suplemento alexandre herculano

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Suplemento comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano Este suplemento contou com o alto patrocínio das seguintes entidades: Câmara Municipal de Santarém; Instituto Politécnico de Santarém; Associação Portuguesa de Municípios com Centro Histórico; Câmara Municipal de Lamego; Câmara Municipal de Almeirim 200 Anos de Alexandre Herculano Alexandre Herculano nasceu a 28 de Março e foi a Primavera de 1810 que o trouxe para glorificar Portugal. O bicentenário do seu nascimento completou-se, assim no dia 28 de Março deste ano. Recorde-se que o autor de “Mo- numentos Pátrios” (1838) viveu em Vale de Lobos, (Póvoa de Santarém) desde 1867 até 13 de Setembro de 1877, data da sua morte. No ano de 1870 produziu, neste concelho, o primeiro azeite de mesa português. Pelos pro- gressos introduzidos na cultura da oliveira e na produção de azei- te, Alexandre Herculano recebeu os mais significativos prémios nacionais e estrangeiros. A família Santos Lima, actual proprietária da Quinta de Vale de Lobos, tem prosseguido o seu labor no que respeita à mo- dernização da olivicultura em Portugal. Possui 150 mil oliveiras e responde por 120 mil litros de azeite em cada ano. Já ganhou 14 prémios internacionais desde 2004. A Quinta de Vale de Lobos onde Herculano viveu, escreveu e morreu, deverá ser entendida como um local de peregrinação obrigatória de todos os cidadãos vigilantes e atentos diante do desafio que a salvaguarda do património cultural representa. Foi em Vale de Lobos que Alexandre Herculano recebeu por duas vezes a visita de D. Pedro II, Imperador do Brasil. A casa onde viveu sofreu modificações no século XX e é hoje apenas residência da família proprietária depois de ter sido, até há escas- sos anos, um espaço de turismo rural. No entanto, a família pro- prietária continua a preservar a memória de Alexandre Herculano mantendo intacto o quarto onde se encontra o seu leito de morte. Hoje as visitas ao local estão naturalmente mais dificultadas mas podem ocorrer mediante autorização prévia dos proprie- tários. Este suplemento tem a colaboração de José Saramago, Jorge Custódio, José Miguel No- ras, Paulo Caldas, Jorge Justino e Francisco Lopes. Este suplemento faz parte integrante da edição n.º 931 deste jornal e não pode ser vendido separadamente SEMANÁRIO REGIONAL - DIÁRIO ONLINE O MIRANTE

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Suplemento Alexandre Herculano

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Page 1: Suplemento Alexandre Herculano

Suplemento comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano

Este suplemento contou com o alto patrocínio das seguintes entidades: Câmara Municipal de Santarém; Instituto Politécnico de Santarém; Associação Portuguesa de Municípios com Centro Histórico; Câmara Municipal de Lamego; Câmara Municipal de Almeirim

200 Anos de Alexandre HerculanoAlexandre Herculano nasceu a

28 de Março e foi a Primavera de 1810 que o trouxe para glorificar Portugal. O bicentenário do seu nascimento completou-se, assim no dia 28 de Março deste ano. Recorde-se que o autor de “Mo-numentos Pátrios” (1838) viveu em Vale de Lobos, (Póvoa de Santarém) desde 1867 até 13 de Setembro de 1877, data da sua morte. No ano de 1870 produziu, neste concelho, o primeiro azeite de mesa português. Pelos pro-gressos introduzidos na cultura

da oliveira e na produção de azei-te, Alexandre Herculano recebeu os mais significativos prémios nacionais e estrangeiros.

A família Santos Lima, actual proprietária da Quinta de Vale de Lobos, tem prosseguido o seu labor no que respeita à mo-dernização da olivicultura em Portugal. Possui 150 mil oliveiras e responde por 120 mil litros de azeite em cada ano. Já ganhou 14 prémios internacionais desde 2004. A Quinta de Vale de Lobos onde Herculano viveu, escreveu

e morreu, deverá ser entendida como um local de peregrinação obrigatória de todos os cidadãos vigilantes e atentos diante do desafio que a salvaguarda do património cultural representa.

Foi em Vale de Lobos que Alexandre Herculano recebeu por duas vezes a visita de D. Pedro II, Imperador do Brasil. A casa onde viveu sofreu modificações no século XX e é hoje apenas residência da família proprietária depois de ter sido, até há escas-sos anos, um espaço de turismo

rural. No entanto, a família pro-prietária continua a preservar a memória de Alexandre Herculano mantendo intacto o quarto onde se encontra o seu leito de morte. Hoje as visitas ao local estão naturalmente mais dificultadas mas podem ocorrer mediante autorização prévia dos proprie-tários. Este suplemento tem a colaboração de José Saramago, Jorge Custódio, José Miguel No-ras, Paulo Caldas, Jorge Justino e Francisco Lopes.

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SEMANÁRIO REGIONAL - DIÁRIO ONLINE

O MIRANTE

Page 2: Suplemento Alexandre Herculano

II | 13 Maio 2010

O HOMEM PÚBLICOAlexandre Herculano, em 1838, com a

sua obra Monumentos Pátrios, tornou-se o percursor da preservação do património cultural português. O historiador utilizou uma prosa severa e enérgica ao abordar a sistemática depredação de que o pa-trimónio cultural vinha sendo vítima: «É contra a índole destruidora dos homens de hoje que a razão e a consciência nos forçam a erguer a voz e a chamar, como o antigo eremita, todos os ânimos capazes de nobre esforço para a nova cruzada. Ergueremos um brado a favor dos monumentos da história, da arte, da gloria nacional, que todos os dias vemos desabar em ruínas» (Monumentos Pátrios, 1838). A. Herculano utilizava expressões cáusticas, tais como: «van-dalismo actual», «homens da destruição […], da civilização vandálica», Semelhan-tes a vermes róis e não edificaes», os culpados, os partidários das «picaretas», das «alavancas», dos «camartelos do bota abaixo», do «vá para terra», e do «arrasa», «bando de miseráveis»… A mesmo tempo, pôs em evidência a impor-tância da preservação dos monumentos, considerando-os «uma riqueza social»: «Quando a arte ou os factos históricos os tornam recomendáveis, convertem-se em capital produtivo» (Id. Ibid.)

Em 1939, assumiu o cargo de director das bibliotecas reais das Necessidades e da Ajuda. Foi nomeado «Bibliotecário Mor de sua Magestade, recebendo 600$00 anuais pagos do bolso do rei-consorte D. Fernando II e fixando residência no Alto da Ajuda, em casa contígua à bi-blioteca do Palácio. Estas novas funções

Alexandre Herculano – Um humanista, baluarte do património histórico e cultural português

permitiram-lhe dedicar-se à investigação que vieram a dar origem à História de Portugal publicada a partir de 1846 e os restantes tomos em 1847, 1850 e 1853. Esta obra histórica provocou uma forte polémica, sobretudo no meio clerical, porque colocava em causa a tradição do milagre de Ourique, uma vez que não existiam documentos que o provassem.

A. Herculano recusou colaborar com o governo de Costa Cabral, dedicando-se, porém, à redacção e publicação da sua obra literária: Cartas sobre a História de Portugal (1842), Apontamentos para a História dos Bens da Coroa e Forais (1843-44), O Bobo (1843), Eurico (1844), O Pároco da Aldeia (1844), O Monge de Cister (1848), Lendas e Narrativas (1851).

A violenta polémica em torno do milagre de Ourique levou Herculano a publicar várias cartas (1850): Eu e o Clero, Solemnia Verba, Considerações Pacíficas, etc.

Participou na preparação da revolução que, encabeçada por Saldanha, veio a pôr termo ao cartismo cabralista e deu origem à Regeneração (1851), cujos propósitos iniciais de reforma da gover-nação pública haviam sido ideados por ele. Recusou a pasta do Reino oferecida por Saldanha. Perante os novos rumos «regeneradores» traçados por Rodrigo da Fonseca e Fontes Pereira de Melo, passou, novamente para a oposição, fundando o jornal «O País» (1851) e definindo a orientação de «O Português» (1853), nos quais se destaca pela crítica política, procurando orientar a opinião pública no sentido das reformas que considerava indispensáveis. Assim, no contexto do seu municipalismo, foi eleito pela oposição presidente da Câmara Municipal de Belém (1853). Em 1854, como presidente da Câmara Municipal de Belém, surgiu a polémica contra o governo, defendendo os munícipes dos vexames dos impostos e da fiscalização governamental. Neste mesmo ano publi-cou o 1.º volume da História da origem da Inquisição em Portugal, onde no Prólogo ataca a burguesia reaccionária: «Confundindo as ideias de liberdade e progresso com as de licença e desen-freamento, o direito com a opressão e a propriedade, filha sacrossanta do trabalho, com a espoliação e o roubo; tomando, em suma, por sistema de reforma a dissolução social, há poucos anos que certos homens e certas escolas encheram de terror com suas loucuras a classe média, a mais poderosa, as que compõem as sociedades modernas».

Em 1855, foi eleito sócio de mérito

e vice-presidente da Academia das Ciências de Lisboa, onde se sentiu na obrigação de proceder contra o secretário perpétuo da instituição, Costa Macedo, acusado de desvios, que foi nomeado por Rodrigo da Fonseca director da Torre do Tombo. Por este motivo, A. Herculano, que estava a dirigir a publicação dos Por-tugaliae Monumenta Historica, recusou-se a continuar as suas investigações no Arquivo Nacional. Em 1873 concluiu os 4 volumes dos Portugaliae Monumenta Historica e publicou Opúsculos, tomos I e II (foram publicados 10 volumes de

1873 até 1908).O NOSSO RIBATEJOEm 1876. A. Herculano pediu pelas

vítimas das inundações do Tejo, em Valada, no Cartaxo. Em 1877, organizou a 1.ª Cooperativa dos Agricultores do Distrito de Santarém. Neste mesmo ano morreu em Vale Lobos, ficando sepultado na igreja de Azóia de Baixo até 1888, data em que foi transladado para um túmulo nos Jerónimos, em Lisboa.

O bom senso, o equilíbrio, o espírito de cidadania e de serviço público são lições a tirar da sua vida e obra.

Suplemento de O MIRANTE comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano

Paulo Caldas

“É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias, acabe com o país nominal, inventado nas secretarias […].”

Citações de livros de Alexandre Herculano

Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu na cidade de Lis-boa Portugal, em 1810. De origem humilde, não chega a fazer curso universitário; dedica-se , entretanto, aos estudos clássicos e filológicos, formando sua vasta cultura em mol-des rígidos. Torna-se em modelo de correção vernacular. É tido como o maior nome das letras de Portugal, somente equiparado a Camões. Em 1831, Alexandre Herculano, por ser avesso ao absolutismo miguelista, é exilado. De volta a Portugal, no ano seguinte, escreve alguns poemas: A harpa do crente, A voz do Profeta.

Deixa, mais tarde, esse gênero, dedicando-se inteiramente a ficção. É o iniciador do romance histórico em Portugal; consegue harmonizar a imaginação com a história.

Principais Obras:Prosa HistóricaEurico, o PresbitérioO Monge de CisterO BoboLendas e NarrativasHistoriografiaHistória de PortugalHistória da origem e estabeleci-

mento da inquisição em Portugal

O iniciador do romance histórico em Portugal

Page 3: Suplemento Alexandre Herculano

Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo, nascido em Lisboa a 28 de Março de 1810, liberal, seguidor do Romantismo e agricultor de paixão, foi homem do saber, das artes, da escrita, da história, do jornalismo, da poesia e da política. Figura ímpar do século XIX, invejado

Alexandre Herculano 200 anos depois

por uns e admirado por muitos outros, conseguiu uma vida plena de actividades, defendendo os seus ideais com convicção e rejeitando o Absolutismo através da luta armada, o que conduziu ao seu exílio em França, onde escreveu os seus melhores poemas. Mesmo assim, afrontou o clero, com o rigor da história, sobre a batalha de Ourique, defendendo sempre, com verdade científica, os seus escritos. Pela sua obra foi nomeado sócio efectivo da Academia das Ciências.

Apesar de ter sido considerado, por muitos, como o maior historiador portu-guês do século XIX e de ser conhecedor dos idiomas inglês, italiano, alemão, francês e latim e de saber lógica, retórica e matemática, como homem simples que era, recusou honrarias e condecorações, retirando-se para a sua quinta de Vale de Lobos, na Azoia de Santarém, ao sentir o apelo da terra. Aí se dedicou à agricultura e assumiu uma vida simples, contrária ao reboliço dos grandes centros, como ele próprio escreveu “ancorado no porto tran-quilo e feliz do silêncio e da tranquilidade”, abdicando das lutas inglórias às quais se

entregou, sempre, com fulgor. Nesta última fase da sua vida, inspira-

do pela força da natureza, dedicou-se à agricultura criando uma granja-modelo, com uma produção diversificada, no-meadamente de cereais, vinho e azeite. Conforme se lê no livro de Jorge Custódio intitulado O Lagar e o “Azeite Herculano”, “não há boas colheitas sem estrumes, não há estrumes sem gado e não há gado sem pastos”. Assentando toda a estrutura da propriedade agrícola nesta dedução lógi-ca, desenvolveu um modelo de exploração que foi um marco de referência no país e no estrangeiro. Experimentou várias práticas de cultura agrícola e introduziu a beterraba como penso para o gado. Herculano foi pois caracterizado como um bom gestor agrícola e um homem com sensibilidade para o cultivo das terras e para a comercialização dos seus produtos.

Mas a área de maior desenvolvimento e a sua grande paixão foi a produção de azeite. Neste domínio explorou dois lagares, o Lagar de Azeite da Quinta de Calhariz (como rendeiro) e o lagar de Vale de Lobos na sua propriedade. As técnicas de exploração eram já muito avançadas para a época e um exemplo a ser seguido. Surge assim um azeite de elevada qualidade e reconhecido in-ternacionalmente, o “Azeite Herculano”, que foi um marco histórico nos azeites

portugueses. Todo o processo relacionado com a produção era preparado com o maior cuidado e conhecimento tecno-lógico no cultivo da oliveira, na apanha da azeitona, no transporte, no fabrico, no envasilhamento e engarrafamento e posteriormente na comercialização, nomeadamente na venda em casas da especialidade. O reconhecimento do seu mérito ultrapassou as fronteiras, tendo em 1876 recebido o diploma conferido pela Comissão Centenária dos Estados Unidos da América no certame de “Philadelphia Olive Oil”.

O seu último suspiro ocorreu a 13 de Setembro de 1877, perdendo o som da vida na sua última ligação à Terra, deixando de desfrutar a calmaria e a tranquilidade de Vale de Lobos, onde adquiriu a paixão pela agricultura e pela vida simples, mas sempre com o intuito de levar a cabo todas as suas tarefas na perfeição. Homem notável, de cultura europeia, ribatejano de coração, foi reconhecido internacionalmente como um dos maiores portugueses do século XIX. Teve as honras de ser sepultado em mausoléu próprio, na Capela Tumular do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa.

A comemoração do bicentenário do seu nascimento, para além de legítima, é um tributo ao homem que bem serviu o país, numa época de mudanças e de evolução histórica.

Jorge Justino

13 Maio 2010 | III

Suplemento de O MIRANTE comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano

de acção, uma acção vigorosa contra o absolutismo, contra o centralismo, contra os interesses particulares dos partidos e, ainda, contra os fundamentos mágicos ou mitológicos da História.

As suas escassas intervenções par-lamentares revelaram, porém, grande independência de espírito e de acção, não se vergando ao clientelismo, nem à incoerência política. Defendeu a integri-dade do território ultramarino português relativamente às pretensões francesas sobre a Guiné, insistiu na conservação dos monumentos pátrios, secundou Garrett nas questões ligadas à propriedade literá-ria, criticou os abusos contra a liberdade de imprensa, protegeu os docentes da Academia do Porto e dignificou os pro-fessores primários em Portugal.

Com a sua “oratória dos silêncios”, em dois anos de Parlamento, Herculano sobrepôs-se às questiúnculas que divi-dem governos, partidos e respectivas clientelas, colocando-se, invariavelmente, numa perspectiva orientada pelo interesse nacional, privilegiando as questões essen-ciais da vida portuguesa, em detrimento da politiquice e das “intrigas de faca na liga”.

Saiu do Parlamento em 1842, para jamais voltar. Preferiu, onze anos de-

Alexandre Herculano, a força das convicções e a ideologia da acção

José Miguel Noras

pois, assumir a presidência da Câmara Municipal de Belém, onde se notabilizou pela organização (em 1853) deste novo concelho (entretanto extinto). A redacção das suas posturas depressa se tornou num modelo de orientação normativa para os restantes municípios. No que toca à defesa da legalidade pública e à salvaguarda da autoridade local, mesmo que o contraven-tor fosse o Governo, a voz e a pena de Herculano ainda hoje ecoam e perduram nas autarquias portuguesas.

O Parlamento representava, para Herculano, a política de gabinete, do caciquismo e dos interesses partidários, enquanto que uma Câmara Municipal implicava acção, proximidade e envolvi-mento directo na vida dos cidadãos.

Como presidente da Câmara, nunca vacilou perante o Governo. Fervoroso

adepto da descentralização e da autono-mia municipalista, preferiu abandonar a cadeira presidencial de Belém a aceitar a mão pesada do centralismo e os meandros obscuros do compadrio e da politiquice.

Alexandre Herculano completou 200 anos de idade. Só morre quem não vence o esquecimento!

A passagem de Alexandre Herculano pela vida parlamentar, embora retratada por Columbano nos “Passos Perdidos da Assembleia”, foi — em boa verdade — pouco fulgurante, breve e sem a paixão de um Garrett, de um Passos Manuel ou de um José Estêvão.

Eleito pelo círculo do Porto, ocupou as funções de deputado em 26 de Maio de 1840 e somente um mês e meio depois usou da palavra no Parlamento, durante a discussão da “resposta ao discurso da Coroa”.

A cadeira da Assembleia era, para o autor de Eurico o presbítero, a verda-deira marca do poder que as maiorias ambicionam “sem se lembrarem de que elas [as cadeiras do Parlamento] se convertem muitas vezes em instrumentos de martírio”, pois podem vir a tornar-se “recordação de remorso que nos acom-panhe por todo o resto da vida”, caso se traia o compromisso assumido para com os eleitores.

A postura “silenciosa” de Alexandre Herculano no Parlamento tem a ver com o modo como este encarou a vida política em Portugal. Herculano foi, sobretudo, um homem de acção, quer como solda-do, quer como escritor e revolucionário. Toda a sua ideologia é uma ideologia

Com a sua “oratória dos silêncios”, em dois anos de Parlamento, Herculano sobrepôs-se às questiúnculas

que dividem governos, partidos e respectivas clientelas, colocando-se, invariavelmente, numa perspectiva

orientada pelo interesse nacional,

privilegiando as questões essenciais da vida portuguesa,

em detrimento da politiquice e das “intrigas de faca na liga”.

Page 4: Suplemento Alexandre Herculano

IV | 13 Maio 2010

Suplemento de O MIRANTE comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano

IAlexandre Herculano foi investido do

estatuto de intelectual do regime. Ser intelectual em 1832-1834 signifi-

cava substituir as instituições do passado pelas liberais, mudar o pensamento e a mentalidade do país. As novas funções intelectuais foram-lhe, pois, conferidas por dois motivos: a Revolução e a Luz - o símbolo que representa a função intelec-tual numa situação de Revolução. Luz, para podermos utilizar um conceito do iluminismo, algo que confere ao intelectual a organicidade da mudança, utilizando a expressão de António Gramsci, numa das suas obras mais emblemáticas1. Ora, Alexandre Herculano, enquanto intelectual orgânico, era o portador dessa mudança e encontrava-se envolvido na educação das novas gerações, em organismos mais ou menos secretos, as sociedades filomáticas, um tipo de associações de transmissão de saberes, aonde se formava a mentalidade dos jovens para o novo ideal liberal, cons-titucional e democrático da sociedade, na época da burguesia conquistadora.

Mas igualmente funções culturais, di-rectamente relacionadas com o exercício da sua própria profissão. O Alexandre

Herculano foi bibliotecário, num momento de mudança das instituições do Antigo Regime. Um bibliotecário arquivista na Biblioteca do Porto, um bibliotecário na Real Biblioteca da Ajuda, um profissional cuja função era recolher e guardar livros, organizar bibliotecas, proteger arquivos, classificá-los, fichá-los no preciso momen-to em que essa nova sociedade nascia, quando foi necessário haver alguém para salvar do vandalismo da época o património bibliográfico e os arquivos dos conventos extintos.

Uma outra função cultural: escrever. Escrever o quê? Aquilo que era fundamen-tal transmitir à sociedade emergente da revolução liberal, mais do que romances (indispensáveis à formação de uma cultura moderna), escrever a epopeia da origem, ascensão e tomada do poder pelo terceiro estado. Essa foi a missão especial de Hercu-lano, a escrita da História de Portugal2.

Uma vida dedicada à coisa pública numa sociedade em mudança, com todas as consequências sociais e pessoais daí resultantes, fez gerar aquela reacção ao intelectual e político urbano e a desco-berta, tardia, do valor da vida individual, partilhada em família. Se esta hipótese tiver consistência, há no meu entender duas épocas intelectuais e biográficas de Herculano: antes e depois de 1864, sendo que 1864 representa a mudança definitiva de Alexandre Herculano para Vale de Lobos, tornando-se, por isso mes-mo, uma marca perene da sua existência como indivíduo3.

Só depois de 1864, quando essa trans-formação se operou em todo o seu ser é que Herculano decidiu contrair matrimónio e constituir família, casando com a sua companheira de juventude D. Mariana Hermínia Meira. O seu namoro com a irmã do melhor amigo era muito antigo. A investidura como intelectual do regime, impedira o seu casamento no momento próprio, furtando-se a um privilégio da existência. A viragem levou-o a admitir, numa carta a Filipe de Soure, que «não se pode fazer filhos e livros ao mesmo

tempo». O magistério da escrita fora, segundo o próprio Herculano, uma das causas porque não se casara. A decisão de retirada para Vale de Lobos permite-lhe (re)equacionar o projecto de vida – a sua actividade de intelectual submete-se à sua existência individual, ao desejo de consti-tuir família e ao papel que podia exercer na cultura. Depois de 1864, Herculano é já outro. Embora a decisão venha detrás, se formasse ao longo dos últimos dez anos, não fosse uma mudança brusca, os novos factos precipitaram o modo de ser e a obra de Herculano. Do ponto de vista intelectual verificamos que, antes de 1864, a produção literária é vastíssima. Mas depois de 64, atenua-se, reduz-se e esbate-se e, ao esbater-se, ganha e consolida-se a obra magna de Herculano - a Agricultura, cujo apogeu ocorre entre 1864 e 1877.

Numa carta a Bulhão Pato uns anos antes, dizia-lhe o seguinte: «quando tinha 25 anos, cultivava flores e fazia versos; depois dos 35 anos [no momento em que escrevia] fabrico manteiga e faço prosa. Passados os 50 provavelmente não farei nem uma coisa, nem outra. Serei talvez um avaro ou um caturra»4. Neste ponto enganou-se redondamente. Foi o melhor agricultor português mais consequente do seu tempo. Provavelmente o menos conhecido.

IIAvancemos um pouco mais. O campo,

ou seja, a agricultura no seu sentido lato, fundamentou em geral sistemas utópicos de realização cultural e política assentes na economia e sociedade agrária. No século XIX esses fenómenos aparecem não apenas na França (Eugène Buret) ou na Inglaterra, (Carlyle), mas também em Portugal (Castilho), com um objec-tivo fundamental, salvar o mundo que importava não perder. Formara-se a no-ção de que o mundo estava a mudar de rumo, porque a industrialização era uma realidade imparável e contínua, em cujo processo não apenas se apropriava da cidade antiga e criava grandes cidades5, como subvertia e devorava o campo e a agricultura, enquanto estrutura de toda a economia assente na terra.

Todavia, embora o processo industria-lizador parecesse irreversível, o mundo procurava resistir. Essa é de facto a es-tratégia do António Feliciano de Castilho, na obra Felicidade pela Agricultura, que pelas soluções que sugere chegou mesmo aos limiares da utopia. António Feliciano de Castilho quase que propõe a abolição do Estado, na sua cartilha, afirmando que

se tudo tiver como sustentáculo a agricul-tura, nem são precisos exércitos ou se são precisos, são milícias de lavradores, o que é completamente diferente dos exércitos permanentes. Sociedades agrícolas eram os átomos do desenvolvimento da agricul-tura, cuja representação superior se faria através de um parlamento de lavradores e de um ministério da agricultura.

É evidente que evasão da civitas, com toda a sua carga clássica (nesse tempo igualmente industrial), encontra-se de acordo com a velha antinomia campo-cidade, numa tentativa de superação dos males do século. Todavia, a questão que se põe é procurar avaliar e saber se o prazer que Alexandre Herculano sente pela agricultura revelado ao longo de toda a sua vida se enquadra ou não no sistema enunciado ou apenas se insere numa lógica de procura da felicidade, uma das duas vias: a «aurea mediocritas» ou a “corte na aldeia”. Ou então numa outra via, integra-da na mundividência oitocentista.

A “aurea mediocritas” era a via renas-centista. O intelectual cansado da vida saía da cidade, metia-se no campo e vivia com a natureza. Não exercia no campo a actividade agrária. A sua postura era essencialmente virada para a contempla-ção, para a observação, para o debate e reflexão, para a intelectualidade.

Comungando, até certo ponto da lógica da via renascentista, a «corte na aldeia», na posição de Rodrigues Lobo, era uma espécie de evasão face ao não comprometimento político, durante o domínio filipino. Era a alternativa à corte dos príncipes, numa altura em que não havia corte régia ou ela se encontrava distante, em Madrid. Pressupunha o diá-logo e o debate das ideias e das coisas, procurava-se criar ou manter o espírito de cortesão, na ausência de condições para o seu exercício. Procurava-se criar forças para o renascimento, para a regeneração ou para o regresso à Corte. Nessa expec-tativa geravam-se os contrários, a crítica e a oposição, criando-se uma mentalidade nobiliárquica restauracionista.

A atitude herculaniana é outra em rela-ção a qualquer destas vias. Herculano não tem uma atitude contemplativa do campo, não é um poeta de idílios, nem pretende regressar a uma qualquer corte situada no campo, por qualquer impedimento urbano. É um cultor da actividade agrária, pela regeneração da agricultura como primeiro sector da economia. Os temas agrários, incluindo as ideias económicas e o amor pela natureza presentes nas concepções teóricas e práticas de Herculano, vêm até

Jorge Custódio

O lugar de Herculano enquanto intelectual do regime liberal e na mundividência do campo

1 GRAMSCI, António – “Problemas Culturais”, in Obras Escolhidas, vol. II, Lisboa: Estampa, 1974, pp. 187-214.

2 Penso que isso explica cabalmente o seu interesse pela Idade Média, sobretudo pela os primeiros dois séculos da monarquia afonsina, fase em que as classes populares estão em ascensão no território português.

3 Herculano estava inclinado a mudar-se para Vale de Lobos, em 1859. Todavia partilhou ainda, entre 1859 e 1867, os dois espaços – o urbano e o rural. Lisboa ainda exerceu muita força, enquanto manteve as explorações da Horta do Galvão e da Ar-rábida. A quinta ribatejana necessitou de benfeitorias, situação que o impediu de passar radicalmente para lá. A correspondência noticia com frequência o seu

movimento no território, entre Lisboa e Santarém, até que passou para Vale de Lobos, não deixando de por vezes ir a Lisboa, tratar de assuntos e negócios, embora com maior raridade.

4 Carta a Bulhão Pato, in OLIVEIRA, A. j. Sardinha – Actuais Sócios Honorários da Associação Central da Agricultura Portuguesa e evocação de Alexandre Herculano que foi o primeiro”, in Lavoura Portuguesa, nº 1, Janeiro de 1961, p.

5 Manchester, na Inglaterra, era uma das maiores cidades do mundo, na década de 50, no século XIX.

6 A ideia da “corte na aldeia” é assumida por Herculano nos seus serões de agricultores, tanto na Ajuda, como no Calhariz, como sobretudo em Vale de Lobos. Zeferino Cândido refere os agricultores

que debatiam com Herculano nesses serões muito semelhantes aos propostos por António Feliciano de Castilho: João Anastácio Simões (de Cruz das Oliveiras), Francisco Simões (de Caselas) e Francisco Pedroso. Mas além dos citados há outros, como Ma-nuel José Júlio Guerra, vizinho de Herculano na Ajuda, mais tarde o responsável pela obras de regularização do Tejo, quando Herculano o visita em Santarém (Cf. Cenas de um Ano da Minha Vida. Apontamentos de Viagem, Lisboa: Bertrand, 1973, pp.133-134, 202-204). Quanto aos serões do Calhariz, as cartas a Filipe de Soure, são um testemunho da plêiade de amigos liberais, interessados pela agricultura. Para Ribatejo, há já um estudo, que embora incompleto, permite inventariar “a corte” de Vale de Lobos (José Cândido dos Santos, José Filipe de Sá, Pedro Vieira Gorjão), cf.

BEIRANTE, 1977, pp. 54-62. A sua correspondência permite ainda identificar amigos com quem debate as questões agrícolas em outras pequenas “cortes” de aldeia, situadas no Turcifal (António Nunes dos Reis, pai de Pedro Batalha Reis), Alpiarça (Henrique Maximiano Dulac e Duque de Palmela), Vale de Santarém (Rebelo da Silva) e Santarém (Bernardino Barros Gomes – Quinta da Ladeira) e Paulino da Cunha e Silva – Quinta da Comenda).

7 Cf. Cartas Inéditas a Joaquim Filipe de Soure, p. ??.

8 Independentemente da origem etimológica da palavra, bairro em Santarém significa ainda hoje “terras de campo” a norte de Santarém. Cf. BLUTEAU, Rafael – Vocabulário Português e Latino, Lisboa: 1712, vs. “Bairro”.

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13 Maio 2010 | V

Suplemento de O MIRANTE comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano

certo ponto justificar o epíteto de «solitário de Vale de Lobos», mas não da forma como se fez passar essa ideia. Herculano assume a sua retirada política, não porque estava farto dos políticos, mas porque quer dedicar-se à agricultura. Há algo de «aurea mediocritas» e de «corte na aldeia»6 na atitude de Herculano, mas há sobretudo uma radical diferença. Herculano gosta do campo, quer viver no campo, ama o campo, quer trabalhar realmente nele, com as suas próprias mãos, de acordo com a sua energia, quer produzir e aplicar novas soluções para modernização da agricultura da sua quinta (o que indirectamente sig-nifica a agricultura do país). Por isso há uma forma de ler «o solitário de Vale de Lobos», assente na cultura de cidade, e outra oposta assente na opção por Vale de Lobos, lugar de eleição do agricultor que existia em Herculano. Influência da mundividência pós-rousseauniana ou motivada pela influência da filosofia idealista alemã pós-Kant? Tratar-se-á de

Tendo Alexandre Herculano como pa-trono, a Associação Portuguesa dos Mu-nicípios com Centro Histórico (APMCH) constitui, actualmente, o segundo maior agrupamento de autarquias do nosso país. O seu primordial desígnio consiste na defesa, na revitalização e na animação dos núcleos urbanos antigos dos municí-pios de Portugal. Toda a sua acção visa contrariar o processo de abandono dos centros históricos verificado nas últimas décadas entre nós.

Para o presente mandato da APMCH, iniciado em 26 de Março de 2010, urge congregar esforços a nível governamen-tal e administrativo com a finalidade de garantir a preservação de tão importante legado cultural. Há, para tanto, uma total disponibilidade da APMCH com vista a um permanente diálogo com as entidades públicas e privadas cuja acti-vidade esteja directa ou indirectamente ligada a esta problemática, de modo a facilitar a dinamização de uma política de intervenção que contemple todos os aspectos respeitantes à salvaguarda e à valorização dos centros históricos portugueses.

No ano em que se comemora o bi-centenário do nascimento de Alexandre Herculano, autor de “Os Monumentos Pátrios”, a APMCH atribuirá, pela quinta vez, o Prémio Nacional de Arquitectura com o nome deste consagrado historia-dor e político, distinguindo o trabalho municipal que mais se destaque no domínio das intervenções em espaços públicos. A primeira edição deste prémio, concretizada em 2001, foi ganha pelo arquitecto Siza Vieira com o projecto da recuperação da sede da Associação “25 de Abril”.

Importa ainda sublinhar que, para

além dos diversos encontros nacionais de reflexão e de debate sobre os pro-blemas inerentes aos centros históricos, a APMCH promove, anualmente, as celebrações do Dia Nacional dos Centros Históricos Portugueses, coincidindo com o aniversário natalício de Alexandre Herculano (28 de Março).

A nova sede da APMCH, a instalar junto ao Bairro do Castelo, em Lamego, será dotada de um centro de documen-tação e de investigação, sob o signo de Alexandre Herculano”. Será, igualmente, um espaço de permuta de experiências, de exposição de boas práticas no plano da salvaguarda patrimonial e, no fundo, um privilegiado local de encontro para todos os que trabalham neste desafio que a valorização identidade nacional representa.

Lamego, 22 de Abril de 2010.

Presidente da Câmara Municipal de Lamego e da

Associação Portuguesa dos Municípios com Centro Histórico

Herculano dá nome a prémio nacional de arquitectura

Francisco Lopes

Se a nossa vida é um instante, o homem não deve construir

edifícios destinados de transpor os séculos.

É quase uma blasfémia revestir o transitório com

o trajo da eternidade.

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O que infiro é que esses banquistas daí são uma alcateia de tratantes e burlões.

A eternidade não é da terra; é do paraíso.

uma mentalidade romântica ou nasce da crise dessa mentalidade, inscrevendo-se já nas origens do realismo da 2ª metade do século XIX? Parece-nos que sim, esta última.

A consagração agrária de Herculano em Vale de Lobos, nos bairros de Santarém, eis pois uma conclusão que posso extrair do conhecimento da sua actividade agrícola e da sua opção existencial. Em várias cartas Herculano chamava-se a si próprio “bair-rão” ou “lavrador dos bairros”, daqueles lugares e campos. Há uma lógica nisto. Já agora, bairrão e saloio, porque antes de partir para Vale de Lobos, quando ex-plorava a Horta do Galvão, ele também se nomeia “saloio” daquelas redondezas7. Do ponto de vista histórico a duas expressões têm significado semelhante. Andas andam associadas aos espaços agrários da época islâmica, o primeiro no bairro em Santarém, a segunda à área estremenha, a Norte de Lisboa. No seu tempo as duas expressões era usuais, saloio mais do que bairrão, mas Herculano soube valorizar-lhe a semântica, até porque ainda era um termo usual no tempo de Rafael Bluteau8. Assim, Hercu-lano era saloio enquanto foi estremenho e passou a ser bairrão no momento em que passou a viver nos outeiros de Santarém. Bairrão e saloio são, pois, duas expressões idênticas com o mesmo significado, isto é, referente a campesinos, aldeões, rústicos, ou seja população vivendo da horticultu-ra, da fruticultura (sobressaindo ainda a cultura da figueira), floricultura e muito particularmente da oleicultura.

Os dois mundos não se chocam se avaliarmos que há na vontade do liberal criar o mundo do trabalho, aquele universo que transforma o homem num produtor e num organizador segundo as ideiais de Saint-Simom.

Dominando, com uma frieza crítica, a dicotomia entre o país real e o país legal, entre o interesse material e os valores morais, Herculano soube virar as costas às intrigas e hipocrisias do poder, refugiando-se em Vale de Lobos, às Portas de Santa-rém, onde se constitui como símbolo de rejeição das vãs glórias, para se dedicar “à felicidade pela agricultura”. Neste subtil movimento de carácter afirmou-se como luminar da vida pública e da acção políti-ca, garantindo um lugar no panteão dos exemplos cívicos, sem renunciar à vida e à cultura. Tal como referem todos os que em si procuram exemplo de meditação, Alexandre Herculano procurou em Vale de Lobos a equanimidade para reflexão e o conforto para a criação, onde repetiu o apelo para que o povo nunca esqueça “o grande e venerando culto dos seus antepassados”.

A construção da contemporaneidade passava pela afirmação do Terceiro Estado. Ora Herculano, antes de mais pertence a essa sociedade que estudou na História de Portugal, aquela que esteve na génese do Estado liberal. Como agente do presente, seria pelo trabalho e pela terra que Por-tugal se regeneraria. Herculano procurou cumprir esse desiderato, mas procurando a felicidade como quem pretende uma virtude e sabe encontrá-la.

Citações de livros de Alexandre Herculano

Uma vida dedicada à coisa pública numa sociedade em mudança, com todas as consequências sociais

e pessoais daí resultantes, fez gerar aquela

reacção ao intelectual e político urbano e a

descoberta, tardia, do valor da vida individual, partilhada em família.

Herculano não tem uma atitude contemplativa do campo, não é um poeta de idílios, nem

pretende regressar a uma qualquer corte situada

no campo, por qualquer impedimento urbano.

Herculano soube virar as costas às intrigas e hipocrisias do poder,

refugiando-se em Vale de Lobos, às Portas de Santarém, onde se constitui como

símbolo de rejeição das vãs glórias, para

se dedicar “à felicidade pela agricultura”.

Page 6: Suplemento Alexandre Herculano

Assinalar a efeméride, cumprir o ca-lendário, desfilar em manifestação, gritar a palavra de ordem? E que mais? Repetir o discurso do ano passado, e do outro, e de outro, como se repetem os gestos, sem pensar neles? Lembrar, suspirando em comum, as esperanças que demos e as promessas que recebemos? Chorar sobre as torpezas e as traições? Baixar a guarda e aceitar o triunfo insolente daqueles que fizeram da política um jogo sem dignidade nem regras? Decidir que o 25 de Abril foi a última oportunidade de salvar-se Portugal, e que, falhada ela, não há mais salvação possível? E que significa salvação? Vamos, de facto, a caminho de perder-nos? O povo? O país? O regime? Está cada um de nós vencido, ou ainda firme? Desprezamo-nos, ou respeitamo-nos? Merecíamos o 25 de Abril, ou era o 25 de Abril que merecia melhor sorte? Ou outra gente? […].

Todos nós fomos educados no respeito pela palavra e pela figura de Herculano, uma espécie de Moisés da História, per-sonalidade ética e científica como poucas vezes terá aparecido por cá. […].

Porém, como historiador, Alexandre Herculano haveria de saber bastante do povo a que pertencia para lhe perceber a particular grandeza: viu-o desde o princí-pio da nacionalidade, nos trabalhos e nos dias, nas guerras e nas descobertas, nas revoluções perdidas ou ganhas, no esforço imenso das gerações numa terra pobre e castigada. Aliás, a bem dizer, nenhum povo é pequeno, seja ele português ou espanhol, francês ou italiano, inglês ou alemão, chinês ou russo. Com o risco de me taxarem de lisonjeiro sem freio, seria capaz de jurar que o povo é mesmo a única coisa verdadeiramente grande que

existe. Não será puro, nem santo, nem bom, mas é grande, não pode deixar de o ser. Então, se não estou caído em erro, direi que Alexandre Herculano, ao falar da pequenez da gente não era no povo que pensava.

Em quem pensaria, pois? Se não eram afinal pequenos o pescador de Matosinhos, o camponês da Beira, o operário de Braço de Prata, ou o assalariado do Alentejo, que gente mínima mereceu o desdém de Herculano? Parece-me fácil a reposta: precisamente aquela que o fez retirar-se para Vale de Lobos, cansado, desiludido, agoniado de náusea moral: os políticos do tempo, o parasitismo oficial, os corruptos e os corruptores, esse enxame ridículo e maligno que Rafael Bordalo Pinheiro dependurou no pelourinho da irrisão para escarmento da praga e aprendizagem nossa. Essa é que era a gente pequena, e não o povo, o mesmo povo que o cari-caturista mostrava pobre, roto, explorado pelos impostos, roído pela ignorância e pela superstição, vítima pacífica e inocente do descaro dos poderosos e dos seus lugares-tenentes e homens-de-mão.

Que tem isto que ver com os dias de hoje, com este 25 de Abril? Tudo ou quase tudo. Não sei quantos Alexandres Herculanos se retiraram já para Vale de Lobos, mas gostaria que não usassem mal a sua autoridade, se a têm, repetindo aquela frase do Mestre dos Opúsculos num sentido que se vai espalhando entre uma burguesia que, não obstante todas as contrariedades, conservou e já reforça o seu poder económico e a sua influência política: que este povo não presta, que nós, portugueses, somos os últimos dos derradeiros, que seria bem melhor que os espanhóis tomassem definitivamente conta disto, que felizmente vamos entrar no Mercado Comum, é a maneira de nos meterem na ordem, etc., etc., etc., Não temos, e é grande falta nossa, um Bordalo Pinheiro para traçar com tinta corrosiva o retrato do actual poder, mas temos, talvez centuplicados, decerto refinados pelos avanços da ciência do oportunismo político e social, todos os modelos de há cem anos. E não soubemos ainda encontrar a maneira de nos livrarmos deles. […]

Hoje é dia 25 de Abril, dia bom para pensar nestas coisas. Vivemos um tempo de luta geral. Cada hora é uma batalha de resistência, cada minuto uma escaramuça, cada segundo respira um alento novo. Talvez hoje Alexandre Herculano não se retirasse para Vale de Lobos, mesmo sendo a nossa vida política o miserável espectáculo que é. Talvez a grandeza do povo português não lhe parecesse somente como um dado histórico, mas como um exaltante acto quotidiano. De gente muito grande.

(O Diário, 25 Abril de 1985)

Herculano e o 25 de AbrilTexto de recordação da figura de Alexandre Herculano escrito por José Saramago e publicado no jornal O Diário (já extinto) em 1985 por altura das comemorações do 25 de Abril

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Suplemento de O MIRANTE comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano

José Saramago

Que é esta vida senão um ponto entre duas

eternidades?

Vamos ver porque eu sou herege. 1.º – Porque não tenho um só bispo do meu lado.

Fora do activo serviço, os modernos representantes de Viriato não cruzam os braços, nem dormem.

O camarada é a providência, o amparo,

o tudo da família do oficial: desmama o

infante, leva a menina à mestra, acompanha a dona de casa, acende o

fogareiro, vai à tenda, ao açougue, ao mercado.

O cristianismo, e especialmente o

catolicismo, não temem a razão: precisam dela.

Os mistérios estão acima da razão; mas quererão os padres admitir que sejam contra a razão, e, portanto, absurdos?

Deus não nos deu inutilmente a razão. A revelação completa-a,

não a exclui.

Os arquitectos não suspeitavam que viria

tempo em que os homens soubessem decifrar

nas moles das pedras afeiçoadas e acumuladas a vida da sociedade que as ajuntou, e deixavam-se ir ao som das suas inspirações, que eram

determinadas pelo viver e crer e sentir da geração que passava.

Citações de livros de Alexandre Herculano (recolha efectuada por José Miguel Noras)

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Quereis encontrar o governo central? Do berço

à cova encontrai-o por todas as fases da vossa

vida, raramente para vos proteger, de contínuo para vos incomodar.

Deve haver um dia em que a sociedade, como os indivíduos,

chegue à maioridade.

Os partidos vencem, atraindo a si por meios

suasórios a maioria da nação; e nenhum meio é mais poderoso para persuadir o povo

do que o exemplo.

Aqui [Vale de Lobos] matou-se um [melro branco] há tempos. Conservo-o por ser

coisa pouco vulgar. Foi empalhado por curiosos mas parece-me que não está muito imperfeito.

(carta inédita datada de Vale de Lobos e dirigida, em 21 de

Abril 1875, ao Director do Museu da Escola Politécnica, Dr. José Vicente Barbosa du Bocage).

Vi na Democracia de ontem que tinha merecido

a atenção em Paris o aparecimento de um

melro branco, e instava-se como coisa notável a

existência de um no Porto. (carta inédita datada de Vale de Lobos e dirigida, em 21 de

Abril 1875, ao Director do Museu da Escola Politécnica, Dr. José Vicente Barbosa du Bocage).

Page 7: Suplemento Alexandre Herculano

13 Maio 2010 | VII

Suplemento de O MIRANTE comemorativo dos 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano

«Acabais de me dar uma demonstra-ção de confiança, escolhendo-me para vosso procurador no Parlamento: sinto que não me seja permitido aceitá-la.» — escreveu Alexandre Herculano, em 1858, aos eleitores do círculo de “Cintra”, explicando a sua decisão desta forma tão encantadora: «Se tal escolha não foi uma daquelas inspirações que vêm ao mesmo tempo ao espírito de grande número, o que é altamente improvável, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de vós; se alguém, se pessoas preponderantes nesse círculo, pelo conceito que vos merecem, vos apre-sentaram a minha candidatura, andaram menos prudentemente, fazendo-o sem me consultarem, e promovendo uma eleição inútil.

Há anos que os eleitores de um círculo da Beira, na sua muita benevolência para comigo, pretenderam fazer-me a honra que me fizestes agora […].

Duas vezes nos comícios populares, muitas vezes na imprensa tenho mani-festado a minha íntima convicção de que nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu representante indivíduo que lhe não pertença; que por larga experiência não lhe tenha conhecido as suas neces-sidades e misérias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os que o elegeram comunidade de interesses, interesses que variam, que se modificam, e até se contradizem, de província para província, de distrito para distrito, e às vezes de concelho para concelho […].

Durante meses, no decurso de dois anos, tive de vagar pelos distritos [..]. Pude então observar amplamente quan-tas misérias, quanto abandono, quantos vexames pesam sobre os habitantes das províncias, principalmente dos distritos rurais, como o vosso, que constituem a maioria do país. [...] vi a agricultura, a verdadeira indústria de Portugal, lidando inutilmente por desenvolver-se no meio da insuficiência dos seus recursos; vi, em resultado dos erros económicos que pululam na nossa legislação, a má organização da propriedade territorial e a desigualdade espantosa na distribuição das populações rurais, precedida da mes-ma origem, […] vi a injusta repartição e a pior aplicação dos tributos e encargos: vi a falta de segurança […], especialmente nos campos, onde o homem é obriga-do a confiar só em si e em Deus para a obter, vi um sistema administrativo mau por si e péssimo para Portugal, com uma hierarquia de funcionários e uma distribuição de funções que tornam remotas, complicadas, gravosas, e até impossíveis, a administração e a justiça para as classes populares, e incómodas e espoliadoras para as altas classes; vi, sobretudo, a falta de vida pública, a concentração do homem na vida in-dividual e de família, que é ao mesmo tempo causa e efeito da decadência dos povos que se dizem livres; vi todos

esperarem e temerem tudo do Governo central; confiarem nele, como se fosse a Providência; maldizerem-no, como se fosse o princípio mau […].

E isto que vi perspicuamente, apesar de uma observação transitória, vêem-nos todos os dias, palpam-nos, e, o que mais é, padecem-no centenas de homens honestos e inteligentes que vivem obscuramente por essas vilas e aldeias de Portugal. Como os seus vizi-nhos, eles são vítimas da nossa absurda organização; disso a que por antífrase chamamos administração e Governo. É entre tais homens que os círculos deveriam escolher os seus representan-tes; é entre eles que os escolherão por certo no dia em que compreenderem que o direito eleitoral é uma espada de dois gumes com que os cidadãos estão armados para se defenderem a si e aos seus filhos, mas com que também podem assassinar-se e assassiná-los. Foi o que disse a todos aqueles, e não foram poucos, que durante a minha peregrinação pareceram confiar, senão no valor das minhas opiniões, ao menos na sinceridade delas. Interrogado acerca do lenitivo que supunha possível para os males que presenciava, indiquei sempre, não como remédio definitivo, mas como preparação para ele, como instrumento de uma reforma futura, a eleição exclu-sivamente local e os esforços constan-tes para obter, contra o interesse das facções, dos partidos e dos governos, a redução dos grandes círculos a círculos de eleição singular, que um dia possam servir de restauração à vida municipal, da expressão verdadeira da vida pública do país, e de garantia da descentralização administrativa, […].

A eleição de campanário é o sintoma e o preâmbulo de uma reacção des-centralizadora, a descentralização é a condição impreterível da administração do país pelo país, e a administração do país pelo país é a realização material, palpável, efectiva da liberdade na sua plenitude, sem anarquia, sem revo-luções, de que não vem quase nunca senão mal. Para obter este resultado, é necessário começar pelo princípio; é necessário que a vida pública renasça. […]» (Alexandre Herculano, Opúsculos – Questões Públicas, tomo II).

Decorridos mais de 150 anos so-bre a carta de Alexandre Herculano aos eleitores de “Cintra”, a eleição uninominal ainda não perdeu o traje do sonho. Enquanto esta não ganhar índole de realidade, alguns políticos, que não conseguiriam sequer os votos da sua própria rua, chegam ao Parlamento, cobertos pela manta de cada sigla partidá-ria, mercê dos círculos eleitorais colectivos que ainda perduram em Portugal. Os idiotas existem para os nossos pequenos prazeres e para as nossas grandes desgraças!

Carta de Herculano aos seus eleitores

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Nós queremos que à centralização

reaccionária se oponha a associação dos liberais, mas sem centralização.

Nós quiséramos ver afastados da futura

câmara todos os especuladores políticos.

Todos os interesses, que deveriam ser

zelados por municípios, estão à mercê de um ministro que reside em Lisboa, e que

nem os conhece, nem devidamente os aprecia.

Não receeis que a descentralização seja

a “disgregação”.

O centro eleitoral não é soberano; permite

aos eleitores primários que se reúnam em

assembleias paroquiais; consente aos eleitores que decidam entre si

em quem devem votar.

A coisa definida existe antes da definição.

Citações de livros de Alexandre Herculano (recolha efectuada por José Miguel Noras)

Page 8: Suplemento Alexandre Herculano

VIII | 13 Maio 2010

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