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Castelo Branco Científica - Ano II - Nº 03 - janeiro/junho de 2013 - www.castelobrancocientifica.com.br 1 Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 SUSTENTABILIDADE E RELIGIÃO GIOVANI MARINOT VEDOATO 1 RESUMO O presente artigo visa efetivar uma devida articulação entre o tema da susten- tabilidade e a função pública da religião. Se por um lado a temática da sus- tentabilidade coloca-se como algo vital ao ser humano moderno, por outro, uma religião que se diz séria, não pode passar à mercê de tamanha ordem. Palavras-chaves: História, Religião, Sustentabilidade, Terra e Vida. ABSTRACT The present article aims at bringing into effect a proper articulation betwe- en the theme of sustainability and the public function of religion. If on one hand the issue of sustainability places itself as something vital to the mo- dern human being, on the other, a religion that affirms to be serious, cannot be at the mercy of such an order. 1 O Professor Pe. Dr. Giovani Marinot Vedoato é professor de filosofia na Faculda- de Castelo Branco, em Colatina – ES.

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Castelo Branco Científica - Ano II - Nº 03 - janeiro/junho de 2013 - www.castelobrancocientifica.com.br 1

Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255

SUSTENTABILIDADE E RELIGIÃO

GIOVANI MARINOT VEDOATO 1

RESUMO

O presente artigo visa efetivar uma devida articulação entre o tema da susten-tabilidade e a função pública da religião. Se por um lado a temática da sus-tentabilidade coloca-se como algo vital ao ser humano moderno, por outro, uma religião que se diz séria, não pode passar à mercê de tamanha ordem.

Palavras-chaves: História, Religião, Sustentabilidade, Terra e Vida.

ABSTRACT

The present article aims at bringing into effect a proper articulation betwe-en the theme of sustainability and the public function of religion. If on one hand the issue of sustainability places itself as something vital to the mo-dern human being, on the other, a religion that affirms to be serious, cannot be at the mercy of such an order.

1 O Professor Pe. Dr. Giovani Marinot Vedoato é professor de filosofia na Faculda-de Castelo Branco, em Colatina – ES.

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Keywords: History, Religion, Sustainability, Earth and Life.

INTRODUÇÃO

O momento histórico presente nos coloca diante de um grande dilema: ou formamos uma aliança global em torno da preservação da vida em sentido amplo, ou caminharemos para a destruição da biodiversidade. Eis o novo horizonte que se levanta no linear do tempo corrente: romper com o para-digma antropocêntrico, instaurado no início da modernidade e avançar em direção a um novo tempo epocal. Tempo em que o humano perde a centra-lidade em detrimento da comunidade de vida.A vida, em suas várias manifestações como centro do universo, é uma questão sine qua non para os tempos presente e futuro da humanidade. De fato, como apontam diversos autores, ou cuidamos de tudo que vive, ou morreremos todos.Onde entra o tema da religião nessa nova pauta imposta pela centralidade da vida? Em primeiro lugar, é preciso definir o que é e para que serve a religião. Depois, apresentar uma visão religiosa em que sua função pública se torne útil e necessária. Eis o intento do presente artigo; mostrar a indis-sociabilidade na relação sustentabilidade e religião para os tempos atuais.

SUSTENTABILIDADE

Por que falarmos de sustentabilidade como algo vital nos dias de hoje? Quem sabe o preâmbulo da carta da terra, aprovada no dia 14 de março do ano 2000 pode nos ajudar.

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“Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher seu futuro”. 2

E continua:

“Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos equitativamente e o fos-so entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e são causa de grande sofrimento”. 3

Como definir o tema da sustentabilidade? Uma das melhores definições é dada por Leonardo Boff:

“O conjunto de processos e ações que se destinam a manter a vi-talidade e a integridade da Mãe Terra, a preservação de seus ecos-sistemas em todos os elementos físicos, químicos e ecológicos que possibilitam a existência e a reprodução da vida, o atendimento das necessidades da presente e das futuras gerações, e a continuidade, a expansão e a realização das potencialidades da civilização humana em suas várias expressões”. 4

2 CARTA DA TERRA. Disponível em: www.cartadaterra.org3 Ibidem.4 Boff, L. Sustentabilidade, p. 14.

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A riqueza da definição de Boff é que ela indica em termos de operacionalidade para alguns passos importantíssimos:

1º passo – O cuidado com a Mãe terra – Assim como os filhos são cha-mados a cuidarem de suas mães de forma filial, cabe aos seres humanos desenvolver esta relação amorosa e cuidadora com a Mãe Terra. Isso signi-fica desde o não jogar papel no chão até reflorestar florestar, e desenvolver programas de preservação do planeta. 2º passo – A Mãe Terra como comunidade de vida – Cuidar da biodiversi-dade é uma questão central para pensarmos a continuidade não só das va-riedades de vida, mas, até mesmo, da nossa própria vida neste planeta. Em termos práticos, significa desenvolvermos o seguinte lema: Sem o cuidado com a comunidade de vida, a vida não será possível.

3º passo – A generosidade como presente/futuro do Planeta – Face ao des-cuidado com o planeta, a nova ordem seria de deslocarmos o eixo do “eu” para o “nós”, ou seja, para o eixo da generosidade operosa, que cria relações amorosas, cuidadora, elegante, cordial com todas as expressões de vida.

4º passo – Interdependência humana local e global – A interdependência postula objetivamente que nossa vivência em rede não nos permite hierar-quizar o tema da comunidade de vida num tema periférico ou secundário. Se por um lado somos comunidade, rede, estamos inter-retro-conectados, por outro, o cuidado é vital com toda a biodiversidade. Isso porque, a vida é o centro, é ela que precisa ser defendida e garantida em sua essência.

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RELIGIÃO

O termo religião advém do latim religio, que dá a ideia etimológica de re--ligare, que significa religar e ligar o ser humano com Deus.Em seu livro “A águia e a galinha: uma metáfora sobre a condição hu-mana”, Leonardo Boff afirma que o papel da religião é de possibilitar, em última análise, o encontro do ser humano com o divino.

“A função da religião é criar as condições para que cada pessoa pos-sa realizar seu mergulho no Ser e encontrar-se com Deus”. 5

Diferente da fé que é mais um atitude de adesão e entrega a Deus, a reli-gião, ao contrário, indica para o campo da doutrina, do rito, do dogma e da liturgia. Concretamente, a religião é como se institucionaliza a fé através de hierarquia, celebrações e diversas solenidades. Portanto, ela orienta-se mais para o campo da mediação no encontro entre ser humano e Deus. Diferente da teologia que é a racionalização da fé. Enfim, religião significa o conjunto de práticas que uma pessoa ou comunidade realiza como des-dobramento de sua fé religiosa.Desta forma, a religião não é um tema meta-histórico e desvinculada da co-tidianidade das pessoas. Ela acontece na vida, o que, portanto, em sentido histórico, todo o seu discurso transcendente se dá a partir da imanência da vida. Consequentemente, qualquer postura dualista oriunda da racionalida-de religiosa nessa perspectiva não confere com o significado último do que a palavra religião reclama para si. Então, é deveras importante falar acerca

5 Boff, L. A águia e a galinha: uma metáfora sobre a condição humana, p. 89.

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da função pública da religião, ou seja, historicamente não existe religião a-histórica e neutra, ela sempre estará a serviço ou não de uma determinada visão de mundo.Objetivamente, nasce dessa ordem a necessidade de vincular adequada-mente o tema da sustentabilidade com o da religião. Se a sustentabilidade orienta para a possibilidade da vida presente e futura do planeta, por sua vez, a religião indica para o comprometimento com toda comunidade de vida planetária como dom sacramental.A religião não pode ser assunto simplesmente do intra-templo, ou de sa-cristia como querem muitos. Sua função pública é fundamental no que tange ao cuidado com a vida do planeta.Nessa relação sustentabilidade e religião, eis algumas posturas vitais que devem nortear a prática religiosa.

1ª postura – Cuidar amorosamente da vida em sentido pleno – O paradigma antropocêntrico deve ser substituído pela referência comunidade de vida, ou seja, no centro não está mais o ser humano, mas a vida de forma geral. Cabe ao ser humano cuidar da vida, intendendo-se pertencente, parte in-tegrante e não dominadora desta grande cadeia de vida que é a terra. Eis o que postula um belíssimo texto do livro do Gênesis:

“Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e guardar”. 6

6 Gn 2, 15.

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2ª postura – Comunidade de vida – Viver no planeta hoje deve significar viver com outros, participar do banquete da vida de forma interdependente, comprometida e zelosa com a nobre tarefa de construir um mundo possível como diz o evangelho de João:

“Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”. 7

3ª postura – Generosidade com os mais pobres – A centralidade na biodi-versidade não exclui a opção pelos pobres, na verdade exige algo mais, como nos diz Pablo Richard:

“Não basta escutar o grito dos pobres e o grito da terra e optar por eles. A opção pelos pobres urge-nos, com os mesmos pobres e ex-cluídos, a buscar alternativas concretas e críveis. A opção pelos po-bres hoje, exige a reconstrução da esperança e a proposta de alterna-tivas. Urge passar do protesto à proposta”. 8

Daí, a denúncia profética de Leonardo Boff:

7 Jo 10, 10.8 Richard, P. Força ética e espiritual da teologia da libertação, p. 90.

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“Sustentabilidade se realiza quando cada indivíduo pessoal puder viver autonomamente, ganhar seu pão, para ele e para sua família, conseguir chegar ao final do mês com as contas pagas, de alimenta-ção, de água, de luz, de telefone, de internet, de aluguel de casa, de transporte, de educação e de outras coisas básicas da infraestrutura material. Sob este ponto de vista, grande parte da humanidade não goza de sustentabilidade: vive abaixo da linha da pobreza, sem água tratada, sem esgoto, sem e com má nutrição.” 9

4ª postura – Construir uma sociedade do bem-viver – Uma sociedade do bem-viver significa optar por um modelo de vida onde não se consome mais do que aquilo que o ecossistema pode suportar. Significa equilibrar adequa-damente produção, reutilização e reciclagem. Em perspectiva religiosa, sig-nifica estar bem com os outros existentes e com Deus conforme Boff:

“Bem-viver é estar permanentemente em harmonia com o Todo, harmonia entre marido e mulher, entre todos na comunidade, ce-lebrando os ritos sagrados que continuamente renovam a conexão cósmica e com Deus”. 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relacionalidade proposta entre sustentabilidade e religião conduz de ma-neira objetiva a algumas conclusões:

9 Boff. L. Sustentabilidade, 16010 Ibidem, p. 62.

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1ª conclusão – Contemporaneidade do tema sustentabilidade – Urge ao tem-po presente, a formação de uma aliança global para cuidarmos da terra e de toda sua biodiversidade. Do contrário, teremos que conviver com a matança da diversidade da vida e com a possibilidade da destrutividade do planeta;

2ª Conclusão – Não existe religião neutra, ou religiões “em cima do muro”. Toda religião é histórica o que, portanto, significa pensar no compromisso ou na omissão do sistema religioso em geral frente ao tema da sustentabilidade.

3ª Conclusão – Avançar na temática sustentabilidade e religião, mais que elaborar caminhos conceituais, significa pensar operacionalidades práticas constantes no intuito de que a continuidade e a vitalidade do planeta sejam possíveis;

4ª Conclusão – Por fim, não é justo, nem ético e muito menos lúcido, pen-sar numa dicotomia entre sustentabilidade e religião. Isso porque, sustenta-bilidade e religião bem articuladas, podem apresentar um caminho seguro à luz da fé, da presença de Deus entre nós.

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REFERÊNCIAS

BOFF, L. A águia e a galinha: uma metáfora sobre a condição humana. Petrópolis: Vozes, 2001.

_____, Ethos mundial. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

_____, Sustentabilidade. Petrópolis: Vozes, 2012.

GADOTTI, M. Pedagogia da terra. Petrópolis: Ed. Da Fundação, 2000.

RICHARD, P. Força ética e espiritual da teologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006.

TOURAINE, A. Um novo paradigma para compreender o mundo hoje. Petrópolis: Vozes, 2006.