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179 DIREITOS HUMANOS E GESTÃO AMBIENTAL DAS EMPRESAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO * Tânia Regina Fernandes Gonçalves Pinto Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. INTRODUÇÃO Os direitos humanos emergiram como foco de interesses das sociedades e dos Estados em todo o mundo. Trata-se do resultado de um processo contínuo de afirmação histórica. Para se justificar a concepção contemporânea de direitos humanos, há de se compreender a origem desses direitos no processo de afirmação histórico- filosófica. Apesar disso, é importante destacar que ficou praticamente superada a etapa da importância da justificação dos direitos humanos, durante o século XX, partindo-se para um segundo período em que a preocupação é a implementação efetiva desses direitos, para o que tem havido a especialização dos sujeitos de direitos humanos e o surgimento de “novos” direitos. NORBERTO BOBBIO escreveu sua conhecida obra A Era dos Direitos, na qual justamente aborda os aspectos acima explicitados, especialmente as questões dos fundamentos, da elaboração histórica e do surgimento dos “novos” direitos. Embora o festejado autor italiano não reconheça todos os tipos de direitos consagrados nos Tratados Internacionais e nas mais célebres Declarações Internacionais como sendo verdadeiros “direitos humanos”, ele vizualiza e descreve o fenômeno de surgimento desses direitos, que por si só é digno de nota e observação. * Monografia apresentada para obtenção do título de Especialista em Direitos Humanos do II Curso de Especialização em Direitos Humanos, da Fundação Universidade de Brasília e Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios em cooperação com a University of Essex – UK. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 179-231, jul./dez. 2002.

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DIREITOS HUMANOS E GESTÃO AMBIENTAL DAS EMPRESASNO BRASIL CONTEMPORÂNEO*

Tânia Regina Fernandes Gonçalves PintoPromotora de Justiça do Ministério Público doDistrito Federal e Territórios.

INTRODUÇÃO

Os direitos humanos emergiram como foco de interesses das sociedadese dos Estados em todo o mundo. Trata-se do resultado de um processo contínuode afirmação histórica.

Para se justificar a concepção contemporânea de direitos humanos, há dese compreender a origem desses direitos no processo de afirmação histórico-filosófica.

Apesar disso, é importante destacar que ficou praticamente superada aetapa da importância da justificação dos direitos humanos, durante o séculoXX, partindo-se para um segundo período em que a preocupação é aimplementação efetiva desses direitos, para o que tem havido a especializaçãodos sujeitos de direitos humanos e o surgimento de “novos” direitos. NORBERTOBOBBIO escreveu sua conhecida obra A Era dos Direitos, na qual justamenteaborda os aspectos acima explicitados, especialmente as questões dosfundamentos, da elaboração histórica e do surgimento dos “novos” direitos.

Embora o festejado autor italiano não reconheça todos os tipos de direitosconsagrados nos Tratados Internacionais e nas mais célebres DeclaraçõesInternacionais como sendo verdadeiros “direitos humanos”, ele vizualiza edescreve o fenômeno de surgimento desses direitos, que por si só é digno denota e observação.

* Monografia apresentada para obtenção do título de Especialista em Direitos Humanos do II Cursode Especialização em Direitos Humanos, da Fundação Universidade de Brasília e Fundação EscolaSuperior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios em cooperação com a Universityof Essex – UK.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 179-231, jul./dez. 2002.

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Este ensaio pretende abordar alguns aspectos pesquisados relacionadosao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que, tal como diversosoutros, é considerado um direito “novo” exatamente no sentido temporal, poisveio a firmar-se já no último quarto do século XX.

A interação entre a gestão ambiental das empresas no Brasil e os direitoshumanos foi o tema central das pesquisas desenvolvidas, tendo como marcotemporal inicial a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988. Trata-sede um dos objetivos do ensaio demonstrar este liame entre a gestão ambientaldas empresas e o alcance do desenvolvimento sustentável e da fruição de ummeio ambiente ecologicamente equilibrado. Elaborou-se uma hipótese a sertrabalhada, sob a forma de problema, a qual vai nortear a pesquisa: pode agestão ambiental das empresas ser considerada um fator de implementação dodireito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado?

A fim de mais bem demonstrar os resultados da pesquisa e situá-ladoutrinariamente, vai-se abordar as noções de: direitos humanos, direitoshumanos de solidariedade, responsabilidade na implementação dos direitoshumanos, função social da propriedade, função socioambiental da propriedade,gestão ambiental e normas ambientais.

Tendo em vista os crescentes processos de desenvolvimento tecnológicoe de urbanização, além da explosão demográfica mundial, o estudo dos direitoshumanos e especialmente do direito a um meio ambiente ecologicamenteequilibrado (art. 225 da CF) é de interesse geral, não só do meio científico, masdas pessoas em geral.

PRIMEIRA PARTE

O Direito a um Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado, Art. 225 daConstituição Federal, como Direito Humano.

1 DIREITOS HUMANOS DE SOLIDARIEDADE

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1.1 CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS E DIREITOSHUMANOS DE SOLIDARIEDADE

Conforme a noção de FÁBIO COMPARATO, “direitos humanos” sãoaqueles chamados fundamentais à dignidade da pessoa humana. Têm, porcaracterística principal, o fato de serem comuns a qualquer ser humano, por suaprópria natureza.

Assim, embora dotados de diversas particularidades que os distinguem,os seres humanos, por sua natureza, possuem a mesma dignidade que os fazmerecedores de respeito entre si.

Por ser uma criatura dotada de especial racionalidade e sensibilidade,o ser humano é titular de uma natureza própria que lhe confere posiçãoeminente em relação aos demais animais. A partir dessa racionalidade esensibilidade, o ser humano vislumbra a dignidade a que têm direito elepróprio e os seus semelhantes, porque como humanos, na essência, sãoiguais entre si.

De maneira bastante feliz, FÁBIO COMPARATO enuncia: “É oreconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém –nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – podeafirmar-se superior aos demais.”1

Entretanto, se hoje a idéia dos direitos humanos fundamentais parece naturale, como se sabe, o mundo todo, com suas diferentes culturas, consagra direitosdesta classe, não foi sempre assim.

NORBERTO BOBBIO ao discorrer sobre os “direitos do homem” afirmaque a justificativa para uma tal classe de direitos não é fácil de se obter. Segundoele, a justificativa de estarem fundados tais direitos na “natureza humana” é difícilde ser sustentada, e ele mesmo nela não crê. A razão é simples: para cada

1 COMPARATO, Fábio K. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999,p.1 e 12.

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momento histórico há uma noção de natureza humana. Por isso é que BOBBIOentende os direitos do homem como uma classe variável, como demonstra aevolução da história humana. Então ele defende que se deve justificar a existênciade valores considerados direitos humanos fundamentais demonstrando-se queestão apoiados no consenso, na larga aceitação em um dado momento histórico.2

Embora para COMPARATO seja a “igualdade essencial” da pessoa onúcleo do conceito de direitos humanos, ele também procura em sua obrademonstrar a evolução histórica da concepção de dignidade humana e igualdade,como meio idôneo de demonstrar a construção da atual noção de direitos humanosuniversalmente aceita3.

Na lição de BOBBIO: “Também os direitos do homem são direitoshistóricos, que emergem gradualmente das lutas que o homem trava por suaprópria emancipação e das transformações das condições de vida que essaslutas produzem.”4

Como direitos históricos estão sujeitos à permanente revisão, ampliaçãoe modificação.

É nessa perspectiva que, além dos direitos civis, políticos, econômicos,culturais e sociais, a visão contemporânea dos direitos humanos incorporou outrasclasses de direitos, entre estes os chamados direitos de terceira geração ou desolidariedade.

A divisão dos direitos humanos em gerações traz alguns problemas, porquesabe-se que os direitos fundamentais são direitos interconexos e interdependentes,mas ainda é usada didaticamente para situar no tempo o reconhecimento dacondição “humano-fundamental” de alguns direitos.

Os direitos de terceira geração são chamados também de direitos desolidariedade. São aqueles pertencentes a cada indivíduo e a todos ao mesmotempo, difusos, se poderia dizer, cuja realização requer cooperação globalbaseada na noção de solidariedade internacional.

2 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:Campus, 1992, p. 18-27.

3 COMPARATO, obra citada, p. 19.4 BOBBIO, obra citada, p. 32.

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Entre estes da terceira geração estão o direito à paz; direito ao meioambiente ecologicamente equilibrado; direito ao desenvolvimento e direito aopatrimônio comum da humanidade.

Consoante se percebe, houve especificação e aperfeiçoamento de direitos,fenômenos compreendidos como parte de um processo histórico.

1.2 PROCESSO DE ELABORAÇÃO HISTÓRICA

Em breve retrospectiva histórica, pode-se vislumbrar o aparecimento dos“direitos humanos” no cenário jurídico, no filosófico e no político.

Na lição de JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF, “o conceito de ‘DireitosHumanos’ resultou de uma evolução do pensamento filosófico, jurídico e políticoda Humanidade.”5

Já desde a Antigüidade que os homens refletiam sobre sua própria naturezae concluíam que há direitos inerentes à pessoa humana que transcendem às ordensnormativas. Assim, manifestaram-se os filósofos gregos e, quase ao mesmotempo, doutrinadores tais como Buda na Índia, Confúcio na China e, em Israel,primeiro Isaías e depois o próprio Jesus de Nazaré.

Na Idade Média, o jusnaturalismo prevaleceu. Para NORBERTOBOBBIO, MATTEUCI e PASQUINO, o Jusnaturalismo:

“é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas deconduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelasnormas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito naturaltem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, emcaso de conflito, é ele que deve prevalecer.”6

Após a Idade Média, houve reação ao Jusnaturalismo e às forçasfilosóficas de cunho religioso, com o surgimento do Iluminismo. As idéiaschamadas iluministas incorporavam uma cultura antiteológica e tinham por

5 HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 31.6 BOBBIO, Norberto, MATTEUCI Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília:

EdUnB, 1992, p. 656.

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finalidade estimular a luta da razão contra a autoridade e a tradição. A palavra“iluminismo” faz referência ao movimento filosófico o qual advogava que a razãodeveria pautar todos os aspectos da vida humana. Surgem, nessa fase, os filósofoscontratualistas, entre eles Hobbes, Locke, Montesquieu e Rosseau, e, com eles,novo ideal de organização política da sociedade sob a forma de Estado.7

Sucedem na época Iluminista os movimentos revolucionários como ofrancês, em 1789, e a Independência das Colônias Norte-Americanas em 1776.Tais movimentos pregavam a igualdade, a liberdade e a fraternidade e jáalimentavam o embrião da democracia liberal:

“Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livrese independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, aoentrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo depacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, afruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuira propriedade de bens bem como de procurar e obter a felicidadee a segurança.” (artigo 1o da Declaração de Independência dasColônias Norte-Americanas)

O artigo 1o supracitado, ao ver de FÁBIO KONDER COMPARATO,abriga a primeira positivação de direitos humanos que se tem notícia “baseadaem princípios democráticos”. O referido autor, ao analisar o fato histórico daDeclaração de Independência norte-americana, declara:

“A importância histórica da Declaração de Independênciaencontra-se justamente aí: é o primeiro documento político quereconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existênciade direitos inerentes a todo ser humano, independentemente dasdiferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social.” 8

Também no século XVIII sucedeu a Revolução Industrial, a qual começouna Grã-Bretanha e significou novo período na história da humanidade, no qualdelineou-se novo modo de produção capitalista e nova filosofia política, oliberalismo.

7 BOBBIO, MATTEUCI e PASQUINO, obra citada, p. 605-610.8 COMPARATO, obra citada, p. 90.

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O desenvolvimento do regime capitalista, o qual perdura até os nossosdias, bem como da filosofia liberal, é relevante para o presente estudo, pelosseus reflexos econômicos.

O então novo Estado, capitalista e liberal, servia à exploração da força detrabalho humana sem que houvesse limites, sem jornadas de trabalho adequadas,sem condições mínimas e pagando baixos salários.

Durante todo o século XIX e até o alvorecer do século XX foi assim, oliberalismo e o capitalismo andaram de braços dados. A produção do direito,que legitima a ação do Estado, e a garantia da segurança, com a harmonizaçãodos conflitos entre os cidadãos, foram as principais funções do Estado, na verdadeatuando no interesse do capital.

Essa situação produziu massas insatisfeitas, carentes de diversasnecessidades básicas, campo perfeito para o florescimento da reação traduzidano Marxismo. A respeito, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS escreveu:

“As duas primeiras décadas do século XX, a culminar naRevolução de Outubro, pareceram testemunhar que a forçarevolucionária do marxismo seria capaz de desfazer no ar, a curtoprazo, o capitalismo. No plano da produção teórica e sociológica,este período, iniciado, de facto, na última década do século XIX,pode ser considerado a idade de ouro do marxismo. A recepçãodo marxismo nas ciências sociais ocorreu quase desde a primeirahora, e a tal ponto que Marx é justamente considerado um dosfundadores da sociologia.” 9

Os direitos humanos, então reconhecidos e positivados, limitavam-se àcategoria dos humanitários e alguns civis e políticos, tais como a vida, a liberdade(em algumas de suas formas de expressão) e a participação política. Mas, mesmoestes, não eram todos propriamente “humanos”, já que não eram reconhecidospara todos os seres humanos, excluindo-se, por exemplo, as mulheres.

Entretanto, mudanças começam a ser delineadas com o surgimento dosdireitos trabalhistas e as reivindicações por maior atuação social do Estado.

9 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice, o Social e o político na pós-modernidade. SãoPaulo: Cortez, 1999, p. 24.

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Como bem expõe EROS ROBERTO GRAU;

“As imperfeições do liberalismo, no entanto, associadas à incapacidadede auto-regulação dos mercados, conduziram à atribuição de novafunção ao Estado. À idealização de liberdade, igualdade e fraternidadese contrapôs a realidade do poder econômico.A pretexto de defesa da concorrência suprimiram-se as corporaçõesde ofício, mas isso ensejou, em substituição do domínio pela tradição,a hegemonia do capital. A liberdade econômica, porque abria campoàs manifestações do poder econômico, levou à supressão daconcorrência. O proprietário de uma coisa, res- como observouKarl Renner – impõe sua vontade; o poder sobre as coisas engendraum poder pessoal; a propriedade, assim, de mero título para disporde objetos materiais, se converte em um título de poder sobrepessoas e, enquanto possibilita o exercício do poder no interesseprivado, converte-se em um título de domínio.”10

A partir do século XX acontece, então, a alteração na função do Estado,o qual passa a ser também instrumento de implementação de políticas públicas,além da já mencionada função de legitimar o poder. O Estado passa a atuar maissocialmente e a intervir também mais, incluindo na economia.

A solidariedade encontrou expressão nesse momento histórico. Veja-se alição de JOSÉ FERNANDO DE CASTRO FARIAS:

“Se, por um lado, as preocupações referentes à “questão social” jáestão fortemente presentes e o ideal de fraternidade ele próprio éavançado pelas revoluções de 1789 e de 1848 na França, por outrolado, essa política de assistência não repousa sobre um discursoconstruído de solidariedade. O tema da solidariedade, que encontramosjá presente nas obras de Pierre Leroux, de Auguste Comte e Proudhon,constitui-se sistematicamente um pouco mais tarde. É apenas no fimdo século XIX que encontramos a “descoberta da solidariedade”. Apartir do fim do século XIX, quando se fala de solidariedade, pretende-se com essa palavra, designar algo bem diferente. Trata-se de umanova maneira de pensar a relação indivíduo-sociedade, indivíduo-Estado, enfim, a sociedade como um todo.”11

10 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 1997,p. 15.

11 FARIAS, José Fernando de Castro. A Origem do Direito de Solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar,1998, p. 190.

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Ainda o mesmo autor ressalta a influência das idéias já colocadas no Brasil:

“No Brasil do fim do século XIX e inicio do século XX, o discursosolidarista não passou totalmente desaparecido por Rui Barbosa,Tobias Barreto e Joaquim Nabuco.Principalmente depois de 1919, Rui Barbosa não hesitou em negar oindividualismo jurídico e em reconhecer ‘a superioridade do trabalhosobre o capital (...) deu às constituições políticas um sentidopuramente econômico, entendendo que as velhas cartas careciamde ser revistas, porque feitas sob o influxo dos principaisindividualistas de 1789, insubsistentes diante da chamadasocialização, que inflama o mundo inteiro’. Rui Barbosa defendeuum vasto programa envolvendo questões sociais: casa de operários,instrução popular, higiene pública, acidentes de trabalho, trabalhode menores, horas de trabalho, seguro operário higiene nas fábricas,condição das mães operárias, igualdades dos sexos perante otrabalho, salário mínimo, etc.”12

Como se procurou demonstrar nesta breve digressão histórica, os direitoshumanos estão em permanente evolução. O que hoje se considera direitoshumanos de solidariedade está diretamente relacionado com a visãocontemporânea das relações sociais, políticas e jurídicas entre os seres humanos.Tal como leciona ALLAN ROSAS:

“A debate on what our human rights are, and how they should bedefined, is part and parcel of our history, past and present.” 13

Durante a RIO92, a Cúpula da Terra, o então Ministro para o MeioAmbiente da República Federal da Alemanha, KLAUS TÖPFER, foiextremamente lúcido ao tratar do assunto solidariedade. Disse ele ser portadorde uma mensagem das crianças alemãs para o mundo: “Somos um mundo só.”Comentando tal mensagem, TÖPFER afirmou que esta se traduzia em obrigaçãode uns para com os outros, no sentido de garantirmos um futuro para as geraçõesque virão. Ressaltou que os países industrializados têm uma parcela daresponsabilidade significativa na proteção ambiental, pois foram os maioresresponsáveis pelo estádio de degradação atual do Planeta e porque dispõem demais recursos financeiros. Colocou a Alemanha no rol destes países e afirmou:

12 Ibid., p. 191.13 ROSAS, Allan. “So called rights of the third generation”. In Economic, Social and Cultural

Rights: A Textbook, 1995, p. 243.

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“A adoção das Convenções sobre o Clima e sobre aBiodiversidade, obrigatórias em direito internacional, é expressãodesta nascente confiança, de uma divisão eqüitativa dos encargospara salvar o meio ambiente global. A Alemanha assinará ambasestas convenções aqui, no Rio de Janeiro.” 14

Como se pode perceber, está clara a idéia contemporânea desolidariedade, traduzida nas palavras de KLAUS TÖPFER não só quando falaem obrigação e divisão eqüitativa de encargos, mas principalmente quando explicaa diferença das parcelas de responsabilidade de cada país, enfatizando quesomente todos juntos lograrão o sucesso.

2 DIREITO A UM MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTEEQUILIBRADO

O direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado está inscrito noart. 225 da Constituição Federal Brasileira de 1988:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

O artigo 225, que contém o direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado, encerra várias idéias em seu enunciado, especialmente a de ‘meioambiente’. Existem diversas compreensões do que seja “meio ambiente”, quepodem implicar diferentes interpretações acerca do direito em referência. Entreos vários autores pátrios que ofereceram suas definições de meio ambiente,destacam-se:

JOSÉ AFONSO da SILVA, que propõe um conceito unitário:

“ O meio ambiente é assim, a interação do conjunto de elementosnaturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimentoequilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca

14 TÖPFER, Klaus. “Solidariedade e responsabilidade global pelo meio ambiente e pelodesenvolvimento”. In: A Política Ambiental da Alemanha a Caminho da Agenda 21. Traduções,no 2, Konrad-Adenauer-Stiftung, 1992, p. 1.

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assumir uma “concepção unitária” do ambiente compreensiva dosrecursos naturais e culturais.” (grifo nosso). 15

TOSHIO MUKAI, na mesma linha, assevera:

“Da mesma forma, a expressão similar ‘meio ambiente’ tem sidoentendida como a interação de elementos naturais, artificiais eculturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vidado homem, não obstante a expressão, como observam os autoresportugueses, contenha um pleonasmo, porque ‘meio’ e ‘ambiente’são sinônimos, como também observa Paulo Afonso LemeMachado (Direito Ambiental Brasileiro, 2a ed. São Paulo, Rev.Tribs, 1989, p. 53).”16

ÉDIS MILARÉ observa que o meio ambiente pertence a uma daquelascategorias cujo conteúdo é mais facilmente intuído do que definível, comoconseqüência da riqueza e da complexidade do que encerra. Ainda assim ressaltaa definição de ÁVILA COIMBRA:

“meio ambiente é o conjunto dos elementos físico-químicos,ecossistemas naturais e sociais em que se insere o Homem,individual e socialmente, num processo de interação que atendaao desenvolvimento das atividades humanas, à preservação dosrecursos naturais e das características essenciais do entorno,dentro de padrões de qualidade definidos.” 17

Neste ensaio, vai-se trabalhar com o conceito unitário já enunciado da linhade JOSÉ AFONSO DA SILVA. Diz-se unitário em oposição à idéia pluralista daescola italiana, de onde se destaca GIANNINI, para o qual o conceito jurídico demeio ambiente é visto sob três aspectos: cultural, sanitário e urbanístico. 18

Para JOSÉ AFONSO, o conceito há de ser unitário e abrangente de toda anatureza, a original e a artificial, para conter: o solo, a água, o ar, a flora, as belezasnaturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico.

15 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 2.16 MUKAI, Toshio. Direito Ambiental Sistematizado.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 3.17 COIMBRA, José de Ávila Aguiar. O Outro Lado do Meio Ambiente. São Paulo: Cetesb, 1985, p. 29,

apud MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo, 2000, p. 53.18 GIANINI, Massimo Severo. “Ambiente: saggio sui diversi suoi aspetti giuridici.” In Revista

Trimestrale de Diritto Pubblico, no 2, 1974, p. 680, apud SILVA, José Afonso da. Direito AmbientalConstitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 2.

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Sobre a qualificação do meio ambiente adotada pela norma constitucionalbrasileira, revelada na expressão ‘ecologicamente equilibrado’, é importante dizerque algumas legislações falam em direito a um meio ambiente sadio, e, emboranão se possa fazer uma correspondência perfeita da significação isolada daspalavras componentes do conceito, vai-se usá-lo como equivalente do direitoconsagrado na legislação brasileira.

Acerca do direito em comento, é relevante ressaltar os seguintes aspectosque vão ser abordados ao longo do estudo: (a) a qualidade de direito fundamental;(b) o reconhecimento expresso na esfera do direito positivo, incluindo comodireito fundamental; (c) a característica de ser um bem de uso comum do povo,art. 225 da CF; e (d) a prescrição de uma obrigação coletiva e estatal.

A qualidade de direito fundamental bem como a positivação vão serespecialmente abordadas no tópico seguinte, subitem 2.1. A prescrição de umaobrigação coletiva e estatal já foi objeto do item 1.1 e vai ser novamente analisadano item 3.

Quanto à característica de o meio ambiente constituir-se num bem de usocomum do povo, cabem aqui algumas considerações. A referida qualificaçãoencerra a idéia da igualdade das pessoas na possibilidade da fruição, da falta derequisitos especiais para esta fruição e da natureza coletiva, significando que oambiente não é divisível em unidades privadas de consumo ou gozo. ÉDISMILARÉ ressalta o “princípio da natureza pública da proteção ambiental”,

“que decorre da previsão legal que considera o meio ambientecomo um valor a ser necessariamente assegurado e protegidopara uso de todos ou, como queiram, para “fruição humanacoletiva”.(...) De fato, ‘não é possível, em nome deste direito,apropriar-se individualmente de parcelas do meio ambiente para oconsumo privado. O caráter jurídico do “meio ambienteecologicamente equilibrado” é de um bem de uso comum do povo.Assim a realização individual deste direito fundamental estáintrinsecamente ligada à sua realização social.”19

19 MILARÉ, Edis e DERANI, Cristiane, apud MILARÉ, obra citada, p. 96-97.

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2.1 RECONHECIMENTO E POSITIVAÇÃO DO DIREITOFUNDAMENTAL A UM MEIO AMBIENTE SADIO

O direito em referência tem sido sistematicamente reconhecido senão pelatotalidade, mas pela imensa maioria das nações, tanto nas legislações domésticas,quanto no âmbito das conferências mundiais, bem como em diversos tratadosinternacionais como sendo direito fundamental do ser humano.

Foi reconhecido na Conferência das Nações Unidas sobre o AmbienteHumano de Estocolmo, em 1972, princípio no 1; na Carta Africana dos DireitosHumanos, de 1981, artigo 24;20 no Protocolo Adicional à Convenção Americanasobre Direitos Humanos, Protocolo de San Salvador, de 1988, artigo 11;21 naDeclaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, princípiono 1, e na Carta da Terra de 1997, princípio no 4.

Está presente também nas constituições de diversos países:

1. Portugal: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio eecologicamente equilibrado e o dever de o defender.” (art. 66, item 1 daConstituição de 1976);

2. Colômbia: “Todas las personas tienen el derecho de gozar de ummedio ambiente sano.” (art. 79 da Constituição de 1991);

3. Paraguai: “Toda pessoa tem direito de habitar em um meio ambientesaudável (...)” (art. 7o da Constituição de 1992); e

4. Cabo Verde: “Todos têm direito a um meio ambiente de vida sadio(...)” (Constituição de 1992, art. 70).22

20 Carta Africana, art. 24: “Todos os povos têm direito a um ambiente satisfatório e geral, favorávelao seu desenvolvimento.”

21 Protocolo Adicional à Convenção Interamericana ou Protocolo de San Salvador, art. 11: “Direitoa um meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contarcom os serviços públicos básicos.”

22 FARIAS, Paulo José Leite. Competência Federativa e Proteção Ambiental. Porto Alegre: SérgioAntônio Fabris, 1999, p. 218.

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ÉDIS MILARÉ, ao tratar do tema, pondera com bastante acerto sobre ofundamento teórico do direito a um meio ambiente sadio, exatamente quandoassevera que este direito humano configura-se, na verdade, como extensão dodireito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos sereshumanos, quer quanto ao aspecto da dignidade desta existência – a qualidadede vida – que faz que valha a pena viver.23

É fundamental ressaltar a característica de ser o direito em tratamentouma extensão do direito à vida, como diz MILARÉ, ou uma dimensão do direitoà vida, como prefere CANÇADO TRINDADE. Este último autor discorremagnificamente sobre o assunto.

TRINDADE enfatiza que o direito supremo do ser humano não pode serentendido de modo restritivo, pois, para sua efetivação, exige ações positivas depreservação:

“Sob os instrumentos internacionais de direitos humanos, a asserçãodo direito inerente à vida de todo ser humano faz-se acompanhar deuma asserção da proteção legal deste direito humano fundamental e daobrigação “negativa” de a ninguém privar arbitrariamente de sua vida(e.g. Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, artigo 6 (1)Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 2; ConvençãoAmericana de Direitos Humanos, artigo 4 (1); Carta Africana dos DireitosHumanos e dos Povos, artigo (4). Mas esta obrigação negativa faz-seacompanhar da obrigação “positiva” de tomar todas as providênciasapropriadas para proteger e preservar a vida humana.”24

Por fim, sobre o reconhecimento do direito, cabe destacar que a adoção,na Constituição Brasileira, do princípio constitucional da proteção ambiental,com a consagração do direito a um meio ambiente saudável, artigo 225, gerouum seguro balizamento para a produção, o uso e a interpretação da legislaçãoambiental ordinária no Brasil. A palavra “princípio,” em sua raiz latina última,significa “aquilo que se toma primeiro” (primum capere), designando início,começo, ponto de partida. O princípio da proteção ambiental é hoje, de fato,referencial e fonte para o arcabouço da legislação comum.25

23 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 96.24 TRINDADE, Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: Paralelo dos Sistemas de Proteção

Intencional. Porto Porto Alegre Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 72.25 MILARÉ, obra citada, p. 95.

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Até mesmo o Supremo Tribunal Federal já se manifestou reconhecendo anatureza de direito humano ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado:

“A QUESTÃO DO DIREITO AO MEIO AMBIENTEECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO. DIREITO DE TERCEIRAGERAÇÃO. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE. O direito àintegridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração –constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo,dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressãosignificativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificadoem sua singularidade, mas num sentido verdadeiramente maisabrangente, à própria coletividade social.” MS 22.164-0/SP, Rel.Min. Celso de Mello, publicado no DJ de 17/11/95.

2.2 SOLIDARIEDADE E RESPONSABILIDADE PARA COM OMEIO AMBIENTE

Em tópico anterior, já se cuidou da compreensão do que sejam os direitosde solidariedade, incluindo o direito ao meio ambiente sadio, e seu surgimentona esfera de direitos humanos. O ângulo a ser visualizado por agora é o daresponsabilidade na implementação do direito em estudo, que corresponde àletra (d) retromencionada no item número 4.

Os autores da cena social são diversos. É o Estado, como primeiro setor,é a sociedade civil, e dentro desta são o segundo e o terceiro setor.

MILARÉ fala que ao meio ambiente aplica-se o princípio da participaçãocomunitária, o qual, ressalta ele,

“não é exclusivo do Direito Ambiental, expressa a idéia de quepara a resolução dos problemas do ambiente deve ser dada especialênfase à cooperação entre o Estado e a sociedade, através daparticipação dos diferentes grupos sociais na formulação e naexecução da política ambiental.”26

Quando KLAUS TÖPFER fez suas considerações sobre aresponsabilidade como decorrência da solidariedade, falou da obrigação entreos povos e entre as pessoas de um modo geral.

26 MILARÉ, obra citada, p. 99.

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Mas, mencionou principalmente a divisão eqüitativa deresponsabilidades. Dentro do nosso sistema social, é o Estado o granderesponsável pela implementação dos direitos, sejam eles quais forem. Porém,quando se trata de proteção ambiental, só ação estatal não é suficiente. O Estadonão é um ente sobrenatural, cuja eficiência na permanente vigília vai permitircontrolar todas as situações de risco.

Por isso é que o Estado atua por meio de políticas, para incentivar, facilitare promover ações desejadas junto à sociedade.

Aqueles que não são Estado, mas detêm uma certa parcela de podersocial têm mais responsabilidade. É o caso das empresas, que interessam deperto à presente análise.

Conforme a definição corrente, constante do Dicionário Aurélio, “empresaé uma organização particular ou governamental, ou de economia mista, que produze/ou oferece bens e serviços, com vista, em geral, na obtenção de lucros”.

Já na acepção jurídica, segundo PLÁCIDO E SILVA: “No sentido doDireito Civil e do Direito Comercial, significa “empresa” toda organizaçãoeconômica, civil ou comercial, instituída para a exploração de um determinadoramo de negócio.”27

Na verdade, do exame dos conceitos, sejam técnicos ou leigos, o que seconstata é que “empresa” é uma noção originariamente econômica e, sendo aempresa um ente econômico por excelência, deve, pois, subsumir-se aosprincípios da ordem econômica, princípios constitucionais, legais e de Mercado.

As empresas, por vezes, são proprietárias dos meios de produção e daconseqüente parcela de capital derivado e deste domínio decorrem diversasresponsabilidades para elas. Aqui, cumpre ressalvar que alguns autores fazemdiferença entre a responsabilidade do proprietário e a do controlador da empresa.Contudo, para o atual estudo, não se está a considerar a responsabilidade depessoa física, quer seja proprietário ou controlador, e sim da pessoa jurídica:empresa.

27 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. V. I e II. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 158.

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Acerca do tema em comento há um texto de inegável valor, escrito porTYLL NECKER, ex-Presidente da Confederação Alemã das Indústrias, noqual NECKER compara as empresas a navios e discorre sobre aresponsabilidade do empresário tal qual a de um comandante:

“Da mesma forma é exigida a responsabilidade empresarial:(...)– em relação ao meio ambiente, para restringir a vulnerabilidade dosalicerces naturais da vida. Essa responsabilidade não resulta dofato de que, em discussões públicas, os empresários freqüentementesão apontados como os culpados. A responsabilidade surge dofato de que muitas empresas são, em primeira instância, fontes deemissão, mas também são fontes de conhecimento tecnológico,técnico, econômico e científico. Vem daí a responsabilidade dasempresas e dos empresários em investir este saber e esse potencialinovador para a proteção e manutenção do meio ambiente.”28

As idéias de NECKER apontam no sentido de uma “reorientaçãoambiental”, pela qual, nos dias de hoje, o meio ambiente é reconhecido comoum terceiro fator de produção, ao lado do trabalho e do capital, obrigando asempresas a uma adequação estrutural.29

3 A ORDEM ECONÔMICA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Constituição Federal Brasileira consagra princípios democráticos eliberais, ou neoliberais. Admite, assim, a livre iniciativa, porém estabelecendolimites ao seu exercício. Este disciplinamento normativo está disposto no TítuloVII: Da Ordem Econômica.

Consoante mencionado em item anterior da pesquisa (item 3), o liberalismo,quando surgiu no século XVIII, era o princípio sem princípios, totalmente livre,que levou a uma situação social limítrofe, dando lugar a diversas reações, sendo,uma das de maior expressão, o socialismo de Marx, que também restou superadono decorrer do século XX.

28 NECKER, Tyll. “A responsabilidade Ecológica dos Empresários,” In A Política Ambiental daAlemanha a Caminho da Agenda 21. Traduções, no 2, São Paulo: Konrad-Adenauer-Stiftung,1992.

29 NECKER, obra citada p. 68.

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O capitalismo prevaleceu sendo hoje exercido numa forma sofisticada eglobalizada, gerando perversas conseqüências sociais. As reações a essa formade dominação continuam. Mas o próprio sistema possui “válvulas de escape” afim de não implodir. Ao tratar da falência do socialismo marxista, BOAVENTURADE SOUSA SANTOS afirmou: “Marx não conseguiu aperceber-se em quesentido real (não apenas metafórico) as relações econômicas eram tambémrelações marcadamente políticas e jurídicas na sua constituição estrutural”. Pelolado inverso, os interessados na permanência do regime capitalista seaperceberam das múltiplas faces das relações econômicas.

De certa forma, as limitações da ordem econômica são válvulas de escape,porque mantêm a essência liberal, atenuada por certas exigências. O jogo deforças permanece, embora seja forçoso reconhecer a formação de nova ética,que luta pela defesa dos melhores conteúdos humanos e pela própria vida.

O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 – CF possui princípioscuja análise é essencial para o desenvolvimento deste ensaio, quais sejam osconstantes dos incisos II, III e VI, além do próprio caput. Pregam os referidosartigo e incisos:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalhohumano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existênciadigna, conforme os ditames da justiça social, observados osseguintes princípios:II – propriedade privada;III – função social da propriedade;VI – defesa do meio ambiente;

O exame do artigo 170 e dos princípios nele inscritos corrobora a jáafirmada responsabilidade das empresas.

Segundo CRISTIANE DERANI, os princípios constantes do artigo 170da Constituição Federal são de duas ordens, quais sejam princípios-base eprincípios-essência. Os princípios-essência “referem-se a um bem essencial àexistência da sociedade”.30 Já os princípios-base não têm o poder de constituiruma base ética da ordem econômica, mas apenas de servir de suporte para aorganização da atividade econômica.31

30 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 247.31 DERANI, obra citada, p. 253.

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Assim, conforme DERANI, quando o artigo 170 nomeia seus incisos de“princípios”, quer dizer os princípios-base. Por tal razão, deve-se ressaltar queo verdadeiro norteador é o princípio-essência, contido no caput do referidoartigo, “o princípio da dignidade humana” fundado na livre iniciativa e navalorização do trabalho humano.

A liberdade de iniciativa é, pois, também um princípio da ordem econômicabrasileira, a ser permanentemente harmonizado com os princípios que consagramdireitos fundamentais abrigados na mesma Constituição e até no mesmo artigo.

Pelo exposto, o sentido finalístico da ordem econômica é assegurar atodos uma existência digna. As atividades econômicas, pois, não poderiam estar,nem estão, autorizadas a influir na queda da qualidade de vida das pessoas. Oprincípio da dignidade da pessoa humana é continente do direito à existênciadigna, que se constituiu direito fundamental, embora não esteja arrolado entre osdireitos do artigo 5o.

O escopo do estudo que se desenvolve é o direito a um meio ambienteecologicamente equilibrado, inserto no artigo 225 da Constituição Federal, eseu desdobramento prático, a gestão ambiental. Consoante CRISTIANEDERANI acentua:

“É impossível abordar o art. 225, como um todo ou em suas diversasprescrições separadamente, sem ter os olhos voltados aosprincípios descritos no artigo 170. A realidade dos preceitosapresentados pelo capítulo do meio ambiente é indissociada destesprincípios-base da ordem econômica.”32

3.1 PRINCÍPIO DA PROPRIEDADE PRIVADA

O conteúdo do artigo 170 da Constituição revela vários princípios, todosinterligados por um maior que é o verdadeiro sentido da ordem econômica eestá enunciado no caput: assegurar a todos existência digna, conforme osditames da justiça social. Entre os princípios a serem observados na ordemeconômica, há de se examinar a propriedade em primeiro lugar, pois constituiela um pressuposto para outros.33

32 Ibid., p.248.33 Ibid. p.249.

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A propriedade privada é a base do modo de produção capitalista. É umanoção que remonta à Antigüidade da civilização. Porém, atravessou os séculossofrendo substanciais alterações. Na sua feição original, a propriedade era umdireito amplo, isto é, abarcava todas as suas externalidades e era oponível aterceiros, mas não tinha por escopo um fim social como acontece hoje. Essaidéia de que a propriedade deve cumprir uma função social é contemporânea.Daí dizer-se que a propriedade privada é pressuposto da função social dapropriedade.

É necessário salientar que, quando a Constituição Brasileira fala empropriedade, não está a proteger unicamente a propriedade imobiliária. O artigo5o, inciso XXII, bem como o artigo 170, inciso III, contêm vários institutosjurídicos, eis que destinados à defesa de bens distintos, como os imóveis, osdireitos literários e artísticos e os industriais.

Na proposta de ARNOLDO WALD:

“A propriedade é o mais amplo dos direitos reais, abrangendo acoisa em todos os seus aspectos. É o direito perpétuo de usar,gozar e dispor de determinado bem, excluindo todos os terceirosde qualquer ingerência no mesmo.”34

EROS ROBERTO GRAU fala da propriedade dotada de função social eindividual, sendo esta última aquela que representa o instrumento adequado àgarantia da subsistência individual e familiar, dignidade da pessoa humana.

Como função individual, pois, a propriedade é garantida na enorme maioriadas Constituições contemporâneas, capitalistas e socialistas. As constituiçõessocialistas contêm preceitos em graus diferentes das capitalistas, é óbvio. GRAUcita algumas Constituições socialistas, das quais, para ilustrar, ressalta-se a daextinta República Soviética:

“A base da propriedade pessoal dos cidadãos da URSS são asreceitas provenientes do trabalho. Podem ser propriedade pessoal,objetos usuais, de consumo e comodidade pessoais e da economiadoméstica auxiliar, a casa de habitação e as economias procedentes

34 WALD, Arnoldo. Direito das Coisas. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 106.

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do trabalho. A propriedade pessoal dos cidadãos e o direito deherdá-las são protegidos pelo Estado.” – art. 13 da Constituiçãoda União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, de 1977. 35

A propriedade vista como um direito está presente, também, eminstrumentos internacionais de direitos humanos, tais como a Declaração Universaldos Direitos Humanos de 1948:

“Artigo XVII.1.Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade comoutros.2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.”

Como se vê, a propriedade é um direito básico na cena da ordem econômica,daí a sua presença entre os incisos do artigo 170 da Constituição Brasileira.

3.2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A idéia de que a propriedade deve cumprir função social é contemporânea.

O conceito de propriedade é uma construção cultural e, como tal, deveservir à sociedade para que se justifique. A propriedade pública já tem, em si,finalidade social. Já a privada necessita de ser conformada para que não setransforme pura e simplesmente em instrumento de dominação.

Sobre a função social pode-se dizer que é um atributo funcional, isto é, àpropriedade privada acresceu-se um atributo de finalidade social. O particularpode usufruir da propriedade, mas neste exercício deve atender aos fins sociais.Aqueles que não são os donos da coisa e que, num momento anterior, apenas sesubmetiam ao domínio passam a poder exigir que o exercício do domínio resultede alguma maneira em benefício social.

Mas não se pense somente na propriedade desligada da função produtiva,estenda-se o raciocínio da função social igualmente à propriedade dos bens deprodução, aqui considerados os que se opõem aos bens de consumo. Podem

35 GRAU, obra citada, p.251.

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ser móveis (até mesmo o dinheiro) ou imóveis, desde que empregados emprocesso produtivo. Os bens de consumo, por sua vez, são os destinados aoMercado, ou às mercadorias.

FÁBIO KONDER COMPARATO assevera que a função social dapropriedade não se confunde com os limites negativos ou as restrições legais aouso e gozo da propriedade. Em se tratando de bens de produção, o proprietáriotem um poder–dever de dar à coisa uma destinação compatível com o interessecoletivo. Quando os bens de produção fazem parte do processo de exploraçãoempresarial, o mencionado poder–dever se traduz naquele de dirigir a empresapara a realização de interesses coletivos.36

3.3 FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE

A função socioambiental da propriedade também está inserida no contextodo artigo 170, inciso VI da Constituição. Essa inserção em nível constitucionalconstitui “vigorosa resposta” àqueles que advogam a exploração predatória dosrecursos naturais, sob o argumento de que as preocupações com a defesa domeio ambiente envolvem proposta de retorno à barbárie.37

A defesa do meio ambiente é erigida à categoria de princípio vinculanteda ordem econômica para reforçar o compromisso de dar função social àpropriedade e estimular ações positivas que tutelem a qualidade ambiental.

ÉDIS MILARÉ anuncia o princípio da função socioambiental dapropriedade e cita KILDARE G. CARVALHO: “a propriedade, sem deixar deser privada, se socializou, com isso significando que deve oferecer à coletividadeuma maior utilidade, dentro da concepção de que o social orienta o individual”.MILARÉ arrima ainda suas convicções no fato de que o projeto do novo CódigoCivil contempla a seguinte disposição quanto ao direito de propriedade:

“deve ser exercitado em consonância com suas finalidadeseconômicas e sociais e de modo que sejam preservados, deconformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna,

36 COMPARATO, Fábio Konder. “Função Social da Propriedade dos Bens de Produção” In Revista deDireito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Ano XXV no 63, setembro/86, p. 73-76.

37 GRAU, obra citada, p. 261.

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as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio históricoe artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”38

Nesse caso, a propriedade dos bens de produção implica um poder–dever de realizar o processo de exploração econômica de determinado negóciopromovendo, ao mesmo tempo, o atendimento dos interesses sociais tambémsob o aspecto da preservação do meio ambiente.

Eventualmente, os bens de produção podem compreender recursosnaturais de propriedade privada. Embora o meio ambiente como um todo sejaum bem de uso comum do povo insuscetível de apropriação, a propriedadeprivada pode recair sobre uma parcela de recursos naturais. Em sendo assim, aapropriação dos recursos naturais por uma empresa implica, também por essavia, a obrigação de defesa do meio ambiente.

Se a empresa utiliza insumos de produção de origem natural, ainda quenão seja deles proprietária, mas os adquira no comércio, igualmente deveobedecer ao princípio da defesa do meio ambiente.

É interessante a posição retrocitada (subitem 4.2) de FÁBIO KONDERCOMPARATO, quando ele diz, acerca do princípio da função social dapropriedade, que este é poder–dever para uma ação positiva e não limite negativode utilização (dos recursos naturais, no caso ambiental):

“A chamada função social da propriedade representa um poder–dever positivo, exercido no interesse da coletividade, einconfundível, como tal, com as restrições tradicionais ao uso debens próprios. A afirmação do princípio da função social dapropriedade, sem maiores especificações e desdobramentos, tem-se revelado, pela experiência constitucional germânica,tecnicamente falha.”39

Propugna o citado autor pela maior especificação de ações positivas quese traduzam verdadeiramente em função social da propriedade. É digna de notatal posição, porque, ao se cuidar de função social, a primeira idéia que vem à

38 CARVALHO, Kildare. Direito Constitucional Didático. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p.217, apud MILARÉ, obra citada, p. 104.

39 COMPARATO, obra citada, p. 79.

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mente é, de fato, a do limite negativo, a qual, segundo ele, por observaçãoempírica da experiência alemã, não vem obtendo os resultados esperados.

Também ÁLVARO LUIZ VALERY MIRRA, citado por MILARÉ,defende ponto de vista semelhante:

“a função social e ambiental não constitui um simples limite aoexercício de direito de propriedade, como aquela restriçãotradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercíciode seu direito, fazer tudo que não prejudique a coletividade e omeio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai maislonge e autoriza até que se imponha ao proprietáriocomportamentos “positivos”, no exercício de seu direito, paraque a sua propriedade concretamente se adeque à preservaçãodo meio ambiente.” 40

SEGUNDA PARTE

A Gestão Ambiental das Empresas, como Forma de Implementação doDireito a um Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado

4 GESTÃO AMBIENTAL

4.1 GESTÃO AMBIENTAL - CONTEXTUALIZAÇÃO E CONCEITO

A palavra gestão, segundo o Dicionário Jurídico, gestão, do DireitoAdministrativo, é o ato pelo qual o Estado gere seu patrimônio ou seus negócios.Já do Direito Civil e Comercial, é a gerência de bens ou interesses alheios. 41

O que hoje se compreende por gestão ambiental emergiu de umaconsciência formada ao longo de determinadas vivências. Falou-se, e ainda sefala, em gestão da natureza, gestão da qualidade da natureza, gestão de recursosnaturais, gestão do meio ambiente e outras expressões afins.

40 MIRRA, Alvaro Luiz V. “Princípios Fundamentais do Direito Ambiental” In Revista de DireitoAmbiental. São Paulo: RT, 1996, no 2, p. 59-60, apud MILARÉ, obra citada, p. 105.

41 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico.V. 2. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 663.

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OLIVIER GODARD narra um acordar, após a década de 70, para aidéia de que os “problemas ambientais” tinham de ser enfrentados a partir dareflexão acerca das modalidades de desenvolvimento tecnológico e econômicoadotadas pelas nações. Diz o referido autor: “Aquilo que denominamos depolíticas de meio ambiente não poderia ser mantido permanentemente à margemdos processos de ação coletiva e de organização econômica.”42

Partindo desta noção, GODARD coloca o surgimento da necessidade dagestão de forma mais integrada. Ele trabalha com o conceito de gestão integradao qual “designa uma utopia mobilizadora, um horizonte que descortina umaperspectiva que não poderá jamais ser alcançada.”43

Assim, preliminarmente, cabe tecer algumas considerações sobre ocontexto no qual está inserido tal conceito.

Entende-se que, ao lado do direito de a pessoa humana gozar de um meioambiente sadio, tem essa mesma pessoa e têm as populações coletivamente odireito ao desenvolvimento. A palavra desenvolvimento está ligada à noção deaumento, crescimento, progresso.

O direito ao desenvolvimento diz diretamente com a melhoria qualitativado padrão de vida das pessoas com o acesso às facilidades e técnicas existentes,o mais das vezes não disponíveis para todos. Encontra eco nas disposições doartigo 170 da Constituição Federal, cujo princípio norteador é a dignidadehumana. Por exemplo, a água encanada e o esgoto são facilidades oucomodidades que milhões de seres humanos não possuem ainda nesta fase daconhecida civilização humana. Isto quer dizer que, mesmo na era da cibernética,muito está por fazer em matéria de desenvolvimento.

O desenvolvimento buscado, que importa em melhoria da qualidade devida, é o chamado de sustentável, ou aquele que mais bem interage com o meioambiente de forma a manter um equilíbrio entre o crescimento e o uso do meio

42 GODARD, Olivier. Gestão de Recursos Naturais Renováveis e Desenvolvimento. Novos Desafiospara a Pesquisa Ambiental. Organizado por Paulo Freire VIEIRA e Jacques WEBER, p. 201.

43 ibid., p. 204.

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ambiente. Também é dito sustentável o desenvolvimento que busca a eficácia nouso do meio ambiente. Portanto, são idéias-chave na compreensão dasustentabilidade do desenvolvimento: o equilíbrio, a eficácia, a melhoria do padrãode vida e o uso do meio ambiente.

Ao perseguir o desenvolvimento, é necessário primar pela eficácia dautilização dos recursos naturais,44 mantendo sempre um equilíbrio entre aspossibilidades de crescimento econômico e de uso dos referidos recursos. Asnações buscam investir e produzir de maneira a obter o desenvolvimento,traduzido em atendimento de necessidades humanas.

Ao produzir e se desenvolver, inevitavelmente, o homem altera o ambienteà sua volta. O processo de urbanização produz alteração do ambiente, seja pormeio da edificação, do asfaltamento, do arruamento, da canalização de águasetc. Até mesmo no meio rural há modificação do meio ambiente, desde ocercamento de um pasto até a completa instalação de uma fazenda. Tudo que seconstrói pode produzir mudança no meio ambiente, tanto durante a construção,como após, pois se criam outras condições de uso do ambiente justamente coma modificação.

Para tornar o processo de desenvolvimento em um que seja mais seguro,exatamente em termos de equilíbrio e eficácia, é que se estuda e se cria a gestãoambiental a ser aplicada de forma sistêmica, para obtenção de melhoresresultados.

Vê-se, pois, que a gestão ambiental é a administração dos recursos naturais,sendo a gestão ambiental das empresas a administração dos recursos naturaisde alguma forma envolvidos num dado processo produtivo empresarial. Osrecursos naturais podem restar direta ou indiretamente envolvidos e talparticipação pode ser antes da produção propriamente dita, durante ou depois.

44 Segundo Vitor BELLIA, na obra Introdução à Economia do Meio Ambiente, Brasília: IBAMA, p.20: “recursos naturais podem ser conceituados, portanto, como aquelas partes da natureza quepodem ser aproveitadas (ou não) num momento dado. É um conceito dinâmico, pois são o trabalhoe a inteligência humana que fazem com que a matéria e a energia passem à condição de recurso.”

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As idéias acima expostas estão corroboradas no pensamento de VITORBELLIA, quando ele diz:

“A partir da falência do conceito de que os recursos ambientaisseriam infinitos, eles passaram a ser objeto de gestão(administração), ferramenta através da qual os seres humanospoderão obter o Desenvolvimento Sustentado.”45

Por sua vez, RUY OTÁVIO B. DE ANDRADE, TAKESHYTACHIZAWA e ANA B. DE CARVALHO propõem um conceito que sintetizaidéias importantes. Para eles, a gestão ambiental das empresas seria “o conjuntode decisões exercidas sob princípios de qualidade ambiental e ecológicapreestabelecidos, com a finalidade de atingir e preservar um equilíbrio dinâmicoentre objetivos, meios e atividades no âmbito da organização.” 46

No presente ensaio, vai-se utilizar o termo gestão ambiental aproveitandoas idéias dos autores supracitados, GODARD, BELLIA, ANDRADE,TACHIZAWA e CARVALHO, porque, entre si, não são conflitantes.

4.2 GESTÃO AMBIENTAL DAS EMPRESAS EM GERAL

“A gestão ambiental tornou-se neste fim de século uma importanteferramenta de modernização e competitividade para as indústriasbrasileiras. A ascensão das questões ambientais até o status deinstrumento gerencial veio suplementar a abordagem de comandoe controle, que desde sua introdução, há quase duas décadas,vinha sendo a única estratégia para garantir a qualidade ambientalno país.As três responsáveis por esta pesquisa vêm, há tempos, realizandoatividades relacionadas à proteção do Meio Ambiente e aoDesenvolvimento Sustentável, tanto no âmbito governamentalde fomento, que é o caso do BNDES, quanto ao empresarial, derepresentação e apoio, como é o caso da CNI e do SEBRAE.”47

45 BELLIA, Vitor. Introdução à Economia do Meio Ambiente. Brasília: IBAMA, Departamento deDivulgação Técnico-Científica e Educação Ambiental,1996, p. 64.

46 ANDRADE, Ruy Otávio, CARVALHO, Ana Barreiros e TACHIZAWA, Takeshy. Gestão Ambiental.Enfoque Estratégico Aplicado ao Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Makron Books doBrasil, 2000, p. 92.

47 Informação obtida no site http://www.cni.org.br, em 15.04.2001.

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A Confederação Nacional da Indústria – CNI é uma organização brasileiraaltamente especializada em desenvolver mecanismos que possam facilitar ofuncionamento e a modernização do parque produtivo brasileiro. Possui a CNI,editadas e colocadas à venda por ela própria, algumas publicações relacionadascom gestão ambiental, tais como a Pesquisa Gestão Ambiental na IndústriaBrasileira, que têm a finalidade de divulgar a gestão ambiental entre osempresários. É da CNI o comentário supramencionado sobre a obra citada.

É digna de destaque a análise da visão desta organização, pois érepresentativa de parcela do empresariado brasileiro. Novamente, a gestãoambiental é tratada como ferramenta e, mais ainda, como estratégia e instrumentogerencial, conceito técnico e mais específico. Concebida dessa forma, a gestãoambiental seria um meio capaz de gerar qualidade ambiental, atuando de modosuplementar à abordagem de comando e controle antes utilizada.48

É importante verificar, consoante ressaltado no comentário citado, que agestão ambiental se constitui de ações positivas, e não somente de limites negativosde utilização (“não-fazer”). Essa constatação coincide com a posição já descritanos itens 4.2 e 4.3 (Cap. 4 - Primeira Parte) de FÁBIO COMPARATO, acercada propriedade dos meios de produção e da função ambiental da propriedade,quando ele afirmou que a função social da propriedade representa um poder–dever positivo, pois a sua simples afirmação sem maiores especificações edesdobramentos revelou-se falha na experiência germânica.49

Uma das formas de implantação da gestão ambiental pelas empresas é asistêmica, pela adoção de normas-padrão. No Brasil, o órgão padronizador denormas é a ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, que vemtrabalhando também na área ambiental. Em nível internacional, existem as normasda ISO, série 14000.

48 Os instrumentos de comando e controle referenciados constam da obra já citada de D’AVIGNON,p. 15-16. Traduzem a exigência de ações negativas por parte da empresa nas etapas do licenciamentoprévio e do licenciamento para instalação, cujo cumprimento era verificado por meio de fiscalização,tais como a proibição de emissões poluentes em determinados níveis, diferentemente da gestãoambiental que incorpora mais do que esse controle, abarcando diversas ações positivas.

49 A posição de COMPARATO reveste-se de maior relevância quando se toma a época em que foipronunciada, isto é, em 1986, portanto, muito antes de ocorrerem acontecimentos decisivos,principalmente no Brasil, como a Constituição de 1988 e a RIO 92.

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Um sistema de gestão ambiental pode ser definido como um conjunto deprocedimentos para gerir ou administrar uma empresa, de forma a obter o melhorrelacionamento com o meio ambiente. Esta é a definição de ALEXANDRED’AVIGNON, cuja proposta de implantação de sistema de gestão ambientalora é objeto desta pesquisa.50

Utilizando o sistema de gestão ambiental a empresa vai elaborar umplanejamento no qual fará um inventário da situação da empresa em relação aomeio ambiente, ressaltando as ocorrências principais, descrevendo as condiçõesde funcionamento da atividade produtiva e analisando a legislação pertinente e onível de atendimento a esta legislação.

Após avaliação inicial, o primeiro passo é o estabelecimento de uma políticaambiental, que defina os princípios e compromissos da empresa para com omeio ambiente. O princípio essencial no estabelecimento da política ambientalda empresa é o da “melhoria contínua”, implicando constante avaliação sistêmicapara melhoria do desempenho ambiental da empresa. Formula-se, então, oprograma de gestão ambiental, estabelecendo metas e objetivos (ver o quadrode aprimoramento contínuo no Anexo 1).

O segundo passo é o planejamento, que importa em um conjunto deprocedimentos para implementação e operação do sistema de gestão ambiental.É importante enfatizar neste passo que deverá ser privilegiado o elemento“prevenção”. Com o planejamento, a prevenção passa a ser desenvolvidarotineiramente visando a reduzir os riscos e as apenações decorrentes deinspeção e fiscalização legal. Em conseqüência, os efeitos da atividade produtivasobre o meio ambiente tornam-se perceptíveis, ante a clara definição dosprocedimentos: o que, como, para que, quando, onde e quem deve fazer.

A terceira etapa é a de implementação e operação propriamente ditas, aentrada em funcionamento da estrutura criada em torno da gestão ambiental.Neste passo, ocorrem o treinamento de pessoal, a comunicação e os registrosde documentação.

50 D’AVIGNON, Alexandre. Normas Ambientais ISO 14000. Como podem influenciar sua empresa.Rio de Janeiro: CNI – Confederação Nacional da Indústria, 1995, p. 26.

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Com o funcionamento aparece a necessidade de correção de falhas,aperfeiçoamento de procedimentos, dando lugar à quarta etapa.

Nesta fase, são feitas as avaliações periódicas de desempenho, comouma auditoria. O principal desta etapa é o monitoramento contínuo paradiminuição de riscos. Esta diminuição visa a evitar realmente os danos eacidentes ambientais, já que tais acontecimentos representam despesaextremamente onerosa de recuperação ambiental, reparação civil, pagamentode multas etc.

É necessário asseverar que há danos ambientais irreversíveis, os quaisdevem ser evitados a todo custo. Esta é mais uma razão para o monitoramentocontínuo e a promoção de auditorias periódicas e usuais no sistema.

Finalmente, a quinta e última etapa é a da revisão ou análise crítica. Estaavaliação crítica visa a rever a própria política ambiental estabelecida e éfundamental para a implantação do princípio da melhoria contínua. Trata-se deuma macrorrevisão do sistema como um todo.

Os princípios que regem o sistema de gestão acima explicitado merecemser enfatizados: a melhoria contínua; a prevenção; a diminuição de riscos; amacrorrevisão e a evolução contínua.

Segunda proposta sistêmica é a de DÁLIA MAIMON. Esta é dirigida,especificamente, para pequenas e médias empresas. Veja-se a seguir,sinteticamente, as principais etapas.

Ela se inicia pela avaliação ambiental com a resposta à pergunta: “ondeestamos”? Após a avaliação é definida a política ambiental com a resposta àpergunta: “Aonde queremos chegar”? É feita declaração ou termo decompromisso, com objetivos e metas compatíveis com a gestão global daempresa, pois o compromisso ambiental deve ser adequado ao seu porte, ànatureza de suas atividades, às tendências do Mercado e às características dasua região de entorno. Por fim, é elaborado o planejamento e implantado osistema, respondendo-se à pergunta: “Como chegar lá”.

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O conhecimento das características básicas dos sistemas é fundamentalpara melhor entendimento do que se compreende por gestão ambiental e dasreais possibilidades de sua implantação e funcionamento.

Uma vez implantado o sistema de gestão ambiental – SGA, a empresapode solicitar a certificação a um organismo nacional, como a ABNT, credenciadono INMETRO, ou em organismo credenciador de outro país. O SistemaBrasileiro de Certificação funciona com o prévio credenciamento do órgãocertificador no INMETRO.51

4.3 GESTÃO AMBIENTAL DAS PEQUENAS EMPRESAS E DASEMPRESAS DO SETOR AGROPECUÁRIO

Ferramenta ou instrumento de valor, a gestão ambiental pode serdesenvolvida pelas grandes, médias e pequenas empresas, embora seja umpensamento bastante comum o de que os investimentos em conservação erecuperação ambientais são vultosos, o que eliminaria a chance das empresasmenores de implementarem atividades de administração ambiental.

Na verdade, as pequenas e micro empresas podem implantar sistema degestão ambiental com vantagens. Se houver limitações para investimentos, aempresa pode investir em procedimentos associados a redução de custos, taiscomo o de redução de uso da matéria-prima por produto e o de reaproveitamentode materiais.

Afirma D’AVIGNON: “As normas de sistema de gestão ambiental podemser aplicadas em qualquer atividade econômica, fabril ou prestadora de serviços,e, em especial, naquelas cujo funcionamento ofereça risco ou gere efeitos danososao meio ambiente.”52

Percebe-se que do momento em que se flexibiliza a noção de empresa,para abarcar neste conceito outros empreendimentos econômicos,independentemente do seu tamanho ou do capital investido, encontram-se fatossurpreendentes.

51 Autarquia federal que absorveu o antigo Instituto Nacional de Pesos e Medidas.52 D’AVIGNON, obra citada, p. 17.

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Um simples condomínio residencial no Brasil, como existem aos milhares,pode desenvolver atividades de gestão ambiental. Um condomínio não tem atividadeprodutiva, logo não é uma empresa, nem na acepção mais larga do termo. Nãoobstante, a administração de um condomínio tem de lidar com a gerência de diversasdespesas e carências correlacionadas com o conforto e o padrão de vida daspessoas que ali habitam. Tais despesas seriam aquelas relacionadas aos gastoscom água, luz, limpeza, ajardinamento e segurança, somente para citar itens clássicos.O condomínio produz certa quantidade de lixo doméstico, o qual uma vezselecionado, direcionado e vendido para reciclagem vai gerar renda extra paraaquela comunidade. Ao mesmo tempo, essa comunidade vai-se conscientizar dosvalores éticos que cercam a preservação ambiental e dos custos sociais eeconômicos que envolvem a produção de lixo e a conservação ambiental.

Ora, se é possível essa iniciativa de conscientização e preservaçãoambiental em nível tão particular, muito mais em nível das pequenas e médiasempresas, e de outras organizações produtivas, tais como as fazendas.

A visão das fazendas como “empresas” é expressada por pessoas dopróprio ramo:

“A pecuária brasileira passa por uma fase surpreendente demudanças profundas, incorporando avanços tecnológicos antesreconhecidos apenas nos processos industriais, na transformaçãomecânica, nas indústrias de base.(...) De alguns anos para cá, vários pecuaristas visualizando todaa cadeia de produção (que inclui fazenda, frigorífico ou laticínio,atacadista, varejista e consumidor, mais governo, centros depesquisa e mercado externo) observaram a necessidade dodesenvolvimento de programas capazes de aumentar suarentabilidade sem requerer aportes elevados de recursos. Asfazendas tornaram-se, efetivamente, empresas agropecuárias, cujocliente final – o consumidor urbano ou rural – quer a sua carne ouseu leite.” (grifo nosso). 53

Nas fazendas, estejam elas voltadas para agricultura, para pecuária ouambas as hipóteses, ou até mesmo para o extrativismo, também pode ser

53 NEGRINI, Miro. Revista ESCALA RURAL. Ano II, no 11, Escala, Nota da Redação, p. 3.

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desenvolvida a gestão ambiental. Há como se obter aproveitamento de recursosambientais mais racional e eficaz nas atividades agrárias.

Na verdade, as atividades agrárias também estão dirigidas à melhoria dascondições de vida das populações. São atividades produtivas que vêm aoencontro das necessidades de alimentação humana. As preocupações com apreservação ambiental se encaixam na otimização da exploração agrícola e dapecuária, no descobrimento de técnicas mais eficazes, menos dispendiosas emenos ofensivas ao ambiente, no aproveitamento de matérias e materiais de usoaté então desconhecido, que vão gerar mais riqueza (plano econômico) ebenefícios sociais (plano social).

É nas atividades agrárias que se pode sentir mais diretamente os efeitosde uma depredatória utilização dos recursos naturais. Quando ignorado edesrespeitado o mecanismo de funcionamento do ecossistema no qual estáinserido um determinado processo produtivo, os custos de produção são maiorese tendem a aumentar com o tempo, já que os recursos ambientais vão-sepaulatinamente alterando e esgotando.

Entre os agentes da gestão ambiental das atividades agrárias, cabe destacaro papel dos agrônomos, que têm a função de adequar o equilíbrio ecológico àspráticas tradicionais de manejo da terra e criações de animais. A título deilustração, vai-se abordar o sistema conhecido como Manejão, de pecuáriasustentável.

Nas palavras do engenheiro agrônomo ALEXANDRE CARVALHO, daVisão Consultoria:

“trata-se de um sistema de produção silvipastoril sustentável,que resgatou alguns conhecimentos antigos validados atravésde análise científica e inseriu técnicas modernas ao conceito,ordenando-os através de uma metodologia de trabalho que integraaspectos agronômicos, zootécnicos e de gestão empresarial paraharmonizar solo, planta e animal.”54

54 CARVALHO, Alexandre e MACHADO, José Ronaldo da Visão Consultoria Ltda.([email protected]) no Parecer MANEJÃO. Pecuária Sustentável, trabalho nãopublicado.

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A primeira coisa notável a dizer é da sustentabilidade (sob o ponto devista econômico e não ambiental), termo muito comentado nos dias de hoje.A precisão conceitual, no caso da atividade agrária, é uma ferramenta valiosa.Seria a pecuária sustentada, sustentável ou auto-sustentável?

Uma pecuária auto-sustentável seria impossível de realização, visto queseria empreendimento que não demandaria tipo algum de insumo ou serviçoexterno, tais como vacinas, sais etc. A pecuária sustentada é aquela que, comonegócio, é suportada por outras rendas do proprietário da terra ou pelo sacrifíciopessoal dele e de sua família, com a utilização de economias pessoais, o queimplica perda de qualidade de vida para as pessoas envolvidas. Esse é o casomais comum no Brasil.

O grande desafio brasileiro é mesmo a pecuária “sustentável”, isto é, quecomo empreendimento agrário se sustente. A pecuária sustentável apóia-se emquatro aspectos fundamentais: econômicos, ambientais, sociais e tecnológicos.

Segundo salienta o agrônomo já referido, na implantação do Manejão,dá-se maior importância ao estudo dos recursos hídricos, contemplando-se apreservação das matas ciliares e “cabeceiras”, a prevenção do assoreamentodos cursos d’água, a adaptação das aguadas naturais e, quando necessário, odimensionamento do sistema hidráulico que atenderá ao rebanho. A sensibilidadedo produtor para realizar a “leitura” do ecossistema de suas pastagens (o solo, aágua, as espécies vegetais nativas e introduzidas, o rebanho e os animais silvestres,os macrorganismos e microrganismos, os trabalhadores e suas famílias) édeterminante para que ele possa se associar à natureza de forma cooperativa ese valer da luz solar, da água, da fertilidade natural do solo, das chuvas, dabiocenose etc., economizando energia e investimentos na produção de leite ecarne de qualidade, ao mesmo tempo em que garante economicidade ao seuempreendimento.

Como se vê, algumas das funções da natureza têm enorme valor naviabilização econômica das atividades agrárias. Por exemplo, a castanha-do-pará é uma árvore que precisa de uma espécie particular de abelha para polinizá-la e da cutia (roedor típico da fauna brasileira de floresta) para abrir sua cascadura, dessa forma colaborando com a germinação da árvore. Como a abelha

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necessita do pólen de uma orquídea da floresta para se acasalar e como asorquídeas, por sua vez, precisam de insetos ou pássaros zumbidores para polinizá-las, a produção contínua da castanha-do-pará precisa do equilíbrio da florestasuficiente para abrigar as abelhas, insetos, pássaros zumbidores, orquídeas ecutias. Os produtores de castanha-do-pará beneficiam-se enormemente donatural funcionamento do sistema no qual está inserida a castanha e têm depreservá-lo.55

Enfim, a administração ambiental é utilizada para o alcance do equilíbrioentre as relações sociais e econômicas da vida no campo, mas não sem o esforçopela implementação efetiva de todos os direitos essenciais da pessoa humana.

4.4 NORMAS AMBIENTAIS E A ISO 14000

Uma das formas de implantação da gestão ambiental sistêmica é pelaadoção das normas ISO, série ambiental, 14000.

A ISO é uma organização não-governamental de padronização, criadaem 1947, em Genebra na Suíça. A sigla significa International StandardizationOrganization. É uma federação mundial, integrada por Organismos Nacionaisde Padronização, contando com um representante por país. A brasileira ABNT(Associação Brasileira de Normas Técnicas), estabelecida desde 1940, é umadas fundadoras da ISO e, como tal, tem direito a voto no fórum internacional denormalização. A ABNT elabora normas técnicas em diversos campos e estácapacitada a efetuar a certificação de produtos e sistemas de produção.

Atualmente, a ISO tem 132 membros, sendo 90 participantes, 33correspondentes e 9 subscritos.56 O objetivo primordial da ISO é criar normasinternacionais, para o que ela se utiliza de seus comitês técnicos compostos porespecialistas de vários países do mundo. O comitê responsável pela criação dasnormas ambientais é o 207 ou TC 207, intitulado Gestão Ambiental, que contacom a participação de aproximadamente 56 países.57

55 CAIRNCROSS, Frances. Meio Ambiente, Custos e Benefícios. Tradução de Cid Knipel Moreira. SãoPaulo: Nobel, 1992, p. 62. The Economist Books.

56 Informação obtida no site www.iso.ch, em 23.04.2001.57 D’AVIGNON, obra citada, p. 39.

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O Comitê Técnico – Gestão Ambiental (ISO TC 207) publicou as primeirasnormas ambientais internacionais em 1996, as quais foram batizadas de ISOsérie 14000.

Consoante D’AVIGNON, norma ambiental é uma tentativa dehomogeneizar conceitos, ordenar atividades e criar padrões e procedimentosque sejam reconhecidos por aqueles que estejam envolvidos com alguma atividadeprodutiva que gere impactos ambientais.58

A série 14000 veio homogeneizar as normas ambientais, porque antes doseu surgimento apareceram diversos tipos de certificação e rótulos ambientaisou “selos verdes”. Ela pode ser aplicada a qualquer atividade econômica, fabrilou prestadora de serviços. A gestão de qualidade da série 9000 faz parte do rolde passos a serem cumpridos para implantação da série ambiental.

A série ambiental 14000 engloba as seguintes normas:

1. normas passíveis de certificação: ISO 14001, de sistema de gestãoambiental e 14040, de análise do ciclo de vida; e

2. normas auxiliares: 14004, 14010, 14011, 14012, 14020, 14021, 14022,14023, 14031, 14032, 14041, 14042 e 14043, que envolvem gestão, auditoria,rotulagem ambiental e ciclo de vida dos produtos.

O fenômeno da globalização econômica impulsiona a padronização. AISO série 9000, implantada em 1987, concernente à gestão da qualidade, foium verdadeiro sucesso em termos de adesão. Em 1996, já eram bem mais de100.000 empresas certificadas no mundo todo.

Sobre a globalização, as palavras de ZYGMUNT BAUMAN esclarecem:

“o significado mais profundo transmitido pela idéia de globalização éo do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dosassuntos mundiais; a ausência de um centro, de um painel de controle,de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo.”59

58 Ibid., p. 14.59 BAUMAN, Zygmunt. Globalização e as Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1999, p. 67.

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BAUMAN, na obra Globalização e as Conseqüências Humanas,discorre sobre a modificação da estrutura Estado-Nação.60 Segundo ele, emtempos relativamente próximos, o Estado controlava a ordem econômica. Hoje,abre-se uma divisão entre Estado e economia. As coisas movimentam-sevelozmente comprimindo o tempo e o espaço das pessoas e fazendo que ocapital circule mais rápido do que o Estado pode controlar. Com isso, o capitalnão tem território fixo nem nacionalidade específica, pertence a organizaçõessupranacionais de influência planetária.

Com a globalização surgiram os grandes blocos econômicos, como a UniãoEuropéia, o Nafta e o Mercosul. Essas modificações políticas, econômicas esociais produzem pressões de amoldamento, entre as quais podem ser inseridasa padronização e a certificação.

Qual o interesse dos países fundadores e membros de criar um organismointernacional de padronização? São interesses econômicos principalmente.Contudo, com o passar dos anos, surgiram também as preocupações ambientais,o interesse de controlar a degradação e diminuir o atual estádio de poluição nomundo.

Em capítulo anterior, já foi apreciado o princípio da propriedade, o dafunção social da propriedade e o da função socioambiental da propriedade.Veja-se que o intrincado funcionamento das relações econômicas, sociais,jurídicas e políticas se mantém fundado nos princípios mencionados. Modificou-se o sistema de produção, inicialmente regido apenas por leis de um Mercadolivre (liberalismo) pela inserção de novas exigências, adequadas a um tambémnovo (no sentido de atual) perfil humano.

As normas ambientais são de implantação voluntária, mas têm despertadoo interesse do setor produtivo, que está entre os maiores responsáveis pelasemissões poluentes e outras formas de degradação ambiental.

É digna de nota a voluntariedade, pois o antigo sistema de controle viaadequação à legislação é compulsório. A implantação das normas ambientais

60 ibid., capítulo 3.

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modifica a relação entre os órgãos oficiais de controle e as empresas responsáveispelos processos produtivos. Tais órgãos passam a, não só controlar, masprincipalmente orientar e acompanhar o processo produtivo.

A série 14000 de normas ambientais é baseada em parâmetros. Com aimplantação da série 14000, tais parâmetros

“passam a ser levados em conta no planejamento estratégico, noprocesso produtivo, na distribuição e disposição final do produto.(...) Quando se atua no processo produtivo com parâmetrosambientais contribui-se para diminuição dos efeitos ambientaisadversos ou desfavoráveis. Assim sendo, a melhoria contínua darelação com o meio ambiente baseia-se na reavaliação dosparâmetros anteriormente utilizados, criando-se um ciclo contínuo.”61

Seria a adoção de normas ambientais uma resposta aos vários tipos depressão que sofrem as empresas? Acredita-se que sim. As pressões são variadase, uma vez não respondidas adequadamente, podem minar uma empresa.62

A cada acidente ambiental e a cada constatação de dano ambiental, fatosque acontecem com freqüência cada vez maior, as pressões aumentam. Osacidentes também podem ser sanitários ou diretamente relacionados à saúde dosconsumidores. O poder da imprensa ao divulgar um fato desse tipo é considerável,fazendo que a reação dos consumidores e do Mercado seja larga e pronta.

Com tudo isso, ocorrem mudanças de comportamento e de concepçãodas pessoas em geral: do público consumidor, dos trabalhadores e dosresponsáveis por processos produtivos. Desenvolvem-se idéias como“mecanismos de desenvolvimento limpo”, “desenvolvimento sustentável”,“tecnologia verde”, “selo verde”, “qualidade total”, “produto orgânico”,“biodegradável” e outras que se possa lembrar.

A adesão às normas da ISO 14000, segundo a pesquisa de DALIAMAIMON,63 deve-se às exigências: dos clientes (incluindo os de fora do Brasil),

61 D’AVIGNON, obra citada, p. 16 e 17.62 Ibid., p.9.63 MAIMON, Dália. I S O 14001 Passo a Passo da Implantação nas Pequenas e Médias Empresas.

Rio de Janeiro: Qualitymark, 1999, p. 6.

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da matriz (no caso de empresas maiores e até multinacionais), do ambiente internoda empresa, dos órgãos de financiamento, das seguradoras e do Estado Brasileiroque exige a normalização como requisito de participação em licitações públicas,além da legislação.

O fato é que a certificação pela ISO 14000 vem aumentandosignificativamente. A BAHIA SUL CELULOSE foi a primeira empresa brasileiraa obter o ISO da série 14000, em 1996. Aproximadamente quatro anos depois,a empresa já conseguiu o retorno de 100% do investimento, que foi da ordemde um milhão de Dólares. O “milagre” deve-se à economia de cerca de trezentosmil Dólares por ano com a redução da utilização de recursos naturais, aliada àredução do consumo de água. Estas reduções são fruto direto da eliminação dedesperdícios e reciclagem, com a otimização dos processos de produção.64

Em pesquisa feita em 1998, junto a um universo de 1.451 empresasindustriais brasileiras, ficou evidenciado que, desse universo, 17% já adotam acertificação ambiental; 11% estão em processo de certificação; 29% têm sistemade gerenciamento ambiental, mas ainda não estão em processo de certificação;30% não têm sistema de gerenciamento ambiental, mas gostariam de ter e somente12% não praticam gerenciamento ambiental nem pretendem obter certificação.65

4.5 CRÍTICAS À CERTIFICAÇÃO

DÁLIA MAIMON, autora do livro ISO 14001 Passo a Passo daImplantação nas Pequenas e Médias Empresas, coloca textualmente que:

(...) “nos últimos anos, observou-se a emergência de um grandenúmero de certificados, rótulos ambientais ou Selos Verdes, comosão conhecidos mais comumente. Os certificados do produtopodem ter referência setorial (Ecotex para o setor têxtil), ou selimitarem a um poluente ou à preservação de recursos naturias(Emissão Zero, Certificado de Captura de Carbono, Certificadosde Origem da Madeira) ou se referirem a práticas Gerenciais (ISO14000 e BS 7750).”66

64 Encarte Especial EMPRESA&AMBIENTE da Revista EXAME, edição de março/2000, p. 16.65 Pesquisa Gestão Ambiental na Indústria Brasileira. Rio de Janeiro: BNDES, Brasília: CNI e SEBRAE,

1998, p. 52.66 MAIMON, obra citada, p. 5.

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Não obstante, a referida autora, de forma bastante lúcida, expõe que anova postura social ante o meio ambiente resulta de pressões políticas, advindasdos Governos, das ONGs, da mídia e das organizações científicas; de “pressõeseconômicas”, condicionantes de financiamentos com imposição de barreirasecológicas às importações e, em grau extremo, no recurso ao direito de ingerência.

MAIMON revela as novas formas de protecionismo na feição dos blocoscomerciais fortes, como o Mercosul e a União Européia, que se consolidampela intensificação das barreiras técnicas e exigência de certificações, entre asquais as ambientais.67

Assim, embora DÁLIA MAIMON afirme seguramente que as vantagensse sobrepõem às desvantagens no caso da adoção das normas ambientais ecertificações, ela reconhece as pressões que levam as empresas a tomarem talcaminho.

Também OVÍDIO GASPARETTO, presidente do Sindicato dosProdutores de Madeira de Belém, Ananindeua e Maritura-PA, e vice-presidenteda Federação das Indústrias do Pará, que participa há mais de dez anos dosprincipais encontros e debates sobre a problemática florestal, especialmente daAmazônia, critica a falta de um sistema de certificação nacional das nossasflorestas, asseverando que os madeireiros brasileiros se encontram “nas mãos”dos europeus e outros importadores. Segundo ele, a indústria tem sido instada aaceitar normas e padrões de certificação definidos por ONGs influentes, comoa WWF – World Wide Fund for Nature. Entretanto, como a floresta amazônicaé atípica, consistindo no mais heterogêneo e complexo sistema botânico domundo, tais normas e padrões ainda não estariam suficientemente estabelecidose acordados entre os importadores e os exportadores. Alerta, ainda,GASPARETTO para o que chama de descaso e omissão do Ministério doMeio Ambiente e do Ibama, pois entende que as ONGs ocuparam um espaçoque seria dos órgãos supracitados.68

67 Ibid., p. 12.68 GASPARETTO, Ovídio. Revista Empresas & Tendências, p. 3-5.

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Entre os argumentos de GASPARETTO, chama a atenção o econômico,pois, conforme afirma, a certificação onera as empresas na medida em que lhessão impostas taxas de valores altíssimos cobradas pelas organizaçõesinternacionais, para obtenção dos certificados.

Na avaliação de RACHEL NEGRÃO CAVALCANTI, a crescente pressãoda sociedade e dos Mercados consumidores reflete-se, em grande quantidade denormas, regulamentos e legislação ambiental incidente sobre o setor produtivo, oqual responde de muitas maneiras, entre elas a adoção da normalização dos sistemasde gestão da qualidade e gestão ambiental. Segundo essa autora, a ISO 14000 éum conjunto de normas aprimoradas, de abordagem internacional, que ascoorporações podem implantar em qualquer país. Arremata CAVALCANTI:

“Certamente, em curto espaço de tempo, essas normas serãoadotadas pelos blocos econômicos, tornando-se ao mesmo tempoum novo desafio para produtores e exportadores do PrimeiroMundo e uma “nova barreira comercial” para aqueles do TerceiroMundo.”69 (grifo nosso).

Das opiniões aqui expostas, contendo pontos positivos e negativos sobrea certificação e a série ISO 14000, pode-se concluir, sob o aspecto econômico,que as empresas procuram seu caminho dentro deste quadro, tentando extrairdo contexto em que se encontram sua sobrevivência e sem crescimento. Sãoinegáveis, porém, os benefícios ambientais em relação à postura de crescimentoa qualquer custo, incluindo-se neste “custo” o sacrifício ambiental.

4.6 CRESCIMENTO DA GESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL

Seguro indicador do crescimento da gestão ambiental no Brasil é osinvestimentos. O relatório Pesquisa Gestão Ambiental na Indústria Brasileira,desenvolvido junto a um universo de 1.451 empresas, atesta que 45% destasinvestem em sistema de tratamento e controle de descarga de esgotos e efluenteslíquidos industriais; 36% em sistemas de disposição de resíduos sólidos industriais;34% investem em redução de ruídos; 27% em sistemas de tratamento e controle

69 CAVALCANTI, Rachel N. “As Normas da Série ISO 14000”, na coletânea: Economia do MeioAmbiente, organizada por ROMEIRO, Ademar, REYDON, Bastiaan e LEONARDI, Maria Lucia.Campinas: Unicamp, 1999, p. 207.

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de emissão de gases atmosféricos e particulados, enquanto 24% investem emtecnologia de conservação ou recuperação de água.70

Segundo a revista EXAME da Editora Abril, Encarte EspecialEMPRESA&AMBIENTE, edição de março/2000, a gestão ambiental vemcrescendo no Brasil:

“(...) Reduzindo o risco de danos à natureza e, ao mesmo tempo,eliminando desperdícios e garantindo ganhos de competitividade, agestão ambiental começa a se tornar realidade no Brasil. (...) A tese deque danos ao meio ambiente são o preço inevitável a pagar pelodesenvolvimento já não encontra mais sustentação. Mesmo atrasado,o Brasil tem registrado diversos avanços no campo ambiental. Umapesquisa realizada em 1998 pela Confederação Nacional das Indústrias(CNI) entre 1451 empresas apurou que 85% delas já adotam algumprocedimento de gestão ambiental – diminuição de gases e emissões,reutilização de resíduos industriais, redução no consumo de energia,reciclagem e controle de ruídos, entre outras medidas. ‘A gestãoambiental está alcançando uma dimensão estratégica nas empresas,’diz José Carlos Barbieri, fundador e coordenador do Centro deEstudos de Gestão Empresarial e Meio Ambiente da Fundação GetúlioVargas (FVG), em São Paulo.”

Outra publicação que também trata deste fenômeno de crescimento é aSINDRATAR, revista do Sindicato da Indústria de Refrigeração, Aquecimentoe Tratamento de Ar do Município do Rio de Janeiro: “Guerra à Poluição. Cresceo número de Empresas que Investem em Programas Ambientais.”71

Os fatores que contribuem para esse crescimento, somados aos que já foramabordados no subitem precedente, são as pressões do Mercado externo, a melhoriado desempenho comercial, a redução de riscos e gastos, a melhoria da relaçãocom o cliente, com o meio ambiente, com os empregados e com o poder público.

Segundo a avaliação de D’AVIGNON, a adoção das normas ambientaisinfluencia beneficamente os negócios, facilitando as relações comerciais. Segundoele, os benefícios ocorrem em pelo menos quatro vertentes ao mesmo tempo,

70 Pesquisa Gestão Ambiental na Indústria Brasileira, obra citada, p. 49.71 SINDRATAR, edição de junho/2000, Ano VI no 59. Esta revista publica matéria idêntica à já citada

no Encarte Especial de EXAME EMPRESA&AMBIENTE.

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enfatizando as seguintes vantagens para a empresa: 1) a redução dos riscos deacidentes ambientais; 2) a melhoria da imagem da empresa; 3) a economia degastos; 4) a possibilidade de penetração nos Mercados globalizados dos grandesblocos, tais como a União Européia, o Nafta e o Mercosul; 5) a conservação deenergia; 6) o menor risco de sofrer apenações pelo Estado; e 7) a contribuiçãopara a qualidade ambiental.

D’AVIGNON relaciona, ainda, vantagens para os clientes, para o meioambiente e para os funcionários, entre as quais: confiabilidade na sustentabilidade doproduto (produtos “verdes”), racionalização do uso das matérias-primas e insumos,conservação dos recursos naturais, harmonização da atividade com o ecossistema,conscientização ambiental do trabalhador e melhoria das condições de trabalho.

Na avaliação da Revista EXAME, Encarte Especial EMPRESA&AMBIENTE, edição de março/2000, página 4:

“Pela primeira vez desde a Revolução Industrial, a poluição vemdiminuindo. Em 1998, as emissões de gás carbônico no mundocaíram 0,5%. É verdade que ainda não estamos livres do perigo detragédias ecológicas. Prova recente foi o rompimento, em janeiro,de um duto da Petrobrás, que, durante 4 horas, despejou 1,3 milhãode litros de óleo nas já degradadas águas da Baía de Guanabara,atingindo os manguezais, essenciais para a sobrevivência da faunada região. Ou o vazamento do Rio Tisza, afluente do Danúbio. Adiferença é que desastres como esses não passam mais em branco.Agressões ambientais agora chocam a opinião pública, abalandofortemente a imagem de uma empresa, e podem custar caro. APetrobrás pagou uma multa de 51 milhões de Reais ao Ibama edeve desembolsar mais 110 milhões em indenizações para amenizaro impacto da devastação. E os governos da Ioguslávia e da Hungriaameaçam recorrer à Corte Internacional de Justiça de Haia contraa Romênia pela catástrofe do Danúbio, que também corta osterritórios desses países.” (o grifo é nosso).

A Pesquisa Gestão Ambiental na Indústria Brasileira, realizada em conjuntopela CNI, SEBRAE e BNDES, ouvindo as empresas, por meio de questionários,aponta as exigências do licenciamento e da legislação ambiental, juntamente coma política social da empresa, a competitividade das exportações e o atendimentoàs preocupações ambientais dos consumidores, como as principais razões paraa adoção de práticas de gestão ambiental nas grandes e médias empresas.

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4.7 GESTÕES AVALIADAS

Este subitem tem a finalidade de ilustrar a pesquisa com dados reais acercada gestão ambiental das empresas no Brasil.

As empresas atuam dentro da livre iniciativa garantida pela ConstituiçãoBrasileira, mas as que implantaram um sistema de gestão ambiental estão empermanente processo de avaliação. O investimento feito em gestão ambiental háde gerar algum tipo de retorno, pois a empresa visa ao lucro. Entretanto, ogerenciamento da produção aliada à gestão ambiental é uma forma de “manter adireção do barco”, não se afastar do escopo final de harmonizar os princípiosconstitucionais reguladores da ordem econômica, o princípio-essência dadignidade humana e os princípios-base, do respeito à propriedade privada, dafunção social da propriedade e da proteção ambiental.

Há, nas empresas, crescente conscientização sobre as possibilidades deinvestimento em gestão ambiental com bons retornos e, mais, conscientizaçãosobre as vantagens de um processo produtivo harmonizado com o meio ambiente.

Por iniciativa do SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro ePequenas Empresas, da CNI – Confederação Nacional da Indústria e doBNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, foidesenvolvida uma pesquisa de amplo espectro sobre a gestão ambiental naindústria brasileira. Alguns dos resultados de tal pesquisa vêm ilustrar o presenteensaio, enriquecendo-o, como se verá a seguir.

A pesquisa foi realizada em 1998, tendo coletado dados de 1996 e 1997.Foram analisados estabelecimentos das cinco regiões brasileiras, Norte, Nordeste,Centro-Oeste, Sudeste e Sul, e de todos os portes, considerando-se, por númerode empregados: até 19, microempresas; até 99, pequenas; até 499, médias; eacima de 500, grandes. A amostra final ficou com a seguinte composição: 57,5%de microempresas; 18,5% de pequenas empresas; 14,7% de médias empresase 1,4% de grandes. Os setores de Vestuário, Calçados e Artefatos de Tecidos,Produtos Alimentares, Metalurgia, Minerais Não-Metálicos e Mobiliáriocorresponderam a pouco mais da metade do total investigado. Contudo, tambémfizeram parte da amostra os setores de: Extrativismo Mineral, Mecânica, MaterialElétrico e Comunicações, Material de Transporte, Madeira, Papel e Papelão,

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Borracha, Perfumaria, Sabões e Velas, Fumo, Química, Produtos Farmacêuticose Veterinários, Couros e Peles, Matéria Plástica e Bebidas.

Em torno de 85% das empresas pesquisadas adotam algum tipo deprocedimento gerencial associado à gestão ambiental.

Os custos operacionais com tais procedimentos, na maioria das grandes emédias empresas, são menores que 5% dos custos dos produtos vendidos,atingindo, no máximo, o limite de 15%.

Das unidades empresariais investigadas, 41% realizam reciclagem deresíduos; 30% cuidam da disposição de resíduos; 28% controlam a emissão deruídos e vibrações; 23% atuam para a redução do uso de matérias-primas; 21%trabalham na conservação de energia; 18% fazem controle, recuperação oureciclagem de descargas líquidas; 15% têm preferência por fornecedores edistribuidores com boa imagem ambiental; 15% trabalham na conservação deágua e, “apenas”, 16% não realizam procedimento algum de gestão ambiental.

4.7.1 RECICLAGEM

Como já se pode perceber, a reciclagem é um dos procedimentos maispraticados:

“Reciclagem e reaproveitamento, disposição de resíduos e controlede ruídos e vibrações são os mais adotados. Redução do uso dematéria-prima é mais destacado nas microempresas, enquanto asempresas grandes e médias são as que mais adotam procedimentosassociados ao controle de efluentes líquidos e gasosos.” 72

Todos os dados específicos sobre cada empresa citada neste tópicoprovêem da publicação EXAME, Encarte Especial EMPRESA&AMBIENTE,março/2000.

No setor de reciclagem, a DU PONT do Brasil destaca-se conseguindoo índice de 98% de reaproveitamento dos materiais que utiliza em sua fábrica delycra em Paulínia–SP.

72 Pesquisa Gestão Ambiental na Indústria Brasileira, obra citada, p. 20.

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Também são expoentes a GENERAL MOTORS, com as fábricas deSão José dos Campos-SP e São Caetano do Sul-SP, nas quais oreaproveitamento dos materiais gerados chega à 80%. Os resíduos se transformamem peças plásticas e componentes de carros. Na fundição, grande parte dasucata de ferro é utilizada para produzir blocos de motor.

Na LATASA, fabricante de latas de alumínio, a reciclagem entra no cicloda economia de energia. Para cada lata reciclada, a empresa poupa o equivalenteao consumo de uma televisão ligada durante três horas.

A conhecida TETRA PAK investe em responsabilidade ambiental e naimagem da empresa reciclando 10% de suas embalagens.

A CENIBRA – Celulose Nipo-Brasileira S/A, recicla as cascas deeucaliptos, principal resíduo do seu processo de produção, utilizando-as comocombustível para caldeira. As cinzas originadas na queima são doadas para aconstrução civil, que usa-as para enxerto em lajes. O lodo biológico, resultadodo tratamento de efluentes, que tem alto valor calórico, também é destinado àscaldeiras. Outros resíduos, tais como plásticos, papéis, arames, sucatas de ferroe madeira, são recolhidos pela coleta seletiva e comercializados.

A reciclagem é uma das medidas que vem registrando maior crescimentono Brasil. Um estudo da ABIQUIM – Associação Brasileira da Indústria Químicae de Produtos Derivados apurou que o comércio e o reprocessamento dosmateriais plásticos vem atraindo número crescente de investimentos,especialmente de pequeno e médio porte. Em São Paulo, uma pesquisa realizadacom 180 empresas recicladoras de plástico revelou que um terço delas foi criadoentre 1996 e 2000.73

CONCLUSÃO

Ao planejar a realização do ensaio de que ora se cuida, formulou-se umproblema que nortearia a pesquisa, qual seja: “pode a gestão ambiental dasempresas ser considerada uma fator de implementação do direito a um meioambiente ecologicamente equilibrado”?

73 EMPRESA&AMBIENTE, Encarte Especial de EXAME, março/2000, p. 22-23.

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De forma a testar a hipótese explicitada, na Primeira Parte, o direito a ummeio ambiente ecologicamente equilibrado foi examinado: no aspecto daelaboração histórica e surgimento na cena social; na característica de direitohumano de solidariedade; no reconhecimento e positivação; na contrapartida dodireito, a responsabilidade, e nas relações com a ordem econômica e seusprincípios.

Em continuação, na Segunda Parte, procurou-se explicitar74 o que é agestão ambiental e como vem sendo desenvolvida pelas empresas no Brasilcontemporâneo.

Tornando à hipótese supracolocada, elaborada sob a forma de problema,esta pode ser prontamente respondida. Entretanto, tal resposta não pode servista como uma asserção estanque, eis que sujeita à permanente avaliação pelamodificação dos fatores que compõem as premissas analisadas.

Também não se pode descurar da eventualidade de o leitor discordar daresposta apresentada, o que não chega a ser tão casual assim. Essa possibilidadenão só existe como viria provocar mais pesquisa sobre o tema, resultando embenefício não só acadêmico, mas principalmente social e, porque não dizer,ambiental.

Postas estas considerações preliminares, resta desvendar a solução a serapontada como resposta para a proposição, qual seja, a de que a gestão ambientaldas empresas, “pode sim” ser considerada fator de implementação do direito aum meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A gestão ambiental das empresas representa um passo além dosinstrumentos de comando e controle e dos incentivos econômicos, utilizadostradicionalmente na gestão ambiental de iniciativa estatal, pois é uma “ferramentagerencial”. Isto quer dizer que, além exigências para o licenciamento e ainstalação das empresas, contam elas com práticas gerenciais para transformarseu processo produtivo. Tal transformação visa a processo produtivo mais

74 Diz-se da tentativa de explicitar, porque o trabalho foi feito seguindo-se as regras impostas para amonografia final do II Curso de Especialização em Direitos Humanos da Fundação Escola Superiordo Ministério Público e da Universidade de Brasília, em cooperação com a University of Essex –Inglaterra.

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“limpo”, no sentido de ambientalmente menos agressivo. Trata-se da buscapor mecanismos de desenvolvimento limpo, tal como idealizado na ConvençãoQuadro das Nações Unidas assinada no Rio de Janeiro em junho de 1992 eno Protocolo de Quioto – Japão.75

Segundo a Convenção Quadro mencionada, as “companhias industriais”podem desenvolver tecnologias e produtos eficientes do ponto de vista energético,assim como métodos melhorados que reduzam as emissões de gases de efeitoestufa de diversos setores, incluindo fabricação de cimento e agricultura, e “osagricultores” podem adotar novas tecnologias que reduzam as emissões dosfertilizantes, da pastagem do gado e do cultivo de arroz.

Ficou transparente, na pesquisa, que a motivação de todos os atores sociaisna busca da realização dos direitos humanos passa pelos mais variados estímulos.As empresas são principalmente impulsionadas pelo vetor econômico, ou seja,adotam a gestão ambiental primordialmente quando vislumbram retornoeconômico, senão de lucro, pelo menos de redução de custos.

Não obstante, ao lado disso, forma-se a consciência da “necessidadevital” da proteção ambiental, resultado do reconhecimento da já ocorrenteescassez de recursos naturais. Apesar de a mídia muito falar nesse assunto,somente de uma década para cá é que ele se tornou objeto de estudostécnicos em todos níveis, incluindo o escolar básico. Hoje, é provável queuma criança brasileira domine melhor os assuntos – ecologia edesenvolvimento sustentável – do que grande parte dos adultos brasileiros.

Apesar dos fatos acima narrados, há imenso vazio a ser preenchido e,talvez por isso, a impressão geral em termos de meio ambiente é de desconfiançae descrença.

Segundo HÉCTOR RICARDO LEIS, embora o interesse pelosproblemas globais, incluindo os ambientais, tenha surgido na cena política apósa Segunda Grande Guerra, sendo uma de suas manifestações os acordos e

75 O Protocolo de Quioto foi assinado entre as Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobreMudança do Clima para o alcance do objetivo final da referida Convenção e o seu conteúdo pode serconhecido, entre outros lugares, no site do Ministério da Ciência e Tecnologia.

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tratados internacionais, que se multiplicaram na década passada, “as dificuldadesnão diminuíram, apenas mudaram de signo.”76 Para este autor, nada ou quasenada foi feito de concreto para solucionar a questão ambiental, sendo uma dascausas por ele apontadas a falta de compromisso político ou financeiro dosgovernos.

Afirma LEIS que, como um dos efeitos da “globalização,” “os Estadosestão sendo desapropriados de sua soberania pelos atores econômicos efinanceiros transnacionais por meio do mercado internacional.”77

De fato, a supremacia do Mercado, ou sistema econômico-financeirointernacional, sobre a estrutura Estado-Nação é patente, resultando, para aquestão ambiental, em um real entrave para a atuação dos governos comoprimeiros gestores da porção ambiental que lhes é correspondente por direito edever.

Paradoxalmente, é esta mesma supremacia do Mercado que impulsionaas empresas na direção da adoção da gestão ambiental, pois, como já se disse,a necessidade vital da proteção ambiental é sentida concretamente por essasempresas, as quais dependem diretamente do meio ambiente ecologicamenteequilibrado.

Finalmente, emerge da investigação a conclusão de que há algunsinstrumentos de gestão ambiental cuja eficácia isolada é questionável. Entretanto,a utilização conjunta destes instrumentos possibilita um espectro bem maior deatuação para implementação do direito a um meio ambiente ecologicamenteequilibrado. Assim, enquanto o Estado age diretamente com os instrumentos decomando e controle, fiscalizando, impondo multas e operando as leis, as empresas,por sua vez, devem buscar a gestão ambiental, como ferramenta gerencial. São,pois, atuações complementares na conquista de melhor qualidade de vida pormeio do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

76 LEIS, Héctor Ricardo. O Labirinto: ensaios sobre globalização e ambientalismo. São Paulo,Blumenau: Gaia. 1996, p.143.

77 Ibid., p. 148.

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