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in Rui Gomes (coord.) (2005). Os Lugares do Lazer. Lisboa: Instituto do Desporto de Portugal. ELÍSIO ESTANQUE Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra Lazer, desigualdades e transformação social * Resumo O presente texto desenvolve uma reflexão, essencialmente teórica, em torno da temática do lazer e dos tempos livres, procurando inseri-la nas tendências mais gerais de recomposição e mudança social. Começarei por discutir a questão do lazer em articulação com as transformações em curso no mundo do trabalho, sublinhando a complexidade crescente e a diluição de fronteiras entre os dois campos. O problema da regulação e institucionalização, através da acção do mercado e do Estado será outro tópico em análise, onde mostrarei a importância do lazer e da cultura nos processos de enquadramento social e também enquanto factores de dissidência e ruptura. Serão referidos os exemplos históricos das ditaduras europeias do século XX para ilustrar o significado social e político associado aos tempos livres destinados ao povo. Tratarei seguidamente a questão das desigualdades e clivagens sociais em curso, tomando o campo do lazer com dimensão principal nesses processos. Por fim, farei referência à questão da classe e do status e ainda ao modo como é organizada a estratificação das diferentes modalidades de ocupação dos tempos livres entre as várias classes e camadas sociais. 1. Introdução O “lazer” e o “ócio” constituem uma actividade da vida social durante séculos circunscrita às classes dominantes e em particular à aristocracia. Sebastian de Grazia entende o lazer, não como uma actividade social mas, acima de tudo, como um “estado de alma”, uma capacidade transcendental, contemplativa e criativa do espírito humano, própria do mundo dos pensadores, artistas e músicos que se distinguem pela constante elevação da mente (Grazia, 1962). Porém, se esta concepção clássica parece adequar-se ao * O presente texto reproduz, com algumas adaptações, uma parte já publicada pelo autor no seu livro: Entre a Fábrica e a Comunidade: Subjectividades e práticas de classe no operariado do calçado. Porto: Afrontamento, 2000.

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Page 1: T8 lazer, classe e status, 2005

in Rui Gomes (coord.) (2005). Os Lugares do Lazer. Lisboa: Instituto do Desporto de Portugal.

ELÍSIO ESTANQUE

Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra

Lazer, desigualdades e transformação social*

Resumo

O presente texto desenvolve uma reflexão, essencialmente teórica, em torno da temática do lazer e dos tempos livres, procurando inseri-la nas tendências mais gerais de recomposição e mudança social. Começarei por discutir a questão do lazer em articulação com as transformações em curso no mundo do trabalho, sublinhando a complexidade crescente e a diluição de fronteiras entre os dois campos. O problema da regulação e institucionalização, através da acção do mercado e do Estado será outro tópico em análise, onde mostrarei a importância do lazer e da cultura nos processos de enquadramento social e também enquanto factores de dissidência e ruptura. Serão referidos os exemplos históricos das ditaduras europeias do século XX para ilustrar o significado social e político associado aos tempos livres destinados ao povo. Tratarei seguidamente a questão das desigualdades e clivagens sociais em curso, tomando o campo do lazer com dimensão principal nesses processos. Por fim, farei referência à questão da classe e do status e ainda ao modo como é organizada a estratificação das diferentes modalidades de ocupação dos tempos livres entre as várias classes e camadas sociais.

1. Introdução

O “lazer” e o “ócio” constituem uma actividade da vida social durante

séculos circunscrita às classes dominantes e em particular à aristocracia.

Sebastian de Grazia entende o lazer, não como uma actividade social mas,

acima de tudo, como um “estado de alma”, uma capacidade transcendental,

contemplativa e criativa do espírito humano, própria do mundo dos pensadores,

artistas e músicos que se distinguem pela constante elevação da mente

(Grazia, 1962). Porém, se esta concepção clássica parece adequar-se ao

* O presente texto reproduz, com algumas adaptações, uma parte já publicada pelo autor no seu livro: Entre a Fábrica e a Comunidade: Subjectividades e práticas de classe no operariado do calçado. Porto: Afrontamento, 2000.

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estudo das “classes ociosas” (Veblen, 1970) das sociedades pré-industriais,

pode dizer-se que, com o triunfo da industrialização, o lazer sofreu profundas

alterações. A modernidade reorientou-o no sentido de uma actividade fugaz e

estreitamente ligada ao campo laboral. Importa neste caso captar o papel que

desempenharam as actividades de tempo livre dos assalariados industriais na

dinâmica cultural que acompanhou os processos de transformação social desde

o século XIX. E. P. Thompson (1987) e outros investigadores ingleses

chamaram a atenção para a importância das relações quotidianas da vida extra-

trabalho na afirmação de uma praxis cultural que se foi orientando para o

convívio de rua, para o pub, a taberna, o jogo e para um conjunto de formas de

diversão e entretenimento popular (Davies, 1992; Hobsbawm, 1984; Jones,

1989; Joyce, 1991). Como adiante irei referir, foi em boa medida devido às

potencialidades de rebeldia dessas atmosferas que os estados fascistas e

autoritários deram tanta atenção ao “controle recreativo” do operariado, a

mostrar o crescente impacto social da esfera dos tempos livres.

Todavia, apesar das constantes pressões para o enquadramento e

institucionalização das actividades e estilos de vida da classe trabalhadora, as

culturas populares têm dado provas de resistência à assimilação da ideologia

da classe média, comprovando que só em parte o capitalismo conseguiu

civilizar as ocupações de lazer do mundo operário. Com efeito, algumas

“vitórias” das classes populares no campo cultural e recreativo podem ser

assinaladas, nomeadamente quando certas práticas de lazer oriundas da

cultura popular dão entrada nos consumos das classes médias. É o caso da

taberna, do futebol e outros desportos e modalidades de jogo, que se

afastaram das ocupações típicas das elites aristocráticas – visto que nestas, as

actividades lúdicas eram bastante mais marcadas pelas dimensões de repouso,

de reflexão e de contemplação (Rojek, 1985; Rosenzweig, 1983).

É neste quadro que se torna necessário adoptar um entendimento menos

selectivo do conceito de “lazer” e orientá-lo para a análise das práticas de

tempo livre e modelos de consumo no seu conjunto, desde as actividades e

estilos de vida das elites às culturas populares, passando pelas classes médias

nos seus diferentes segmentos. Há quem aponte às actividades de lazer os

sinais positivos resultantes do processo geral de democratização da sociedade

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e racionalização das suas instituições. O desporto, por exemplo, é referido por

Rojek como um exemplo de regulação, já que os espectáculos se tornaram

menos violentos e mais compensadoras e acessíveis. Segundo aquele autor, o

lazer deve ser encarado nas suas múltiplas componentes e significados sociais:

1) um fenómeno da vida adulta envolvendo formas miméticas onde a disciplina

e o controle são atenuados; 2) um campo marcado pela racionalidade dos

actores, conhecedores e qualificados; 3) uma dimensão regulada por regras de

legitimação, de prazer e de desprazer; 4) um processo em aberto, baseado na

combinação dos princípios de privatização, individualização, comercialização e

pacificação (Rojek, 1985:180).

2. Trabalho, cultura e lazer

Ao longo dos últimos duzentos anos, a classe trabalhadora manteve uma

relação ambígua com o processo de inovação técnica no campo industrial. Por

um lado, viu-o como fonte de potencial ameaça para os postos de trabalho, por

outro, as tecnologias não só permitiram a eliminação de algumas tarefas

laborais mais duras como favoreceram a expansão do movimento sindical até

um período recente. Corolário desta perspectiva ambivalente é o facto de, já na

segunda metade do século XX, o pessimismo que antevia cenários

ameaçadores em resultado da introdução de novas tecnologias1 ter sido

acompanhado de visões idílicas de um mundo feliz em que as tecnologias

substituiriam largamente o esforço físico do trabalhador, deixando espaço à

criatividade e ao lazer, e configurando o que Ivan Illich (1979) designou como o

direito ao desemprego criador. Ambos os cenários foram amplamente

idealizados no quadro das diferentes correntes ideológicas que influenciaram a

análise das questões laborais. Com efeito, a realidade histórica foi

progressivamente negando qualquer dessas idealizações acerca da técnica – a

positiva ou a negativa – pois os efeitos da evolução tecnológica sempre foram

eminentemente contraditórios.

Nas últimas décadas, várias teses têm surgido a sublinhar a perda de

centralidade ou mesmo o fim do trabalho, enquanto valor decisivo de

1 Basta lembrar o movimento Ludista na Inglaterra do século XIX ou as lutas do movimento operário português na viragem do século XIX para o século XX, mas também muitas das lutas sindicais desde o pós-guerra até aos anos 70.

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estruturação da sociedade, em favor da dimensão do consumo e do lazer.

Prestigiados autores sustentam que se assiste a um desencantamento do

trabalho e à secundarização da esfera laboral em favor de dimensões

alternativas ao exercício da cidadania, como sejam, o espaço do

associativismo, do voluntariado e da chamada economia social, eleitas como

esferas primordiais de participação cívica e factores de coesão ou

transformação social. O trabalho perdeu significado enquanto principal símbolo

daquilo que somos, ou seja, como profissão ou estatuto, tornando-se cada vez

mais um bem escasso, fluído e difícil de perpetuar (Rifkin, 1997; Méda, 1999;

Beck, 2000).

Os atributos que antes conotavam o trabalho com criatividade e

autonomia, têm vindo a ser expulsos do espaço produtivo, mas isso não

corresponde a uma “libertação” do trabalhador ou a uma real expansão e

democractização do lazer à classe trabalhadora. A abertura de fronteiras e a

liberalização dos mercados à escala global reforçaram o poder da economia

financeira e fragmentaram o “trabalho”. Porém, a consequência principal de tal

processo foi o aumento da vulnerabilidade da classe trabalhadora a todos os

níveis e a correspondente perda de vitalidade do movimento sindical. Na

verdade, o trabalho permanece a principal via de subsistência, de preservação

da auto-estima e de busca de reconhecimento social (Gorz, 1999).

Parker e D’ Epiney definiram o lazer por referência ao campo do trabalho,

ou seja, o lazer é entendido como o “tempo livre das obrigações quer para si

próprio quer para outros – o tempo para realizar o prazer de cada um” (Parker,

1983: 10). Esta orientação, embora reflectindo a necessidade de resguardar a

esfera familiar e de lazer face ao campo laboral, anuncia ao mesmo tempo uma

clara interdependência entre os dois domínios. Mas é importante reconhecer

que nos tempos mais recentes se vem assistindo a uma crescente

autonomização do lazer e do tempo livre, que tende a criar a sua própria lógica

em relação ao trabalho (Goldthorpe, 1969; D’ Epiney, 1991: 170; Pronovost,

1998).

Muito embora continuem a surgir concepções diversas acerca da relação

trabalho/ lazer – umas que acentuam o lazer como compensação ou oposição

ao trabalho, outras que põem a tónica no prolongamento entre os dois campos;

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umas pessimistas, que se centram na desumanização do trabalho e na

alienação, outras que salientam as vantagens do acréscimo de tempos livres,

proporcionado pelas novas tecnologias e modalidades flexíveis de trabalho;

umas sublinhando a mudança de valores e as suas consequências em ambas

as esferas, outras advogando a crescente ausência de relação entre elas. Pode

dizer-se, seguindo Pronovost (1998), que as tendências actuais se caracterizam

sobretudo pela diversidade de situações e pela mutação das orientações e

subjectividades face ao trabalho e ao lazer.

O problema da separação entre trabalho e lazer não se coaduna, como

atrás indiquei, com distinções simplistas. Diversas situações ambíguas têm sido

mencionadas por autores como de Certeau (1984) e du Gay (1996). Para o

primeiro, os procedimentos tácticos de consumo prendem-se com trajectórias

erráticas cuja lógica muitas vezes transgride as tradicionais demarcações entre

dimensões como o tempo e o espaço, ou entre trabalho, consumo e lazer. As

práticas de consumo podem insinuar-se nas mais diversas esferas, incluindo as

do trabalho, complexificando a separação entre trabalho e não-trabalho. M. de

Certeau também salienta a importância que certas técnicas de consumo tácito

assumem no próprio espaço produtivo. Podem dar-se exemplos como o da

secretária que escreve uma carta de amor durante as horas de serviço, ou do

operário que aproveita o tempo e os instrumentos de trabalho para fabricar um

objecto pessoal, tomando o tempo da empresa como o seu próprio tempo, ou

seja, estas ‘tácticas’ – que de Certeau ilustra com o exemplo da ‘peruca’ (La

perruque), para acentuar a ideia de ‘mascarada’ ou ‘farsa’ a que os indivíduos

se dedicam no quotidiano2 – não obedecem unicamente à lógica restrita do

trabalho, antes atravessam as suas habituais fronteiras de separação: “a linha

divisória entre trabalho e lazer deixa de ter lugar. Estas duas áreas de

actividade seguem juntas. Repetem-se e reforçam-se uma à outra” (de Certeau,

1984: 29).

É claro que o consumo se diferencia da racionalidade da produção, mas,

mais do que as divisões espaciais, é a percepção temporal que está em causa:

as linhas multiformes, fragmentárias e “erráticas” com que os consumidores

2 Estes aspectos foram, como se sabe, inicialmente tratados pelas correntes do interaccionismo simbólico (Mead, 1934; Goffman, 1959).

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traçam percursos insinuantes ou invisíveis mostram que, enquanto as

estratégias produtivas dependem da erosão do tempo através da imposição de

uma ideia de lugar ou espaço circunscrito, a dimensão das tácticas do

consumidor recusa o estabelecimento de um locus específico. O espaço da

táctica é o espaço do Outro (du Gay, 1996: 90), o que nos remete para a

questão da identidade. Ou seja, a ambiguidade que envolve a articulação entre

produção e consumo liga-se ao problema da identidade na medida em que do

cruzamento entre ambos emergem “semi-identidades relacionais”, envolvidas

em “relações instáveis de imbricação” (Laclau, 1990: 24).

No estudo por mim realizado numa empresa de calçado em S. João da

Madeira foi possível observar fenómenos semelhantes. No quotidiano produtivo

os operários desenvolvem todo um conjunto de jogos, mais ou menos

corrosivos do sistema disciplinar interno, onde se nota a importância dos “micro-

lazeres” e brincadeiras carregadas de sentido cultural e identitário. O

desgastante ritmo produtivo na linha de montagem como que suscitava uma

atitude de evasão mental que se assume como forma de escape a essa

pressão. Essa atitude transporta justamente um sentido de projecção e de fuga

psicológica que parece produzir um imaginário lúdico orientado para os tempos

livres que se oferece como compensação para a disciplina e dureza do

ambiente fabril. Isto ilustra bem a importância fundamental do lazer – mesmo se

apenas imaginado – enquanto negação do trabalho. Mas ao mesmo tempo

comprova o papel dessa construção subjectiva na coesão da colectividade

operária, ou seja, a simples invocação do espaço recreativo enquanto

representação social faz com que ele se repercuta e na reestruturação

identitária da colectividade (Estanque, 2000 e 2004).

A articulação entre estas duas esferas da vida social – trabalho/ lazer –

invoca ainda uma série de outras dimensões e linhas de abordagem: a diferente

orientação para as actividades de lazer consoante a evolução do ciclo de vida,

a flexibilidade de horários, a expansão e significado económico das indústrias

ligadas ao lazer. Apesar de não anularem as clássicas distinções entre

categorias e classes sociais em face das diferentes oportunidades e modelos

de lazer que se lhes oferecem, estes aspectos assumem-se como decisivos na

mudança de atitudes e de valores promovendo múltiplas e renovadas

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diferenciações sociais através das actividades de lazer na sua relação com o

trabalho (Pronovost, 1998).

Para Elias e Dunning, o lazer corresponde ao domínio das actividades

miméticas ou de jogo3, onde os indivíduos podem participar, seja como

espectadores ou intervenientes, dando lugar a representações sociais e formas

de identificação, dotados de grande relevo na reconstrução das identidades.

Nestes contextos as restrições e o constrangimento estão ausentes ou

fortemente atenuadas, levando a que as emoções e a excitação se combinam

com “uma agradável sensação de segurança e onde o risco e a violência são

reduzidos ao mínimo” (Elias e Dunning, 1992: 108). A progressiva

institucionalização dessas actividades – em que o desporto de massas é talvez

o exemplo mais óbvio – transformou-as em formas de excitação controlada que

funcionam como catarse capaz de compensar os constrangimentos impostos

sobre as rotinas da vida quotidiana. O lazer mimético serviria assim de válvula

de escape para as energias transgressivas ou contestatárias das classes

baixas, cujos efeitos se repercutem tanto no domínio do simbólico e das

práticas quotidianas como na acção política.

Uma concepção que segue de perto a visão que acabo de mencionar é a

de Chris Rojek, segundo o qual as relações de lazer se inscrevem numa

englobante economia do prazer cujo significado histórico original foi no sentido

de facilitar a vigilância e o controle das populações (Rojek, 1985). Para além

disso, convém não esquecer o papel do lazer na estruturação das práticas e da

acção cultural das novas classes médias ou dos novos movimentos sociais

(Offe, 1985; Dawson, 1988 e 1991; Maheu, 1995).

A organização social do lazer, além de ser mediada pelas desigualdades

de classe, sexo, etnia, etc., incorpora tanto a acção dos mecanismos de

mercado como a dominação estatal, mobilizando estes diferentes dispositivos

na absorção de parcelas simbólica e materialmente significativas das culturas

tradicionais. O significado desse processo é que, nas nossas sociedades, o

3 Estes autores consideram as seguintes actividades, abrangidas pelo espectro do tempo livre: 1) as relações familiares e os trabalhos particulares; 2) o repouso; 3) as actividades biológicas; 4) as relações de sociabilidade [obrigações “sociais”]; e 5) as actividades miméticas ou de jogo. Só estas últimas são actividades de lazer, onde se incluem iniciativas como a ida ao teatro ou a um concerto, às corridas ou ao cinema, à caça, à pesca, jogar bridge, fazer montanhismo, apostar, dançar ou ver televisão (Elias e Dunning, 1992: 110).

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lazer não pode desligar-se das estruturas de poder, das dinâmicas do

capitalismo e da acção do Estado. Neste sentido, pode dizer-se que a acção de

regulação dirigida ao campo do lazer se inscreve no fenómeno mais geral de

reestruturação e massificação da cultura (Dawson, 1991; Clarke e Critcher,

1985).

3. O Estado e a acção hegemónica sobre as relações de lazer

Na sequência dos direitos que o movimento operário conseguiu conquistar

às classes dominantes, e após os desastres de duas querras mundiais que

tiveram a Europa como palco, seguiu-se uma conjuntura de estabilidade

política e de forte crescimento económico, factores que, como é sabido,

contribuíram decididamente para a consolidação do fordismo e a afirmação dos

Estados-providência europeus. Assim, assistiu-se a partir de meados do século

XX a uma enorme expansão do consumo de massas, o que se tornou num

importante mecanismo de integração social das classes trabalhadoras. Com o

modelo de regulação fordista, o capitalismo foi chamado a governar através do

consentimento, procurando enquadrar o acesso ao consumo no crescimento

económico de longo prazo. Para tal, o Estado teve de apelar a elementos

ideológicos e de carácter supra-classista, já não no contexto colonial dos

nacionalismos novecentistas, mas no novo cenário das diplomacias do pós-

guerra, onde persistiam as estratégias de afirmação das identidades e culturas

nacionais.

Seja como for, o processo histórico de desenvolvimento capitalista não só

impôs às sociedades modernas, sobretudo desde o século XVIII, uma

racionalidade geral da vida económica, como, ao mesmo tempo, tem vindo a

intensificar a institucionalização de múltiplas formas expressivas da vida social

e cultural. A presença constante das organizações económicas ou estatais

orienta-se segundo essa acção de imposição, através de mecanismos de

sujeição e conformidade, tendentes a conduzir a cultura do seu nível mais

primário e espontâneo para o nível mais explícito e técnico. Se qualquer cultura

procura sobreviver, a luta pela hegemonia cultural não se desenrola

simplesmente ao nível político-ideológico (Laclau e Mouffe, 1985). A cultura

dominante procura impôr-se às sub-culturas tradicionais e populares através da

acção do Estado e das classes privilegiadas, estabelecendo os parâmetros dos

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"estilos de vida" que a classe média pretende copiar e que, com a expansão da

cultura de massas no quadro das sociedade de consumo, toca também as

classes trabalhadoras. Nesse processo de institucionalização, qualquer cultura

perde em espontaneidade e criatividade o que assimila em termos de valores

de enquadramento racional. Mas isso não significa que os símbolos de

expressividade espontânea, isto é, que a parte criativa da cultura, desapareça

por completo. As culturas são realidades altamente complexas e dinâmicas que

contêm ao mesmo tempo elementos reguladores e elementos de resistência

aos processos de normalização. O fenómeno geral de institucionalização do

lazer insere-se nesta lógica (Gramsci, 1985; Fiske, 1993).

O lazer não só se vem tornando cada vez mais institucionalizado e

massificado, segundo as necessidades de expansão do mercado e do

crescimento económico capitalista, como se converteu em muitos países na

mais poderosa indústria moderna. O lazer e o turismo passaram, desde

meados do século XX, a constituir objectos decisivos da disputa hegemónica

entre a racionalidade mercantilista, por um lado, e a expressividade espontânea

dos rituais recreativos, das culturas tradicionais, por outro. Parece hoje inegável

a vantagem da primeira orientação. Mas a ideia de uma democratização

generalizada ou tendência homogeneizante no acesso aos usos do lazer não

passa de uma enorme ilusão.

Diversos estudos têm salientado a capacidade das sociedades

contemporâneas gerarem processos de diferenciação social através do acesso

a modos diferenciados de produção e demarcação dos espaços de lazer. O

trabalho da comunicação social, do marketing e da indústria turística, através

das várias agências e especialistas ao seu dispor, orienta-se portanto para a

criação de novas "necessidades", alimentando a exclusividade das elites e a

crescente segmentação de públicos que assegurem a expansão da lógica de

mercado (Heron, 1991).

Assim, "a regulação estatal, o domínio do mercado, a família como

instituição social, a divisão do trabalho pela classe e pelo género, (...) não são

apenas um background para o estudo do lazer, eles são efectivamente

incorporados na organização social do lazer" (Clarke e Critcher, 1985:226). Por

essa razão, as relações de lazer não podem ser estudadas fora das estruturas

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de poder da sociedade e dos mercados globais em que hoje vivemos. Pode

porém aceitar-se que o sistema económico não se limite a reproduzir a

realidade existente, podendo, do mesmo passo, transformar-se a si mesmo e

dar lugar a novas oportunidades para os sectores sociais em ascensão.

4. As ditaduras europeias do século XX perante a esfera do lazer

Já nos anos 20 e 30 do século passado os regimes totalitários da Europa

tinham tentado impor um tipo de “cultura de consentimento”, na sequência de

forte repressão sobre o movimento sindical, que visou conter a acção

revolucionária e reconverter a massa operária em trabalhadores diligentes e

consumidores disciplinados e submissos. De facto, as dramáticas experiências

no nazismo e fascismo, pela atenção que prestaram à organização disciplinada

do lazer para os trabalhadores (Grazia, 1981) através da instrumentalização e

massificação do desporto, ilustraram bem a importância social e política do

lazer e dos tempos livres, utilizados como veículos privilegiados da acção moral

do Estado, levada até à esfera da vida privada das famílias trabalhadoras.

Sem pretender ignorar as especificidades nacionais em cada um desses

processos, refira-se o exemplo de Itália do Dopolavoro (OND - Opera Nazionale

Dopolavoro)4, estudado por Victória de Grazia, segundo a qual esse processo

se ficou a dever "em parte a uma reacção face ao operariado subversivo e em

parte foi uma resposta para as ainda mais complicadas necessidades de um

capitalismo organizado para os trabalhadores se tornarem consumidores

disciplinados assim como operários diligentes, conduzindo a uma vida familiar

'racional', e a um uso do lazer de modo eficiente." (Grazia, 1981:2). Procurando

fundamentar a sua acção em bases científicas, o Estado fascista começou por

penetrar as próprias estruturas do sindicalismo autónomo, contando para isso

com algumas figuras anteriormente ligadas ao movimento operário5.

4 A Obra Nacional dos Tempos Livres (OND) foi criada em 1923 e esteve inicialmente vinculada ao Ministério da Economia Nacional. Era uma estrutura corporativa destinada à organização dos tempos livres dos trabalhadores (equivalente à FNAT portuguesa). À semelhança desta, houve outras, tais como a estrutura nazi “Força pela Alegria” (KDF, criada em 1933), e a organização da ditadura grega de Metaxas, “Saúde dos Trabalhadores” (“Ergatixi Estia”, criada em 1937) e a franquista “Educación y Descanso” (criada em 1938). 5 Como foi o caso de Mário Giani que, sob influência das suas experiências profissionais nos meios do management americano – foi director da Westinghouse Corporation –, já tinha começado a propagandear (desde 1919) as vantagens das 8 horas de trabalho e dos tempos livres para uma organização “científica” do trabalho. Mais tarde, abdicando completamente do

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No caso de Portugal, o lazer e os tempos livres do operariado foram,

como se sabe, objecto de semelhante acção conjugada de moldagem e

manipulação por parte do centralismo repressivo e doutrinário do Estado Novo.

A criação, em 1935, da "Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho"

(FNAT), tinha nos seus objectivos impedir ou travar a “falta de moralidade” que

grassava nos costumes dos operários: "É preciso, através da ocupação útil das

horas ociosas, desenvolver o seu verdadeiro aproveitamento (...), antes de

mais que o trabalhador participe efectivamente na vida da família e assuma

integralmente os encargos da sua autêntica chefia. (...) Há que evitar que o

abuso da diversão exterior comprometa a coesão da célula familiar, se extravie

dos seus deveres de orientação moral (...)" (FNAT, s/d). Mas, apesar do

investimento neste tipo de "terapia social" – apoiada, evidentemente, nos

"complementares" instrumentos de controlo e repressão –, a submissão das

classes subordinadas não deixou de oferecer alguma resistência, mesmo

durante o salazarismo.

Pode referir-se o exemplo do movimento campista, surgido em Portugal

nos princípios do século XX sob influência maçónica e que foi, no pós-guerra,

palco de algumas disputas. Por um lado, a orientação doutrinária salazarista,

zelosamente posta em prática pela "Mocidade Portuguesa", em prol do lema

"pernas rijas, botas cardadas, estrada fora" e, por outro lado, a oposição

democrática que, segundo um estudioso deste fenómeno, lançou em 1946 uma

campanha de acampamentos populares onde se liam, indisfarçáveis, as

palavras de ordem das organizações anti-salazaristas na clandestinidade

redigidas por Piteira Santos (Pina, 1988).

Recorde-se também a importância da contestação social exercida pelos

novos movimentos sociais na Europa dos anos 60, nomeadamente os

ambientalistas e ecologistas, os movimentos pela democracia participativa, os

novos direitos do consumidor (já amplamente reconhecidos), os movimentos de

juventude, feministas, pacifistas, homossexuais, direitos humanos etc. Se

essas formas de acção colectiva mostraram, por um lado, o seu carácter

transclassista e o papel da geração estudantil (em especial no Maio de 68, em

seu passado de sindicalista, o mesmo viria a ser nomeado por Mussolini consul-delegado e director executivo da OND.

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França), por outro lado, exprimiram a emergência da dimensão identitária – em

desfavor dos determinismos económicos a da velha luta de classes – como

factor dinamizador da luta colectiva, elevando assim a esfera do consumo e do

lazer a um novo protagonismo político, social e cultural. De resto, a enorme

variedade destes movimentos prolongou-se ao longo de sucessivas gerações

até aos dias de hoje, impondo novas lógicas de acção, alterando

substancialmente a relação Estado/ sociedade e o próprio conceito de

“política”, ao mesmo tempo que dão expressão a novas preocupações e formas

de solidariedade, introduzindo a dimensão lúdica e a esfera do lazer no campo

das lutas pelo aprofundamento da cidadania (Eyerman e Jamison, 1991; Eder,

1993; Cohen e Arato, 1994; Melucci, 1996; Alvarez et al., 2000; Santos, 2003;

Estanque e Nunes, 2003).

5. Classes, grupos de status e estilos de vida

As transformações sociais em curso, muito embora continuem a

evidenciar a importância da produção e do trabalho na estruturação das

desigualdades sociais, parecem comprovar a crescente centralidade da esfera

do consumo e do lazer. Já a teoria weberiana do grupo de status, argumentava

que a acção social dependia de relações intersubjectivas enquadradas por

identidades colectivas estruturadas sobretudo na esfera cultural. Enquanto,

para Weber, a situação de classe resulta de interesses univocamente

económicos definidos a partir das "oportunidades típicas" no mercado

concorrencial, o grupo de status procura monopolizar ou aceder a um dado

estatuto que reclama consideração e estima social. Ou seja, a riqueza, o poder

e o privilégio não são apenas factores de desigualdade económica, mas

também elementos revestidos de uma capacidade simbólica geradora de

identificações colectivas (Weber, 1944: 244 e 694).

Os estudos históricos de E. P. Thompson (1987) e E. Hobsbawm (1984),

que referi no início, apontam também nesse sentido, ao considerarem que a

construção do operariado enquanto classe não decorreu directamente das

relações de produção mas antes incorporou todo um conjunto de processos e

experiências colectivas, vividas pelos trabalhadores nas suas comunidades de

residência a partir da esfera dos tempos livres, um elemento decisivo na

promoção da identidade como sujeito colectivo. Por seu lado, o contributo de

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Bourdieu para a análise de classes coloca igualmente a ênfase na dimensão

simbólica das representações e dos estilos de vida. As práticas sociais

incorporados nos mapas cognitivos e representações das pessoas e grupos

permitem analisar a configuração das classes a partir de esferas da vida onde o

lazer ocupa um papel fundamental (Bourdieu, 1979 e 1987; Eder, 1993; Maheu,

1995; Melucci, 1996).

Efectivamente, as correntes culturalistas da análise das classes e dos

movimentos sociais têm vindo a mostrar como as posições de classe objectivas

são moldadas pelas práticas e experiências dos actores, isto é, pela cultura, no

sentido em que os comportamentos colectivos evidenciam a relação dos

sujeitos com o esquema de classificação específico de uma situação classe.

Mais do que de situações ou posições fixas na estrutura das desigualdades, o

que sobressai destas abordagens é a importância dos processos e percursos

de vida. Segundo esta linha de análise, pode dizer-se que as experiências

vividas ao longo de uma dada trajectória são incorporadas através dos habitus

de classe particulares que afirmam e estruturam na prática o enquadramento

social dos indivíduos. A ênfase nas trajectórias de classe e nos processos de

reconversão dos diferentes componentes do capital na sucessão das gerações

permitiu conceptualizar os movimentos de mobilidade e as principais linhas de

segmentação entre fracções de classe através dos consumos culturais e

estruturas do gosto, contribuindo assim para entender a interdependência entre

as dimensões objectiva e subjectiva, por um lado, e entre as dimensões sócio-

económica e cultural, por outro. Os múltiplos mecanismos de poder simbólico e

formas de legitimação cultural que as classes dominantes têm ao seu dispor,

ao mesmo tempo que tendem a perpetuar os privilégios existentes,

desenvolvem e consolidam formas hegemónicas de enquadramento das

classes populares e aperfeiçoam os seus próprios meios de reprodução da

estrutura das classes. Enquanto as elites recorrem a uma permanente

reinvenção e distinção dos seus estilos de vida, as classes médias e populares

põem em marcha formas de apropriação e imitação, onde incidem mecanismos

simbólicos de poder através dos quais as desigualdades se reproduzem e

legitimam (Parkin, 1979; Cabral, 2003; Estanque, 2003).

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14

A importância do lazer na análise das classes passa, assim, pelo

enquadramento cultural que as desigualdades veiculam, sob a forma de estilos

de vida particulares. Como atrás referi, a importância da esfera do consumo e

do mercado simbólico não depende apenas do seu alcance económico, mas

também do seu significado nas políticas de enquadramento e regulação estatal.

Todavia, não pode pensar-se que esta dimensão é isenta de conflitualidade ou

que a expansão do consumo gera unicamente conformismo. Como se sabe,

em qualquer campo da vida social, seja ele o desporto, a moda, a cultura, o

ensino, etc., encontramos um conjunto de agentes, instituições e estratégias,

que encerram permanentes jogos de poder e lutas simbólicas de grande

significado (Bourdieu, 1987). As clivagens que têm vindo a desenhar-se na

sociedade portuguesa entre diferentes segmentos da classe média revelam a

importância de fenómenos como o grupo de referência e a privação relativa,

que funcionam como factores de modelação das expectativas de vida com

base nas trajectórias e contextos de sociabilidade onde os diferentes usos do

lazer ganham particular relevância social (Cabral, 1997; Estanque, 2005).

Estudos recentemente realizados sobre a percepção das desigualdades e

da justiça social no âmbito do ISSP (Cabral, 2003)6 revelaram a importância

simbólica da classe média e a relação ambígua dos portugueses em relação a

essa categoria. 63,2% dos inquiridos assinalaram a existência de conflitos de

interesse “fortes” ou “muito fortes” entre a classe trabalhadora e classe média.

Não só os padrões de vida de cada uma dessas camadas sociais são vistos

enquanto divergentes, como, além disso, este dado faz supor que existe uma

luta simbólica pela demarcação de campos e disputa de estilos de vida entre

ambas. Acresce que cerca de 37% dos “proletários” autoposicionam-se como

membros da “classe média” e o mesmo acontece com 52% dos empregadores.

É justamente esse efeito atractivo que coloca a noção de classe média como

um importante referente nas representações dos portugueses, a mostrar a

existência no plano subjectivo de uma disputa no acesso a padrões de

consumo e de vida conotados com esta categoria social. Muito embora se trate

de uma noção vaga e imprecisa, ao instituir-se como “grupo de referência”

6 O International Social Survay Programme (ISSP) em que se apoiou o projecto sobre Atitudes Sociais dos Portugueses, conduzido pelo ICS e publicado em M. Villaverde Cabral, et al., (2003).

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15

segundo qual os níveis de privação relativa e as expectativas sociais são

moldadas, ela não deixa de funcionar como elemento simbólico de grande

relevo na organização dos estilos de vida e dos modelos de consumo

(Estanque, 2003).

Na verdade, os significativos índices de mobilidade e mudança estrutural,

que se têm feito sentir no nosso país nas últimas décadas, são inseparáveis

das formas de acção colectiva e luta reivindicativa entre sectores com posições

distintas na hierarquia da estratificação e que sofreram os efeitos das

tendências de reestruturação sócio-profissional em curso. Por um lado, os

grupos em declínio procuram preservar o seu estatuto enquanto as novas

profissões e categorias em ascensão procuram explorar os recursos que

podem controlar para acederam a uma posição mais vantajosa. A mudança

ocorre, portanto, não de um modo passivo, mas através da acção colectiva e

da solidariedade corporativa, numa luta dirigida à conquista de posições

desejáveis através de estratégias de usurpação ou baseada em mecanismos

de fechamento e estratégias de exclusão (Parkin, 1979: 45; Goldthorpe, 1980).

Deste modo, os estilos de vida que constantemente se redesenham entre

diversos estratos e classes, não só elegem o lazer e os padrões de consumo

em factores decisivos de demarcação social como evidenciam a importância da

componente conflitual de tais processos. De facto, é possível alargar o

significado do conceito de exploração a outras relações de dominação e

sujeição, já que as constantes alterações no puzzle das demarcações sociais e

até as disputas em torno da apropriação do espaço público, em particular

perante a crescente centralidade da vida urbana, são processos largamente

suportados por lógicas de exploração simbólica, uma vez que o reforço do

status de uns grupos é tanto maior quanto mais eficaz for o fechamento

discricionário que exclui outros grupos (Parkin, 1979; Roemer, 1986; Fiske,

1993).

6. Diferenciação social e usos do lazer

Gostaria ainda de fazer uma breve referência aos diferentes modelos de

uso e estilos de vida dos principais segmentos e classes sociais. Convém no

entanto salientar que a diversidade de formas em que se multiplicam os usos

Page 16: T8 lazer, classe e status, 2005

16

do lazer, pelos lugares, temporalidades e práticas respeitantes a diferentes

vivências, torna por vezes difícil proceder a classificações. Uma mesma prática

(o acto de comer num restaurante ou um simples caminhar a pé, por exemplo)

coloca em jogo aspectos que podem ir da situação mais rotineira à mais

requintada, do fast-food quotidiano ao almoço de fim-de-semana em família, o

que tem implicações do ponto de vista do status e das posições de classe. Em

termos subjectivos, um acto vital do quotidiano torna-se, pelo princípio do

prazer, numa prática de ócio que geralmente traduz situações socialmente

diferenciadoras.

A chamada classe de lazer de Veblen apoia-se fundamentalmente na

ideia da sua proximidade com o poder e com o capital económico herdado de

gerações anteriores. "A função governamental é uma função predadora e ela

deriva integralmente do modo de vida arcaico da classe de lazer. Ela consiste

no exercício da autoridade e do constrangimento sobre a população donde a

classe de lazer retira a sua substância" (Veblen, 1970:254). Não obstante este

autor identificar ainda uma outra categoria social relativamente próxima desta,

a classe de lazer secundária, constituída acima de tudo por pessoas em

declínio económico mas oriundas das antigas classes aristocráticas, no seu

todo a classe de lazer desenvolve um conjunto de comportamentos e

actividades quotidianas no sentido de afirmar e incrementar o seu status,

procurando distanciar-se das novas categorias em processo de ascensão

económica. O seu traço distintivo afirma-se, acima de tudo, pela aversão ao

trabalho e pelo revivalismo de alguns valores patrióticos e guerreiros,

evidenciando a sua importância social através do que aquele autor designou

por lazer ostentatório.

Segundo o modelo de Parker, a que aludi no início, este autor sublinha

que o lazer é moldado através da reacção ao trabalho, considerando, portanto,

que essa é a sua principal dimensão estruturadora, mais do que o género ou a

classe. Apesar disso, estabelece uma correlação entre os níveis de status e a

sua articulação com o lazer: nos níveis ocupacionais de maior prestígio

predomina o modelo de extensão, com maior obtenção de prazer e autonomia

na esfera do trabalho; no caso dos trabalhadores manuais onde dominam os

violentos ritmos de produtividade e a alienação, trata-se do modelo de

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17

oposição, uma vez que o lazer se oferece como o oposto do trabalho; e

finalmente o modelo de neutralidade refere-se a situações mistas da classe

média (Parker, 1983). Também para D' Épinay, nos meios burgueses, incluindo

a fracção dos quadros superiores, verifica-se uma promiscuidade entre lazer e

trabalho, a qual advém não só de o tipo de trabalho supor fundamentalmente o

exercício de uma responsabilidade e de uma actividade (e não tanto o

cumprimento de um horário de trabalho), mas ainda pela importância que

nestes casos é assumida pelos objectivos de carreira. Assim, uma parte das

actividades profissionais dos quadros superiores assume um duplo significado,

simultaneamente profissional e lúdico.

As velhas elites de recorte aristocrático ou os grandes magnatas,

continuam evidentemente a reproduzir um mundo social altamente selectivo

que se mantém fechado na esfera familiar. Há certamente a elite da elite, cujo

modo de vida o comum cidadão só pode adivinhar a partir daquilo que ela deixa

mostrar nos media ou nas revistas cor-de-rosa, pois um dos traços distintivos

da verdadeira elite é a sua descrição, ao contrário do sector mais ostentatório a

que se referia Veblen, mais conotado com a nova riqueza. Em todo o caso,

entre esses circuitos fechados há uma infinidade de jogos, disputas,

cumplicidades e competições entre os grupos de status mais elitistas. Este

conjunto tem também as suas distinções internas, visto que a lógica da

distinção recusa qualquer confusão entre diferentes conceitos de “vida

requintada”. Em todo o caso, estes poderosos continuam sem dúvida a marcar

as principais mudanças do mundo, sobretudo no plano económico e político.

Por outro lado, outros sectores aristocráticos em declínio continuam, pelo seu

peso simbólico, a influir nos modelos de representação e identidades colectivas

da população em geral, de que é exemplo na Europa a exposição da família

real inglesa (Pinçon e Pinçon-Charlot, 1999).

Nas posições de topo do mundo empresarial, onde predominam os

cocktails e as vernissages, trata-se de uma participação obrigatória da vida

cultural que muitas vezes exige a prática de um desporto consentâneo com o

estatuto (um investimento calculado e por isso agendado na semana de

trabalho), as actividades de tempos livres são colocadas ao serviço do sucesso

económico (ou da carreira), no sentido de antecipar e modelar, sempre que

Page 18: T8 lazer, classe e status, 2005

18

possível, o futuro (D' Epinay, 1982). As viagens, o manuseamento desafogado

dos recursos tecnológicos, dos meios de transporte, a facilidade de exposição

pública, a proximidade com o mundo da política, o acesso a desportos e

práticas lúdicas exclusivistas, as férias longínquas em ilhas paradisíacas, os

recursos de propriedade, etc., propiciam a estas camadas um estilo de vida que

as coloca no topo da pirâmide social.

Por seu lado, entre a classe trabalhadora deve ter-se em conta a distinção

entre trabalho manual e os empregados do sector terciário, onde o esforço

físico é mais reduzido. A esta clivagem no status profissional corresponde, na

esfera dos tempos livres, o que poderá designar-se como lazeres

especializados. Podemos contudo aceitar que em ambos os casos se verifica

uma clara oposição entre trabalho e lazer. No caso da classe operária, trata-se

de relações de lazer de tipo integrado e holístico, em que não existe distinção

entre as vertentes física/ intelectual, corpo/ espírito, energia/ informação, as

quais se combinam em doses variadas em diversas práticas. Nos estilos de

vida, as camadas populares privilegiam ocupações ou dedicam-se a

actividades que muitas vezes são vividas enquanto práticas lúdicas embora

contenham uma dimensão utilitária. Por exemplo, no caso português, podemos

distinguir entre os sectores mais tradicionais, ligados ainda ao universo rural, e

as populações urbanas. Nos primeiros, as lides da casa, os trabalhos agrícolas

na pequena parcela de terra e outras ocupações de cariz artesanal são formas

comuns de ocupação dos tempos livres. O passeio domingueiro, o ritual da

missa, a excursão ao santuário de Fátima ou às praias e festas mais populares,

o almoço em família no restaurante, o jogo de futebol da equipa local ou

mesmo em alguns casos a prática de jogos populares de rua (o jogo da malha,

por exemplo), além dos festejos cíclicos associados à religiosidade (e ainda

com reminiscências de ligação às colheitas), encontram-se entre as actividades

de fim-de-semana e de tempos livres da classe trabalhadora. Nas grandes

urbes, os sectores populares, tendo em comum muitas das práticas anteriores,

têm vindo a privilegiar a frequência dos centros comerciais, os passeios de

carro geralmente em visita a familiares, as férias no campismo, bem como a

ligação ao associativismo de bairro, práticas ou frequência de espectáculos

desportivas diversos, mas onde o futebol é rei. As idas ao café, o almoço fora

Page 19: T8 lazer, classe e status, 2005

19

com a família, etc., são também ocupações de fim-de-semana muito partilhadas

pela classe trabalhadora que habita predominantemente as periferias das

principais cidades.

Os modelos de lazer são sem dúvida reflexo de diferentes subculturas. Ao

contrário das classes polares, no caso das classes médias a existência dessas

subculturas é muito mais difícil de identificar devido ao carácter mesclado desta

categoria. Enquanto os empregados de escritório menos qualificados, com

baixas expectativas de ascensão profissional, adoptam estilos de lazer

próximos das classes populares, os sectores mais elevados (quadros médios),

por força do investimento na profissão, tendem a copiar modelos supostamente

mais próximos das categorias superiores. Estas duas fracções têm, por sua

vez, em comum o facto de constituírem o grupo social mais ligado ao consumo

de massas — sendo, por isso, alvo privilegiado das estratégias publicitárias e

dos mass media. Ao mesmo tempo, constituem o grupo mais propenso à

especialização entre actividades físicas e espirituais. As actividades orientadas

para o bem-estar físico, como a prática de ginástica, o jogging a frequência de

cursos de yoga, escolas de dança, mas também os consumos culturais como o

cinema e o teatro, etc., enfim, trata-se de um campo muito mesclado em termos

de composição social, mas onde proliferam as classes médias urbanas nos

seus diferentes segmentos.

Recorrendo uma vez mais ao modelo de Bourdieu, pode dizer-se que as

opções e estilos de vida variam consoante a composição e o volume de capital

(económico, cultural, simbólico, educacional) que, em conjugação com as

respectivas trajectórias e habitus de classe desenham segmentos particulares

de classe média. Algumas formas de utilização do tempo livre por parte dos

sectores tradicionais mais qualificados da classe trabalhadora manual e da

fracção da pequena burguesia de execução (empregados com fracos recursos

em capital económico e cultural) como por exemplo os hobbies dedicados à

bricolage, visitas a castelos e monumentos, colecções e actividades de

autodidactismo, podem ser interpretadas como sinais de boa vontade cultural e

símbolos de uma disposição ascética que indicam a ambição de mobilidade

ascendente por parte destas camadas (Bourdieu, 1979). Noutros casos, fala-se

por vezes em lazeres "desenvolvimentistas", quando surgem em sintonia e na

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20

sequência de competências e atitudes mobilizadas no quadro do emprego. De

um modo geral pode dizer-se que a tendência para a especialização do lazer

se vai acentuando à medida que subimos na escala social, das classes

populares para as classes dominantes.

Em suma, a conexão entre classes e lazer recusa a ideia de que o lazer

resulta de uma evolução natural ou de um processo tecnológico conduzido

pacificamente no sentido do acesso generalizado e indiferenciado ao lazer,

devendo antes ser considerado um campo de luta quer de ordem material, quer

simbólica. Como procurei mostrar, as relações de lazer parecem enquadrar-se,

por um lado, num esquema de reprodução social e de submissão à

massificação consumista mas, por outro lado, constituem um espaço de

práticas sociais e de identidades colectivas com capacidade estruturante da

luta pelo estatuto social. Esta combinação de elementos de controlo com

elementos de liberdade surge, paradoxalmente, como um traço marcante do

campo do lazer, cuja ambiguidade parece coincidir com a raiz etimológica da

própria palavra (lazer=licere) que no latim significa "ser autorizado" ou "ser

legalizado".

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