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1 Tatuar em Interação: Atividade e Consumo do Selvagem ao Estético Autoria: Gabriela DeLuca O tema “tatuagem” tem sido explorado com um olhar direcionado mais àquele tatuado que àquele que tatua. A partir da aproximação com este campo, no entanto, surgiram reflexões quanto ao entendimento da atividade “tatuar”, em transformação ao longo do tempo e do espaço. Afinal, como aconteceram as transformações vinculadas a esta atividade e, para além disso, como ela é percebida pela sociedade? De uma base teórica, empírica e metodológica pertinentes, compreende-se que esse entendimento foi acumulando as diferentes percepções e se estabelece como dinâmico – transformando-se, também, no tempo presente, dependente daquele que vê e que é visto.

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Tatuar em Interação: Atividade e Consumo do Selvagem ao Estético

Autoria: Gabriela DeLuca

O tema “tatuagem” tem sido explorado com um olhar direcionado mais àquele tatuado que àquele que tatua. A partir da aproximação com este campo, no entanto, surgiram reflexões quanto ao entendimento da atividade “tatuar”, em transformação ao longo do tempo e do espaço. Afinal, como aconteceram as transformações vinculadas a esta atividade e, para além disso, como ela é percebida pela sociedade? De uma base teórica, empírica e metodológica pertinentes, compreende-se que esse entendimento foi acumulando as diferentes percepções e se estabelece como dinâmico – transformando-se, também, no tempo presente, dependente daquele que vê e que é visto.

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1 INTRODUÇÃO O tema “tatuagem” tem sido explorado em diferentes áreas do conhecimento, sendo na administração pouco presente, até o momento, e é aprofundado através de temas como consumo, estilo de vida e desvio, vinculados mais àquele que “é tatuado”, que àquele que “tatua”. No entanto, reconhece-se que, na esfera das tatuagens, trabalho e consumo estão imbricados, posto que, claramente, tatuadores são também tatuados. Por isso, a partir de uma aproximação com o tema, bem como visitas frequentes a um estúdio de tatuagem, incluindo vivências, observações e registros, emergiram reflexões quanto à atividade “tatuar”. Estas reflexões foram inquietantes, principalmente devido aos estranhamentos e surpresas que surgiam quanto mais os olhos se aproximavam do tema “tatuar”: um trabalho, em um primeiro momento, vinculado à rebeldia, marginalidade ou selvageria, se mostrava extremamente sério, meticuloso e higiênico. E, para além disso: se por um lado havia aversão ao tema, quando era tratado em conversas informais, por outro era visto com curiosidade admirada. O que fazia com estas percepções fossem diferentes? Pensando nisso, buscou-se tanto no campo como em dados secundários, aquilo que poderia explicar essa diferença. Da aproximação com a história da tatuagem, como consumo e como atividade, tornamos nosso principal questionamento em como, afinal, aconteceram as transformações vinculadas a esta atividade e, para além disso, como ela é percebida pelos indivíduos – fora e dentro do grupo. Esta pergunta, a princípio sem fins claros, se estabelece como uma primeira etapa na construção de um cenário sobre a realidade dessa atividade, de forma profunda e verossímil, no Brasil. O entrelaçamento entre consumo e prática da tatuagem, a princípio complexo, se torna um aliado ao buscar-se informações históricas quanto a esta transformação. Isto porque a maior parte dos registros encontrados estão direcionados à apresentação, descrição e análise do “ser tatuado”. No interim desses trabalhos, e a partir da vivência de pesquisa em um estúdio de tatuagens, é possível compilar informações e estabelecer uma história da transformação do trabalho daquele que “tatua”, bem como as formas pelas quais os que interagem com esse trabalho, principalmente a sociedade “estabelecida”, percebe essa atividade. Nessa “aventura”, o tempo e o espaço são percorridos, desvelando as diferentes percepções quanto à sua prática. A partir de uma orientação metodológica de um estudo de caso interpretativista (Stake, 1983, 1995), os achados históricos são vinculados à temática do desvio (Becker, 2008), posto que é esta a caracterização “essencial” do consumo e da prática de tatuagens neste percurso. No entanto, assim como o movimento de pesquisa não é linear, são trazidas nas seções de análise outras temáticas que venham a auxiliar o entendimento dessa transformação, vinculadas, principalmente, aos trabalhos de DeMello (2000), Ferreira (2004, 2012), Maroto (2011) e Oliveira (2012), os quais exploraram a atividade na América do Norte e na Europa. O que foi compreendido é que, ao longo do tempo e do espaço, a percepção quanto à atividade “tatuar” transformou-se, porém não de uma característica à outra, mas, sim, da acumulação dos entendimentos quanto a essas características. Assim, dos entendimentos de mera fonte de identidade, de selvagem, de marginalidade e de estética, trazidos ao longo do tempo, cada um foi acumulando os anteriores, fazendo com que, atualmente, a compreensão seja de uma atividade parcialmente aceita – mas carregada do selvagem, do marginal e do belo – por aqueles fora do grupo da “tatuagem”. Em contrapartida, aqueles inseridos no grupo a percebem como uma atividade, desde sempre, artística e expressiva, que requer técnica, responsabilidade e seriedade – próxima ao trabalho de um médico. Assim, a noção quanto à qualificação dela acontece “em relação”, na interação dos indivíduos – e dependerá de quem estiver envolvido. Para se chegar a conclusões quanto a estas transformações, são apresentadas, primeiramente, as orientações metodológicas de pesquisa e análise. Com esta postura e estas

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lentes esclarecidas entre pesquisadores e leitores, segue-se à apresentação das transformações desta atividade ao longo do tempo e do espaço, focando os achados atuais no território brasileiro. Deste embasamento biográfico do caso – a atividade de tatuar – parte-se às análises desse percurso, com o auxílio de autores que já percorreram caminhos próximos aos traçados aqui. Em seguida, parte-se para uma análise mais específica quanto à atividade, trazendo à luz Becker (2008) e preceitos simmelianos para situar o conceito de interação. Com toda esta carga teórica e empírica, algumas considerações particulares quanto à atividade “tatuar” no Brasil e inquietações para futuras pesquisas são apresentadas.

2 ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS O cientista, ou aquele que estuda, conforme apresentado por Freire (1981), é aquele

que, a partir de uma curiosidade, busca (re)construir um conhecimento. Por isso, o cientista deve reconstruir, pois, utilizando a base de conhecimento que já existe, não apenas o replica, mas também o questiona, o refuta, o conhece profundamente e reconhece seu caráter social, histórico e ideológico; e não apenas o condena, ou o exalta: humildemente o compreende e, daí, reconstrói. É com esta inspiração metodológica que se partiu e se manteve ao longo deste trabalho.

Esta é uma pesquisa de base qualitativa, permeada por reflexividade e preocupação em uma construção artesanal de resultados – e de dúvidas. Sendo qualitativa, permite um processo contínuo de coleta e análise de informações (Becker, 1997), bem como um movimento de idas e vindas entre teorias, campo e reflexões, posto que a partida se dá da premissa apontada por Celso Castro, ao introduzir o Artesanato Intelectual, na qual coloca que “no trabalho do cientista social não haveria fórmulas, leis, receitas, e sim métodos, no sentido original grego da palavra: via, caminho, rota para se chegar a um fim” (Mills, 2009, p.13). Assim, a postura orientada durante esta pesquisa é como como um trabalho artesanal, livre de qualquer caráter pejorativo que esta palavra venha a carregar. Assim como os tatuadores são artesãos (ou artistas, como chamam se rotulam), também é estabelecido aqui este cuidado, posto que é neste tipo de trabalho que há verdadeiro vínculo humano e esmero de construção – não reduzindo-os a máquinas.

Desta orientação, o método (prático) de pesquisa é o estudo de caso, embasado em Stake (1983, 1985), ou seja, com inspirações etnográficas e interpretativistas. O autor toma um caráter mais interpretativista de coleta e análise de dados, ao encontro do pressuposto do trabalho do sociólogo como fundamentalmente interpretativo e, inevitavelmente, relativo, baseado nas experiências daquele que vê (Ölelze, 2005).

O estudo de caso pode ser de uma pessoa, de um grupo ou de um movimento, desde que seja em busca da captura da complexidade de um “sistema” (Stake, 1983), a partir da observação direta de dados. Para tanto, uma bibliografia sobre história do tema “tatuagem” é percorrida e analisada, como dados secundários, atreladas e complementadas por visitas realizadas em um estúdio de tatuagens durante o período de 10 meses, nas quais foram utilizadas os pressupostos de observação participante e diário de campo (Malinowski, 1984), tal qual também Stake (1995) orienta para o estudo de caso. O referido autor coloca para “deixar as coisas acontecerem”, no caso de uma pesquisa qualitativa. Esta ressalva última é válida pela diferenciação que Stake (1995, p. 63) faz entre qualitativo e quantitativo, sendo no qualitativo a maior possibilidade em se encontrar momentos reveladores da singularidade do caso.

Para a análise, a orientação é pela busca de padrões de dados, seguida de revisão e conclusões prévias, que possibilitem o retorno aos dados (ou ao campo) para verificações (Stake, 1995). Para isto, é preciso considerar, por fim, que os padrões de dados encontrados devem ser compreendidos como configurações recorrentes e facilitadores no desvelamento da

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natureza do problema, porém não como generalizações simplificadas, já que aparecem sob diferentes formas (Stake, 1983).

Assim, o caso é definido como o “tatuar”, a atividade do tatuador, sendo tomados, para coleta de dados, as fontes bibliográficas e os dados coletados durante as visitas ao estúdio – registro em diário de campo, fotografia e vídeo. Os dados bibliográficos históricos serão apresentados na seção seguinte, com o intuito de situar o leitor a partir daquilo que já está estabelecido como conhecimento. Depois disso, são apresentadas as análises, junto aos dados de campo. A decisão por não apresentar o campo em uma seção específica se deu por dois motivos: primeiro porque o estúdio não é o objeto de estudo deste trabalho; e, segundo, porque consideramos os dados que emergiram dele como coleta empírica de informações, fonte de reflexões e pilares de conclusões.

3 TRANSFORMAÇÕES NA HISTÓRIA Antes de iniciar esta aventura histórica, é feito o convite ao leitor em despir-se de suas

amarras modernas. Ao percorrer dados históricos, a busca por sua compreensão deve, também, objetivar uma localização no tempo, ou seja, aos olhos da época e não pelo olhar e conhecimento acumulado ao longo do tempo. Assim, a tentativa é, dentro do possível, percorrer o mundo e o Brasil temporal e espacialmente, horizontal e verticalmente, percebendo as peculiaridades de cada momento.

Quando Marques (1997) inicia seu livro questionando “porque se tatuar”, ao invés de “porque tatuar”, materializa, em palavras, o que já havia sido “intuído” ao longo das leituras: a ênfase histórica é dada aos tatuados, seus gostos, seus motivos, seus desenhos, seus corpos, e não àquele que tatua. As práticas de modificação não são recentes (Ferreira, 2004, Leitão, 2004, Araújo, 2005), apesar dos motivos para a prática terem se transformado do funcional para o ornamental (Oliveira, 2012). A tatuagem, como prática de pintura do corpo, pode ser datada de 700 mil a.C, idade do corpo mais antigo encontrado – e tatuado – na face da Terra: Ötzi, ou o Homem do Gelo (Marques, 1997; Ramos, 2001; Leitão, 2004; Araújo, 2005), descoberto em 1991 nas montanhas fronteiriças entre Áustria e Itália. Ao longo do tempo, a relação com ela se transformou.

Dito isto, parte-se aos registros dessa prática, em geral escritos por ocidentais. No Ocidente, a tatuagem passou a ser proibida com Constantino I, por volta do ano 300, sob o argumento de que “o homem não pode danificar a criação de Deus” (Marques, 1997, p.31), conceito também encontrado no Alcorão. Antes disso, os primeiros cristãos se reconheciam por marcas como cruzes, peixes e as letras IHS, abreviatura para Jesus. Tanto Bíblia como Alcorão justificavam marcas corporais por injúrias (Ferreira, 2004). Dessa forma, procedimentos com inscrições eram mais pagãos do que cristãos – ou religiosos.

A partir das viagens de Marco Polo, no século XIII, se tem maior documentação do passado das tatuagens. Ao visitar regiões que hoje são a Birmânia e Tailândia, Marco Polo descreveu o hábito dos habitantes cobrirem o corpo com totens de animais (Leitão, 2004), descritos em seu Livro das Maravilhas (Marques, 1997). Em síntese: a partir das navegações, o homem descobria o mundo, ao mesmo tempo em que fazia uma redescoberta das modificações corporais, dentre elas as tatuagens (Marques, 1997).

A primeira grande revolução em relação à tatuagem se dá com o Capitão James Cook, no século XVIII (DeMello, 2000; Ferreira, 2004; Leitão, 2004), a partir das viagens ao Pacífico (Marques, 1997). James Cook, no seu Endeavor, foi o primeiro ocidental a ir ao Taiti, em 1769, e o primeiro a ouvir a palavra tattow, usada pelos nativos para designar a arte de pintar a pele: era o som do cabo de madeira batendo no ancinho de dentes afiados (Araújo, 2005). Apesar desta explicação em onomatopeia, há quem explique o nome tattoo a partir das palavras taitianas e samoanas ta-tah e ta-tah-tow, que significam “marcar o corpo” (DeMello, 2000; Leitão, 2004; Rodrigues, 2006). O navegador revelou a tatuagem moko, dos Maori da

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Nova Zelândia, que era desenhada na face, simbolizando, basicamente, status social (DeMello, 2000). É dito que quando os europeus pediam aos maoris para assinarem documentos, faziam desenhos semelhantes aos pintados em seu corpo, ou seja, “significavam para os nativos seus nomes, quem eles eram” (Leitão, 2004, p. 4).

Figura 1 Rosto de um guerreiro Maori

Fonte: Gilbert (2000) Primeiro em relação às navegações, tatuagem e brinco passaram “a constituir uma

importante parcela simbólica da experiência de navegação” (Ferreira, 2004, p.74), não só entre tripulantes, mas entre seus grupos de relações. Com isso, se criou um contexto social que permitiu estigmatizar a tatuagem, não mais pela religião, mas pela posição social (Ferreira, 2004). É desde essa época, também, que os “tatuados”, nativos ou não de terras distantes, passam a fazer parte de atrações de entretenimento, devido aos desenhos na pele – os chamados freak shows. De alguma forma, foram shows que reforçavam o discurso da superioridade do homem branco ou, no mínimo, um esforço em justificar o colonialismo da época (DeMello, 2000).

Estamos no final do século XIX. Se de um lado há um movimento por manter a marginalidade das inscrições, embasadas em estudos de criminalistas, como de Césare Lombroso sobre o vínculo da tatuagem e do crime, há a revolução industrial no campo, com a máquina de tatuar: o tatuógrafo (Araújo, 2005). Se antes era um processo demorado, com ferramentas manuais, a partir de 1891, com a invenção da máquina elétrica pelo irlandês Samuel O’Reilly, o processo se tornou rápido e menos dolorido (DeMello, 2000; Leitão, 2004). Com a máquina, a técnica e o desenho puderam ser aperfeiçoados, bem como seu consumo pôde ser disseminado, levando o uso das tatuagens a intenções puramente estéticas. Percurso ainda longo, como veremos.

Em meados do século XX, a tatuagem e, mais tarde, o body piercing, tornam-se símbolos de revolta juvenil, beirando uma atitude política – diferente da postura patriota do exército e marinha, que tatuavam temáticas nacionalistas. A rebeldia suscita certo pânico entre os pais, principalmente pelo seu valor simbólico, já que ainda eram diretamente vinculadas aos socialmente desviantes, aos psicopatológicos e aos criminosos. Daí a justiça intervir, colocando a idade mínima de 16 anos, em 1933, nos Estados Unidos. A partir da Segunda Guerra Mundial, as marcas corporais ficam disseminadas entre micro grupos, ou contraculturas, tribos, cenas juvenis (Ferreira, 2004). Os hippies e roqueiros passaram a aderir, por volta dos anos de 1960, e a tatuagem, ainda que mais disseminada, continuava como marginal, agora símbolo de protesto social (Leitão, 2004). Assim, nos final dos anos

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1960, a tatuagem passou a fazer parte desses diferentes grupos, não mais vinculada aos “antigos selvagens”, mas a “novos selvagens” (DeMello, 2000, p.70).

Mesmo tomando mais e mais corpos, a tatuagem ainda era estigmatizada. As motivações para o ato ainda eram justificadas, segundo os “estabelecidos”, ou seja, àqueles fora da comunidade da tatuagem, a problemas psicológicos, crimes ou um estilo de vida, no mínimo, “peculiar” (Marques, 1997). É neste período que surge, no Brasil, o primeiro tatuador a se fixar aqui. Enquanto nos Estados Unidos já havia um movimento dos tatuadores, em grupo, por serem reconhecidos como profissionais pela sociedade (DeMello, 2000), vinculando a atividade à arte (Kosut, 2006), no Brasil o percurso esta recebendo seu primeiro passo.

Em território brasileiro, os primeiros vínculos com a tatuagem são através do contato com os índios, com suas pinturas corporais a partir de sementes e frutas coloridas (Marques, 1997) e, depois, para demarcação de escravos: marcavam os escravos com ferro, colocando o nome de seu senhor ou de seu delito, tirando de seu corpo sua autonomia (Ramos, 2001). Fora isso, o contato com as tatuagens acontece a partir do maior fluxo de marinheiros nos portos brasileiros, principalmente no século XX. É neste contexto, de portos, marginais espacialmente, que o primeiro tatuador se estabelece no Brasil. Knud Harald Likke Gregersen, o Lucky Tattoo ou Mr. Tattoo era dinamarquês e, filho de um tatuador reconhecido internacionalmente, foi marinheiro e conhecia o Brasil desde 1946. Em Santos, Lucky estabeleceu a primeira de suas duas lojas em 1959, indo em seguido ao Rio de Janeiro, cidade onde viria a falecer em 1983. Tatuou mais de 45 mil pessoas ao longo de 30 anos. O mesmo Lucky faria parte de um círculo que se formaria de tatuadores: Jimmy, Ana Velho, Carlinhos, Cario, Thiés, Alemão e Stoppa (Marques, 1997) – os dois últimos representados no trabalho de Ramos (2001).

A profissionalização no Brasil seguiu um movimento na década de 1980, uma década após a efervescência surfista carioca que torna tatuagem mania na cidade, ligada ao estilo de vida do surfe, fazendo com que Lucky ganhe a freguesia também desses jovens. Os grandes veículos de comunicação da época eram os corpos dos surfistas cariocas e a Revista Pop. A música de Baby Consuelo, do Menino do Rio, colabora para desmistificar e até tornar a tatuagem um objeto de desejo (Leitão, 2004). Como “bom” campo desviante, a primeira loja de tatuagem no Rio de Janeiro é de uma mulher, socialmente (e conhecidamente) marginalizada, no ano de 1980: Ana Velho (Marques, 1997; Leitão, 2004).

Bem localizada e decorada, no bairro Ipanema, do Rio de Janeiro, a loja de Ana Velho ajudaria a tirar o estigma da prática. Ela foi pioneira também em estabelecer sua loja legalmente: tanto insistiu que conseguiu um registro de tatuadora e uma declaração do conselho médico dizendo que sua loja tinha condições higiênicas. No mesmo ano, já existiam pelo menos seis pontos de tatuadores no Brasil. Foi a década do ouro para a tatuagem, muito impulsionada pela canção de Caetano (Marques, 1997).

O reconhecimento da atividade acontece apenas em 1990, quando já há em todo Brasil estúdios qualificados e, também, tatuadores informais, que ainda utilizavam nanquim e agulha (Leitão, 2004). Como institucionalizada, só em 1992 viriam regras para se estabelecer um ambiente para tatuar (Marques, 1997). Muitas delas estão vinculadas aos esforços de tatuadores brasileiras em se estabelecerem como profissão e mercado reconhecido. Cada vez mais regulado, “o tatuador, em nossa sociedade, é um profissional pago, que se apresenta como um artista comercial e que se propõe a embelezar o corpo do outro (Ramos, 2001, p. 139). Ao apresentar Stoppa, Ramos (2001) demonstra o dilema do tatuador entre arte e comércio do seu trabalho. Stoppa se coloca como um artista, apesar do desenho ser escolha do cliente; o tatuador é responsável pela técnica, mas o cliente irá escolher o desenho, o local e cuidará da cicatrização. Assim, o cliente se torna, também, responsável, de alguma forma, pela arte. Assim, nem toda tatuagem é considerada arte. Primeiro porque alguns circuitos

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sequer consideram a tatuagem como trabalho artístico. Segundo, quando consideram, não é toda tatuagem que pode ser arte. É uma técnica, que exige dedicação e critérios de qualificação, os quais são estabelecidos por grupos de tatuadores estabelecidos e divulgando os melhores trabalhos em convenções e revistas.

Atualmente o Brasil apresenta uma cena organizada – o que não significa legitimamente ou institucionalmente profissionalizada e/ou reconhecida. No ano de 2013 aconteceu a terceira edição do Tattoo Week SP (http://tattooweek.com.br), ou Encontro Internacional de Tatuadores e Body Piercings do Brasil. A organização institucional do grupo é reconhecida como necessária e percebido o esforço, inclusive com o estabelecimento de um sindicato do grupo: Sindicato das Empresas de Tatuagem e Body Piercing do Brasil. Em uma convenção regional visitada em outubro de 2013, foi possível testemunhar o esforço em veicular um discurso sério e artístico, através de uma variedade de publicidade, além de um cuidado, inclusive, para com a criação de cartões de visita.

Figura 2 Cartões de visita, em perspectiva, coletados na EXPO TATTOO RS em outubro de 2013. Fonte: coletados e fotografados pelo autor.

Além destes esforços, há no Brasil, desde 2007, um Projeto de Lei (1444/07), que

busca regulamentar a profissão relacionada à tatuagem e piercing (Câmara, 2007), idealizado pelo Sr. Jorge Tadeu Mudalen. Nele ficam explícitas o que seria o trabalho, a regulamentação, critérios, enfim, práticas que já são feitas, porém não ainda institucionalizadas. O projeto ainda está em vias de aprovação. Em 2013, a Comissão de Seguridade Social e Família, a partir do Relator Deputado Eleuses Paiva (Câmara, 2013) rejeitou os pedidos relacionados à prática da tatuagem, justificando que já são tratados pela ANVISA. No entanto, esta entidade tem estabelecido critérios de estrutura física, instrumentos e procedimentos relacionados à prática. De fato, existem alguns regulamentos sobre os procedimentos, nacionais, regionais e municipais (ANVISA, 2004, 2008; CONAMA, 2005). Porém, mesmo que estes documentos incluam a prática da tatuagem, não há previsto a profissão de “tatuador” no Ministério do Trabalho.

Hoje, as marcas deixam de ser signos estatutários, para serem signos identitários, ou seja, uma decisão pessoal e não coletiva, transformando-se em um “recurso expressivo que ambiciona marcar e demarcar corporalmente um mundo de singularidades identitárias, portanto, e já não legitimar colectivamente um dado corpo social” (Ferreira, 2004, p.82). No entanto, não foram desde o início símbolos identitários? Para além disso, não se transformaram ao longo da história, acumulando “funcionalidades”? E, por fim, não seria este

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desentendimento sobre suas transformações a razão da dificuldade dos tatuadores serem reconhecidos como profissionais estabelecidos?

4 TRANSFORMAÇÕES EM ANÁLISE Primeiramente, é lembrado que o material colhido para descrever a história, tanto de

mundo quanto de Brasil, foram de autores ocidentais. Por isso, não é possível retirar de seus relatos suas lentes, suas visões de mundo. Dessa forma, é compreensível que a maior parte dos escritos leve a tatuagem para um sentido, no mínimo, desviante, pois foi dessa forma que os ocidentais lidaram com a tatuagem desde os primeiros contatos. Mesmo transformando-se, o que se manteve foi uma percepção da tatuagem como uma metáfora à diferença, ao “outro”, como bem apontado também por DeMello (2000).

Antes de iniciar a análise, no entanto, é preciso trazer o conceito de “desvio” (Becker, 2008), base conceitual para buscar os padrões indicados por Stake (1995). Becker (2008) faz uma crítica prévia a respeito do desvio que é entendido, como em senso comum, como algo anormal ou fora do padrão, ou alguém que transgrida regras – via de regra vinculando-o a um estigma (Goffman, 1975). Refletindo sobre o desvio existir a partir da rotulação de outro grupo, Becker (2008, p.22) define o desviante como “alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso: o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal”. Resumidamente, “se um ato é ou não desviante, portanto, depende de como outras pessoas reagem a ele” (Becker, 2008, p.24). No entanto, a noção de desvio não será suficiente para nossa análise – é preciso compreender o que significa a noção de rotulagem, a qual acontece em interação.

Primeiramente, há de se postular que não há um “conceito” tal qual é entendido, mas sim, como “localizado” (Abbott, 1997), ou seja, “os nossos conceitos são histórica e geograficamente situados e representam uma maneira de pensar ligada a tal lugar, tal país, tal época” (Becker, 2007, p.8). Essa noção facilita também a compreensão daquilo que Becker (2008) coloca como “desvio”. E direciona à linhagem da referida Escola, que se apoia em Georg Simmel.

A base do entendimento de Simmel é de que o objeto da sociologia não seria a sociedade, visto que ela não é algo concreto, mas sim “um acontecer” permanente. Assim, o objeto de estudo da sociologia é a sociação (Simmel, 2006), ou melhor, as formas de sociação, as quais seriam um instante cristalizado, um instantâneo do processo (Waizbort, 2013) que é a sociedade. Visto que o aprofundamento da teoria de Simmel não é o foco deste trabalho, apenas pontuamos a noção básica quanto ao objeto de estudo da sociologia, estabelecendo, principalmente, um entendimento processual e interacional da realidade: depende de quando, onde e de quem. Vinculado a este trabalho, no entanto, é válido trazer seus entendimentos quanto aos estudos urbanos. No trabalho “A metrópole e a vida mental”, de 1902, Simmel já chamava atenção para estudos nos grandes centros urbanos e, ao comparar a vida metropolitana com a tradicional, colocava que “a grande cidade (...) caracterizar-se-ia, sobretudo, pela grande quantidade e diversidade de estímulos” (Velho, 2005, p.255). Na vida complexa urbana, diferentes mundos se cruzam. Os limites entre norma, conformismo e transgressão constantemente são colocados em xeque. Todas as noções de normalidade e desvio tem um caráter eminentemente instável e dinâmico. “Esta multiplicidade de experiências e papéis sublinha a precariedade de qualquer tentativa excessivamente fixista na construção dos mapas socioculturais” (Velho, 2005, p.261). Os indivíduos estão constantemente indo e vindo nestes diferentes mundos.

Ao olhar para a cidade, ainda, Simmel nos força a lembrar coisas que costumamos a esquecer, mas que ganhamos mais lembrando-as (Wolff, 1958), diferente de teorias da ação como de Durkheim (e sua anomia). Para ele, nada é pequeno demais, insignificante demais: tudo merece uma atenção metafisica (Ölelze, 2005). E com ele é possível perceber, observar e

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pesquisar grupos desviantes. Na verdade, esta apresentação de “conceito localizado” é essencial posto que, por isso, a vivência em campo, mesmo que não explicitamente apresentada ao longo deste trabalho, está imbricada na forma de apresentação e de análise.

Dado isto, é possível prosseguir na análise, propriamente dita, do caso: o “tatuar”. Caracterizada como selvagem, primitiva, pagã, exótica, pela burguesia branca europeia, aliando ao interdito religioso, a parcela da sociedade marcada corporalmente, significou “o ônus da distância cultural e social na percepção ocidental das marcas corporais, na medida em que passaram a representar, sobretudo, um encontro com o Outro” (Ferreira, 2004, p.75), sendo esse “outro” tanto o colonizado como o marginal. Foram primeiro selvagens. Depois, soldados, prostitutas, criminosos – marginais. No entanto, a partir da absorção da prática por “homens brancos, de classe média e ocidentais”, a ideia de marginalização passaria a ser diluída (DeMello, 2000). Assim como Araújo (2005), DeMello (2000) aponta que a transição do “primitivo” para o “marginalizado” se daria através, principalmente, dos marinheiros, e, portanto, seria disseminada sob o rótulo de “prática de aventureiros”. De aventureiros para rebeldes juvenis. De rebeldes para consumidores de beleza.

Resumidamente, poderia se retomar a história do “tatuar”, agora sob uma nova divisão, também aos olhos de ocidentais, visto que são os que analisam e escrevem. Percebe-se que, na história, a tatuagem tem como “essência” a diferenciação – é uma fonte de diferenciação e, portanto, identidade. Isto se manteve ao longo de todos os tempos e espaços. É sabido e serão explorados os diferentes entendimentos que surgiram ao longo do tempo e dos espaços. No entanto, percebe-se que a cada nova percepção fica acumulada a anterior, e o entendimento sobre a tatuagem alongado ao tatuado e ao tatuador. A figura abaixo procura demonstrar este entendimento:

Figura 3 Transformação da percepção em relação à "funcionalidade" da tatuagem Fonte: elaborado pelo autor.

A partir dos contatos com a sociedade ocidental, no contexto de colonização, os praticantes da tatuagem passaram a ser compreendidos como “selvagens” – a marca fica como expressão visual daquilo que é primitivo. Utiliza-se a palavra “selvagens”, pois é de acordo com o pensamento evolucionista da época (Morgan, 1877), qual seja, que as sociedade deveriam ser compreendidas como selvagem, bárbara ou civilizada, e em cada um desses períodos, havia uma cultura distinta e um modo de vida mais ou menos especial e peculiar. Deveria se tratar a sociedade, então, de acordo com seu nível de avanço. Esse entendimento, segundo Morgan (1877) facilitaria o tratamento e observação da dita sociedade (ou grupo) de acordo com a etapa de evolução em que está (Morgan, 1877).

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O momento crucial para a transformação do selvagem em, simplesmente, o “outro”, pode ser a partir do momento em que esses indivíduos passaram a fazer parte da sociedade Ocidental. A forma que isso ocorreu, como atrações de shows de entretenimento, solidificou na consciência ocidental a noção de que, pessoas pintadas não são como “nós” e, sim, são “outro” (DeMello, 2000) – neste sentido, em uma reflexão positivista, a qual é a dominante nesta sociedade, este “de fora” sequer faria parte desta sociedade - torna-se estigma.

Essa marginalidade também vinha dos estudos criminalísticos deste período, O vínculo com o crime não se explica pelo ato de o criminoso se tatuar, e portanto ser tatuagem coisa de criminoso. Como sinal distintivo de grupo social, historicamente, no Ocidentes, ela é, com frequência, coisa de homens apartados do mundo, confinados numa cela, num convés, na trincheira da batalha ou no picadeiro. O mesmo se poderia dizer dos dirigentes, nobres ou plebeus: os tatuados do poder, apartados de súditos e cidadãos. (Marques, 1997, p.63)

Quando Marques (1997) coloca que o desvio não está vinculado ao ato de tatuar, mas ao significado dado ao grupo que se tatua, devido a um contexto social, pelos estabelecidos, também vai ao encontro do conceito de Becker (2008). Com as adoções da prática pelos próprios ocidentais, que seriam, portanto, os “civilizados”, formou-se o grupo de usuários e praticantes como “marginais”. Não são selvagens, posto que nasceram na “civilização”, porém estão à margem dela – claramente desviantes. A partir da concepção de que o período de adesão da tatuagem pelos ocidentais ter criado estes grupos sob o rótulo de desviante, colocamos que esta “titulação” persiste, bem representado por DeMello (2000, p.21) quando diz que os “tatuados” se reconhecem como em contra partida aos “não tatuados”, ou à sociedade estabelecida em geral. Ou seja, são desviantes, tanto na perspectiva ocidental estabelecida, como na sua própria percepção, ao encontro da definição de Becker (2008) a respeito. Essa marginalidade é presente e colocada por DeMello (2000) como possível razão para sua percepção sobre si mesmo como uma família, uma comunidade, quase como uma estratégia de auto proteção.

Assim como foi exposto na retrospectiva histórica, a tatuagem, seus usuários e produtores foram, primeiro, “primitivos”, depois marginalizados e político (no período entre guerras) para, em tempo atuais, passarem a ser das classes médias (DeMello, 2000). Foi a partir da década de 80, nascimento no Brasil (Marques, 1997), que DeMello (2000) vai estudar a tatuagem como uma nova forma cultural, artística e social, como também traz Marques (1997) para quem o uso da tatuagem passa a ser entendido como movimento estético: uso porque quero ficar mais bonita(o).

O que ocorre, portanto, é que a tatuagem, propriamente dita, tem sido redefinida ao longo dos tempos, de um sinal de primitivismo para um sinal de posicionamento político (patriotismo e rebeldia) até chegar à marca estética (DeMello, 2000). Neste percurso, os tatuadores não só foram os objetos de rotulação dessas diferentes percepções, como tiveram papel ativo na transformação, organizando-se como grupo, através de instituições formais e informais, como sindicatos, convenções, escolas técnicas e premiações. É a este movimente que a próxima seção é dedicada.

5 AFINAL, OFÍCIO OU SACRIFÍCIO? Os momentos cruciais na história da tatuagem foram a partir de revoluções técnicas,

principalmente da criação do tatuógrafo. Esta máquina permitiu que o trabalho pudesse ser reproduzido de forma mais verossímil a um modelo de desenho, bem como de forma mais rápida. Além disso, atualmente ainda existem tecnologias para retirar a tatuagem, seja de forma definitiva (como o laser), como temporária (maquiagem). Isto transformou o trabalho do tatuador, que passou a ser um produtor, literalmente, de um produto. A tatuagem deixou de ter, aparentemente, um significado espiritual, social ou político, para se tornar estética ou

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objeto de desejo. Por outro lado, a tecnologia permitiu aos tatuadores melhores ferramentas para desenvolverem seu trabalho de forma a torná-lo arte.

DeMello (2000) descreve o processo de aprendizagem e estabelecimento do tatuador como, primeiramente, uma relação estabelecida entre o aprendiz e o mestre – um tatuador com experiência na prática. No entanto, devido à organização do grupo, encontrar um tatuador disposto a ensinar pode não ser tarefa fácil. Por isso, muitos iniciam a prática sozinhos, ao adquirir uma máquina e tatuar a própria pele. Esta prática foi vista no estúdio visitado, pelo relato de diferentes tatuadores. O discurso vigente neste estúdio é de que há diferenças entre os tipos de tatuagem e que, ali, prezam pelo trabalho como arte, além do trabalho sério, relativo a horários de atendimento, formas de atendimento, limpeza e regularidades legais. Nenhum dos tatuadores passou por algum tipo de formação institucionalizada. Todos eles tiveram uma formação tipo mestre-aprendiz, na qual foi constatada a sempre tentativa de, quando na busca do mestre, procurar e convencer aquele que consideravam referência em “arte”, na época. A exemplo é trazido um dos tatuadores, chamado, para esta apresentação, de Henrique. Henrique atua há mais de 10 anos no campo, tendo trabalhado antes em apenas um estúdio, o qual considera a maior referência em Porto Alegre. Tendo uma prévia aproximação com tal estúdio, foi possível verificar similaridades entre os discursos dos dois estúdios, o que reforça o aprendizado mestre-aprendiz. O início da prática aconteceu ao comprar revistas da área e um tatuógrafo, iniciando os trabalhos em amigos e no próprio corpo. Neste quesito, há uma relação diferente de tatuadores e consumidores com a tatuagem. Enquanto o segundo grupo preza pelo significado, estética ou identidade, o primeiro vê na tatuagem um aprendizado e troca de experiências, o que acontece quando tomam um corpo para praticar, bem como oferecem seu próprio para outros praticarem. As formas de qualificação que surgiram foram, além do portfólio e do estúdio no qual o tatuador se formou, os certificados de prêmios em convenções da área. No local, há por toda parte expostos trabalhos, fotografias de tatuados “referência” (artistas, conhecidos no mundo da tatuagem e celebridades), fotografias de trabalhos realizados (tatuagens, quadros, esculturas) e os certificados de prêmios em convenções. Há constante atualização de portfólio também nas redes sociais, o que se mostrou o principal canal de comunicação e vitrine para os clientes. Percebe-se, assim, o vínculo entre os achados bibliográficos e empíricos. A formação do tatuador, em uma relação de mestre/aprendiz; a questão do nome e reconhecimento do tatuador; e, destes laços, a criação de uma “comunidade”, que envolve tatuadoras, tatuadas e simpatizantes.

A indústria invade o campo das tatuagens e dos tatuadores. Se antes eram “artesãos generalistas”, passam a se especializar: este faz realismo, aquele faz tribal. A indústria da tatuagem passa a movimentar milhares e milhares de dólares, com convenções regionais e mundiais, distribuindo prêmios milionários aos melhores tatuadores. Além dos eventos, empresas de fabricação de equipamentos, cursos, ajuda para dúvidas... toda uma rede de fornecedores e parceiros se forma (Marques, 1997). Como foi visto, os tatuadores buscam legitimidade, a partir de movimentos em convenções, workshops e outras formas de transmissão de conhecimento e reconhecimento. Com facilidades como a internet, é possível disseminar suas criações. O “nome” passa a ser conhecido. Se torna uma grife. Para os tatuadores com os quais tivemos contato, o ápice da hierarquia é poder escolher os desenhos que se faz, os desenhos que realmente são desafiadores e arte – segundo seus critérios.

A arte de tatuar é tatuar bem, desenhar bem e treinar sempre, se aperfeiçoando. Para os mais antigos, o tatuador realmente bom é aquele que tatua com maestria, que tem a técnica. E para ser esse artista, é preciso ser artesão, é preciso dominar a técnica (Oliveira, 2012). Assim, a comunidade da tatuagem reconhece e busca legitimidade de seu trabalho como arte. Por outro lado, não é reconhecida total como arte porque tem a orientação do cliente, então acaba

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sendo um trabalho colaborativo. Além disso, o argumento “arte” também aparece como um recurso em resposta a estigmas ainda vinculados à tatuagem, utilizado também no espaço americano (Kosut, 2006, DeMello, 2000). É neste sentido que Oliveira (2012) percebe a emergência de novos tatuadores, agora formados em universidades de artes e afins, buscando a ocupação com uma técnica certificada, gerando uma diferenciação hierárquica com assimilação de valores artísticos, “categorizando assim o bom tatuador tecnicamente e o artista da tatuagem criativo e inovador” (Oliveira, 2012, p.41).

Maroto (2011) busca compreender as estratégias dos grupos para legitimarem-se, utilizando a temática do desvio. Para isso, a autora se embasa em teorias das profissões, especialmente em Abbott (1988) e em seu conceito de jurisdição, colocando que só é possível ser uma profissão a partir dele, para buscar compreender aquelas ocupações diferentes das “estabelecidas”, mas que também deveriam receber atenção dos pesquisadores. Apesar de não se pretender o aprofundamento da temática “profissões”, é relevante trazer esta reflexão, posto que este será um dos encaminhamentos para futuras pesquisas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Enfim, retoma-se a questão inicial, a razão pela qual este trabalho foi desenvolvido:

como, afinal, aconteceram as transformações vinculadas a atividade de “tatuar” e, para além disso, como ela é percebida pelos indivíduos – fora e dentro do grupo?

As percepções ao longo do tempo, a partir dos registros apresentados, de fato, se transformaram. No entanto, essas transformações foram a partir do grupo que “via”, do grupo “fora” daquele dos tatuados e tatuadores. Dessa forma, foram percepções em transformação, de selvageria, marginalidade, rebeldia e busca estética – aparentemente “evoluindo” para uma maior aceitação de sua prática. Na verdade, o que foi percebido é que a maior aceitação ainda está preenchida por compreensões antigas da atividade, como num processo cumulativo de entendimentos.

Dessas transformações, e compreendendo a realidade como algo em constante movimento, o que permanece? Das aproximações com o campo, poderia ser estabelecido que, em todos os entendimentos, foi a noção do “outro”, do “diferente”, do “desvio” que permaneceu. Vinculada, mais ou menos, a um estigma ou não, o “tatuar” esteve, permanentemente, vinculado ao desvio do que seria “normal”. Desta compreensão, então, emerge um novo questionamento: e quem, no entanto, estabelece o que é “normal”? A resposta dessa pergunta também esclarece as diferentes percepções sobre a atividade.

A noção do que é ou não normal depende de sua localização, tal qual os conceitos trabalhados pela Escola de Chicago. Assim, se um dado grupo impõe tais regras (morais), ele vai rotular, ao longo de suas vivencias, aquilo que não está de acordo com as regras – ou seja, é desvio. Diferentes grupos impõem diferentes regras. Por isso, alguns percebem a tatuagem como algo desviante, anormal e, mais ao extremo, estigmatizado. Por outro, aqueles que fazem parte do grupo de tatuadores têm suas próprias regras e colocam os “não tatuados” como anormais e, mais ao extremo, estigmatizados. Tendo tudo isso, ainda permanece, junto à essência do “desvio”, uma sombra de “estigma”. A isto compreende-se que advém do fato de que é o grupo de não tatuados (não, necessariamente, em sentido literal) que estabelece, nas sociedade com as quais esta pesquisa teve contato, as “regras” é o estabelecido ou dominante. Para esta verificação, são tomados os próprios relatos dos tatuadores em campo, descrevendo momentos nos quais sentiram-se ou perceberam tais afastamentos.

Este trabalho teve a pretensão em buscar responder os porquês das diferentes percepções, a partir de, primordialmente, registros históricos, tomando como caso o “tatuar” e como verificação analítica as vivencias em campo. Além da compreensão da percepção ser dinâmica, ela se mostrou em direção a um menor estigma e maior aceitação, ainda que esteja permeada pelas caracterizações ao longo dos tempos. Entende-se, dessa forma, que este

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trabalho serviu, primordialmente, para uma revisão histórica dessas transformações, bem como um exercício analítico das mesmas. Foram transformações e não transmutações. Assim, finaliza-se o trabalho com um questionamento: seria possível transmutar a percepção quanto ao tatuar? Se os médicos o atingiram, pode-se prever que sim. Este é o próximo passo vislumbrado.

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