tcc felipe schulz praia

Upload: felipe-praia

Post on 12-Oct-2015

32 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    1/63

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    Felipe Schulz Praia

    Nuestra lucha es por la historia: um estudo comparativo sobre memria e

    identidade entre o EZLN do Mxico e o EGTK da Bolvia

    Trabalho de Concluso de Cursoapresentado ao Departamento de

    Histria da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, comorequisito parcial pra obteno dograu de Licenciado em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. MathiasSeibel Luce

    PORTO ALEGRE

    2013

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    2/63

    Felipe Schulz Praia

    Nuestra lucha es por la historia: um estudo comparativo sobre memria e

    identidade entre o EZLN do Mxico e o EGTK da Bolvia (dcada de 1990)

    Trabalho de Concluso de Cursoapresentado ao Departamento deHistria da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, comorequisito parcial pra obteno dograu de Licenciado em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. MathiasSeibel Luce

    Aprovado em:

    Conceito:

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Cludia Wasserman

    (UFRGS)

    ______________________________________________________________________

    Prof. Me. Edson Antoni

    (UFRGS)

    ______________________________________________________________________

    Prof. Dr. Mathias Seibel Luce (Orientador)

    (UFRGS)

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    3/63

    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, agradeo minha famlia pelo amor que me deram, e em

    especial a meus pais Rosane Marta Schulz Praia e Lus Marcelo Bastos Praia por

    sempre me darem apoio e incentivo nas minhas inciativas e no se preocuparem com a

    questo financeira em funo da profisso que escolhi. Fao meno tambm minha

    tia, Rosngela Marione Schulz, que, gostando ela ou no, influenciou diretamente no

    caminho que tomei em direo graduao em Histria.

    Agradeo tambm ao ex-professor e agora amigo e companheiro de luta Rafael

    Balardin, que me convenceu, atravs dos debates em sala de aula no ensino mdio, que

    deveria prestar vestibular para o curso de Histria e que, mais tarde, me ajudou a eleger

    a licenciatura como rumo. minha namorada, Isadora Lunardi Diehl, brilhante

    historiadora, que me deu apoio nos momentos difceis da produo dessa pesquisa -

    tendo pacincia para ouvir meus reclames e sugerir acrscimos importantes para o

    trabalho -, bem como nas situaes em que era preciso dar um tempo na monografia e

    aproveitar o dia de outra maneira.

    Presto minhas homenagens tambm a todos os meus amigos que contriburam

    intelectualmente para minha formao, mas que tambm tiveram participao no atraso

    de inmeros trabalhos ao fim de cada semestre do curso, dos quais destaco Felipe

    Bondan, Lucas Dutra e Marcos Bohrer. Impossvel mencionar todos os amigos que fiz

    nesse curso e que me ajudaram a concluir a graduao, mas no posso deixar de citar os

    companheiros que sempre estiveram ao meu lado durante esse perodo: Antnio Melo,

    Luiz Felipe Lied, Leonardo Lara e Guilherme Nunes. Sou grato tambm ao CHIST quesempre lutou e, que sempre lutar em defesa dos estudantes e, ao mesmo tempo, (por

    que no?) por um mundo mais justo no s para os historiadores.

    Por fim, agradeo aos professores Luiz Dario Teixeira, Cludia Wasserman,

    Enrique Padrs e Eduardo Neumann por me auxiliarem durante a graduao e a meu

    orientador Mathias Luce. Aproveito o espao para manifestar meu sincero desejo de que

    a UFRGS permanea (e avance) como uma universidade pblica, gratuita e de

    qualidade, e demonstrar minha gratido pelo amparo desta instituio.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    4/63

    RESUMO

    Este trabalho busca compreender a construo da memria e da identidade de dois

    movimentos indgenas armados que se insurgem no incio dos anos 1990 na Amrica

    Latina, quais sejam, o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (surgido no Mxico,

    em 1994) e o Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari (surgido na Bolvia, tendo uma curta

    durao 1986 a 1992). A anlise parte da referncia que ambos fazem s figuras

    histricas que carregam em seus nomes, levando em conta tambm outros elementos

    memorialsticos de relevncia para a elaborao da identidade presentes nos discursos

    do EZLN e do EGTK. Assim, a pesquisa pretende responder a seguinte questo: De que

    forma os movimentos utilizam as figuras de Zapata (no caso do EZLN) e de Tupak

    Katari (no caso do EGTK) para reforar uma identidade que permita a mobilizao para

    a luta contra o que consideram opresso?

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    5/63

    RESUMEN

    Este trabajo intenta comprender la construccin de la memoria y de la identidad de dos

    movimientos indgenas armados que se insurgen en los aos 1990 en Amrica Latina,

    cuales sean, el Ejrcito Zapatista de Liberacin Nacional (surgido en Mxico, en 1994)

    y el Ejrcito Guerrillero Tupak Katari (surgido en Bolivia, con una corta existencia

    1986 a 1992). El anlisis parte de la referencia que ambos hacen a las figuras histricas

    que llevan en los nombres, llevando se en cuenta tambin otros elementos de la

    memoria que son relevantes para la elaboracin de la identidad presentes en los

    discursos del EZLN y del EGKT. As, la pesquisa pretende responder a la siguiente

    cuestin: De que manera los movimientos utilizan las figuras de Zapata (en el caso del

    EZLN) e de Tupak Katari (en el caso del EGTK) para reforzar una identidad que

    permite la movilizacin para la lucha contra lo que consideran opresin?

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    6/63

    LISTA DE SIGLAS

    COB = Central Obrera Boliviana

    CSUTCB = Confederacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de Bolivia

    EZLN = Exrcito Zapatista de Libertao Nacional

    EGTK = Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari

    FSUTCLP Tupak Katari = Federacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de

    LaPaz Tupak Katari

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    7/63

    SUMRIO

    INTRODUO...........................................................................................8

    CAPTULO 1: Porque comparar o EZLN e o EGTK a partir da relao entrememria e identidade?.................................................................................16

    1.1. Teoria e Metodologia...............................................................................16

    1.2. Semelhanas e diferenas entre o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional e oExrcito Guerrilheiro Tupak Katari................................................................21

    CAPTULO 2: Memria...............................................................................29

    2.1. Expresses................................................................................................37

    2.2. Herana de opresso e herana de luta.....................................................38

    2.3. O uso da Histria..................................................................................... 39

    2.4. Disputa de memria..................................................................................43

    CAPTULO 3: Identidade.............................................................................50

    CONCLUSO.................................................................................................58

    REFERNCIAS..............................................................................................60

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    8/63

    8

    INTRODUO

    O presente trabalho analisa a questo da memria e da identidade em dois

    movimentos indgenas armados da Amrica Latina que se insurgem no inicio dos anos 1990,quais sejam, o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (surgido no Mxico, em 1994) e o

    Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari (surgido na Bolvia, tendo uma curta durao 1986 a

    1992). Ambos carregam nos nomes referncias a personagens relevantes da histria de seus

    pases. Assim, no mbito mais especfico, a pesquisa trata do seguinte problema: De que

    forma os movimentos utilizam as figuras de Zapata (no caso do EZLN) e de Tupak Katari

    (no caso do EGTK) para reforar uma identidade que permita a mobilizao para a luta

    contra o que consideram opresso?

    Quando em 1994 o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional se pronunciou

    oficialmente pela primeira vez atravs da Primeira Declarao da Selva Lacandona, o seu

    grito de Basta! carregava em seu significado no s o questionamento situao de

    descaso do Estado mexicano com os indgenas da regio de Chiapas, mas tambm a

    excluso da sociedade neoliberal a todos os grupos oprimidos. Ao mesmo tempo, a

    declarao afirma que os mexicanos so o produto de 500 anos de lutas, inscrevendo assim

    as origens e objetivos do movimento numa perspectiva temporal de larga durao 1. Essa

    viso exposta nas ideias do movimento zapatista instiga a prestar ateno em outras

    realidades semelhantes.

    Alguns anos antes se formava na Bolvia o Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari, que

    conjugava dois grupos militantes distintos: um formado por camponeses aimras e quchuas

    e outro por jovens mestios de classe mdia e trabalhadores. A inteno da organizao era

    agregar o proletariado, mais especificamente o mineiro, ao campesinato indgena na luta

    contra a opresso e explorao desses setores. Como aponta Fabola Escrzaga2, esse

    movimento de grande importncia para constituio dos aimras e quchuas como agentes

    autnomos no cenrio poltico boliviano. Em suas palavras:

    La insurgencia indgena del EGTK es solo un episodio significativo de unlargo proceso acumulativo prvio y coadjuvante de processos polticos y

    1 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre; ECHEVERRA, Bolvar: MONTEMAYOR, Carlos e WALLERSTEIN,Immanuel. Chiapas en perspectiva histrica.El Viejo Topo, 2001.2 ESCRZAGA, Fabola.El Ejrcito Guerrillero Tupak Katari (EGTK), la insurgncia aymara em Bolivia.Disponvel em: www.pacarinadelsur.com/home/oleajes/441-el-ejercito-guerrillero-tupak-katari-egtk-la-insurgencia-aymara-en-bolivia. Acesso: 25/06/12 s 01h43min.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    9/63

    9

    sociales posteriores, ocurridos en la base ndia de la sociedad boliviana.(...) Lo que prevalece de la experiencia, a pesar de la pronta desarticulacindel grupo es la capacidad de accin autnoma de masas campesinasaymaras y quchuas y su acumulada capacidad organizativa y de definicinde un proyecto radical de transformacin politica prprio3.

    Tupak Katari foi um indgena aimra que nasceu aproximadamente em 1751 numa

    regio entre Oruro e La Paz na Bolvia. No ano de 1781, ele liderou o cerco estratgica

    cidade colonial de La Paz, fundada por espanhis. O seu programa social reivindicava,

    basicamente, a promoo dos valores autctones e a eliminao dos abusos cometidos pela

    administrao colonial sobre os indgenas. Em 1782, Tupak Katari preso e morto pelas

    autoridades espanholas.

    Emiliano Zapata nasceu no ano de 1879 em Anenecuilco, na regio de Morelos,

    Mxico. Durante a Revoluo Mexicana, iniciada em 1910, Zapata defendeu a

    implementao da reforma agrria, inclusive acusando Francisco Madero tambm

    participante da revoluo de traio, quando esse assume a presidncia do pas e nega a

    aplicao de mudanas no que tange a propriedade de terras, que estava nas mos de uma

    elite agrria. Zapata liderou camponeses do sul do Mxico (grande parte indgenas) em

    busca da expropriao de terras dos que se diziam contra a revoluo para logo aps dividi-

    las entre os camponeses e promover o reconhecimento de terras que foram tomadas decamponeses (dos quais muitos era indgenas). O que fica patente na luta de Zapata o ideal

    de justia social, buscado tanto pela via armada, quando pelo apelo ao cumprimento da lei,

    como ser visto adiante. Em 1919, assassinado em Morelos.

    No Mxico, as medidas neoliberais passam a ser implementadas pelo presidente

    Carlos Salinas Gortari (1988 1994), empossado aps uma eleio com muitas

    contestaes, em funo da forte suspeita de fraude. Gortari tinha como tarefa combater a

    grave crise econmica que assolou o pas a partir dos anos 1980, com o governo de Miguel

    de la Madrid Hurtado (19821988). Cludia Wasserman informa como a crise se originou:

    o desequilbrio oramentrio dos sucessivos governantes do PRI [PartidoRevolucionario Institucional] e a queda dos preos do petrleo no decnioanterior levaram a uma inflao de quase 100% ao ano, ao desempregoentre 20 e 25% e a desvalorizao do peso em relao ao dlar4

    3 Ibidem,p. 14 WASSERMAN, Claudia.Entre a Revoluo Mexicana e o Movimento de Chiapas: a tese da hegemonia

    burguesa no Mxico ou por que voltar ao Mxico 100 anos depois. In: Cadernos IHU ideias, ano 9, n.152, 2011, p. 14

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    10/63

    10

    Como caminho para sair da crise, Gortari optou por seguir os conselhos que o Consenso de

    Washington (1989) dava aos pases latino-americanos, que, em linhas gerais, consistiam na

    reduo de gastos pblicos; na abertura aos investimentos estrangeiros, acabando com as

    restries ao mesmo; e na privatizao de empresas estatais. Dessa forma, Salinas Gortari

    provocou a deteriorao de uma srie de servios pblicos essenciais, promoveu a

    privatizao de diversas empresas estatais e assinou um acordo de comrcio com os Estados

    Unidos, conhecido como NAFTA (Tratado Norte-americano de livre comrcio). Essas

    medidas acentuaram a pobreza das populaes no favorecidas. A crise econmica, bem

    como as consequncias das determinaes de Gortari so sentidas com mais intensidade na

    regio sul do Mxico, onde mesmo as conquistas da Revoluo Mexicana (a reforma

    agrria, as nacionalizaes e o aumento da participao poltica por parte da populao) no

    so efetivados. O sul mexicano mantm uma estrutura socioeconomicamente arcaica e uma

    poltica de cunho autoritrio e racista. Assim, essa regio no chega a ter as mesmas

    reformas modernizantes por que passam o norte e o centro do Mxico5.

    A Bolvia em que emerge o EGTK encontra-se sob a presidncia de Victor Paz

    Estensorro, que ocupava o cargo pela terceira vez, assumindo aps Hernn Suazo (1982

    1985). O pas ainda enfrentava o problema da hiperinflao, do dficit fiscat e do

    enfraquecimento das empresas estatais, consequncias de uma m administrao e de uma

    conjuntura internacional pouco favorvel para a exportao de estanho durante os governos

    militares (1964 1982). A alternativa encontrada por Estenssoro para frear a derrocada da

    economia boliviana foi a aplicao de uma srie de medidas liberalizantes no campo

    econmico atravs da chamada Nova Poltica Econmica (NPE). As consequncias dessas

    medidas foram a diminuio do papel do Estado na economia e a abertura ao capital externo.

    A privatizao da Comibol (Corporacin Minera de Bolivia) um duro golpe na

    organizao sindical, levando ao desemprego 23 mil mineiros que passam a se dedicar ao

    mercado informal e atividade cocalera. Nesse perodo h um processo de migrao interna

    que aumenta o nmero das periferias dos centros urbanos, com destaque para o rpido

    crescimento populacional de El Alto, cidade-dormitrio de La Paz. Resulta desse processo o

    fim do modelo de Estado construdo a partir da Revoluo de 1952 pelo MNR (Movimento

    Nacionalista Revolucionrio) partido de Estenssoro, sendo esse presidente entre 1952 e

    1956 e contribuidor para a construo de tal modelo estatal que nos anos 1980 ajudara a

    5 Essa noo desenvolvida por ROJAS, C. Aguirre. Chiapa, Planeta Tierra. Mxico: EditorialContrahistorias, 2006.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    11/63

    11

    destruir, no qual ocorreu uma ampla reforma agrria e a nacionalizao da atividade

    mineradora.

    Como demonstra Jos DAssuno Barros6

    ao comentar a obraReis Taumaturgos deMarc Bloch, a comparao por meio do mtodo especfico da Histria Comparada de

    dois casos sincrnicos pode contribuir, de alguma forma, para a compreenso mais plena do

    espao amplo em que elas esto inseridas. No caso dessa pesquisa, a anlise comparada da

    referncia a Emiliano Zapata feita pelo movimento zapatista do Mxico com a referncia a

    Tupak Katari feita pelo EGTK da Bolvia, a partir da relao existente entre memria e

    identidade, permite entender de forma mais completa a Amrica Latina e a situao de

    povos indgenas num contexto de neoliberalismo, bastante evidente durante as dcadas de

    1980, 1990 e 2000.

    O perodo a ser analisado no caso do EGTK de 1986 a 1992. A dificuldade em

    acessar a documentao produzida pelo grupo boliviano no permitiu a anlise de um

    nmero extenso de fontes7. Ainda assim, foi possvel estabelecer um estudo consistente

    atravs do exame do livro de Felipe Quispe8intitulado Tupak Katari vuelve... carajo9, que

    tido como o texto fundador do grupo. Nele esto contidos, alm de um breve resumo da

    rebelio de Tupak Katari, a defesa promovida por Quispe e outros indgenas, atravs deteses apresentadas em organizaes sindicais bolivianas da luta armada como forma de

    chegar ao poder. Consultou-se, tambm, o comunicado Qu busca el EGTK?, no qual esto

    contidos os principais objetivos do grupo armado boliviano10. J para o caso do EZLN, deu-

    se preferncia utilizao das declaraes e comunicados oficias produzidos entre 1994 e

    2001. O ano de 2001 emblemtico, pois quando ocorre a Marcha Zapatista em direo

    Cidade do Mxico visando conseguir o reconhecimento constitucional dos direitos

    indgenas. A Marcha passa por lugares que Emiliano Zapata travou algumas de suasprincipais batalhas. Deve-se sublinhar que os documentos analisados so os que evidenciam

    de forma mais clara a meno aos nomes de Tupak Katari e Emiliano Zapata. As

    6 BARROS, Jos DAssuno. Histria Comparada da contribuio de Marc Bloch constituio de ummoderno campo historiogrfico. In:Histria Social (Revista da Unicamp).vol.13, 2007, 7-21. Disponvel em:www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/download/207/199 . Acesso em 26/06/2012, s 16h07min.7 Diferentemente das fontes produzidas pelo EZLN, os textos do EGTK no se encontram disponveis nainternet, exceo do comunicado Qu busca el EGTK?8 Principal idealizador do Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari.9 QUISPE, Felipe. Tupak Katari vuelve...carajo. Ediciones Ofensiva Roja, La Paz, 1988.10 EGTK, Qu busca el EGTK? Citado por:

    SALOMN, Jaime Iturri. EGTK: La guerrilla aymara enBolivia.Ediciones Vaca Sagrada, 1992, La paz, Bolivia. E disponvel em:http://www.cedema.org/ver.php?id=1245. Acesso em: 17/06/2013, s 12h24min.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    12/63

    12

    caractersticas mais especficas das fontes bem como suas diferenas entre si sero tratadas

    no captulo 1.

    A construo do problema de pesquisa se deu atravs da leitura da bibliografiaexistente sobre os dois movimentos aqui tratados e, a partir disso, da percepo da

    possibilidade, ainda no contemplada, de uma anlise comparada entre o EZLN e o EGTK

    no que tange questo da memria e identidade. Em 2001, Carlos Aguirre Rojas na

    introduo de Chiapas en perspectiva histrica11chamou ateno para a falta de trabalhos

    de histria sobre o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional. Ainda que tenham sido feitos

    muitos esforos explicativos por socilogos a respeito desse tema, Aguirre Rojas afirma que

    esses estudos tendem, mesmo sem querer, a ficar slo dentro de la deteccin e

    identificacin de los procesos y de las causas ms inmediatas del conflito12. Esse

    imediatismo acaba por gerar algumas perdas importantes na anlise como esquecer a

    densidade histrica profunda que h nos acontecimentos ocorridos e o prejuzo de no contar

    com a oportunidade de inscrever esses fatos numa perspectiva de maior alcance temporal,

    que seja mais atenta s principais lies da histria.

    J antes do apelo de Aguirre Rojas, alguns trabalhos incluam o movimento chiapaneco

    numa perspectiva histrica. o caso da contribuio de Juan Gonzlez Esponda e ElizabethPlito Barrios13que estudam a formao histrica de Chiapas desde sua incorporao ao

    Mxico (em 1824) para entender o problema agrrio da regio e as motivaes que levaram

    criao do EZLN. Em 2005, Emlio Gennari14 remontou os passos da rebeldia do

    movimento atravs de uma narrativa romantizada e militante. Pablo Gonzles Casanova15

    identificou as causas da rebelio em um artigo publicado em 2006. Armando Bartra e

    Gerardi Otero16tambm comentam a histria dos povos indgenas no Mxico ps-colonial

    para, logo aps, discutirem conceitos que ajudam a entender a formao do EZLN.

    11 ROJAS, C. Aguirre [et. al.]. Chiapas en perspectiva histrica. El Viejo Topo, 2001.12 Ibidem,p. 913 ESPONDA, Juan Gonzlez e BARRIOS, Elizabeth Plito. Notas para comprender el orgen de la rebelin

    zapatista. In: Revista Chiapas, Mxico, Ediciones Era, n. 1, 1994. Disponvel em:http://www.revistachiapas.org/No1/ch1gonzalez-polito.html. Acesso em 28/06/2012 s 23h55min.

    14 GENNARI, Emilio.EZLN: passos de uma rebeldia. So Paulo: Expresso Popular, 2005.15 CASANOVA, Pablo Gonzles. Causas da rebelio em Chiapas.In: Revista O Olho da Histria, Salvador,

    n. 3, dez. 2006. Disponvel em: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/03casano.html. Acesso em:29/06/2012, s 0h38min.

    16 BARTRA, Armando e OTERO, Gerardo. Movimientos campesinos em Mxico: la lucha por la tierra, laautonomia y la democracia. In: MOYO, Sam e YERO, Paris (coord.). Recuperando la tierra, el

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    13/63

    13

    Pesquisas que contm uma anlise historiogrfica mais profunda sobre a temtica ainda

    so incipientes. Carlos Barros17 um dos contribuidores nesse sentido, tendo escrito um

    artigo que ressalta a importncia de Chiapas para a historiografia. O prprio trabalho de

    Carlos Aguirre Rojas em conjunto com Bolvar Echeverra, Carlos Montemayor e Immanuel

    Wallerstein, j citado anteriormente, pode ser includo nessa perspectiva. No Brasil,

    recentemente Claudia Wasserman18escreveu um artigo buscando interpretar o movimento

    chiapaneco atravs da viso de longa durao dos acontecimentos advogada por Aguirre

    Rojas. Alm desse trabalho, podemos citar a dissertao de mestrado de Edson Antoni19que

    analisa o EZLN e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra brasileiro a partir do

    conceito de novo movimento social. No mbito mais especfico de estudos que versem sobre

    a questo da memria e identidade no EZLN, Carlos Aguirre Rojas figura, mais uma vez,

    entre os autores com o texto Mitos y olvidos en la histria oficial de Mxico20. Sofa Rojo

    Arias21disserta sobre os usos da histria e da memria por parte do grupo guerrilheiro de

    Chiapas, bem como Daniela Albarrn22 que debate tambm o conflito existente entre o

    EZLN e o Estado Mexicano pela memria de Emiliano Zapata.

    Sobre o Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari encontrou-se poucos estudos. O artigo de

    Fabola Escrzaga23 reconstri a trajetria do grupo e avalia a sua importncia para a

    organizao dos povos aimras e quchuas na Bolvia. A autora faz isso baseada em

    documentos confeccionados pelo movimento e entrevistas com ex-membros como Felipe

    Quispe (indgena aimra e principal idelogo do EGTK), Raquel Gutirrez e lvaro Garcia

    resurgimiento de movimientos ruarales em Mxico, Asia y Amrica Latina. Buenos Aires: CLACSO, pp.

    401-128.17 BARROS, Carlos. Chiapas y la escritura de la historia. In: Revista Clio y Asociados, n. 5, 2000.

    Disponvel em:http://bibliotecavirtual.unl.edu.ar:8180/publicaciones/bitstream/1/2467/1/CLIO_5_2000_pag_58_75.pdf.Acesso em: 29/06/2012, s 01h08min.

    18 WASSERMAN, Claudia. Op. Cit.19 ANTONI, Edson. Os novos movimentos sociais latino-americanos: o Exrcito Zapatista de Libertao

    Nacional e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.

    20 ROJAS, Carlos Aguirre. Mitos y olvidos en la histria oficial del Mxico.Mxico D.F., Ediciones Era,2004.

    21 ARIAS, Sofa Rojas.Los usos de la histria: memoria y olvido en los comunicados del EZLN. In: PerfilesLatinoamericanos, ano 5, n. 9, 1997. Disponvel em:http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=11500910. Acesso em: 29/06/2012, s02h32min.

    22 ALBARRN, D. Op. Cit.23 ESCRZAGA, Fabola. Op. Cit.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    14/63

    14

    Linera. Jaime Iturri Salmn24 e Ayar Quispe25 tambm publicaram livros sobre o

    movimento26. No entanto, um trabalho de cunho historiogrfico que analise a questo da

    memria e da identidade no movimento boliviano ainda no existe.

    Com o intuito de contribuir para a historiografia que pensa os movimentos indgenas na

    Amrica Latina, remete-se, novamente, a algumas observaes pertinentes da Histria

    Comparada para justificar tanto a viabilidade quanto a validade da anlise procedida. Jos

    DAssuno Barros afirma, ao falar sobre os objetos a serem comparados, que a variao na

    escala de comparao permite estudar inclusive grupos tnicos e identitrios. Assim, com

    um foco menos abrangente da metodologia descrita, analisando objetos como sujeitos que se

    sentem pertencentes a uma organizao especfica, pode-se destrinchar as relaes tnicas e

    identitrias estabelecidas por esses, que de uma escala nacional, por exemplo, seriam

    imperceptveis. Fernando Devoto e Boris Fausto em seu livro Argentina Brasil: 1850

    2000: un ensayo de Historia Comparada27 advogam a favor de um estudo comparativo a

    partir de uma escala mais restrita ao dizer que una historia verdaderamente social solo es

    factible en la escala pequea, es ah donde pueden indagarse especficamente los hombres en

    sus acciones, creencias, comportamientos concretos28. Por isso afirmam que seu livro (uma

    anlise a nvel nacional de duas situaes) um incentivo, um ponto de partida da Histria

    Comparada e no um ponto de chegada.

    Nesse sentido, acredita-se que um estudo histrico que compare os casos do EZLN e do

    EGTK atravs da questo da memria e identidade necessrio pela contribuio

    historiografia latino-americana dos movimentos indgenas e vivel, pois, se ver mais

    tarde, que o mtodo da Histria Comparada auxilia no estudo de objetos como os deste

    trabalho. Alm disso, parece importante prestar a ateno no que Carlos Barros chamou de o

    ressurgimento do sujeito social na historiografia, segundo ele o movimento de Chiapasmarca esse fenmeno, pois a partir dos anos 1990 houve um maior interesse dos estudiosos

    acadmicos para com a anlise de conflitos, revolues e revoltas sociais 29. Em minha

    24 SALMN, Jaime Iturri.EGTK: la guerrilla aymara em Bolivia. La Paz, Bolivia: Ediciones Vaca Sagrada,1992.

    25 QUISPE, Ayar.Los tupakataristas revolucionrios. Editorial Wilka, 2005.26 Infelizmente, esses dois livros no puderam ser acessados, pois no foram publicados no Brasil e no foi

    possvel traz-los da Bolvia.27 DEVOTO, Fernando e FAUSTO, Boris. Argentina Brasil: 1850 2000: un ensayo de Historia

    Comparada. 1 ed., Buenos Aires: Sudarmericana, 2008.28 Ibidem,p. 10.29 BARROS, Carlos. Op. Cit.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    15/63

    15

    opinio, o movimento indgena campons mexicano, assim como o EGTK e tantos outros,

    marca no somente a volta do sujeito social historiografia, mas tambm a capacidade de

    expresso e organizao de grupos que historicamente foram despossudos de espaos para

    expor seus pensamentos. O que se destaca nessa pesquisa o papel de protagonistas

    assumido pelas populaes autctones da Amrica Latina durante o neoliberalismo. Como

    defende Fabola Ezcrzaga, as transformaes produtivas que ocorreram entre os anos 1980

    e 1990 geram uma demanda cada vez maior por recursos naturais e a incorporao de

    territrios antes no centrais para o mercado mundial. Dessa forma,

    Las poblaciones indgenas antes olvidadas, particularmente las asentadas

    en los territorios selvticos [...] se convirtieron as en un actor relevante

    para el sistema internacional, en tanto que los recursos naturales de los quehan sido depositrios durante siglos, adquirieron un valor considerable parael mercado internacional y se volvieron condiciados, por ejemplo, loshidrocarburos y otros minerales, el agua, la biodiversidade, el oxignio,etc.30

    Esse processo tem como resultado, entre outras consequncias, a entrada de novos

    sujeitos na luta contra o capitalismo (como os movimentos de indgenas, mulheres e jovens,

    entre outros), substituindo o protagonismo que tiveram a classe trabalhadora e os setores

    mdios na conquista de mudanas importantes numa etapa anterior. nesse sentido que

    Franois Hartog e Jacques Revel apontam a importncia social que os usos polticos do

    passado tm no cenrio atual:

    Los usos polticos del pasado han permitido la reapropriacin de lahistoria a grupos que han sido [...] en particular [...] tradicionalmentedeposedos de la capacidad de expresarse. De tal manera que hoy lespermite participar en la elaboracin de su propria historia31

    A pesquisa est composta por trs captulos. No captulo 1 apresenta-se os conceitos

    tericos de memria e identidade apropriados das formulaes de Michael Pollak,

    descrevendo-se que elementos devem ser levados em conta no processo de construo das

    memrias, principalmente quando se tratam das de carter coletivo (como as constitudas

    pelo EZLN e pelo EGTK). Ainda exposta a metodologia da Histria Comparada que

    empregada na anlise a fim de demonstrar quais so os objetos de estudo que podem ser

    comparados e de que forma eles devem ser analisados, partindo das perguntas propostas por

    Jos D'Assuno de Barros: o que comparar? E como comparar? Alm disso, num segundo

    30 ESCRZAGA, Fabola. La emergencia indgena contra el neoliberalismo. In: Poltica y Cultura, otoo2004, nm. 22, pp. 101-102.

    31 HARTOG, Franois e REVEL, Jacques , 2001 apud. ALBARRN, Daniela, Op. Cit.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    16/63

    16

    momento do captulo 1, so abordadas as semelhanas e diferenas mais patentes entre os

    dois movimentos para justificar a viabilidade de uma pesquisa que compare a relao entre

    memria e identidade, a partir da referncia a dois personagens histricos, presente no

    EZLN e no EGTK.

    O segundo captulo foca-se na anlise da construo das memrias de cada um dos

    movimentos, apresentando quais dos elementos pensados por Pollak para a construo da

    memria demostram semelhanas e quais demonstram diferenas entre os grupos. Sem

    perder de vista a centralidade das figuras histricas de Emiliano Zapata (para o caso do

    EZLN) e Tupak Katari (para o caso do EGTK), analisa-se as referncias ao passado e as

    formas de articulao dessa memria com as demandas que os grupos apresentam como seus

    objetivos de luta, bem como as disputas existentes em torno dessas memrias.

    No terceiro captulo, trata-se de entender como esses elementos de memria so

    trabalhados pelo EZLN e pelo EGKT no que Pollak chamou de enquadramento da

    memria com o objetivo de compreender quais identidades so criadas e reforadas no

    intuito de manter os seus componentes agregados para a luta.

    Por fim, a concluso da pesquisa traz os resultados da anlise, em que possvel

    perceber o modo com que o EZLN e o EGTK utilizam-se das figuras histricas que inspiram

    seus movimentos para criarem e manterem uma identidade de carter combativo,

    observando-se, tambm, de que maneira essa compreenso pode contribuir para os estudos

    dos movimentos indgenas na Amrica Latina.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    17/63

    17

    CAPTULO 1: Porque comparar o EZLN e o EGTK a partir da relao entre

    memria e identidade?

    1.1 Teoria e Metodologia

    A anlise dos usos do passado atravs de personagens histricos feito pelos movimentos

    indgenas EZLN e EGTK realizou-se a partir de dois conceitos: memria e identidade.

    Ambos foram retirados da teorizao de Michael Pollak contida no artigo Memria e

    Identidade social32. A opo por um estudo comparativo levou ao estudo das formulaes

    metodolgicas da Histria Comparada. Utilizou-se, principalmente, do j citado artigo de

    Jos DAssuno de Barros intituladoHistria comparadada contribuio de Marc Bloch

    construo de um moderno campo historiogrfico33.

    A memria, pensada por Pollak, deve ser entendida no somente como um fenmeno

    individual. O autor mostra que j nos anos 1920-1930 Maurice Halbwachs34 havia

    demonstrado que a memria tambm um fenmeno construdo coletivamente e que est

    sujeito a mudanas e transformaes (ainda que ressalte que uma parte da memria quase

    irredutvel, pois nesse ponto o processo de estruturao acontece mais fortemente). Essas

    mudanas se do devido s necessidades apresentadas pelo presente. Ao investigar os usos

    da histria e do passado feitos pelo EZLN e pelo Estado mexicano, Daniela Albarrn35

    esclarece o modo como a Histria oficial forjou a figura de Zapata para justificar a nao e

    as instituies nacionais, resgatando-o como heri de um movimento que finalmente

    transform a Mxico hacia las intituiciones democrticas 36e deixando de lado seu lado

    rebelde e suas intenes de transformao radical. Esses ltimos aspectos so justamente os

    que sero apropriados pelo movimento zapatista surgido em 1994, acentuado pontos do

    programa social idealizado por Emiliano Zapata, como a reforma agrria. Esse uso da

    memria de Zapata visa criar uma identidade que articule para a luta em busca de direitos

    indgenas e da concretizao de reivindicaes dos camponeses mexicanos. Assim, pode-se

    perceber claramente nesse conflito entre o EZLN e o Estado mexicano as flutuaes que

    sofre a memria em decorrncia das demandas que apresentam o presente, levando-se

    32 POLLAK, Michael.Memria e Identidade social. In: Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5,n. 10, 1992, p. 200-212

    33 BARROS, J. Op. Cit.34 HALBWACHS, Maurice.A memria coletiva. So Paulo, 2 ed. : Centauro, 200635 ALBARRN, Daniela. Los usos de la memoria y de la historia del zapatismo en un conflicto actual:

    origen y surgimiento del EZLN 1994. Disponvel em: http://nuevomundo.revues.org/30312. Acesso em:26/06/2012, s 14h58min.

    36 Ibidem, p. 5

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    18/63

    18

    tambm em conta os objetivos a serem alcanados pelos sujeitos que se apropriam do

    personagem histrico, nesse caso.

    O embate apresentado por Albarrn leva a pensar em outra considerao importantefeita por Pollak. A memria um campo de disputa. A luta em torno do que ser lembrado,

    comemorado e estruturado na memria de uma sociedade sempre um ponto que deve ser

    levado em conta, quando se trata dessa temtica. Assim, deve-se entender a memria como

    lugar e objeto de disputa nas relaes de poder em confronto na realidade social 37. Esse

    carter conflitivo perpassa a anlise feita nessa pesquisa, j que tanto o caso da EZLN

    quanto do EGTK podem ser entendidos a partir do conceito de memrias subterrneas

    teorizado por Pollak, que identifica uma oposio entre essas e a memria oficial:

    Ao privilegiar a anlise dos excludos, dos marginalizados e das minorias, ahistria oral ressaltou a importncia de memrias subterrneas que, comoparte integrante das culturas minoritrias e dominadas, se opem Memria oficial, no caso a memria nacional. Num primeiro momento,essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados umaregra metodolgica e reabilita a periferia e a marginalidade. [...] Elaacentua o carter destruidor, uniformizador e opressor da memria coletivanacional. Por outro lado, essas memrias subterrneas que prosseguem seutrabalho de subverso no silncio e de maneira quase imperceptvel afloramem momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memria

    entra em disputa. Os objetos de pesquisa so escolhidos de prefernciaonde existe conflito e competio entre memrias concorrentes. 38

    Pollak ainda nos traz os elementos que considera constitutivos da memria tanto

    individual quanto coletiva. Primeiramente, os acontecimentos vividos pessoalmente. Em

    segundo lugar, os acontecimentos vividos indiretamente, ou seja, acontecimentos vividos

    pela coletividade do grupo a que a pessoa pertence ou at mesmo fatos que situam-se em

    outro espao-tempo, sendo

    perfeitamente possvel que, por meio da socializao poltica, ou dasocializao histrica, ocorra um fenmeno de projeo ou de identificaocom determinado passado, to forte que podemos falar numa memriaquase herdada39.

    Esse aspecto, juntamente com o terceiro aspecto que vem a seguir, de alta relevncia para

    entender a formao de uma identidade de luta nos movimentos analisados na pesquisa.

    37 PADRS, Enrique Serra [et. all] (orgs.).A Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): histria e memria. Porto Alegre: Corag, 2010. - v.2

    38 POLLAK, Michael. Memria, Esquecimento e Silncio. In: Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro,vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

    39 POLLAK, Michael. Op. Cit., 1992

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    19/63

    19

    Tanto a memria de Emiliano Zapata no Mxico quanto a de Tupak Katari na Bolvia so,

    de certa forma, memrias herdadas pelos componentes dos grupos. Em terceiro lugar, fazem

    parte da constituio da memria pessoas, personagens. A mesma situao do segundo

    elemento pode ser apresentada aqui, pois essas pessoas e personagens no necessariamente

    so contemporneas do indivduo ou grupo que constri sua identidade em referncia a eles.

    Por ltimo, Pollak afirma que os lugares tambm so importantes componentes. So locais

    ligados a uma memria. O estado de Morelos, no Mxico, onde Zapata nasceu e de onde

    liderou os camponeses da regio pode ser um exemplo no caso do EZLN, assim como o

    estado de Aguascalientes, onde, no ano de 1914, ocorre a Conveno Nacional

    Revolucionaria que reunira as foras insurgentes da Revoluo Mexicana e que, mais tarde,

    empresta seu nome para o EZLN intitular os espaos de discusso por ele criados em

    Chiapas. A cidade de La Paz (cercada por Katari durante sua rebelio), na Bolvia e a de El

    Alto (regio de onde Katari comandou o cerco a La Paz) so os exemplos mais patentes para

    o caso do EGTK.

    Quando tratamos de uma memria herdada pode-se dizer que h uma ligao muito

    mais prxima dessa com o sentimento de identidade. Para entender essa relao necessrio

    ter em mente que a identidade

    o sentido da imagem de si, para si, e para os outros. Isto , a imagem queuma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela prpria, a imagem queela constri e apresenta aos outros e a si prpria, para acreditar na suaprpria representao, mas tambm para ser percebida da maneira comoquer ser percebida pelos outros 40.

    Nesse sentido, Pollak elenca trs elementos essenciais na construo da identidade. O

    primeiro deles a unidade fsica, que, em outras palavras, a percepo de ter fronteiras

    fsicas. Aqui nos interessa o sentido coletivo desse elemento, que a noo de

    pertencimento a um grupo. Em segundo lugar, h a continuidade do tempo e em terceiro, o

    sentimento de coerncia que a impresso de que os componentes que constituem o

    indivduo esto fortemente unificados. Os trs elementos descritos acentuam o forte papel da

    memria como fator de suma importncia para a construo da identidade, j que ela

    influencia fortemente no sentimento de continuidade e de coerncia.

    Em funo da abrangncia de elementos que Pollak elenca para constituio de uma

    identidade, a pesquisa foca-se no somente em referncias diretas s figuras de Emiliano

    40 Ibidem,p. 5

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    20/63

    20

    Zapata (no caso do EZLN) e de Tupak Katari (no caso do EGTK) nas documentaes.

    necessrio prestar ateno em elementos citados pelos componentes dos movimentos que

    tem relao com a memria e que, de alguma maneira, reforam as identidades indgenas

    baseadas nos personagens histricos em questo.

    Conforme j colocado, a metodologia empregada na pesquisa provm do campo da

    Histria Comparada. Para que a utilizao desse mtodo seja satisfatria, antes de qualquer

    coisa deve-se estabelecer a diferena entre Histria Comparada e o simples comparativismo

    histrico. Jos DAssuno de Barros claro ao explicar essa distino:

    Comparar, elencar semelhanas e diferenas e estabelecer analogiasso naturalmente aes to familiares ao historiado como contextualizar osacontecimentos ou dialogar com suas fontes. Mas para falarmos em ummtodo comparativo preciso (...) ultrapassar aquele uso mais prximoda intuio e da utilizao cotidiana da comparao para alcanar um nvelde observao e anlise mais profundo e sistematizado, para o qual o quese pode comparar e o como se compara tornam-se questes relevantes,fundadoras de um gesto metodolgico 41.

    Entendida essa diferena, devemos pensar em O que se pode comparar?. Para

    estabelecer os objetos a serem observados a partir de um estudo comparativo, Barros recorre

    a alguns requisitos elencados por Marc Bloch para a constituio de uma Histria

    Comparada que faa sentido. Dois aspectos irredutveis devem ser levados em conta: deve

    haver certa similaridade nos fatos e tambm certa dessemelhana nos ambientes em que

    ocorrem esses fatos. Os motivos pelos quais os objetos de estudo aqui escolhidos podem ser

    analisados atravs da Histria Comparada sero tratados mais adiante no texto.

    O como comparar? pode ser respondido a partir de dois caminhos, tambm

    proposto por Marc Bloch, que podem ser seguidos pelos historiadores dispostos a utilizar o

    mtodo da Histria Comparada. O primeiro deles a anlise comparativa entre sociedades

    distantes no tempo e espao; o segundo a comparao entre sociedades com certa

    contiguidade no tempo e no espao (a qual apresenta o conjunto de procedimentos adequado

    para estudar o problema de pesquisa em questo). Escolhido um desses caminhos, se deve

    ter em mente as formas de percorr-lo. Em primeiro lugar, pode-se iluminar uma situao

    em parte desconhecida atravs de uma realidade melhor estudada, fazendo analogias e

    percebendo diferenas e semelhanas entre elas. Em segundo lugar, pode ser realizada a

    iluminao recproca em que se esclarecem duas realidades desconhecidas de modo a que

    41 BARROS, J. Op. Cit., p. 12

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    21/63

    21

    os traos fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro 42. Pode-se, por

    ltimo, analisar dois objetos dinmicos em transformao, percebendo como os elementos

    sofrem mudanas a fim de achar um padro de variao. O estudo comparativo realizado

    nessa monografia feito atravs da primeira possibilidade exposta, j que o movimento dos

    indgenas mexicanos conta com uma ateno muito maior dos estudiosos do que a guerrilha

    boliviana inspirada em Tupak Katari. No entanto, ainda que tenhamos alguns trabalhos que

    analisam a apropriao feita pelo EZLN da figura de Zapata, essa temtica da relao entre

    memria e identidade no muito aprofundada tanto para o caso mexicano quanto para o

    caso boliviano, o que permite afirmar que a iluminao recproca de que fala Barros,

    tambm fornece elementos importantes para essa anlise.

    Por fim, cabe ressaltar que um bom estudo de Histria Comparada deve contar com

    um problema, sem isso ela no passar de um simples comparativismo histrico. Jos

    DAssuno de Barros justifica essa afirmao demonstrando que a Histria Comparada

    consiste

    na possibilidade de se examinar sistematicamente como um mesmoproblema atravessa duas ou mais realidades histrico-sociais distintas, duasestruturas situadas no espao e no tempo, dois repertrios de

    representaes, duas prticas sociais, duas histrias de vida, duasmentalidades, e assim por diante. Faz-se por mtua iluminao de doisfocos distintos de luz, e no por mera superposio de peas 43.

    1.2 Semelhanas e diferenas entre o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional e o

    Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari

    Seguindo as diretrizes propostas por Barros, necessrio estabelecer quais so as

    semelhanas e diferenas entre o EZLN e o EGTK observados a partir da tica da Histria

    Comparada, a fim de justificar a escolha dos dois movimentos como objetos de estudo para

    essa pesquisa.

    As semelhanas entre os dois movimentos podem ser percebidas claramente.

    Primeiramente, devemos sublinhar que ambos so de carter indgena. Essa caracterstica

    aparece tanto na composio do movimento como tambm nas reivindicaes expostas na

    documentao produzida por ambos. Ainda que a luta seja voltada para a mudana na

    situao dos povos autctones dos dois pases, tanto o EZLN como a luta armada dos

    42 Ibidem,p. 1043Ibidem,p. 17

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    22/63

    22

    insurgentes bolivianos tem em sua constituio a presena de no indgenas (referidos como

    mestios na bibliografia consultada). No caso dos zapatistas, a origem da guerrilha se

    encontra numa parcela de jovens que participavam de protestos estudantis no Mxico ao

    final dos anos 1960. Aps os conflitos entre o governo e os estudantes ocorridos na Praa

    das Trs Culturas da Cidade do Mxico em 1968 - resultando em morte de alguns

    militantes, h uma diviso nas lideranas estudantis. Segundo Emilio Gennari, alguns se

    integram ao sistema, outros se engajam em movimentos sociais e uma terceira parte passa a

    ter como opo de luta a guerrilha. Desses ltimos, uma parcela de guerrilheiros estabelece

    que sua luta no visa uma ao rpida que busca tomar o poder, mas sim agir de acordo

    com as pretenses do povo, sem se importar o quanto isso demore44. Dessa forma, em

    novembro de 1983, cinco guerrilheiros chegam selva de Chiapas, dispostos a aprender a

    viver num ambiente montanhoso e hostil e a contatar as comunidades indgenas locais. A

    partir desse contato paulatinamente se estabelece um acordo entre as duas partes, no qual os

    guerrilheiros iro treinar os jovens dos povoados para defender-se das aes de alguns

    proprietrios rurais da regio e os indgenas fornecem suprimentos para a manuteno da

    vida na selva. Assim,

    pouco a pouco, os indgenas se tornam maioria no interior do EZLN e isso

    comea a influenciar a sua vida interna. Na medida em que os contatosexigem que se aprenda a lngua das vrias etnias, os smbolos e os sentidosque estes tm na comunicao, os guerrilheiros percebem a necessidade deestabelecer um dilogo com as comunidades, com suas culturas milenares,suas formas de luta e sua organizao comunitria45.

    J para o caso do EGTK, percebe-se o encontro de dois grupos distintos, mas j

    previamente organizados para promover a luta armada. O primeiro grupoe que acaba por

    ser mais influente no movimento de ncleo indgena, composto por camponeses aimras

    e quchuas, no qual se destaca a figura de Felipe Quispe como idealizador da luta armada

    indgena boliviana. O segundo grupo era composto por mestios, jovens bolivianos que

    estudavam no Mxico e foram influenciados pelas revolues em curso na Amrica Central

    (El Salvador, Guatemala e Nicargua). A presena de alguns revolucionrios salvadorenhos

    na Universidade Nacional Autnoma do Mxicoonde muitos desses bolivianos estudavam

    ajuda na formao poltica dos que iriam compor a vanguarda mestia do EGTK. O grupo

    era integrado por lvaro e Ral Garcia Linera, Juan Carlos Pinto Quintanilla, Carlos Lara

    Ugarte, Raquel Gutirrez e Fiorela Caldern (as duas ltimas de nacionalidade mexicana).

    44 GENNARI, Emilio. Op Cit, 2005, p.2045 Ibidem, p.22

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    23/63

    23

    Fbiola Ezcrzaga descreve o incio da atividade poltica desses jovens e suas influncias

    tericas:

    Los jvenes iniciaron su actividad poltica cada uno por su cuenta endiversas celulas salvadoreas que trabajaban em Mxico (...). Durante elao 1983 de manera paralela a su participacin con distintos grupossalvadorenhos crearon um crculo de estudios marxistas con otrosbolivianos, salvadoreos y argentinos. Su preparacin terico-polticaconsisti em la lectura de Marx y Lenin, el estudio de la historia bolivianay el seguimento de los acontecimentos de su pas en la prensa. Suacercamento a la problemtica indgena andina la hicieron a travs de lalectura de Maritegui, segn Raquel Gutirrez; y de Wankar, segn lvaroGarca46

    Entre os anos de 1983 e 1984, esses estudantes desembarcam na Bolvia e criam sua prpria

    organizao, chamada de Clulas Mineras de Base, voltada para discusses sobre a condio

    poltica do pas e para a preparao da luta armada.

    Em julho de 1985, a vanguarda mestia apresentada por um indgena chamado

    Juan Rodrguez Guagamas a um grupo de aimras e quchuas que tem como inteno

    iniciar a luta armada de carter tnico a partir das organizaes sindicais bolivianas. Esse

    grupo se intitulava Ayllus Rojos e inspirava-se no pensamento indianista47. A principal

    liderana dentro do Ayllus Rojos era Felipe Quispe, sua proposta recuperava a figura de

    Tupak Katari, e sua rebelio entre os anos 1781 e 1783 para, a partir disso, formular uma

    estratgia de guerrilha em que a comunidade indgena protagonista. Forma-se, a partir

    desse encontro, o Exrcito Guerrilheiro Tupak Katari, em que h uma clara diviso de

    trabalho: a vanguarda mestia seria responsvel por recrutar os trabalhadores das minas e

    das regies urbanas, enquanto a vanguarda indgena tinha a misso de organizar e preparar

    as comunidades de indgenas rurais, atravs, principalmente, das organizaes sindicais de

    camponeses bolivianos.

    Em 29 de agosto de 1985, um episdio ir marcar uma mudana dentro do EGTK.

    Nesse dia o presidente Victor Paz Estensoro

    lanza en su tercer perodo de gobierno el Decreto Supremo 21060 queprivatiza la mineria del estao y relocaliza (despide) a 23 mil mineros de la

    46 ESCRZAGA, Fabola. El Ejrcito Guerrillero Tupak Katari (EGTK), la insurgncia aymara en Bolivia ,p.5

    47 O pensamento indianista surge com as ideias de Fausto Reinaga e a grosso modo afirma que ascategorias de classes ocidentalizadas (burguesia, proletariado e campesinato) no servem para explicar arealidade boliviana. Os que trabalham nas minas, nas fbricas, no campo so ndios e eles no lutam porsalrios e muito menos por sua assimilao sociedade branca e, sim, pela justia racial, por sua liberdade.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    24/63

    24

    Corporacin Minera Boliviana (Comibol) la empresa estatal construida apartir de la nacionalizacin48

    A partir desse decreto, o proletariado mineiro se dissipa e ir dedicar-se a outras atividades

    econmicas (como a plantao de coca e o comrcio informal na cidade de La Paz).Portanto, a medida de Paz Estensoro tem uma consequncia direta nos planos do EGTK: o

    fim do trabalho de conscientizao e preparao para a luta armada que a vanguarda mestia

    fez com os mineiros bolivianos. O programa do movimento passa a voltar-se mais

    especificamente para a organizao das comunidades indgenas com a inteno de promover

    a autodeterminao dos povos autctones. De certa forma, a vanguarda mestia

    subordinada vanguarda indgena e, como afirma Escrzaga,

    era sobre todo la oportunidad de reconstruir una identidad indgenadesenterrando su proporia versin de la historia, reinvindicando su herenciaradical, afirmando su identidade indgena y organizacin comunal, sucultura y formulando a partir de estos elementos un proyecto futuro49.

    Ao tomar conhecimento da constituio das duas organizaes guerrilheiras50, pode-

    se notar a semelhana na sua composio (a presena de indgenas e no indgenas) e a

    semelhana na via escolhida para atingir seus objetivos (a luta armada). Ao mesmo tempo,

    observam-se tambm diferenas na maneira como se originam: o EZLN construdo

    lentamente atravs de uma ao conjunta entre dois grupos ainda no organizados para a lutaarmada, enquanto que o EGTK tem sua formao no encontro de dois coletivos com certa

    organizao prvia e com caminhos distintos para se chegar ao objetivo da tomada de poder

    (a vanguarda mestia apostando no trabalho com o proletariado urbano e mineiro, e a

    vanguarda indgena na preparao dos camponeses que compunham os sindicatos), mas que

    entendem que uma aliana entre suas correntes pode dar bons frutos ao processo

    revolucionrio na Bolvia.

    necessrio sublinhar outra diferena importante entre os objetivos e mtodos de

    luta dos dois movimentos. Como j visto, as reivindicaes de ambos so direcionadas, de

    modo geral, ao fim da opresso imposta aos indgenas do Mxico e da Bolvia. No entanto, o

    objetivo final do EGTK difere-se do que o EZLN toma como um resultado satisfatrio da

    48ESCRZAGA, F.El Ejrcito Guerrillero Tupak Katari (EGTK), la insurgncia aymara en Bolivia,p. 649Ibidem,p. 750Para saber mais sobre a formao do EGTK consulte ESCRZAGA, F. El Ejrcito Guerrillero Tupak

    Katari (EGTK), la insurgncia aymara en Bolivia. Disponvel em:www.pacarinadelsur.com/home/oleajes/441-el-ejercito-guerrillero-tupak-katari-egtk-la-insurgencia-aymara-en-

    bolivia. Uma noo mais ampla da montagem e manuteno do EZLN pode ser encontrada em GENNARI,Emilio.Op. Cit., 2005.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    25/63

    25

    sua mobilizao. O grupo armado mexicano deixa claro desde sua primeira manifestao

    pblica51 que a guerra que declaram contra o governo em funo da necessidade das

    comunidades indgenas manterem sua existncia e impedir el saqueo de nuestras [de suas]

    riquezas naturales en los lugares controlados por el EZLN52. Alm disso, o que os rebeldes

    mexicanos desejam obter em ltima instncia o reconhecimento do direito de ser

    indgena, entendido como a possibilidade de que os povos autctones possam ter uma

    organizao diferenciada na qual seja possvel decidirem por si mesmos os rumos que

    devem tomar, de acordo com as tradies e formas de sociabilidade presente nas suas

    comunidades ancestrais. Para isso, pedem a insero do direito autodeterminao na

    Constituio Poltica dos Estados Unidos Mexicanos e abrem dilogo com a sociedade civil

    e o governo em diversos momentos. Essa perspectiva fica clara em alguns trechos de

    documentos do movimento, como na Cuarta Declaracin de La Selva Lacandona: la nica

    forma de incorporar, con justicia y dignidade, a los indgenas a la Nacin, es reconociendo

    las caractersticas prprias en su organizacin social, cultural y poltica53. E na Quinta

    Declaracin de la Selva Lacandona:

    [...] hoy volvemos a poner en primer lugar, por encima de nuestrosufrimiento, por encima de nuestros problemas, por encima de lasdificultades, la exigencia de que reconozcan los derechos de los indgenascon um cambio en la Constituicin Poltica de los Estados UnidosMexicanos que les asegure a todos el respeto y la posibilidad de luchar porlo que les pertenece: la tierra, el techo, el trabajo, el pan, la medicina, laeducacin, la democracia, la justicia, la libertad, la independencia nacionaly la paz digna54.

    O EGTK luta tambm pelo direito de autodeterminao dos povos indgenas

    bolivianos, mas a diferena bsica em relao ao caso do EZLN de que os guerrilheiros do

    pas andino no mostram a tentativa de abrir dilogo com o governo para alcanar esse fim,

    muito pelo contrrio, sua inteno promover uma mudana estrutural, em que os indgenas

    iro estabelecer as novas leis da Bolvia. Felipe Quispe demonstra essa inteno em Tupak

    Katari vuelve...carajo:

    Nosostros los nuevos Aymaras, Qhiswas [quchuas], Tupiwarines y otrosnaciones autctonas del Qullasuyu[55] vamos a tomar el poder poltico, con

    51 EZLN,Primera Declaracin de la Selva Lacandona, janeiro de 1994.52 Ibidem,p.253 EZLN, Cuarta Declaracin de la Selva Lacandona,janeiro de 1996, p. 354 EZLN, Quinta Declaracin de la Selva Lacandona,julho de 1998, p.755 Marcelo Grondin define o Qullasuyu como o territrio dos collas [aymars] conquistada pelos incas

    (GRONDIN, p.16). J para Felipe Quispe o Qullasuyu a ptria indgena tomada pelos colonizadoresespanhis e denominada pelos no ndios de Bolvia.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    26/63

    26

    la fuerza de las armas; a nuestros opressores les tocar obedecerrnos anuestras leyes naturales [...]. Nuestras leyes no sern para esclavizar a losblancos, mestizos europeizados [...]. Pondremos la ley de igualdad dederechos para todos los que viven y trabajen en nuestra ptria Qullasuyu(Bolivia)56

    Portanto, o EGTK encara a luta armada como uma forma de tomada do poder,

    enquanto o EZLN mantm a luta armada como autodefesa para a conquista do direito

    existncia dos indgenas, ainda que o dilogo e a negociao assumam o papel central no

    modo de ao do grupo mexicano.

    A ltima semelhana a ser considerada e tambm a mais relevante para os propsitos

    do trabalho aqui desenvolvido, a de referncia que as duas organizaes fazem a

    personagens histricos. Emiliano Zapata e seus ideais de justia social so recuperados e

    atualizados pelo EZLN de forma a a partir de uma perspectiva de continuidade histrica

    justificar a sua luta e reforar a identidade do grupo. Da mesma maneira, ocorre a

    apropriao por parte do EGTK do personagem Tupak Katari, indgena aymara que

    apresenta posicionamentos radicais no programa social de sua rebelio, da qual o resultado

    principal seria a retomada do poder por parte dos povos autctones e a eliminao das

    estruturas colonizadoras espanholas. atravs do uso do passado desses dois lderes de

    movimentos populares que os guerrilheiros mexicanos e bolivianos podem colocar osindgenas, assim como outros grupos oprimidos, na posio de sujeitos da histria e articular

    elementos de identidade, reforando-a para mobilizar o grupo para a luta armada.

    Cabe ainda neste espao algumas ponderaes em relao s fontes utilizadas. Os

    documentos consultados apresentam, da mesma maneira que os prprios movimentos,

    algumas diferenas entre si, bem como algumas semelhanas. De modo geral, necessrio

    ressaltar que a anlise se baseou em comunicados e declaraes oficiais, ou seja, em

    discursos escolhidos dentro da organizao dos grupos guerrilheiros como os discursos que

    viriam a pblico para mostrar suas intenes. O limite imposto pelo carter dessas fontes

    impede perceber os conflitos em torno da construo dos discursos que iro ser publicados

    representando a voz do EZLN e a voz do EGTK. No entanto, os pronunciamentos oficiais

    indicam qual a imagem que esses movimentos querem construir de si em relao aos outros,

    tornando-se importantes fontes para os problemas que envolvem memria e identidade.

    56 QUISPE, Felipe. Guerra Revolucionaria de Ayllus (1781-1783). In: Tupak Katari vuelve...carajo. EdicionesOfensiva Roja, 1988, pp. 151-152

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    27/63

    27

    As declaraes da Selva Lacandona entre os anos de 1994 e 200157 de autoria da

    organizao inspirada em Emiliano Zapata serviram como fontes para a pesquisa, bem como

    um comunicado do dia 6 de maro de 200158, lido em pblico na cidade de Cuernavaca na

    provncia de Morelos, Mxico importante local de ao de Emiliano Zapata durante a

    Revoluo Mexicana. Todos esses textos apresentam um discurso bem estruturado e em

    sintonia com os apelos da sociedade civil. Essa caracterstica ressaltada por Carlos

    Monsivais, que explica o impacto do surgimento do EZLN no Mxico:

    El Primer Manifiesto de la Selva Lacandona es dogmtico a la antigua y noconvence a nadie del atractivo de la via armada ni de sus posibilidadessiquiera remotas. Pero al difundirse los hechos se genera en Mxico unacorriente de comprensin. Es evidente la miseria totalizadora de los indios

    de Chiapas y del pas entero.59

    Quando Carlos Salinas de Gortari (presidente mexicano em 1994) demostra sua

    inteno de aniquilar os zapatistas, muitas pessoas saem s ruas no dia 8 de janeiro de 1994

    para protestar e defender o dilogo do governo com o EZLN. Os rebeldes identificam nessa

    situao a oportunidade de fortalecer-se enquanto movimento, no abrindo mo da

    perspectiva de dilogo com o povo mexicano:

    Es en la SOCIEDAD CIVIL, en quien reside nuestra soberana, es el

    pueblo quien puede, en todo tiempo, alterar o modificar nuestra forma degobierno y lo ha asumido ya. Es a l a quien hacemos un llamado en estaSEGUNDA DECLARACIN DE LA SELVA LACANDONA [...]60

    A acessibilidade a essa documentao facilitada, pois o EZLN disponibiliza todas

    as suas declaraes e seus comunicados voltados ao pblico na internet. Assim, a palavra

    dos zapatistas pode chegar a qualquer lugar do mundo, tornando muito mais vivel o

    trabalho de pesquisadores que tem como objeto de estudo esse movimento e permitindo que

    qualquer um conhea as causas pelas quais lutam no Mxico.

    O contrrio se observa para o EGTK no que tange ao acesso de informaes. Textos

    e artigos que versem sobre a luta armada boliviana foram encontrados de forma esparsa e em

    57 Foram consultadas da primeira quinta declarao da Selva Lacandona, bem como o documento alabrasdel EZLN, el da 6 de marzo de 2001 en Cuernavaca, Morelos, todos disponveis em: www.palabra.ezln.org.mx58 EZLN, Palabras del EZLN, el da 6 de marzo de 2001 en Cuernavaca, Morelos., 2001 Disponvel em:

    www.palabra.ezln.org.mx59MOSIVAIS, Carlos. La protesta popular en el Mxico del neoliberalismo. In: MAYA, Margarita Lpez(editora). Lucha popular, democracia., neoliberalismo: protesta popular en Amrica Latina em los aos deajuste. Editorial Nueva Sociedad, 1999, pp.160-16160 EZLN,Segunda Declaracin de la Selva Lacandona, junho de 1994 p. 2.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    28/63

    28

    pouca quantidade. Em relao documentao, encontrou-se somente um comunicado desse

    grupo disponvel na internet, intitulado Qu busca el EGTK?61. Essa dificuldade no acesso

    se explica tambm pelo fato de que a internet s passa ser acessvel universalmente a partir

    da segunda metade da dcada de 1990 e o movimento boliviano desbaratado em 1992. O

    livro Tupak Katari vuelve...carajo62 de Felipe Quispe que considerado o documento de

    fundao do EGTK serviu como principal fonte sobre o grupo boliviano na pesquisa63. O

    livro est composto por quatro partes: a primeira intitula-se Guerra Revolucionaria de

    Ayllus, 1781-1783e uma exposio do levante de Tupak Katari, chamando a ateno s

    tticas de combate implementadas pelos indgenas participantes desse episdio; a segunda

    parte contem uma srie de documentos e propostas polticas que a vanguarda indianista do

    EGTK apresentou nos congressos sindicais da FSUTCLP-TUPAK KATARI64e CSUTCB65,

    alm do voto resolutivo aprovado na COB66 que reconhece o direito dos indgenas de

    criarem um Estado prprio, separado do Estado boliviano; a terceira parte traz a exposio

    de alguns princpios da filosofia e da religio csmica aimra; finalmente, a quarta parte

    composta por dois textos de preparao sindical: Viva al Glorioso Tupakatarismo

    Revolucionario!eBoletn de Sindicalismo de Pakajaqis. importante notar que o livro de

    Quispe traz a viso da vanguarda indianista do EGTK, no sendo abarcadas nesse texto as

    formas de atuao da parte mestia. Por outro lado, nesses escritos aparecem fortesreferncias a Tupak Katari que so articuladas de maneira a fortalecer a identidade indgena

    e que, portanto, servem aos propsitos estabelecidos por essa pesquisa.

    Nesse primeiro captulo, tratou-se de expor os conceitos tericos de memria e

    identidade formulados por Michael Pollak e que foram aplicados na anlise para entender a

    forma de utilizao das figuras histricas de Emiliano Zapata e Tupak Katari por EZLN e

    EGTK, respectivamente, para fortalecer uma identidade que permita a mobilizao para a

    luta. Alm disso, a metodologia da Histria Comparada que fora empregada na monografia

    teve alguns de seus aspectos descritos com base no texto de Jos Assuno de Barros, como

    61 EGTK, Qu busca el EGTK? Citado por: SALOMN, Jaime Iturri. EGTK: La guerrilla aymara enBolivia.Ediciones Vaca Sagrada, 1992, La paz, Bolivia. E disponvel em:http://www.cedema.org/ver.php?id=1245. Acesso em: 17/06/2013, s 12h24min.

    62 QUISPE, Felipe. Op. Cit.63 Aps diversas tentativas sem sucesso de acesso a documentos do EGTK atravs de contato por e-mail com

    Felipe Quispe, o livro s pode ser consultado graas a colaborao de Fabola Escrzaga que digitalizou eenviou por e-mail esse documento.

    64 Federacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de LaPaz Tupak Katari 65 Confederacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de Bolivia66 Central Obrera Boliviana

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    29/63

    29

    quais so os pr requisitos que devem ser cumpridos pelos objetos de estudo para que esse

    mtodo tenha resultados satisfatrios. Justamente em funo desses pr requisitos se fez

    necessrio instituir algumas semelhanas e diferenas entre os dois movimentos a fim de

    justificar a viabilidade de comparao dos dois objetos. Por ltimo, uma pequena

    explanao sobre o carter das fontes utilizadas, tambm apresentando as analogias e

    dessemelhanas entre elas, para entendermos os limites e possibilidades que a documentao

    confere pesquisa.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    30/63

    30

    CAPTULO 2: Memria

    Entender como as figuras histricas de Emiliano Zapata e Tupak Katari so

    apropriadas pelo EZLN e o EGTK, respectivamente, para estabelecer uma identidade quepermita a mobilizao para a luta armada implica pensarmos em quais so os referenciais

    ligados memria desses dois personagens que os combatentes iro se remeter para atingir

    esse objetivo. Ainda que se possa perceber na documentao as referncias diretas

    memria de Zapata e memria de Katari que os colocam como pontos de partida para a

    construo das identidades dos dois grupos (afinal de contas, os dois personagens

    emprestam seus nomes aos movimentos), no se pode ignorar a presena de elementos

    secundrios de memria que ajudaro a constituir a imagem das organizaes para si e para

    os outros.

    Ao teorizar sobre o conceito de memria, Pollak demonstra que ela deve ser

    entendida no s como um fenmeno individual, mas como um fenmeno construdo de

    forma coletiva e passvel de sofrer alteraes constantes67. Em funo dos objetos de

    pesquisa (o EZLN e o EGTK), esse aspecto coletivo e social o mais relevante para

    compreendermos a recuperao de elementos da memria e suas reinterpretaes para

    servirem como base das identidades forjadas pelos grupos guerrilheiros. Nesse sentido,dentre os elementos que Pollak considera constituintes da memria (acontecimentos vividos

    individualmente, acontecimentos vividos por tabela, personagens e lugares), o que assume

    papel de destaque maior o dos acontecimentos vividos por tabela, ou seja, aqueles fatos

    que so experienciados pelo grupo ou pela coletividade e que a eles vem a somar-se

    inclusive os episdios que se situam fora do espao-tempo da pessoa ou do grupo. Segundo

    Pollak, atravs da socializao tanto poltica quanto histrica a identificao de um grupo

    com certo passado se torna muito forte, resultando no que ele mesmo chamou de umamemria quase que herdada68. Ao analisarmos os documentos produzidos tanto por EZLN

    quanto pelo EGTK se percebem aspectos que iro ao encontro da noo de que um passado

    distante pode marcar profundamente a identidade dos grupos.

    O primeiro elemento a ser destacado nesse sentido a inteno que ambos

    movimentos tem de se afirmarem como os verdadeiros herdeiros de Zapata e de Tupak

    67 A teorizao de Michael Pollak sobre os conceitos de memria e identidade fora descrita na parte 1.1 docaptulo 1 dessa monografia. Para uma noo mais ampla desses conceitos ver: POLLAK, Michael. Op.Cit., 1992, p. 200-212

    68 POLLAK, M. Op. Cit., 1992, p. 2

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    31/63

    31

    Katari. A expresso mais clara da tentativa aparece na recuperao dos ideais desses dois

    personagens nas declaraes de cada um dos grupos guerrilheiros. O EZLN insiste em pedir

    ao final de muitas de suas declaraes democracia, libertad y justicia69, demandas essas

    que guardam uma semelhana muito grande com as trs palavras que aparecem ao final do

    Plan de Ayala70: Libertad, justicia y ley. Essas expresses remetem-se a ideia de justia

    social presente no pensamento de Zapata e justamente esse aspecto destacado pelo

    movimento mexicano dos anos 90. Zapata e seus companheiros de luta exigem no Plan de

    Ayala o cumprimento da promessa que Francisco Madero havia feito de restituio de

    terras tomadas dos camponeses (em sua maioria indgenas) durante o governo de Porfrio

    Diaz (1884-1911). Francisco Madero era, poca da publicao do Plan de Ayala, o

    presidente do Mxico, empossado pela chamada revoluo antirreeleicionista que havia

    dado fim a uma longa ditadura comandada por Daz e fora liderada pelo prprio Madero. A

    promessa era parte integrante do chamado Plan de San Lus Potos71 um manifesto

    escrito por Madero antes de chegar ao poder e publicado em 5 de outubro de 1910

    convocando o levante em armas e definindo as principais medidas a serem tomadas aps o

    fim do porfiriato. Portanto a ideia presente no documento assinado por Emiliano Zapata

    de que se faa justia cumprindo uma das premissas que Madero idealizou para o Mxico

    aps a vitria de sua revoluo. A justificativa para a indignao e o levante de EmilianoZapata e seus companheiros est justamente no fato da promessa no cumprida. O Plan de

    Ayala afirma em seu quarto artigo:

    La Junta Revolucionaria del E. de Morelos manifiesta a la nacin bajoformal protesta: que hace suyo el plan de San Luis Potos con las adicionesque a continuacin se expresan en beneficio de los pueblos oprimidos y sehar defensora de los principios que defiende hasta vencer o morir72.

    Salvador Rueda Smithers corrobora essa ideia em sua anlise do Plan de Ayala

    afirmando que os zapatistas se

    descubrieran en realidad como cuerpo poltico preocupado por cuidar delorden social y, de hecho, promotores de la justicia como propsito de la

    69 Essas trs palavras de ordem fecham a Segunda, a Terceira e a Quinta Declarao da Selva Lacandona (dasrie de documentos consultados na pesquisa)

    70 O Plan de Ayala publicado em 25 de novembro de 1911 e tem sua autoria atribuda a Emiliano Zapata.O texto completo desse documento pode ser consultado em: WOMACK JR., John.Zapata y la Revolucin

    Mexicana. Havana, Cuba: Editorial Ciencias Sociales, 2002, pp. 376-381.

    71 O texto integral desse manifesto pode ser consultado em: www.bibliotecas.tv/zapata/1910/z05oct10.html.Acesso em: 14/06/2013, s 15h40min.

    72 WOMACK JR., John. Op. Cit.,p. 378

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    32/63

    32

    Revolucin. () La bsqueda por la justicia por medio de la obediencia a

    la ley fue el extrao destino de los zapatistas73

    Ao tornar pblica sua existncia em 1994, o EZLN recorre a um princpio

    previamente estabelecido pela Constituio dos Estados Unidos Mexicanos para justificarseu levante, destacando o artigo 39 dessa Carta Magna:

    La soberana nacional reside esencial y originariamente en el pueblo. Todoel poder pblico dimana del pueblo y se instituye para beneficio de ste. Elpueblo tiene, en todo tiempo, el inalienable derecho de alterar o modificarla forma de su gobierno74.

    Com isso, o grupo guerrilheiro mexicano invoca o mesmo ideal de justia social

    presente no Plan de Ayala que Emiliano Zapata assina em 1911: a prpria lei justifica a

    rebelio do grupo. O EZLN abre dilogo com o governo e a sociedade para atingir seu

    objetivo de luta: o reconhecimento do direito autodeterminao dos povos indgenas. Para

    obter esse reconhecimento, coloca-se em relevo outro aspecto que Emiliano Zapata destaca

    em seus ideais, o princpio de que no s com disparos de armas de fogo feito o combate.

    A Segunda Declaracin de la Selva Lacandona exprime essa ideia citando o prprio Zapata:

    '... no son nicamente los que portan espadas que chorrean sangre ydespiden rayos fugaces de gloria militar, los escogidos a designar el

    personal del gobierno de un pueblo que quiere democratizarse; ese derecholo tienen tambin los ciudadanos que han luchado en la prensa y en latribuna, que estn identificados con los ideales de la Revolucin y hancombatido al despotismo que barrena nuestras leyes; porque no es slodisparando proyectiles en los campos de batalla como se barren las tiranas;tambin lanzando ideas de redencin, frases de libertad y anatemas terriblescontra los verdugos del pueblo, se derrumban dictaduras, se derrumbanimperios'75.

    O EZLN baseia-se nessa passagem de um escrito de Zapata para justificar perante o

    pblico a possibilidade de luta tambm no campo das ideias, no somente atravs da ao

    armada. Como j visto anteriormente, o EZLN recebe o apoio da populao mexicana quesai s ruas no dia 8 de janeiro de 1994, defendendo que o presidente Carlos Salinas Gortari

    dialogue com o EZLN, apoio esse que leva os zapatistas de Chiapas a fortalecerem-se

    enquanto movimento assumindo a sua disponibilidade de travar uma conversa com o

    73 SMITHERS R., Salvador. Hacia la relectura del Plan de Ayala. In: ZAPATA, dgard C. e GMEZ P.Francisco (compiladores).A cien aos del Plan de Ayala. Mxico: Ediciones Era, 2013, pp. 31-32

    74 Citado por EZLN emPrimera Declaracin de la Selva Lacandona, janeiro de 1994 p. 175 Emiliano Zapata na voz de Paulino Martnez, Aguascalientes, Mxico, 27 de octubre de 1914 citado por:

    EZLN, Segunda Declaracin de la Selva Lacandona,junho de 1994,p.1

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    33/63

    33

    governo e justificando-a com base nas ideias de Emiliano Zapata. Na Segunda Declaracin

    de la Selva Lacandona essa perspectiva fica clara:

    El sectario supone, errneamente, que el solo accionar de los fusiles podrabrir el amanecer que nuestro pueblo espera desde que la noche se cerr,con las muertes de Villa y Zapata, sobre el suelo mexicano76

    Observa-se, portanto, a apropriao por parte do EZLN dos ideais de Emiliano

    Zapata para fundamentar sua luta. importante sublinhar que essa retomada uma

    reinterpretao e atualizao, pois, apesar de terem elementos muito semelhantes, servem a

    objetivos distintos dos que pretendiam ser alcanados por Zapata e seus companheiros. Ao

    mesmo tempo, est expressa a caracterstica comentada anteriormente de flutuao/mudana

    que a memria pode apresentar em funo de demandas do tempo presente: o EZLN chega adeclarar guerra contra o Estado mexicano em sua Primera Declaracin de la Selva

    Lacandona (publicada em janeiro de 1994) baseando-se na justia social e na luta armada de

    Zapata para justificar sua rebeldia, no entanto a partir da Segunda Declaracin de la Selva

    Lacandona (em junho de 1994) percebe-se a relegao da luta atravs das armas como uma

    defesa e a perspectiva do dilogo vem tona, a fundamentao dessa mudana de posio

    tambm atravs do ideal de Zapata de que o combate feito atravs de ideias,

    caracterizando uma alterao tambm na forma de apropriao da memria.

    O EGTK, por sua vez, utiliza-se de referncias a Tupak Katari para construir a

    memria de seu grupo guerrilheiro na Bolvia. Essa construo passa, da mesma forma que

    se observa para o EZLN, pela reinterpretao e atualizao dos ideais de Katari para

    servirem a seus objetivos. No entanto, a apropriao pelos rebeldes bolivianos parece ter

    uma ligao muito mais estreita com o programa social estabelecido pelo indgena que se

    insurgiu entre 1780 e 1783.

    Segundo Marcelo Grondin77, Tupak Katari no deixara um texto que defina de forma

    sistemtica o seu programa social, mas, ainda assim, possvel estabelecer atravs de

    correspondncias enviadas pelo indgena ao comandante espanhol Segurola, guardio da

    cidade de La Pazcinco pontos que guiaram suas aes durante o levante. O primeiro deles

    a demanda de supresso dos abusos cometidos pelas autoridades coloniais espanholas

    sobre os indgenas. Em linhas gerais, reivindicava-se o fim da explorao dos ndios. Essa

    76 EZLN, Segunda Declaracin de la Selva Lacondona, junho de 1994, p.577 GRONDIN, Marcelo.A rebelio camponesa na Bolvia. Coleo Tudo Histria, So Paulo: Brasiliense,

    1984.

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    34/63

    34

    mesma demanda aparece no texto Tupak Katari vive y vuelve... carajode Felipe Quispe para

    justificar a necessidade de uma luta de carter autctone: a opresso se mantm desde a

    poca colonial, no mais pelas mos dos colonizadores espanhis, mas pelas mos de seus

    descendentes:

    [] pero sus ideas y su pensamiento [de Tupak Katari] de la lucha armadade los pobres, no habia muerto descuartizado, sino que ha perdurado engeneraciones y generaciones en nuestra sociedad Aymara de donde hoyarranca y brota nuevamente el Aymarismo Rebelde de los oprimidos,explotados, discriminados racial, cultural, social, espiritual econmica ypoliticamente por unos cuantos descendientes de los vice-godos, que sehacen los dueos de todo el poder poltico econmico de nuestro pas78.

    Os descendentes desses europeus so descritos como os q'aras79 burgueses,

    identificados como os continuadores da explorao sobre os indgenas. Essa perspectiva fica

    clara ao observarmos um dos apelos que o EGTK faz aos que esto dispostos a lutar:

    Reemplacemos las autoridades caducas, racistas y opresoras de los q'ara-burgueses, por el

    poder y las autoridades nombradas por la comunidad80. O segundo ponto se refere forma

    de governo que Katari pretendia instituir. Grondin demonstra que a inteno era a criao de

    um Estado dirigido pelos indgenas, recriando, em certos aspectos, o Qullasuyu. Katari

    inclusive se autoproclama vice-rei (ou como prefere Quispe, Mallku81) e subverte a

    ordem colonial estabelecida. A construo de um Estado sob o comando indgena tambm

    um objetivo presente nas reivindicaes do EGTK, o grupo entende que somente assim pode

    ter fim a dominao e explorao sofrida pelos povos autctones bolivianos:

    Nosotros los nuevos Aymaras, Qhiswas, Tupiwaranies y otros nacionesautctonas del Qullasuyu vamos a tomar el poder poltico, con la fuerza delas armas; a nuestros opresores les tocar obedecernos a nuestras leyesnaturales que vamos a dictar los motejados despectivamente indios [].Nuestras leyes no sern para esclavizar a los blancos, mestizoseuropeizados, como ellos produjeron las leyes para esclavizarnosinhumanamente, sino que nosotros lo pondremos la ley de igualdad dederechos para todos los que viven y trabajen en nuestra patria Qullasuyu(Bolivia)82.

    78 QUISPE, Felipe. Guerra Revolucionaria de Ayllus (1781-1783). In: Op. Cit, pp. 41-4279 Q'ara - uma palavra de origem aimra que, segundo Quispe, usada para se referir, de forma

    depreciativa, pessoa branca.80 EGTK, Qu busca el EGTK?Citado por: SALOMN, Jaime Iturri.EGTK: La guerrilla aymara en

    Bolivia.Ediciones Vaca Sagrada, 1992, La paz, Bolivia. Disponvel em:http://www.cedema.org/ver.php?id=1245. Acesso em: 17/06/2013, s 12h24min.81 Segundo o prprio Felipe Quispe: Mallku jefe aymara que gobierna una nacin (QUISPE, 1988, p. 14)82 QUISPE, Felipe. Guerra Revolucionaria de Ayllus Rojos (1781-1783). In: Op Cit,pp. 151-52

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    35/63

    35

    Como terceiro ponto do programa social de Katari, Grondin cita a eliminao dos

    no ndios, porm essa eliminao no se produziria atravs somente da morte daqueles que

    no pertenciam aos povos originrios. Marcelo Grondin explica que Tupac Katari

    proclamou o desterro de todos os espanhis, ou sua morte no caso de se oporem a isso, e a

    morte para os maus crioulos e mestios83. Esse aspecto no posto em relevo pelo EGTK.

    Apesar de serem os q'aras burgueses (descendentes dos espanhis) identificados como seus

    principais inimigos, como visto na citao acima, o grupo boliviano no pretende proceder a

    morte dos no indgenas e nem a sua expulso do pas84. Esta passagem coloca em evidncia

    as transformaes que a memria pode sofrer em funo de imperativos do presente: o

    EGTK nem cogita a possibilidade de executar a expulso e/ou morte dos no indgenas no

    contexto de sua luta, portanto no se inclui nas suas reivindicaes esse carter do programa

    de Tupak Katari, mostrando que a construo da memria do movimento em torno do lder

    aimra que se rebelara no perodo colonial passa por uma reinterpretao e uma atualizao

    de seus ideais. O quarto fator elencado por Grondin como guia das aes de Katari a

    promoo dos valores autctones, o exemplo claro que Katari implementou a lngua

    aimra como obrigatria nas regies onde seu poder se fortaleceu 85. Essa caracterstica est

    presente em praticamente todos os escritos do grupo guerrilheiro boliviano do final da

    dcada de 80, a valorizao da cultura indgena se faz de forma acentuada em vriassituaes. Um exemplo claro uma das palavras de ordem presente no documento Qu

    busca el EGTK?: Reemplacemos en cada comunidad la educacin de los q'ara-burgueses,

    la cultura de los q'aras y la historia de los q'aras, por una educacin al servicio de la

    comunidad86. Esse ponto especfico muito relevante para o EGTK, pois a ideia de criar

    um movimento que destaque a capacidade de ao dos indgenas bolivianos muito patente,

    ainda que seja inevitvel a influncia do marxismo pela presena da vanguarda mestia que,

    como vimos, baseou seus estudos nos escritos de Marx, Lenin, entre outros e pela prpriaexperincia de Felipe Quispe que recebeu treinamento militar em Cuba durante um ano,

    aps ter sido obrigado a sair da Bolvia em 1980 em funo da represso do governo

    ditatorial de Luis Garca Meza Tejada87. Nesse sentido, no que tange forma de luta de

    83 GRONDIN, Marcelo. Op. Cit, p. 7284 Essa inteno tambm no expressa no documento Qu busca el EGTK?85 GRONDIN, Marcelo. Op. Cit., p.7386 EGTK, Op. Cit87 ESCRZAGA, Fabola. El Ejrcito Guerrillero Tupak Katari (EGTK), la insurgncia aymara em Bolivia,

    p. 4

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    36/63

    36

    Katari, Felipe Quispe trata de valorizar o fato de que essa sai das mentes dos ndios aimras

    e no uma cpia de formas de luta ocidentalizadas:

    [] s el mismo camino de las armas que tom resueltamente Katari, quees una fuente de inspiracin que se transform en un pensamiento de laviolencia revolucionaria Comunaria desde nuestras comunidades hacia lasciudades: esta lucha armada Aymara no es importada, no es fornea, essalida de la mente luminosa de nuestros grandes Awawt'as estrategosmilitares88

    justamente essa estratgia revolucionria que Quispe e os indgenas do EGKT afirmam

    que deve ser recuperada pelo grupo guerrilheiro: [] marchemos a las ciudades a destruir

    los ricos, a quemar sus proriedades y a tomar en nuestras callosas manos, la conduccin del

    pas tal como haba sido el sueo de nuestros mrtires!89

    . As comunidades autctones sovalorizadas tambm por sua sociedade pr conquista espanhola, em que, segundo a

    vanguarda indgena do EGKT, havia mais igualdade e a opresso ainda no existia:

    En essa poca cuando en nuestras ancestrales Comunidades Aymares [sic],el hombre y la mujer vivian en un brillante sistema comunitario de'AYLLUS' felices y contentos, porque no habia el hambre, ni la miseria. NILA DISCRIMINACION RACIAL: TODOS TENIAN LAS MISMASCONDICIONES DE VIDA [...]90

    O quinto e ltimo aspecto do programa social de Katari que recuperado pelo EGTK

    liga-se questo religiosa. Grondin afirma que Katari no pretendia extinguir a religio

    catlica, mas que foi severo ao julgar sacerdotes que colaboram para a explorao de

    indgenas, condenando diversos deles morte. O EGTK no coloca a supresso da religio

    catlica como um objetivo do movimento, porm observa-se uma oposio ao que Grondin

    nos informa em seus escritos, pois Felipe Quispe, ao explicar o programa de governo

    lanado pela revolta de 1781, coloca a proibio ao culto cristo como uma das medidas a

    ser tomada por Katari: Prohibir el juramento cristiano y forneo, por ser este el culto vil a

    la hipocresia, introducido por el enemigo invasor a sangre y fuego, con la cruz y la espada a

    nuestra patria ancestral y milenaria91. Deve-se entender essa passagem luz da inteno de

    Quispe e da vanguarda indgena de dar ao movimento um carter exclusivamente indgena,

    valorizando a noo de que as formas de organizao e de atuao do EGTK tm origem na

    teorizao autctone, sem influncia ocidental. Como visto acima, essa verso se torna

    88 QUISPE, Felipe. Guerra Revolucionaria de Ayllus (1781-1783). In: Op. Cit.,p. 589 QUISPE, Felipe. Propuesta de Tesis Politica al III Congreso de la C.S.U.T.C.B.. In: Op. Cit., 1988, p. 23290 QUISPE, Felipe. Propuesta de Tesis Politica al V Congreso de la F.D.U.T.C.L.P. Tupak Katari. In: Op.

    Cit., 1998, p. 24791 QUISPE, Felipe. Guerra Revolucionaria de Ayllus (1781-1783). In: Op. Cit, 1988, p. 38

  • 5/21/2018 TCC Felipe Schulz Praia

    37/63

    37

    praticamente insustentvel se levamos em conta a participao da vanguarda mestia no

    movimento, ainda que esse exrcito guerrilheiro ponha em relevo o protagonismo dos povos

    autctones como atuantes na construo de um projeto diferente de nao. Essa utilizao da

    memria expressiva da sua construo, que como j salientado anteriormente, sofre

    alteraes, flutuaes em funo da demanda do movimento, por isso a disparidade entre a

    verso apresentada pelo estudioso Marcelo Grondin e pelo idelogo do EGTK, Felipe

    Quispe.

    As referncias que ambos os movimentos fazem a esses acontecimentos fora de seu

    espao-tempo assumem um sentido maior quando percebemos que tanto EZLN quanto o

    EGTK inserem suas lutas numa perspectiva temporal de continuidade, tornando esse

    passado distante um pouco mais prximo de seus componentes e justificando, a partir

    dele, as suas reivindicaes. So trs as formas em que se manifesta essa inteno dos

    grupos nas documentaes consultadas: 1) expresses utilizadas pelos movimentos; 2) a

    autoproclamao como herdeiros dos oprimidos; e 3) o uso da Histria.

    2.1 Expresses

    Em relao as expresses, observa-se a semelhana entre os dois movimentos ao

    referir-se em que momento se inicia a opresso e explorao dos povos autctones em cada

    um de seus pases. Em sua Cuarta Declaracin de la Selva Lacandona, o EZLN utiliza-se

    da expresso la larga noche de los 500 aos:

    Techo, tierra, trabajo, pan, salud, educacin, independencia, democracia,libertad, justicia y paz. Estas fueron nuestras banderas en la madrugada de1994. Estas fueron nuestras demandas en la larga noche de los 500 aos.Estas son, hoy, nuestras exigencias92.

    O EGTK, por sua vez, fala de 500 aos de esclavitud sofridos pelos indgenas bolivianos:

    [] desde hace 500 aos, hemos servido de 4 patas, como animales decarga; 500 aos han estado cabalgando sobre nuestros lomos; 500 aoshemos trabajado em los trabajos ms forzados, hemos sido sumisos a susleyes, hemos obedecido humildemente a su sistema capitalista sojuzgador ydiscriminador al indio93.

    A inteno dos grupos guerrilheiros destacar que a explorao da qual ainda so vtimas

    comea h quinhentos anos, quando da chegada do colonizado