que os atores têm de recomeçar sempre a cena para os outros. De repetir. Mesmo que já não haja público. Que os palcos minguem. Que os teatros virem cafés. Mesmo assim, é necessário continuar a percorrer a estrada.

aS BoaS RapaRIgaS…

“É necessário continuar a percorrer a estrada”

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Music ‑Hall é uma peça sem o tempo da representação e que se sucede no espaço do palco.

Temos a Rapariga e os Boy 1 e Boy 2. Ausentes: o marido, e os treze boys 1 e boys 2 que antecederam estes que cá estão.

O espetáculo trabalha com o conceito de “efeitos de presença”, o que quer dizer que tem implícita a situação de ausência.

A presença ‑ausência define toda a estrutura da atuação dos atores. Fala ‑se da Rapariga e ao mesmo tempo a Rapariga aparece. A Rapariga presente fala da Rapariga ausente. Qual delas é?

Quem é esta personagem, a que vemos ou a que não vemos? Fala ‑se de alguém que está presente? O sujeito da enunciação refere ‑se a si próprio e cria ‑se a ambiguidade que percorre todo o espetáculo.

A representação é a construção do próprio espetáculo à medida que ele se vai fazendo, nós vamos assistindo ao seu percurso.

É o espetáculo do espetáculo, o que significa uma homenagem aos fazedores do teatro, nomeadamente aos atores. Linguagem nada fácil, por ser nova.

RogÉRIo de caRvalho

“Uma homenagem aos fazedores do teatro”

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“Confessar uma única vez, a primeira, e não repetir mais.” Talvez seja este o segredo da escrita de Jean ‑Luc Lagarce. Na verdade, as suas personagens não se repetem, não se corrigem, precisam e avançam. Infinitamente, se for necessário. Secretamente, quando a escrita se inventa no diálogo subterrâneo da partilha das vozes. Generosamente, quando finalmente se reinventa na tão necessária escuta silenciosa. As situações clássicas (familiares, sociais, quotidianas) são tratadas com a lucidez que só a distância do humor permite. O vocabulário é simples, acessível, justo, mas a sintaxe é permanentemente transgredida – efeito do transbordamento da escrita pela oralidade, que introduz a fragilidade da vida na existência poética das personagens. Engana ‑se aquele que pensa que Jean ‑Luc Lagarce escrevia sempre a mesma história. “Escrever […] é contar uma história e a ausência dessa história.” (Marguerite Duras)

“Partilha das vozes”aleXandRa MoReIRa da SIlva

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Uma noite, à saída da estação de comboios de Besançon (Doubs), avistei, afastando ‑se sob a neve, de malas na mão e renunciando aos táxis, o cantor Ringo Willy Cat, que foi casado com a cantora Sheila – a qual chegou a ser uma grande vedeta, como se costuma dizer – e que cantava com ela, na época em que eram casados, “Laisse les gondoles à Venise…” – o meu irmão e eu sabíamos de cor o refrão. Ringo vinha duas noites por semana, às sextas e aos sábados, cantar os seus antigos sucessos num bar de strip ‑tease dessa fria cidade do Este.

Uma vez, e isto em Morez (Jura), o diretor de um salão de festas disse ‑nos que, se tivéssemos vindo na semana anterior, teríamos tido a sorte de assistir a um desafio de luta livre feminina, arbitrado por um anão.

Na Itália, em Aosta, nevava, e enquanto nós os três comíamos num restaurante deserto, abandonados até pelos nossos anfitriões, os empregados de mesa e os cozinheiros assistiam através da televisão a um qualquer jogo colorido e barulhento.

Num navio, ao largo da costa da Grécia, uma mulher obesa levantou ‑se e regressou por duas vezes ao seu lugar; os atores viam ‑na passar vagarosamente com um copo de Martini na mão.

Entre duas cenas, por detrás do cenário, um rapazinho agarrou ‑me pela manga e disse ‑me: “Vocês falam depressa de mais, não percebo nada!”

Noutra ocasião, numa noite de tempestade furiosa, um apresentador que não conhecíamos subiu ao palco para dizer ao público que o espetáculo seria divertido – e nós, atrás da cortina, ficámos transidos de medo.

O teto era tão baixo – já não me lembro onde estávamos –, mas o teto era tão baixo, que a atriz decidiu não usar os sapatos de salto alto, por receio de tocar nos projetores com o carrapito arrevesado.

Uma última vez – e é como um sonho –, enganei ‑me na porta e entrei pela porta central, ao fundo do enorme palco do Châtelet, e estaquei, petrificado, diante de uma sala deserta e com todas as luzes acesas.

Certa vez – e isto tem que ver com artistas, uma vez mais –, uma cantora rebentou em lágrimas assim que o pano desceu, e toda a sala a ouviu e desatou a rir.

Uma atriz em digressão – esta história foi ‑me contada – enganou ‑se na cidade e, ao início da noite, dirigiu ‑se à porta do teatro, enquanto o resto da trupe a esperava a várias centenas de quilómetros de distância.

Ne me dis pas que tu m’adores,Mais pense à moi de temps en temps,Un mot d’amour c’est incoloreMais un baiser c’est éloquent…

“De temps en temps”, canção de André Hornez e Paul Misraki interpretada por Joséphine Baker

“Uma atriz em digressão”Jean -lUc lagaRce*

* “Music ‑hall”.

In Mes projets de mises

en scène. Besançon:

Les Solitaires

Intempestifs, 2014.

p. 49 ‑51.

Trad. Rui Pires Cabral.

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Sete meses após os resultados do exame, em fevereiro de 1989, surgiu ‑lhe uma ideia para uma nova peça, nos antípodas do tema da doença e que falava sobretudo do palco, do espetáculo: “Escrever e montar ao mesmo tempo um espetáculo inspirado – muito livremente – em Joséphine Baker”, anotou. Lançou ‑se ao projeto com entusiasmo. Pouco depois, em abril ou maio, a escrita de Music ‑Hall estava concluída, e a peça foi enviada a Lucien Attoun, que se apressou a propô ‑la à rádio. O comité de leitura aceitou ‑a e, em julho, a peça foi gravada para o programa Nouveau Répertoire Dramatique, e seria transmitida na rentrée seguinte pelo canal France Culture. Jean ‑Luc propõe ‑se encená ‑la ele próprio em Besançon; no início de agosto, a distribuição dos papéis está concluída, e os ensaios começam no final desse mesmo mês. A 18 de outubro, Music ‑Hall estreia ‑se no Espace ‑Planoise. Ala, que se faz tarde!, como gostava de dizer Jean ‑Luc.

Em cena, a Rapariga ladeada pelos dois boys. Cantora de regresso aos palcos, atriz de província que teve há muito os seus momentos áureos, celebridade que se despenhou pelos degraus da glória até aterrar no circuito dos salões de festas, a Rapariga volta a pavonear ‑se, evoca as antigas digressões com os dois boys, que se foram sucedendo ao longo dos anos (os primeiros a desempenhar esses papéis foram, sem dúvida, o marido e o amante, que entretanto se perderam pelo caminho), por motivos de cansaço ou de desgaste, como adereços gastos que é necessário substituir. Digressões cada vez menos gloriosas, até à presente noite, em que ela manifesta a esperança de que o público acorra e lhe dê o justo valor. Ela fala ‑nos dos percalços da profissão: a porta ao fundo do palco por onde esperava fazer a sua entrada, mas que nem sempre existia; o banco alto a que se resumia o cenário, mas que nem sempre se conseguia arranjar: davam‑‑lhe uma cadeira de encosto, ou mesmo um banco de três pernas usado na ordenha das vacas. Fala ‑nos do ar trocista do diretor, do gravador de bobinas que deixa de funcionar no momento mais inoportuno ou que não existe de todo, do público nem sempre caloroso e atento. Regra geral, uma mulher da idade dela já não atua, limita ‑se a evocar os tempos em que atuava; porém, a Rapariga tem charme, é divertida, conquista ‑nos.

A peça oscila entre uma leve melancolia que sabe rir de si mesma, uma imperecível ternura pela profissão do ator e um gosto por determinados momentos que nada dizem além da sua vacuidade (nada se passa), com Beckett sentado na plateia, no papel de espectador atento. No final da peça, a Rapariga consulta o relógio, são 21:20, eles “já não virão”. É o momento do derradeiro golpe de rins da artista visceralmente orgulhosa de o ser. “E de qualquer forma,

“Um balanço e um virar de página”Jean -pIeRRe ThIBaUdaT*

* Excerto de “Chapitre

treize: Samedi 23

juillet 1988”. In Le

roman de Jean ‑Luc

Lagarce. Besançon:

Les Solitaires

Intempestifs, 2007.

p. 204 ‑208.

Trad. Rui Pires Cabral.

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representamos”, e “faço batota até ao limite da batotice, os olhos fixos nesse buraco negro onde sei que não há ninguém”, diz “a Rapariga”, a quem todos chamam Madame, ou mesmo Ma’ame.

Lagarce gosta de digressões, assim como de estrelas em declínio, esses “losers” magníficos que “fazem pela vida” em digressões por salas de terceira categoria. Lagarce gosta de chegar a um teatro desconhecido, de lhe sentir o cheiro e as correntes de ar, de descarregar o camião com os técnicos e de voltar a partir na mesma noite, o cenário desmontado e carregado uma vez mais, de lutar contra o sono na autoestrada, enquanto vai contando peripécias do mundo do espetáculo – tagarela como é, sabe dezenas delas.

Nesses finais dos anos 80, a descentralização do teatro está longe de ter sido conseguida, mas os espaços para a apresentação de espetáculos multiplicam ‑se. Teatros municipais, centros culturais, antigos cinemas, casinos, salas históricas, salas polivalentes, tudo isto mais ou menos acolhedor, mais ou menos bem dirigido. Há mais de dez anos que a Roulotte anda em digressão.

No programa do espetáculo, Jean ‑Luc Lagarce evoca recordações que falam da atmosfera, do ruído de fundo de Music ‑Hall. Ringo Willy Cat (ex ‑marido da cantora Sheila) saindo da estação de comboios de Besançon e afastando ‑se “de malas na mão e renunciando aos táxis”, para ir cantar, duas noites por semana, “os seus antigos sucessos num bar de strip ‑tease dessa fria cidade do Este”. Ou as “peripécias” relacionadas com as várias digressões do espetáculo Crébillon. Ou ainda esse cruzeiro do Figaro pelo Mediterrâneo, para o qual a Roulotte fora convidada: durante o espetáculo, viram, por duas vezes, uma espectadora levantar ‑se e voltar a sentar ‑se com um copo de Martini na mão.

Sem esquecer essa representação, numa noite de frio glacial, no belo teatro de Dole, que Jean ‑Luc relata numa carta a Dominique:

Poupo ‑te à descrição do estado alcoólico da equipa técnica municipal, que jogava às cartas atrás da cortina, a três metros de distância dos atores. Também não te descreverei uma abertura de cortina três minutos cedo de mais – os atores ainda não prontos, um tanto surpreendidos, mas desenvencilhando ‑se muito bem da situação – e isto porque o beberrão que devia abrir a cortina se fez substituir, à última da hora, por um dos seus amigos beberrões “que não tinha outra tarefa a cumprir – abro a cortina e piro ‑me, vou para casa, porque é sábado e não estou para me maçar mais”. Mas teve a delicadeza – aproveito para lhe agradecer aqui, já que na altura não tive ocasião de o fazer –, teve a delicadeza de não atravessar diagonalmente o palco, mas de sair sem que ninguém (do público) o visse. Contudo, é também verdade que, por mero acaso, a porta ficava do lado certo; se assim não fosse, nada nos garante que a ideia não lhe tivesse ocorrido.

Grandezas e misérias das digressões. Music ‑Hall é uma espécie de banquete em honra dessas memórias.

A ideia de base e o basso continuo da peça é uma canção de Joséphine Baker, “De temps en temps”. Este tema musical não se limita a ritmar o espetáculo com a sua atmosfera de café ‑concerto e as suas incontornáveis palavras de amor (“não me digas que me adoras, mas pensa em mim de vez em quando”) – é a própria peça que, como que contagiada pela canção, repete palavras

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e fórmulas que se convertem numa espécie de refrães (“trocista”, “lenta e desenvolta”, “e quem pode o mais, pode o menos”, etc.), sem porém se resumir a isso: a peça está cheia de imprevistos, de fugas. Ambivalência lagarciana.

Sob o título Quelques éclaircies, Jean ‑Luc alinhavou algumas ideias em cinco páginas datilografadas, datadas (pelo seu punho) de 3 de fevereiro de 1989 – no momento em que lhe ocorreu a ideia de fazer qualquer coisa a partir de Joséphine Baker. Os investigadores do Idaho, caros a Jean ‑Luc, dissertarão longamente sobre essas páginas, já que, sob esse título tão abrangente, encontramos o ponto de partida de diversas peças – Juste la fin du monde [Tão Só o Fim do Mundo], Histoire d’amour (derniers chapitres) [História de Amor (últimos capítulos)]. Estamos ainda longe de Music ‑Hall, mas perto de Joséphine Baker.

Nessas folhas, tudo se passa numa cozinha onde o rádio e a televisão estão sempre ligados e, entre boletins informativos que não dão boas notícias do mundo, transmitem canções de Joséphine Baker. Em cima do frigorífico há bananas, fonte de um gag referencial (numa das suas coreografias, a jovem Joséphine surgia nua à exceção de uma tanga de bananas presa à cintura). A cozinha é a da Rapariga. Sobre a mesa, ela e os seus dois acólitos constroem uma cidade em miniatura, “um jogo para desenfado dos solitários, como um puzzle” – é a cidade que existe lá fora, “o lugar onde vivem”.

Segunda pista: “Ou então ela tem um filho, e o filho, ‘digamos’, o filho morreu, e ela, ela representa e dá continuidade ao que ele tinha começado antes de morrer”. Lagarce especifica: “É como o quarto do filho de Liubov” (uma referência à peça O Cerejal, de Tchékhov).

Terceira pista: “Ou então era aí que eles os três viviam há muito tempo, quando jovens, ou quando crianças, digamos assim, crianças, admitamos. Fazer teatro é uma brincadeira, e eles brincavam a isso, digamos, quando eram crianças. Ela, essa Rapariga que está sozinha, ela continua. E trata ‑se da maqueta de um espetáculo que não chegaram a fazer. Ela recita a si mesma uma peça que não chegaram a fazer e que devia ter sido representada nesse cenário, em miniatura”.

Aproximamo ‑nos de Music ‑Hall. Mas Lagarce gosta da sua cozinha. Pensa em fatias de pão que saltam da torradeira no momento de uma “frase muito significativa dramaturgicamente”, ou melhor, pensa no ator dizendo que as fatias de pão hão ‑de saltar no momento de uma “frase muito significativa dramaturgicamente”, o que não deixará de ocorrer. Quer uma cafeteira elétrica “com uma luz vermelha, à noite, como o barco de Amarcord que passa, bom, estou a dispersar ‑me”. São páginas cheias de invenções espontâneas, que se divertem com os gags inventados. Jean ‑Luc sairá da cozinha para entrar num palco, a “cozinha” que ele conhece melhor. O palco de Music ‑Hall.

A peça, então inédita, é difundida pelo canal France Culture, com Judith Magre no papel da Rapariga. Antes da transmissão, Lucien Attoun, como habitualmente, conversa com o autor. Faz dez anos que foi transmitida pela rádio a primeira peça de Lagarce (Carthage, encore); Lucien convida ‑o a comentar o facto e Jean ‑Luc vai mais longe: ele vê em Music ‑Hall o “balanço” do trabalho de escrita e encenação que realizou nos últimos dez anos. Um balanço e um virar de página.

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À data da sua morte, de sida, em 30 de setembro de 1995, Jean ‑Luc Lagarce era um encenador conhecido, mas um dramaturgo ainda ignorado. Muitas das suas peças tinham sido representadas com êxito, é certo, mas outras permaneciam na gaveta ou incompreendidas. Desde o seu desaparecimento que a sua notoriedade não cessou de aumentar, sendo hoje considerado um autor clássico contemporâneo, à semelhança de um Bernard ‑Marie Koltès (vitimado pela sida pouco antes de Lagarce), cuja notoriedade foi mais precoce graças à aura de Patrice Chéreau, que encenou as suas peças. Lagarce, por seu turno, era o encenador dos seus próprios textos.

Se Lagarce não teve reconhecimento em vida como autor importante, tal ficou a dever ‑se ao facto de a linguagem teatral das suas peças ser demasiado original, demasiado inovadora. Atualmente, é um dos autores coqueluche dos cursos de arte dramática, um autor admirado pelos grupos de teatro amador e cada vez mais estimado pelos melhores encenadores de todas as gerações. Está traduzido em cerca de quinze línguas. Os colóquios, os estudos universitários e as publicações multiplicam ‑se. Em 2008, uma das suas peças foi levada à cena na sala Richelieu, o grande palco da Comédie ‑Française.

Jean ‑Luc Lagarce nasceu a 14 de fevereiro de 1957 em Montbéliard, na região de Franche ‑Comté, e passou toda a sua juventude na pequena cidade de Valentigney, feudo da marca Peugeot, em cujas fábricas de automóveis e bicicletas trabalhavam como operários os seus pais; é também o fruto de uma cultura protestante. No liceu, uma professora de Francês e Latim iniciou os alunos no teatro: com 13 anos, Jean ‑Luc escreveu para a disciplina a sua primeira peça (que se perdeu). Aos 18 anos, tendo concluído os estudos secundários, parte para Besançon, a capital da região, inscrevendo ‑se na Faculdade de Filosofia e no Conservatório de Arte Dramática dessa cidade. Pouco depois, com alguns colegas do Conservatório, funda uma companhia de teatro amador, a Roulotte, um nome que presta homenagem a Jean Vilar. Paralelamente, na universidade, Jean ‑Luc trabalha numa dissertação subordinada ao tema “Teatro e Poder no Ocidente”. Alguns anos depois, abandona os estudos (e um trabalho em curso sobre o Marquês de Sade) para se dedicar exclusivamente ao teatro: a Roulotte torna ‑se uma companhia profissional. Está sedeada em Besançon, mas não tem um espaço próprio, à exceção de um escritório. O grupo ensaia onde calha, acolhendo ‑se nos teatros da cidade apenas durante o tempo dos seus espetáculos. A partir de então, Jean ‑Luc Lagarce desenvolve uma dupla atividade de dramaturgo e encenador.

A Roulotte beneficiará de subsídios cada vez mais regulares por parte das coletividades locais, regionais e, em breve, do Ministério da Cultura.

Percurso de Jean ‑Luc Lagarce1957 ‑1995

Jean -pIeRRe ThIBaUdaT*

* www.lagarce.net/

auteur (1 mai 2007).

Trad. Rui Pires Cabral.

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Enquanto autor, Lagarce contará também com o apoio do Théâtre Ouvert, um organismo subvencionado pelo Estado com sede em Paris, cujo principal objetivo é a divulgação dos autores de teatro contemporâneos. Obtém também diversas bolsas do Ministério da Cultura; ao mesmo tempo, alguns teatros encomendam ‑lhe peças.

“Teatro e Poder no Ocidente” parte do teatro grego, passa pelo século clássico (o XVII), aborda Tchékhov e termina com alguns nomes maiores do teatro da década de 50: Ionesco, Genet, Beckett. Como escrever teatro depois deles? É a questão que Lagarce levanta. Começará por seguir as pisadas de Ionesco, escrevendo algumas peças marcadas pelo Teatro do Absurdo (entre as quais Erreur de construction e Carthage, encore) e reivindicando abertamente esse legado com uma referência a A Cantora Careca, texto que o encenador Lagarce levará à cena muito mais tarde e com grande sucesso. A sua peça Les Serviteurs é uma piscadela de olho às Criadas de Jean Genet. Quanto a Beckett, Lagarce encena, logo no início da sua carreira, três das suas peças curtas, depois de ter montado alguns espetáculos a partir de textos da Antiguidade grega: Clytemnestre, e de seguida Elles disent…, uma peça inspirada na Odisseia, a história do regresso de Ulisses à terra natal, um tema recorrente em muitas das grandes peças de Lagarce.

Voyage de Madame Knipper vers la Prusse Orientale, a sua primeira peça a ser apresentada em Paris, faz referência a Tchékhov. Neste texto, Lagarce afirma o

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seu universo e desenvolve o seu estilo particular. O lugar onde decorre a ação é “o palco nu de um teatro”, e as personagens são reunidas pelo acaso da errância: fogem de uma guerra que devasta uma qualquer região da Europa. Nas peças de Lagarce, as referências à guerra são frequentes, se bem que o tema nunca seja explicitamente tratado. Reencontramos a mesma estrutura em Vagues souvenirs de l’année de la peste, em que um grupo de personagens foge da peste que grassa em Londres. Nessa errância, as personagens falam das suas vidas passadas. Não acontece nada, ou quase nada, nas peças de Lagarce; o enredo é sempre extremamente parco. Está tudo na língua, na palavra, no discurso, no modo de dizer e no não ‑dito.

Knipper é uma atriz. O mundo do teatro, das digressões, dos bastidores constitui um tema fulcral de diversas das suas peças, como Music ‑Hall (uma artista, acompanhada pelos seus boys, relembra obsessivamente as suas digressões passadas), Hollywood (uma peça inspirada pelo mundo do cinema e da literatura americanos – a começar por Fitzgerald –, na qual se misturam personagens fictícias com personagens históricas) ou Nous, les héros (que faz referência ao Diário de Kafka e evoca a vida de uma trupe de teatro em digressão pela Europa central nas vésperas de uma guerra). Essa última peça foi especificamente escrita para o elenco da sua bem ‑sucedida encenação de O Doente Imaginário, de Molière. E é com base num velho manual que Jean ‑Luc Lagarce escreverá Les Règles du savoir ‑vivre dans la société moderne [As Regras da Arte de Bem Viver na Sociedade Moderna], monólogo para uma atriz.

Histoire d’amour (repérages), De Saxe, roman e Histoire d’amour (derniers chapitres) constituem uma trilogia informal intimista sobre a relação entre dois homens e uma mulher ao longo do tempo. Voltamos a encontrar esse mesmo trio em Derniers remords avant l’oubli [Últimos Remorsos Antes do Esquecimento]: um dos homens casou ‑se, a mulher também, tiveram filhos, e o outro homem permaneceu na casa onde outrora viveram os três; as personagens, juntamente com os respetivos cônjuges e a filha de um dos casais, reencontram ‑se para tratar da venda da casa. Partirão sem conseguir chegar a qualquer decisão. Do intimismo passou ‑se ao retrato de uma certa sociedade.

Diversas outras peças, como Retour à la citadelle, L’Exercice de la raison (que permaneceu inédita até 2007) e Les Pretendants traçam um retrato satírico do poder por ocasião de uma nomeação. Nomeia ‑se um novo governador, um novo diretor, e a peça incide sobre esse momento de transição, de substituição dos titulares do cargo. Destacam ‑se aí o humor e o olhar cáustico de Lagarce; mas é possível encontrar exemplos desse humor em toda a sua obra, incluindo nas últimas peças, mais sombrias, sobre um regresso à terra natal motivado pela proximidade da morte. Este regresso pode ser hipotético, sonhado – como em J’etais dans ma maison et j’attendais que la pluie vienne [Estava em casa à espera que a chuva viesse], em que cinco mulheres aguardam o regresso de um irmão, de um filho que partiu há muito tempo – ou efetivo, como em Juste la fin du monde, cuja ação decorre no interior de um círculo familiar. Em Le Pays lointain, esse círculo junta ‑se a outra família, aquela que o herói escolheu: amantes de ambos os sexos, amigos. Jean ‑Luc Lagarce concluiu esta derradeira peça quinze dias antes de desaparecer. Tê ‑la lido alguns meses após a sua morte constituiu um choque emocional que depressa se converteu em deslumbramento.

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ficha técnica TNSJcoordenação de produção Maria João Teixeiraassistência de produção Eunice Bastodireção de palco (adjunto) Emanuel Pinadireção de cena Cátia Estevesmaquinaria de cena António Quaresma Carlos Barbosa Joel Santosluz Filipe Pinheiro Abílio Vinhas Adão Gonçalves José Rodrigues Nuno Gonçalves som João Oliveira

apoios TNSJ

apoios à divulgação

agradecimentos TNSJcâmara Municipal do portopolícia de Segurança públicaMr. piano/pianos Rui Macedo

ficha técnica As Boas Raparigas…construção de cenografia Móveis Modernos Maia & Rocha, Lda.confeção de figurinos Ana Maria Fernandesprodução executiva Carla Miranda

agradecimentos As Boas Raparigas…eSMae – escola Superior de Música, artes e espetáculo hotel peninsularalexandra calado

as Boas Raparigas… é uma estrutura financiada por

As Boas Raparigas…Rua da Fábrica Social, s/n 4000 -201 portoT 96 148 75 07 [email protected]

Teatro Nacional São Joãopraça da Batalha4000 -102 portoT 22 340 19 00

Teatro Carlos AlbertoRua das oliveiras, 434050 -449 portoT 22 340 19 00

Mosteiro de São Bento da VitóriaRua de São Bento da vitória4050 -543 portoT 22 340 19 00

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ediçãoDepartamento de Edições do TNSJcoordenação João Luís Pereirafotografia Susana Neves impressão Multitema

não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espetáculo. o uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores.

Page 19: Teatro Carlos Alberto MUSIC - tnsj.pt de sala Music-Hall.pdf · 3 Sobre os gozões das cidades do passado, e preenchemos o tempo, fazemos de conta que existimos, e de qualquer forma,

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