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O sistema único de saúdeum processo social em construção*

Eugênio Vilaça Mendes**

O SUS está desenganado.Francisco de Oliveira, economista do IPEA, na Folha de São Paulo , 1996.

O SUS é uma revolução sem precedentes.Renato Fairbanks Barbosa, médico aposentado, na Folha de São Paulo, 1994.

O SUS como processo“Plantar carvalhos? Como se já se decidiu que somente eucaliptos sobreviverão?Plantar tâmaras, para colher frutos daqui a cem anos? Como, se já se decidiu quetodos teremos de plantar abóboras, a serem colhidas daqui a seis meses?”.

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A fala do filósoso-educador deve ser ouvida quando se trata de discutir pro-cessos sociais, de longa maturação, incompatíveis com a ocorrência de eventosdiscretos, bruscos, determinados, seja por manifestações de grupos de interesse,seja por construções ideológicas, de curto prazo.

O SUS, entendido como processo social em marcha, não se iniciou em 1988,com a consagração constitucional de seus princípios, nem deve ter um momentodefinido para seu término, especialmente se esse tempo está dado por avaliaçõesequivocadas que apontam para o fracasso dessa proposta. Assim, o SUS nem come-çou ontem e nem termina hoje.

Reformas sociais, em ambiente democrático são, por natureza, lentas e politi-camente custosas. Mudanças rápidas são típicas de regimes autoritários.

Falar de processo social implica reconhecer a complexidade de uma constru-ção que se dará em ambiente habitado pela diversidade das representações deinteresses e em campos sociais de diferentes hierarquias, quais sejam, o político, ocultural e o tecnológico.

O SUS, como processo social, tem dimensão política dado que vai sendoconstruído em ambiente democrático, em que se apresentam, na arena sanitária,diferentes atores sociais portadores de projetos diversificados.

* Texto parcialmente publicado, com autorização da editora, de: MENDES, E.V. Uma Agenda para aSaúde. Hucitec, São Paulo, 1996. 300p. Para atender melhor a esta publicação fizemos uma novanormalização e uma nova diagramação.

**Foi durante onze anos consultor em Sistemas e Serviços de Sáude da OPAS – Representação doBrasil.

1ALVES, R. Conversas com quem gosta de ensinar, São Paulo: Cortez, 1981. p. 15.

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O SUS tem, também, dimensão ideológica, uma vez que parte de uma concep-ção ampliada de processo saúde-doença e de um novo paradigma sanitário, deladerivado, cuja implantação tem nítido caráter de mudança cultural. Essa dimensãocultural, necessariamente, introduz, por sua natureza intrínseca, um elemento detemporalidade longa ao processo de implantação.

Por fim, apresenta uma dimensão tecnológica que vai exigir a produção e autilização de conhecimentos e técnicas para sua implementação, coerentes com ospressupostos políticos e ideológicos do projeto que o referencia.

O SUS está sendo construído no embate político, ideológico e tecnológicoentre diversos atores sociais em situação e resulta de propostas que, ao longo demuitos anos, vêm sendo impulsionadas por um movimento social que se denominade reforma sanitária brasileira.

Por isso, impõe-se percorrer a trajetória do sistema de saúde brasileiro paraentender-se a natureza processual do SUS.

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Neste século, o sistema de saúde transitou do sanitarismo campanhista (iníciodo século até 1965) para o modelo médico-assistencial privatista, até chegar, no finaldos anos 80, ao modelo plural, hoje vigente, que inclui, como sistema público, o SUS.

Isso tem, de um lado, uma determinação econômica e, de outro, a concepçãode saúde que vige, na sociedade, num determinado momento.

Enquanto a economia brasileira esteve dominada por um modeloagroexportador, assentado na monocultura cafeeira, o que se exigia do sistema desaúde era, sobretudo, uma política de saneamento dos espaços de circulação dasmercadorias exportáveis e a erradicação ou controle das doenças que poderiamprejudicar a exportação.

O sanitarismo campanhista3 tem, por detrás de si, uma concepção de saúde,

fundamentada na teoria dos germes, que leva ao modelo explicativo monocausal,segundo o qual os problemas de saúde se explicam por uma relação linear entreagente e hospedeiro.

Por isso, o sanitarismo campanhista pretendeu resolver os problemas de saúde –ou melhor, das doenças – mediante a interposição de barreiras que quebrem esta rela-ção agente/hospedeiro para o que estrutura ações, de inspiração militarista, de comba-te a doenças de massa, por meio da criação de estruturas ad hoc, com forte concentra-ção de decisões e com estilo repressivo de intervenções nos corpos individual e social.

O processo de industrialização acelerada que o Brasil vivenciou, especialmen-te a partir do Governo Juscelino, determinou o deslocamento do pólo dinâmico daeconomia para os centros urbanos e gerou uma massa operária que deveria seratendida, com outros objetivos, pelo sistema de saúde.

2 Para um entendimento mais completo da trajetória do sistema de saúde no Brasil, ver: MENDES, E.V.As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção dahegemonia do projeto neoliberal. In: MENDES, E.V. (org.). Distrito sanitário: o processo social demudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec, 3.ed. 1995.

3 Sobre sanitarismo campanhista, consultar: LUZ, M.T. As instituições médicas no Brasil. Rio de Janeiro:

Graal, 1979.

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O importante já não era sanear os espaços de circulação das mercadoriasmas atuar sobre o corpo do trabalhador, mantendo e restaurando sua capacidadeprodutiva.

Observou-se, então, um movimento simultâneo de crescimento da atençãomédica da Previdência Social e de esvaziamento progressivo das ações campanhistasque acabou por levar à conformação e hegemonização, na metade da década de60, do modelo médico-assistencial privatista.

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O modelo médico-assistencial privatista foi gestando-se, paralelamente, a ummovimento de crescente integração e universalização da Previdência social: dasCaixas de Aposentadorias e Pensões da década de 20, aos Institutos de Aposentado-ria e Pensões dos anos 30 a 60, até o Instituto Nacional da Previdência Social.

A criação do INPS, em 1966, foi o momento institucional de consolidação domodelo médico-assistencial privatista, cujas principais características foram:

5

•A extensão da cobertura previdenciária de forma a abranger a quase totali-dade da população urbana e rural;

•O privilegiamento da prática médica curativa, individual, assistencialista eespecializada, em detrimento da saúde pública;

•A criação, por meio da intervenção estatal, de um complexo médico-industrial;•O desenvolvimento de um padrão de organização da prática médica orienta-

da para a lucratividade do setor saúde propiciando a capitalização da medi-cina e o privilegiamento do produtor privado destes serviços.

Em 1975, com base nas diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento,surgiu a Lei 6.229, que institucionalizou o modelo médico-assistencial privatista,ao separar as ações de saúde pública das ditas de atenção à saúde das pessoas e, em1977, criou-se o Sistema Nacional da Previdência Social e, com ele, a organização-símbolo do modelo médico, o INAMPS.

O modelo médico-assistencial privatista compunha-se de três subsistemas.Na base, um subsistema estatal, representado pelo complexo Ministério da

Saúde/Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, em que se exercitava a medi-cina simplificada destinada à cobertura nominal de populações não-integradas eco-nomicamente e ao desenvolvimento de ações remanescentes do sanitarismo.

O subsistema hegemônico era o subsistema privado contratado e conveniadocom a Previdência Social que cobria os beneficiários daquela instituição. Este subsistemacresceu induzido por políticas públicas de terceirização da atenção médica que criaramum mercado cativo na área da Previdência Social e, muito secundariamente, pelo fi-nanciamento subsidiado de capital físico por meio do FAZ. De tal forma que, no perío-do 1969/1984, os leitos privados subiram de 74.543 para 348.255, um crescimentopróximo a 500%.

4Sobre o modelo médico-assistencial privatista, consultar: SILVA, P.L.B. O perfil médico-assistencial

privatista e suas contradições: a análise política da intervenção estatal em atenção à saúde na déca-da de 70. Cadernos FUNDAP, 1983. 3:27-50.

5OLIVEIRA, J.A. & TEIXEIRA, S.M.F. Previdência social. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 342.

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Um terceiro subsistema – que começava a delinear-se e a implantar-se, aprovei-tando os incentivos do convênio empresa – é o subsistema de atenção médica supletivaque buscava atrair a mão-de-obra qualificada das grandes empresas. Contudo, na déca-da de 70, este subsistema não chegou a atingir uma massa significativa de beneficiários.

As mudanças econômicas e políticas que se deram, especialmente a partir doinício dos anos 80, determinaram o esgotamento do modelo médico-assistencialprivatista e sua substituição por um outro modelo de atenção à saúde.

Por trás de tudo isso está uma profunda crise do Estado expressa, no âmbitointerno, pela crise fiscal, das relações econômicas e sociais e do aparelho do Estadoe, externamente, pelo esgotamento da liquidez internacional, pela dívida externa epelo realinhamento dos blocos geopolíticos.

Politicamente, deu-se a distensão lenta e gradual que culminou no processo detransição democrática do regime autoritário para um pacto estruturado na definiçãode um novo padrão de desenvolvimento. Este pacto deveria combinar crescimentocom distribuição, e implicava a elaboração de novo arcabouço jurídico – uma novaConstituição – e a explicitação de um outro padrão de política social expresso nodiscurso da superação da dívida social acumulada nos governos autoritários.

Esse pano de fundo econômico e político determinou os rumos das políticasde saúde e fez emergir na arena sanitária novos sujeitos sociais portadores de inte-resses e visões de mundo que foram conformando o projeto sanitário brasileiro.

Nos anos 70, coincidindo com a emergência na cena internacional da propostada atenção primária em saúde, decodificada, em nossa prática social, como atençãoprimária seletiva, surgiram os primeiros projetos-piloto de medicina comunitária.

Essas experiências desaguaram num programa de medicina simplificada, oPrograma de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento no Nordeste, PIASS,que, iniciando-se pelo Nordeste, alcançou abrangência nacional em 1979.

O processo de democratização, ao colocar na arena política projetos diferen-ciados com seus respectivos grupos de interesse, fez com que a discussão penetras-se no poder legislativo. Nesse sentido, constituiu marco importante a realização doI Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, em Brasília.

Paralelamente, resgataram-se, em outra dimensão qualitativa, as proposiçõesdo movimento municipalista, expressas na III Conferência Nacional de Saúde, rea-lizada em 1963. Com base em algumas experiências de municipalização começa-ram a suceder-se os encontros nacionais de Secretários Municipais de Saúde.

Os primeiros anos da década de 80 foram marcados pela eclosão da crise daPrevidência Social, que se refletiu em três vertentes principais:6 a crise ideológica,o PREV-SAÚDE; a crise financeira; e a crise político-institucional, o CONASP.

O Plano do CONASP colocou como alvo a integração das ações de saúde masdesdobrou-se, na prática, em vários projetos racionalizadores, sendo que um deles,o Plano de Racionalização Ambulatorial, levou à proposição das Ações Integradasde Saúde, AIS.

6OLIVEIRA, J.A. & TEIXEIRA, S.M.F. Op. Cit. (5), p. 269-301.

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As AIS, implantadas em 1983 como um programa de atenção médica, adqui-riram, a partir do fim do regime autoritário, na Nova República, um desenho estra-tégico de co-gestão, de desconcentração e de universalização da atenção à saúde.

Importa salientar que as AIS modificaram-se, qualitativamente, a partir deações intestinais dentro da instituições propositadamente preparada para susten-tar o modelo médico-assistencial privatista, o INAMPS.

Em março de 1986, ocorreu o evento político-sanitário mais importante dadécada, a VIII Conferência Nacional de Saúde, para o qual confluiu todo o movi-mento encetado desde o início dos anos 70.

Essa conferência difere das demais, até então realizadas, por duas caracterís-ticas principais. Uma, o seu caráter democrático, pela significativa presença demilhares de delegados, representantivos de quase todas as forças sociais interessa-das na questão saúde. Outra, sua dinâmica processual, que se iniciou por conferên-cias municipais, depois estaduais, até chegar ao âmbito nacional.

A VIII Conferência Nacional de Saúde, que teve desdobramento imediato numconjunto de trabalhos técnicos, desenvolvidos pela Comissão Nacional da ReformaSanitária, passou, com sua doutrina, expressa em seu relatório final, a constituir-seno instrumento que viria a influir de forma determinante em dois processos que seiniciaram, concomitantemente, em 1987: um, no Executivo, a implantação do Sis-tema Unificado e Descentralizado de Saúde, o SUDS; outro, no Congresso Nacio-nal, a elaboração da nova Constituição Federal.

O SUDS avançou para a desconcentração estadualizada da saúde e damunicipalização dos serviços. Ao mesmo tempo, no Congresso Nacional, construía-se,pelo consenso possível das forças sociais aí representadas, o desenho constitucional dasaúde.

De fato, a Constituição de 1988 incorporou um conjunto de conceitos, princí-pios e diretivas extraídos da prática corrente e hegemônica, mas reorganizando-osna nova lógica referida pelos princípios da reforma sanitária.

A saúde na Constituição é definida como resultante de políticas sociais eeconômicas, como direito de cidadania e dever do Estado, como parte da seguridadesocial e cujas ações e serviços devem ser providos por um Sistema Único de Saúde,organizado segundo as seguintes diretrizes: descentralização, mando único em cadaesfera de governo, atendimento integral e participação comunitária. Ao mesmotempo, o Art. 199 consagra a liberdade da iniciativa privada.

Estava criado, constitucionalmente, o Sistema Único de Saúde, que veio a serregulamentado pelas Leis 8.080, de 19 de setembro de 1990 e 8.142, de 28 dedezembro de 1990.

Essas leis expressaram as conquistas contidas na Constituição, mantendo eaprofundando as suas ambigüidades mas, também, reiterando, mais operativamente,os princípios da reforma sanitária incorporados na Carta Magna.

Este desenho constitucional e infraconstitucional moderno, no campo da saú-de, ocorria coetaneamente com o avanço inexorável de uma crise fiscal e política

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do Estado, que sinalizava o esgotamento da estratégia nacional-desenvolvimentistae da coalização sociopolítica que a sustentou durante os anos de esforçoindustrializante e de fracassos sociais. Desse modo, tratou-se de impor novas res-ponsabilidades a um Estado alquebrado e incapaz de reverter o quadro social gera-do anteriormente e exponenciado pela crise.

7

Esse quadro de crise do Estado é determinante do que se convencionou deno-minar de “universalização excludente”,

8 em que a expansão da universalização do

sistema de saúde veio sempre acompanhada da exclusão de segmentos sociais decamadas médias e de operariado qualificado.

O sistema, finalmente, acomodou-se: a expulsão provocada pelo racionamen-to no sistema público foi compensada pela absorção desses segmentos num sistemaprivado, o sistema de atenção médica supletiva. Assim, no final dos anos 80, fir-mou-se, com a criação do SUS, um sistema plural de saúde, composto por trêssubsistemas: o subsistema público – SUS, o subsistema de atenção médica supleti-va e o subsistema de desembolso direto.

O subsistema de desembolso direto, em que indivíduos e famílias pagam direta-mente de seus bolsos os serviços, portanto campo da medicina liberal, chegou a cobrir,no ano de 1986, 34% dos brasileiros com volume de faturamento de US$2,07 bilhões.

O subsistema de atenção médica supletiva é um sistema privado, compostopor cinco modalidades assistenciais. Ele cresceu vertiginosamente a partir da se-gunda metade da década de 80, chegando a cobrir aproximadamente 35 milhõesde brasileiros.

Finalmente, na base, o subsistema público, SUS, ao qual compete atender agrande maioria da população brasileira, em torno de 120 milhões de brasileiros eque se compõe dos serviços estatais diretamente prestados por União, estados emunicípios e dos privados que, de alguma forma, estão pactuados com o Estado,seja por convênios, seja por contratos, recebendo recursos estatais pela prestaçãode serviços. Assim, o SUS inclui serviços estatais e serviços privados pactuados como Estado.

Na realidade, quando se fala em SUS, se quer referir, de fato, não a um siste-ma único, mas ao subsistema público único, parte de um sistema plural.

Tentei deixar claro, então, nessa trajetória brevemente reconstruída, o caráterprocessual do SUS. Sua legalização se deu quando se institucionalizou na normaconstitucional e infraconstitucional. Mais ainda, sua construção processual, impri-miu-lhe, também, legitimidade porque não se tratou de uma proposta tópica,estabelecida por um plano miraculoso desenhado por iluminados no recôndito dosgabinetes, mas, ao contrário, em algo que vinha sendo discutido amplamente nasociedade há longo tempo e que, em determinado momento, no Congresso Nacio-nal, adquiriu institucionalidade.7 FIORI, J.L. Democracia e reformas: equívocos, obstáculos e disfunções. Brasília: OPS/OMS, 1991.mimeo, p. 7.

8 FAVERET FILHO, P. & OLIVEIRA, P.J. de A. A universalização excludente: reflexões sobre a tendência dosistema de saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IEI, 1989.

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Muito diferente das propostas alternativas que vêm sendo apresentadas, qua-se todas, resultado de elaborações tecnocráticas e acolhidas por grupos de interes-se e apresentadas dentro da cultura nacional de planos mágicos. Nesse sentido, oSUS segue a melhor tradição de reformas democráticas, negociadas na sociedade.

Portanto, o SUS é, a um tempo, um processo legal e legítimo e, também, umprocesso em marcha, portanto inacabado.

O SUS muito além do SUS: a reforma do aparelho do estadoHá um consenso na sociedade brasileira de que, sem profunda reforma do Estadonão é possível superar a crise nacional. As divergências estão em como fazê-la esobre que grupos vão cair os ônus dessa imprescindível reforma.

Depois de crescer durante toda uma era de desenvolvimento, a uma médiaaproximada de 7% ao ano, a economia brasileira, nos anos 80, permaneceu, àexceção de breve período do Plano Cruzado, em permanente crise.

Nessa década, a instabilidade e a crise estrutural expressaram-se por meio dadeterioração da situação cambial, da aceleração inflacionária, da recessão e, prin-cipalmente, da ruptura de um padrão de crescimento apoiado na articulação soli-dária entre Estado, empresas multinacionais e empresas privadas nacionais.

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Essa crise econômica rompeu, definitivamente, com o Estado nacionaldesenvolvimentista tal como concebido desde os anos 30 e sustentado, até então,por uma aliança liberal-desenvolvimentista de corte conservador.

A crise do Estado brasileiro que começou a manifestar-se nos anos 70, agudizou-se na segunda metade dos anos 80 e materializou-se na crise fiscal, no esgotamentoda estratégia econômica de substituição de importações e na deterioração do apa-relho do Estado. É, por isso, que se impõe uma reforma do Estado brasileiro.

Uma reforma do Estado admite, pelo menos, dois modelos alternativos.Um, que propõe um Estado mínimo com privatização acelerada e incentivo a

mecanismos de regulação mercadológica, o modelo neoliberal; outro, o modelo dereconstrução do Estado, que enfrenta o desafio do déficit público, implementa re-formas econômicas orientadas para o mercado, muda as políticas sociais para me-lhorar sua qualidade e moderniza o aparelho de Estado para aumentar sua capaci-dade de implementar as políticas públicas.

Enquanto o primeiro modelo dá prioridade a uma redução do tamanho doEstado, o segundo, sem questionar tal necessidade, vai exigir um Estado mais fortena sua capacidade de regulação e na condução da política.

É, nessa segunda perspectiva que, aqui, vou discutir a reforma do Estadobrasileiro.

9 BRAGA, J.C. A instabilidade estrutural do capitalismo brasileiro: uma visão dos anos 50 aos 80. SãoPaulo: IESP/FUNDAP, 1989.

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A crise econômico-social requer medidas drásticas e o reconhecimento de quehá, no país, um Estado demasiado grande e extremamente débil. E que, uma vezalcançada a estabilização macroeconômica, o papel do Estado é fundamental paragarantir a retomada do desenvolvimento, pelas seguintes razões:

10 primeiro, por-

que o aumento da inversão estatal é essencial para alavancar investimentos priva-dos; segundo, porque o setor estatal deve converter-se em melhor regulador; porfim, porque há necessidade premente de incremento dos gastos sociais em progra-mas para os grupos sociais postergados.

É aí, nesse espaço da reforma do aparelho do Estado, que o SUS vai muitoalém do SUS. Porque é no espaço da saúde que o Estado Brasileiro tem realizado asreformas mais conseqüentes, todas ao abrigo do processo do SUS.

Em uma ação reformista corajosa extinguiu-se o INAMPS, mega-instituiçãode 162.000 funcionários, com folha de pagamento anual superior a 1 bilhão dedólares, após um processo gradativo de transferência de recursos humanos, mate-riais e financeiros para estados e municípios.

Essa instituição, ao longo do tempo, foi sendo formatada para constituir-seem locus privilegiado de relações incestuosas entre Estado e produtores privados.Essa catedral centralista, ademais, transformou-se em nicho de intermediaçõesclientelistas e de manifestações de interesses corporativos, além de organização-símbolo de um modelo médico inviável.

Portanto, o fim do INAMPS é caso emblemático de reforma do aparelho doEstado, em que se põe termo a um lugar privilegiado da administração públicaburocrática. As resistências ao término do INAMPS inscreveram-se nas ordens dosinteresses clientelistas e corporativos. A população brasileira não se deu conta daextinção, atestado eloqüente de sua pouca utilidade para os objetivos de saúde.

Fruto do SUS, a extinção do INAMPS pode sinalizar o início de um processode desarticulação desses interesses que se apresentam, com as mesmas distorções evícios, em inúmeras instituições federais, centralizadoras e de utilidade contestável.

Mais que isso, o processo do SUS transferiu da União para estados e municípiose, dos estados para os municípios, atribuições, pessoal, equipamentos e prédios, numesforço inaudito de descentralização.

Mais recentemente, vem iniciando-se , ainda que timidamente, um processo detransferência da gestão semiplena a estados e municípios, o que permitiria chegar,mais adiante, a novo pacto federativo, com gestão plena de estados e municípios.

Certamente que a reforma do aparelho do Estado é muito mais ampla do queo que está ocorrendo no setor saúde.

Ademais, como discutirei no terceiro capítulo, esse processo tem muitoque avançar e aprofundar, a fim de que o Estado brasileiro possa adquirirgovernança sobre as políticas de saúde. Mas o que já se fez é um bom começo.

10FISHLOW, A. The Latin American State. J. Econ. Perspectives, 1990. 4:61-74.

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Daí que o SUS transcenda, em muito, a si mesmo, uma vez que demarca aspossibilidades e os caminhos de uma imprescindível reforma do aparelho doEstado brasileiro, porque explicita os papéis federativos, redistribui as compe-tências, descentraliza os recursos, democratiza as decisões e procura rompercom as clássicas relações de intermediação clientelistas ou corporativas queestão na medula do nosso Estado.

Eis, aqui também, um processo em marcha. Algo muito distinto das inúmerase inúteis reformas administrativas que se fazem no país.

O SUS e os paradigmas de atenção à saúdeCresce a consciência de que a crise da saúde nada mais é que expressão fenomênica decausas mais profundas que têm raiz no modelo de atenção médica vigente, estruturadopelo paradigma flexneriano. Sair da crise implica, pois, necessariamente, transitar deum modelo de atenção médica, fruto do paradigma flexneriano, para um modelo deatenção à saúde, expressão do paradigma da produção social da saúde.

É nesse sentido, que os reformistas ingleses falam, hoje de uma imprescindível“revolução silenciosa” no sistema de saúde que derive as preocupações da atençãomédica para resultados medidos em melhoria da qualidade de vida da população.

11

Tais considerações permitem, mais uma vez, sustentar a pertinência do SUScomo processo social de construção da saúde.

Os constituintes de 1988 tiveram a sabedoria de captar a modernidade sanitá-ria e inscrevê-la no Art. 196 da Constituição Federal, que estabelece que a saúde égarantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco dedoença e de outros agravos.

Demais, e reforçados pela legislação infraconstitucional, explicitaram, na lei, osprincípios fundamentais do SUS, garantidores de um processo de produção social dasaúde.

Muito diferente das alternativas liberais propostas para a superação da criseda saúde no Brasil que, na contramão da história, estão limitadas a mera racionali-zação da atenção médica.

Por conseqüência, essas propostas alternativas ao SUS, mais que aliviar a cri-se, constituirão, se implantadas, forte combustível que a alimentará, pelo reforçoque dão ao paradigma flexneriano.

Mais uma vez, impõe-se reiterar o caráter processual do SUS e a necessidade dedar tempo e condições a esse processo social que, por envolver mudança paradigmática,transformação cultural portanto, será, por natureza, de maturação lenta.

11NICHOL, D. Oppening Adress. In: BENGOA, R. & HUNTER, D.J. New Directions in Managing HealthCare. Leeds: Edwin Harmer, 1991. p. 9-11.

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O SUS como espaço social de construção de cidadaniaHá várias interpretações do conceito de cidadania. Numa visão mais jurídica, ex-pressa na definição aristotélica, cidadão “é aquele que tem uma parte legal naautoridade deliberativa e na autoridade judiciária da cidade”, isto é, cidadão équem participa das decisões que regem a vida social, seja conformando-a, fazendosuas leis, seja materializando-a, executando suas leis.

12

Numa perspectiva mais sociológica, o conceito de cidadania faz apelo a desti-nos e projetos, historicamente compartilhados, a processos de conquistas coletivase à igualdade, mas também ao princípio de alteridade, baseado na concepção dauniversidade cujo fundamento é o direito a ter direito.

13

A cidadania não é dada, como também nunca está acabada, pois constituiprocesso em permanente construção no cotidiano social. Historicamente, o concei-to de cidadania vem sofrendo alterações no curso da história. No século XVIII,significava pertença à sociedade nacional; no século XIX, referia-se ao direito deassociação; e, no século XX, implica a reivindicação e a defesa dos direitos sociais.

No Brasil, o direito de cidadania é visto como privilégio de poucos e concessãodo Estado. Trazido para o campo das políticas sociais, as relações entre Estado esegmentos populares instituem um padrão de “cidadania regulada”,

14 em que os

direitos dos cidadãos aparecem como benesse, sujeitos ao controle de uma buro-cracia que, por meio de normas, estabelece quem tem ou não direitos.

Não obstante, no final dos anos 80, especialmente por meio do processo cons-tituinte, propõe-se o aprofundamento das condições estruturais democráticas, ofundamento da cidadania, com o resgate da dívida social.

É preciso relevar que a cidadania só tem espaço para construir-se socialmenteem ambiente democrático, o qual propicia a formação de atores sociais,

15 sujeitos

em situação, portadores de demandas e reivindicações; portanto, muito mais quemeros participantes sociais ou titulares de poder político. Daí que a questão cen-tral, para aperfeiçoamento das instituições democráticas, passa a ser como sujeitaro Estado ao controle de uma cidadania emergente. É, aí, que “o processo das polí-ticas sociais é também um processo de constituição de cidadania, em que os bene-fícios e os impactos, além do lado assistencial, só podem ser concebidos como pro-cesso fundamental de uma dialética de construção de cidadania”.

16

A democratização das políticas sociais exige ruptura com processos de inter-venção social centralizados. Nesse sentido, a descentralização emerge como ques-tão estratégica básica na construção de uma cidadania.

12 DALLARI, S.G. Brasil: o doente mental rumo à cidadania. São Paulo: CEPEDISA, mimeo, s.d.13 ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.14 SANTOS, W.G. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979.15 TOURAINE, A. As possibilidades da democracia na América Latina. Rev. Bras. Ciências Sociais, 1986. 1:5-15.16 O’DONNEL, G. & OZLAK, O. Transição democrática e políticas sociais. Rev. Adm. Publ., 1987. 4:8-14.

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55Texto de apoio/Unidade 1

O cerne da questão é, de novo, como transformar as políticas sociais e de saúde, não emmanipulação clientelista ou corporativista, mas num espaço ético e legítimo de garantiaaos direitos da cidadania, ou de resposta eficaz do Estado às pressões democráticas.

17

Com base nessas reflexões, a legislação constitucional e infraconstitucional dasaúde postula a saúde como direito de saúde sob princípios da descentralização eda participação da comunidade.

Saúde é, por conseqüência, direito dos cidadãos e seus serviços, e suas açõesdevem ser providos de forma descentralizada e submetidas ao controle social. Des-sa forma, a proposta do SUS encontra-se como a melhor doutrina da construção dacidadania.

Na prática social, esse exercício de cidadania tem sido realizado por meio dainstituição dos Conselhos de Saúde, em que a sociedade vive a relação Estado/População e constrói seu conceito de direito à saúde.

Uma questão, então, se coloca: esta relação legítima entre Estado e sociedadecivil deve ser legalizada e institucionalizada? A resposta está dada por Donato &Lobo

18 quando dizem que essa questão se refere à relação instituído/instituinte.

“O movimento social não deve se transformar em uma personalidade jurídica, sobpena de reduzir sua particularidade e capacidade de interlocução a mais uma dasentidades ou organizações sociais. É própria do movimento, sua capacidade instituinte.Todavia, o Conselho de Saúde, que não é nem pode ser o movimento, ainda que devacom ele manter uma relação orgânica, necessita ser institucionalizado, a fim de cons-tituir uma regularidade no fluxo decisório da instituição. Em outras palavras, necessi-ta constituir um sujeito coletivo regular ou contínuo com delegação de autoridadepara poder influir na gestão e produção de políticas de saúde”.

Na sua curta existência, o SUS tem estimulado o controle social dos serviçosde saúde mediante a criação e o desenvolvimento de Conselhos Estaduais, Munici-pais, Distritais e Locais de Saúde. Dessa forma, têm surgido, em inúmeros municí-pios brasileiros, esses conselhos que, de modo mais ou menos consciente, começama controlar o sistema de saúde. Há quem estime que, hoje, há mais conselheirosmunicipais de saúde que vereadores em nosso país.

Ainda que, em muitos lugares, esses conselhos sejam motivo de distorçõespartidárias, clientelistas ou corporativas, o resultado global é positivo e apontapara um movimento democratizador na saúde, sem precedentes em nenhum outroespaço social da vida nacional.

Algumas experiências municipais avançam para propiciar a capacitação dosconselheiros mediante cursos regulares e de prover, de forma sistemática, as infor-mações necessárias para o exercício do controle social da saúde.

17 BOLDSTEIN, R.C. de A. Assistência médica na agenda pública. In: BODSTEIN, R.C. de A. (org).Serviços locais de saúde: construção de atores e políticas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1983. p. 34.

18 DONATO, A. F. & LOBO, E. Conselhos Municipais de Saúde. São Paulo. Trabalho preparado para aOPS/OMS, Representação do Brasil, 1994, mimeo. p. 8.

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Este é, também, um processo de lenta maturação mas que acompanha uma dastendências universais das reformas sanitárias – a de estabelecer o controle da cidada-nia sobre os sistemas de saúde. É preciso avançar muito mais: na melhoria da quali-dade dos conselhos de saúde e de sua representatividade; no aperfeiçoamento daação do Ministério Público para garantir o preceito constitucional da relevância pú-blica das ações e serviços de saúde; na presença de representantes da população nosconselhos administrativos das unidades de saúde, estatais ou de utilidade pública; naintrodução dos cidadãos como co-decisores nos conselhos corporativos (Conselhosde Medicina, Odontologia, Farmácia, Enfermagem, etc.); na criação de ouvidoriasindependentes em todas as instituições pactadas com o SUS, etc.

Mas é inegável que o SUS vem constituindo-se num espaço privilegiado deconstrução de cidadania.

O SUS na prática

O caos da saúde

Sem pretender negá-las, as críticas que fazem ao SUS decorrem de uma análisesuperficial das causas do que vem sendo denominado de “caos da saúde”. Emrealidade, trata-se de uma crise dos serviços de atenção médica, mais agudamentemanifestada na desorganização dos hospitais e dos ambulatórios, em que se mis-turam ingredientes perversos: filas, atendimento desumanizado, pacientes noscorredores, mortes desnecessárias, grevismo crônico etc.

São problemas indiscutíveis mas que não surgiram como conseqüência do SUS;ao contrário, constituem problemas históricos em nosso país e, como já mencionei,são, de um lado, reflexos da crise do Estado brasileiro e, de outro, expressão localiza-da de crise universal do paradigma flexneriano da atenção médica.

Certamente que esses problemas agravaram-se em virtude da contempo-raneidade do SUS com brutal e rápida diminuição de seu financiamento, no iníciode sua implantação.

No primeiro ano de existência do SUS, 1989, o gasto público federal emsaúde foi da ordem de US$ 11,3 bilhões, o que representou gasto per capita/anode US$ 80,32. A partir daí, esses gastos caíram para US$ 9,4 bilhões em 1990,para US$ 7,8 bilhões em 1992, até atingirem, em 1993, US$ 7,5 bilhões. Issosignifica que, no período crítico de implantação do SUS, os gastos federais, res-ponsáveis por mais de 70% dos gastos públicos totais em saúde reduziram-se em4,8 bilhões de dólares. No tocante ao gasto público total per capita/ano (soma degastos federais, estaduais e municipais) a queda foi de US$ 99,26 em 1989 paraUS 65,11 em 1993.

19 Cabe acrescentar que essa brutal queda veio acompanhada

19MÉDICI, A. C. & MARQUES, R. M. Saúde: entre gastos e resultados. São Paulo: IESP/FUNDAP, 1994.mimeo.

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da instabilidade de fontes e fluxos de financiamento, o que agravou, extrema-mente, um quadro, em si, já dramático. Tudo isso, junto com a incorporação aoSUS de milhões de brasileiros, resultado da universalização do sistema.

Por uma série de razões jurídicas e políticas, a saúde ficou sem fontes estáveisde financiamento e passou a depender, cada vez mais, do combalido caixa do Te-souro Federal, num momento de estabilização econômica, em que a eliminação dodéficit público constituía a prioridade de governo.

Como conseqüência, o fluxo financeiro do Tesouro para o Ministério da Saúdee, deste, para os prestadores públicos e privados, tornou-se completamente irregu-lar, num momento de altíssima inflação. Isso determinou uma diferença entre re-cursos devidos e pagos, da ordem de 35,2% a menos, uma perda de US$ 2,3 bilhõessomente em recursos de AIH e UCA, no ano de 1993.

20

Cabe revelar que enquanto os recursos diminuíam violentamente, a produçãode serviços aumentava quase na mesma proporção. Como exemplo, as internaçõeshospitalares do SUS cresceram de 11,5 milhões em 1989 para 14,7 milhões em 1994.

21

Os problemas de financiamento do SUS e a dificuldade de governança causa-da pelas incertezas dos fluxos financeiros constituíram fator perturbador paraimplementação de um processo de mudança do sistema de saúde no País. A essefator econômico devem somar-se as turbulências política e moral vividas no Gover-no Collor.

A crise da saúde brasileira carrega as dimensões de uma crise universal e dasingularidade nacional, apresentando, contudo, ingrediente próprio: carga de emo-ção muito forte, contida numa visão fenomênica da crise e normalmente referidacomo o “caos da saúde”.

Não há de se negar o óbvio: existe grave crise na atenção médica, constatávelespecialmente nos hospitais e nos ambulatórios que atendem urgências e emergên-cias, nas grandes e médias cidades brasileiras. Mas, também, há de se concordarque a mídia nacional cria um “aqui, agora” sanitário por onde se vem construindo,no imaginário social, a idéia do caos da saúde. A área da saúde é campo privilegia-do para produção de “fatóides”, expressão cunhada para expressar pseudo-aconte-cimentos, polêmicas ridículas, escândalos sem importância ou eventos espetaculososque sustentam o cotidiano da mídia.

Esse gosto pelos fatóides parece integrar os costumes do jornalismo brasileirocontemporâneo. Isso é dito por Clóvis Rossi:

22 “Quem cobriu o Brasil de 1984 para

cá [...] tomou doses maciças de emoções fortes diretamente na veia... agora que ademocracia vai se tornando uma rotina [...] os viciados em emoções fortes estamos

20 MINISTÉRIO DA SAÚDE/SAS. Diferença entre recursos devidos e pagos por serviços de saúde prestadosdentro do SUS. Brasília, 1994. mimeo.

21 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Definição de recursos adicionais necessários às atividades a serem desenvolvi-das até dezembro de 1995 pelo Ministério da Saúde. Brasília, 1995. mimeo.

22 ROSSI, C. Autocrítica. Folha de São Paulo, p. 1.2, 12 de novembro de 1994.

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passando pela típica crise de abstinência...” A maneira de atuar da mídia faz comque a notícia se transforme em espetáculo e que, por conseqüência, vá afastando-seda ordem do jornalismo para aproximar-se da dramaturgia.

Comparo, para ilustrar, as repercussões, na mídia, de dois eventos contempo-râneos: a entrega, pelo diretor da OPS, ao presidente da República, em 12 de outu-bro de 1994, da certificação de erradicação da poliomielite e, algumas horas de-pois, o parto espetacular acontecido na pia do Hospital Souza Aguiar, no Rio deJaneiro. O primeiro – coroamento de esforço de anos a fio de trabalho solidário deinstituições internacionais, governo e sociedade civil – recebeu, apenas, discretareferência nos jornais; o segundo, ampla e indignada cobertura em todos os meiosde comunicação. E, veja, a cada ano, o SUS propicia três milhões de partos hospita-lares, uma cobertura fantástica que, contudo, nada tem de espetacular.

Além disso, a mídia não noticia as excelentes experiências desenvolvidas emvários municípios brasileiros, em que a crise da saúde foi substituída por atençãointegral à família, humanizada, contínua, feita nas casas, resolutiva, com satisfaçãode usuários e profissionais de saúde e que impacta favoravelmente os níveis desaúde, especialmente os de mortalidade infantil e materna. Itapiúna, Quixadá eIguatu, no Ceará; Campina Grande, na Paraíba; Camarajibe e Olinda, emPernambuco; Niterói, no Rio de Janeiro; Curitiba, no Paraná; Joinville, em SantaCatarina; o programa de saúde comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, emPorto Alegre, Rio Grande do Sul, e muitas outras. São alguns exemplos dessa novaforma de prestar serviços de saúde que se vai espalhando pelo país. Só que comodisse uma repórter da Televisão Globo, ao visitar o programa de médico de famíliade Niterói, “isso não tem interesse jornalístico”. E foi atrás de emoções fortes nohospital de emergência da cidade.

Assim, a percepção fenomênica da crise da saúde brasileira e sua vinculaçãoao SUS é, em parte, construída pela forma como a mídia seleciona e difunde osfatos relativos ao sistema de saúde. Nesse sentido, é fundamental que se elabore eimplemente, agressivamente, uma política de comunicação social do SUS que visa-rá a comunicar, a diferentes públicos, com absoluta transparência e sem triunfalismos,as dificuldades, os erros e os êxitos do Sistema Único de Saúde, bem como a infor-mar os cidadãos sobre seus direitos e deveres no campo da saúde.

A conjunção desses fatores econômicos, políticos, comunicacionais e sanitári-os, criou ambiente muito desfavorável à implantação do Sistema Único de Saúde,nos seus anos iniciais, e foi responsável por muitas dificuldades que estão na basedo denominado “caos da saúde”.

Esse caos, referido cotidianamente, não parece refletir-se, com a mesma in-tensidade, em pesquisas de opinião pública. A Pesquisa de Condições de Vida,

23

realizada pela Fundação Seade, entre março a outubro de 1994, em aproximada-mente 4.000 domicílios da Região Metropolitana de São Paulo – considerada uma

23 COSTA, O. V. & AUGUSTO, M.H.O. Uma escolha trágica: saúde ou assistência médica? São Paulo emPerspectiva, 1995. 9:94-100.

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das mais caóticas do ponto de vista dos serviços de saúde – revelou que 28,2% dosentrevistados procuraram atendimento nos trinta dias que antecederam a entrevis-ta, o que significa que, mensalmente, de cada quatro habitantes dessa região me-tropolitana, quase um terço é atendido pelos serviços de saúde. Destes, 45% possu-em planos privados de saúde e 55% são atendidos pelo SUS. Uma comparaçãoentre os usuários do SUS e dos Planos de Saúde mostra diferença significativa detempo de espera mediano (60 minutos para o usuário SUS e 20 minutos para ousuário dos Planos de Saúde) e para a forma de agendamento (3,8% de agendamentotelefônico para o usuário SUS e 59,8% para o usuário dos Planos de Saúde). Omesmo não ocorre em relação à qualidade do atendimento em que, em intervalode 0 a 10, o atendimento SUS teve nota 8 e o atendimento Planos de Saúde tevenota 9. Quanto à capacidade de resolução, na perspectiva do usuário, a resoluçãototal foi de 46,5% para o usuário SUS e 52,5% para o usuário dos Planos de Saúde;no relativo à resolução parcial, ela foi de 39,3% para o usuário SUS e 38,5% para ousuário dos Planos de Saúde. Esses dados estão longe de indicar uma percepçãocaótica dos serviços de saúde ofertados pelo SUS, ante os oferecidos pelo Sistemade Atenção Médica Supletiva. Os resultados mostram que os Planos de Saúde sãomais confortáveis mais que não há diferença significativa na percepção de indica-dores de qualidade e de resolubilidade.

Os resultados favoráveis do SUS

Essa visão fenomênica da crise da saúde obscurece alguns resultados favoráveisindiscutíveis no campo da saúde pública.

É preciso, portanto, realçar – além das virtudes já apontadas anteriormenteneste trabalho – alguns resultados positivos da saúde pública brasileira que foramobtidos ou consolidados durante o período de vigência do SUS.

24

No campo das doenças imunopreveníveis, além da erradicação da poliomieli-te, há outros resultados expressivos. O sarampo passou de uma taxa de incidênciade 42,8 por 100.000 habitantes em 1990 para 0,2 por 100.000 em 1993, umaredução de 99,9%; os coeficientes de incidência de difteria por 100.000 habitantes,apesar de ainda altos, apresentam tendência declinante, transitando de 0,50 em1989 para 0,19 em 1993; o coeficiente de incidência de coqueluche por 100.000habitantes declinou de 9,81 em 1989 para 2,42 em 1993; a taxa de incidência detétano acidental baixou de 1,22 por 100.000 habitantes em 1989 para 0,77 por100.000 em 1993; finalmente, a mesma tendência de queda nos casos e nos óbitospor tétano neonatal é observada no período de 1989 a 1993.

24 Os dados do Ministério da Saúde estão em: MINISTÉRIO DA SAÚDE/FNS/CENEPI/CDI. Relatórios degrupos de trabalho. Brasília, 1994. mimeo. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Plano de ação 1995/99. Brasília,mimeo, 1995; MINISTÉRIO DA SAÚDE/FNS/DO/CCDTV. Morbimortalidade por doenças transmiti-das por vetores. Brasília, 1994. mimeo; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Hanseníasehoje. Bol. Eliminação da Hanseníase nas Américas, 1995. 1(3):2-3.

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No que concerne às endemias, nada obstante a persistência de situaçõesgraves como malária, alguns avanços têm sido notados. Mesmo na hanseníase,em que o Brasil saiu atrasado em relação a outros países, a prevalência por 10.000habitantes caiu de 18,5 em 1990 para 10,5 em 1994; no mesmo período, a cober-tura da poliquimioterapia subiu de 20,08% para 64,0%. As atividades de controlevetorial da doença de Chagas permitiram redução de mais de 70% nas áreas deinfestação, com eliminação do Triatoma infestans em extensas regiões do país.Tem havido constante e continuado decréscimo da mortalidade por essa enfermi-dade o que, por sua vez, é indicador indireto de redução da morbidade. Os casosde internação hospitalar por doença de Chagas diminuíram de 2.177 em 1989para 1.336 em 1993. Também é nítida a redução da freqüência de formas gravesde esquistossomose e da mortalidade causada por essa doença que diminuiu de0,7/100.000 habitantes em 1980 para 0,3/100.000 em 1991. A raiva humanateve seu coeficiente de incidência reduzido de 0,15/100.000 habitantes em1980para 0,01/100.000 em 1994.

As ações no campo da saúde mental, realizadas pelo SUS, são significativas.Até 1991 existiam, no País, 86.000 leitos psiquiátricos que consumiam 7,5% dasdespesas com internação do SUS. O tempo médio de internação era de cerca decem dias e os hospitais psiquiátricos eram o único recurso terapêutico disponível.Uma série de medidas tomadas pelo SUS permitiram, já em 1993, diminuição de4.000 leitos psiquiátricos em hospitais e a abertura de 2.000 leitos de psiquiatriaem hospitais gerais. Foram criados vários centros de atenção psicossocial, os quaisoferecem atividades terapêuticas, de lazer e de recuperação. Além dos resultadoshumanos e técnicos dessas mudanças, os gastos com internação passaram de 7,5%sobre o gasto total de internações do SUS, em 1991, para 6,9% em 1993.

Também cabe mencionar o programa nacional de auto-suficiência emimunobiológicos. Esse programa, que se iniciou em outubro de 1985, continuouseu desenvolvimento normal durante o período do SUS. Por meio dele, nosso Paísobteve auto-suficiência na produção nacional de vacina contra a febre amarela,vacina BCG, vacina anti-rábica canina, vacinas contra meningites A e C, vacinadupla adulto, vacina anti-rábica humana, febre tifóide, toxóide tetânico e sorosantipeçonhetos.

Uma incursão pela saúde materno-infantil, no Estado do Ceará, no período de1987 a 1994,

25 portanto em tempo de SUS, permitiu constatar: a cobertura pré-

natal variou de 62% a 82%; a de partos hospitalares de 68% a 88%; a de partoassistido por médico, de 36% para 56%; a desnutrição em crianças de 0 a 2 anosmedida por peso/idade, de 13% a 9%; o acompanhamento do crescimento de cri-anças de 63% a 94%; o aleitamento materno exclusivo em crianças de 0 a 3 meses,de 2% a 15%; a duração mediana do aleitamento materno, de 3,7 meses a 6,9

25 SECRETARIA DE SAÚDE DO CEARÁ/UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ. Terceira pesquisa desaúde materno-infantil do Ceará. Fortaleza, 1995. mimeo.

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meses; a cobertura vacinal por BCG, de 58% a 96%; a cobertura vacinal por DPT,de 50% a 88%; a cobertura vacinal de sarampo, de 65% a 88%; o uso do soro oral,de 22% a 52%; a mortalidade infantil, de 75 por mil a 58 por mil.

Na visão processual de implantação do SUS, eventos muito promissores estãoligados ao movimento de municipalização da saúde, cujos resultados, seja emdescentralização democratização, seja no aumento da eficácia e eficiência do siste-ma, são incontestáveis. Demais, já é possível identificar alguns resultados damunicipalização, seja no aumento da produtividade, seja na melhoria dos níveis desaúde. Pesquisa feita para a Organização Pan-Americana da Saúde, no Estado doCeará, mediante amostra de 83 municípios de diversos tipos e tamanhos, demons-trou que a produtividade média das consultas médicas nos municípiosmunicipalizados foi 21% maior que nos não-municipalizados. Além disso, consta-taram-se quedas nas taxas de mortalidade infantil nos municípios municipalizados,em relação aos não-municipalizados, que variaram de 16% a 26%, conforme asituação sócio-sanitária dos municípios.26

Esses dados do Ceará, obtidos mediante pesquisas avaliativas, realizadas comrigor científico, mostram tendência de nítida melhoria dos indicadores de saúdeque, nem de longe, poderiam expressar situação de caos da saúde, cotidianamentereverberada na mídia daquele estado.

Outro cenário: e se não houvesse o SUS?

As críticas ao SUS resultam, como mencionado, de sua identificação com o “caos dasaúde”. Uma análise mais neutra exigiria, além das considerações já realizadas, aconsideração de um cenário alternativo em que o SUS não tivesse existido.

Esse cenário apresentaria situação pretérita em que o sistema público perma-neceria clivado em dois subsistemas: um para os integrados economicamente, aten-didos em suas necessidades médicas, por um subsistema previdenciário, por meiodo INAMPS; outro, para os não-integrados, que receberiam serviços de organismosestatais, federais, estaduais e municipais.

Por si só, esse sistema público dual constituiria grave infração às normas de-mocráticas da saúde como direito de cidadania. O princípio da eqüidade, pilar deuma sociedade democrática, estaria rompido, com o privilegiamento de recursospúblicos para os integrados economicamente e a oferta da medicina simplificadaou da filantropia para os pobres. Para se ter idéia dessa situação, no ano de 1987,enquanto as internações por 100 brasileiros não-integrados era de 7,56, para apopulação previdenciária alcançavam 36,16.

27

26 SOARES, S.M.S. et al. Mortalidade infantil e municipalização da saúde no Estado do Ceará. Fortaleza,1994. mimeo.

27MINISTÉRIO DA SAÚDE. SUS não faz crescer as internações. Boletim da SAS, 1994. 1:10.

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Se não bastasse essa transgressão democrática, a grave crise do Estado brasi-leiro, que deteriorou as estruturas estatais, teria desorganizado os dois subsistemas.

A crise da Previdência Social fez com que, em anos recentes, todos os recursosarrecadados mediante a contribuição sobre folha de salário fossem destinados, ex-clusivamente, ao pagamento de benefícios, não sobrando recursos para a saúde.Mantida a atenção médica previdenciária de onde sairiam os recursos para custeá-la? Isso sem discutir a brutal ineficiência alocativa dos recursos gastos em atençãomédica, objetivo único da medicina previdenciária.

De outro lado, esse cenário significaria um sistema estatal para os pobresexercitado, com alto grau de centralização, pelos governos federal e estaduais, comparticipação residual dos municípios. Esse desenho institucional, se tivesse perma-necido, seria desastroso, tendo em vista a extrema desorganização, para a presta-ção de serviços públicos, dos organismos federais e estaduais. Além de deteriora-dos em sua capacidade de ofertar serviços, tais instâncias reduziram, no período deexistência do SUS, os recursos que investiam em saúde. Basta mencionar, comoexemplo paradigmático, a profunda crise de identidade vivida pelas SecretariasEstaduais de Saúde que, mesmo desvencilhando-se da prestação dos serviços bási-cos de saúde, repassados aos municípios, não encontram sua governança.

Como conseqüência, os sistemas locais de saúde que explodiram no país, comofruto do processo de municipalização, não teriam existido, nem os municípios teriamincrementado, como fizeram, seus gastos em saúde.

Esse colchão social criado pelo SUS, nas municipalidades, constituiu, indiscuti-velmente, mecanismo atenuador da grave crise sanitária no Brasil. Ele não teria exis-tido no cenário de inexistência do SUS.

Quem ganhou com o SUS?

O Sistema Único de Saúde instituiu-se com base no princípio da universalidade. Pormeio dele, incorporaram-se como cidadãos da saúde, possuidores de direitos a seremgarantidos pelo Estado, a partir da criação do SUS, 60 milhões de brasileiros, atéentão submetidos a uma atenção estatal de medicina simplificada ou à filantropia.

Ainda que se deva reconhecer o caráter peculiar da universalização da saúdeno Brasil – a “universalização excludente” – que se fez junto com a queda na quali-dade média da atenção médico-hospitalar, é inegável que para os milhões dedespossuídos que adquiriram direitos e livraram-se da indigência, os ganhos, tantodo ponto de vista dos serviços, quanto da perspectiva psicossocial, são inegáveis.Bastaria perguntar a um cidadão, integrado pelo SUS, se gostaria de voltar à condi-ção de recorrer, como indigente, aos serviços dos hospitais filantrópicos.

A contradição está em que esses brasileiros que ganharam com o SUS nãoestão socialmente organizados e são destituídos de voz política. Em outros termos,os ganhadores do SUS são maioria silenciosa que conta pouco no jogo político e na

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formação de opinião. Alcançaram, com o SUS, cidadania na saúde, mas permane-cem subcidadãos políticos.

Enfim, os ganhadores não contam porque ninguém lhes ausculta, ninguémlhes dá ouvido.

ConclusõesDe tanto repetir-se, é já truísmo dizer-se que o SUS é uma idéia generosa, mas quenão se materializou na prática social. Daí, ser comum a expressão “o SUS nãoaconteceu”, encontrada mesmo entre os defensores da Reforma Sanitária.

Pior, ainda, é constatar que, com muita freqüência, a proposta do SUS éidentificada, neste momento, como causa principal da crise da saúde no Brasil.

Boa parte dessa crítica está sustentada por grupos de interesses que pretendempluralizar o sistema único mediante eliminação da universalidade, restringindo-o apopulações não-integradas economicamente, um medicaid à brasileira, ou mesmosubstituí-lo por um sistema alternativo baseado na racionalidade do mercado.

Contudo, é forçoso reconhecer que há, também, uma percepção fenomênicado denominado “caos da saúde”, por grandes contingentes populacionais, seja porexperiências vivenciadas, seja pelas reverberações dos problemas da assistênciamédico-hospitalar na mídia, que levam a um crescente questionamento do SUS.

Está, assim, preparado o terreno para a condenação definitiva do SUS e parapropostas miraculosas, bem ao gosto nacional, que levem a mudanças jurídico-legais, que deveriam criar outro modelo sanitário.

Simploriamente, pretende-se superar a questão da crise da saúde – que envol-ve graves problemas estruturais e conjunturais – por meio de mudanças na legisla-ção constitucional e infraconstitucional.

Esse perigoso senso comum que se vai conformando é falacioso e assenta-se nodesconhecimento de que a crise da saúde tem caráter universal que deriva do esgota-mento do paradigma de atenção médica, e que se manifesta, também, no Brasil.

Dessa forma, as aparentes soluções apresentadas – todas referenciadas pelomodelo médico esgotado – ao desconhecerem esse componente estrutural da crise,mais aprofundarão que resolverão o problema.

Demais, toma-se o SUS como evento discreto, criado pela Constituição de1988, negando-lhe a característica de um processo social que, apenas, tem, notempo constituinte, um momento de consolidação jurídica, mas que continua sen-do construído no cotidiano da prática social.

Conjunturalmente, mascara-se o fato mais relevante, o da coetaneidade do SUScom a mais grave crise do Estado brasileiro – uma crise orgânica do Estado – quedesarticulou o aparato estatal e se manifestou, mais visivelmente, numa crise fiscalque repercutiu, catastroficamente, no financiamento do SUS, no período crítico de

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implantação. Ao mesmo tempo, desconhecem-se os êxitos incontestáveis do novosistema e se lhe transforma em espaço social privilegiado de constituição das notíci-as-espetáculo.

Por tudo isso, há de se analisar o SUS com maior objetividade, entendendo-ocomo processo em construção permanente que visa, a médio e longo prazos a umamudança do paradigma de atenção à saúde e a uma busca de um sistema de saúdeeficaz, eficiente, de qualidade e eqüitativo.

Para tal, é fundamental reconhecer que o desenho constitucional de 1988 écorreto e moderno, mas que carece de condições e tempo para afirmar-se social-mente. E entender que seu desenvolvimento conseqüente vai depender da formu-lação estratégica de uma agenda para a saúde a ser perseguida, tenazmente, commuito esforço e por muitos anos.

O Brasil já não suporta milagres e milagreiros, articuladores de soluções as-sentadas em diagnósticos ideológicos ou interessados.