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Sumário Sumário Agradecimentos.............................................iii Dedicatória.................................................iv Sumário ..................................................... 1 Introdução .................................................. 3 1. Os salmos de lamentação no Saltério ...................... 8 1.1. O Saltério ...................................................... 13 1.2. Os gêneros literários encontrados nos salmos .................... 14 1.2.1. Hinos ....................................................... 19 1.2.2. Cantos de ação de graças .................................... 21 1.2.3. Cantos de Sião .............................................. 23 1.2.4. Hinos da realeza de Javé .................................... 25 1.2.6. Lamentações ................................................. 26 1.3. Indicações do Sitz im Leben dos salmos .......................... 33 1.4. Intenção ........................................................ 45 2. Desde o Xeol ............................................ 50 2.1. Tradução do Texto ............................................... 50 2.2. Análise literária ............................................... 51 2.3. Interpretação do salmo a partir da análise dos gêneros e Sitz im leben ........................................................... 55 2.3.1. Javé Deus socorre-me ........................................ 55

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Sumário

Sumário

Agradecimentos.............................................iii

Dedicatória.................................................iv

Sumário..................................................... 1

Introdução.................................................. 3

1. Os salmos de lamentação no Saltério...................... 8

1.1. O Saltério ...................................................... 13 1.2. Os gêneros literários encontrados nos salmos .................... 14

1.2.1. Hinos ....................................................... 19 1.2.2. Cantos de ação de graças .................................... 21 1.2.3. Cantos de Sião .............................................. 23 1.2.4. Hinos da realeza de Javé .................................... 25 1.2.6. Lamentações ................................................. 26

1.3. Indicações do Sitz im Leben dos salmos .......................... 33 1.4. Intenção ........................................................ 45

2. Desde o Xeol............................................ 50

2.1. Tradução do Texto ............................................... 50 2.2. Análise literária ............................................... 51 2.3. Interpretação do salmo a partir da análise dos gêneros e Sitz im

leben ........................................................... 55 2.3.1. Javé Deus socorre-me ........................................ 55

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Sumário

2

2.3.2. Contado entre os mortos ..................................... 62 2.3.3. A situação vital e a relação do salmista com Deus ........... 73

3. Deus no sofrimento humano............................... 82

3.1. A elaboração do sofrimento em linguagem sálmica ................. 86 3.2. As imagens de Deus ante o sofrimento ............................ 91 3.3. Falar com Deus: a oração como caminho para superação do sofrimento94

Conclusão: Lamentar é viver................................ 99

Bibliografia.............................................. 105

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Introdução

3

Introdução

Os salmos estão entre os textos mais lidos da Bíblia

em todos os tempos. Cristãos primitivos viram neles uma

indicação de Jesus, o Messias. Orantes de todos os séculos

repetiram as palavras alegres ou tristes, reconfortantes ou

atribuladas dos salmistas, muitas vezes, anônimos e perdidos

no tempo. Os salmos são poesia em forma de oração.

Desde o início de meus estudos teológicos, os salmos

foram foco de atenção especial. Primeiro, porque fazem parte

de uma caminhada cristã cheia de altos e baixos, que

possibilitou uma identificação profunda com os dizeres

daqueles poetas. Segundo, porque a percepção da vida e do

mundo atuais deixou entrever grandes possibilidades de pontes

para com a oração proferida há tanto tempo, numa época tão

diferente, marcada por problemas semelhantes: opressão,

abandono, solidão, perseguição, mentira, violência, injustiça,

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Introdução

4

descrença...

É tocante ler os salmos, pois ali não estão

representados os grandes heróis do Antigo Testamento, nem os

profetas repletos de autoridade e intimidade com Deus, nem

mesmo os patriarcas de grande memória em Israel, quase sempre

registrados em terceira pessoa.

Ali aparecem orantes pequenos, frágeis, perseguidos,

amedrontados, confiantes em um Deus que se aproxima deles,

curiosos em entender seus mistérios, ansiosos em lhe prestar

louvor. Nos salmos, as pessoas falam de si mesmas e de como

percebem o agir de Deus em suas vidas, em primeira pessoa,

como indivíduos ou como comunidade de fé, mas sempre sem medo

de revelar seus temores mais profundos.

É por isso que os salmos são espelho da alma das

pessoas. Um espelho que, mesmo com o passar dos anos, não

deixa de refletir o interior de um ser humano eternamente em

busca de si mesmo, em busca de Deus. O que se vê no espelho

pode ser um pouco diferente, um reflexo mais claro ou obscuro,

conforme o olhar de quem se aproxima. Mas, de qualquer forma,

é um reflexo de si.

Nos salmos de lamentação em especial, esse reflexo se

torna mais real. A dor humana pode ser provocada de maneiras

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Introdução

5

diferentes na atualidade. Pode ser interpretada diversamente.

Mas é sentida com a mesma intensidade por um camponês ou um

operário, um doente do Israel antigo ou um paciente do INSS,

ou um aposentado, ou um deficiente físico, ou vítimas do

racismo.

A solidão e a opressão social igualmente maltratam o

coração das pessoas, independente do século em que elas vivem.

Por isso, o despertamento para estudar os salmos de lamentação

é válido.

O Salmo 88, objeto de estudo da presente monografia,

está nesse oceano de sentimentos oriundos da dor e do

sofrimento. Não é um texto sobre o qual se tenha escrito

longamente. Talvez porque seja o mais sombrio de todos os

salmos, para o qual se olha com desconfiança: será que existe

saída para quem ora esse poema? Será que ele espera algo de

Deus?

Para entender o universo desse salmo e seu sentido, o

primeiro capítulo visa dar um panorama do saltério e dos

gêneros poéticos aí encontrados, dentre os quais, em especial,

os salmos de lamentação. Dessa forma, o leitor poderá também

conhecer as ferramentas usadas neste trabalho para a

aproximação do texto bíblico.

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Introdução

6

O segundo capítulo é uma exegese do Sl 88, procurando

pelos sentidos do texto, seu lugar vivencial, seus conteúdos e

como se dá a relação com Deus numa situação de muita dor e

sofrimento. Essa aproximação se dá através das ferramentas

histórico-críticas, como método que permite uma visão mais

abrangente do texto e do ambiente que o rodeia.

A partir das descobertas proporcionadas pela exegese,

o terceiro capítulo pretende indicar como a lamentação se

constitui em um caminho possível para superação do sofrimento,

através da elaboração reflexiva dos seus conteúdos.

A lamentação é vista assim, como uma forma de evitar

que o sofredor se torne apático, alienado em sua própria dor.

É um caminho de comunicação consigo mesmo, com Deus e com as

pessoas, a fim de que o emudecimento não torne o sofrimento

ainda mais insuportável.

Longe de se esperar do sofredor bíblico uma atitude

de resignação. As lamentações bíblicas são um indicativo da

luta pela sobrevivência, pela manutenção da dignidade humana

em face das mais violentas manifestações de desumanidade. São

uma demonstração de uma fé que não se aliena ou ignora a dor,

mas a encara, a enfrenta, visando superá-la.

Este trabalho é um desejo de reflexão sobre o

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Introdução

7

sofrimento no Sl 88, em busca de pistas para lidar com as

situações que geram sofrimento hoje. A proposta é assumir o

sofrimento, resistir a ele, ao invés de negá-lo ou de buscar

explicações para as dores que, não raro, realmente não têm

razão de ser, nem no pecado, nem na lógica, nem na maldição ou

na racionalidade.

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Os salmos de lamentação no saltério

8

1. Os salmos de lamentação no Saltério

Há muitas formas de aproximação dos textos bíblicos

em busca de melhor estudá-los e compreendê-los. Em relação aos

salmos, especificamente, há, pelo menos, três formas mais

usadas.

A primeira delas é analisar os salmos de acordo com a

divisão das coleções. Percebe-se, ao observar as doxologias

encontradas nos salmos, uma possível divisão em blocos. Tal

divisão aparentemente não possui motivos teológicos. Uma das

explicações é que Saltério foi dividido em cinco partes,

fazendo uma analogia à Torá1.

A divisão atual constitui apenas o estágio

final de um longo e complicado

1 WEISER, Arthur. Os salmos (Tradução de Edwino A. Royer e João Rezende Costa; revisão de Ivo Storniolo). São Paulo: Editora Paulus, 1994 (Coleção Grande Comentário Bíblico), p.10.

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Os salmos de lamentação no saltério

9

desenvolvimento e foi calcada no modelo do

Pentateuco ou vista posteriormente como

imitação do mesmo, ao passo que não existe

uma correspondência de conteúdo com os

livros do Pentateuco.2

São os blocos:

Livro 1: Salmos 1-41

Livro 2: Salmos 42-72

Livro 3: Salmos 73-89

Livro 4: Salmos 90-106

Livro 5: Salmos 107-150

Outra forma de aproximação dos salmos é estudá-los na

perspectiva das coleções dos compositores ou “corporações”. Os

Salmos de Asafe (73-83) são atribuídos a um grupo de cantores

citados em Esdras e Neemias. A origem desse grupo é

provavelmente anterior ao exílio e seus cânticos caracterizam-

se pelo uso do nome Elohim para Deus. Os salmos 51-72 foram

incorporados a essa coleção dos filhos de Asafe, tendo sido os

nomes divinos alterados3.

Sellin e Fohrer, contudo, embora afirmem a existência

do grupo de Asafe desde a época de Davi e sua consolidação

2 SELLIN, E. e FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento (tradução de Mateus Rocha). São Paulo: Edições Paulinas, 1977 (Nova Coleção Bíblica, 5), p.429. 3 MONLOUBOU, Louis. “Os salmos”. In: VVAA. Os salmos e outros escritos. São Paulo: Editora Paulus, 1996, p.17.

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Os salmos de lamentação no saltério

10

quando da volta do exílio, afirmam que talvez os salmos

ligados a ele não provenham daí de fato. Segundo esses

autores, a natureza dos salmos de Asafe é muito diversa, sendo

apenas um livro de cântico do mesmo4.

Os Salmos de Coré compreendem os poemas 42-49. Em 1Cr

9,19 se diz que eles serviam no templo. Esses salmos são

textos anteriores à destruição de Jerusalém. São poemas que

falam de peregrinação (42/43), Sião (46,48), o rei (45).

Segundo Monloubou, após o exílio, eles reuniram seus escritos

aos dos filhos de Asafe5.

Existem dúvidas sobre o processo de formação desse

grupo. Duas possibilidades são apresentadas por Sellin e

Fohrer6: inicialmente, os coreítas ocupavam funções mais

simples no templo e, pouco a pouco, conseguiram alcançar a

posição mais influente de cantores (pelo menos uma parte do

grupo).

Outra possibilidade é que pode ter sido um grupo de

cantores do período pós-exílico, que assumiu a função de

porteiros no templo. Nm 16, em sua versão final, apresenta uma

oposição às pretensões sacerdotais dos filhos de Coré.

4 SELLIN, E. e FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento, p.409. 5 MONLOUBOU, Louis. “Os salmos”, p.17. 6 SELLIN, E. e FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento, p.409.

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Os salmos de lamentação no saltério

11

Aparecem ainda salmos dos filhos de Heman (88), de

Iedutum7, de Salomão (72), de Moisés (90). Existem outros cuja

autoria ou dedicatória não é identificada, o que também

dificulta a pesquisa quanto à época de composição.

Deve-se ainda levar em consideração, nesse aspecto,

que muitos salmos foram sendo compostos ao longo dos tempos,

revisitados pelas pessoas e acrescidos de elementos novos. As

pesquisas sobre os salmos a partir das corporações estão em

efervescência na atualidade e muito há para se saber ainda.

Isso significa que nenhum posicionamento pode ser tomado a

priori como definitivo.

Deve estar claro ao leitor dos salmos que há grandes

dificuldades em estabelecer a autoria de um salmo. É mais

possível e plausível falar-se de origem ou compilação por um

determinado grupo. Exemplos dessa dificuldade não faltam. O

Sl 72, por exemplo, em seu título traz a informação “De

Salomão” e encerra-se dizendo: “Fim das palavras de Davi”.

Da mesma forma, diversos salmos falam sobre contextos

que não combinam com a autoria que indicam. À época de Davi

ainda não havia templo, mas há salmos atribuídos a ele que

7 Iedutum (ou Iditum, Jedutum, conforme a tradução) é tido como poeta (Sl 39,1; 62,1), como cantor (Sl 77,1) e vidente (1Cr 35,15). Segundo Sellin e Fohrer, vários grupos de cantores foram reunidos sob o seu nome (SELLIN, E. e FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento, p.409). Arthur Weiser entende a referência a Iedutum não como autor do salmo, mas como sendo o salmo pertencente à sua coleção, sendo recitado pelos que se entendiam seus descendentes. (WEISER, Arthur. Os salmos, p.332).

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Os salmos de lamentação no saltério

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fazem alusão a ele (68,30; 122,1).

O terceiro caminho é a análise através dos gêneros

literários. Essa abordagem se dá por meio dos Métodos

Histórico-Críticos. A Crítica da Forma, como um desses

métodos, tem sido uma grande contribuição ao estudo dos textos

bíblicos, em especial, os salmos.

Ela possibilita uma melhor percepção do conteúdo e do

ambiente em que os poemas e orações de Israel surgiram, bem

como do uso, preservação e transmissão desses salmos, por meio

do estudo dos gêneros literários e do lugar vivencial de cada

salmo.

Assim sendo, estudar os salmos por meio desses

métodos permite apreender com maior profundidade o que o texto

diz. E mais do que isso: levantar as questões que se encontram

por trás do texto, como a intenção do autor ou autores e a

situação que os levou a adotar uma determinada forma de

expressar-se. Por essa razão, este trabalho se norteará pelas

ferramentas proporcionadas por esses métodos para analisar o

salmo 88.

Este primeiro capítulo visa apresentar um panorama

dos gêneros contidos no saltério para o leitor que tenha um

mínimo conhecimento dos métodos exegéticos. Daí, não haverá

maior detalhamento, mas uma apresentação geral que possibilite

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Os salmos de lamentação no saltério

13

localizar melhor os chamados “salmos de lamentação” no

saltério e, em particular, o salmo 88, objeto principal desse

estudo.

1.1. O Saltério

O Saltério é o conjunto de 150 textos contidos na

Bíblia Hebraica8, chamado Tehillim, que significa “louvores”. O

termo salmo vem da Septuaginta e significa “cântico

acompanhado de instrumentos musicais (em hebraico, mizmor).”9

Os salmos fazem parte de uma cultura muito mais ampla

do que apenas esses cânticos do Saltério podem fazer supor. Em

toda a Bíblia, pode-se encontrar estruturas sálmicas, como,

por exemplo, os cânticos de Moisés (Ex 15,1-18), Miriã (Ex

15,21), Débora (Jz 5,2-31) e Ana (1Sm 2,1-10), guardadas ao

longo dos anos pela tradição de Israel. As releituras e

apropriações são constantes, tanto que o Novo Testamento faz

diversas aplicações dos salmos à figura de Jesus (por exemplo,

o Sl 22).

Embora não seja possível afirmar que os salmistas

tivessem a intenção de compor uma espécie de hinário, as

orações possuem um elemento que possibilita sua utilização por

8 A LXX traz 151 salmos. 9 SHILLING, Otimar. “Os salmos, louvor de Israel a Deus”. In: Palavra e Mensagem – Introdução Teológica e Crítica aos Problemas do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1978, p.382.

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Os salmos de lamentação no saltério

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orantes em todos os tempos, de acordo com suas necessidades.

Os salmistas procuraram torná-las aplicáveis a qualquer pessoa

em determinadas circunstâncias, identificando seus poemas com

as diversas situações da vida em que alguém poderia dirigir-se

a Deus usando tais composições.

Os salmos falam de gratidão, sofrimento, perseguição,

bênçãos alcançadas, corte e campo, plantação e exército,

guerra e paz. Isso faz com que, até hoje, os salmos sejam uma

das partes mais lidas do Antigo Testamento. Pessoas de

diferentes épocas conseguem sentir-se como os salmistas,

quando lêem um salmo que se aproxima de sua situação

existencial em dado momento.

1.2. Os gêneros literários encontrados nos salmos

As características específicas de cada texto são as

ferramentas que permitem à Crítica da Forma estabelecer os

critérios para determinar o gênero ou gêneros contidos em um

dado texto.

Apesar das diferenças encontradas entre a poesia

hebraica e a poesia ocidental moderna, uma das características

que se pode perceber é a existência de um ritmo ou métrica nos

poemas bíblicos.

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Os salmos de lamentação no saltério

15

A poesia hebraica não possui uma rima de palavras,

mas de pensamento, denominada tecnicamente como paralelismus

membrorum10. Esse estilo de poesia consiste em repetir a mesma

idéia em dois versos sucessivos, usando, porém, uma forma

diferente em cada verso. Por exemplo:

cercavam-me os laços do Xeol,

as ciladas da Morte me envolviam(Sl 18,6)

Invertendo-se o texto, é fácil visualizar os

elementos que compõem o paralelismo:

Cercavam-me os laços do xeol

me envolviam As ciladas da morte

No exemplo seguinte, o paralelismo expressa-se mais

por idéias semelhantes do que por palavras sinônimas:

vendes teu povo por um nada

e nada lucras com o seu preço (Sl 44,13)

Vendes teu povo Por um nada

10 SHILLING, Otimar. “Os salmos, louvor de Israel a Deus”, p.385. Esse termo técnico é usado por diversos autores, mas tem-se preferido falar atualmente em uma poesia que faz uso da repetição, utilizando-se, para isso, de dois, três ou mais versos. Isso, sem indicar, contudo, uma formulação rígida, pois há textos que fogem às regras do paralellismus membrorum. A repetitividade pura e simples passa, assim, a ser a peculiaridade por excelência dos salmos.

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Os salmos de lamentação no saltério

16

com seu preço Nada lucras

O paralelismo apresenta-se em diversas variações.

Existe o paralelismo sinonímico, que se baseia no uso de

palavras sinônimas ou de significado semelhante:

Lava-me inteiro da minha iniquidade

e purifica-me do meu pecado (Sl 51,4)

Lava-me inteiro Da minha iniquidade

e purifica-me do meu pecado

O paralelismo antitético baseia-se no contraste de

idéias para reforçar o pensamento:

Dá ouvidos à minha prece, ó Deus,

não te furtes à minha súplica (Sl 55,2)

A oposição das idéias se dá da seguinte forma: “Dá

ouvidos” versus “Não te furtes”. A uma oração afirmativa

contrapõe-se uma oração negativa, cujo sentido não é de

refutar, mas de fortalecer a primeira.

O paralelismo sintético consiste na complementação de

um verso pelo seguinte:

Salva-me, ó Deus, pois a água

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Os salmos de lamentação no saltério

17

está subindo ao meu pescoço.

Estou afundando em lodo profundo,

Sem nada que me firme;

Estou entrando no mais fundo das águas

E a correnteza me arrastando... (Sl 69,2-3)

Nesse tipo de paralelismo, o salmista parece querer

formar uma imagem diante dos olhos de Deus, de uma situação

que vai se tornando cada vez mais grave. No exemplo dado, ele

vai descrevendo-se como uma pessoa afundando: começa dizendo

que a água está em seu pescoço e conclui apresentando-se

totalmente submerso e à mercê das águas. Uma imagem bem forte

por sinal.

Esse tipo de paralelismo apresenta ainda uma

variante, que forma uma estrutura tipo ladainha, como um

encadeamento de idéias. Parece que salmos dessa natureza eram

usados em ambientes cúlticos de forma antifônica, quando o

cantor dizia uma frase e a comunidade respondia. A primeira

frase é variada em cada verso, mas a segunda permanece a

mesma. Por exemplo:

Celebrai a Javé, porque ele é bom

Porque o seu amor é para sempre!

Celebrai o Deus dos deuses

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Os salmos de lamentação no saltério

18

Porque o seu amor é para sempre!

Celebrai o Senhor dos senhores

Porque o seu amor é para sempre!

(Sl 136,1-3)

Pode-se perceber ainda a funcionalidade desse tipo de

poesia. Ao repetir a mesma idéia várias vezes, há também uma

atitude didática, pedagógica, à medida que favorece a

memorização dos textos, a apreensão de conteúdos.

O paralelismo climático usa a intensificação de cada

verso em direção ao final, em tom exaltado. A leitura do texto

em voz alta permite perceber essa intensificação de forma mais

contundente.

Javé, Deus das vinganças,

aparece, ó Deus das vinganças!

Levanta-te, ó juiz da terra,

Devolve o merecido aos soberbos! (Sl 94,1-2)

Nesse exemplo, a invocação, que já é bem pesada

(“Deus das vinganças”, “juiz da terra”), termina em um

imperativo pedido de castigo (“Devolve o merecido aos

soberbos”). É como se a última frase fosse o clímax, isto é, é

possível imaginar que a tonalidade da voz sobe nesse ponto,

acentuando a ênfase da invocação inicial.

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Os salmos de lamentação no saltério

19

Também se pode perceber, a partir do assunto ou tema

central do salmo, a que gênero ele pertence. Assim, podem ser

identificados, em termos gerais, os seguintes gêneros dos

salmos11:

1.2.1. Hinos

Consistem basicamente em dois elementos principais: a

exortação ao louvor e os motivos para fazê-lo. Há um convite à

participação da assembléia com expressões do tipo: “Casa de

Israel, bendizei ao Senhor!”(Sl 135,19). A forma mais

sintética é a expressão: Hallelujah! (Louvai ao Senhor).

A assembléia louva reunida ou o indivíduo convida a

si mesmo ao louvor, como: “Bendiz, ó minha alma, a Javé!” (Sl

146,1) Os motivos para o louvor são os atos de Deus do passado

e do presente. Pertencem a esse gênero: 8, 19, 29, 33, 65, 67,

100, 103, 104, 111, 113, 114, 135 e do salmo 145 ao 150.

A forma dos hinos segue o estilo da poesia cúltica do

Antigo Oriente, da qual Israel se apropriou, introduzindo

11 Há muitas variações para classificar os salmos em gêneros. Diversos livros citados na bibliografia deste trabalho dão um panorama dessas variações. Interessante, porque um pouco diverso dos demais, é o trabalho de Hilari Raguer (pág. 27-41), que subdivide ainda mais os gêneros, por conta de pequenos elementos [RAGUER, Hilari. Para compreender os salmos (Tradução de José A. Ceschin]. São Paulo: Edições Loyola, 1998). Uma divisão mais clássica, seguindo os estudiosos pioneiros dos métodos aqui utilizados, pode ser encontrada no livro de Arthur Weiser (WEISER, Arthur. Os salmos [Tradução de Edwino A. Royer e João Rezende Costa; revisão de Ivo Storniolo]. São Paulo: Editora Paulus, 1994 [Coleção Grande Comentário Bíblico]), nas páginas 33-61.

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Os salmos de lamentação no saltério

20

modificações substanciais. Pode-se dizer que Israel incorporou

a forma, mas seus conteúdos são próprios. Assim sendo, não é

possível falar dos hinos em que há semelhança com poesias do

Antigo Oriente em termos de incorporação pura e simples de

tradições estrangeiras.

O hino parece constar das mais antigas formas de

culto de Israel e aí encontra seu lugar vivencial. Diversos

elementos contidos nesses salmos supõem a presença de uma

assembléia cúltica. Fala-se do uso de instrumentos,

procissões, danças, músicas (como, por exemplo, 96, 100).

O hino é uma expressão comunitária, pois muitas vezes

a resposta comunitária ao louvor é apresentada pelas

expressões “Amém” e “Aleluia”, que devem ser proferidas pela

comunidade após a fala do salmista (Salmos 106, 111-113, 146,

150).

Teodorico Ballarini e Venanzio Reali diferenciam os

hinos dos cantos de ação de graças considerando os primeiros

como “louvor descritivo” (celebra-se a Deus por seus

atributos, por sua criação e como salvador de Israel) e os

últimos como “louvor narrativo” (quando um indivíduo ou a

comunidade recebe um benefício e agradece por ele)12.

12 BALLARINI, Teodorico e REALI, Venanzio. A poética hebraica e os salmos (tradução de Ney Brasil Pereira e Ephraim Ferreira Alves). Petrópolis: Editora Vozes, 1985, p.61-62.

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Os salmos de lamentação no saltério

21

Ainda segundo Weiser, o hino teria uma função de

testemunho (reconhecendo o agir de Deus na vivência da

comunidade), de propagação (multiplicar o louvor a Deus), e de

proclamação (explicitação da revelação e manutenção da

tradição cúltica da salvação)13.

1.2.2. Cantos de ação de graças

Os cantos de ação de graças se relacionam

com uma experiência salvífica de um

indivíduo. Pertencem à vida da comunidade,

mas neles um indivíduo está celebrando,

através de um oferecimento particular de

graças.14

Sua estrutura básica é: perigos que ameaçavam o fiel,

sua súplica a Deus e o livramento recebido, pelo qual

agradece. Ballarini e Reali apresentam o sacrifício votivo com

o banquete sagrado como o Sitz im Leben dos salmos de ações de

graças15.

Realmente, eles parecem estar ligados ao culto, já

que, algumas vezes, pressupõem a presença de uma assembléia

(Sl 118,2), bem como falam de festa (v.27). “O rito de ação de

13 WEISER, Arthur. Os salmos, p.36. 14 WOLFF, Hans Walter. Bíblia – Antigo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1978, p.99. 15 BALLARINI, Teodorico e REALI, Venanzio. A poética hebraica e os salmos, p.73.

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Os salmos de lamentação no saltério

22

graças podia realizar-se por ocasião de grandes peregrinações:

Páscoa, Pentecostes, Tabernáculos, ou em qualquer outro dia.”16

Pode-se encontrar ações de graças individuais e

coletivas, essas últimas em menor número no Antigo Testamento

e no Saltério. Predominam os salmos individuais. O salmista

objetiva, inicialmente, agradecer a Deus por um livramento

alcançado. Mas ele também convida os presentes a

compartilharem de sua alegria e aproveita o ensejo para

reafirmar sua confiança em Deus.

Algumas vezes, a expressão de gratidão se apresenta

como o cumprimento de votos feitos durante a angústia vivida.

E até mesmo como se o salmista externasse o alívio

experimentado ao vencer a adversidade que o perturbava.

Dois momentos são marcantes no canto de ação de

graças: a fala sobre Deus (o que ele fez, uma espécie de

testemunho à assembléia) e a fala a Deus (pode ser uma fala do

que ele fez, bem como o agradecimento propriamente dito e a

expressão de confiança).

São exemplos desse gênero: 67, 107, 118, 124, 129.

Como se pode perceber, os limites entre esse gênero e o hino

são bastante tênues, pois os conteúdos são próximos.

16 BALLARINI, Teodorico e REALI, Venanzio. A poética hebraica e os salmos, p.73.

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Os salmos de lamentação no saltério

23

Esses salmos são importantes para a história e a

teologia de Israel. No Sl 124, por exemplo, transparece um

elemento da tradição litúrgica na expressão: “Israel que o

diga” (v.1).

O Sl 67,7 pressupõe uma festa de outono, em

agradecimento pela colheita. O v. 1 guarda alguma semelhança

com a bênção aarônica (Nm 6,24). Em salmos nos quais o tom

predominante é o da lamentação, a ação de graças aparece

claramente ligada ao culto, sendo a expressão pública do

orante de que a resposta divina já veio ou virá em breve

(exemplos: Sl 6; 13; 22; 28; 30).

Os salmos de ação de graças contribuem grandemente

para a teologia de Israel no sentido de serem um testemunho da

ação viva e presente de Deus na história de seu povo, por meio

do livramento pessoal do orante. Seu objetivo principal,

segundo Weiser, é manifestar a “revelação e a presença de

Deus.”17

1.2.3. Cantos de Sião

Arthur Weiser inclui tais salmos(46,48,76,84,87, 122)

entre os hinos, embora destaque as diferenças de conteúdo.18

Eles estão voltados mais fortemente ao ambiente de Jerusalém e

17 WEISER, Arthur. Os salmos, p.57. 18 WEISER, Arthur. Os salmos, p.33.

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Os salmos de lamentação no saltério

24

à tradição de Judá, ao sul, transparecendo neles o aspecto

mais citadino.

Tais cantos mostram que o santuário de Jerusalém era

uma lembrança permanente da presença de Deus com a comunidade

e em seu seio. O monte era considerado a habitação de Deus e

uma proteção contra os inimigos. O nome de Jerusalém era

significado de paz.

Dentro desse gênero, pode-se destacar ainda os salmos

que se referem ao rei, propriamente. Os cantos de Sião estão

ligados ao regime de governo monárquico, mas os chamados

“salmos régios ou reais” tratam mais diretamente da figura do

dirigente político da nação. Apenas dez salmos apresentam esse

subgênero.

Segundo Wolff, a cada coroação, esses salmos

reanimavam a esperança messiânica do filho de Deus que teria

uma especial relação com as nações e os oprimidos do país (por

exemplo, Sl 72). Esses salmos apresentam também traços de

lamentação (89,46.51; 144,1-11) e ações de graças (18,4.6). O

salmo 45 celebra um casamento real e o 101 é uma promessa

régia de fidelidade a Deus e ao povo. Talvez consista num

juramento real ao tomar posse. Esses salmos são os que mais

evidenciam a teologia e a ideologia política do rei.

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Os salmos de lamentação no saltério

25

1.2.4. Hinos da realeza de Javé

Esses salmos distinguem-se dos salmos régios por

trazerem a típica expressão: “Javé é rei!”. Por essa razão, é

melhor tratá-los como um gênero à parte, dado seu valor

teológico na formação da fé e da tradição de Israel em relação

aos povos vizinhos.

Alguns estudiosos chegaram a propor que havia uma

festa em Israel do tipo cananeu, na qual o deus morria e

ressuscitava novamente. Contudo, contra essa afirmação existem

autores que argumentam que esses textos não constituem prova

da existência de uma festa de entronização de Javé, ou de sua

morte e ressurgimento simbólicos.

Esses autores entendem que os salmos que falam da

realeza de Javé trazem uma forte afirmação teológica do

reinado perene de Deus e de que os outros deuses são ídolos

que devem curvar-se a ele. Anunciam sua vinda iminente para

dominar sobre os povos com equidade e justiça. Toda a criação

espera e celebra tal chegada (Sl 96,11-12; 98,7-8).

Os salmos da realeza de Javé também são importantes

por serem uma vertente teológica que relativiza a figura do

governante político de Israel. Embora o rei possa ser visto na

qualidade de “ungido de Javé”, como alguns salmos régios o

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Os salmos de lamentação no saltério

26

apresentam, seu domínio é submetido à autoridade maior de

Javé, que reina acima de todos os reis da terra.

Pode ser que esses salmos também sejam uma forma de

oposição ao regime monárquico em Israel, mas para tal

afirmação seria necessário um estudo mais específico.

1.2.6. Lamentações

As lamentações constituem a maior parte de todos os

salmos do Saltério, podendo ser individuais (quando apenas um

orante fala, em primeira pessoa do singular) ou coletivas

(quando um grupo fala, em primeira pessoa do plural). Não

apresentam de forma individualizada o motivo do lamento, para

poderem se identificar com os orantes.

Ainda assim, algumas apresentam elementos que

permitem detectar sua origem. Constituem as mais belas poesias

de Israel e possuem características bem próprias, que as

distinguem facilmente no conjunto do livro dos Salmos. Também

se percebem nesses salmos fases distintas do pensamento

vétero-testamentário sobre a vida, o sofrimento e a morte,

entre outros temas.

Gerstenberger afirma que o culto em prol do

sofrimento do indivíduo era muito importante para as famílias

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Os salmos de lamentação no saltério

27

israelitas, sendo o último recurso para recuperar um membro

doente ou ameaçado de outra maneira. Daí o grande número dos

salmos de lamentação.19

Os salmos de lamentação seguem uma certa estrutura

que pode apresentar-se incompleta em alguns poemas, mas

constitui a base para todos. Segundo Arthur Weiser, os salmos

de lamentação apresentam os seguintes elementos em sua

composição: invocação, súplica, motivação, voto ou promessa de

louvor20. Marc Girard apresenta uma divisão semelhante, mas

acrescenta a esperança, a teofania e a serenidade estável (ou

confiança que os problemas futuros se resolvam)21.

Os salmos de lamentação, em geral, iniciam-se com uma

invocação de Deus, que aparece das mais diversas formas:

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Sl 22,1)

Senhor, a ti eu clamo! (Sl 25,1)

Javé, a ti me elevo, meu Deus! (Sl 56,2)

A seguir, o salmista começa a apresentar as razões

pelas quais se dirige a Deus. Essas também variam bastante,

19 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos: os gêneros dos salmos no Antigo Testamento, introdução e salmos de lamentação, Sl 22 e 88. São Leopoldo: Faculdade de Teologia, 1982 (Série Exegese, Vol. 2, Fasc. 1), p.45. 20 WEISER, Arthur. Os salmos,p.14. 21 GIRARD, Marc. Como ler o livro dos salmos – espelho da vida do povo. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p.

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Os salmos de lamentação no saltério

28

podendo ser um perigo que o ameaça:

Piedade, ó Deus! Porque um homem me importuna,

Todo dia ele me combate, ele me oprime (Sl 56,2)

Em outros contextos, o que aflige o salmista é sua

própria condição de pecador:

Tem piedade, ó Deus, por teu amor.

Apaga as minhas transgressões,

Por tua grande compaixão! (Sl 51,3)

Um outro elemento que aparece em alguns salmos de

lamentação é a maldição. Ela ocorre nos casos em que o

salmista apresenta como motivo de sua queixa a perseguição de

inimigos, ou uma afronta pessoal que ameaça sua honra, como a

maledicência ou o falso testemunho perante um tribunal, por

exemplo. Nesses casos, o orante pede a Deus que execute a

vingança:

Javé, ó Deus das vinganças,

Aparece, ó Deus das vinganças! (Sl 94,1)

Que o mal atinja meus inimigos!

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Os salmos de lamentação no saltério

29

Aniquila-os, Javé, por tua fidelidade! (Sl 54,7)

Quando a oração é coletiva, as expressões assumem um

caráter nacional. Não é apenas o Deus das vinganças, mas o

Deus que controla os exércitos de Israel e os guia à vitória

contra os inimigos:

Deus dos Exércitos, faze-nos voltar!

Faze a tua face brilhar e seremos salvos! (Sl 80,20)

Alguns salmos trazem expressões bem duras de juízo

contra os inimigos. Algumas são aterradoras no tipo de

maldição que despejam sobre os adversários:

Ó devastadora filha de Babel,

feliz quem devolver a ti

o mal que nos fizeste!

Feliz quem agarrar e esmagar

os teus nenês contra a rocha! (sl 137,9)

De modo geral, os salmistas apresentam-se como

pessoas zelosas pela lei de Deus, seus mandamentos, suas

instituições e seu povo. Os inimigos são aqueles que

contrariam os propósitos de Javé. Por causa de seu zelo, os

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Os salmos de lamentação no saltério

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salmistas não enxergam possibilidade de misericórdia para os

“infiéis”, que zombam de Deus. Tal zombaria não pode ser

aceita, pois fere a honra e a dignidade divinas.

Mais do que desejo pessoal, uma análise possível é

considerar que essas imprecações refletem o cuidado e o apego

com que os salmistas tratam sua relação com Deus, que precisa

ser mantida incontaminada pela blasfêmia dos perversos. Outra

vertente é entender que a tragicidade do ocorrido leva o

orante a desejar o aniquilamento do adversário. Essa é uma

motivação de elevada importância para os perseguidos ou

vencidos pelos inimigos.

Ainda assim, a vingança não é executada pelo próprio

salmista, pois não se trata de fazer justiça com as próprias

mãos. Deus é o único que pode executar a sentença contra os

adversários.

Depois de apresentar as razões de sua queixa, o

salmista pede a intervenção de Deus a seu favor:

Toma a armadura e o escudo

E levanta-te em meu socorro! (Sl 35,1)

Livra-me das minhas transgressões todas

Não me tornes ultraje do insensato! (Sl 39,9)

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Os salmos de lamentação no saltério

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Algumas vezes, tanto em lamentações individuais

quanto em coletivas, os salmistas lembram a Deus suas

promessas de favor, bênção, fidelidade e aliança, a fim de

comovê-lo a se posicionar como libertador do orante. Isso

porque, mesmo reconhecendo suas falhas e pecados, os salmistas

entendem que Deus não os rejeitará para sempre. Suas razões

para isso tanto podem derivar da fé na misericórdia divina

quanto da teologia da eleição de Israel como povo de Deus. Daí

indagarem sobre o tempo de duração de seu sofrimento:

Até quando os ímpios, Javé,

Até quando os ímpios irão triunfar?

É teu povo, Javé, que eles massacram,

É tua herança que eles humilham (Sl 94,3.5)

O elemento que geralmente termina um salmo de

lamentação é a promessa de louvor, um voto de testemunho pelo

livramento a ser recebido. Muitos salmos de lamentação mudam

seu tom ao final, quando o salmista, aliviado por ter exposto

diante de Deus o seu lamento, já se sente revigorado para

confiar na resposta divina:

Por que te curvas, ó minha alma,

Gemendo dentro de mim?

Espera em Deus, eu ainda o louvarei

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Os salmos de lamentação no saltério

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A salvação de minha face e meu Deus! (Sl 42,5)

Vou cantar a Javé pelo bem que me fez

Vou tocar ao nome de Javé, o Altíssimo! (Sl 13,6b)

Contudo, esse último elemento está ausente no salmo

88, objeto do presente estudo. Dessa forma, o salmo 88 pode

ser considerado uma lamentação em estado mais puro, pela

aparente ausência de uma esperança a ser concretizada por meio

do voto. Esse aspecto será estudado detalhadamente na exegese

do texto, a ser apresentada no segundo capítulo.

Como visto até aqui, as possíveis estruturas dos

salmos de lamentação e os diversos elementos apresentados

denotam que a intenção primordial do salmista é fazer-se

ouvido por Deus em sua necessidade imediata de ser atendido.

Ele expõe sua situação, usando os recursos oferecidos pela

poética hebraica, bem como a retórica (fazendo indagações a

Deus para as quais já tem respostas), usando imagens de imenso

aperto ou opressão (como ondas, vagas, tormentas, águas,

lamaçal, etc), lembrando sua própria piedade e justiça,

descrevendo os terrores causados pelos inimigos, ou as ofensas

que ele sofreu, bem como apresentando em cores fortes a

violência que o rodeia.

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Os salmos de lamentação no saltério

33

Todos esses recursos visam enternecer o coração de

Deus e fazê-lo mover-se em direção ao seu servo, para o

socorrer. O salmista sempre procura deixar claro que somente

Deus pode socorrê-lo e, caso Ele não o faça, não haverá saída

além da morte, da vitória do adversário e do triunfo da

injustiça.

1.3. Indicações do Sitz im Leben dos salmos

Surge uma grande dificuldade ao tentar se datar os

salmos ou estabelecer em definitivo a situação que os gerou. O

processo de formação das coleções que compõem o saltério durou

quase mil anos. Apenas alguns salmos têm sido considerados bem

antigos, próximos aos fatos que narram (por ex. 28, 68, 104).

É provável que os primeiros venham do tempo de Davi

(1010 a 970 a.C.; as coleções dos salmos dos filhos de Coré,

pelo menos em parte, podem ser desse período) e os últimos

sejam, provavelmente, da época dos macabeus22 (170 a 160 a.C.;

os salmos 146-150 são considerados os mais recentes). Alguns

salmos não são possíveis de serem datados, sequer

aproximadamente.

22 Essa é a postura defendida, por exemplo, por Norman Gottwald (GOTTWALD, Norman. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Edições Paulinas, 1988, p.487). Já Arthur Weiser não apóia a idéia de que haja salmos do período macabaico. Para ele, os salmos são todos anteriores a esse período, especialmente por questões linguísticas e de forma. (WEISER, Arthur. Os salmos, p.61-62).

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Os salmos de lamentação no saltério

34

A semelhança dos temas encontrados nos

salmos, de um lado, e nos profetas, de

outro, levou mais de um comentador a

atribuir a prioridade aos profetas; seus

temas de pregação e suas fórmulas teriam

sido retomados pelos salmistas. A

explicação que se impõe é a inversa;

habitualmente, o profeta é o comentador

original dos temas litúrgicos e não o seu

criador. O Segundo Isaías (Is 40-55) se

inspira nos Salmos do Reino [Salmos da

realeza de Javé/Salmos régios], que lhe são

anteriores; Jeremias retoma, nas

Confissões, a linguagem e o esquema das

súplicas individuais, cuja existência pré-

exílica é assim demonstrada.23

As notas que precedem a maioria dos salmos “falam do

autor, da ocasião em que foram compostos, dos gêneros

literários ou dão indicações musicais para seu uso.” 24

Algumas dessas informações são obscuras, levando os

estudiosos a elaborarem conjecturas à procura de entendê-las.

Por exemplo, o lamed (l)que aparece antes de alguns nomes no

intróito de alguns salmos foi considerado, por muito tempo e

pela tradição, como sendo indicador da autoria.

No entanto, hoje já se sabe que essa letra junto ao

23 MONLOUBOU, Louis. “Os salmos”, p.24. 24 SICRE DIAZ, José. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Editora Vozes, 1995, p.304.

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Os salmos de lamentação no saltério

35

nome servia como indicativo de uma dedicatória ou para

proporcionar ao orante que se utilizasse desse salmo uma forma

de identificar-se “historicamente” com aquele personagem. Como

se a situação enfrentada por ele em sua época atual pudesse

ser melhor compreendida quanto posta lado a lado com a de

algum herói bíblico.

Outros estudiosos entendem que essa informação tem

ligação com o cantor do salmo, ou aquele que dele faria uso na

liturgia do templo. Juntamente com os nomes aparecem, por

exemplo, o tipo de instrumento a ser utilizado ou uma melodia

que deveria acompanhar o salmo.

Essas dificuldades fizeram com que as versões e

traduções, mesmo as mais antigas, guardassem diferenças

significativas entre si quanto à interpretação dessas

indicações. Algumas dessas informações são de épocas tão

remotas na história de Israel que tornou-se impossível

decodificar seu sentido, gerando imprecisões.

Da mesma forma, em alguns salmos as informações

quanto à época de composição ou autor são posteriores. Por

isso, apesar de serem importantes, essas indicações precisam

ser tomadas com ressalvas no estudo do saltério.

Ainda assim, há pistas para localizar os salmos no

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Os salmos de lamentação no saltério

36

tempo que são descobertas dentro do próprio texto. São

indicações de ambiente citadino ou campestre, como o Sl 129,

que fala do arado como símbolo do sofrimento do povo. Alguns

indicam ser da Palestina (122), outros refletem a época do

exílio (137).

Os salmos relativos à lei, como o Sl 119, parecem

apontar para o período de Esdras, quando essa ênfase é muito

forte. Mas também há que se levar em consideração que o

elemento “lei” sempre foi importante e fez parte da tradição

histórico-cultual de Israel.

Ainda é possível que alguns salmos ou fragmentos

venham de influências cananéias entre os grupos de cantores,

como o Sl 18, 8-16 ou o 29. Os salmos que mencionam os deuses

e os filhos de Deus podem ter surgido em santuários cananeus.

Eles são bastante antigos, antes que o monoteísmo se

implantasse em Israel, tendo sido corrigidos ao longo do tempo

pela evolução do pensamento teológico israelita. As diferentes

versões também levam a concluir que o Sl 110, por exemplo,

passou por diversas adaptações e modificações.

Na época anterior à reforma de Josias, havia

santuários locais que eram centros de peregrinação, nos quais

os sacerdotes recebiam o povo. Havia até mesmo famílias

sacerdotais que realizavam diversas funções, como o

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Os salmos de lamentação no saltério

37

oferecimento de sacrifícios, celebrações cúlticas,

intercessões a favor de enfermos, entre outras necessidades

que lhes fossem apresentadas. Alguns desses santuários foram

Silo, Gilgal e Betel, este último muito importante durante o

reinado de Josias.

Gerstenberger afirma que “parte dos nossos salmos

vétero-testamentários surgiu nas províncias, mais precisamente

em santuários locais, como Siquém, Betel, Nobe, Dan e

Hebron.”25 A maioria deles de lamentação dos pobres, atribuídos

a Davi. Gerstenberger diz ainda, sobre a compilação desses

salmos nos períodos pós-exílicos, que

A coleção e compilação da sagrada tradição

estava em andamento em dois tipos de lugar:

no centro, isto é, nas dependências do

templo em Jerusalém, e na província, isto

é, nas assembléias locais, mais tarde

chamadas sinagogas. Pois ambos os lugares

de adoração e culto, o centro e a

província, necessitavam de hinos e orações

para seus ofícios bem distintos.26

Isso sem deixar de levar em consideração o valor dos

santuários locais e as composições mais antigas de Israel,

ocorridas, especialmente, no contexto das celebrações

25 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.12. 26 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.7.

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Os salmos de lamentação no saltério

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nacionais e de comunidades locais. Para Gerstenberger, aliás,

são essas comunidades locais as mais responsáveis pelas

orações individuais do saltério, apesar de que, na compilação

final, se evidencie o aspecto da consciência nacional de

Israel.27

Todas as situações de vida aparecem nos salmos. A

família reunida (128), o colo da mãe (131), uma roda de amigos

(33, 81), o luar (8), saudades da terra (42), construtores e

vigias (127). As situações cotidianas aparecem tanto como

lugar da revelação de Deus quanto oportunidade de buscá-lo,

sejam essas situações alegres ou tristes. Cantar, orar os

salmos era falar de um Deus que vive junto com seu povo.

Os salmos de lamento, propriamente, apresentam as

situações difíceis de forma concreta, e, ao mesmo tempo, sem

individualismos, facilitando a relação entre o salmo e os

orantes de todos os tempos, que desejassem relê-los em sua

própria situação.

Arthur Weiser afirma ainda, sobre o lugar vivencial

dos salmos, em especial das orações coletivas, que

as informações do Antigo Testamento não

permitem nenhuma dúvida quanto à relação

das lamentações com o culto no santuário

27 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.8.

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Os salmos de lamentação no saltério

39

(conforme Js 7,6; Jz 20,23-26ss; 1Sm 7,6;

1Rs 8,ss; Jr 14). Em Jr 1,1ss, fala-se de

um culto especial por ocasião da praga de

gafanhotos e da seca. É convocado todo o

povo para, na observância de vários ritos

(jejum, rasgar as vestes, vestir-se com

saco), entoar a lamentação na casa de Deus.

Nos salmos 74 e 79, em que o objeto da

lamentação do povo é a destruição e

profanação do templo, pode-se supor

igualmente este tipo especial de culto de

lamentação (talvez após a catástrofe de

587). No caso do Sl 80, em que são

mencionadas as tribos de José, é esperada a

teofania de Javé sobre a arca (vv.2s, 4, 8,

20), trata-se, sem dúvida, da festa da

Aliança no santuário central da

confederação das tribos da época anterior a

721. Também os salmos 44, 83 e 106, em que

se pressupõe a recitação da tradição da

história salvífica no ato cúltico (Sl

44,2ss; 83,7ss; 106,6ss, cf. a alusão à

esperada teofania em Sl 44,24), devem ser

entendidos em conexão com a festa da

Aliança da época pré-exílica, cuja

ideologia ainda perdura igualmente nos

salmos 74 e 79, contra a tradição da

datação tardia desses salmos.28

As festas que reuniam as tribos, clãs, famílias e

aldeias eram também momentos propícios às lamentações, pois

eram ocasiões de renovar os votos de fidelidade e confessar

28 WEISER, Arthur. Os salmos, p.44.

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Os salmos de lamentação no saltério

40

pecados. Da mesma forma, as lamentações individuais colocam-se

claramente em sintonia com o culto. Pressupõem, em alguns

casos, a presença da assembléia:

Cumprirei os meus votos para com o Senhor,

Na presença de todo o seu povo (Sl 116,14)

Apresentam o orante diante de Deus no local de

adoração:

Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro.

minha alma tem sede de ti

minha carne te deseja com ardor

como terra seca, esgotada, sem água.

Assim eu te contemplava no santuário,

Vendo o teu poder e a tua glória (Sl 63,3)

Em 1Sm 1, também se pode concluir que, desde os

tempos mais remotos, as festas anuais de Javé (Páscoa,

Colheitas, Tabernáculos, etc), eram momentos especiais de

proclamar a oração de súplica no contexto da celebração

litúrgica. Segundo Weiser, essa circunstância explicaria o

fato de algumas súplicas individuais terminarem com uma

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Os salmos de lamentação no saltério

41

intercessão por todo o Israel29. Isto é, a oração individual,

ocorrendo na festa popular, terminava sempre por envolver todo

o povo. Essa seria mais uma prova da natureza comunitária da

fé israelita em Javé, desde os tempos pré-exílicos.

Segundo Gunkel, os gêneros primários dos salmos

tiveram origem no culto pré-exílico. A influência da crítica

profética, contudo, foi aos poucos separando os salmos do

culto e fazendo com que seu uso se tornasse mais privado, na

piedade pessoal, ou se tornasse uma forma de expressar um

ideal de futuro para a comunidade. Depois, à época do segundo

templo, os salmos cultuais e não-cultuais antigos foram

compilados, de acordo com os interesses dos músicos e dos

intérpretes da Lei.30

Sigmund Mowinkel optou por entender que todos os

gêneros primários de salmos se originaram no primeiro templo,

sendo ainda que a grande maioria dos salmos teria sido aí

produzida. O aspecto pessoal dos salmos é interpretado por ele

como uma questão de integridade do culto israelita, no qual

também a profecia ocupava um lugar.

A festa do Ano Novo era o momento integrador

existente por detrás dos gêneros sálmicos em geral. Depois do

29 WEISER, Arthur. Os salmos, p.45. 30 Gunkel apud Gottwald. In: GOTTWALD, Norman. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.494.

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Os salmos de lamentação no saltério

42

exílio, com a queda das instituições de Israel, os

colecionadores moldaram o atual Saltério para estudo e

reflexão.31

Essas posições são amplamente debatidas e não há um

consenso definitivo sobre elas. No entanto, são importantes e

se aproximam em um aspecto essencial: a origem dos salmos,

inclusive — ou especialmente — os de lamentação, está ligada

ao ambiente cúltico e aí encontra sua forma de expressão.

Segundo Norman Gottwald, o livro dos salmos é, com

frequência, denominado Hinário do Segundo Templo32, tendo em

vista que a compilação e redação dos salmos estava completada

nesse período (aproximadamente 325-250 a.C.). Ele entende que,

apesar de muitos salmos serem do período pré-exílico, a

maioria deles seria de origem pós-exílica. O Saltério

apresenta-se também com um sentido mais completo dos usos pós-

exílicos.

Contudo, a situação vital liga-se ainda a outros

contextos. Frequentemente, o orante apresenta-se como pobre e

oprimido, dando a entender que era alguém socialmente mais

frágil e que poderia estar sofrendo sob o peso de opressores,

sejam autoridades corruptas ou algum adversário poderoso

31 Mowinckel apud Gottwald. In: GOTTWALD, Norman. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.494. 32 GOTTWALD, Norman. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.487.

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Os salmos de lamentação no saltério

43

politicamente. No Sl 12, por exemplo, aparece ainda o orante

que se apresenta como fiel ou piedoso, nomenclatura que pode

ainda estar ligada a grupos religiosos ou que possuíam

determinadas práticas de fé.

O Sl 102 apresenta em seu título uma referência a uma

pessoa que derrama sua lamentação diante de Javé. Isso indica

também que poderia haver salmos de lamentação que funcionassem

como formulários de oração para uso repetido, nos quais os

elementos concretos dariam lugar a formulações mais gerais.

Weiser afirma que essa prática ocorria na Babilônia, por

exemplo33.

Desta forma, apesar das especificidades que alguns

salmos de lamentação possam apresentar, seu ambiente vital

encontra-se relacionado com a vida em comunidade. Mesmo quando

é um “eu” pessoal que apresenta a oração, ela está em conexão

com a comunidade, que participa de alguma forma desta oração,

seja ouvindo-a como testemunha perante Javé, seja apropriando-

se da mesma e aplicando a situação a toda a comunidade.

Nos salmos de lamentação em que é a comunidade que se

dirige a Deus (por exemplo, Sl 80), a situação vital pode ser

uma fome, praga, opressão política ou sócio-econômica.

Geralmente, nessas lamentações aparecem mais claramente os

33 WEISER, Arthur. Os salmos, p.45.

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Os salmos de lamentação no saltério

44

motivos que levam as pessoas a dirigirem-se a Deus em busca de

socorro.

Aparecem nos salmos de lamentação muitas expressões

que indicam a realidade de quem orava em termos bem densos:

opressores, fraudulentos, ímpios, violentos, falsas

testemunhas, perseguidores, armadores de ciladas...

Quando se compara esta riqueza de linguagem

acerca do conflito socioeconômico com falas

dos profetas e os provérbios dos sábios, e

se ilustra por elas, pouca dúvida resta de

que enorme parte do sofrimento, contra o

qual os salmistas protestam, é a

depauperação da população por meio da

manipulação de processos de dívidas e

confiscações, de tal forma que até os

tribunais tradicionais de Israel podem ser

utilizados para amontoar riqueza, a

despeito das leis explícitas da

comunidade.34

Ainda pode-se considerar que, mesmo quando o tema dos

salmos de lamentação é a doença, esta pode ser decorrente de

um sistema injusto que priva as pessoas dos bens necessários

para garantir a sobrevivência e a saúde. Também transparece a

exclusão da vida religiosa, já que certos doentes não poderiam

34 GOTTWALD, Norman. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.500.

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Os salmos de lamentação no saltério

45

ir ao templo ou aos santuários em função da doença.

1.4. Intenção

“O encontro com Deus concebido presente através da

teofania cúltica de Javé é o pressuposto e objetivo da maioria

dos salmos de lamentação.”35 A oração de lamentação é

apresentada diante de Javé. Busca-se que ele volte sua face ao

orante e o atenda, comovido pela súplica.

Existe nos salmos de lamentação uma expectativa de

teofania (Sl 10,1.22;25.27,9). A presença de Deus é garantia

de que a oração foi ouvida. Também se busca o nome de Javé, o

qual é revelado no culto e é proferido em relação com o voto

(54,3.142,8). Esse nome está ligado à teofania e relaciona-se

aos seus atos salvíficos: o epíteto dado a Javé como salvador

de todo o Israel é apropriado pelo indivíduo também nas

súplicas individuais.

Muitas vezes, nos votos proferidos nos salmos de

lamentação, a salvação pessoal é testemunhada ou aguardada em

termos comunitários, levando em conta o passado coletivo.

Nesse sentido, pode-se perceber nos salmos de lamentação uma

intenção de rememorar e reviver os atos salvíficos de Javé no

passado como fonte de esperança e consolo para o presente e o

35 WEISER, Arthur. Os salmos, p.48.

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Os salmos de lamentação no saltério

46

futuro. A história da salvação é concentrada no culto e nele

repetida.

Outra intenção é “pôr Javé a par” dos conflitos e

opressões sofridas pelo orante ou pelo grupo ao qual ele

pertence. Gerstenberger destaca que

a maior parte das orações do Saltério está

relacionada com a luta em prol dos

marginalizados, explorados, caluniados,

doentes. (...) pressupõem a disposição de

Javé de ajudar e resgatar os israelitas

socialmente fracos.36

Segundo ele, as lamentações individuais referem-se à

alienação que o indivíduo ou o grupo a que ele pertence sofre

dentro de sua própria comunidade. Assim, entrelaçam-se crises

e conflitos pessoais e sociais, pois há uma grande relação

entre os problemas do indivíduo e a forma como este se situa

dentro da sociedade.

Os salmos de lamentação são um sintoma fortíssimo de

que a justiça de Javé, por várias razões, não está sendo

vivida no seio da comunidade. São um pedido de socorro a Deus

e um grito de alerta à comunidade, para que reavalie sua

trajetória.

36 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.18.

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Os salmos de lamentação no saltério

47

O apelo dos salmos de lamentação é pelo livramento e

manutenção da vida. Entendendo a morte como separação

definitiva de Deus, busca-se a todo custo mantê-la. Deus é a

fonte da vida (Sl 36,10) e a única possibilidade de mantê-la.

La vida de todo tipo tiene su origen em

dios y la encontraremos allí donde ese dios

se demuestra como cercano y presente por su

manifestación. Quien necesita la vida,

intentará situarse em las proximidades de

Dios. En ellas se sabe metido en la

atmosfera em la que florece la vida37.

A defesa da vida é recorrente em todos os salmos de

lamentação, sob uma forma ou outra, pois é um conceito

fundante. É interessante notar a angústia expressa pelos

salmistas nos textos referentes à doença, em que a morte é

apresentada em estados relativos, os quais são um tormento a

mais para quem suplica o socorro divino.

Há um caminhar progressivo para a morte, do qual só é

possível ser liberto pela intervenção de Javé. Essa

intervenção é então solicitada pelo salmista em sua oração,

através do uso de fortes imagens e de linguagem elaborada de

forma a transmitir, o mais preciso possível (sem contudo,

individualizar demais) sua situação de angústia e necessidade.

37 Barth apud Kraus. In: KRAUS, Hans Joachin. Teologia de los salmos (Tradujo: Víctor A. Martinez de Lapera). Salamanca: Ediciones Sigueme, 1985 (Biblioteca de Estudios Biblicos, 52), p.220.

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Os salmos de lamentação no saltério

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Portanto, existe a intenção de comover, obrigar Javé

a intervir, mas também transparecem nesses salmos gritos de

denúncia, renovação de votos, rememoração do passado, apelos

de justiça e anseios por uma sociedade igualitária e

acolhedora de todos. Enfim, o propósito de manter a vida até

às últimas conseqüências.

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Perguntaram uma vez a um famoso rabino:

— Mestre, diga-nos como devemos celebrar o Kippur (a grande

festa da expiação, na qual, a cada ano, o povo de Israel se purifica de todos os

seus pecados) para ter certeza de que nossos pecados foram perdoados.

O rabino respondeu:

— Ide ver como o celebra Rubens, o alfaiate.

As pessoas se surpreenderam um pouco porque Rubens não era

nenhum rabino famoso por seus conhecimentos, nem tinha fama de santo,

embora fosse bom artesão e pai de família. Mas, diante da insistência do

rabino, quando chegou o entardecer do Kippur, as pessoas se aproximaram da

casa de Rubens e passaram a espiar por uma janela, às escondidas. Viram que

se reuniu com a mulher e os filhos, colocou a kipa, o véu e os filactérios para a

oração, acendeu as velas e começou a recitar as orações do kippur. Depois, veio

a confissão dos pecados, para o que teve de tirar do bolso uma chave especial,

abrir um armário e apanhar uma caderneta, na qual havia anotado todos os

seus pecados, os de sua mulher e os de seus filhos, levando-os para os confessar.

Demorou bastante tempo para fazer isso, porque aquela era uma lista dos

pecados do ano inteiro, desde o kippur anterior. Mas, logo em seguida, as

pessoas viram estupefatas quando Rubens levantou os olhos para o céu e disse:

— Estes, Senhor, são os nossos pecados. Agora, vejamos os teus. —

e começou a ler em outra caderneta: — O pequeno Simão, que tu deixaste

morrer quando ainda não sabia distinguir sua mão direita da esquerda... Nossa

vizinha Débora, que está doente há quase um ano, e minha mulher e as demais

vizinhas têm de fazer o trabalho da casa dela... Meu amigo Abraão que, depois

do acidente que sofreu, ficou impossibilitado de trabalhar, e nós, de toda a

comunidade, temos de manter sua família... — e ele continuou enumerando

todas as coisas que não iam bem ao seu redor, ou seja, os males do mundo. A

segunda lista, a dos “pecados de Deus”, durou muito mais que a primeira. E,

quando terminou de lê-la, disse Rubens: — Como podes ver, Senhor, teus

pecados são mais numerosos que os nossos. Mas não sejamos rancorosos: por

este ano, fiquemos em paz.

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Desde o Xeol

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2. Desde o Xeol

2.1. Tradução do Texto

1. Cântico dos filhos de Qorah para regente de coral maestria

de Hemã, o ezrahita

2. Javé Deus socorre-me.

De dia eu gritei, na noite na tua presença.

3. Chegue para tua face minha súplica,

Desdobra teu ouvido para meu clamor.

4. Eis que estava saciada em dores minha alma

e minha vida para o Xeol está perto.

5. Contado entre os que descem cova,

existi como varão inválido.

6. Com os mortos confinado;

como vítimas

que baixam sepulcro,

que não guardam lembrança mais

e aqueles que tua mão são arrancados.

7. Colocaste-me em cova abaixo,

em trevas profundas.

8. Sobre mim manteve teu furor

e totalidade de tuas ondas humilhaste a mim.

9. Afastaste meus conhecidos de diante de mim

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Desde o Xeol

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colocaste-me repugnante para eles,

retido e não solto.

10. Meu olho está desfalecido de aflição.

Chamei a ti Javé em totalidade de dias.

Estendi para ti minhas mãos.

11. Para os mortos farás maravilhas?

Acaso defuntos levantar-se-ão, reconhecerão a ti?

12. É informado na sepultura tua fidelidade?

Tua veracidade no lugar da perdição?

13. Conheceu-se na treva teu milagre

e tua justiça em terra esquecimento?

14. E eu em tua direção Javé gritei

e na manhã minha súplica sai ao teu encontro.

15. Por que Javé rejeitas-me,

escondes tua face de mim?

16. Aflito eu e enfermado desde juventude,

suportei teus terrores, fui obrigado a desfalecer.

17. Sobre mim passaram tuas ardentes cóleras,

teus terrores me consumiram.

18. Rodeiam-me como as águas totalidade dos dias,

envolveram sobre mim juntos.

19. Afastaste de mim

amigo e o próximo

de meus conhecidos nas trevas.

2.2. Análise literária

O salmo constitui uma unidade temática, cujo eixo

semântico encontra-se em torno das palavras designativas de

morte (Xeol, cova, sepulcro, mortos, lugar da perdição

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(Abadon), trevas) e de sofrimento (furor/ondas [de Javé],

repugnante, retido, aflição).

A articulação interna do texto pode ser observada

pela seguinte estrutura:

V.1: Introdução/Cabeçalho

V.2-3: Pedido de socorro

V.4-8: Queixa 1

Contado entre os mortos

V.9: Queixa 2

Afastaste meus conhecidos de diante de mim

V.10a: Queixa 3

Estou desfalecido de aflição

V.10bc: Pedido de socorro

V.11-13: Perguntas retóricas em forma de ironia,

sobre o tema da morte

V.14: Pedido de socorro

V.15-18: Queixa 4

Contra Javé

V.19: Queixa 5

Afastaste de mim amigo, próximo e meus

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Desde o Xeol

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conhecidos.

Assim, o salmo pode ser dividido em três partes

principais, ligadas pelos três pedidos de socorro (2-3; 10bc;

14). A primeira parte é composta por três queixas (4-8; 9;

10a). A segunda parte é composta pelas perguntas retóricas em

forma de ironia, sobre o tema da morte em relação a Javé (11-

13). A terceira e última parte, que fecha o salmo, é composta

por mais duas queixas (15-18;19).

A coesão aparece na predominância da primeira pessoa

do singular (o “eu” sofredor), que se dirige a uma segunda

pessoa (tu – Javé). Os elementos que aparecem em terceira

pessoa estão no contexto do monólogo. Predominantemente são

exemplos de comparação e/ou metáfora para designar o estado do

orante.

O corpo do cântico traz a descrição do sofrimento,

sinalizado pelos ataques da morte ou do “lugar da perdição”,

Abadon, similar a Xeol. A freqüente comparação que o salmista

faz de si mesmo aos mortos ou aos que estão sob o domínio da

morte (v.4-8) é utilizada para descrever sua situação,

decorrente de uma doença que lhe aflige “desde a juventude”

(v.16). Esse estado provoca seu “desfalecimento” (v.10),

“aflição” (v.16), isolamento (v.9 e 19).

Kraus também divide o salmo em três partes, com

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Desde o Xeol

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pequenas variações quanto à estrutura aqui proposta. Para ele,

as partes consistem em: 3-9a, 10-12 e 14-1838. Já Gerstenberger

entende a disposição do salmo da seguinte maneira:

Invocação: 2-3

Queixa I: 4-10

(referência à oração: 10)

Queixa II: 11-14

(referência à oração: 14)

Queixa III: 15-1939

Como se pode perceber, não há grandes variações

quanto à compreensão da estrutura do salmo, pois o próprio

texto oferece elementos concretos para se pensar numa

disposição mais ou menos uniforme.

Quanto à autoria ou compilação do salmo, o versículo

1 fornece algumas indicações. Ele é uma introdução ou espécie

de título, que aparece em diversos salmos, constituindo-se em

instruções para sua utilização40. A expressão “Cântico dos

filhos de Qorah” tanto pode expressar autoria quanto a coleção

à qual o salmo pertence, sendo a segunda opção a mais

provável41. A figura de Hemã, o ezrahita, é citada em 1Cr

15,17-19 e parece estar ligada às assim chamadas “corporações”

de cantores que atuavam no templo.

38 KRAUS, Hans Joachim. Psalms 60-150 – A Commentary. Minneapolis: Augsburg Fortpress, 1982, p.192. 39 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.53 40 Conforme Capítulo 1, p.27-29. 41 Problemas relativos à questão de autoria nos salmos foram abordados no capítulo 1, p.11, p.53-54.

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2.3. Interpretação do salmo a partir da análise dos gêneros e

Sitz im leben

A pergunta que norteia a presente pesquisa é pela

percepção que o salmista tem da morte e como procura

estruturar sua relação com Deus dentro de seu contexto

vivencial. Isso significa estudar o texto na compreensão dos

pedidos de socorro, das queixas apresentadas a Deus, dos

“estados de morte” presentes no salmo e, por fim, como se

articula o relacionamento do orante com Deus.

2.3.1. Javé Deus socorre-me

Os versículos 2-3 apresentam um primeiro pedido de

socorro do salmista a Deus. Por isso, iniciam o salmo como uma

invocação, subgênero geralmente presente em orações cujo teor

seja o pedido de livramento dos males de qualquer natureza. A

invocação constitui um apelo que motiva a divindade a atender

quem a ela se dirige e é usual em outros textos da Palestina.

Algumas vezes, são incluídos atributos de Deus (por ex.: Sl

4,1; 28,1; 63,1;94,1) e pedidos iniciais para ser ouvido e

atendido (Sl 70,1; 80,1; 86,1; 141,1).

Destaca-se no Sl 88,2 uma invocação que utiliza dois

títulos ou nomes para se referir a Deus: Javé e Elo’im. Um tipo

de chamado assim parece acentuar a gravidade da situação que

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atormenta o orante e o leva a pedir socorro. Gerstenberger

afirma que essa é uma expressão pesada e, como se apresenta,

singular no texto bíblico do AT.42 Lindström sente falta de um

elemento a mais, pois não aparece, segundo sua percepção,

nenhum epíteto de Deus, o que seria comum nesse gênero nos

salmos.43

O aparato crítico alerta para a possibilidade de

traduzir o v.2a, utilizando, em lugar de “Deus, socorre-me, de

dia eu gritei”, provavelmente a expressão: “Deus, pedi

socorro, dias gritei”. Essa alteração transformaria o pedido

atual em uma memória de pedidos anteriores, provavelmente não

atendidos. Caso contrário, o salmista não estaria pedindo

novamente pelo mesmo problema.

Essa correção dá maior continuidade ao salmo, uma vez

que os demais pedidos que aparecem no texto dão a idéia de já

terem sido efetuados. Mas, tomando-se tal correção, a

invocação torna-se, em si mesma, uma reclamação e não um

pedido de ajuda. Como se o salmista dissesse: “Tantas vezes já

pedi, dia e noite e ainda não fui atendido.”

A maioria dos autores consultados optou pela tradução

42 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.47. 43 LINDSTRÖM, Fredrik. Suffering and Sin – Interpretations of the individual complaim psalms. Stockholm: Almquist & Wiksell International, 1994 [Coniectanea Biblica – Old Testament Series, 37], p.201

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Desde o Xeol

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que dá o sentido de uma invocação ou pedido atual.44

Entretanto, se a opção permanece como sendo um pedido passado,

acentua-se um sentido de reclamação, ou talvez uma constatação

da inutilidade de pedir, pois o socorro solicitado não veio.

Dessa forma, a lamentação é substituída por uma

espécie de embate com Deus. Assim, o salmista quereria

“acertar suas contas com Deus”, entender os motivos de não ser

atendido, mais do que pedir novamente o socorro anteriormente

negado.

No contexto das outras frases dirigidas a Deus, esse

caminho não se mostra de todo inadequado, apesar de diferir

dos demais autores consultados. Isso porque, nos demais

pedidos que aparecem no salmo, o salmista faz sempre em

referência ao fato de já ter clamado antes (v.10bc e 14) e não

ter sido atendido, o que o faz sentir-se rejeitado por Deus

(v.15).

Assim, a opção aqui adotada é de tomar esse primeiro

pedido como já tendo sido efetuado no passado, por entender

que é a posição que melhor se adapta ao restante do texto,

dando maior coesão ao mesmo.

44 Gerstenberger traduz como um título: “Deus que podes salvar-me” (GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.46). Fredrik Lindström traduz: “My God, I call for help”, dando também o sentido de uma invocação direta e atual (LINDSTRÖM, Fredrik. Suffering and Sin – Interpretations of the individual complaim psalms, p.198).

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Desde o Xeol

58

A expressão “de dia eu gritei de noite em tua

presença” parece incompleta para alguns autores, mas pode

consistir em uma elipse do verbo, o que não é incomum no

hebraico bíblico. Existe uma grande variedade de opções

adotadas pelas traduções da Bíblia e pelos estudiosos.45 De

qualquer forma, a tradução aqui proposta seguirá mais

literalmente o hebraico.

O versículo 3 apresenta-se sob a forma de uma

repetição, uma dupla ênfase, da seguinte forma:

Chegue para tua face Minha súplica

Desdobra teu ouvido para meu clamor

Aqui, a estrutura do v.3 segue um modelo típico da

poesia hebraica, constituindo um paralelismo sintético.

Aparecem aqui duas palavras hL'piT. e hN"ri que, segundo

Gerstenberger, indicam a petição a Javé que é feita em voz

45 Arthur Weiser traduz “de dia grito a ti, de noite fico diante de ti” (WEISER, Arthur. Os salmos, p.445); Erhard Gerstenberger prefere “De dia eu grito, durante a noite (estou prostrado)” (GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.46); Luis Alonso Schökel e Cecilia Carniti trazem “de dia te pido auxilio, de noche grito en tu presencia” ou seja, “de dia eu te peço auxílio, à noite grito em tua presença”, (SCHÖKEL, Luis Alonso e CARNITI, Cecilia. Salmos II – traducción, introducciones y comentario. Navarra: Editora Verbo Divino, 1993, p.1128); André Chouraqui liga o versículo dois ao três, traduzindo “De dia, meu clamor; à noite, diante de ti,/ minha prece vem em face de ti.” (CHOURAQUI, André. A Bíblia – Louvores: Tradução e Comentários [tradução para o português de Paulo Neves; revisão geral Jayme Salomão e André Cardoso]. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1998 [Coleção Bereshit], p.114); Harvey H. Guthrie Jr. traduz ”By day I cry out/ at night I’m in thy presence”, ou seja, “De dia eu choro/ de noite eu estou em tua presença”, (GUTHRIE JR., Harvey H. Israel’s sacred songs – a study of dominant themes. New York: A Crossroad Book/ The Seabury Press, 1978, p.123). A edição revista e atualizada de João Ferreira de Almeida traz “dia e noite clamo diante de ti”. A TEB traduz de forma semelhante: “de dia, de noite, gritei a ti”.

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Desde o Xeol

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alta, no culto.46

A palavra “desdobrar” traz em sua raiz o sentido de

desenrolar ou desdobrar algo dobrado. No contexto da expressão

“desdobra teu ouvido”, parece indicar que o orante sente que

não há uma disposição inicial de Deus em atendê-lo e, por

isso, ele apela contundentemente que Javé tenha boa vontade em

fazê-lo, o que também concorda com o exposto acerca do v.2.

Esse sentimento pode ser decorrente do fato de o

salmista, ao longo de todo o poema, afirmar que seu sofrimento

dura já longo tempo e que ele sente-se esgotado. Parece

indicar uma saturação de sentimentos.

Os demais pedidos que aparecem no salmo seguem essa

mesma sequência de pensamento quanto à urgência e necessidade

da petição. O v.10b é uma forma diferenciada de repetir o

conteúdo do v.2b. As expressões “de dia eu gritei, na noite na

tua presença” e “Chamei a ti Javé em totalidade de dias”

reforçam a ininterrupta insistência do pedido do salmista.

Sua atitude é de total entrega. “Estendi para ti

minhas mãos” é uma expressão que aparece no contexto do culto,

algumas vezes no intento da adoração. Contudo, está claro aqui

o sentido do abandono, como uma criança que estende os braços

46 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.48

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ao pai ou à mãe diante de algum perigo.

Da mesma forma, o v.14 retoma o argumento do tempo:

“na manhã minha súplica sai ao teu encontro”. Assim sendo,

pode-se perceber que o pedido por socorro é um só ao longo do

texto. Esse eixo semântico que se move em torno da questão do

tempo é fundamental, porque o próprio texto apresenta o

sofrimento do orante como sendo de longa data: “aflito eu e

enfermado desde a juventude” (v.16).

O conteúdo do pedido não é inicialmente explicitado,

limitando-se ao desejo de ser ouvido. Será que o salmista

sente que Deus não quer atendê-lo? Seria um sinal de

desesperança no livramento?

Essa é uma diferença em relação a maioria dos outros

salmos de lamentação. Os salmistas em geral explicitam seu

pedido de socorro, apontando de início as razões diretas de

sua súplica:

Senhor, Deus meu, em ti me refugio;

salva-me de todos os que me perseguem e

livra-me.(Sl 7,1)

Socorro, Senhor! Porque já não há homens

[piedosos;

desaparecem os fiéis entre os filhos dos

[homens (Sl 12,1)

A ti, Senhor, elevo a minha alma.

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Deus meu, em ti confio

não seja eu envergonhado

nem exultem sobre mim

os meus inimigos (Sl 25,1-2)

Como já observado, isso se deve ao fato de o salmista

se dirigir a Deus já fazendo referência a pedidos anteriores.

Por isso, é mais importante para ele insistir primeiramente em

ser ouvido, para então explicitar sua queixa. Quanto à

pergunta que o salmista dirige a Deus, ela não é própria de

seu discurso. Freqüentemente, os orantes apresentam indagações

próximas:

Por que, Senhor, te conservas longe?

E te escondes nas horas de tribulação? (Sl

10,1)

Até quando, Senhor?

Esquecer-te-ás de mim para sempre?

Até quando ocultarás de mim o rosto? (Sl

13,1)

Deus meu, Deus meu, por que me

[desamparaste? (Sl 22,1)

Um outro dado importante é relativo ao campo

semântico das descrições de aproximação de Javé apresentadas

nos pedidos. Esse contato do salmista com Deus se dá de forma

direta. “Tua presença”, “teu ouvido”, “a ti”, “tua face” são

expressões usuais no hebraico bíblico. Havia o hábito de se

tomar uma parte do corpo para indicar uma reação completa do

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ser. Ouvido, face, presença indicam o ser por completo, isto

é, para o salmista, desdobrar o ouvido, revelar a face são

formas de Javé aproximar-se dele. E o fato de serem expressões

tão diversificadas, mais uma vez, reforçam a noção de que se

trata de um apelo incisivo e urgente.

2.3.2. Contado entre os mortos

Como demonstrado, o eixo semântico do salmo é

constituído por palavras que descrevem o estado de morte do

orante47. Elas traduzem a situação concreta e os sentimentos

experimentados pelo salmista, que o levam à lamentação. Assim

sendo, para se apreender o conteúdo do salmo, é preciso

entender esse conjunto semântico e seus campos de sentido.

Há que se destacar inicialmente que a concepção

israelita entende a morte não apenas no aspecto biológico

final, isto é, quando a pessoa é um cadáver. Sua antropologia

permite “estados de morte”, que são situações em que a vida

está gravemente ameaçada ou, por diversas razões, há uma

exclusão da vida social e religiosa. Um leproso, por exemplo,

está em um estado de morte, assim como um doente terminal. De

certa forma, está morto.

47 Capítulo 2, p. 44.

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No Sl 88, ouvimos a voz de um homem que

‘desde a juventude é um moribundo’(16), logo

vítima de doença mortal. Se foi ‘saciado de

sofrimentos’ (4), com isso ainda não está

dito de nenhum órgão que esteja morto e,

contudo, ele se sente entregue de tal modo ao

poder da morte, que ‘já é contado entre

aqueles que descem à cova, despedido para

entre os mortos’ (5s). Embora ainda funcione

o coração e a respiração, este homem contudo

já deve ser considerado como envolvido pela

morte. Logo, há um morto ao qual sobrevivem

todos os órgãos de seu corpo.48

Isso explica porque os salmos em que aparece a figura

de um doente, esta encontra-se mormente vinculada ao universo

dos que já morreram. Parece que, quando se caminha para a

morte, de certa maneira já se está dominado por ela.

É desse limite que os doentes clamam: apesar de

estarem afastados de Deus no aspecto cúltico propriamente dito

(certos tipos de doença limitavam o acesso aos santuários e,

mais tarde, ao templo, por questões de pureza), o mínimo sopro

de vida representa a possibilidade de ser resgatado do Xeol.

O primeiro conjunto de queixas que aparece é o bloco

dos v.4-8. O salmista apresenta sua vida como sendo saturada

48 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento (tradução Antônio Steffen). São Paulo: Edições Loyola, 1975 p.152.

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pelas dores e próxima do Xeol. A palavra lAav. aparece 65 vezes

no Antigo Testamento49. Seu sentido é passível de várias

discussões, pois não se sabe exatamente sua origem e

etimologia. Indica o reino dos mortos. Parece estar ligada a

uma raiz que significa “lugar da indagação” ou ainda

“escavar”, entre outros sentidos próximos50.

Israel tinha uma maneira peculiar de entender a morte

e, em oposição aos povos a seu redor, desmitologizava-a com

insistência. Demonstração disso é o combate incisivo ao culto

aos mortos. Quando, pois, se pensa em “reino dos mortos”, a

vinculação mais direta e precisa é ao sepulcro, à sepultura em

si e não uma espécie de reino subterrâneo habitado por seres

conscientes. É verdade que, devido a influências externas,

esse pensamento não era de todo inexistente, mas sempre foi

paralelo à visão “oficial” da morte como sendo o fim último da

vida humana.

Teológicamente, lo más importante para los

que moran en el seol es su exclusion del

culto a Iahvé y de su actuación en la

historia (...) aunque la omnipotencia de

Yahvé también tiene poder sobre el seol.

(...) Según la concepción del AT, ya antes

49 LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz Zum Hebräischen Alten Testament. Stuttgart:

Deutsche Bibelgesellschaft, 1981, verbete lAav.. 50 JENNI, E. e WESTERMANN, C. Diccionario Teologico Manual Del Antiguo

Testamento. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1985, verbete lAav., p.1053.

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de la muerte física el seol penetra en la

vida por medio de la enfermedad, la

indigencia, la cautividad, etc. A partir de

aquí hay que entender tanto las

lamentaciones como la alabanza al salvador

en los salmos.51

O salmista encontra-se em uma situação aparentemente

irreversível, que o leva às portas da morte. Seu fim é

iminente: “minha vida para o Xeol está perto”.

Kraus destaca que é impossível saber, através do

texto, a que tipo de enfermidade o orante se refere. Também

não há menção de inimigos nem de culpabilidade. Da mesma

forma, nenhuma petição para intervenção ou uma volta da sorte

é ouvida. Para esse autor, o salmista era um desterrado que

vivia fora do portão da cidade.52

Schökel e Carniti destacam ainda que a morte, para o

israelita é também uma potência em ação, que envolve e traga a

pessoa.53 No caso do Sl 88, o salmista apresenta-se como

dominado por ela, submerso em seu poder: “ondas”, “ardentes

cóleras”, “terrores” são termos usados para descrever o pavor

causado pela morte, ao mesmo tempo que o salmista afirma que

provêm de Deus (v.8,17).

51 JENNI, E. e WESTERMANN, C. Diccionario Teologico Manual Del Antiguo Testamento, p.1057. 52 KRAUS, Hans Joachin. Psalms, p.192. 53 SCHÖKEL, Luis Alonso e CARNITI, Cecilia. Salmos II, p.1132.

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A morte também é uma qualidade e um estado: o mundo

das trevas, o lugar onde a luz não é (contrariamente ao viver

na luz do mundo dos vivos), onde os mortos esquecem e são

esquecidos54.

Os v.5-7 apresentam o mesmo posicionamento do v.4. Se

o salmista aproxima-se da morte, sente-se de antemão envolvido

por ela de tal forma que já habita o reino dos mortos. Mais

uma vez, evidencia-se a questão da invalidez do morto (v.5b) e

o esquecimento e aprisionamento a que este é submetido na

sepultura (v.6). O morto é excluído do louvor a Deus (Sl

115,17-18).

Os v.7-8 introduzem um elemento novo no relato do

orante sobre sua situação: atribuem a Javé a causa da doença

que o aflige. Ele é que coloca o salmista na cova, por seu

furor, abate o salmista e o humilha.

A versão da Septuaginta faz a correção do hebraico

“humilhaste a ti” para “humilhaste a mim”, no v. 8a.

Realmente, a alteração deve ser considerada, pois dá sentido

gramatical e teológico ao texto. Isso porque o pensamento de

Deus humilhar a si mesmo afligindo o orante não procede.

Levando em consideração que até aqui o salmista não

54 SCHÖKEL, Luis Alonso e CARNITI, Cecilia. Salmos II, p.1132.

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apresenta causas externas para sua situação (uma perseguição,

por exemplo), nem causas internas (seu próprio pecado, uma

forte razão para ser afligido por Deus, segundo o pensamento

antigo), só uma saída resta a ele para explicar seu sofrer:

Deus é o responsável.

Cabe aqui a pergunta: por que o salmista,

responsabilizando a Deus por lhe infligir um sofrimento do

qual ele não é merecedor (evidencia-se a ausência de protestos

de inocência ou confissão de pecados!), continua então a

dirigir-se a ele?

Note-se o argumento utilizado pelo prof. Jung Mo

Sung, em uma de suas aulas sobre Sociologia da Religião, na

Faculdade de Teologia da Igreja Metodista (1999): “Mesmo

quando Deus não responde, as pessoas continuam a buscá-lo. E

ainda quando pensam que a razão do sofrimento pode estar em

Deus, não deixam de lhe dirigir orações. Melhor essa razão

para o sofrer do que sofrer sem razão”.

A questão do sofrimento do inocente já foi muito

debatida nos meios teológicos e ainda está em aberto. Nesse

ponto, alguns autores pesquisados afirmam que o Sl 88 pode

apresentar paralelos com os relatos de Jó. Não há nada que

indique as razões do sofrimento aqui contido. Deus é a única

possibilidade de explicação e a ela o salmista recorre.

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Voltar-se a Deus como culpado pelos males que afligem

o ser humano não é uma prática isolada em Israel. Os exemplos

de indagações semelhantes ao v.15 apresentados acima são

reflexos dessa atitude, bem como os embates entre Deus e Jó.

Contudo, se o mal vem da parte dele, daí também a única

possibilidade de bem deriva.

Javé é o único que pode permitir ou impedir o acesso

ao mundo dos mortos (v.7). Essa é uma questão chave no

pensamento de Israel. Ele é quem lança ao Xeol e quem pode

resgatar o que para lá se dirige. Portanto, ainda que não

explicitamente peça o livramento da morte, da ida ao Xeol,

apenas o fato de o salmista dirigir sua fala a Deus indica que

ele aspira tal livramento, uma vez que só Javé poderá fazer

algo para impedir sua morte.

Os v.9-10a apresentam outro aspecto a que o doente

está exposto em sua dor: o afastamento das pessoas conhecidas.

O isolamento ocorria em muitos casos de doenças consideradas

impuras. O doente era desvinculado dos laços familiares e

religiosos, excluído da vida social e, não raro, desterrado.

Era fonte de contaminação (Nm 19,11).

Levando-se em consideração que o salmista apresenta-

se como doente desde a juventude (v.16), sua situação torna-se

ainda mais penosa. Contra todas as suas forças, foi “obrigado

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a desfalecer”. Certamente que o isolamento dos conhecidos

contribui ainda mais para essa situação, pois é um indicativo

de que as alternativas de mudanças são praticamente

inexistentes.

Algum tipo de doença grave o atacou, pois seus amigos

o consideram “repugnante”, uma “abominação”. Essas palavras

possuem caráter cúltico: o acesso a Deus, por meio do culto e

do local de adoração, está bloqueado para as pessoas em

condições tais como essas.

Esse mesmo isolamento volta a ser repetido no v.19,

acrescentando que a vivência do orante se dá apenas com a

escuridão, ou no espaço dela. Kraus destaca que esse

afastamento dos amigos e familiares era aproximativo da morte,

pois provavelmente os desterrados por doença, especialmente os

leprosos, habitavam em tumbas55.

Esse estado de morte vivido pelo salmista é

experimentado em termos de submersão. Essa é a imagem usada

para descrever o que dele se apoderou, nos v.17-18. A água

tanto pode ser símbolo de valores positivos quanto negativos.

A idéia de submergir aparece em outros salmos com a conotação

de não haver saída (por ex., Sl 69,2-3; o episódio de Jonas é

exemplo desse imaginário).

55 KRAUS, Hans Joachin. Psalms, p.193.

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Novamente aqui o salmista enfatiza que Deus é quem

age, diretamente, para que ele esteja nessas condições. E mais

uma vez, não há motivos aparentes para tal atitude. “Ardentes

cóleras”, “terrores” que rodeiam como água e caem de uma vez

sobre o orante são, pois, expressões intrigantes. Tais

palavras dão a entender que ele tenha cometido algum ato

impróprio e esteja sendo castigado? Por que razão Deus se

voltaria a ele com “ardentes cóleras”? De qualquer modo,

responder diretamente a essa questão seria especulação pura,

pois o texto não fornece pistas concretas.

Schökel e Caniti afirmam que a ausência de votos de

ações de graças nesse salmo se deve ao fato de que, para onde

o salmista vai, isso não será necessário56. Contudo, essa é uma

posição um tanto quanto radical em relação ao texto. Pressupõe

que não há, da parte do orante, nenhuma expectativa de

livramento, mesmo implícita.

Ainda que o salmo não contenha votos de confiança,

isso não indica que o orante se conforme com a sua situação ou

a considere, a priori, irreversível. Fosse esse o caso, sequer

lamentaria e a oração não estaria no Saltério. Conformados não

lamentam. Dessa forma, abrem-se outras possibilidades, que não

devem ser negadas.

56 SCHÖKEL, Luis Alonso e CARNITI, Cecilia. Salmos II, p.1132.

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O bloco das perguntas retóricas (v.11-13) fornece

elementos para a argumentação do salmista em relação às

atitudes de Deus para com ele. A pergunta retórica não é

desconhecida na Bíblia, sendo ferramenta indispensável em

discursos, especialmente polêmicas. Trata-se desse caso. O

salmista polemiza com Deus em torno da necessidade ou validade

de sua sobrevivência, em oposição à inutilidade (para Deus!)

de sua morte.

A pergunta que resume o bloco é: “Qual a utilidade do

morto para Deus?” E a resposta absoluta é: Nenhuma.

Enfaticamente, o texto bíblico afirma que os mortos estão fora

da esfera do louvor a Javé ou da percepção de seus atos

salvíficos. O salmista, desse modo, só faz repetir o lugar-

comum da fé israelita. Mas o faz com maestria. Se não moveu

Javé por meio da comoção, diante de sua situação precária, o

faz agora por motivos racionais. Se Deus não lucra nada com a

morte do salmista, melhor é mantê-lo vivo para dele receber

adoração e reconhecimento. O salmista coloca, dessa forma, as

razões de sua sobrevivência no próprio Deus.

(...) à definição do morto como excluído do

louvor de Deus, opõe-se aquela do vivo como

o homem que pode exaltar a obra e a palavra

de Javé. Portanto, no Antigo Testamento,

viver significa ter relacionamento.

Principalmente, ter relacionamento para com

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Deus. A morte... significa ausência de

relacionamento.57

O salmista apresenta aqui a essência da vida humana:

relacionar-se com Deus. Adorá-lo e dele receber o necessário

para a existência. Ainda em meio à dor, o salmista reconhece o

louvor a Deus como motivação primeira da vida. É seu desejo,

pois, render-lhe tributos. Mas, como fazê-lo se estiver morto?

Nesse bloco de perguntas reside a verdadeira

expressão da esperança. É o único lugar em todo o salmo no

qual aparecem palavras de conotação positiva: “maravilhas”,

“fidelidade”, “veracidade”, “milagre” e “justiça”, poderes e

atributos designativos de Deus.

O verbo alP indica “a superação dos limites da ação

ou da compreensão, algo que é difícil, para não dizer

impossível, superá-lo é portentoso, incrível.58” A maravilha e

o milagre, palavras sinônimas, são ecos da história do povo

que o salmista evoca para si mesmo.

Essas palavras são usadas para se referir aos atos

salvíficos de Deus em relação ao seu povo. Essas palavras e

outras sinônimas aparecem no contexto do Êxodo (Ex 15,11) e

57 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento, p.147. 58 SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo:

Editora Paulus, 1997, verbete alP

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em diversos salmos (Sl 17,7; 118,23; 77,12; 119,129).

As perguntas retóricas são o sinal da esperança que

não aparece de forma evidente no salmo. Se maravilhas,

milagres, fidelidade e veracidade são algo que Deus só pode

manifestar ao ser humano vivo, então, por isso mesmo, o

salmista necessita viver.

Se Deus não faz tais portentos para os mortos, a

opção é fazê-la aos seres vivos. E quem, entre os vivos,

necessitaria de uma intervenção tão forte de Deus? Aqueles

que, mesmo estando vivos, já se encontram rodeados pelo poder

da morte. Pessoas como o orante do Sl 88.

2.3.3. A situação vital e a relação do salmista com

Deus

O salmo apresenta uma situação de doença grave, que

dá ao orante a condição de impuro, afastando-o da convivência

com amigos e parentes e forçando-o a viver em lugares

tenebrosos, em completo isolamento (v.7.9.19).

Kraus cita K. Seybold, o qual coloca esse salmo,

juntamente com os salmos 38 e 41, “entre as canções de oração

que com certeza serão classificadas como pertencendo ao grupo

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de náusea e salmos curativos”59.

Não se trata de um salmo penitencial. A confissão de

pecados não aparece como sendo a causa do sofrimento, nem

perseguições de qualquer natureza ou acusações perante o

tribunal. A doença, causada por Javé, é a única evidência do

fator que gera a situação precária do orante.

Como se pôde notar na análise dos campos semânticos

das queixas, esse sofrimento é vivenciado desde muito tempo

pelo salmista e o faz aproximar-se da morte. Não parece que as

expressões por ele utilizadas sejam uma figura de linguagem

para apresentar seu sofrimento, mesmo que as lamentações em

geral tenham o objetivo de comover Javé.

Antes, a situação do salmista não parece dar-lhe

outra alternativa que não a consciência da proximidade de seu

fim: já está isolado do convívio social (v.19), a enfermidade

é antiga e não foi debelada (v.16), sente-se desamparado por

Deus (v.15), cercado pelos males (v.18).

Kraus entende que é difícil saber a situação geradora

do salmo, bem como o período de sua composição. Há elementos

lingüísticos que o aproximam de Jó, levando o texto para

tempos pós-exílicos. Mas ele cita autores para os quais

59 KRAUS, Hans Joachim. Psalms, p.192.

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existem arcaísmos cananitas e ainda idioma convencional e

imagens das canções suméricas Tammuz. Para Kraus, os salmos 6,

22, 38 e 41 aproximam-se mais do salmo 8860.

Gerstenberger argumenta que esse salmo pertencia ao

âmbito do grupo familiar.61 Isso porque o sofredor lamenta o

rompimento de seus laços com amigos (pessoas de convivência

íntima), parentes (pertencentes ao grupo familiar por laços de

sangue) e conhecidos (pessoas próximas ao círculo de

convivência). A quebra desses laços ocasiona um sofrer a mais

para o orante e fortalece a idéia de que o salmo está na

esfera das relações sociais próximas.

Havia rituais em Israel e nos povos ao redor em prol

do sofredor. A primeira etapa de sua trajetória consistia em

determinar a origem de seus males. Para isso, os sacerdotes e

profetas detiveram papéis especiais. Gerstenberger cita 1Rs

14,1-3 e 2Rs 1,1-4 como exemplos desses rituais. Para ele, os

sacerdotes pré-exílicos e os “homens de Deus” desempenhavam a

função de diagnose dos casos a eles apresentados e de

intercessão a Deus.

O Sl 88 parece ser indicado em casos de doença grave,

de longa duração62 e causas não relacionadas com o orante. Como

60 KRAUS, Hans Joachim. Psalms, p.192. 61 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.58. 62 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.59.

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Desde o Xeol

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faltam explicações de qualquer natureza, o caso volta-se para

Deus. Sendo Javé soberano, ele mesmo deve ser interferido para

atormentar o sofredor. Assim, a apelação se dirige diretamente

a Ele.

Gerstenberger destaca ainda que a situação do orante

poderia ter chegado a uma desintegração familiar tal que ele

ficava sozinho com o “homem de Deus”, no seu culto de petição.

Mas, provavelmente, havia um pequeno grupo que se mantinha

solidário com o sofredor, pois seria difícil para ele

contratar tais serviços ou cumprir rituais sozinho, estando em

tal estado de enfermidade.63

Schökel e Carniti afirmam que o salmo é uma súplica,

ainda que não seja um exemplo típico, por não serem

encontradas aí as características peculiares ao gênero.64 Há

aproximações de conteúdo com Sl 39, Is 39 e Jó 10.

É um salmo que evidencia a soberania de Deus quanto à

preservação ou aniquilação da vida humana. Mas não se trata de

uma mera aceitação dessas condições. O salmista luta com Deus

para que não seja entregue à morte. Apesar de sua realidade

inegável, a morte é vista como inútil. O valor está na vida, a

qual deve ser preservada a todo custo. Até porque o próprio

Deus nada ganha com ela. O argumento da utilidade da vida

63 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.60. 64 SCHÖKEL, Luis Alonso e CARNITI, Cecilia. Salmos II, p.1132.

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versus a inutilidade da morte, baseado na posição de Deus e

não no desejo puro e simples do ser humano é uma novidade

nesse poema, da forma profunda e bela como é construído.

Em contrapartida, evidencia de igual forma a aparente

ausência ou indiferença de Deus em relação ao sofrer humano.

Não há aqui o recurso da vida após a morte, para amenizar a

dor do agonizante: ressurreição é um conceito fora de tempo

nesse poema. Daí a morte se torna ainda mais implacável.

A presença de Javé é, no pensamento bíblico, a

garantia de salvação e de vida. Lindström destaca que na

teologia do templo, a vida de completa saúde pode ser descrita

como abundância, satisfação da presença de Deus (Sl 17,15;

63,6; 65,5; 91,16)65. No entanto, o que o salmista possui é

abundância de problemas.

A ausência de relacionamento, tanto com Deus quanto

com as pessoas de sua esfera social, o lançam em uma situação

semelhante ao caos original: escuridão e trevas (v.19). É bem

clara a idéia vétero-testamentária de que a separação de Deus

ocasiona o caos e abre espaços às trevas e forças do mal. Esse

parece ser o sentimento vital apresentado no salmo 88.

Considerando que esse salmo foi incluído na última

65 LINDSTRÖM, Fredrik. Suffering and Sin – Interpretations of the individual complaim psalms, p.205-206.

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parte da coleção dos filhos de Coré, sua composição pode estar

entre as últimas do Saltério, em tempos pós-exílicos. Mas é

provável que seja anterior, pelo menos tendo sua compilação no

período de fechamento do Saltério.

Não há menção ao templo, mas o texto constitui uma

súplica, a qual certamente deveria ser feita em um local

sagrado, com os rituais apropriados. Pode ser que o orante

solicite a mediação de alguém de seu grupo familiar para

representá-lo no local de oração (santuário ou o próprio

templo) ou esteja diante de um “homem de Deus”, que poderia

ser uma pessoa itinerante, vidente ou profeta.

Essa última possibilidade lança o poema para períodos

anteriores da história de Israel e não destoa dos argumentos

quanto a arcaísmos aí presentes. Embora pertinentes, essas

considerações não são suficientes para possibilitar a

determinação exata da composição do salmo.

Esse poema foi depois relido pelos escribas,

provavelmente entre o séc. IV a III A.E.C., sendo

caracterizado como salmo didático, para uso sinagogal66. Ele

passa a ser um texto usado para as reflexões litúrgicas das

comunidades sinagogais.

66 GERSTENBERGER, Erhard. Salmos, p.61.

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Quanto à relação com Deus, o salmo constitui uma

densa e negativa experiência. O clamor não foi ouvido, apesar

da insistência e do longo tempo de sua duração (retomando o

conteúdo dos pedidos de socorro e a indicação da duração da

doença). Não há razões que justifiquem a dor, a doença. Não há

relacionamento, nem convívio. A morte está perto. Esse é um

salmo para quem está lutando com Deus, não se conformando com

o rumo da própria vida.

Está claro que existe uma esperança, apesar da dura

realidade. É uma esperança tênue, que não se explicita em

votos de confiança, nem promessas de tributo, mas se baseia na

razão de ser do próprio Deus. É o argumento que resta ao

orante.

Não protesta inocência nem justifica com suas

próprias ações de retidão a intervenção divina. Mas, de algum

modo, confia nela. Está no limiar da fé e, ao mesmo tempo em

que atribui a Deus as razões de sua dor, espera ser ouvido por

ele. Por isso há esperança: o salmista não desiste de crer,

mesmo que oscile ante a dura realidade. Ele reconhece que a

única saída é Javé, ainda que esse Deus se lhe pareça disposto

a entregá-lo ao Xeol.

A relação com Deus que aqui transparece, portanto, é

uma relação de conflitos. A indagação: “Por quê?” revela a

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angustiante tentativa de entender a realidade, ou a atitude de

Deus, ante o sofrimento humano.

Exatamente por esse conflito é que o salmo termina em

uma nota de isolamento e escuridão. O salmista está só em seu

embate com Javé. De dentro das trevas ecoa seu grito

solitário: “Por que me rejeitas?”, que aos ouvidos cristãos

atuais parece aterrador e despropositado. Mas é um grito que

emerge de uma situação vivencial concreta e não da reflexão

teórica. Por isso, desperta a inquietação e o questionamento.

Em todos os tempos, existem situações para as quais,

simplesmente, não há resposta nem consolo, senão a esperança

em Deus, por mais tênue que se apresente. Dessa forma, o Sl 88

constituía, certamente, um referencial de oração para pessoas

que não viam mais alternativas de vida frente a situações de

morte.

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Ouvi de imigrantes da Espanha a notícia de que fugitivos a bordo

de um navio haviam sido acometidos de peste. O capitão lançou-os em terra

firme, num local selvático. Muitos deles morreram de fome, uns poucos

cobraram ânimo e puseram-se a caminhar até encontrarem um lugar onde

havia moradores. Um dos judeus trouxera consigo sua mulher e seus dois filhos

pequenos. A mulher, não habituada às caminhadas, perdeu as forças e morreu.

O homem carregou as crianças em frente, até que caiu, esgotado, desmaiando.

Ao acordar do desmaio, verificou que ambos os filhos tinham morrido. Em meio

à sua dor, levantou-se e exclamou: “Senhor do mundo! Fazes o máximo para

que eu perca a fé. Contudo, faço questão de que saibas que ser eu um judeu e

permanecer judeu, em que pese aos habitantes do céu. Assim sendo, de nada

adianta tudo aquilo que fizeste cair sobre mim e no futuro ainda queiras fazer

contra mim.” A seguir, ajuntou um punhado de pó e de capim, com que cobriu

os seus filhos mortos e prosseguiu na caminhada, à procura de um lugar

habitado.

(Da crônica de Salomão Ibn Verga, Schewet Jehudah, 1550)

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Deus no sofrimento humano

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3. Deus no sofrimento humano

Pensar sobre o sofrimento passou a ser, para muitas

pessoas na atualidade, uma tarefa da Psicologia tão somente. A

religião cristã, tal como se dá em diversos segmentos,

especialmente evangélicos, assume uma atitude negadora da dor

e das situações nas quais Deus não se apresenta como o

esperado.

Mas a dura realidade encontrada nos hospitais, por

exemplo, não permite ao ser humano moderno essa negativa e

nem soluções simplistas para explicar as situações de

sofrimento. São seres inocentes que estão em dura batalha,

muitas vezes inútil, pela própria sobrevivência. Não há pecado

nem falta de fé que justifique sua condição. Para elas, a

pergunta: “Por quê?” continua sendo essencial.

Daí a validade de analisar os salmos de lamentação em

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Deus no sofrimento humano

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uma perspectiva basicamente existencial. Não se trata de

elucubrações teológicas dissociadas da vida e de seus

conflitos, mas de perguntar sobre Deus no seio do sofrimento

que, por vezes, quer negar sua existência ou presença,

desafiando a fé.

O Saltério está formado por muitos tipos de salmos,

compilados ao longo dos anos: de alegria, esperança,

confiança, louvor, gratidão, festa, mas, especialmente, de

salmos de lamentação. Esses últimos serviram para reavivar e

realimentar a fé das pessoas que, em seus sofrimentos e

angústias pessoais, pudessem identificar-se com a oração

deixada pelos salmistas — na maioria das vezes, anônimos —

para expressar sua dor diante de Deus.

O fato de a maior parte dos salmos falar de dor,

perseguição, doença, fome, injustiças e morte há de ser levado

em conta. Leva a concluir que o povo de Israel discorria

longamente sobre suas dificuldades e anseios na vida. Sua

reflexão acerca das questões cruciais de sua existência dava-

se no âmbito da oração. Expor o sofrimento diante de Deus,

seria, dessa forma, uma maneira de elaborar sua própria

existência e descobrir caminhos para superar os limites

impostos pelas situações de dor?

A exegese do salmo 88 pontua questões de suma

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Deus no sofrimento humano

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importância para aqueles e aquelas que se dedicam a estudar ou

a conviver com situações limite de sofrimento. A palavra que

parece melhor descrever o estado do orante é solidão. Essa

solidão parece aumentar indescritivelmente as dores

ocasionadas pela doença.

O isolamento experimentado pelo salmista é um

demonstrativo a mais de que ele se aproxima da morte. A

escuridão o rodeia e tanto pode ser física como emocional: se

vive isolado; desterrado para fora do portão; percebido pelos

amigos, parentes e conhecidos como “repugnante”; se só se lhe

avizinham densas trevas, nenhuma perspectiva lhe é apresentada

como se fora a “luz no fim do túnel”, a luz de uma libertação

que lhe restitua o convívio humano, que lhe devolva a

dignidade de ser tratado como uma pessoa, um ser humano, que

lhe traga aos lábios palavras de esperança.

Dorothee Sölle, em seu livro “Sofrimento”, afirma que

“uma parte da pressão do sofrimento consiste em que as pessoas

não se comunicam.”67 O sofrimento mudo, descrito por ela, é

decorrente de condições externas e extremas, em que o ser

humano deixa de agir como um sujeito falante. A conversação

não é praticável e não há a menor possibilidade de se fazer

algo ou reagir, levando ao “autodesprezo e apatia no sentido

67 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento (tradução de Antônio Estevão Allgayer. Petrópolis: Editora Vozes, 1996, p.76 (grifo da autora).

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Deus no sofrimento humano

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clínico do termo”68.

Quando a pessoa não tem mais com quem falar ou do que

falar, seu sofrimento chegou a um extremo tal que a apatia

torna-se dominante e perde-se de vista tudo o mais, todas as

outras dimensões da vida humana.

Conhecem-se dores que tornam o homem cego e

surdo. O sentimento voltado aos outros

amortece, o sofrimento isola o sujeito, fá-

lo voltar-se exclusivamente para si mesmo,

enquanto recrudesce o poder atrativo da

morte e nada se deseja com tanta veemência

como o fim de tudo.69

Nesse contexto, o salmo de lamentação encontra-se no

eixo dos que se recusam a deixar de ser seres humanos, que

falam sobre seu sofrimento para não se tornarem totalmente

dominados por ele, que não querem desistir da vida, mantendo

vivas todas as fagulhas possíveis de esperança e sanidade. É

também uma forma de distanciar-se da morte, de lutar contra

ela.

O lamento torna-se uma arma contra o sofrimento que

pode levar uma pessoa à neurose. Sölle entende que existem

sofrimentos que não se pode suportar indefinidamente. Ou a

68 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.78 69 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.78

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pessoa fica totalmente dominada por ele, embrutecida, ou

começa a elaborá-lo.70

Lamentar é, pois, elaborar o sofrimento em categorias

exprimíveis pela fala, dominá-lo antes que ele a tudo

sobrepuje e torne impossível encontrar uma saída. Essa

elaboração, contudo, não possui um fim em si mesma, mas é

dirigida a Deus, a quem o orante sente-se ligado pelos elos da

fé e da experiência histórica.

3.1. A elaboração do sofrimento em linguagem sálmica

Um dos primeiros conceitos produzidos pela teologia

bíblica foi a elaboração de um pensamento para explicar a

origem do mal e do sofrimento humano. A queda do homem e da

mulher, de sua posição de habitantes de um paraíso,

desencadeou sofrimentos para eles e seus descendentes, em

todos os tempos e lugares. O homem, para viver, tem de suar o

rosto. A mulher, para gerar filhos, tem de sentir dores (Gn

3).

Não se pode sofrer sem haver uma razão que explique

ou justifique tal situação. Os salmos, por isso, perguntam

tantas vezes: “Por quê?”. É uma pergunta justa, pois, uma vez

que esteja esclarecida a razão para o fator que angustia,

70 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.80.

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pode-se dar alguns passos em direção à superação.

Os exemplos desse raciocínio do ser humano vétero-

testamentário são diversos. Se o sofrimento é decorrente do

pecado, há vários ritos e prescrições que podem ser usados

pelas pessoas do período vétero-testamentário para pedir o

perdão de Deus. Cumprindo tais ritos, é possível aplacar a

“ira divina” e obter a salvação.

Se a causa, contudo, advém da falta da justiça e do

direito, Deus pode ser buscado como aquele que executa a

fidelidade e ama a verdade. O libertador que tira seu povo

dessa condição de explorado e humilhado (Sl 12, Sl 89). Isto

é, saber a causa da dor é fundamental para superá-la.

Como se pôde observar na exegese do Sl 88, a razão

mais evidente para a dor do salmista encontra-se no próprio

Javé, como também nele reside a razão de superar o sofrimento.

Daí se expressa a verdadeira essência do Sl 88. A fé em Javé

não se encontra presente apenas quando este satisfaz aos

desejos das pessoas, mas ainda apesar de elas se considerarem

diretamente atingidas por ele.

A linguagem do sofrimento é a linguagem de quem

deseja manter contato com Deus e com as demais pessoas, como

um passo primeiro para vencer o sofrimento, mesmo que essa

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Deus no sofrimento humano

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vitória não se configure no debelar da doença que o gera.

No Sl 88, a elaboração do sofrimento em linguagem

sálmica é que permite ao orante descobrir-se objeto da atenção

e da graça de Deus. Quando ele começa a refletir, apresenta-se

como um “semi-morto”, alguém no limiar da morte. Mas enquanto

apresenta sua situação e a processa em sua mente, descobre que

ainda está vivo e, portanto, pode ser atingido pela justiça,

pela veracidade, pela fidelidade, pelo milagre e pelas

maravilhas de Deus (Sl 88, 12-14).

Só pode ser objeto do poder de Deus quem está vivo,

pondera o salmista. Ainda que próximo da morte, há fôlego de

vida suficiente para lamentar, isto é, para elaborar em uma

linguagem inteligível – especialmente para si mesmo e também

para Javé – a dor e a angústia experimentadas na doença e na

solidão. Essa descoberta é que gera a esperança, um novo

aguardo da misericórdia divina.

O primeiro passo a ser dado para a

superação do sofrimento é descobrir uma

linguagem conducente à saída do sofrimento

emudecedor, uma linguagem de denúncia, que

pelo menos diz o que é.71

A Teologia da Prosperidade possui uma vertente que

71 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.80.

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Deus no sofrimento humano

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afirma a dor, os problemas, os sofrimentos, como sendo

decorrentes do pecado do indivíduo ou de maldições que ele

carrega consigo. O sofrimento é “vencido” não pela elaboração

de uma linguagem, mas pela negação de sua existência.

As pessoas “decretam” que o sofrimento foi abolido,

“determinam” que a maldição foi quebrada. E, ao mesmo tempo,

torturam-se internamente pelos “pecados” geradores da opressão

que os perturba.

A teologia da prosperidade sustenta que

nenhum filho de Deus pode adoecer ou

sofrer, pois isso seria uma clara

demonstração de ausência de fé, e, por

outro lado, da presença do diabo. Ao mesmo

tempo, eles chegam ao exagero de declarar

que quem morre antes do 70 anos é uma prova

de incredulidade, imaturidade espiritual ou

pecado.72

Contra essa pregação, o Sl 88 apresenta um orante que

nada fez para estar sofrendo. Ao contrário, sempre buscou

estar próximo de Deus, pedindo socorro dia e noite, desde a

juventude, como demonstrado na exegese. Este salmo, embora

seja singular em muitos aspectos, não é o único que apresenta

uma pessoa inocente que fala sobre sua dor.

72 SIQUEIRA, Tércio Machado. “A Teologia da Prosperidade”. In: Diversos Autores. Os enganos do cristianismo pagão. São Paulo: Editora Exodus, 1997 (Coleção Descubra Agora), p.24.

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Elaborar o sofrimento não significa alcançar

integralmente suas causas, mas admitir e, mais do que isso,

buscar a própria humanidade, pois é nela que se revelam a

graça e a presença de Deus na vida do orante.

O sofrimento não é vencido quando negado, nem mesmo

terminado, mas quando assumido no interior do ser humano e

processado em oração diante de Deus. Isso porque transformar o

sofrimento em discurso sálmico é exercer controle sobre ele, é

manter a sanidade, é permanecer humano, abrindo perspectivas e

alternativas para superá-lo, mesmo que isso signifique ter de

conviver com ele.

Esse processo de transformar o sofrimento em

linguagem é, em si mesmo, doloroso, pois implica em ir fundo

às questões que instigam a mente e o coração. Questões que às

vezes não foram ainda formuladas. O Sl 88 reflete bem essa dor

da elaboração do sofrimento quando indaga: “Por que, Javé, me

rejeitas?” Ao olhar para si mesmo, o salmista encara um ser

abandonado e sozinho. Dentro de sua solidão é que deve encarar

sua doença e suplantar o sofrimento por ela gerado.

Essa elaboração, em forma de oração, era feita no

ambiente cúltico. Lugar mais propício para olhar para dentro

de si mesmo não há. É o lugar no qual se crê que a revelação

de Deus se dá em amplitude maior. Não é possível um culto a

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Deus no sofrimento humano

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Deus que negue a dimensão humana das pessoas. Se não se puder

expressar a dor diante de Deus no culto, onde mais será

possível?

O sentido da liturgia era formular pessoas

em suas angústias, em suas dores e

alegrias. Poder-se-á novamente falar em

culto divino nas igrejas, quando nelas a um

operário, a um aprendiz, a um doente se

ensejasse formular sua dor. Com isso, se

evidenciaria que as limitações de linguagem

das camadas mais humildes a “códigos

restritos” (Bernstein) não diminui sua

capacidade de expressão. Antes pelo

contrário, tal capacidade não depende de

código elaborado (...)73

3.2. As imagens de Deus ante o sofrimento

Elaborar o sofrimento em categorias de linguagem —

mesmo com limitações — é também reelaborar a própria fé que,

em meio à dor, busca formas de se expressar. Isso implica,

necessariamente, a reformulação das imagens de Deus que

permeia o imaginário das pessoas e determina suas formas de

encarar situações particularmente difíceis.

A Teologia da Prosperidade prega um Deus onipotente,

73 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.81

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Deus no sofrimento humano

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poderoso, que dá aos seus filhos e filhas tudo o que eles

desejam. Mas, ao mesmo tempo, um Deus contraditório e tirano,

que deixa sobre as pessoas o fardo de uma dor causada por

maldições que elas, às vezes, até desconhecem.

Esse não é um pensamento novo, na verdade. Jesus o

enfrenta e o rejeita claramente no episódio joanino do jovem

cego. “Quem pecou?” é a pergunta que se apresenta ante o

sofrimento. O julgamento precede a misericórdia, elimina a

compaixão. Se a culpa do sofrimento reside sobre o sofredor,

ninguém precisa se sentir envolvido, responsável para ajudar.

A dor deve ser levada pelo que sofre, tão somente.

Mas a linguagem do sofrimento apresentada pelo Sl 88

pede solidariedade, compaixão. O salmista está sozinho. A

solidão é um fator a mais para agudizar sua miséria. Amigos,

parentes e companheiros se foram e, com eles, a imagem e a

semelhança de Deus se distanciou.

Falar de sofrimento e de Deus ao mesmo tempo,

portanto, requer uma revisão do conceito de Deus. Não se pode

esperar encontrar Deus no sofrimento se Ele não é solidário,

mas apenas julgador e “justiceiro”.

Uma questão que se impõe é abandonar o conceito de

onipotência em benefício do conceito de solidariedade. Pois se

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Deus no sofrimento humano

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Javé, mesmo tendo todo o poder, mantém-se inerte diante do

orante que suplica fervorosamente por livramento, então ou sua

onipotência é falha ou ele é tirano. Para ser fiel à fé, a

pessoa não pode aceitar nenhuma dessas posições. Portanto,

resta rejeitar o conceito de onipotência, pelo menos da

maneira como este se formula, pois nega o poder de Deus que se

baseia no amor.

Mas é consistente para a fé israelita o conceito de

um Deus solidário. Os salmos mesmo são pródigos nesse pensar.

Ele é o Deus perdoador (Sl 103,3a), o Deus que tem piedade dos

oprimidos (Sl 102,13), o que afofa a cama do doente e o

sustenta na enfermidade (Sl 41,3), o que manifesta a sua

misericórdia (Sl 57,3c).

A renovação ou modificação nas imagens negativas de

Deus que as pessoas criam em sua existência é fundamental para

a compreensão das situações de sofrimento e a sua superação.

Isso porque a superação pode não consistir na eliminação do

sofrimento, mas — e principalmente — no domínio sobre ele,

para a manutenção da dignidade. Nesse sentido, a forma pela

qual as pessoas se aproximam de Deus é determinante.

Dependendo de quem participa do

interlóquio, de quem, portanto é, no

sentido cristão, o ‘Deus’ da pessoa que

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Deus no sofrimento humano

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ora, o resultado (a mudança operada na

pessoa que ora e no seu mundo), configurar-

se-á desta ou daquela forma).74

3.3. Falar com Deus: a oração como caminho para superação do

sofrimento

O Sl 88 mostra como a elaboração do sofrimento em uma

linguagem organiza o mundo interno do orante e prepara-o para

superar a dor. Após apresentar sua situação e suas queixas, o

salmista pode raciocinar sobre a condição dos vivos e dos

mortos (v.11-13) e perceber que ainda está vivo, justificando

assim sua súplica a Deus (v.14).

Ele dá início ao diálogo que retoma a dignidade

humana, que renova as forças para sair da situação de apatia

ante o sofrimento. Outros salmos também apresentam o dilema do

silêncio e a opção da fala como caminho para a superação (Sl

32, 3-5; 39, 2-4; 55,17 [destaque nesse último exemplo para o

campo semântico do tempo]).

A saída de uma situação de silêncio para uma oração

de lamento estruturante é um passo fundamental para quem

deseja encontrar uma expressão real de Deus em meio ao

sofrimento sem razão.

74 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.87.

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Orar é um ato totalizante, em que o homem transcende

o Deus mudo de uma realidade sofrida de forma apática, e se

dirige ao Deus dialogante de uma realidade percebida de forma

patética na dor e na alegria.75

Para os dias atuais, a oração tem sido ora relegada a

um segundo plano, ora transformada em talismã, capaz de

reverter situações de crise, produzindo bem-estar

(especialmente financeiro) e paz interior (geralmente

relacionada à vida bem sucedida).

Contudo, o que os salmos de lamentação, em especial o

Sl 88, fazem é demonstrar que a oração é um meio tanto de

comunicação com Deus quanto consigo mesmo e, por essa razão,

proporcionadora de mudanças de perspectiva e direção na

existência humana.

Ao abrir o coração diante de Deus, face às situações

que magoam, ferem e angustiam, a sensação que advém é de

alívio, paz e renovação para caminhar (Sl 32,5-7). Lamentar é,

pois, superar a barreira primeira da impotência e ver novas

possibilidades de posicionamento ante à realidade da vida.

À luz do estudo do Sl 88, pode-se afirmar, então, que

se faz necessário um resgate da lamentação como forma cúltica

75 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.87.

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nos dias atuais, em oposição ao ufanismo que reprime ou anula

os sentimentos contraditórios presentes em toda a espécie

humana, em qualquer tempo e lugar.

Não uma lamentação sem propósito, que se configure

como o “murmurar” muitas vezes condenado na história de Israel

durante o êxodo. Mas o lamento que é a elaboração da dor e do

sofrimento em uma linguagem criativa, que organiza o caos

interior e reestrutura o mundo de sentidos das pessoas,

possibilitando um encontro com o Deus que fala, age e

participa do sofrimento humano, mesmo que de formas

inesperadas.

Pode não ser uma fé tão glamorosa quanto as propostas

da Teologia da Prosperidade. Pode não oferecer respostas

fáceis ou rápidas. Mas é uma fé humana, honesta, que se depara

com um Deus que convive, que é solidário, que se manifesta

também no cuidado e na fraternidade entre as pessoas.

E por isso mesmo, é uma fé comunitária,

transformadora, radical: a fé em um Deus que, mesmo não

fazendo maravilhas, está maravilhosamente perto. Fé em um Deus

que não condena, mas acolhe. Que se nega a aceitar a

“maldição”, a “repugnância”, mas se aproxima, que está ao

lado. Essa descoberta sobre o Sl 88, em sua necessidade

imperiosa de manter relacionamentos, de se expressar para

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superar a dor, é de suma importância para a reflexão e a

prática cristãs atuais frente a situações semelhantes. Superar

o sofrimento significa estabelecer relacionamentos, diálogo,

aproximação.

(...) a causa natural [do sofrimento] não

tem praticamente nenhuma relevância quando

comparada com a social. Também a superação

dos sofrimentos naturais e irreversíveis

decididamente depende desta última. Assim

sendo, todos os sofrimentos estariam a

depender das situações interpessoais,

criadas por pessoas e a parte

correspondente ao sofrimento puramente

natural ficaria reduzida ao mínimo.

Admitindo-se que todo sofrimento no fundo é

um sofrimento social, chega-se à conclusão

de que qualquer sofrimento pode ser

trabalhado com vistas a mudanças. Assim

sendo, sofrimento algum poderá ser

mascarado sob a aparência de uma

fatalidade.76

A linguagem da lamentação é, dessa forma, uma maneira

de transformar o sofrimento do indivíduo em algo a ser

compartilhado por sua comunidade de fé e por ela assumido como

seu. Por meio da linguagem, a dor é solidarizada e, portanto,

mais facilmente suportável. O anseio dos sofredores, que não

76 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.114.

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Deus no sofrimento humano

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vêem alternativas de mudanças, é, mais do que “vencer a

situação invencível”, não ficar sozinho nessa luta. A oração

é, assim, uma busca de um Deus solidário, refletido em

“amigos, parentes e conhecidos” solidários.

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Conclusão: Lamentar é viver

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Conclusão: Lamentar é viver

A maior parte dos salmos encontrados no Saltério é

composta por lamentações. Inclusive, há um livro inteiro no

Antigo Testamento com esse nome, pontuado por lágrimas, dor,

sofrimento e saudade. Os profetas lamentaram a dureza tanto de

seu ofício quanto do coração de seus ouvintes. Jesus lamentou

a resistência de Jerusalém a seu amor, lamentou a solidão no

Getsêmani.

Parece um paradoxo, especialmente para os que pregam

vitórias sem fim, o fato de que “a única regra de fé e

prática” dos cristãos, especialmente os protestantes, dedique

tanto de seu espaço à queixa sobre as vicissitudes da vida. A

Bíblia é um livro de lamentações surgidas da história de um

povo com seu Deus e seus conflitos. Mas é maravilhoso perceber

que o lamentar bíblico não se constitui num queixume sem

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Conclusão: Lamentar é viver

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motivos ou sem direção.

Os salmos de lamentação dão conta de um universo de

conflitos, revelando muitas faces dos sofredores e de Deus.

Nessa multiplicidade de experiências de sofrimento, encontra-

se uma riqueza incomparável de encontros e confrontos com

Deus, com a própria vida e com o relacionamento social.

Pode-se lamentar sobre todo e qualquer tema que

aflija as pessoas, demonstra o Saltério. É possível uma

identificação com os orantes de todos os tempos, por meio de

orações que indicam as situações conflitivas, sem restringi-

las ou individualizá-las por demais. O sofrimento é um elo

unificador no Saltério através dos séculos.

O estudo do Sl 88 demonstrou que o lamento possui uma

dimensão organizadora e restituidora da dignidade às pessoas

que sofrem. À medida em que lamenta, o orante estabelece

contato consigo mesmo, com Deus e com as pessoas que o

abandonam em seu estado de dor.

Apresenta-se esse indivíduo como alguém que está fora

da esfera da convivência humana: parentes, amigos e conhecidos

o abandonaram, isto é, todo o círculo possível de relações

sociais foi cortado. Morar em uma casa, como um ser humano,

parece também não ser possível, o que o faz permanecer em

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lugares escuros, tendo as trevas por companhia (Sl 88, 7.19).

Ele se sente inválido, aprisionado pela morte, esquecido de

todos (v.5-6). Do limiar da morte, lança um grito de socorro

a Deus, pedindo para ser ouvido. Se a morte significa, no

Antigo Testamento, a ausência de relacionamento com Deus, o

salmista luta para manter um mínimo vínculo, por meio da

oração de lamento. Através da oração, estabelece-se um contato

com Deus e com a comunidade de fé.

Esse contato se dá por meio da elaboração do

sofrimento, em três aspectos: o primeiro é o contato consigo

mesmo, através do rompimento do silêncio e do estabelecimento

de uma linguagem organizadora do interior.

A oração é, primeiramente, uma fala consigo mesmo. O

salmista anuncia-se primeiramente como alguém dominado pelo

poder da morte. Mas à medida que expõe sua queixa, descobre-se

vivo e em condições de pleitear com Deus as suas maravilhas e

justiça.

O segundo aspecto da elaboração do sofrimento é

horizontal, do salmista para a sua comunidade de fé. Segundo

demonstrado na exegese, o orante, pela condição em que se

encontra, necessita da intervenção de um sacerdote ou “homem

de Deus” para adentrar ao ambiente cúltico, que lhe é vetado

por força de uma doença que o faz “repugnante”. Essa

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Conclusão: Lamentar é viver

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intervenção pode ter ainda se dado por meio de pessoas

compadecidas, que intercediam a favor do doente, considerado

impuro e, portanto, com o acesso vetado aos locais de culto. É

o restabelecimento da dignidade humana, que se dá por meio da

recuperação dos laços de convívio social. E mesmo quando a

queixa se dá no ambiente da casa, existem compadecidos que se

unem em torno do doente, que não o abandonam como os demais.

O terceiro aspecto da elaboração do sofrimento se dá

por uma aproximação nova de Deus. O salmista declara sua

solidão, acusa Javé de afastá-lo de todos. Dirige-se a Ele em

busca de ser ouvido, isto é, procura um Deus que se solidarize

com ele em sua dor. Isso é manifesto também na pergunta: “Por

que me rejeitas?”, bem como nos pedidos ao longo do texto

(v.2-3.14-15).

O salmista exige proximidade, contato com Deus. É a

expectativa do contato, que garanta o relacionamento, a

esperança expressa na oração. Se houver contato com Deus, a

vida é redignificada, redescoberta.

Relacionamento é vida, a qual é estabelecida por meio

da linguagem, que transforma a dor do sofrimento em força para

a lamentação. Enquanto puder falar e ser ouvido por Javé, o

salmista estará na esfera da vida.

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Conclusão: Lamentar é viver

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A grande descoberta proporcionada pela exegese e

pelas pistas propostas para a superação do sofrimento por meio

da lamentação é a organização do mundo interior das pessoas

por meio da fala que estabelece contato. Quando o sofrimento é

compartilhado, diminui seu poder de dominação sobre o sofredor

e abrem-se oportunidades de mudanças.

Contra as teologias que querem negar ou minimizar os

danos ocasionados pelo sofrimento, o Sl 88 demonstra a força

libertadora da lamentação que encara a angústia e a dor em

nome do convívio. Negar-se a expor o sofrimento, silenciar

sobre ele ou ignorá-lo estoicamente é perder a oportunidade de

uma redescoberta da convivência com Deus e com o próximo, por

meio da solidariedade.

Superar o sofrimento, portanto, não é eliminá-lo

sumariamente. Até porque às vezes isso é realmente impossível.

Também não é aceitá-lo com resignação apática. Mas é

transformá-lo, domá-lo por meio da linguagem sálmica que vence

a apatia e a solidão, submetê-lo à força da vontade humana de

viver e descobrir um Deus que se faz solidário, fraterno e

irmão.

Que pessoas possam sofrer e ser

inconsoláveis é aqui admitido. Deveríamos

banir do nosso viver o sonho de haver

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Conclusão: Lamentar é viver

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alguém que não necessite de consolo. (...)

Está em nós alterar as condições sociais

determinantes de sofrimento humano.

Possuímos o poder de mudar e de aprender no

sofrimento, em vez de nos tornarmos piores

(...) Há mutilações e vulnerações que são

irreversíveis. A única maneira de

ultrapassar tais limites é compartilhar a

dor dos que sofrem, não abandoná-los à

própria sorte e fazer com que o seu clamor

encontre eco.77

Essa verdade já estava implícita no trabalho dos

compiladores do saltério, que preservaram o Sl 88, em toda a

dureza e solidão com que se nos apresenta à primeira vista.

Guardaram uma das mais altas expressões de dor, a fim de que

pudesse ser instrumento de consolação aos orantes que haveriam

de vir.

Essa memória do Sl 88 permite concluir, como também

todos os demais salmos de lamentação, que queixar-se diante de

Deus não significa falta de fé. Pelo contrário, lamenta aquele

que crê no Deus que ouve, aproxima-se e se mostra companheiro,

acolhedor, libertador.

77 SÖLLE, Dorothee. Sofrimento, p.183.

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