surdez e preconceito - a norma da fala e o mito

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  • 7/31/2019 Surdez e Preconceito - A Norma Da Fala e o Mito

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    Surdez e preconceito

    Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009 565

    Introduo

    Falar sobre surdez e preconceito narrar uma

    das interfaces do ser surdo. Na histria do povo surdo

    esto evidentes as marcas que o identicam como um

    ser incompleto, incapaz, deciente. A partir dessa

    concepo da surdez, todo tipo de violncia fsica e

    simblica foi exercida, passando por extermnio, re-

    cluso em casa, proibio do uso da lngua de sinais,

    segregao em escolas especiais, at as atuais propos-

    tas pedaggicas adjetivadas como bilngues, utilizadas

    como mais uma metodologia colonialista, a-histrica

    e despolitizada; que consistem em apenaspermitiro

    uso da lngua de sinais sem empreender qualquer ao

    no sentido de transformar as relaes sociais, culturaise institucionais (S, 2002, p. 358).

    Dentre o imenso leque de preconceitos que

    envolvem o ser surdo, este texto pretende discutir a

    norma da fala e o mito da leitura da palavra falada,

    por entender o quanto ambos legitimam uma srie

    de prticas oralistas1, afetando de forma pejorativa

    1 Prticas oralistas constituem-se na forma institucionalizada

    do ouvintismo. Os termos ouvintista, ouvintismo etc. so derivaes

    a construo da identidade do ser surdo e seu direito

    a uma comunicao e formao signicativa. Nesse

    sentido, vale ressaltar que a comunicao via fala e

    leitura de lbios da lngua falada necessariamente

    muito limitada para uma pessoa que no pode ouvir.

    Portanto, a fala pode representar apenas funes co-municativas muito bsicas para os surdos (Svartholm,

    1999, p. 19).

    No entanto, ambos implicam a oralizao dos

    surdos e interminveis exerccios de treinamento, em

    detrimento da formao acadmica. Ao implicitamente

    no aceitar a diferena lingustica, de percepo do

    mundo e forma de ser, essas prticas mascaram os

    preconceitos. Elas promovem uma pseudoinviabili-

    zao da surdez, realizada com o argumento de uma

    pretensa integrao entre surdos e ouvintes.

    Antes de qualquer coisa, considero ser importante

    esclarecer de que lugar eu estou falando, pois certa-

    de ouvintizao, que, segundo a concepo de Skliar (1999,

    p. 7), sugere uma forma particular e especca de colonizao

    dos ouvintes sobre os surdos. Supe representaes prticas de

    signicao, dispositivos pedaggicos etc. em que os surdos so

    vistos como sujeitos inferiores.

    Surdez e preconceito: a norma da ala e o mitoda leitura da palavra alada

    Slvia Andreis WitkoskiUniversidade Federal do Paran, Programa de Ps-Graduao em Educao

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    Slvia Andreis Witkoski

    Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009

    mente o fato de ser surda implica a construo de um

    texto em que ca evidente a repulsa por todo tipo de

    preconceito que busca nos aprisionar nos discursos do

    ouvintismo, levando-nos muitas vezes a desenvolver

    a sua face mais perversa, que contra ns prprios,

    assimilando-os como se fossem verdades. Em vriosmomentos farei uso inclusive de minha prpria ex-

    perincia em face dos preconceitos, para que, pelo

    exemplo de fatos narrados pelos prprios surdos,

    possa trazer tona suas nuanas, desvelar alguns dos

    discursos que os legitimam e desnudar as implicaes

    dolorosas que geram na vida dos surdos.

    A norma da ala

    Machado (2008, p. 24) observa que a maioria

    das escolas regulares com alunos surdos adere abor-

    dagem oralista, no aventando outras perspectivas.

    Segundo o autor, parece haver um consenso mudo,

    por exemplo, sobre o fato de que, se todos falam,

    esse estudante deve tambm falar. Obviamente,

    falar limitado concepo ouvinte que a restringe

    s lnguas processadas pelo canal auditivo-oral, no

    reconhecendo a modalidade visual-motora da lngua

    de sinais como a natural dos surdos. Pode-se armarque a linguagem, por conveno, ainda est vinculada

    acstica (Wrigley, 1996, p. 11). Nessa perspectiva,

    no ter a fala pressupe, em uma sociedade oral, a

    mudez; dito de outro modo: pressupe ausncia de

    pensamento ou, pelo menos, pressupe que o surdo

    no tem o que dizer (Lopes, 2007, p. 51).

    Essa superioridade da palavra remete viso aris-

    totlica que a relaciona ao mundo das ideias, da razo,

    enquanto o mundo concreto e material representado

    pelo gesto. Segundo Sacks (1998, p. 28), talvez essaideia equivocada (ou preconceito) de que os smbolos

    precisam ser falados remonte aos tempos bblicos: o

    status sub-humano dos surdos era parte do cdigo mo-

    saico e foi reforado pela exaltao bblica da voz e do

    ouvido como o nico e verdadeiro modo como o homem

    e Deus podiam falar (No princpio, era o Verbo).

    A naturalizao desta modalidade de comunica-

    o lingustica continua a ser percebida por muitas

    pessoas como caracterstica que identica os seres

    humanos, distinguindo-os dos animais, classicados

    como irracionais. Tamanha essa referncia que por

    muito tempo e ainda hoje, segundo vivncias relata-

    das por amigos surdos , ao se comunicarem por meio

    de Libras em um ambiente ocupado predominante-mente por ouvintes, seu uso referido como coisa

    de macaco. Mesmo no tendo passado por situao

    explcita de discriminao como essa, ao conversar

    com amigos surdos pela lngua de sinais percebo o

    preconceito em sua verso sutil: nos olhares, no quanto

    parecemos exticos, sendo imensamente observados,

    disfaradamente.

    A questo de a diferena do ser surdo ser percebi-

    da pelo foco da decincia que perpetua a obstinaoem fazer o surdo falar na mesma modalidade do ou-

    vinte, sob a lgica ouvintista e normalizadora, anco-

    rada no argumento de que se o surdo aprender a falar

    portugus estar includo na sociedade, visto que esta

    a lngua majoritria (no caso do Brasil). Em nome

    dessa pseudointegrao, os surdos so submetidos a

    interminveis sesses de treinamento. No entanto,

    mesmo quando aprende a falar a lngua portuguesa,

    o surdo continua a no ser aceito na comunidade ou-

    vinte, sendo identicado como deciente, em funodo que muitos referem de o jeito surdo de falar, em

    referncia fala truncada, diferena na pronuncia

    ou na clareza articulatria das palavras.

    Mesmo no caso de surdos que tm uma fala

    considerada inteiramente compreensvel e que fazem

    uso de um discurso uente da lngua portuguesa (por

    terem ensurdecido quando j tinham domnio da

    lngua), o preconceito persiste pelo fato de eles no

    ouvirem ou ouvirem em nvel bem abaixo do dos

    ouvintes. Desse modo, aquele que no ouve to bem,

    ou no percebe algumas manifestaes sonoras na

    medida em que deveria, frequentemente passa a ser

    distinguido como algum com perda, com carncia,

    com falta de, com decincia e como pessoa porta-

    dora de uma especicidade (Lulkin, 1998, p. 40),

    decincia identicada pelo no-entendimento das

    informaes faladas, pelo uso da prtese auditiva ou,

    mesmo na ausncia desta, pelo desencontro entre a

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    modulao da voz do surdo e a utilizada pelo ou-

    vinte em diferentes contextos conversacionais. Esse

    desencontro ocorre pelo fato de o surdo no ouvir

    a sua prpria voz ou ouvi-la somente quando ela

    est em um nvel sonoro muito alto em relao aos

    ouvintes, o que faz com que no consiga monitorara sua sonoridade com o sentido da audio.

    Fazendo uso da minha prpria vivncia, exem-

    plifico os preconceitos que permanecem mesmo

    quando o surdo fala portugus dentro dos padres

    convencionais. Minhas lhas estavam brincando no

    playgrounddo prdio com uma menina que tinha se

    mudado havia pouco tempo. Ao conversar com sua

    me, sinto diculdade de entend-la e me identico

    como surda, solicitando que ela olhe para mim quandofalar. Pergunto o nome da sua lha, que entendo ser

    Larissa. Passo a cham-la assim, inclusive na frente

    da me. Passados alguns dias, a Larissa, que estava

    brincando novamente com minhas lhas, ao terminar

    um desenho assina: Rassa. Opa! Por que a me da

    criana no me corrigiu? A resposta evidente: o

    preconceito que nos identica como decientes, como

    coitadinhos, imperou!

    Nesse sentido, dizer que se o surdo falar por-

    tugus estar integrado comunidade ouvinte umgrande engodo; ele continuar sendo visto como um

    deciente e tratado como tal. Nessa perspectiva, rela-

    to outro episdio de preconceito, que para mim sim-

    bolizou o quanto eles esto presentes, profundamente

    enraizados, e so difceis de ser desconstrudos: em

    2008, logo aps minha aprovao no processo sele-

    tivo para o doutorado em educao da Universidade

    Federal do Paran (UFPR), compareci a uma defesa

    de tese de doutorado na qual eram discutidos alguns

    elementos sobre a educao dos surdos. Antes deiniciar o evento, fui apresentada autora do projeto,

    que, na tentativa de ser simptica, e obviamente

    nervosa pela caracterstica avaliatria do evento,

    deixa escapar: Eu tive uma amiga que teve um pro-

    blema como o seu (referindo-se ao meu processo de

    ensurdecimento), foi operada e cou normal!. De

    imediato, eu lhe respondi: Eu sou normal!. Muito

    constrangida, ela desculpou-se.

    Nesse ato falho,2 cou claro como uma pesqui-

    sadora, que, a priori, por seu trabalho inserido na

    abordagem socioantropolgica da surdez, tem um

    discurso politicamente correto, no est plenamente

    convencida de seus argumentos, mantendo resqucios

    dos preconceitos de perceb-la a partir do foco dadecincia, e assim inconscientemente sugerir uma

    possibilidade de cura para um corpo visto com defeito.

    Indubitavelmente, nessa fala, num lapso inconsciente,

    ela aventou uma possibilidade de me igualar novamen-

    te aos ouvintes, sem se dar conta de que essa pretensa

    esperana de voltar a ser normal,3 segundo sua pers-

    pectiva, implicaria descartar minha prpria identidade.

    Na verdade, de forma inconsciente ela resgatou a

    base das polticas ouvintistas, que intentam a curada surdez, perpetuando os processos normalizadores,

    como diz Wrigley (1996, p. 71):

    [...] surdos so pessoas que ouvem com ouvidos defeituosos.

    Se pudssemos consertar os ouvidos, eles estariam ouvindo.

    Esta lgica comum na verdade comum, mas no necessa-

    riamente lgica. Os negros so pessoas brancas que possuem

    pele escura. Se pudssemos consertar a pele, eles seriam

    brancos. As mulheres so homens com genitlia errada...,

    e por a vai. Essas transposies cruas revelam um tecidosocial de prticas pelas quais ns sabemos quais identidades

    so tanto disponveis quanto aceitveis.

    Outra questo fundamental que contradiz essa

    aluso, ou melhor, iluso de que se o surdo falar por-

    tugus estar integrado comunidade ouvinte e que

    coexiste com a manuteno dos preconceitos referidos,

    reside no fato de o surdo continuar a ser excludo no

    2 Os atos falhos, de acordo com a concepo de Freud (1976),

    so aes inconscientes, constitudas por determinados elementos

    que o sujeito no pretendia enunciar. O seu signicado oculto s

    aparece na hora em que escapa ao controle da represso.

    3 Como surda, minha concepo de normalidade em relao

    aos surdos a mesma defendida pela pesquisadora surda Gladis

    Perlin, que arma: Ser normal segue uma norma. Mas ser nor-

    mal para o surdo signicaria ser surdo, ser autenticamente surdo

    (Perlin, 2007, p. 9).

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    essencial: o direito de acesso uente e irrestrito s

    informaes produzidas via lngua auditivo-oral, que

    constitui um direito, um princpio bsico de cidadania.

    Em relao ao processo de discriminao do surdo,

    que impe uma marginalizao social e cultural, no

    vejo sequer a necessidade de ilustrar com exemplos,pois estes so tantos desde a falta de legenda em

    portugus ou de traduo em Libras dos programas

    televisivos e outros similares, ao direito elementar de

    acesso aos contedos de uma aula no ensino regular,

    pois, ainda na maioria das situaes de alunos surdos

    includos, o recurso predominante para tal a leitura

    da palavra falada que no bastaria um artigo, mas

    sim um livro de excluses dirias.

    Outro aspecto importante o qual me sinto plena-mente confortvel para apontar como grande engo-

    do visto que durante 35 anos fui uma ouvinte

    a possibilidade de o surdo ser aceito na comunidade

    ouvinte, desde que fale como um dos seus e tenha um

    treinamento da leitura da palavra falada impecvel; h

    a um carter subliminar acrescentado a essa promessa

    de integrao, como se por via dela viesse a receber o

    ingresso a um paraso ouvinte. Essa promoo hedo-

    nista de um mundo ouvinte que no existe simplica

    as relaes e possibilidades materialidade da surdez,escondendo a complexa rede de relaes de poder que

    compem o tecido social e interferem na vida em so-

    ciedade, tanto no caso do ouvinte como do surdo.

    importante ressaltar que ser ouvinte no si-

    nnimo de ser feliz, ter sucesso e ser aceito entre seus

    pares, ideia que vendida aos surdos.Inmeras so as

    diferenas socioculturais e as desigualdades presentes

    tambm na comunidade ouvinte, na qual coabita uma

    srie de outros preconceitos, a partir dos marcadores

    sociais da diferena (Starling & Schwarcz, 1989,p. 219), como raa, gnero, sexo, idade e classe.

    Vivemos uma realidade nefasta na qual so

    produzidas imensas injustias sociais, por conitos

    raciais e religiosos, dentre outros, todos governados

    por uma poltica de signicao na qual impera o que

    Skliar (2000, p. 11) denominou modelo econmico-

    poltico concntrico, que promove, atravs da mdia,

    uma teoria e uma prxis de globalizao a partir de

    uma pretensa homogeneidade humana inexistente. No

    entanto, esta se sustenta pelos diferentes preconceitos

    presentes na sociedade como expresso mxima do

    etnocentrismo, denida pelo professor Joo Baptista

    Borges Pereira como tendncia, ao que tudo indica

    universal, que leva indivduos, grupos e povos su-pervalorizao de suas prprias expresses de vida,

    conduzindo-os, consequentemente, a subestimar as

    caractersticas de outros indivduos, grupos e povos

    (in Schwarcz, 1989, p. 175). E o tipo ideal, vinculado

    ao esteretipo da felicidade, corresponde no mnimo

    a ser: jovem, do gnero masculino, branco, cristo,

    heterossexual, fsica e mentalmente perfeito, belo e

    produtivo (Amaral, 1998, p. 14).

    Nessa perspectiva, ao se absolutizar a diviso sur-do/ouvinte, levando os surdos miragem dos ouvintes

    como um paraso perdido, em primeiro lugar se est

    criando a iluso de eles se submeterem s concep-

    es e prticas ouvintistas, em prol de uma realidade

    inexistente; em segundo, alienando-os em relao a

    questionar e impor resistncia a outros preconceitos

    presentes no seu cotidiano, como se ser surdo fosse ter

    uma identidade nica. Essa perspectiva que desconsi-

    dera de que surdo estamos falando remete ao cerne do

    preconceito em relao surdez que nos identica apartir da decincia como um grupo homogneo.

    Os limites da leitura da palavra alada

    A famosa leitura labial,4 apontada como a possi-

    bilidade de o surdo compensar o sentido da audio

    para ter acesso s informaes via palavras faladas,

    hiperestimada, constituindo-se em um mito. De acordo

    com Sacks (1998, p. 82), a leitura labial no apenas

    uma habilidade visual 75% dela uma espcie deadivinhao inspirada ou concluso por hiptese, de-

    pendendo do uso de pistas encontradas no contexto.

    Por sua vez, Shirley Vilhalva (2004, p. 25), autora

    surda, ao descrever a leitura orofacial, explica a di-

    4 Segundo Sacks (1998, p. 15), leitura labial um termo

    bastante inadequado para designar a complexa arte de observao,

    inferncia e adivinhao inspirada dessa tarefa.

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    culdade do processo a partir de dois pontos centrais:

    a necessidade de conhecer os cdigos do falante e a

    diferena de tempos entre a realizao da leitura e o

    ritmo da fala.

    Em relao ao primeiro elemento, a autora ar-

    gumenta que a criana surda, para compreender umaconversa, busca nos movimentos dos lbios e expres-

    ses as palavras-chave que, apesar de serem vagas,

    num ambiente em que est familiarizada permitem

    que ela leia as intenes das pessoas que a cercam;

    no entanto, ao mudar o ambiente os cdigos tambm

    se alteram e o processo ca extremamente prejudica-

    do. Em relao ao segundo aspecto, Vilhalva (2004,

    p. 26) esclarece que a leitura labial, ao ser realizada

    por um processo de percepo visual, mais lenta, ealerta para a diferena entre o ritmo do processo de

    elaborao mental das palavras e da fala a partir do

    seguinte exemplo:

    Bom dia! Como vai voc? Tudo bem? E continua falan-

    do... O surdo, quando estiver lendo os lbios Bom dia!

    Como vai..., at ser estruturado o pensamento e compreen-

    der a mensagem, j perdeu o restante da frase, e quando volta

    ler novamente defronta-se com palavras soltas, levando-o

    assim a tentar adivinhar as palavras desconhecidas numcontexto geral.

    As diculdades da leitura da palavra falada no

    se restringem aos aspectos j mencionados. Fatores

    como o tipo de articulao do locutor, a proximidade

    ou distncia dele, a importncia da perspectiva frontal

    dos lbios do falante em relao ao surdo (posicio-

    nado horizontalmente em relao aos seus olhos), a

    semelhana articulatria de determinadas letras e o

    prvio conhecimento das palavras pronunciadas soapenas alguns elementos que interferem no processo e

    demonstram o quanto a leitura labial miticada.

    Vale ressaltar que o ambiente de conversao

    usual no se constitui num ideal de apreenso visual

    ao surdo; ao contrrio. Em geral este caracterizado

    pela presena de um falante distante, em permanente

    movimento (quando no est inclusive ausente do seu

    foco visual), que realiza trocas verbais com outras

    pessoas as quais no podero ser observadas concomi-

    tantemente. Estas so as caractersticas mais comuns

    do dialogo entre ouvintes, sendo inclusive tambm as

    da sala de aula no ensino regular.

    Considerar que o aluno surdo possa ser integrado/

    includo na escola regular a partir da possibilidade deele realizar leitura orofacial, sem acesso pelo menos

    a um intrprete em lngua de sinais, no mnimo uma

    cmoda justicativa ingnua de estar incluindo-o para

    excluir. Nesse sentido, concordo com Skliar (2000,

    p. 17) na ideia de que, em relao aos surdos, essas

    polticas de integrao transformam-se rapidamente

    em prticas de assimilao ou produzem, como um

    efeito contrrio, maior isolamento e menores possi-

    bilidades educativas nessas crianas. Para tal, bastaconsiderar os numerosos depoimentos dos surdos que

    expressam a diculdade de compreenso nesse con-

    texto a partir desse recurso, como pode ser ilustrado

    pela vivncia de dois alunos surdos a seguir:

    Eu tinha 13 anos quando voltei para a escola de ouvintes. Foi

    um sufoco. No entendia nada e cava isolada, sem conver-

    sar com professores e colegas. (Machado, 2008, p. 115)

    Na sala de aula muito complicado, o professor explica

    no quadro p, p, p, p... O surdo no entende. (idem,ibidem, p. 119)

    A mesma diculdade encontrada inclusive por

    surdos que fazem uso de aparelho auditivo uma

    tecnologia normalizadora5 cuja funo recuperar o

    corpo danicado, dando uma suposta equiparao de

    oportunidades e podem, a priori, utilizar-se de algum

    nvel de percepo auditiva para a compreenso dos

    contedos das aulas concomitantemente leitura da pa-

    lavra falada, como ilustrado no depoimento a seguir:

    Passei a maior diculdade na sala de aula. O uso do aparelho

    auditivo era muito perturbador, parecia que estava cando

    5 O termo tecnologia normalizadora est sendo utilizado

    segundo a denio: As tecnologias normalizadoras se exercem

    produzindo subjetividades e sujeitos normalizados atravs da

    interao homem-mquina (Thoma & Pellanda, 2006, p. 124).

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    louca, muito barulho. No conseguia entender o que os

    professores e os alunos conversavam e tinha que suportar

    o barulho do aparelho. (Machado, 2008, p. 122)

    Em relao diculdade de acesso s informa-

    es pelos surdos que fazem uso do aparelho auditi-vo que em princpio se constitui em um facilitador

    do processo de leitura orofacial , tambm pela minha

    vivncia percebo o quanto essa situao miticada.

    Nesse sentido, destaco os transtornos decorrentes da

    permanente poluio sonora de uma sala de aula que

    so um tormento, ainda mais quando acrescidos de

    rudos e ecos produzidos pelo prprio aparelho, pelo

    excesso de barulho ou outros sons ambientais (como

    a passagem de carros), que atrapalham o raciocnio

    e, obviamente, a compreenso do que esta sendo

    falado e da dependncia da familiaridade com o

    tema e expresses tpicas no transcorrer de uma aula.

    Em relao a esse aspecto, parece-me que h uma

    grande contradio se considerarmos que o esperado

    em um processo de ensino-aprendizagem ampliar

    as perspectivas e domnios, inclusive promovendo a

    apropriao de novas terminologias.

    Ainda no relato de minha experincia: a impossi-

    bilidade de acompanhar os dilogos que transcorremem sala de aula at que eu consiga localizar no

    campo visual quem est falando j perdi metade dos

    argumentos esvazia em muito o acesso qualida-

    de das informaes partilhadas. As entrelinhas da

    troca conversacional sempre pairam no ar! Tambm

    camos excludos do aprendizado incidental, prove-

    niente daquele burburinho de conversas que ocorrem

    durante uma aula e nos corredores das instituies

    de ensino. Ademais, a situao no oferece conforto

    lingustico; ao contrrio, exaure. Por esse motivo, nasminhas aulas no doutorado conto com uma intrprete

    em Libras.

    Para nalizar este primeiro momento de discusso

    sobre o mito da leitura labial, uso o depoimento de

    Karen Strobel (2008a, p. 16), pesquisadora surda e me

    de um lindo menino surdo, que ilustra exemplarmente

    o processo discriminatrio alicerado na conveniente

    aceitao desse processo:

    Eu, por exemplo, procurava ler os lbios, mas aps uns 10

    minutos os meus olhos comeavam a arder, cansavam e

    eu desistia de prestar ateno nas aulas e cava olhando-

    para-a-parede. Acho que se tivesse diploma para o total

    de horas olhando-para-a-parede, eu bateria recorde por

    toda a minha vida escolar inclusiva.

    Do preconceito do outro ao autopreconceito

    As identidades no se constroem no vazio. Ao

    contrrio, esto relacionadas ao conceito de represen-

    tao, numa relao de interdependncia, no sentido

    de que a construo da identidade se deve, em grande

    parte, a determinadas representaes construdas, do

    mesmo modo que estas esto relacionadas s identi-

    dades sustentadas pelos sujeitos (Hall, 2000). Nesse

    sentido, entende-se que tanto a identidade como a dife-

    rena esto relacionadas s representaes sociais.

    A manuteno dos contrastes binrios (normali-

    dade/anormalidade, ecincia/decincia,...) faz com

    que o surdo seja percebido como o oposto e negativo

    do ser ouvinte, no o aceitando enquanto uma expe-

    rincia singular que constitui uma diferena especca

    (Skliar, 1998, p. 9). Essa lgica perversa naturalizaa homogeneizao dos discursos que identicam o

    surdo por meio de caractersticas universais, a partir

    da marca da materialidade da surdez, como sendo

    constitudos por: ritmos lentos de aprendizagem,

    inteligncia primitiva, comportamentos agressivos,

    labilidade emocional, imaturidade afetiva e cognitiva,

    problemas nas relaes interpessoais (Schneider,

    2006, p. 39).

    Esses discursos globalizantes, sendo represen-

    taes sociais que identicam o surdo como um ser

    anormal, incapaz, sem cultura prpria, com uma lngua

    pobre e uma maneira de ser esquisita, faz com que ele,

    principalmente quando privado de estar entre seus

    pares, assimile o olhar do ouvinte-opressor. Nesse

    sentido, importante considerar que 95% das crianas

    surdas so lhos de pais ouvintes, e a forma como

    descoberta a surdez, por meio de exames audiolgicos

    e imersos nos discursos clinico-teraputicos, constitui-

  • 7/31/2019 Surdez e Preconceito - A Norma Da Fala e o Mito

    7/12

    Surdez e preconceito

    Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009 571

    se em um dos importantes fatores da aceitao e

    perpetuao do rtulo estigmatizante do surdo como

    deciente.

    incorporado ao ambiente familiar o poder das

    cincias mdicas, como regime de verdade, que vai ao

    encontro do tipo de representao social dominante,que tambm identica a surdez como uma condio

    de inferioridade, de incapacidade. Essas representa-

    es acabam por induzir o surdo a assimilar a forma

    como ele percebido e narrado, levando-o tambm

    a perceber-se e narrar-se em oposio ao espelho

    ideal: l-se ouvinte, para assimilar a imagem de ser

    deciente, de menos valia.

    O constrangimento de ter um lho visto como

    deciente conduz a famlia, na maioria das vezes,a apresentar resistncia ao uso da lngua de sinais

    smbolo por excelncia da surdez, da identidade

    individual e cultural do surdo (Ferreira Brito, 1993,

    p. 28, p. 54) optando pelo mtodo oralista, bus-

    cando a sua invisibilidade. Dessa forma, perpetua-se

    a obstinao no treinamento da palavra falada e da

    leitura desta como uma medida de normalizao,

    desconsiderando os prejuzos formao da identi-

    dade, ao desenvolvimento cognitivo e psquico do

    sujeito surdo, fatos j conhecidos na literatura comabordagem socioantropolgica, mas preteridos ante

    aos argumentos das cincias mdicas.

    A violncia qual os surdos so submetidos ao

    serem privados de sua lngua natural levava-os a uma

    permanente sensao de isolamento, evidenciado

    no discurso de Laboritt (1994, apudStrobel, 2008b,

    p. 50), autora surda, quando arma que privar os lhos

    da comunicao em lngua de sinais efetivar a

    [...] excluso da famlia, da casa onde todos falam sem se

    preocupar com voc. Porque preciso sempre pedir, puxar

    algum pela manga ou pelo vestido para saber, um pouco,

    um pouquinho, daquilo que se passa em sua volta. Caso

    contrrio, a vida um lme mudo, sem legendas.

    Em decorrncia do isolamento, do sentimento de

    rejeio familiar, comum o surdo reagir de forma

    aptica ou agressiva assim como qualquer criana

    ouvinte que fosse submetida situao de violn-

    cia similar. No entanto, isso sempre interpretado,

    numa inverso perversa da lgica, como decorrente

    da surdez, e no pela violncia qual submetido.

    Em relao a essa caracterizao do comportamento

    do surdo como patolgica, resgato a situao de umalinda menina surda, de sete anos, que conheci. Estava

    numa escola de surdos de Curitiba conversando com a

    professora da turma, enquanto acompanhava a harmo-

    nia com que os alunos interagiam atravs da lngua de

    sinais. Nessa hora chegou a me de uma das alunas,

    que estava visivelmente feliz junto a seus colegas

    conversando em Libras. Vendo o comportamento da

    lha, a me fez o seguinte comentrio: Engraado

    como aqui ela se comporta bem. Em casa ela no faznada. Se no mandar tomar banho, no vai; ca s

    deitada no sof assistindo televiso. O pior que s

    vezes ela comea a gritar, cada grito, que chega a doer

    os meus ouvidos!. Perguntei se ela sabia a lngua de

    sinais. Respondeu: No, no tive tempo ainda, tenho

    a casa para cuidar, muito trabalho.

    Nessa situao ca ilustrado o enorme precon-

    ceito em relao surdez: a me recusa-se aprender

    a lngua de sinais para se comunicar com sua prpria

    lha. Submetida segregao familiar que faz brotarum sentimento aniquilador decorrente da excluso, a

    criana, em seu isolamento comunicativo, expressa em

    gritos a sua revolta, que percebida como um quadro

    tpico decorrente da surdez. A me apresenta uma rea-

    o de estranhamento ao comportamento harmonioso

    da menina na sala de aula. Os preconceitos esto to

    assimilados que ela abdica do direito ao exerccio da

    maternidade plena, eximindo-se tambm do seu dever

    maternal de promover uma condio digna de exis-

    tncia no meio familiar. Nesse sentido, vale ressaltar,como o psiquiatra surdo noruegus Terje Basilier,

    citado por Ferreira Brito (1993, p. 75):

    [...] quando eu aceito a lngua de outra pessoa, eu aceitei a

    pessoa [...]. Quando eu rejeito a lngua, eu rejeitei a pessoa,

    porque a lngua parte de ns mesmos [...] Quando eu aceito

    a lngua de sinais, eu aceito o surdo, e importante ter sem-

    pre em mente que o surdo tem o direito de ser surdo.

  • 7/31/2019 Surdez e Preconceito - A Norma Da Fala e o Mito

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    Slvia Andreis Witkoski

    Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009

    Alm do exemplo referido, com o objetivo de

    enfatizar a perversidade dos preconceitos em relao

    surdez, com a supremacia da valorizao da palavra

    falada, que demonstra como introduzem uma sensao

    de menos valia, de isolamento, de perda, resgato o

    depoimento de Vilhalva (2004, p. 13): Um papagaiofazia parte da famlia, eu cava intrigada por que todos

    falavam mais com o papagaio do que comigo.

    Tambm no depoimento de Karen Strobel (2008b,

    p. 40) est ilustrada claramente a extenso do preju-

    zo que a falta de feedback, comum entre as crianas

    ouvintes, acarreta criana tanto psicolgica quanto

    cognitivamente:

    Uma vez a empregada domstica estava lavando o quintalno fundo de casa e eu cava sentada observando a gua

    suja de lama e sabo correndo at o bueiro. No meio desta

    sujeira estava um bicho estranho de mais ou menos uns

    seis centmetros que estava morto. Assustei-me porque o

    associava com o bicho que vi na televiso noutro dia, jacar

    enorme que comia as pessoas e tive muitas noites de insnia

    com medo da existncia deste bicho no nosso quintal e que

    viria me pegar e me comer. S agora eu entendo que no

    era jacar e sim simplesmente uma lagartixa. No havia

    ningum que me informasse sobre isso.

    Como consequncia dos processos segregacionis-

    tas e discriminatrios, de conviver permanentemente

    com o olhar preconceituoso do outro, factvel que o

    surdo desenvolva o auto-dio, em decorrncia quase

    que direta do mecanismo de defesa chamado identi-

    cao com o agressor (Baibich, 2001, p. 19). Nesse

    processo esto os surdos que tentam se acomodar

    sociedade ouvinte por sua autonegao, buscando

    identicar-se com o ouvinte tentando ser um deles. Os

    surdos identicados nesse processo, enquanto vtimas

    do preconceito, atravs do mimetismo6 de disfarce,

    6 O mecanismo de defesa denominado mimetismo de

    disfarce foi explicado pela professora Tnia Maria Baibich-Faria em

    2007, em encontro de orientao com sua orientanda Edimara Soares,

    que utilizou essa expresso na abordagem do tema de sua dissertao

    de mestrado, da qual extrai a referncia apresentada no texto.

    buscam um mecanismo de defesa. No entanto, esse

    mecanismo passa logo da defesa ao ataque, tornando-

    se uma ameaa ao atacar a prpria identidade, dado

    que impossvel esconder ou tirar de si partes que so

    suas. Desta feita, este mimetismo [...] leva ferida

    identitria que no cicatriza (Soares, 2008, p. 13).O auto-dio que se efetiva atravs do processo da

    autonegao dos surdos que assimilam os preconcei-

    tos utilizando-se do mimetismo de disfarce coexiste

    com a incapacidade social imperante de relacionar-se

    com as diferenas. Nesse sentido, rearmo o grande

    engodo que signica dizer se o surdo falar portugus

    ser aceito na sociedade ouvinte, bem como o carter

    conveniente da aceitao de que a leitura da palavra

    falada pode substituir a audio. Isso se torna evi-dente quando se verica que at um desencontro de

    tonalidades de voz e o no-entendimento de algumas

    falas suciente para categorizar o surdo como um ser

    deciente, trat-lo como tal e tornar-se um empecilho

    comunicao entre ambos.

    Em relao a essa situao, fao referncia nova-

    mente a minha vivncia como surda: inmeras vezes

    percebi o olhar incomodado em funo do meu tom

    de voz, especialmente quando no fao uso da prtese

    auditiva, olhar esse acompanhado pela impacinciaem relao ao meu no-entendimento de algumas

    das palavras faladas, como se fosse bvio o que est

    sendo dito. E, ao buscar esclarecimentos sobre o que

    foi falado, usual no os ter, com o argumento de

    que no era nada, ou receb-los de forma ridicula-

    mente resumidas, ou, pior ainda, carregados j de um

    julgamento de valor, como se no fossemos capazes

    de abstra-lo.

    Em funo desse olhar preconceituoso, quan-

    do ainda estava presa s amarras do ouvintismo,aceitava-o, sentindo-me extremamente constrangida.

    Indubitavelmente, no transcorrer da minha histria

    de ensurdecimento, desde que tive detectada a perda

    auditiva, passei pelo processo de autonegao. Na

    tentativa de manter-me entre os ouvintes, tentando

    disfarar a surdez, fazia uso da prtese auditiva

    praticamente 24 horas por dia, sem questionar seus

    reais benefcios, escondendo-a permanentemente.

  • 7/31/2019 Surdez e Preconceito - A Norma Da Fala e o Mito

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    Surdez e preconceito

    Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009 573

    Nas circunstncias em que no podia fazer uso da

    prtese, evitava falar ou, quando o fazia, buscava ser

    o mais sucinta possvel. Dessa forma, utilizando-me

    do mimetismo de disfarce, alimentei o ataque

    minha prpria identidade, perdendo a autonomia so-

    bre meu prprio corpo, tornando-o contido pelo usodo aparelho e pelos cuidados permanentes que exige,

    ngindo entender tudo que era falado, abdicando de

    meu direito de expresso, de participao; enm, de

    viver plenamente.

    Enquanto imersa no discurso clnico-teraputico

    da surdez, assimilei a imagem de ser deciente, de

    menos valia. Somente ao me libertar das amarras

    do ouvintismo que pude avaliar a relao custo-

    benefcio do aparelho e aprender a fazer uso dele deforma consciente. Hoje o considero um intrprete

    temperamental de competncia duvidosa; em situa-

    es desconhecidas, em que no sei se conseguirei

    contato prximo com quem esta falando e quando

    no posso contar com uma intrprete em Libras,

    constitui-se um recurso decitrio. Ao construir minha

    hbrida identidade surda, pude perceber a inverso da

    lgica perversa da situao de quem de fato deveria

    constranger-se, mantendo meu direito de sentir e ex-

    pressar as emoes, assim como exigir o acesso plenos informaes, recusando os processos simplistas de

    traduo.

    Nessa perspectiva, enfatizo o quanto a assimila-

    o do ouvintismo como uma concepo de mundo

    que se prope universal e superior, num esforo persis-

    tente de negao daquilo que , acaba implicando uma

    identidade fracionada e a perda do direito ao exerccio

    pleno da cidadania. Para ilustrar o sofrimento que esse

    processo de assimilao dos preconceitos gera, fao

    uma analogia com uma antiga fabula popular:

    O corvo, insatisfeito com sua condio, admirava distncia

    a comunidade dos pombos marcada pela elegncia, pela

    cultura e pela beleza. At que, certo dia, toma uma posio

    radical: pega uma lata de tinta branca e pinta-se inteiramente.

    Com essa nova roupagem, dirige-se ao pombal; l chegando,

    rapidamente identicado pelos pombos originais, que no

    permitem seu ingresso na sociedade. Decepcionado, decide

    voltar ao convvio de seus pares os corvos. L chegando,

    todavia, a decepo se faz mais profunda; seus antigos

    irmos no o reconhecem e o repudiam. Assim, sem ter o

    que tinha e no alcanando o que desejava, cou o pobre

    corvo s, lamentando sua singular condio. (Souza e Silva,

    2003, p. 140)

    Essa fbula toca em uma questo crucial para os

    surdos: a pertena a um grupo minoritrio, sobre o

    qual recaem inmeros preconceitos que lhe atribuem

    menos valia. Por isso, o caminho da autonegao

    uma possibilidade, uma tentativa de ser aceito. No

    entanto, assim como o corvo pintado de branco, o

    surdo reconhecido: seja por sua fala adjetivada

    como jeito surdo de falar, pelo uso da prtese, pelo

    no-entendimento das palavras faladas, por seu tom

    de voz, por no ouvir ou, pelo menos, em nveis bem

    abaixo dos ouvintes. Dessa forma, a pretensa busca em

    ser aceito, atravs do mimetismo, tentando se igualar

    a estes, mesmo que use de todos os artifcios, como

    ngir que entende tudo o que dito atravs da leitura

    da palavra falada, prtica comum entre os surdos, seu

    disfarce se desmorona. E se, como o corvo branco, o

    surdo tentar ir ao encontro dos seus pares, carregan-

    do todos os preconceitos ouvintistas, o povo surdotambm no o reconhece como um dos seus. Dessa

    forma, concordo com o fato de que a assimilao,

    alm de intil em seu propsito, provoca sofrimento

    sem trgua, prprio ao processo de ciso identitria

    (Baibich, 2001, p. 94).

    Consideraes fnais

    Episdios de preconceitos como os referidos so

    usuais no cotidiano dos surdos. A surdez foi construdahistoricamente a partir da diferena enquanto desvio da

    normalidade, numa abordagem patologizante. Apesar

    do novo discurso socioantropolgico da surdez estar

    em voga, principalmente no meio acadmico, esta

    ainda uma escrita recente. Podemos encontrar muitas

    contradies inclusive entre alguns dos que fazem

    uso de um discurso que impressiona positivamente,

    contradies essas que tambm os surdos apresentam

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    Slvia Andreis Witkoski

    Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009

    quando assimilam os preconceitos. Entre estes no

    posso deixar de fazer referncia a mim mesma, como

    surda que tambm em muitos momentos me encontrei

    nas amarras do ouvintismo.

    Para enfatizar a importncia e a urgncia de

    desconstruir as representaes preconceituosas queenvolvem o ser surdo, entre os quais a norma da fala

    e o mito da leitura da palavra falada, construindo outra

    narrativa na qual sejamos vistos como sujeitos surdos

    e no sujeitos com surdez (Lopes, 2007, p. 9), nalizo

    fazendo uso do discurso de Dalmo Dallari (apudRulli

    Neto, 2002, p. 217-219, citado por Bolonhini, 2004,

    p. 286-289):

    O preconceito acarreta a perda do respeito pela pessoahumana. [...] faz com que certas pessoas sejam estigma-

    tizadas, sofrendo humilhaes e violncias, que podem

    ser impostas com sutileza ou relativo disfarce ou ento de

    maneira escancarada, mas que em qualquer circunstncia

    so negaes do respeito devido dignidade de todos os

    seres humanos. [...] O preconceito introduz a desigualdade.

    [...] Em consequncia dos preconceitos, as pessoas direta

    ou indiretamente atingidas por eles so julgadas negativa-

    mente e colocadas em situao de inferioridade social [...]

    O preconceito estabelece e alimenta a discriminao. [...]promove a injustia. (...) anulando a regra bsica segundo

    a qual nenhuma pessoa vale mais do que a outra [...]. A par

    disso, onde atua o preconceito no importam os mritos, as

    aptides, o valor moral e intelectual. [...] O preconceito cria

    superioridades e inferioridades.

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    Surdez e preconceito

    Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009 575

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    Doutorado em Educao (Revista Iluminart, v. 1, n. 2, p. 108- 116,

    ago. 2009). Pesquisa em desenvolvimento: O preconceito contra

    os alunos surdos: um grito. Home-page: www.libraseliteratura.

    com.E-mail: [email protected]

    Recebido em maio de 2009

    Aprovado em junho de 2009

  • 7/31/2019 Surdez e Preconceito - A Norma Da Fala e o Mito

    12/12

    Resumos /Abstracts/Resumens

    606 Revista Brasileira de Educao v. 14 n. 42 set./dez. 2009

    occur and those that should be

    avoided. The purpose of this article

    is to contribute to the construction of

    conceptual tools that promote such an

    understanding.

    Key words: e-learning; cybercitizen;

    modernity and technicism; human

    formation and democracy; isolated

    subject.

    El quien de la educacin a distancia

    En un espacio corto de tiempo, la

    educacin a distancia (EAD) pas de

    un recurso marginal a un importante

    recurso de las polticas pblicas y de

    las acciones empresariales. Hoy, no

    es posible no considerar el impacto

    que la introduccin de la EAD on-lineviene causando en nuestras formas

    corrientes de concebir y de practicar

    la educacin y la comunicacin. Sus

    ms ardorosos defensores proclaman

    que las tecnologas de informacin y

    de comunicacin estn engendrando

    un nuevo tipo de sociedad y de

    humano. Sin embargo, se tiene la

    impresin de que el discurso de franca

    ruptura con el pasado resulta no slo

    de la creencia severa en los mediostecnolgicos, como de la imposibilidad

    de responder a las objeciones que

    podran ser hechas. En este sentido,

    ahora se vuelve urgente investir en la

    profundidad terica que permitir,

    tal vez, entender y calicar las

    rupturas que deban ser realizadas y

    aquella que deban ser evitadas. Es

    para la construccin de instrumentos

    conceptuales que favorezcan el

    esclarecimiento que el presente

    artculo pretende contribuir.

    Palabras claves: EAD on-line;

    ciberciudadano; modernidad y

    tecnologa; formacin humana y

    democracia; sujeto aislado.

    Slvia Andreis Witkoski

    Surdez e preconceito: a norma da

    fala e o mito da leitura da palavra

    falada

    Falar sobre surdez e preconceito narraruma das interfaces do ser surdo. Dentre

    o imenso leque que o envolve, o artigo

    traz para discusso a norma da fala e o

    mito da leitura da palavra falada, por

    considerar que ambos legitimam uma

    srie de prticas oralistas, afetando pejo-

    rativamente a construo da identidade

    do ser surdo e seu direito a uma comu-

    nicao e formao signicativa. Em

    nome de uma pseudointegrao entre

    surdos e ouvintes, mascaram-se os pre-

    conceitos em relao surdez e aos sur-

    dos, ao implicitamente no aceitar sua

    diferena lingustica, de percepo do

    mundo e forma de ser. Essa discusso

    construda essencialmente a partir do

    resgate de muitas vivncias dos prprios

    surdos, a m de trazer tona as suas

    nuanas, desvelando alguns dos discur-

    sos que legitimam esses preconceitos,

    buscando desnudar as implicaes dolo-

    rosas que geram na vida dos surdos.

    Palavras-chave: surdez; preconceito;

    Libras.

    Deafness and prejudice: the norm of

    speech and the myth of lip reading

    To talk about deafness and prejudice

    is to describe one of the interfaces of

    being deaf. Among the many things

    that this involves, this article puts in

    discussion the norm of speech and the

    myth of lip reading because they both

    legitimate a series of oral practices,affecting negatively the identity of being

    deaf and the right to communicate

    in a meaningful way. In the name of

    a pseudo-integration of deaf with

    hearing people, prejudices in relation

    to deafness and the deaf are disguised,

    when implicitly not accepting their

    linguistic difference, their perception

    of the world and way of being. The

    discussion is built essentially on many

    experiences of deaf people themselves,

    in order to bring out the nuances, and in

    so doing, reveal some of the discourses

    which legitimize the prejudices,

    whilst seeking to lay bare the painful

    implications that these generate in the

    life of deaf people.

    Key words: deafness; prejudice; sign

    language (Libras).

    Sordera y prejuicio: la norma del

    habla y el mito de la lectura de la

    palabra habladaHablar sobre sordera y prejuicio es

    narrar una de las interfaces del ser

    sordo. En medio al inmenso abanico

    que lo envuelve, el artculo trae para la

    discusin la norma del habla y el mito

    de la lectura de la palabra hablada,

    por considerar que ambos legitiman

    una serie de prcticas orales, afectando

    peyorativamente la construccin de la

    identidad del ser sordo y su derecho

    a una comunicacin y formacinsignicativa. En nombre de una seudo

    integracin entre sordos y oyentes, se

    disfrazan los prejuicios en relacin a la

    sordera y a los sordos, al implcitamente

    no aceptar su diferencia lingstica, de

    percepcin del mundo y de su forma

    de ser. Esta discusin es construida

    esencialmente a partir del recate de

    muchas vivencias de los propios sordos,

    con el intuito de mostrar sus matices,

    descubriendo algunos de los discursos

    que legitiman esos prejuicios, buscando

    descubrir las implicaciones dolorosas

    que generan en la vida de los sordos.

    Palabras claves: sordera; prejuicio;

    Libras.