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EDITORIAL

EDUCAÇÃO: PRIORIDADE NACIONAL?A problemática da universidade 25 anos após a ‘crise da dívida’Roberto Leher

A educação entre o valor e a mercadoriaCláudio Gurgel

Financiamento da educação pública: elementos para reflexãoCláudio Antônio Tonegutti

Os gastos sociais e a política econômicaCarlos Lima

A crise da acumulação de capital e o papel social da universidade brasileiraMarina Barbosa Pinto

A reforma da universidade brasileira: novos discursos, velhas propostasMaria das Graças M. Ribeiro

Educação a distância ou à distância da Educação?Kátia Lima

Ensino a distância: equívocos, legislação e defesa da formação presencialBeatriz Alexandrina de Moura Fétizon e César Augusto Minto

Formação docente e educação a distância no Brasil: democratização oumercantilização?Céres Maria Ramires Torres e Tânia Maria Batista de Lima

As políticas de Educação no Governo Lula: cenários e perspectivasLisete Arelaro

Educação científica e desperdício de talentosRogério F. Guerra

Políticas que impedem o que exigem: dimensões controvertidas naavaliação da pós-graduacãoAna Maria Netto Machado

POEMAMario Benedetti

MEMÓRIA DOCENTEMarina Barbosa Pinto

RESENHAPor que a democracia encontra-se ameaçada no interior da Universidade?Marli Auras

Gadjkaglkdq

igieuSumário

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 5

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 9

ACrise da Dívida de 1982 segue sendo um dosmais importantes marcadores temporais dapolítica na América Latina. A partir dos dra-

máticos acontecimentos dos anos subseqüentesaconteceram transformações em todas as esferase dimensões. No que se refere às políticas sociais,os anseios universalistas pela educação, ciência etecnologia, contidos na agenda de Bandung e nareflexão cepalina dos anos 1960-1980, foramcorroídos, tornando-se, hoje, uma referêncialongínqua, perdida entre tantas páginas escritascom as tintas das lutas.

A América Latina foi reposicionada na econo-mia-mundo de modo que o modelo europeu deuniversidade – pública, gratuita e referenciada noprincípio da indissociabilidade entre o ensino e apesquisa – deixou de ser um objetivo, converten-do-se, antes, em um obstáculo à modernização daeducação superior. Nos termos do cânone vigen-te, a universidade deixou de ser congruente com

o tempo histórico transformado por uma supostarevolução científico-tecnológica, impulsionadorada “globalização”, por estar enredada em umatrama de corporativismo e burocracia caracterís-ticos das instituições estatais. A alternativa, nessesistema de pensamento, é diluir seus vínculoscom o Estado, objetivando maior abertura à so-ciedade (ou, conforme Bourdieu, ao mercado).

O Nobel de economia, Gary Becker, um dosmais destacados representantes da direita da Es-cola de Chicago, chegou a afirmar que os gover-nos que mantêm a gratuidade do ensino superiorsubsidiam as pessoas erradas (as elites) e as prio-ridades equivocadas, dada a irrelevância das ativi-dades acadêmicas latino-americanas: o melhorseria focalizar o ensino fundamental, nos termosdifundidos pelo Banco Mundial.

Com a Crise da Dívida de 1982, o posicio-namento dos organismos internacionais não eraapenas mais uma opinião sobre a natureza da cri-

A problemática da universidade25 anos após a ‘crise da dívida’

Roberto Leher

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE10 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

se. A renegociação da dívida foi convertida emum complexo processo que redefiniu a força re-lativa das frações de classes no bloco de poderdos países latino-americanos, em favor das fra-ções locais mais internacionalizadas (BASUAL-DO, 2002), fortalecendo os setores pró-imperia-listas (financeiro, agronegócio, commodities). As-sim, as condicionalidades desses organismos (Ban-co Mundial e FMI) não foram apenas uma imposi-ção de fora para dentro, mas medidas que, paradeterminadas frações, seriam extremamente benéfi-cas e lucrativas.

Com efeito, o ajuste estrutural delineado peloFMI e pelo Banco Mundial e, mais tarde, peloPlano Brady – que converteu ostítulos da dívida, que outrora ex-pressavam um acordo do Estadocom um banco determinado, emtítulos ao portador, livre para per-correr o circuito do capital porta-dor de juros – exigiu, simultanea-mente: a) uma busca incessante dedivisas provenientes de exporta-ções – conforme o Banco Mun-dial, os nichos de mercado maispromissores são o agronegócio e amanufatura de produtos extraídosda natureza (commodities); b) acentuados cortesnos gastos públicos por meio de privatizações eda redução dos gastos sociais, almejando eleva-dos superávits primários; c) reformas do Estado;d) liberalização do fluxo de mercadorias e capi-tais; e) controle inflacionário por meio de juroselevados; f) desregulamentação dos direitos tra-balhistas, em suma, a agenda que, em 1989, pas-sou a ser conhecida como Consenso de Washin-gton. Essas medidas repercutiram intensamentena universidade pública, produzindo efeitos tec-tônicos nos espaços públicos de produção de co-nhecimento e na definição, mesma, de problemá-tica científica (DELGADO, 2006).

Para se adequar ao macroajuste estrutural,grande parte dos países da região fez reformasconstitucionais modificando o direito à educação,como a Argentina, o Brasil, o Chile e o México.No caso do México, a alteração do Artigo 3º da

Constituição (1993) e a nova lei educativa (1994)redefiniram o direito à educação e o dever do Es-tado em assegurá-la a todos em favor de uma no-va conceituação que permite que a educação sejaconcebida como um serviço a ser negociado nomercado. No Brasil, a concepção de que a educa-ção é um serviço está expressa no Plano Diretorda Reforma do Estado, iniciado no governo Car-doso (1996) e aprofundado na lei de parcerias pú-blico-privadas (governo de Lula da Silva), quepreconiza a maior eficácia do setor privado fren-te ao público, no atendimento educacional dossegmentos populares. A ausência de gratuidadena pós-graduação stricto sensu e a banalização dos

docentes ad-honorem (sem remu-neração) das universidades públi-cas argentinas são expressões des-se movimento.

As universidades brasileiras e la-tino-americanas foram “alteradas”(MOLLIS, 2003) em todas as suasdimensões: da docência à pesquisa,do financiamento à avaliação, doscurrículos à carreira acadêmica, mo-vendo as fronteiras entre o público eo privado, no que se refere tanto àoferta da educação quanto ao coti-

diano mesmo das instituições: o espaço público emque os problemas nacionais podem ser discutidosfoi invadido pela esfera privada, restringindo o pú-blico a poucos nichos, muitos deles de elevada qua-lidade acadêmica e articulados regionalmente pormeio do Conselho Latino-Americano de CiênciasSociais (Clacso) e outras iniciativas afins.

Muitas dessas características privatizantes emercantis já existiam in nuce antes da Crise daDívida, no período “desenvolvimentista”. Se, deum lado, a modernização conservadora, contra-ditoriamente, impulsionou a pesquisa universi-tária e difundiu a pós-graduação vinculada à pes-quisa, de outro, por suas características, as dita-duras empresarial-militares buscaram subordinaras universidades ao padrão de acumulação vigen-te, suprimindo a autonomia e a liberdade de pro-dução do conhecimento, por meio da censura,das cassações e mesmo de assassinatos.

As ditadurasempresarial-militares

buscaram subordinar asuniversidades ao padrãode acumulação vigente,suprimindo a autonomia

e a liberdade de pro-dução do conhecimento.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 11

Educação: prioridade nacional?

Em um contexto ainda pouco estudado, a pós-graduação brasileira (mas também de outros paí-ses da região) foi instaurada. Certamente, o seusurgimento não teria sido possível sem o aparatode fomento científico e tecnológico que estavainscrito no projeto da ditadura empresarial-mi-litar (e, portanto, a violência a ela associada): nãohavia lugar para dúvidas de que o apoio governa-mental à Ciência e Tecnologia nada tinha deemancipatório. Entretanto, examinando retros-pectivamente o período, é possível constatar queparte das verbas para a pesquisa básica não foi ex-clusivamente atrelada ao mercado e que a preo-cupação tecnológica em áreas sensíveis comoenergia, telecomunicações, enge-nharias, saúde, agricultura e pecuá-ria fazia parte do esforço de quali-ficação de empresas estatais, decentros de pesquisas públicos e deempresas que desenvolviam etapasde cadeias produtivas com certograu de complexidade. Foram nes-ses interstícios que uma ciência etecnologia de qualidade e não di-retamente operacional ao modeloem curso foram produzidas, im-pulsionando uma pós-graduaçãoque nasce tensionada por essas contradições.

A erosão da autonomia universitária foi ace-lerada por uma série de medidas, tais como: a) oatrelamento das verbas de pesquisa às demandasdo capital (mesmo que na forma de empresas es-tatais, que pouco tinham de públicas); b) a dispo-nibilização dos recursos para pesquisa por meiode órgãos de fomento constituídos, em parte, poracadêmicos que viam na ação desses órgãos umamissão modernizadora frente ao suposto arcaís-mo das universidades públicas; c) a adoção cres-cente do modelo estadunidense de educação su-perior e d) o estabelecimento de um modelo detrabalho acadêmico e de um certo padrão de pro-blemática científica, em virtude do financiamentoda pesquisa por agências estrangeiras, como aRockefeller. É possível concluir, por conseguinte,que a mercantilização atual e o ethos do “capita-lismo acadêmico periférico” não são um raio em

céu azul: suas raízes mais axiais se nutriram damodernização conservadora.

Mas o maior contraste entre o desenvolvimen-tismo e o atual padrão de acumulação por despos-sessão (HARVEY, 2005) advém do lugar, presumi-do pelo bloco de poder dominante, que a AméricaLatina deve ocupar na economia-mundo. Outrora,como sublinhado, o processo de industrialização ea constituição de empresas estatais demandarampessoal com elevada qualificação. A solução de de-terminados problemas tecnológicos como, porexemplo, a prospecção de petróleo em águas pro-fundas, a agricultura de alimentos básicos em am-bientes adversos e o lançamento de satélites, con-

feria às universidades alguma rele-vância nos projetos então em curso.Nos dias de hoje, a reprimarização(ARCEO & BASUALDO, 2006) ea difusão de indústrias maquila-doras tornam, ao contrário do sen-so comum, até mesmo a tecnologiae a inovação tecnológica poucorelevantes, confirmando o precisodiagnóstico de Florestan Fernandesde que o agravamento da condiçãocapitalista dependente aumentariaainda mais a heteronomia cultural.

Reconhecer a profundidade das transforma-ções significa admitir que as mudanças operadasnas universidades não somente abarcaram todosos domínios, como foram ações com um deter-minado vetor: o abandono da preocupação comos problemas nacionais, redefinindo a pesquisa, oensino e as próprias formas de investigação pormeio da difusão do “mito do método”, tão caro àtradição neopositivista. Inevitavelmente, essa no-va dinâmica imprimiu marcas nas relações deprestígio e de poder e, por conseguinte, na relaçãode forças no interior das instituições. Essas trans-formações expressam também novas formas de re-lação da universidade pública com o Estado e como mercado para as quais a avaliação “científica” de-sempenha um papel decisivo (ABOITES, 2003).

Sob a hegemonia neoliberal, a questão do aces-so à educação superior se tornou ainda mais dra-mática do que a vivida em 1968, tendo em vista o

A mercantilização atual e o ethos do

“capitalismo acadêmicoperiférico” não são umraio em céu azul: suas

raízes mais axiais se nutriram da modernização conservadora.

aumento vertiginoso das matrículas no ensinomédio em diversos países da região e a estagna-ção da expansão pública. Contudo, as atuais lutasda juventude não assumem contornos políticostão radicais como no final dos anos 1960, a des-peito da retomada da mobilização da juventudeem países como o Chile. A absorção de jovensdas classes médias pelas instituições privadas e osprogramas de bolsas (também nas privadas) paraos segmentos mais desfavorecidos explicam par-cialmente essa desmobilização.

A (falsa) solução ao problema do acesso quevem sendo difundida, por meio de um sutil jogode palavras que esconde o apagamento da oposi-ção moderna entre o público e o privado, é a am-pliação dos subsídios públicos para as institui-ções privadas. Em síntese, a argumentação parteda premissa de que a educação é um bem público,definido como tudo aquilo que atende ao inte-resse social, não importando a natureza públicaou privada da instituição. E o interesse social éaferido por meio de dispositivos científicos deavaliação padronizada. Nesse sentido, toda ins-tituição que atende a um certo padrão de avalia-ção atende ao interesse social e, portanto, prestaum serviço público e faz jus às verbas públicas.Com a difusão dessas parcerias público-privadas,novas concessões de recursos públicos – via-de-regra por isenções tributárias, mesmo para as em-presas com fins lucrativos – ampliaram o suportedos governos ao empresariamentoda educação superior, banalizandoa idéia de que, como não há comoexpandir de modo significativo asuniversidades públicas, a “demo-cratização” deve se dar pela aqui-sição de vagas nas instituições pri-vadas, mesmo que estas sejam, emgeral, de qualidade muito inferior.Esses programas estão direciona-dos aos pobres que, na ótica vi-gente, não necessitam de uma for-mação acadêmica, mas sim de umtipo de formação centrada na prá-tica. Com essas parcerias, os em-presários não necessitam mais se

camuflar na filantropia, podendo atuar direta-mente como empresários de serviços para umaflorescente burguesia. Por isso, o segmento em-presarial é o que mais cresce na educação privadalatino-americana.

A expansão do setor privado, em toda a AméricaLatina, foi constante a partir da Crise de 1982. Em1985, 46% das instituições eram privadas, em 1995,este percentual alcançou 54% e, em 2002, atingiu65%, equivalendo a cerca de metade das matrículas.O caso brasileiro é ainda mais grave: em 2004, 88%das instituições e 75% das matrículas eram priva-das. É possível observar no gráfico abaixo, o cresci-mento das instituições empresariais (chamadas departiculares no Brasil), muito mais acentuado doque as demais modalidades ditas sem fins lucrati-vos, e denominadas comunitárias, confessionais efilantrópicas. O conjunto de instituições lucrativase não lucrativas compõe o setor privado.

Como as verbas das universida-des públicas estão praticamentecongeladas há uma década, apesardo crescimento do número de ma-trículas e da expansão da pós-gra-duação, um dos critérios mais im-portantes de excelência acadêmicapassou a ser a capacidade empre-endedora do professor, aferida pe-la habilidade de buscar recursosseja onde for. Como essa captaçãoé necessariamente particularista ede escassa relevância acadêmica, acontradição com o caráter públicodas instituições universitárias do

12 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação: prioridade nacional?

A (falsa) solução aoproblema do acesso quevem sendo difundida,

por meio de um jogo depalavras que esconde o

apagamento da oposiçãomoderna entre o público

e o privado, é a ampliação dos subsídios

públicos para as instituições privadas.

Fonte: INEP/MEC

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 13

sistema oficial torna-se cada vez mais aguda einconciliável. Na ótica das políticas de governo edos capitalistas acadêmicos, o ideal seria modifi-car a natureza jurídica das universidades de mo-do que estas deixassem de ser estatais e se conver-tessem em organizações sociais ditas públicasnão-estatais. Como as resistências e as lutas con-tra a privatização são em geral muito contunden-tes (a exemplo da greve estudantil da Universi-dad Nacional Autónoma de Mexico - Unam, em1999), o próprio Banco Mundial recomenda ouso de caminhos alternativos.

No caso do Brasil, a via foi a proliferação den-tro das universidades públicas de fundações ditasde apoio privadas, verdadeiros enclaves privadosno interior das instituições e que,na prática, têm um funcionamentoimpermeável ao controle socialdos colegiados acadêmicos. Nosúltimos anos, como parte do con-ceito de parceria pública-privada,todo um conjunto de normas foielaborado para institucionalizartais nichos. A medida mais abran-gente e sistêmica que consagra es-se estilo de privatização foi a lei deinovação tecnológica, aprovadaem 2005. Por esta lei, toda ativida-de científica está sendo reconcei-tuada como “inovação” e pensadacomo negócio.

Pari passu a essas mudanças no cotidiano dasuniversidades públicas e a desconcertante expan-são empresarial da educação superior, uma partedo setor privado foi se concentrando na forma deempresas multinacionais, muitas delas com açõesna bolsa de valores. Nos Estados Unidos, 50 em-presas educacionais colocaram no mercado cercade US$ 3 bilhões em ações no período 1996-2000, obtendo uma valorização de 80%. O FirstBoston alocou US$ 1 bilhão para capitalizar ope-rações de abertura do capital de instituições deensino.

Esse boom deve-se ao enorme mercado de “ser-viços educacionais” e ao impulso advindo das vi-tórias do capital na Rodada Uruguai, expressas na

criação da OMC e na definição do Acordo Geralde Comércio de Serviços (AGCS). A liberalizaçãodos serviços educacionais passa a compor a agendados senhores do mundo, não apenas na OMC,mas nos tratados de livre comércio - ALCA,TLCAN, CAFTA, entre outros. Os termos estãoclaros na agenda do G-21: os países periféricosabrem seus mercados para as áreas sensíveis (servi-ços, investimentos, propriedade intelectual e pro-dutos industriais) e os países centrais reduzem asbarreiras alfandegárias, e outras, para ampliar oacesso de produtos do agronegócio e de commodi-ties provenientes dos grandes exportadores dos paí-ses periféricos. Em virtude das complexas contra-partidas de um tratado de livre comércio genérico,

como o ALCA ou o AGCS-OMC,o capital parece preferir atuar pormeio de uma espécie de “guerrilha”de regulamentações nacionais, bila-terais ou plurilaterais.

Uma das estratégias empresari-ais que vem ganhando maior des-taque é a que viabiliza o comérciotransfronteiriço de “serviços edu-cacionais”. Para mencionar umcaso concreto, tomemos como re-ferência o que ocorre no Brasil. Asgrandes empresas educacionais(Laureate, Fenix/Apollo) empre-endem joint ventures com institui-

ções nacionais e o governo editou normas quepermitem que todos os cursos de graduação e depós-graduação stricto sensu possam ser ofertados adistância. No caso da pós-graduação, um projetodo governo admite mestrado e doutorado “profis-sional” que aboliria a necessidade de dissertaçõese de teses. O mesmo projeto permite que as insti-tuições privadas reconheçam esses cursos a distân-cia (e validem o diploma) ofertados por empresasestrangeiras. Assim, por exemplo, o institutoApollo e suas ramificações mundiais podem ven-der cursos a distância que serão reconhecidos poruma empresa brasileira associada (no caso, o insti-tuto Pitágoras). Assim, é possível fazer comérciotransfronteiriço sem a necessidade de regulamen-tar as complexas contrapartidas. A abertura do

Educação: prioridade nacional?

Está em curso um processo de apartheid

educacional quereafirma o padrão

de acumulação, realimentando o

capitalismo dependente e a heteronomia

cultural.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE14 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

mercado, nestes moldes, é unila-teral.

A possibilidade de produção deconhecimento novo torna-se ain-da mais adversa. É possível afir-mar que está em curso um proces-so de apartheid educacional quereafirma o padrão de acumulaçãopor despossessão, realimentando ocapitalismo dependente e a hetero-nomia cultural. Por isso, a questão universitária éum problema político que necessita estar no topoda agenda das lutas emancipatórias da AméricaLatina.

Um desafio do presente é compreender e inte-ragir com as experiências que vêm sendo prota-gonizadas por multitudinários movimentos so-ciais que propugnam a autoformação e autopeda-gogia e que, nesse processo, reivindicam trans-formações na universidade pública.

A renovada preocupação com a formação ecom a produção de conhecimento novo decor-rem de necessidades objetivas das lutas. Comosustentou Perry Anderson (2003), é preciso pro-duzir idéias que orientem e possibilitem a açãopolítica para promover a ruptura com o neolibe-ralismo. Paulo Freire e, mais recentemente, pro-tagonistas como os povos indígenas e os campo-neses zapatistas “(...) perguntando, caminhamos(...)”, a Confederação das Nações Indígenas do

Equador (Conaie) e os campone-ses do MST nos ensinaram que oconhecimento emancipatório temde ser práxis emancipatória e li-bertária.

E é nesse sentido que iniciativasextraordinárias vão sendo afirma-das em toda a América Latina. OMST criou o germe da primeirauniversidade popular do Brasil, a

Escola Nacional Florestan Fernandes, que arti-cula diversos cursos de formação política e degraduação com várias universidades públicasbrasileiras, permitindo que camponeses e aliadostomem em suas mãos a educação (o MST interagecom cerca de 1,5 mil escolas em seus assentamen-tos e acampamentos). No Equador, os povos in-dígenas criaram a Universidade Intercultural dosPovos e Nacionalidades Indígenas que dialogacom as quase três mil escolas dirigidas por índios;os zapatistas criaram as juntas do bom governoque igualmente permitem a autoformação emdiálogo com saberes universitários; Cuba estáempenhada na universalização da educação su-perior para todo o povo, por meio de sua muni-cipalização.

Essas experiências podem propiciar condiçõesinteiramente novas para que a universidade pú-blica possa ser recriada e refundada na AméricaLatina.

Educação: prioridade nacional?

É preciso produzir idéias que orientem e possibilitem a ação

política para promover a ruptura com o neoliberalismo.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 15

Educação: prioridade nacional?

REFERÊNCIAS

ABOITES, H. Derecho a la educación o mercancía: laexperiencia de diez años de libre comercio en laeducación mexicana. Ponencia al Foro Libre Comercioy Educación, Coalición Trinacional en Defensa de laEducación Pública. Auditorio Alfonso Caso /Unam,México, DF, 8 y 9 de sept., 2003.

ANDERSON, P. Idéias e ação política na mudança his-tórica. Margem Esquerda - ensaios marxistas. São Paulo:Boitempo, n. 1, maio, 2003.

ARCEO, E. & BASUALDO, E. Los cambios de lossectores dominantes en América Latina bajo el neolibe-ralismo: la problemática propuesta. In: ARCEO, E. &BASUALDO, E. (Comp.). Neoliberalismo y sectoresdominantes: tendencias globales y experiencias naciona-les. Buenos Aires: Clacso, 2006.

BASUALDO, E. M. Concentracion y centralizacion delcapital en la Argentina durante la década del noventa.Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes Ed.,2002.

DELGADO, J. O. Neoliberalismo y capitalismo acadé-mico. Trabalho apresentado na Reunião conjunta dosGTs Universidade e Sociedade e Educação, políticas emovimentos, Antígua, Guatemala, fev. 2006.

HARVEY, D. El ‘nuevo’ imperialismo: acumulaciónpor desposesión. In: PANITCH, L. & LEYS, C.(Comp.). El nuevo desafío imperial. Buenos Aires:Clacso, 2005.

MOLLIS, M. Las universidades en América Latina:¿Reformadas o alteradas? (Presentación). Buenos Aires:Clacso, 2003.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 17

Midas, o rei da Frígia, segundo a tradiçãodos gregos, teria feito um favor a Dioní-sio, filho de Zeus, e em recompensa ga-

nhou o extraordinário poder de transformar emouro tudo em que tocasse. Assim aconteceu eele viu os seus bens mais simples transmudadosem ouro. Mas também o pão, o vinho, as frutas,a água iam se tornando preciosamente imprestá-veis. Logo percebeu que estava diante de umasituação contraditória, em que seu prêmio ia seconvertendo em tortura. Freqüentemente maisgenerosa do que a lenda romana, a lenda gregase encerra contando que Dionísio, apiedado, li-vrou Midas da virtuose/maldição com um ba-nho no rio Pactolo.

A história de Midas sempre nos pareceu umaprofética e simbólica predição do que seria o ca-pitalismo. À medida que vai tocando o seu entor-no vai transformando-o em metal. Com todas asconseqüências conhecidas. Rasga “o véu do sen-timentalismo...”, reduz tudo “a simples relaçõesmonetárias” [...] “despoja de sua auréola todas asatividades até então reputadas veneráveis e enca-

radas com piedoso respeito”, diz Marx, em agu-da observação (MARX, 2004, p. 11).

No caso brasileiro, este processo de metaliza-ção/monetarização da vida se retardou em face de,no contexto do “desenvolvimento desigual e com-binado”, fazermos parte daquilo que é título econteúdo do hoje pouco lembrado livro de JoãoManuel Cardoso de Melo: O capitalismo tardio.

A tese que, nos anos 1970 e 1980, chamou es-pecial atenção, repercutia a conhecida idéia deque a economia capitalista brasileira se retardavadevido a “[...] uma determinada divisão inter-nacional do trabalho que a havia transformadonuma economia reflexa e dependente.” (CAR-DOSO DE MELO, 1982, p. 95).

Esta dependência possuía raízes na formaçãodo capital responsável pela industrialização e ex-pansão da base técnica; ambas as coisas, indus-trialização e expansão da base técnica entendidascomo a essência do desenvolvimento capitalista.

A taxa de poupança, reveladora da capacidadede acumulação de capital, operava em torno de17%. Encontrou na segunda “abertura dos por-tos às nações amigas”, que acelerou a interna-

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igieu

A educacão entre o valor e a mercadoriaCláudio Gurgel

Professor do Departamento de Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE18 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

cionalização da indústria brasileira, e na expor-tação a solução para os investimentos necessá-rios. Esta opção se apresenta de modo transpa-rente na política de industrialização dos anos1950 e particularmente na diretriz da ditaduramilitar, nos anos 1970, traduzida no slogan daépoca Exportar é o que importa. Suplementandoisto e se louvando na enorme liquidez mundial,fruto da concentração de renda do modelo key-nesiano-fordista, deu-se, nos anos 1970, farta to-mada de créditos internacionais, que permitiumuitos investimentos de infra-estrutura, aindaque endividando o país celeremente (FUR-TADO, 1981, p. 52).

O milagre brasileiro como se dizia à época au-mentou a inserção subalterna do Brasil na divi-são internacional do trabalho, mas resolveu par-te da necessidade de capitais para a ampliação dabase técnica e do aumento da capacidade de gera-ção/extração de valor.

Tanto para a recepção de investimentos exter-nos diretos, quanto para o alcance de elevadaprodutividade, os investimentos eram funda-mentais. Neste último caso - a produtividade -estava presente o desafio exportador.

A capacidade técnica (e política, pela repressãode classe da ditadura) para extração de valor éque permitiria a elevação da produtividade e,portanto, a redução dos custos unitários dosbens exportáveis. Ainda que custos baixos não sedestinem exclusivamente à redução dos preços,como observa corretamente Mintzberg (1988),no caso em tela, a produtividade pretendia baixaros preços brasileiros e fazer os produtos nacio-nais competitivos no mercado global.

Esta estratégia de crescimento, que confirmaa tese do desenvolvimento combinado, não ti-rou o país da desigualdade. O preço dos crédi-tos, sob juros móveis e pesadas amortizações,manteve a relação desequilibrada. Mas não era oequilíbrio que se buscava com o desenvolvi-mento da indústria e da base técnica brasileiras.Buscava-se a expansão do capital, no contextodo imperialismo – conceito incômodo nos nos-sos dias, mas tão real quanto a lei da mais-valiae outras categorias a que muitos gostariam de

dar sumiço. Não necessariamente pelo sumiçodo capitalismo. Talvez apenas com um banhono rio Pactolo.

A base técnica do conhecimentoA base técnica necessária ao desenvolvimento

do capitalismo, enfim as forças produtivas, éconstituída por todo o aparato infra-estrutural etecnológico capaz de cumprir com o papel deacolher, aperfeiçoar e intensificar o processo pro-dutivo. Tem, portanto, também a forma humana,dos trabalhadores. As habilidades são parte dasforças produtivas, razão do reducionismo ético,mas revelador, do conceito de recursos humanos.

Por isto, torna-se evidente que ao lado dos in-vestimentos na base físico-material – portos, ae-roportos, silos e armazéns, pontes e estradas,energia e telecomunicações – é necessário inves-tir em recursos humanos. Seja no sentido do au-mento relativo da sua quantidade, seja no sentidoda sua qualificação.

A base tecnológica no conceito de conheci-mento, know-how, passa, em face disto, por umensaio de expansão durante a ditadura, quando seamplia a quantidade de escolas superiores e seabrem as portas a faculdades particulares, antesreduzidas às confessionais.

O discurso do capital humano, oriundo deSchultz, faz eco no Brasil e Carlos Langoni, que vi-ria a ser presidente do Banco Central, expressa esseconceito em livro que atribui à educação um papeldecisivo na distribuição de renda e consolidação docapitalismo brasileiro (LANGONI, 2005).

Mais uma vez o capitalismo tardio, a desigual-dade de desenvolvimento do capitalismo intrana-cional e internacional, exerce seu constrangimen-to. A crise do modelo keynesiano-fordista, acen-tuada pelos dois choques do petróleo, nos anos1970, provoca forte queda nas taxas de cresci-mento dos PIB, exprimindo a queda da taxa delucro das empresas, em particular nos países di-tos centrais (HARVEY, 1994, p. 127, 137, 180;ANDERSON, 1995, p. 15).

Acentua-se a luta de classes em todos os paí-ses, com o avanço dos trabalhadores sobre o es-paço do capital, para quem a década seria uma

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 19

década perdida. Uma versão parcial, apenas. Emalguns países, como a Inglaterra, há perdas paraos patrões e para os trabalhadores, podendo-sedizer que principalmente para estes, cuja derrotana greve dos mineiros, violentamente reprimidapela dama(?) de ferro, Margaret Thatcher, foisem dúvida de negativas conseqüências. Mas emoutros países, como o Brasil, é possível dizer quea década de 1980 foi uma década ganha pelostrabalhadores (anistia, PT, CUT, grandes greves,eleições diretas) e de fato perdida pelo patronato.A parcialidade do anúncio de década perdida, al-cançável por qualquer um que trabalhe com oconceito de luta de classes, revela o quanto foramsignificativas e predominantes as perdas do capi-tal na década de 1980.

Como de hábito, os credores externos vierambuscar os seus créditos para equilibrar suas pró-prias contas. Uma pressão sem limites recai sobreos países dependentes e dominados, que passama viver a situação de ter as suas dívidas adminis-trando o Estado, quando se dizia no Brasil que orabo balançava o cachorro.

Nestas condições, o capitalismo brasileiro éconstrangido a viver um período de vacas magras,para continuar com as metáforas animais.

Seja na dimensão físico-material, seja na di-mensão humana, as forças produtivas se limita-ram. As taxas de crescimento do PIB despenca-ram, os índices de preço se elevaram fortementee, por extensão, a taxa de investimentos voltou acair. Dados do Ipea republicadosem 28 de março de 2004, pelo OGlobo, mostraram que o PIB bra-sileiro caiu, a taxas negativas de -4,3% e –2,9%, respectivamente, em1981 e 1983. A taxa de inflação foi a248,5% em 1985; e a taxa de inves-timentos encolheu de 23,6% em1980, para 18% em 1985.

Esta movimentação cíclica dodesenvolvimento capitalista brasi-leiro faz do Brasil um país cujospotenciais acabaram por se trans-formar em reserva tática para o ca-pitalismo mundial. Um país que

possui vastidão territorial, recursos diversos, umhistórico de relações internacionais que desper-tam receptividade em quase todo o mundo, gran-de população e mercado consumidor, além deoutros aspectos relevantes para o sistema produ-tivo. Mas a exploração de suas riquezas continualenta, já contrariando os interesses do capitalis-mo nacional e internacional. Seus índices con-tinuam aquém do que poderiam ser, seja no pla-no social (Índice de Desenvolvimento Humano -IDH), seja no plano diretamente econômico. Ataxa média de crescimento do Brasil vem sendocontinuamente abaixo da média mundial, no vir-tuoso ciclo que se iniciou nos anos 1990.

Como disse Caetano Veloso, em típica percep-ção artística, “alguma coisa está fora da ordem,fora da nova ordem mundial”. Esta coisa era eainda é o Brasil.

A nova ordem mundial, que para maior obje-tividade podemos dizer a nova ordem liberal,aprofunda o avanço do capital privado sobre asociedade e os ativos públicos. É o desenlace daintensa luta de classes vivida nos anos 1980. Opoder conquistado com a vitória do capital vol-tou-se, inicialmente, como seria necessário, pararecuperar as taxas de lucro das empresas. Afinal,havia necessidade de dinheiro/capital para operarem outras frentes. Mas não é só isto. QuandoFukuyama anuncia o fim da história ou JeremyRifkin sinaliza com o fim do emprego está se di-zendo que a nova ordem quer ser mais que mate-

rial, quer alcançar os valores, asinstituições, a ideologia. Não sóporque são valores, mas porquepodem ser mercadoria. Dizemosque a nova ordem não significa ex-clusivamente privatizar1 os entespúblicos da administração direta,as sociedades de economia mista,as autarquias e fundações, masprivatizar tudo. Significa privatizaras relações de trabalho, a solidarie-dade social e de gerações (seguri-dade), a organização sindical, a éti-ca, a consciência e, claro, o conhe-cimento.

Educação: prioridade nacional?

A movimentação cíclica do

desenvolvimentocapitalista brasileiro faz do Brasil um país

cujos potenciaisacabaram por se transformar em

reserva tática para ocapitalismo mundial.

20 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação: prioridade nacional?

Este é o estágio em que nos encontramos –graças ao aspecto tardio de nosso capitalismo, àextraordinária resistência dos trabalhadores maisconscientes e alguns sindicatos combativos, à lutapela anistia e seus anistiados, à CUT e ao PT da-queles anos e, pasmem, até à ditadura militar. Àditadura militar, devido às contradições provoca-das por aquilo que o PCB chamava de oficialida-de jovem nos anos 1960, reproduzindo uma aná-lise que Prestes fez, com propriedade, inspiradonos anos 1930, referindo-se aos tenentes e capi-tães com potencial revolucionário. Na verdade,tratava-se da oficialidade velha, presente no gol-pe de 1964, e que, herdeira de fato dos anos 1930,defendia pontos de vista nacionalistas e mono-polistas de Estado. A ascensão do grupo de Gei-sel/Figueiredo, por exemplo, foi certamente umbreve interstício no projeto central da ditadura,isto é, a inserção do Brasil no capitalismo mun-dial sob alinhamento norte-americano, motor danova ordem mundial (GASPARI, 2004).

A vitória neoliberal, o uso do poder conquista-do para recuperar as condições materiais de ex-pansão e intervenção mundial, enfim, a nova or-dem mundial, agora pretende avançar sobre o queainda se encontra de fora.

Recuperadas as taxas de crescimento positi-vas, reacumulando na superacumulação, comodiz Arrighi, o capital quer seguir se expandindo.Graças aos setores lucrativos abertos pelas pri-vatizações, que possibilitaram o redireciona-mento dos capitais de papéis para ativos reais, asempresas e os Estados Nacionais dispõem de re-cursos para reinvestir nas forças produtivas,ampliar as bases físicas e tecnológicas e susten-tar o ciclo virtuoso. No que são beneficiadospela facilidade de superexplorar o trabalho, coma supressão de direitos e forte defensiva ideoló-gica, divisão ou cooptação de lideranças sindi-cais e partidárias dos trabalhadores. Este avan-ço, no caso brasileiro, significa tocar as esferaspúblicas restantes com o dedo de Midas: con-verter em ouro/capital os valores necessáriospara promover os ganhos que a potencialidadebrasileira permite.

A educação e, particularmente, a educação

superior cumprem dois papéis nesta promoção deganhos – seja como sujeito da massificação daforça de trabalho qualificada, seja como objeto decompra e venda. É disto que trataremos a seguir.

Os papéis da educação superiorEm artigo publicado na revista Época, em

março de 2006, Paulo Guedes, empresário daeducação, porta-voz adequado para o trato doassunto, pela ótica do capital, comenta que “[...]a divisão internacional do trabalho, resultante daglobalização, requer profissionais e empresas quepossam não só fortalecer o mercado interno, mastambém exibir condições de competitividade in-ternacional”. No mesmo artigo, ele completa suaidéia, movido provavelmente pela hipersensibili-dade do próprio bolso, e diz que “[...] na sociedadedo conhecimento, a educação é o fator crítico dacriação de riquezas [...] No Brasil, o setor educa-cional soma aproximadamente 14% do PIB, maisdo que os setores elétricos, de petróleo e detelecomunicações juntos”.

Guedes é o que se pode chamar um homem doramo. Em um quarto de folha define os objeti-vos: 1. obter quantidades de pessoal qualificadopara extrair valor qualificado a baixo custo; 2. ex-plorar este mercado, porque nele correm mais deUS$ 100 bilhões.

Este fator crítico da criação de riqueza tem naeducação superior a base, por mais paradoxal queseja referir-se ao superior como base. Aflito coma corrida internacional provocada pela China epela Índia, ameaçado pela estrutura educacionaldos países emergentes do leste europeu e atémesmo de países como a Argentina e o Chile, oempresariado brasileiro tem pressa. Não dá paraesperar a melhoria do ensino fundamental e mé-dio para dispor de recursos humanos qualifica-dos, de nível técnico ou superior.

É preciso fazer do ensino superior o celeiro derecursos humanos, tanto para reproduzir um me-lhor padrão de ensino fundamental e médio,quanto para responder ao desafio que Guedeschama de “competitividade internacional”.

A situação do ensino superior brasileiro, noentanto, é lastimável – seja na ótica dos trabalha-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 21

dores e suas lideranças, seja na ótica deste em-presariado que não quer perder o ciclo virtuosoda economia mundial.

Apesar do contínuo crescimento da populaçãomatriculada no ensino superior, os últimos dadosdo Instituto Nacional de Estudos e PesquisasEducacionais Anísio Teixeira (Inep) indicam quenão se avançou muito.

Como se pode observar na tabela 1, de 2000 a2005, o crescimento desta população segue a ta-xas em torno de 10%. Mas o gap é tão grandeque, mesmo assim, a quantidade de estudantesdo ensino superior brasileiro ainda estava abaixodos 4 milhões, recentemente.

2000 2001 2002 2003 2004 2005*

2,694 2,829 3,233 3,572 3,886 4,453

Fonte: INEP/MEC - EDUDATABRAS - 2006

Notas: Os dados do Inep, de per si, variável por variável, somam as

quantidades acima. A somatória das variáveis feita pelo Inep, excetuando

a do ano 2000, não confere com seus próprios dados, informando

números diferentes: 3,030, 3,479, 3,887, 4,163 milhões, de 2001 a 2004,

respectivamente.

* Este dado foi publicado em dezembro de 2006. Mas o Inep não o

disponibilizou na estrutura do Edudata que permita conferir o quanto este

número está correto ou o quanto voltaria a discrepar do próprio Inep,

como acontece aos demais anos citados. Portanto, a comparação entre

2005 e 2004 deve ser feita com os dados 4,163/4,453 milhões de

matrículas, revelando crescimento de 6,98%, abaixo da média dos anos

anteriores.

Considerando os dados do IBGE - Censo De-mográfico de 2000, na faixa etária entre 20 e 24anos, segmento típico da população do ensinosuperior, isto é, 16,141 milhões de habitantes,calculamos o percentual de inserção em 16,6%,naquele ano - percentual semelhante ao divulga-do pela Unesco.

A precariedade das estatísticas brasileiras nãonos permite dispor com precisão de informaçõessobre o que ocorreu em 2006, mas a tendênciaobservada permite estimar que a taxa de inserçãoda juventude brasileira no ensino superior estejaem torno de 27%2. Comparado a alguns países,inclusive da América Latina, o percentual bra-sileiro de jovens no ensino superior é exagerada-mente baixo, conforme revelado pela tabela 2.Há doze anos, segundo o Banco Mundial, paísescomo os EUA e o Reino Unido tinham mais de50% dos seus jovens na universidade (WORLDBANK, 1998). A Argentina tinha 39% e o Chile28%. Portanto, a habilitação da juventude brasi-leira e a circulação de profissionais com formaçãosuperior pelo mercado de trabalho estão aquém,muito aquém dos concorrentes mundiais e até devizinhos do hemisfério. Esta distância não se re-duziu muito nos anos 2000 (UNESCO, 2006).

A movimentação dos números, de 1980 para1995, é reveladora. Segundo os dados do BancoMundial, como se vê abaixo, quase todos os paí-ses ditos centrais duplicam seus percentuais, des-tacando-se o Reino Unido, a Espanha e a França.

Educação: prioridade nacional?

Matriculas na graduação do ensino superior

Brasil 2000-2005 (em milhões)

PAÍSES 1965 1980 1995 2000 2001 2002 2003 2004 Reino Unido 12 19 50 58 59 63 63 60

França 18 25 51 52 53 53 55 56

Argentina 14 22 39 53 58 61 64 ...

Cuba ... ... ... 22 25 27 33 54

Chile 6 12 28 37 ... 41 43 43

Bolívia ... ... ... 36 38 38 41 41

Espanha 6 23 49 58 60 61 64 66

EUA 40 56 61 69 70 81 83 82

Suécia ... ... ... 67 71 76 82 84

BBrraassiill 22 1111 1122 1166 1188 2200 2222 2244**

Matriculados no terceiro grau – 1965/2004 (Em %)

Fontes: 1965/1995: Banco Mundial (Relatório de 2000). 2000/2004: Unesco – Education Statistic-2006, Tabela 14

Notas: * Brasil 2004 é estimativa do autor, com base na Unesco, Inep e IBGE. Faixa etária considerada: 20-24 anos. Estimamos para 2005 que esta taxachegou a 25,6% e para 2006, 27,4%. A Unesco define o acesso ao ensino superior como após 13 anos de estudos e fixa o início destes estudos entre5 e 7 anos. Considerando a faixa de 18 a 24 anos, os percentuais caem bastante. O Brasil em 2006 cairia a 17,6%.

Tabela 1

Tabela 2

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE22 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Refletindo a referida resistência à integração ànova ordem, combinada com o constrangimentoda dívida, o Brasil aumenta a inserção de sua ju-ventude na universidade, no mesmo período, emirrisório 1%. Observe-se, ainda na tabela 2, o sal-to a que nos referimos anteriormente, ocorrido àépoca da ditadura, quando com capital interna-cional (créditos externos e receitas de exporta-ção) se promovia a expansão da base tecnológicabrasileira.

Nestas condições, de baixa inserção da juven-tude no 3º grau, a educação superior não cumpreo papel de massificar o valor a ser extraído a bai-xo custo para tornar competitivos nossos produ-tos no exterior e internamente elevar a taxa demais-valia e de lucro.

Este objetivo é absolutamente necessário à es-tratégia de integração no mercado internacionalde modo sustentado e sem apelo à desvalorizaçãocambial. Para elevar as vendas do Brasil, em con-dições de moeda nacional apreciada, como ma-croeconomicamente é preferível, só a redução decustos e preços pode ser alternativa. Adicional-mente, para elevar a taxa de lucro interna, dadoque os preços relativos internos são mais altosque os externos, reverte-se a produtividade nãopara a redução de preço, mas para a elevação damargem de mais-valia. Seria assimaumentada a massa de lucro, porduas vias, externa e interna. Igual-mente a capacidade de poupança epor extensão a capacidade de in-vestimento.

Mas, se as condições atuais sãoefetivamente ruins para o projetoestratégico do capitalismo brasilei-ro, não o são para o projeto micro-econômico e tático que lhe é asso-ciado. Se o Brasil tem uma baixainserção de jovens na universidade,há, como havia na telefonia móvel,por exemplo, uma fronteira de ne-gócios extraordinária. Em torno de12 milhões de jovens é o tamanhodo mercado do negócio da educaçãosuperior a explorar.

Um negócio que chega a ser maior que a ener-gia, o petróleo e a telecomunicação juntos; hoje,com todas as limitações, calculado em mais deUS$ 100 bilhões; a que cifras chegará se plena-mente explorado?

O projeto O projeto em curso, em parte já executado, em

parte por executar, combina os dois objetivos, demodo sinérgico. Trata-se de um conjunto de medi-das que se entrelaçam em três dimensões:

1. O atrelamento do aparelho educacionalsuperior ao mercado, por meio da:

• Ideologia do mercado como referência,quando se fortalece a idéia de que a educação e aformação superior se destinam ao mercado, em de-satenção ao discurso constitucional, explicitado noartigo 205, para o qual a educação visa a três obje-tivos: o completo desenvolvimento da pessoa, seupreparo para o exercício da cidadania e sua qualifi-cação para o trabalho (BRASIL, 2004a). A ideolo-gia do mercado como referência é o ponto departida para vários reducionismos do discursomercantilista da educação.

• Pesquisa dirigida ao mercado e a empresasespecíficas, cujo papel no financiamento das

Universidades e, claro, na remu-neração de docentes, discentes etécnico-administrativos vemconstruindo uma aliança políticamercenária de ampla repercussão.O caráter livre, independente eplural da pesquisa vem sendo per-dido crescentemente, pelo desin-teresse dos órgãos públicos emface de pesquisas que não sejamnegociadas com empresas, de mo-do a proporcionar receita aos pes-quisadores e subsidiariamente àsunidades acadêmicas. A Lei deInovação Tecnológica, Lei nº10.973/2004, entre os seus artigos22 e 32, incentiva esta tendência,porque promove os contratos en-tre empresas e universidades (ar-

Educação: prioridade nacional?

O caráter livre,independente e plural da

pesquisa vem sendoperdido crescentemente,

pelo desinteresse dosórgãos públicos em facede pesquisas que nãosejam negociadas comempresas, de modo a

proporcionar receita aospesquisadores e

subsidiariamente às unidades acadêmicas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 23

Educação: prioridade nacional?

tigos 23 e 25), como também porque apóia odesvio de recursos públicos para empresas pri-vadas desenvolverem pesquisas, seja com incen-tivos fiscais e preferência de compra (artigos 26 e28), seja com aporte direto de recursos materiais,humanos e financeiros públicos (artigos 22, 25,29 e 31) .

• Ênfase nos aspectos tecnológicos e opera-cionais do conhecimento é o que se observa nasDiretrizes Curriculares que orientam os novosprojetos pedagógicos, frutos da revisão impostapelo MEC às Universidades. Além disto, a ideo-logia do mercado como referência invadiu as dis-cussões curriculares, sob o lema de adequar o en-sino às demandas do mercado, de modo a habili-tar os estudantes à conquista dos melhores postosde trabalho.

2. Mercantilização do ensino superior, pormeio de:

• Ampliação da esfera privada na educaçãosuperior. A expansão das matrículas na Uni-versidade brasileira vem se dando com evidentepredomínio do setor privado, em suas formas deuniversidades confessionais, filantrópicas e pri-vadas, no sentido estrito da palavra. O percentualde participação do setor público, entendendo, as-sim, as universidades, centros universitários e fa-culdades isoladas federais, estaduais e munici-pais, continua em torno de apenas 30% do totalde matrículas-Brasil. Cabe observar que de 2000a 2005 houve queda de mais de seis pontos per-centuais nesta participação pública, que caiu de32,9% para 26,8%. A política de quotas e a re-forma universitária certamente vão acentuar estadiferença, dado que reforçam os cofres privadose aumentam as possibilidades de ampliação físicaou virtual (EaD) das instituições privadas. O ha-bitual constrangimento do orçamento públicopara educação se agrava com a Desvinculação dasReceitas da União (DRU) de R$ 4 bilhões anual-mente, segundo declaração do Ministro da Edu-cação Fernando Haddad, em O Globo, de 15 demarço de 2005. Tudo isto aumenta a desigual-dade da disputa entre o público e o privado. Mas,acima de tudo, há o projeto, com o qual o pró-

prio governo se identifica. Neste sentido, a von-tade política precede e inspira o constrangimentoorçamentário. De 2000 a 2002 foram criados, emmédia, por ano, 1.460 cursos privados e aindatramitavam, no MEC, 4.420 processos de autori-zação de novos cursos superiores particulares,segundo o documento Reforma da Educação Su-perior (BRASIL, 2004b). Vale dizer que nem nosEstados Unidos e muito menos na Europa o graude dominação do privado no terceiro grau chegaao nível do Brasil. Segundo as estatísticas daOCDE, Regards sur l’éducation 2006 – Tableaux(Indicador B3.2b), que trata da presença dos in-vestimentos públicos e privados na educaçãosuperior, nos Estados Unidos 42,8% do terceirograu são mantidos com dinheiro público. Na Eu-ropa, pela mesma fonte, 84,3% são igualmente fi-nanciamentos públicos. Países como França,Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Noruega eFinlândia têm participação pública de 81,9%,87,1%, 72,1%, 76,9%, 89%, 96,7% e 96,4%, res-pectivamente (OCDE, 2006). A OCDE trabalhacom dados de 2003, mas não é de supor que, pormaior avanço do privado sobre a educação, tenhamudado a situação a ponto de se aproximar doBrasil, cujas estatísticas citamos a seguir.

Matr

Matrículas no ensino superior público e privado

aBrasil - Em %

Fonte: INEP/MEC – Sinopses do Ensino Superior – 2006

Obs. No conceito de privado, incluímos as confessionais e filantrópicas,como igualmente faz a OCDE.

• Transferência dos aparelhos educacionaispúblicos para a esfera privada através das Or-ganizações Sociais. O projeto de ocupação doespaço público pela nova ordem privada ganhouimpulso nos anos 1990 e, no Brasil, durante o go-verno FHC – 1995 a 2002. É desta época a cha-mada Reforma do Estado, centrada na transfe-rência do público ao privado pela via da reformado aparelho do Estado, mais precisamente do

Tabela 3

Anos 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Público 32,9 31,0 30,2 29,2 28,8 26,8

Privado 67,1 69,0 69,8 70,8 71,2 73,2

Educação: prioridade nacional?

24 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Poder Executivo. Sob o título de descentraliza-ção, levaram-se a cabo dois movimentos: a priva-tização de empresas públicas e sociedades de eco-nomia mista produtoras de bens e serviços consi-derados atividades de mercado, tais como osbancos estatais, a Vale do Rio Doce, a Compa-nhia Siderúrgica Nacional, e a delegação das em-presas e serviços considerados essencialmentepúblicos, tais como a telefonia, a energia, as pon-tes e estradas. As delegações se verificaram e severificam através das concessões e permissões,quando os contratos deixam de fora a proprie-dade, que se mantém estatal. Não satisfeitos como volume de transferência do público ao privado,por estes meios, o governo criou, através da Leinº 9.637, de 15 de maio de 1998, a figura da Or-ganização Social (OS), através da qual entes esta-tais serão transformados em organizações públi-cas não estatais, segundo seu sempre entusiasma-do motivador, Bresser Pereira. Em artigo na Fo-lha de São Paulo, de 22 de maio de 1995, Pereiraexplica o motivo do seu entusiasmo com a Orga-nização Social: “Toda vez que vou a NY nãodeixo de visitar o Metropolitan Museum e o Mo-dern Art. Sempre me impressiona como aquelesmuseus vibram, como estão sempre cheios. Per-cebe-se que aqueles são museusvoltados para a sociedade, da qualobtêm parte de suas receitas, re-cebendo o valor das entradas, ven-dendo em suas lojas [...] Ao mes-mo tempo em que continuam na-turalmente (sic) a receber signifi-cativas contribuições do Estado eda cidade de NY”. A OrganizaçãoSocial, instituição de direito priva-do, constituída por particulares naforma de uma associação, é o ins-trumento jurídico e administrativopronto e acabado. Uma vez quehaja concordância do Ministérioda Educação (ou correspondenteda saúde, da cultura, da tecnologiaou da assistência social), já é pos-sível, portanto, fazer a passagemda instituição pública para o con-

trole do grupo gestor organizado no Conselhode Administração da OS. Pelo inusitado e pelaspresumíveis resistências dos setores, não há mui-tas OS. Ainda. A Associação Fundação RoquetePinto, a Associação Instituto de Matemática Purae Aplicada, a Associação Laboratório Nacionalde Luz Sincroton são algumas das OS já exis-tentes. Mas o avanço do projeto neoliberal cer-tamente incluirá o desenvolvimento desta formade privatização do público. Vale dizer que em1998 foi feita ao então eleito reitor da Universi-dade Federal Fluminense a proposta de transfor-mação da UFF em Organização Social.3

• Rompimento com o papel público da edu-cação superior oficial. O artigo 206 da Consti-tuição Federal, ao definir os princípios que re-gem a educação pública, refere-se à “gratuidadedo ensino público nos estabelecimentos oficiais”.Este princípio foi abandonado e inúmeras uni-dades das Universidades públicas brasileiras co-bram, na pós-graduação, valores, algumas vezestão elevados quanto as “filantrópicas”. As pós-graduações lato sensu, onde pontificam os cursosde especialização, são quase que totalmente usa-das para remunerar professores e técnicos, algu-

mas vezes envolvendo monitorese bolsistas, sempre com a indul-gência plena de reservar um per-centual para os cofres da Univer-sidade. Além disto, uma parteainda incipiente mas crescente dapós-graduação stricto sensu, osmestrados profissionais, hoje reco-nhecidos em todos os concursospúblicos, inclusive concursos paraa docência superior, são igual-mente cobrados. Este processovai naturalizando a mercantiliza-ção da educação superior e trans-formando os docentes em agentesinternos da privatização, comconseqüências graves no plano daética e da política. Neste processose inserem as chamadas Funda-ções de Apoio, órgãos privados

As pós-graduações latosensu, onde pontificam

os cursos de especialização, são

quase que totalmenteusadas para remunerarprofessores e técnicos,

algumas vezes envolvendo monitores ebolsistas, sempre com a

indulgência plena dereservar um percentual

para os cofres daUniversidade.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 25

que operam inúmeras negociações eprocedimentos mercantis no inte-rior das universidades públicas.Apesar dos processos judiciais emcurso, demonstrando a ilegalidadedestas operações, tudo isso ajusta-seperfeitamente ao projeto de mercan-tilização do ensino superior e o de-senvolve.

• Criação, via ProUni e políticade quotas, de demandas compulsó-rias para as universidades priva-das. O Programa Universidade paraTodos (ProUni), Lei nº 11.096/2005,é viabilizado através das vagas ocio-sas alugadas do setor privado. Segun-do o Inep, 2005 registrou 1.035.671vagas ociosas. A metodologia deusar as vagas ociosas particulares,para aumentar a oferta, tem a pro-priedade de criar demanda compul-sória para o setor privado, em detri-mento do setor público. Amplia-seassim, com dinheiro público, a esfera do particu-lar. A alternativa de aproveitar e criar mais vagaspúblicas, com todas as virtudes de qualidade emenores custos para o setor público, foi delibe-radamente rejeitada. A opção por trabalhar comas vagas das unidades particulares é um passo amais na direção da mercantilização do ensinosuperior. Observe-se que há uma lógica vitoriosanesta opção: existirão nas faculdades privadasdois tipos de estudantes, os ricos que pagam e ospobres que “não pagam”. Esta lógica, repelidapelos mais responsáveis e respeitáveis educado-res, ao se produzir por iniciativa governamental,certamente será proposta, em futuro próximo,igualmente para as universidades públicas. A de-manda compulsória também é elevada pela polí-tica de quotas, que reserva 50% das vagas nasuniversidades públicas para estudantes oriundosdo ensino médio público, dentre eles afro-des-cendentes. Sem discutir o mérito da política dequotas, mas nos atendo à questão do fortaleci-mento da esfera privada, assunto relevante deste

artigo, observamos que esta reservaobriga a que os estudantes abastadose brancos, ou assim considerados,tenham que procurar as universida-des privadas estatisticamente emmaior número, dado que grandeparte deles estará agora disputandonão mais 100% das vagas públicas egratuitas, mas a metade delas.

3. Massificação do ensino superiorpara ampliar o exército de reserva,por meio de:

• Utilização de vagas privadasatravés do ProUni. A política pú-blica da educação superior no Brasiladotou o programa denominadoUniversidade para todos, baseada naocupação das vagas ociosas das fa-culdades privadas. As vagas ociosassão frequentemente de unidades deensino superior cujas avaliações dopróprio MEC são negativas em rela-ção as suas ofertas de ensino, para

usar a linguagem mercadológica do SistemaNacional de Avaliação do Ensino Superior(Sinaes). Esta operação, que vem em detrimentodas possibilidades de ampliação do ensino supe-rior público, cumpre a tarefa de ampliar o núme-ro de futuros formandos, como também fortaleceo mercado combalido com uma taxa recorde deinadimplência em torno de 20%.

• Ensino a distância (EaD). O ensino a dis-tância, que já vem sendo praticado por váriasunidades, ganhará impulso com o projeto de Leida Educação Superior, em tramitação no Con-gresso, que concede o EaD a todas as instituiçõesde ensino superior, facultando a que possam ope-rar em unidade da federação fora de sua sede (ar-tigo 5º do PL nº 7.200/06). Significa dizer que umamplo processo de colonização interna, dos cen-tros de excelência para a periferia, poderá produ-zir graduados, com diplomas nacionalmente re-conhecidos, conforme o parágrafo 4º do referidoartigo 5º. Vale dizer que o Sistema UniversidadeAberta do Brasil, recente criação do MEC, se

A opção portrabalhar com as

vagas das unidadesparticulares é umpasso a mais na

direção damercantilização do

ensino superior.Observe-se que há

uma lógica vitoriosanesta opção: existirão

nas faculdadesprivadas dois tipos deestudantes, os ricos

que pagam e ospobres que “não

pagam”.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE26 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

define como “[...] voltado para o desenvolvi-mento da modalidade de educação a distânciacom a finalidade de expandir e interiorizar aoferta de cursos e programas de educação supe-rior no País.” Significativamente seu primeiroobjetivo é “[...] oferecer, prioritariamente, cursosde licenciatura e de formação inicial e continuadade professores da educação básica” , conforme selê no artigo 1º, do Decreto nº 5.800/2006 (BRA-SIL, 2006). O grifo na palavra interiorizar énosso, apenas para destacar o al-cance da distância que se pretendealcançar.

• Redução dos tempos paragraduação e generalização doscurrículos mínimos. De acordocom o artigo 52 do PL nº7.200/06, Lei de Educação Supe-rior, o qual modifica o artigo 44 daLDB, os cursos terão a possibili-dade de reduzir o tempo para asua conclusão ao limite de trêsanos. Os cursos de educação pro-fissional tecnológica poderão termenos tempo, apenas dois anos. Hoje, várias uni-dades de ensino superior, principalmente priva-das, reduzem seus custos e abreviam a formaçãode seus estudantes pela via da adequação dos seuscurrículos ao mínimo exigido. Diferentementeda orientação anterior do MEC, para quem ocurrículo mínimo devia ser apenas base sobre aqual se estenderia o currículo pleno, toma-se ago-ra, sob inspiração do projeto de massificação, omínimo como modelo bastante à formação.

• Adoção de sistemas de avaliação produti-vistas. Este traço dos sistemas de avaliação doensino superior no Brasil vem se acentuandodesde o início da década de 1990. É parte do con-ceito de educação, para o qual o ensino é um pro-duto, ou melhor, uma mercadoria que deve seroferecida em escala fordista com a flexibilidadepós-fordista. Seja no que diz respeito ao desem-penho docente, seja no que diz respeito ao de-sempenho institucional, as avaliações, as verbas eoutras vantagens tomam como referência asquantidades produzidas. Vários indicadores com

base em número de alunos, alunos concluintes eoutros aspectos quantitativos das atividades dis-centes e docentes são adotados para planejar adistribuição de bolsas, verbas para custeio e ver-bas para projetos das instituições de ensino supe-rior. Os sistemas de avaliação fecham o circuitode massificação do ensino em bases de baixa qua-lificação. Nestas condições, sobram razões paracrer que seus objetivos estão mais associados àampliação do exército de reserva do que à demo-

cratização do conhecimento, co-mo, entretanto, insistentemente seapresentam à sociedade.

O projeto em andamento, co-mo se vê, parte do mesmo diag-nóstico que educadores, políticose empresários de todos os matizesfazem da Universidade brasileira.Mas nem sempre todos que par-tem do mesmo ponto pretendemchegar ao mesmo lugar. Certa-mente este projeto é o oposto da-quele defendido pelos que queremuma universidade a serviço de

uma sociedade justa e a educação como um valorético/de uso e não uma mercadoria.

Isto nos alerta para o fato de que a defesa daabertura da universidade, e até mesmo a defesa dauniversidade pública e de sua ampliação, não te-rão boas conseqüências se o esforço por regrasjustas de convivência, de relações de trabalho e deapropriação da riqueza produzida não for bemsucedido. Esta dialética entre a difusão do conhe-cimento e as relações sociais de produção revela oquanto o assunto é um assunto de classe e qual éa amplitude do desafio.

NOTAS

1 Cabe esclarecer que a privatização foi a forma maiscontundente de passagem ao controle privado de muitosativos públicos. Mas há outras formas, designadas comodelegação - as concessões e permissões -, que conceitual-mente não privatizam os bens públicos, dado que nãotransferem a propriedade. É o caso das pontes, da ener-gia, da telefonia, que não estão privatizados à luz do di-reito e da administração pública, mas sim delegados a tí-tulo de concessões ou permissões. Quando usamos a ex-

Educação: prioridade nacional?

Hoje, várias unidades de ensino superior,

principalmente privadas,reduzem seus custos eabreviam a formação

de seus estudantes pelavia da adequação dos seus currículos ao mínimo exigido.

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 27UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

pressão privatização nesta passagem do texto estamos fa-zendo uma generalização cabível no contexto da argu-mentação. Mas não desconhecemos a diferença entre ati-vos e serviços privatizados e ativos e serviços delegados. 2 Nossas estimativas consideram o estudo da diretoria dePesquisa do IBGE, assinado pela equipe técnica, JuarezOliveira, Fernando Albuquerque e Ivan Lins. Trata-se deuma detalhada exposição metodológica, que nos oferece abase das estimativas populacionais e que registra um cres-cimento médio de 1,5% nos anos 2000 e 1,4% em 2004.Foi operando com estes referenciais e com os númerosmaiores do Inep, certamente os que foram passados para aUnesco e a OCDE, que fizemos a estimativa de que em2004 o percentual de inserção dos jovens brasileiros no 3ºgrau chegou a 24% e de que em 2005 teria chegado a25,6%. 3 A então Secretária-Geral do Ministério de Ciência e Tec-nologia, Aspásia Camargo, propôs ao recém-eleito reitorda Universidade Federal Fluminense, em 1998, Cícero Fia-lho, a transformação da Universidade em Organização So-cial. O contexto em que isto ocorreu era o de disputa debastidores, quando o eleito é seriamente ameaçado e vê emrisco a sua posse. Cícero reuniu seu staff de campanha econvidou um professor de administração pública para lhedar um panorama do que viria a ser Organização Social edo que seria da UFF na condição de OS. Esclarecido doque se tratava e dos riscos efetivos à gestão pública e ao in-teresse público, o reitor eleito, pelo que se depreende dosfatos posteriores, não aceitou a proposta.

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Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 29

As prioridades se expressam pelas ações e,principalmente no caso dos projetos gover-namentais, pelos recursos alocados para a

realização das mesmas. O financiamento da edu-cação pública é uma ação fundamental para odesenvolvimento e para a redução das desigual-dades sociais no Brasil, existindo uma forte vin-culação entre ele e a situação socioeconômica dopaís, uma vez que as principais fontes de recursospara educação são originárias dos impostos, queestão afetados diretamente pelo desempenho daeconomia.

Um artigo recente[1] nos chamou a atençãopara a queda nos gastos públicos na área social,em particular, na educação, com informações daexecução orçamentária e da política econômicaatualmente praticada pelo governo federal, e al-guns de seus reflexos nas universidades federais,como o fato da expansão, com a criação de novasinstituições e câmpus, estar ocorrendo com o or-çamento congelado bem como a recente refor-mulação na carreira dos docentes das InstituiçõesFederais de Ensino Superior (Ifes) ter sido pro-posta, por parte do governo federal, para fugir daobrigação constitucional do reajuste anual dosvencimentos, a que todo servidor público tem di-reito, causando, com isso, grave quebra de isono-mia que afeta, principalmente, os docentes apo-sentados.

Corroborando com isso, a mídia divulgouamplamente que o superávit de outubro de 2006

somou R$ 10,466 bilhões. Informou ainda queo valor obtido, entretanto, foi insuficiente parapagar os juros da dívida no período, que soma-ram R$ 13,2 bilhões. Ou seja, após o pagamentodos juros, o setor público apresentou um déficitde R$ 2,792 bilhões nas suas contas. De outubrode 2005 a outubro de 2006, o superávit fiscal dosetor público somou R$ 89,442 bilhões, ou4,34% do Produto Interno Bruto (PIB).

Essas questões levantaram a necessidade deanalisar com mais detalhes o comportamento dosgastos públicos na educação, para poder enten-der, com um pouco mais de detalhes, o impactoda política econômica do governo federal no fi-nanciamento do setor nos últimos anos.

Assim, para este trabalho, nos debruçamosnos dados da execução orçamentária dos gover-nos federal, estaduais e municipais dos últimosseis anos, com especial ênfase aos anos de 2002 e2005. O ano de 2005 foi escolhido, evidentemen-te, por ser o mais atual executado e o anteriorporque sobre ele é que existem informações ofi-ciais mais detalhadas sobre o financiamento pú-blico da educação, dados esses que também sub-sidiam estudos internacionais nos quais o Brasilparticipou.

Como ponto de partida para a discussão, sin-tetizamos na Tabela 1, na página seguinte, os da-dos da nossa análise da execução orçamentária,apresentando os resultados para 2002 e 2005.

A Tabela 1 foi construída diretamente a partir

Financiamento da educação pública:elementos para reflexão

Cláudio Antônio Tonegutti

Professor do Departamento de Química da Universidade Federal do Paraná (UFPR), presidente da APUFPR-SSind

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE30 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

dos dados da execução orçamentária dos váriosníveis de governo, disponibilizados pela Secreta-ria do Tesouro Nacional (STN) do Ministério daFazenda, pois, estranhamente, o Inep, que vinharealizando estudos de financiamento da educaçãoaté 2002, deixou de divulgá-los a partir de 20031.

Observa-se que de 2002 para 2005 houve umaumento na despesa líquida na função educaçãode cerca de R$ 16,2 bilhões em valores correntesou de R$ 3,1 bilhões em valores atualizados. Po-demos afirmar que este aumento na despesa estárelacionado à movimentação (o aumento ou di-minuição de matrículas nas várias modalidades eníveis de ensino), conforme se evidenciará maisadiante. Nota-se, também, que o aumento nadespesa é maior no nível municipal do que no es-tadual e que no nível federal a variação é bem pe-quena em relação aos demais níveis.

Um dos indicadores mais im-portantes é aquele que relaciona adespesa na função educação com oPIB, pois possibilita um acompa-nhamento fácil do financiamentoda educação ao longo dos anos,bem como permite comparaçõesinternacionais. Desse modo, consti-tui indicação forte da real prioridadeconferida pelo país à área educacional.Assim, a partir da Tabela 1, foi cons-truída a Tabela 2, ao lado, contendo as

despesas líquidas com educação como percentagemdo PIB.

Em 2005, houve uma queda de 0,5% do PIBno investimento (ou na despesa) em educação emrelação a 2002. Por outro lado, o PIB no período2003-2005 cresceu a uma taxa média de 2,6%.Para se visualizar o montante, 0,5% do PIB 2005em valores atualizados é algo em torno de R$ 10bilhões, valor esse que corresponde, aproximada-

mente, ao orçamento anual de to-das as Ifes!

Essa diminuição do investi-mento público em educação épreocupante, pois um dos pontosmais importantes na época daconstrução do Plano Nacional deEducação (e que acabou vetadopelo Presidente Cardoso) erajustamente o progressivo aumen-to do investimento público du-rante a “década da educação” ins-

Educação: prioridade nacional?

Valores em R$ bilhões

22000055 22000022

Despesa com Educação Corrente Atualizado(a) Corrente Atualizado(a)

Total - Federal 16,2 16,5 13,2 16,4

Líquida(b) - Federal 12,4 12,6 10,6 13,2

Total - Estadual 43,0 43,8 35,3 44,0

Líquida(b) - Estadual 34,4 35,1 27,7 34,5

Total - Municipal(c) nd(d) nd(d) 21,8 27,1

Líquida(b) - Municipal(c) 28,4 28,9 20,7 25,8

Líquida(b) - BRASIL 75,2 76,6 59,0 73,5

PIB - BRASIL 1.937,6 1.967,7 1.346,0 1.675,9

Notas: (a) atualização dos valores correntes (para agosto de 2006) pelo IGP-DI, índice que é utilizado pela STN; (b) por líquida, denominamos a despesana função educação excluídos os gastos com aposentadorias e pensões (benefícios previdenciários); (c) neste caso estão agregadas as funções educaçãoe cultura; (d) dados não disponíveis na STN.

Tabela 1

Dados gerais do financiamento da educação pública no Brasil

Fontes: Os dados da execução orçamentária são da STN, disponíveis em www.tesouro.fazenda.gov.br. Os dados do PIB são do IBGE, disponíveis emwww.ibge.gov.br

Despesas líquidas com educação como percentual do PIB - Brasil

Tabela 2

Nível 2005 2002Federal 0,6 0,8

Estadual 1,8 2,1

Municipal 1,5 1,5

Total 3,9 4,4

Nota: Considerar os valores para os demais anos do período, conformemetodologia aplicada2.

0,5% do PIB 2005 emvalores atualizados é

algo em torno de R$ 10bilhões, valor esse que

corresponde,aproximadamente, aoorçamento anual de

todas as Ifes!

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 31

tituída por esse dispositivo legal. O Plano dis-punha sobre a elevação, na década compreendidaentre 2002 e 2011, por meio do esforço conjuntoda União, Estados, Distrito Federal e Municí-pios, do percentual de gastos públicos em relaçãoao PIB, aplicados em educação, para atingir omínimo de 7%. Para tanto, os recursos deveriamser ampliados, anualmente, à razão de 0,5% doPIB, nos quatro primeiros anos do Plano, e de0,6% no quinto ano[2]. Se esta determinação esti-vesse vigorando, teríamos avançado no financia-mento, de 4,4% do PIB, em 2002, para 5,9%, em2005.

É necessário salientar que mesmo este mon-tante de 5,9% do PIB, que seria um valor poten-cial, ainda estaria abaixo do que historicamente éinvestido[3] pelos países escandinavos, 7 a 8% dorespectivo PIB, e próximo do investimento pú-blico na educação feito pelos Estados Unidos,5,6% do seu PIB, o qual é consideravelmentemaior do que o brasileiro. Parece, pois, que alémde decrescente, a prioridade dada para a educa-ção, no caso do Brasil, é definitivamente baixa.

Devemos, por outro lado, olhar também o ta-manho do sistema, em particular, a movimenta-ção das matrículas nos vários níveis e modalida-des nesse período, informações que são apresen-tadas na Tabela 3.

Verifica-se um incremento de 2,7 milhões dematrículas, considerando todos os níveis, entre2002 e 2005, sendo 1,3 milhões de matrículas nosetor público e 1,4 milhões de matrículas no se-tor privado. No ensino superior houve um incre-mento de mais de 800 mil matrículas no setorprivado e apenas 140 mil no setor público, pas-sando a participação do setor privado, no total dematrículas desse nível, de 69,8% em 2002, para73,2%, em 2005. Já no ensino básico, a participa-ção privada, embora também tenha crescido, élargamente minoritária, perfazendo apenas 13%do total de matrículas em 2005. Vale notar, ainda,que a contribuição do nível estadual ao total dematrículas no setor público teve uma leve queda,por conta da diminuição de matrículas no ensinofundamental. A movimentação geral de matrícu-las nesse período, por nível e modalidade, é apre-

Educação: prioridade nacional?

Tabela 3

Modalidade Total Geral Federal Estadual Municipal Total Pública Total Privada

2005 - Todos os Níveis 60.924,9 762,1 24.049,1 25.421,6 50.232,9 10.692,1

Educação Infantil 7.205,1 2,6 266,3 4.887,7 5.156,6 2.048,5

Ensino Fund.1-4ª série 18.465,5 7,5 4.224,6 12.420,7 16.652,8 1.812,7

Ensino Fund. 5-8ª série 15.069,1 18,2 7.920,9 5.565,9 13.505,0 1.564,1

Ensino Médio 9.031,3 68,7 7.683,0 182,1 7.933,7 1.097,6

Educ. de Jovens e Adultos 5.615,4 0,9 3.223,8 2.138,2 5.362,9 252,5

Educação Especial 378,1 0,9 65,2 68,2 134,3 243,8

Educação Profissional 707,3 83,8 188,0 23,5 295,3 411,9

Ensino Superior 4.453,2 579,6 477,3 135,3 1.192,2 3.261,0

2002 - Todos os Níveis 58.196,6 645,4 24.115,0 24.179,4 48.939,8 9.256,7

Educação Infantil 6.130,4 2,5 320,2 4.101,6 4.424,2 1.706,2

Classes Alfabetização 607,8 0,9 9,8 351,7 362,4 245,4

Ensino Fund. 1-4ª série 19.380,4 7,1 5.166,7 12.515,4 17.689,2 1.691,1

Ensino Fund. 5-8ª série 15.770,0 19,3 9.069,3 5.137,7 14.226,3 1.543,6

Ensino Médio 8.710,6 79,9 7.297,2 210,6 7.587,7 1.122,9

Educ. de Jovens e Adultos 3.779,6 3,3 1.759,5 1.700,9 3.463,7 315,9

Educação Especial 337,9 0,8 76,8 57,1 134,6 203,3

Ensino Superior 3.480,0 531,6 415,6 104,5 1.051,7 2.428,3

Matrículas segundo a dependência administrativa e o nível de ensino(em milhares)

Fonte: Censo da Educação Básica 2005 e Censo do Ensino Superior 2005 do MEC/Inep

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE32 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

sentada na Tabela 4 (na página seguinte).Das variações verificadas no período, destaca-

se a referente à Educação de Jovens e Adultosque teve uma ampliação de 28% do total de ma-trículas, com uma evidente migração do setorprivado para o público. No ensino fundamentalverificou-se a queda nas matrículas do setor públi-co e o aumento no setor privado, enquanto no en-sino médio a tendência é contrária. No censo es-colar do Inep, de 2002 para 2005, temos a introdu-ção da categoria Educação Profissional, que podeestar mascarando a variação com respeito ao ensi-no médio. No ensino superior, mantém-se a ten-dência de ampliação do setor privado, que cresceu34,3% contra 13,4% do setor público.

Os dados das Tabelas 3 e 4, juntamente comoutros que foram levantados nos respectivoscensos escolares, poderiam ser objeto de váriostipos de análise de interesse da política educacio-nal. Entretanto, para o nosso objetivo, vamos nosrestringir a relacionar as variações, constantes daTabela 4, ao respectivo custo (ou investimentopúblico), para complementar a avaliação do fi-nanciamento público nesse período.

Para este fim, vamos utilizar um “custo-aluno”,a título de uma extrapolação da situação atual. De-ve-se frisar que o custo-aluno aqui utilizado repre-senta o recurso que está sendo gasto por estudantenum dado período, em geral, um ano. Outra im-portante discussão é o investimento que deveria serfeito levando-se em conta a qualidade do ensino, oque se denomina de “custo-aluno-qualidade”, cujametodologia de cálculo ainda não está totalmente

definida. As metodologias propostas, ou utilizadas,são alvo de controvérsia e algumas vezes tambémsujeitas a interesses políticos.

O custo-aluno, conforme os indicadores go-vernamentais, varia com o nível de ensino, devi-do à complexa natureza das atividades e da infra-estrutura, física e de pessoal, envolvida em cadaum desses níveis, e com a metodologia emprega-da para o seu cálculo. Como exemplo, a apuraçãodo custo-aluno na Universidade de Brasília(UnB), por duas metodologias, apresentou para2003 os seguintes valores: R$ 9.488 (metodologiado Tribunal de Contas da União) e R$ 5.737 (me-todologia da UnB)[4].

Por outro lado, deve-se ter a clareza de que aotratarmos do custo-aluno nacional, estamos tra-balhando com um valor médio, que, pelas desi-gualdades que se verificam entre as várias regiões,encobre as realidades locais. Essas diferenças nãoforam resolvidas pelo Fundef, visto que não háuma convergência de valores do custo-aluno en-tre o conjunto das unidades federativas para amédia nacional[5]. Vale ressaltar, ainda, que aUnião não tem feito integralmente os repassesque são devidos a estados e municípios pela legis-lação do Fundef.

Como o nosso objetivo é ter uma idéia do im-pacto financeiro da movimentação de matrículasem 2005, com relação ao ano de 2002 no setorpúblico, vamos utilizar para isso o custo-alunocalculado pelo Inep, que não inclui despesas comaposentadorias e pensões. Os dados, disponíveispara os anos de 2000 a 2002, referem-se à educa-

Educação: prioridade nacional?

Modalidade/nível Variação % variação total Variação % variação Variação % variação privada total em rel. a 2002 pública pública em privada em rel. a 2002

rel. a 2002

Educação Infantil 1.074,7 17,5 732,4 16,6 342,3 20,1

Ensino Fundamental, 1-4ª série -914,9 -4,7 -1.036,4 -5,9 121,6 7,2

Ensino Fundamental, 5-8ª série -700,9 -4,4 -721,4 -5,1 20,4 1,3

Ensino Médio 320,7 3,7 346,0 4,6 -25,3 -2,3

Educ. de Jovens e Adultos(a) 1.228,0 28,8 1.536,8 40,2 -308,8 -55,0

Educação Especial 40,2 11,9 -0,3 -0,2 40,5 19,9

Educação Profissional(b) 707,3 Nd(c) 295,3 Nd(c) 411,9 Nd(c)

Ensino Superior 973,2 28,8 140,5 13,4 832,7 34,3

Notas: (a) Inclui as classes de alfabetização do Censo 2002; (b) a modalidade de Ensino Profissional não consta do censo escolar de 2002; (c) não disponível por falta de parâmetro de comparação.

Variação no número de matrículas no período 2002 - 2005Tabela 4

(em mil) (em mil) (em mil)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 33

ção infantil, ensino fundamental - 1ª a 4ª série,ensino fundamental - 5ª a 8ª série, ensino médioe ensino superior. Dessa forma, fizemos algumasaproximações para os níveis ou modalidades nãocontemplados diretamente e, com as informa-ções, construímos a planilha de custos, mostradana Tabela 5, relacionada com a variação das ma-trículas apresentada na Tabela 4.

O custo atualizado da movimentação de ma-trículas públicas que ocorreu de 2002 para 2005,de cerca de R$ 3,1 bilhões, conforme Tabela 5,pode ser comparado com o aumento da despesaem valores atualizados constante da Tabela 1 parao mesmo período, de cerca de R$ 2,9 bilhões. Is-to permite concluir que o aumento da despesacompreende apenas a movimentação de matrícu-las dentro do sistema (com um saldo positivo deoferta de matrículas, considerando o conjuntodas modalidades ou níveis), tendo como referên-cia o nível de financiamento observado em 2002,e que não houve espaço, nesse período, paraavanços qualitativos generalizados.

É importante registrar que o indicador custo-aluno, juntamente com o percentual de gastos emeducação relativos ao PIB, é um dos principais

indicadores utilizados na comparação do finan-ciamento, em nível internacional. Os valoresapresentados na Tabela 5 são os mesmos divulga-dos tanto no site do Inep (em R$), quanto nas re-centes publicações de indicadores educacionaisda Organização para a Cooperação e Desenvol-vimento Econômico (OCDE)[3] e da Unesco[6],sendo que em ambas consta o mesmo valor nu-mérico antes apresentado referindo-se, entretan-to, à unidade Dólar Americano por Paridade dePoder de Compra (US$-PPP), cuja conversãopara o Real foi, na ocasião, tomada como aproxi-madamente 1:1 (exatamente 0,99).

É interessante, portanto, comparar o custo-aluno apurado aqui com o praticado em outrospaíses, o que fizemos utilizando os valores mé-dios, nos vários níveis de ensino, para os paísesda OCDE3 e para os participantes do programa“Indicadores Educacionais Mundiais” (WEI) daUnesco4, conforme apresentado na Tabela 6.

O custo-aluno verificado no Brasil está próxi-mo da média dos países participantes do WEI nafaixa compreendida pela educação infantil ao ensi-no médio, mas a média desses países está bemaquém da média dos países da OCDE, em todos os

Educação: prioridade nacional?

Modalidade ou Nível Variação nas matriculas “Custo Aluno” Custo da variação Públicas (em milhares) Anual 2002 (R$) (em milhões de R$)

Educação Infantil 732,4 926 678,2

Ensino Fundamental,1-4ª série -1.036,4 870 -901,7

Ensino Fundamental, 5-8ª série -721,4 1.105 -797,1

Ensino Médio 346,0 1.152 398,6

Educacão de Jovens e Adultos 1.536,8 870(a) 1.337,0

Educação Especial -0,3 1.152(a) -0,3

Educação Profissional 295,3 1.152(a) 340,2

Ensino Superior 140,5 10.054 1.413,0

Total 2.467,9Total atualizado (IGP-DI agosto 2006) 33..007722,,99

Educação Ensino Fundamental Ensino Fundamental Ensino EnsinoInfantil 1-4ª série 5-8ª série Médio Superior

Brasil 926 870 1.105 1.152 10.054

Média WEI 707 1.066 1.119 1.275 4.225

Média OCDE 4.508 5.450 6.560 7.582 11.254

Comparação internacional do “custo-aluno” anual no sistema público (valores em US$-PPP)

Tabela 6

Tabela 5

Fonte: MEC/Inep Nota: (a) valor atribuído pelo autor.

Variações nas matrículas públicas constantes da tabela 4 e relação com o custo-aluno

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE34 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

níveis de ensino. No Brasil, a boa exceção é o custo-aluno no ensino superior público (R$ 10.054), que,na conversão adotada, está bem próximo da médiados países da OCDE (U$ 11.254).

Dessa forma, tomando-se o custo-aluno comoum dos indicadores de qualidade de ensino, pode-mos afirmar que, no tocante ao ensino superiorpúblico, ele está razoavelmente situado em relaçãoaos países da OCDE e bem colocado em relaçãoaos países participantes do WEI. Quanto ao ensinobásico, o resultado deste indicador é extremamentedesfavorável em relação aos países da OCDE.

Considerando que existe um investimentomínimo indispensável para a manutenção de umensino de qualidade satisfatória, mesmo com asdivergências metodológicas existentes para o cál-culo do indicador, é razoável supor que esse va-lor esteja em torno da média dos países da OCDE.Se assim for, há muito para avançar na questão damelhoria da qualidade do ensino básico.

Um aspecto relevante é que a maioria dos paí-ses da OCDE, e muitos do WEI, mantém para oensino básico a jornada integral. No Brasil, a mé-dia está em torno de meio período. Estudo doGrupo de Trabalho sobre Financiamento da Edu-cação do Inep[7], em 2003, apontava a necessidadeda ampliação da jornada parcial para a integral,como indispensável à melhoria da qualidade deensino, e o seu custo foi estimado como o dobrodo custo-aluno, na época. Em nossa opinião, eledeve ser maior, pois aquele estudo não levou emconta as demandas de infra-estrutura. A migraçãode uma “escola de meio período” para uma “esco-la de tempo integral” requer mudanças no currí-culo, incluindo atividades hoje inexistentes namaioria das escolas, para as quais a infra-estruturaexistente - espaços e insumos - não é adequada.

Ainda com respeito ao ensino básico, deve-mos mencionar que a proposta do Fundeb (PECnº 415/05), encaminhada pelo governo federalpara substituir o Fundef, a partir de 2007, não de-ve trazer mudanças muito significativas no finan-ciamento da educação pública nacional, caso sejamantido o perfil de queda do financiamento veri-ficado a partir de 2003. A perspectiva do Minis-tério da Educação é injetar, no ensino básico pú-

blico, progressivamente, recursos que chegarão acerca de R$ 5 bilhões no quarto ano de sua im-plantação. Podemos supor que uma parte signi-ficativa desses recursos vai atender à expansão dematrículas, sem significar uma melhoria qualita-tiva em relação ao quadro atual.

Quanto ao ensino superior, temos na pauta oprojeto de reforma universitária, encaminhadopelo governo ao Congresso (Projeto de Lei nº7.200/2006). No que se refere ao financiamentodas universidades públicas, esse projeto em nadaacrescenta ao que já se pratica hoje, conforme de-talhada análise realizada pelo Grupo de Trabalhode Política Educacional do ANDES[8].

Por fim, temos a Desvinculação de Recursosda União (DRU), criada pela emenda constitu-cional nº 27, de 21 de março de 2000, que substi-tuiu o Fundo Social de Emergência (1994-1996) eo Fundo de Estabilização Fiscal (1997-1999), co-mo um artifício para desvincular recursos fiscais,permitindo maior flexibilidade para o governonas decisões de gasto e na composição do superá-vit primário, estando em vigor até o ano de 2007.A DRU retira 20% da arrecadação dos impostos,descontadas as transferências constitucionais elegais, da vinculação dos recursos para manuten-ção e desenvolvimento do ensino, garantida peloartigo 212 da Constituição. Como a DRU retirarecursos do montante total destinado à educaçãoe os repasses para Estados e Municípios obede-cem à legislação própria, a mais afetada é a receitadestinada às instituições federais de ensino, aí in-cluídas principalmente as Ifes, cujo financiamen-to é diminuído em até 35% pelos efeitos da DRU.

A aplicação da DRU é extremamente nefastaao financiamento público da educação, da saúdee da ciência e tecnologia. No período de 2000-2005, a DRU retirou do orçamento federal demanutenção e desenvolvimento do ensino (MDE)cerca de R$ 171 bilhões, enquanto, no mesmoperíodo, o governo federal executou despesas lí-quidas, na função educação, apenas de cerca deR$ 84 bilhões (valores atualizados para agosto2006). Se o montante levado pela DRU fosseaplicado em MDE, cerca de R$ 31 bilhões em2005, elevaria o percentual do PIB de despesas

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 35

em educação do Brasil de 3,9% para 5,5%, o queseria um avanço bastante considerável. Caso omesmo acontecesse no orçamento executado de2002, esse percentual subiria para 6%.

De todas as questões levantadas, sem dúvida, aDRU é a que mais afeta negativamente o finan-ciamento do sistema público de ensino brasileiro e,enquanto ela estiver em vigor, as principais metasprevistas no Plano Nacional de Educação não po-derão ser atingidas, visto que, no presente, é o go-verno federal que possui maior fôlego para injetarnovos recursos no ensino público. E, se as priori-dades se explicitam pelo seu adequado financia-mento, a educação não pode ser considerada, hoje,prioritária no orçamento do governo federal.

NOTAS

1 Para chegarmos ao que chamamos de “despesa líquidacom a função educação”, fizemos o cálculo em cada anoda percentagem das despesas com aposentadorias epensões em relação à despesa total (em cada nível de go-verno), excluídos os encargos especiais (refinanciamentoda dívida). Nós assumimos que essa participação percen-tual no total da despesa é a mesma também na funçãoeducação. No governo federal a participação de aposen-tadorias e pensões foi de 23,48% (2005), 22,62% (2004),21,99% (2003), 19,95% (2002) e 19,53% (2001). Nosestados ela foi de 19,90% (2005), 20,70% (2004), 21,92%(2003), 21,56% (2002) e 21,25% (2001). Nos municípios,a participação de aposentadorias e pensões foi de cerca de5% no período 2000 a 2003. Os dados da execução orça-mentária dos municípios para o período 2001-2003 se re-ferem a uma extrapolação para 5.380 municípios, reali-zada pela STN de 1988 a 2003 a partir dos dados de 3.215municípios brasileiros. Para chegarmos aos valores na Ta-bela 1 da despesa líquida na função educação nos municí-pios para os anos de 2004 e 2005 (dados não disponíveisna STN) comparamos a despesa realizada no período2001-2003 dos municípios com a soma no mesmo perío-do para a despesa líquida em educação no nível federal eestadual. Esse confronto mostra que de 2001-2003 a des-pesa dos municípios cresceu a uma taxa de 2,08% ao anoem relação ao total líquido federal mais estadual. Estima-mos a despesa dos municípios em 2004 como 58,51% eem 2005 como 60,59% desse total líquido. A adequaçãoda metodologia de cálculo é confirmada pelo confrontocom o índice de despesas públicas em educação (excluí-dos aposentados e pensionistas) em relação ao PIB para oano de 2002, que foi informado pelo Inep à OCDE. Oíndice calculado pelo Inep foi de 4,4% do PIB (2002) e oque calculamos é de 4,38% do PIB.2 Na Tabela 2 constam apenas as informações de 2002 e2005, mas, usando a mesma metodologia, chegamos aos

seguintes valores para o percentual de despesas na funçãoeducação (excluídas as aposentadorias e pensões) em re-lação ao PIB, para os demais anos do período: 4,18%(2000); 4,38% (2001); 4,17% (2003); 3,78% (2004).3 Países membros da OCDE (reportados nos indicadoresmédios): Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, RepúblicaCheca, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Grécia,Hungria, Itália, Japão, Luxemburgo, México, Holanda,Nova Zelândia, Noruega, Polônia, Portugal, Repúblicada Coréia, Eslováquia, Espanha, Suécia, Suíça, Turquia,Reino Unido, Estados Unidos.4 Países participantes do WEI - Unesco: Argentina, Bra-sil, Chile, Índia, Indonésia, Jamaica, Jordânia, Malásia,Paraguai, Peru, Filipinas, Federação da Rússia, Siri Lan-ka, Tailândia, Tunísia e Uruguai.

REFERÊNCIAS

[1] NEVES, L. Menos verbas para a educação.APUFPR-SSind - Boletim em Rede, 17 nov. 2006.Disponível em: <http://www.apufpr.org.br/artigos/-20061117_lafa_menos.htm>. Acesso em: 30 nov. 2006.

[2] VALENTE, I.; ROMANO, R. PNE: PlanoNacional de Educação ou carta de intenção?. Educ. Soc.,v. 23, n. 80, p. 96-107, set. 2002.

[3] ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPE-RATION AND DEVELOPMENT. Education at aglance: OECD Indicators, 2006 edition. Disponível em:<http://www.oecd.org/home/0,2987,en_2649_201185_1_1_1_1_1,00.html>. Acesso em: 30 nov. 2006.

[4] DALVI, G. P. et al. Cálculo do custo aluno na UERJ:propostas e proposições - Anexo 8; CPA - NIESC –UERJ, ago. 2006.

[5] VAZQUEZ, D. A. Desequilíbrios regionais nofinanciamento da educação. Rev. Sociol. Polit., n. 24, p.149-164, jun. 2005.

[6] INSTITUTO DE ESTATÍSTICA DA ORGANI-ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AEDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA. Educationcounts – Benchmarking progress in 19 WEI countries –World Education Indicators 2006. Disponível em:<http://www.uis.unesco.org/publications/wei2006>.Acesso em: 30 nov. 2006.

[7] INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PES-QUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA.Relatório do Grupo de Trabalho sobre Financiamento daEducação. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/-download/estatisticas/gastos_educacao/rbep_200_parteII.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2006.

[8] SINDICATO NACIONAL DOS DOCENTESDAS INSTITUICÕES DE ENSINO SUPERIOR.Análise do projeto de lei nº 7200/2006: a educação supe-rior em perigo!. Disponível em:<http://www.andes.org.br/imprensa/Uploads/Circ299-06.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2006.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 37

Quando falamos em gastos públicos pen-samos, de imediato, em três aspectos doorçamento que estão indissoluvelmente

ligados: receitas e despesas da União e a questãobasilar, em geral olvidada, a questão política.

O orçamento é eivado de problemas políticos.Antes de ser uma questão técnica, uma caixa-pre-ta como em geral é apresentado, ele se reveste deintrincados problemas políticos já que a socieda-de dominada pelo capital é eminentemente con-flitiva, contraditória, antagônica e, por conse-guinte, excludente. É na luta pela apropriação departe dos recursos orçamentários que os variadosgrupos, camadas e classes sociais procuram ga-rantir sua reprodução social. A luta de classesque se encontra no seio do orçamento para apro-priação de uma parte alíquota do excedente eco-nômico produzido pelo trabalhador assalariado ésimplesmente elidida. Nas sociedades hegemôni-cas, essa luta assim transparece:

As grandes empresas querem que o go-

verno construa mais estradas; banqueiros e

investidores exigem do governo mais em-

préstimos e investimentos; os pequenos

empresários e agricultores querem mais

subsídios; os trabalhadores sindicalizados

pressionam por mais previdência social; os

grupos pró-direitos previdenciários que-

rem maiores descontos no imposto de ren-

da, mais habitações e melhores serviços de

saúde pública [...]. (O’CONNOR, 1977, p.

13-14).

O orçamento público se constitui numa arenaem que os diversos grupos, camadas e classessociais se digladiam para abocanhar a maior partepossível do excedente expropriado do trabalha-dor assalariado. Nesse sentido, dizer que os bu-rocratas de plantão é que possuem o poder dedecisão sobre a alocação de recursos é, no míni-mo, desconhecer a práxis burocrática que deter-mina o montante e os setores que serão aqui-nhoados com os recursos orçamentários. É

Os gastos sociais e a política econômicaCarlos Lima

Professor da Universidade de Brasília (UnB)

Quando eu era criança, minha avó me contou a fábula dos cegos e o elefante. Três cegos estavam diante do elefante.

Um deles apalpou a cauda do animal e disse:- É uma corda.

Outro acariciou uma pata do elefante e opinou:- É uma coluna.

O terceiro cego apoiou a mão no corpo do elefante e adivinhou:- É uma parede.

Assim estamos: cegos de nós, cegos do mundo. Desde que nascemos, somos treinados para não ver mais que pedacinhos.

A cultura dominante, cultura de desvínculo, quebra a história passada como quebra a realidade presente; e proíbe que o quebra-cabeças seja armado.

Eduardo Galeano

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE38 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

preciso entender que a sociedade capitalista, dolado dos proprietários dos meios de produção esubsistência, é composta por uma miríade de mi-cros, pequenas, médias, grandes e megaempresas,nos mais diversos setores da extensa e profundadivisão social do trabalho. Por outro lado, a exis-tência dessas unidades produtivas privadasrequer, pressupõe, a utilização da força de tra-balho (não-proprietários dos meios de produ-ção), a fim de valorizar o capital. Naturalmente,os trabalhadores assalariados se organizam emassociações, sindicatos, partidos políticos, movi-mentos sociais como o MST, entre outros. Então,no âmago do processo produtivo, temos a luta declasses em que os capitalistas, que também têmsuas associações, seus sindicatos, seus partidos po-líticos, seus movimentos sociais, como a UDR, seapropriam da riqueza produzida pelos trabalha-dores sob a forma social mercadoria e estes (des-possuídos) são constrangidos a vender novamentesua mercadoria, a força de trabalho, para o capital.

A classe possuinte e a classe do proletariado

representam a mesma auto-alienação hu-

mana. Mas a primeira das classes se sente

bem e aprovada nessa auto-alienação, sabe

que a alienação é seu próprio poder e nela

possui a aparência de uma existência huma-

na; a segunda, por sua vez, sente-se aniqui-

lada nessa alienação, vislumbra nela sua im-

potência e a realidade de uma existência de-

sumana. Ela é, para fazer uso de uma ex-

pressão de Hegel, no interior da abjeção, a

revolta contra essa abjeção, uma revolta

que se vê impulsionada necessariamente pe-

la contradição entre sua natureza humana e

sua situação de vida, que é a negação franca

e aberta, resoluta e ampla dessa mesma na-

tureza.

Dentro dessa antítese o proprietário pri-

vado é, portanto, o partido conservador, e o

proletário, o partido destruidor. Daquele

parte a ação que visa a manter a antítese,

desse a ação de seu aniquilamento. (MARX,

2003, p. 48, grifos do autor).

Os gastos públicos sociais Os dados do Quadro I, na página seguinte,

mostram como os recursos orçamentários anuaistêm se comportado de 2001 a 2004. É importantesalientar que os gastos sociais, segundo a óticagovernamental, compõem os gastos públicos, oumelhor, nestes estão inseridos. Por gastos sociaisse compreende, grosso modo: previdência social;assistência social; proteção do trabalhador e gera-ção de emprego; organização agrária; educação ecultura; saúde; saneamento básico e habitação ebenefícios aos servidores federais.

Assim, o orçamento, que tenha sido pensadocom todo rigor por parte dos técnicos das váriasunidades federativas, guarda pouca ou nenhumasemelhança com o que será executado, já que ocritério político, para a reprodução da sociedadecivil1, é prevalente. Dito de outra forma, é no em-bate político, no Congresso Nacional, que os re-presentantes da estratificada sociedade brasileirairão direcionar a alocação de recursos em conso-nância com sua força (política) e se apropriar,mais ou menos, da riqueza produzida, confome opoder social que trazem no bolso, ressalvadas asdespesas obrigatórias.

O montante dos gastos sociais, nos dois últi-mos anos do governo FHC e primeiros dois anosdo governo Lula, parece ter sido vultoso. Os gas-tos com Saúde cresceram em termos absolutos,passando de R$ 21,187 bilhões para R$ 31,794 bi-lhões, mas tiveram um decréscimo percentual,passaram de 13,3% para 12,8% do total de gastossociais, no período de 2001 a 2004. Em seguida,vem Educação e Cultura com cerca de R$ 8,975bilhões, em 2001, para R$ 13,038 bilhões, em2004. Novamente temos uma queda dos inves-timentos relativos à Educação, em termos per-centuais de 5,6%, em 2001, para 5,2%, em 2004.O mesmo aconteceu no Ensino Superior, cujo fi-nanciamento decaiu de 3,5% para 3,4% do total,nesse período de tempo. É importante sublinharque as despesas com pessoal têm diminuído sen-sivelmente nos vários níveis de ensino, o que de-monstra, por parte do governo federal, pouca ounenhuma atenção para com o conhecimento.

Em termos de volume de recursos dispendi-

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 39UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

dos, o gasto da Secretaria Especial do ProgramaBolsa Família saltou de R$ 1,531 bilhão, em 2001,para R$ 5,799 bilhões em 2004, o que, em termospercentuais, representa quase duas vezes e meiasua participação no total dos gastos sociais, jáque passa de 1% para 2,3%. Mesmo assim, deixaclara a incipiência do gasto público social no se-tor Assistência Social, que cresceu, como um to-do, apenas de 5,6% para 6,5% embora envolvaitens como assistência à criança e nutrição, erra-dicação do trabalho infantil, bolsa criança-cida-dã, auxílio-gás, bolsa-alimentação, bolsa-escola ecartão-alimentação.

Deve-se registrar o quadro de abandonoquanto aos gastos com Saneamento Básico e Ha-bitação, que apresentaram uma acentuada quedano montante de recursos, tanto em termos abso-lutos quanto relativos.

Inegavelmente, as condições de produção ereprodução material da sociedade dominada pelocapital se encontram em uma situação agônica,posto que ressalta, dos dados apresentados, oabandono da, outrora, oitava economia do mun-do e que hoje se encontra em 13ª no rankingmundial. Esse dado é controverso se levarmosem consideração a sobrevalorização do real, o

que a colocaria em uma posição ainda mais infe-rior. Sem investimentos na infra-estrutura, semincentivos ao desenvolvimento científico-tecno-lógico, sem política urbana - quando se assiste aocrescimento do poder paralelo nas megalópoles -,sem uma política acurada de reforma agrária etc.,a situação socioeconômica tende a agudizar osníveis de indigência e miséria que pululam narealidade nacional.

A década de 1980, conhecida como décadaperdida, foi ultrapassada pela década de 1990 queapresentou uma queda ainda maior nos investi-mentos e, conseqüentemente, houve um inchaçono emprego informal e uma diminuição do em-prego formal. Essa realidade, no início do séculoXXI, só tem se agravado com a persistência depolíticas genocidas como são as políticas emana-das dos organismos multilaterais: Banco Mundial(BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI). Aesse respeito, diz o ex-diretor do Banco Mundial:

Não se deve ver o desemprego como uma

simples estatística, como uma ‘enumeração

de cadáveres’ - vítimas não intencionais da

guerra contra a inflação ou pelo pagamento

aos bancos ocidentais. Os desempregados

Educação: prioridade nacional?

R$ milhões correntesIItteennss 22000011 %% TToottaall 22000022 %% TToottaall 22000033 %% TToottaall 22000044 %% TToottaall

1) Previdência Social 105.989 66,4 122.550 67,4 146.226 68,6 168.252 67,6

2) Assistência Social 8.506 5,3 10.245 5,6 12.858 6,0 16.237 6,5

Errad Trab. Infantil 315 0,2 516 0,3 470 0,2 190 0,1

Bolsa Família 1.531 1,0 2.408 1,3 3.444 1,6 5.799 2,3

3) Proteção Trab. e Ger. de Emprego 6.904 4,3 7.977 4,4 9.008 4,2 10.130 4,1

Geração de Emprego e Renda 119 0,1 120 0,1 3 0,0 3 0,0

4) Organização Agrária 1.331 0,8 1.470 0,8 1.316 0,6 2.382 1,0

PRONAF 222 0,1 233 0,1 116 0,1 569 0,2

5) Educ. e Cultura 8.975 5,6 9.236 5,1 11.087 5,2 13.038 5,2

Ensino Superior 5.752 3,6 6.306 3,5 7.142 3,4 8.579 3,4

6) Saúde 21.187 13,3 24.001 13,2 26.524 12,4 31.7941 12,8

7) Saneamento Básico e Habitação 1.897 1,2 1.122 0,6 863 0,4 1.35 0,5

Benefícios aos Serv. Federais 2.286 1,4 2.110 1,2 2.453 1,2 2.659 1,1

Sistema S 2.667 1,7 3.125 1,7 2.857 1,3 3.000 1,2

Total 159.742 100,0 181.836 100,0 213.191 100,0 248.848 100,0

Fonte: Orçamento Social do Governo Federal: 2001-2004, Ministério da Fazenda/SP, 2005

Gasto social direto do governo federal: 2001 – 2004Quadro I

são pessoas de carne e osso, têm famílias, e

todas essas vidas são dolorosamente afeta-

das, às vezes destruídas, pelas medidas eco-

nômicas que os especialistas estrangeiros

recomendam, ou impõem - no caso do

FMI. A guerra tecnológica moderna é con-

cebida para suprimir todo contato físico: as

bombas são lançadas de uma altitude de 15

mil metros para que o piloto não ‘ressinta’

o que faz. Com a moderna gestão da econo-

mia, é a mesma coisa. Do alto de um hotel

de luxo, impõem-se, sem piedade, políticas

sobre as quais se pensaria duas vezes caso se

conhecessem os seres humanos cujas vidas

vão ser arrasadas. (STIGLITZ, 2002).

O caso brasileiro é sintomático. O cardápiodo FMI está sendo aplicado pelo governo Lula.A perversidade de que nos fala Stiglitz encontra-se posta em prática na nossa sociedade. A infla-ção é vista como um problema eminentementemonetário, ou seja, trata-se de enxugar a basemonetária porque há excesso de dinheiro circu-lando, o que provoca inflação por excesso de de-manda. O povo brasileiro, por essa visão, estariaconsumindo muitas mercadorias produzidas pelaindústria capitalista. Daí, o Banco Central utili-zar a taxa de juros como mecanismo de contençãoda taxa de inflação para diminuir o excesso de de-manda.... em uma economia pré-falimentar comoa nossa. Por essa perspectiva, a sociedade se ali-menta em demasia e cabe ao Banco Central, jun-tamente com o Ministério da Fazenda, fazer umapolítica econômica asséptica, intervenções assép-ticas nas quais os cortes não pareçam o que são,isto é, o sangramento dos gastos públicos sociais.

Nesse sentido, a inflação nos é apresentadacomo sendo produto de um dragão que não po-demos vencer, somente controlar. É a dança fan-tasmagórica das cadeiras. A inflação, produto so-cial, passa a ser apreendida como fetiche que atudo e a todos domina.

No mundo da aparência e do fetichismo o

controle do poder de compra do dinheiro,

indagação empobrecida e reduzida à ques-

tão da taxa de inflação, isto é, o controle do

equivalente geral de todas as mercadorias,

do instrumento que pode reservar valores,

acumular poder (de compra) e permitir que

o dinheiro se transforme em capital, pode

tornar-se a mais importante tarefa e a meta

das metas dos governos governados pelas

mercadorias. (CAMPOS, [1980-?]).

Não é por acaso que o ex-ministro da Fazen-da Palocci defende com ardor a manutenção dataxa de juros no maior patamar que se conheceno mundo. Mas a sociedade é cindida, divididaem grupos, camadas e classes sociais e, pourcause, se tal política restringe o bem-estar de par-te(s) da sociedade, outro(s) grupo(s), camada(s),classe tem (têm) que estar ganhando, não neces-sariamente na mesma proporção, já que, no mun-do da concorrência, os sujeitos sociais têm pode-res sociais diferenciados e, sempre, em consonân-cia com sua participação no processo de pro-dução excludente, que é o capitalista. Não há jo-go de soma zero.2

Meirelles diz que se baixa a taxa de juros

com superávit fiscal e executando uma po-

lítica que faça decrescer a dívida. Incorre

em contradição. Ele julga que a inflação se

contém elevando a taxa de juros, tendo

aprovado enfaticamente essa medida toma-

da por Fraga. Mas o aumento dos juros faz

elevar a despesa pública. E como a eleva no

Brasil, onde a dívida pública passa de 60%

do PIB, e seu serviço se aproxima de 20%

do PIB! Por isso, não há superávit fiscal

algum. Há, sim, um grande déficit. Superá-

vit só existe na ficção do orçamento primá-

rio, i.e., sem contar os juros. De outra parte,

a dívida, que, diz Meirelles, seria preciso

reduzir, só tende a crescer em função dos

altíssimos juros que paga. De fato, dadas a

carência de tudo no País e a dimensão atin-

gida pela dívida, por mais que se compri-

mam gastos, não são resgatados todos os tí-

tulos públicos que vão vencendo, nem

amortizadas todas as prestações dos em-

Educação: prioridade nacional?

40 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 41

préstimos. Assim, parte dos juros é capita-

lizada, o que significa crescimento da dí-

vida. (BENAYON, 2003).

É em virtude disso que a imprensa tem noti-ciado a cunha que a política neoliberal, sob o co-mando do ex-ministro Palocci, tem provocadonas mais variadas instâncias de governo. Os posi-cionamentos da ministra Dilma Roussef e dovice-presidente da república José Alencar sãoexemplares a esse respeito. O capital produtivotem reclamado da política monetária ortodoxaque seria e é impeditiva de gastos sociais, de au-mento do emprego, de melhora da saúde, de re-cursos para a educação, de aumentos de salárioetc. O que não se vê e, principalmente, o que nãose diz é que a inflação, em termos sociais, é me-nos corrosiva do que a tão “sonhada”, e cinica-mente decantada, deflação. Lorde Keynes (1992,p. 25-26, grifos do autor, tradução nossa) defen-dia e mostrava que a inflação era o elixir do capi-talismo, de sua dinâmica. Para ele, tanto o pro-cesso de inflação quanto o de deflação “[...] alte-ram a distribuição da riqueza entre as diferentesclasses, sendo a inflação sob este aspecto o pior.Têm também o efeito de estimular excessiva-mente, ou de retardar, a produção de riqueza ain-da que neste caso a deflação seja mais prejudicial.”

A política inflacionária serve para diminuir opoder aquisitivo da classe trabalhadora a fim deaumentar o lucro da classe detentora dos meiosde produção e subsistência. A inflação é ruim pa-ra o trabalhador, mas, em compensação, é ótimapara os capitalistas que minimizam os custos desua folha de pagamento, aumentando sua taxa delucro. Dessa forma, a inflação como fenômenosocial total é um produto dos conflitos, contra-dições e antagonismos sociais que subjazem naestrutura do modo de produção capitalista paramanter e reproduzir o sistema.

Inegavelmente, a inflação aderiu ao capitalis-mo desde o século XVI, quando das transferên-cias dos metais ouro e prata do Novo para o Ve-lho Mundo. A Idade Moderna inaugura uma no-va era, que começa com a inflação e acompanha ocapitalismo até hoje.

A inflação acompanhou o capitalismo tantodurante a livre concorrência, quanto na transfor-mação desta em concorrência oligopolista, sendoresponsável por sua dinâmica até os dias atuais. Écom a Grande Indústria que temos a produçãoem massa e, com ela, a possibilidade, em escalacrescente, do desdobramento e aprofundamentodas crises capitalistas que solaparam todo o sé-culo XIX, transformando a livre concorrênciaem concorrência oligopolista, monopolista. Des-sa forma, o capitalismo, no século XX, vai apre-sentar as modificações substantivas sofridas porele no que concerne ao processo produtivo. Nasprimeiras décadas do século passado, o trabalha-dor perdeu o controle desse processo e foi, por-tanto, constrangido a obedecer ao ritmo da má-quina. O operário é inserido na cadeia produtivacomo apêndice desta. Temos, então, a produçãochamada fordista. Em vez de pequenas e médiasempresas, concorrendo como no laisser-faire/-laisser-passer, passamos a ter grandes empresas,com produção em massa, disputando um merca-do cada vez mais imprevisível, incontrolável e,conseqüentemente, passível de agudizar, sobre-maneira, as crises capitalistas de sobreproduçãode mercadorias, de insuficiência relativa de de-manda, provocada pelo baixo poder aquisitivo dapopulação.

O fato que desejamos salientar é que o pro-cesso de acumulação capitalista acicatado pelaprodução industrial, maquinizada, passou a colo-car no mercado milhares de mercadorias paraconsumo em massa, sem que a sociedade tivessemeios de troca suficientes para demandar as mer-cadorias produzidas.

Foi, incontestavelmente, o desenvolvimentodas forças produtivas que produziu a perda, pelotrabalhador, do controle do processo de traba-lho. É no início do século XX, que Ford, argutocapitalista norte-americano, desenvolverá a cha-mada linha de montagem do modelo T de seusautomóveis. O processo de trabalho capitalistaescapa, assim, do controle operário. É a linha demontagem, é a linha de produção, na qual o tra-balhador se encontra dominado pela máquina. Ocriador passa a ser escravo de sua cria, é o reino

Educação: prioridade nacional?

do fetichismo da mercadoria.Essa revolução no processo produtivo ocorre

no momento em que politicamente o homem sedepara com alternativas pouco, ou nada, dignifi-cantes de seu trajeto no mundo: nazi-fascismo,stalinismo e social-democracia. É no emaranhadodas contradições oriundas do processo produtivoe transpostas para o cenário sóciopolítico que va-mos ter uma mudança qualitativa na estrutura daeconomia capitalista: a crise de 1929, que marca ofim do laisser-faire e o concomitante início daeconomia keynesiana, o Estado do Bem-EstarSocial e, com ele, a institucionalização do depar-tamento III, produtor de não-mercadorias (não-meios-de-consumo e não-meios-de-produção).

Os tempos modernos - já mostrou o cineasta eator Charles Chaplin, em seu memorável filmesobre o assunto - trouxeram facilidades e prejuí-zos à sociedade. Na sagaz crítica à industrializa-ção, Chaplin apontou a massificação, a falta decriatividade, a robotização do ser humano e suaexploração pelos capitalistas. Embora não sejamapenas essas as qualificações que possamos darao processo em questão, uma vez que é inegável,também, sua participação no que concerne à di-namização e desenvolvimento dos países hege-mônicos, cabe a nós, excluídos do banquete civi-lizatório, diretamente afetados pelos seus efeitosnegativos, propormos a sua transformação.

A produção fordista implicava o aumento daprodutividade do trabalho, assim como da massade mercadorias disponíveis no mercado. A pro-dução capitalista ocorria por meio de dois meca-nismos macroeconômicos clássicos: emissão demoeda-estatal e endividamento público. Dito deoutra forma, este modo de produção mercantilnecessita da inflação para se dinamizar e, já que aprodução capitalista é capital intensive, para queos investimentos tecnológicos não se traduzamem preços cadentes, dada a diminuição do tempode trabalho para a produção de cada unidade, o“elixir” inflacionário mostra o seu vigor e suafunção diferentemente do que aponta a políticaeconômica do atual (des)governo. Ao desenvolvi-mento das forças produtivas corresponde umadiminuição do custo unitário da mercadoria e esta

queda, que se reflete nos preços, é resolvida peloaumento da massa de mercadorias produzidasque compensa a perda no preço unitário aludida.

Dessa forma, a inovação tecnológica se cons-titui num acicate para o aumento da galinha deovos de ouro do capitalismo: a taxa de lucro. Aomesmo tempo em que a inovação tecnológicapermite e possibilita o desenvolvimento econô-mico com sua introdução no processo produtivo,este, chegado a um determinado patamar, temque desviar o capital produtor de mercadoriaspara a produção de não-mercadorias, a fim degarantir a taxa de lucro que a produtividade au-mentada tenderia a zerar. Assim sendo, a econo-mia capitalista volta seus instrumentos para re-solver as crises intermitentes que solaparam, esolapam, a sua dinâmica. Para fazê-lo, a produ-ção de não-mercadorias pelas unidades produti-vas privadas encontrará, no governo, seu deman-dante monopsônico para solucionar, tempora-riamente, a crise de insuficiência de demanda efe-tiva. O governo do ex-operário Lula, desconhe-cendo a função anticíclica basilar do Estado noprocesso de acumulação, atende à farmacopéiado FMI e Banco Mundial aprofundando a de-pressão e crise da economia brasileira, ao dimi-nuir substantivamente os gastos sociais públicos.Ao invés de criar emprego, via investimentosprodutivos, a propositura governamental é a im-plementação de uma política pública que visa aperpetuar a indigência, a não-produção de rique-za, como o são os gastos em vales, escola, leite, re-feição, gás etc. É a produção e reprodução de umasociedade de indigentes, de pedintes. Nesse senti-do, o pensador francês, Alain Lipietz, tem razãoao asseverar:

Há uma grande diferença entre o liberalis-

mo do século XIX e o liberal-produtivismo

de hoje. O liberalismo do século XIX tinha

a ambição de assegurar a felicidade coletiva

encorajando cada um a procurar o enrique-

cimento individual. Era um liberalismo

‘utilitarista’, ‘hedonista’. Ele proporcionava

um objetivo ao progresso técnico e à livre

empresa, e esse objetivo era a felicidade pe-

Educação: prioridade nacional?

42 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

lo enriquecimento de todos. Bem claro, os

melhores propagandistas do novo liberalis-

mo [...] não negligenciam este aspecto.

[...] existem, no liberal-produtivismo, per-

dedores e ganhadores. No caso de não êxito

pessoal, o êxito dos outros lhes dá uma se-

gunda chance: [...] fazendo com que se tor-

nem servidores dos ricos, engraxando seus

sapatos, puxando suas cadeiras nos restau-

rantes de luxo [...] E os doentes, os defici-

entes físicos, os desempregados que não en-

contram emprego mesmo a um preço vil?

Quem deles se ocupará? Seus parentes, seus

vizinhos. A sociedade civil deve fazê-lo. É a

volta à mais antiga ‘providência’: a benevo-

lência. E a seus especialistas naturais: as

mulheres, que por seu trabalho e seus cui-

dados domésticos cuidam das feridas das

vítimas da luta de todos contra todos. (LI-

PIETZ, 1989, p. 44-45, tradução nossa).

Não resta dúvida de que este autor se referia àcrise pela qual passava o processo de produçãofordista e à institucionalização do neoliberalismocomo saída transitória para a crise que dormitavano leito de Procusto. Na nova divisão internacio-nal do trabalho, as economias hegemônicas im-porão às semi-integradas o custo maior da crise.

Uma multidão de demandantes de trabalho

encontrará empregos precários e o desem-

prego. A sorte dos desempregados será mais

ou menos mitigada pela caridade pública ou

pela solidariedade de sua família [...]

[...] do Rio de Janeiro a Los Angeles o mo-

delo é o mesmo. [....] O idealismo coletivo

se refugia, muito freqüen-

temente, em formas arcai-

cas como as várias seitas re-

ligiosas etc. (LIPIETZ, 1989,

p. 47, tradução nossa).

O problema é que o própriodesenvolvimento capitalista mu-dou o processo produtivo-con-suntivo, ao garantir a demanda pa-

ra capitalização, por meio do dispêndio governa-mental que veio combler le trou da insuficiênciacrônica de demanda efetiva, que já havia sidodiagnosticada por Malthus, no início do séculoXIX, e que culminou com a crise de 1929. Nessesentido, o governo demanda no lugar dos traba-lhadores. A produção de mercadorias transfor-ma-se em produção de não-mercadorias, o tra-balho produtivo gasto no departamento I, pro-dutor de máquinas de produzir máquinas, e nodepartamento II, produtor de meios de consu-mo, passa a ser capitaneado pelo departamentoIII, produtor de não-mercadorias, produzidaspelo trabalho improdutivo-destrutivo. A astúciakeynesiana foi, entre outras, propor o desloca-mento do Estado capitalista, da esfera da produ-ção, para a esfera da circulação. Há crise no sis-tema porque a distribuição de renda é capitalista.Nas economias retardatárias, que não possuem atotalidade do DI, do DII e do DIII, só resta aoEstado dinamizar o processo acumulativo, viagastos improdutivos e, às vezes, destrutivos,como é o caso do envolvimento brasileiro noHaiti. O dinheiro nacional não tem poder socialpara comprar, por exemplo, o departamento III,de não-mercadorias. Mais uma vez tem razãoMarx, ao afirmar que o homem traz no bolso opoder social que ele tem. Nesse sentido, o poderdo capital-dinheiro nacional é limitado, pois nãopode, não tem poder de demandar as não-mer-cadorias bélicas, espaciais pertencentes às econo-mias hegemônicas.

Ora, no momento em que a inflação, ‘elixir’do capitalismo, não mais o dinamizava, mudoude forma: passou a ser dívida pública. Ao se me-tamorfosear, a inflação passou a não ser captada

pelo índice de preços.

[...] inflação não foi sempre essencial à

preservação de tensões, contradições

e distorções estruturais: sempre que o

contexto sócio-econômico emprega

eficazmente outras técnicas diretas de

redução da unidade de salário real e

das rendas contratuais, de perdão de

dívidas, de aumento relativo do setor

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 43

A astúcia keynesiana foi,entre outras, propor o

deslocamento do Estadocapitalista, da esfera daprodução, para a esfera

da circulação.

público, etc., e que são usadas, em substi-

tuição do instrumento monetário, para al-

cançar aqueles mesmos objetivos, o índice

de preços não será afetado por aqueles ins-

trumentos não-monetários. Mas as condi-

ções de vida de certas camadas sócio-eco-

nômicas - trabalhadores e funcionários -

podem, sob uma inflação de taxa zero, estar

mais deterioradas do que eram, anterior-

mente, sob uma taxa elevada de inflação.

(CAMPOS, 1999, p. 8).

O obscurecimento das relações reais, capita-listas, por instrumentos pura e simplesmentequantitativos, como o são os índices de preços,fazem-nos tomar o fenômeno pelo todo. Os as-pectos qualitativos, muitas vezes, não mensurá-veis do real, mas que o conformam, são simples-mente ignorados. Nesse sentido, e com razão,Campos (1999, p. 9) afirma que “Não são os da-dos que iluminam a realidade: é a determinaçãodo real que dá sentido aos dados numéricos.”

Para que a inflação reste em patamares redu-zidos, não exploda com o modo capitalista deprodução, o Estado lança mão da emissão de tí-tulos públicos. A produção, que era fundada notrabalho produtivo, produtor de mercadorias, senega e, pour cause, temos a produção de não-mercadorias, produtos bélicos, espaciais, obraspúblicas inconclusas etc., onde o trabalho impro-dutivo-destrutivo passou a dominar toda a dinâ-mica econômica. O processo de desenvolvimen-to contraditório do sistema capitalista leva, ne-cessariamente, a que o Estado emita state-money,com uma das mãos, a fim de contratar trabalha-dores improdutivos para o setor terciário do go-verno e trabalhadores destrutivos para a produ-ção bélica, espacial etc. e, com a outra mão, vendatítulos públicos, visando ao enxugamento da basemonetária que possibilitaria o vertiginoso au-mento de preços. A inflação muda de forma, pas-sa a ser dívida pública, e a dinâmica deste modode produção só poderá continuar na medida emque o déficit orçamentário possa crescer, hiper-trofiando o crescimento capitalista, o que signifi-ca dizer que esse processo de reprodução sócio-

metabólico caminha para a depressão e crise docapitalismo.

Ao institucionalizar o déficit permanente, o

governo capitalista, que passou para o cen-

tro da economia para desempenhar seu pa-

pel anticíclico, tem de abandonar o sistema

monetário ouro e adotar o state-money, o

sistema de papel-moeda inconversível. O

déficit de caixa do Tesouro era, sob o siste-

ma metálico, coberto por empréstimos ou

pela produção adicional (limitada) de me-

tal-padrão. Após 1933, o governo passa a

produzir papel-moeda inconversível, o que

deveria significar o fim da necessidade de

tomar empréstimos: ele produz o dinheiro

que, antes, no sistema ouro, tinha de tomar

emprestado. A dívida pública deveria ter se

encerrado nesse momento. No entanto, ela

se eleva e atinge 120% do PNB dos Estados

Unidos em 1945. Por que ela não desapare-

ceu, mas, ao contrário, se expandiu? Porque

ela passou a ser essencial para restringir e

limitar o poder de compra e a circulação do

dinheiro-estatal, conservando-o como meio

de pagamento no setor relacionado ao pa-

gamento de funcionários públicos, trabalho

improdutivo, estradas, estádios, produtos

bélicos e semelhantes, comprados apenas

pelo governo. Se as injeções monetárias que

penetram por esse departamento III, pro-

dutor de não-mercadorias (não-meios de

produção e de consumo, ao mesmo tempo),

não fossem, em grande parte, bombeados

pela dívida pública, pela venda de títulos do

governo (bonds, ORTNs, LTNs), elas flui-

riam, de acordo com propensão média a

consumir de seus perceptores, para a com-

pra de meios de consumo, elevando expo-

nencialmente a taxa de inflação e diluindo o

poder de compra de novas emissões. As no-

vas emissões têm de elevar-se quantitativa-

mente para garantir o pagamento de com-

pras cada ano mais vultosas de não-merca-

dorias. (CAMPOS, 1999, p. 16).

Educação: prioridade nacional?

44 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Essa foi a solução que vigorou até os anos1970 quando, em nível internacional, a economiacapitalista se depara com a crise do DIII, quecontamina os demais departamentos. O Estadodo Bem-Estar Social entra em débâcle.

O que foi solução deixou de sê-lo. A negativi-dade das mercadorias passou a ser negada, e aproposta neoliberal que veio dominar a economiapolítica brasileira, retardatária, teve, nos governosFHC e Lula, o ‘arsenal’ macroeconômico direcio-nado para o atendimento da classe dominante, es-pecialmente do capital fictício. Nesse sentido, aopção governamental foi a deflação, esquecendo-se das severas advertências de Keynes:

[...] o perigo com que nos defrontamos é a

rápida queda do nível de vida das popula-

ções européias a um ponto que para alguns

significará fome [...].

Nem sempre os homens morrerão em si-

lêncio. Isto porque, se a fome leva alguns à

letargia, e ao desânimo irremediável, ela

conduz outros temperamentos à nervosa

instabilidade da histeria e a um louco deses-

pero. Em seu sofrimento, estes podem der-

rubar o que resta de organização, e afogar a

civilização em suas desesperadas tentativas

de satisfazer as prementes necessidades in-

dividuais. Esse é o perigo contra o qual to-

dos os nossos recursos, coragem e idealismo

devem cooperar. (KEYNES, 1984, p. 55).

As preocupações do eminente lorde estão serealizando, já que assistimos a convulsões sociaisem todas as megalópoles brasileiras, dominadaspelo narcotráfico, tráfico de armas e todo tipo decomércio à margem da lei. São preocupantes a ta-xa de mortalidade, a taxa de morbidez da popu-lação e os milhões de crianças abandonadas e ca-rentes. O poder paralelo se institucionaliza. Estelado negativo não aparece e nem é reconhecidopelo Governo. Segundo Medeiros (2005), a con-centração de renda na sociedade brasileira é talque 0,9% da população se apropria de uma rendasuperior à dos 50% mais pobres, quando soma-da. Por outro lado, os 10% mais pobres desta so-

ciedade tanática, os eviscerados pela sanha do ca-pital, se apropriam somente de 1% da riquezanacional.

Acresce a isso a corrupção praticada nas dife-rentes esferas de governo, em que o poder públicose encontra mancomunado com o poder privadono saque, na pilhagem da maioria da sociedade, ouseja, para que o processo de acumulação possacontinuar na periferia do mundo globalizado, au-mentando a adiposidade das elites nacional e inter-nacional, tornou-se imperativo o empobrecimen-to da chamada classe média que está sendo descar-nada pela exponencial carga tributária, pelo sub-consumo, visando aos pagamentos das dívidas in-terna e externa, além dos extorsivos juros que con-tribuem para que o trabalhador reste ‘sarado’...

A apropriação do dinheiro público assume asformas mais diversas em termos improdutivoscomo, por exemplo, os gastos com publicidadeinstitucional que atingiram a cifra de R$ 94 mi-lhões em 2005, enquanto a publicidade para cam-panhas preventivas de doenças e vacinação foiaquinhoada com praticamente o mesmo valor,R$ 96 milhões, segundo o Sistema Integrado deAdministração Financeira do Tesouro Nacional(Siafi). Diga-se, en passant, que do montante rela-tivo à publicidade institucional, estão excluídos osgastos com a publicidade de estatais como Cor-reios e CEF que estiveram, nestes últimos anos,no centro da crise social, política e econômica pelaqual passa a sociedade brasileira.

Há que aduzir enfaticamente o fato conheci-do, mas praticamente não assinalado, da íntimaligação entre o narcotráfico, tráfico de armas e oprocesso de mundialização do capital em crise.

A economia capitalista, em grande parte doséculo XX dinamizou-se, com base no well/warfarestate, com a produção de mercadorias, sendo ne-gada sistematicamente, já que a economia funda-da nos dois departamentos produtores de meiosde consumo e meios de produção se deparoucom seu finishing e, então, a saída encontrada foia produção de não-mercadorias, estando aí im-plicada a produção da droga, do tráfico sob asmais variadas formas, que alimentam de modosubstancial a valorização do capital fictício. A

Educação: prioridade nacional?

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46 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

produção para a destruição é a ca-racterística maior do capitalismo,na sua fase imperialista atual do-minada pelo capital bursátil. Issotraz conseqüências muito sérias edanosas para as pessoas que ha-bitam as cidades e, o que é pior,grande parte delas, a maioria si-lenciosa, desconhece olimpica-mente as implicações que têm,para sua vida, as políticas ema-nadas do governo subserviente aos ditames docapital internacional. Aparentemente as medidastomadas nos recônditos das comissões, salas,quartos... ante-salas das decisões político-eco-nômicas nada têm a ver com os habitantes dacidade, com a nossa vida. É como se existissemdois mundos: o do noumeno kantiano e o mundoreal. A alienação impera, amortece e embruteceas consciências. Nesse sentido, a dominação declasse manifesta-se aplastante sobre a sociedadeque, de imediato, não encontra meios de se soer-guer. As cidades, dessa forma, apresentam todas asbelezas e disformidades da sociedade dominadapelo capital.

As cidades As cidades produzidas pelo mundo do capital

começaram elementares e Engels, no livro A Si-tuação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, jáapresentava os enfrentamentos, as contradições,as lutas irreconciliáveis que se cristalizavam naurbis. Hobsbawn, em notável prefácio à ediçãofrancesa, assim se refere:

Engels é, neste livro, um pioneiro, posto

que A Situação é provavelmente o primeiro

estudo importante cujo argumento repousa

inteiramente sobre a noção de revolução in-

dustrial, hoje admitida mas que à época se

constituía em uma hipótese audaciosa ela-

borada nos círculos socialistas franceses e

ingleses dos anos vinte. (HOBSBAWN

apud ENGELS, 1973, p. 10-11, grifos nos-

sos, tradução nossa).

É inegável que as cidades foramse desenvolvendo com o própriodesenvolvimento capitalista. Comoas relações de trabalho nem sempreforam dominadas pelo capital, é esteque cria, no seu processo de re-produção sóciometabólica, a classetrabalhadora assalariada. O assala-riamento nem sempre existiu. É apartir de um longo processo his-tórico que vamos ter a relação social

básica que caracteriza o modo de produção capita-lista, ou seja, a relação capital-trabalho. Mas o de-senvolvimento do capitalismo de livre concorrênciacarrega, in potentia, suas próprias contradições,trazendo consigo os germens portadores de um ca-pitalismo mais avançado, mais desenvolvido, maisexcludente.

São as metamorfoses percorridas pelo capital,no seu processo de desenvolvimento, criando,destruindo, produzindo e reproduzindo novasformas sociais que vêm desembocar na maiorcrise do século XIX, 1873-1896, e que marca anecessária transformação da livre concorrênciaem concorrência oligopolista, monopolista pormeio da formação de trustes e cartéis. Como afir-ma Hilferding:

A cartelização significa também maior se-

gurança e uniformidade do rendimento das

empresas cartelizadas. São suprimidos os

riscos da concorrência que, freqüente-

mente, eram muito perigosos para a empre-

sa industrial [...] Além disso, a segurança

para o capital aplicado nessas empresas é

significativamente maior. Isso permite aos

bancos estender mais amplamente o crédito

industrial e, dessa forma, participar no lu-

cro industrial em proporções maiores do

que até então. (HILFERDING, 1970, p.

218, tradução nossa).

O processo acumulativo, de cartelização,trustificação, que vai do último quartel do séculoXIX até a crise de 1929, é a tentativa, pelo capital,de sobrepassar as crises intermitentes que asso-

Educação: prioridade nacional?

A produção para adestruição é a

característica maior docapitalismo, na sua fase

imperialista atualdominada pelo capital

bursátil.

laram o capitalismo durante o século XIX e pri-meiras décadas do século passado, como fica cla-ro na citação. É importante salientar que estaconcorrência oligopolista traz, também, na suadinâmica, a negação de si própria.

À centralização sócioeconômica correspondea concentração e centralização dos trabalhadoresnas fábricas, nas cidades do capital. A tendência éa migração do campo para a cidade.

O campo reconhece que está a serviço da

cidade, e a cidade envenena a natureza; ela a

devora re-criando-a no imaginário para que

essa ilusão de atividade perdure. A ordem

urbana contém e dissimula uma desordem

fundamental. A grande cidade não é apenas

vícios, poluições, doença (mental, moral,

social). A alienação urbana envolve e perpe-

tua todas as alienações. Nela, por ela, a se-

gregação generaliza-se: por classe, bairro,

profissão, idade, etnia, sexo. Multidão e so-

lidão. Nela o espaço torna-se raro: bem va-

lioso, luxo e privilégio mantidos e conser-

vados por uma prática (o ‘centro’) e estraté-

gias. Decerto que a cidade se enriquece.

Atrai para si todas as riquezas, monopoliza a

cultura, como concentra o poder. Devido à

sua riqueza explode. Quanto mais concentra

os meios de vida, mais torna-se insuportável

nela viver. (LEFEBVRE, 2002, p. 89-90).

O mundo produzido pela frenética e caóticaacumulação de capital tem como seu subprodutodeletério, mas necessário, as hoje conhecidas me-galópoles, em que a vida se torna cada vez maisinsuportável. É a produção e reprodução dos in-digentes, favelados, do crime organizado, das vio-lências, física e muda, do tráfico de órgãos, con-trapostos ao encarceramento das elites e da “classemédia alta”, em verdadeiras fortalezas, nos bairrosricos, que são possuidores de serviços de sanea-mento, água e esgoto, iluminação pública, escolasetc., onde é representado, como diz Buñuel, o char-me discreto da burguesia. Os trabalhadores, emplena crise do capital, serão, como mostrou cine-matograficamente também Buñuel, los olvidados.

Ora, o mundo capitalista, ao se desenvolver,transformou-se negando as bases que davam sen-tido à sua existência. O capital produtor foi do-minado pelo capital fictício, capital não-produ-tor de excedente econômico e que suga a mais-valia produzida pelo trabalhador, in actu, na es-fera produtiva. O resultado desse processo com-plexo foi o desenvolvimento de atividades intei-ramente marginais, alheias ao processo produti-vo-consuntivo capitalista. Não por acaso têm si-do as atividades bélicas, espaciais, de propaganda,de segurança entre outras que dinamizaram aeconomia imperialista nestes últimos 60 anos.Nesse sentido, quando o processo de mundiali-zação mostra seu lado negativo em que a econo-mia se apresenta combalida com taxas de acumu-lação decrescentes, as atividades ligadas ao sub-mundo - lavagem de dinheiro, narcotráfico etc. -,ganham uma fantástica dimensão ao desenvolvere institucionalizar o poder paralelo. A populaçãodas megalópoles fica sem ter para onde correr:sem proteção, sem segurança, sem governo, semtrabalho, sem emprego, sem salário, sem esperan-ça, sem...

As organizações de classe, partidos políticos,sindicatos se encontram desorganizados pelo ro-lo compressor das políticas neoliberais que prati-cam a política pública de “terra arrasada”. Dessaforma, as grandes cidades, em seu cotidiano, tor-nam-se palcos de todo tipo de violência. Assimcomo o capital fictício é, ao mesmo tempo, a for-ma mais desenvolvida e a negação mais acabadado capital, é lá, exatamente na grande cidade, ci-dade do capital, que vamos ter colimada sua (dacidade) tendência a ser a negação do lazer, dacultura, do bem-estar, da “joie de vivre”. É im-pressionante, por exemplo, conforme artigo deArgitis (2005), o fato de que a produção de ma-conha no Canadá seja o triplo da produção detrigo, quando 50% da população mundial vivemem condições de miserabilidade com menos dedois dólares ao dia. À não-produção de meios deconsumo corresponde a produção tanática, des-truidora do homem como ser total e de suas rela-ções sociais na atual fase imperialista.

Os experts da Secretaria de Política Econômi-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 47

Educação: prioridade nacional?

ca do Ministério da Fazenda, tendo comomodelo o médico Palocci, antípoda do médicoQuesnay que escreveu o genial Tableau Econo-mique, desconhecem a dinâmica do que estão ad-ministrando. Não conhecem seu modo de fun-cionamento e, talvez por isso, se fingem de sur-presos, como foi o caso do ex-ministro, ao dizer,em 1/12/2005, segundo a Folha de São Paulo, queo recuo do PIB no terceiro trimestre foi uma‘surpresa negativa’, mas que o resultado é só ‘ummomento fora da curva de crescimento’. Ora, talafirmativa implica desconhecer que o crescimentonegativo, como foi o daquele trimestre, é oproduto inexorável da própria política públicalevada a cabo pelos tecnocratas de plantão e que,portanto, se manifesta de forma palmar no espe-táculo do encolhimento. Essa política, irrespon-sável socialmente, produziu o despencar da taxade investimento, esgarçando ainda mais o já frágiltecido social brasileiro.

A questão tributáriaO dinheiro-imposto é uma das formas sociais

que assume a mais-valia, ou seja, o excedente nomodo capitalista de produção. Enquanto tal, éuma das manifestações fenomênicas do processode exploração capitalista. Neste mundo de pro-dução mercantil desenvolvida, o processo de su-pra-sunção real do trabalho ao capital é envelo-pado pelo dinheiro-salário, dando a aparência deque o trabalhador foi pago pelo seu trabalho.Aparência necessária à reprodução do capital. Aideologia faz parte do real e, assim, tem que seapresentar como seu representante para cumprircom o seu desideratum, que é o de simplificar eunificar a vida em proveito da ação, como pen-sava Mannheim.

Como produto da mais-valia apropriada peloEstado, os impostos têm que aparentar racionali-dade, isto é, se forem tributados os lucros e dimi-nuídos os subsídios às empresas, diminuirão oemprego e a produção. Dessa forma, a racionali-dade consiste em não tributar unidades produti-vas privadas, já que o processo de acumulaçãotenderia a fletir, diminuindo, em conseqüência,os postos de trabalho. Dessa forma, o desempre-

go grassaria na sociedade. O outro princípio daideologia tributária é o da eqüidade, que implicaa progressividade do tributo, ou seja, quantomaior a renda, maior o imposto. Como veremosadiante, os dados mostram que é o trabalhadorassalariado, formal ou informal, que paga, oumelhor, carrega nas costas, a maior carga dos im-postos. A eqüidade está longe, também, de seconstituir em verdade. A ideologia capitalista queencobre, maquia, a questão tributária, necessitaaparentar uma consistência lógica e formal parapoder circular e fazer crer que o sistema, sob oimpério do capital, tem sua rationale, indepen-dentemente dos indivíduos.

Na realidade, a ideologia tributária encobre,fetichiza, as várias funções sociais que o dinhei-ro-imposto necessariamente assume na sociedadeestratificada, conflitiva e contraditória em quevivemos.

Assim, o dinheiro-imposto é sempre, sob a

ótica do contribuinte individual um não-

meio-de-consumo e, sob a ótica da empresa,

capital-dinheiro-potencial. Como dinheiro-

estatal, o dinheiro-imposto se converte em

meio de compra de ‘não-mercadorias’ e de

trabalho improdutivo (terciário do governo

e serviços das empresas terciárias), que se re-

solvem, finalmente, em meio de compra de

meios de consumo e meios de acumulação

das empresas produtoras de ‘não-mercado-

rias’. Por isto, o dinheiro-imposto é o prin-

cipal instrumento de reincorporação da

força de trabalho, por via do consumo, ao

processo produtivo-consuntivo e de redução

da taxa de expansão das forças produtivas.

(CAMPOS, 1973. p. 56).

O imposto incide diretamente sobre a força detrabalho, o que, incontestavelmente, diminui opoder de compra já deveras corroído dos traba-lhadores e, no caso das empresas, cumpre a funçãode obstar a crise de sobreacumulação, ao desviarrecursos que seriam destinados à expansão dasforças produtivas para a produção improdutivo-destrutiva na compra de não-mercadorias. Nas

Educação: prioridade nacional?

48 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

crises capitalistas, o Estado, por meio da expansãodo terciário e da produção destrutiva, garante a re-produção das classes sociais em luta, por isso o go-verno brasileiro contrai drasticamente os investi-mentos e os gastos sociais.

Não resta dúvida de que, quando o processode acumulação se encontra em fase depressiva,sempre coube, historicamente, ao Estado fazerinvestimentos, contratar trabalhadores impro-dutivos etc., para garantir a realização das merca-dorias produzidas pelo mundo do capital. O go-verno brasileiro parece ter esquecido as lições dahistória.

Nas economias semi-integradas e retardatá-rias como a nossa, o Estado destrói o imenso po-tencial de consumo da classe média, congelandosalários, demitindo trabalhadores tanto qualifica-dos quanto não qualificados, terceirizando ou-tros etc. Ao demitir trabalhadores, Ele contribuipara a diminuição da formação bruta de capitalfixo, fazendo com que postos de trabalho se eva-porem no ar. Nesse sentido, o Estado brasileirocanaliza os recursos que deveriam financiar a for-ça de trabalho, para o financiamento da classe ca-pitalista e, naturalmente, para sua fração hege-mônica no mundo de hoje, ou seja, o capital fic-tício, bursátil.

O governo brasileiro aumentouconsideravelmente a carga tributáriasobre o assalariado para garantir areprodução da classe capitalista,cujo capital se encontrava e se en-contra em crise. O exponencial au-mento dos tributos, somado ao con-gelamento dos salários, se constituina forma indispensável de padrõessubumanos de consumo aos traba-lhadores brasileiros, que o mundodo capital impõe. A acumulacão decapital no Brasil supõe o não-consu-mo, imposto pela classe social dosinvestidores sobre os não-consumi-dores, já que, agora, o Estado seapresenta como um consumidor au-tônomo, no lugar dos trabalhadoresendividados e divididos.

A contiguidade física dos ricos e dos pobres

torna a vida daqueles menos agradável do

que gostariam que fosse, por direito. Mas

por razões paradoxais, mesmo em casos de

sérios perigos, os ricos raramente advogam

a distribuição de riquezas aos pobres, ainda

que isso pudesse diminuir significativa-

mente os riscos para si mesmos. A máxima

dos vencedores repousa, como sempre tem

sido, em Après nous, le déluge.[...] [os políticos] não explicam como as

massas populares podem se adaptar auto-

maticamente ao desemprego, ao subempre-

go, ou às condições precárias de trabalho,

ao deslocamento geográfico e a uma longa

jornada de trabalho e, ao mesmo tempo, de-

votar o tempo e a atenção necessários às

suas famílias. (GEORGE, 2002, p. 33-34).

É inegável que a proposição neoliberal do Es-tado mínimo se constitui em uma saída temporá-ria para a crise da relação social básica deste mo-do de produção: a relação capital-trabalho. Ago-ra, na crise maior do capital, o trabalhador assa-lariado, sem carteira assinada, sem direitos... sedefronta com a precarização do trabalho e passaa conhecer a alternativa real do capital ao mundo

do trabalho: a barbárie. Como se pode observar no Qua-

dro II, na página seguinte, em 2005 otrabalhador teve que disponibilizarpraticamente o dobro de dias que tra-balhava em 1986 para conseguir pagarseus tributos. Entretanto, hoje há umagravante, pois com o sucateamentodos serviços públicos, o trabalhadortem que recorrer aos serviços privadosque irão consumir mais uma boa partede sua parca remuneração, e isso semdeixar de pagar pelos serviços públicosque não está usando.

Em um clima de privatização e de re-

dução dos serviços estatais, as pessoas

esperam tomar para si mais responsabi-

lidades pelas suas comunidades locais e

O exponencialaumento dos tributos,

somado aocongelamento dos

salários, se constituina forma

indispensável depadrões subumanos

de consumo aostrabalhadores

brasileiros, que omundo do capital

impõe.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 49

pelos seus compatriotas mais pobres. Mais

uma vez, não fica claro como pessoas que

devem necessariamente competir no merca-

do de trabalho e colocar os seus próprios in-

teresses acima de tudo, sobretudo ao longo

de suas vidas profissionais, poderão mudar

radicalmente de modo de pensar e dedicar-se

aos desafortunados e oprimidos, durante o

tempo livre. (GEORGE, 2002, p. 34).

No caso das economias retardatárias, a classetrabalhadora não conheceu o welfare state, nessesentido, o seu processo de produção e reprodu-ção, no mundo do trabalho em crise só tem comoalternativa o submundo, a informalidade. A criseda economia internacional se apresenta de formamais contundente nos países periféricos. O tra-balhador brasileiro perdeu, nesses anos de crise,grande parte das conquistas que obteve nos úl-timos cinqüenta anos.

O Quadro III demonstra o comprometimen-to da renda da classe média de uma família, casale dois filhos, para aquisição destes serviços.

Somando estes dias aos gastos para pagar tri-butos, o endividado trabalhador pertencente à“classe média” trabalhou, em 2003, cerca de 237dias para pagar tributos e adquirir os serviçosque, em tese, seriam prestados pelo governo; em2004, trabalhou 243 dias e, finalmente, em 2005,trabalhou 252 dias. Isso se deve ao fato de quevários custos de reprodução da força de trabalho,

que estavam a cargo do Estado capitalista, cons-tituindo-se em custo para este, passaram a ser su-portados pela classe trabalhadora que tem tidoseus salários congelados, ou pelo menos substan-tivamente diminuídos, já que o Estado tem re-passado estes gastos para os trabalhadores.

O salário indireto da classe trabalhadora pos-sibilitava o consumo e realização do capital-mer-cadoria, disponível nas prateleiras pela produçãocapitalista potencializada pela inovação tecnoló-gica. Agora, na crise maior do capital, os recursosque eram direcionados para o financiamento daforça de trabalho são, neste momento, redirecio-nados para financiar a classe capitalista. O lucrodo mundo do capital em crise se alimenta datransferência de recursos produzidos pela classe

Educação: prioridade nacional?

50 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Fonte: IBPT

Quadro III

Ano Dias % do anoDécada de 70 25 7

Década de 80 44 12

1990 51 14

1993 58 16

1995 73 20

1998 84 23

2000 88 24

2002 98 27

2003 102 28

2004 105 29

2005 112 31

Período de trabalho por ano destinado ao pagamento de serviços similares

aos públicos

FFoonnttee:: Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT)

AANNOO em dias em meses/dias % AANNOO em dias em meses/dias %

11998866 82 2m e 22d 100 11999966 100 3m e 10d 122

11998877 74 2m e 14d 90 11999977 100 3m e 10d 122

11998888 73 2m e 13d 89 11999988 107 3m e 17d 130

11998899 81 2m e 21d 99 11999999 115 3m e 25d 140

11999900 109 3m e 19d 133 22000000 121 4m e 1d 148

11999911 90 3m 110 22000011 130 4m e 10d 159

11999922 93 3m e 3d 113 22000022 133 4m e 13d 162

11999933 92 3m e 2d 112 22000033 135 4m e 15d 165

11999944 104 3m e 14d 127 22000044 138 4m e 18d 168

11999955 106 3m e 16d 129 22000055 140 4m e 20d 171

Quadro II

Dias trabalhados no ano para pagar tributos

trabalhadora para as elites, brasileira e interna-cional, que deles se apropria. É o lucro do capitalfictício produzido no Brasil - cassino comandadopelo que outrora foi o maior partido de esquerdada América Latina. Não por acaso, os bancos, nogoverno Lula, têm tido os maiores lucros da his-tória brasileira. Nos três primeiros anos do pri-meiro mandato do governo atual, o lucro bancá-rio foi superior ao de oito anos de FHC. O queestá claro é que a opção política traçada por Lulae sua entourage é a de beneficiar os parasitas dosetor bancário.

Apesar de possuirmos uma das mais altas ta-xas de impostos no mundo, próxima de 40%, oretorno desse pagamento à população é simples-mente pífio. Afora isso, temos o fatode que o governo atual, retardando aentrega do Imposto de Renda, faz,na prática, um empréstimo compul-sório, sob a desculpa da malha fina.

A partir do governo FernandoHenrique Cardoso, que acentuouconsideravelmente a crise do capital,a situação da receita total dos esta-dos e municípios só tem sido agra-vada. O governo federal tem utiliza-do recursos diversionistas, como asCofins, como é o caso da MedidaProvisória nº 232, que aumentou de 32% para40% a taxação das empresas prestadoras de ser-viços, para engordar seu caixa, enquanto os esta-dos e municípios sofrem uma profunda crise fis-cal. Além disso, utilizando a Lei de Responsa-bilidade Fiscal (LRF), o Estado brasileiro a temsistematicamente infringido, enquanto coloca acoleira, com guizo, nas unidades federativas emunicípios. Não por acaso temos assistido osmovimentos dos governadores e prefeitos que vi-sam a romper essa situação a eles imposta goelaabaixo. Na realidade, há uma crise fiscal fantásticana economia nacional e a sociedade brasileira, oumelhor, os trabalhadores e os desempregados, sãoos que estão suportando a carga. Novamente, obanquete da elite está sendo pago com desempregopor parte ponderável da população brasileira ecom os salários arrochados dos trabalhadores que

conseguiram se manter na ativa. Cabe ressaltar que, com a privatização dos

serviços públicos, a chamada classe média tem ti-do que despender seus recursos com planos desaúde, segurança, educação, previdência privada,pagamento de pedágio nas estradas privatizadas,o que tem contribuído, sobremaneira, para a di-minuição do poder aquisitivo desse estrato so-cial, mostrando, na prática, que a política públicalevada a efeito pelo governo optou clara e decidi-damente em garantir altas taxas de remuneraçãoao capital privado. Apesar do espetacular aumen-to de produtividade ocorrido no setor agrícola,que foi o grande responsável pelo superávit nabalança comercial, a sociedade brasileira não foi

beneficiada com esses incrementos.Ao invés de termos uma ofertamaior de produtos deste setor para omercado interno, a fim de alimentara população esfaimada, que é a nos-sa, a política pública do governo foide financiar o agrobusiness, aumen-tando a oferta de commodities para omercado externo, em detrimento domercado interno. Quando ocorre agripe aviária, por exemplo, os preçosdos frangos caem no mercado inter-no, possibilitando que o pobre co-

ma, do frango, que FHC dizia ser o símbolo doreal, asa e perna...

O endividamento público necessário à dina-mização do modo de produção capitalista se dá,via compras, pelo Estado capitalista, de não-mer-cadorias, a fim de garantir eficiência marginalfictícia do capital. O processo de trabalho se mo-dificou. A acumulação capitalista, que era capita-neada pelo departamento III, entrou em crise.Durante a vigência do processo de produção for-dista, a dívida pública cresceu fantasticamente,mostrando sua imprescindibilidade para o mun-do do capital. O problema é que a dinâmica vol-tada para o luxo, para o improdutivo, para a des-truição, para a guerra, deparou-se com a imensadívida que, de alavanca potencializadora do pro-cesso de acumulação, transformou-se em seucontrário, ou seja, passou a representar uma nova

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 51

Apesar de possuirmosuma das mais altas

taxas de impostos nomundo, próxima de

40%, o retorno dessepagamento àpopulação é

simplesmente pífio.

forma de crise, a da dívida pública. No caso bra-sileiro, esta já ultrapassou R$ 1 trilhão.

A Constituição, em seu artigo 166, §3º, incisoII, dispõe que as emendas ao projeto de lei do or-çamento anual ou aos projetos que o modifi-quem somente podem ser aprovados caso sejamcompatíveis com o plano plurianual e com a leide diretrizes orçamentárias e/ou indiquem os re-cursos necessários, admitidos apenas os proveni-entes de anulação de despesa, excluídas as que in-cidam sobre dotações para pessoal e seus encar-gos e/ou serviço da dívida.

Dessa forma, os pagamentos para o serviço dadívida ficam, e estão, devidamente constituciona-lizados. É a única Constituição que possui taldispositivo, o que demonstra a dependência daeconomia brasileira aos ditames do capital inter-nacional e nacional.

Essa situação anômala significa na prática -que é onde a falsidade ou veracidade dos fenô-menos transparece -, que as proposições de de-putados e senadores quanto às suas volições,querenças, se encontram definitivamente obsta-culizadas pelo dispositivo acima. Dito de outraforma, quando o candidato a deputado ou sena-dor diz que sua prioridade é a educação, a saúde,a segurança, o transporte etc., isso se constituinuma inverdade porque a verdade é aquela que omundo do capital objetiva, concretiza, na suapráxis excludente. A prioridade que o capitalobjetiva é o pagamento das dívidas interna e ex-terna. Tem razão Poulantzas ao afirmar que:

A lei é parte integrante da ordem repressiva

e da organização da violência exercida por

todo Estado. O Estado edita a regra, pro-

nuncia a lei, e por aí instaura um primeiro

campo de injunções, de interditos, de cen-

sura, assim criando o terreno para a aplica-

ção e o objeto da violência. E mais, a lei or-

ganiza as leis de funcionamento da repres-

são física, designa e gradua as modalidades,

enquadra os dispositivos que a exercem. A

lei é, nesse sentido, o código da violênciapública organizada. (POULANTZAS, 2000,

p. 74-75, grifos do autor).

O Quadro IV apresenta a proposta orçamen-tária da União para 2006 e deixa clara a realidadeprecária da sócioeconomia brasileira. As despe-sas com juros e encargos da dívida devem atingiro montante de R$ 179,52 bilhões e a amortizaçãoda dívida está prevista atingir estratosféricosR$ 927,08 bilhões. O desdouro do governo paraas questões que efetivamente interessam à socie-dade é gritante e, pour cause, lamentável sobqualquer aspecto. Na realidade vemos que:

A prevalência do atual ciclo de financeiriza-

ção da riqueza tem no Estado o principal ele-

mento de sua sustentação no Brasil. Ao con-

trário do que afirmam os divulgadores do

conservadorismo, que recorrentemente apon-

tam o avanço do gasto público por decorrên-

cia da elevação das despesas operacionais

(obras, pessoal e gasto social), nota-se que o

Educação: prioridade nacional?

52 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Proposta orçamentária 2006 - R$ bilhões

Quadro IV

Grupo Nat. Despesa Primárias Financeiras PPI TotalObrigatórias Discricionárias

1 Pessoal e Encargos Sociais 101,43 - 7,21 108,65

2 Juros e Encargos da Dívida - 179,52 179.52

3 Outras Despesas Correntes 315,02 33,54 0,37 0,23 349,16

4 Investimentos 0,22 11,16 0 2,94 14,32

5 Inversões Financeiras 0,1 1,4 28,24 0,13 29,87

6 Amortizações da Dívida - - 927,08 927,08

7 Reserva de Contingência 0,01 5,47 20,89 26,47

Total 416,8 51,6 1.163,3 3,30 1.635,0

Fonte: PLOA 2006

aumento da despesa pública como proporção

do Produto Interno Bruto (PIB) provém fun-

damentalmente das despesas financeiras (ju-

ros e encargos da dívida pública).

Não fosse o país detentor de uma enorme dí-

vida social estimada em 7,2 trilhões (ver livro

‘Agenda não liberal da inclusão social’, editora

Cortez, 2005), poderia até não causar tanto

espanto o fato de as finanças sociais atenderem

o pagamento de juros e encargos financeiros.

Diante de uma dívida social para com o seu po-

vo - superior em quase 10 vezes o tamanho atual

do endividamento financeiro do Estado, que

serve a não mais de 20 mil clãs de famílias muito

ricas no Brasil -, parece não haver alternativa

que não passe pela inversão das prioridades go-

vernamentais. (POCHMANN, 2005).

O Gráfico I (dívida consolidada para o setorpúblico federal, estadual e municipal), mostraque o montante de recursos destinados ao paga-mento da dívida pública, como percentual doPIB, tem crescido nestes últimos anos.

O superávit primário é um mecanismo utili-zado pelo governo para pagar os juros da dívidaque, no caso brasileiro, se constitui em um acen-tuado montante de recursos (Gráfico II). A ale-gação do governo quanto à necessidade de ter umsuperávit primário elevado, é tornar o país “con-fiável” aos credores internacionais. Não resta dú-vida de que o governo, ao despender vultosos re-cursos para o pagamento da dívida, diminui, paripassu, os gastos sociais públicos em uma socieda-de que, na América Latina, só cresceu mais que oHaiti. Dessa forma, há uma transferência de re-cursos da sociedade (via juros e recolhimento deimpostos) para o pagamento da dívida, ou me-lhor, para o capital financeiro que mama nas tetasdo governo. É a sobrevida que o mundo do capi-tal em crise ainda dispõe. É importante salientarque, além da diminuição dos investimentos so-ciais e de infra-estrutura por parte do governo,temos o colossal aumento da carga tributária,conforme apresentado, para manter a dinâmicapolarizada deste modo de produção. Para a exis-tência do superávit temos três possibilidades:

1 - Cortar gastos sociais. Estes podem ser dacategoria “despesas correntes” - salários - comincremento de apenas 0,1%, bem abaixo da infla-ção, como tem sido a prática do atual governo -,compras governamentais de bens e serviços,transferências voluntárias e despesas de capital,como o são os gastos discricionários de investi-mento (infra-estrutura - energia elétrica, trans-porte ferroviário, rodovias, portos). A conse-qüência destes cortes é simplesmente nefasta paraa sociedade, pois implica sucateamento da saúde,dos hospitais, da educação, das estradas, diminui-ção de postos de trabalho, menos segurança etc.Inegavelmente, esta possibilidade está sendo im-posta pelo governo à sociedade.

2 - Aumentar a carga tributária. Esta formajá vem ocorrendo e os trabalhadores brasileirostêm suportado, na cacunda, uma carga tributáriamuito alta.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 53

Dívida Líquida do Setor Público

70

60

50

40

30

20

10

01994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

30,01 30,56 33,28 34,3541,71

48,68 48,7852,63 55,5 57,18

51,81

(em % do PIB)

Fonte: Banco Central do Brasil, janeiro de 2005

Gráfico I

Superávit Primário do Setor PúblicoConsolidado

Fonte: Banco Central do Brasil, janeiro de 2005

Gráfico II

(em % do PIB)

3 - Aumentar a oferta de mercadorias. Aterceira possibilidade de obtenção do superávitprimário é o aumento da oferta de mercadoriaspor meio de investimentos estatais, o que ocasio-naria elevação nos gastos do governo em um pri-meiro momento. Depois traria, quando matura-dos os investimentos, uma certa independênciada economia brasileira vis-à-vis organismos mul-tilaterais e, mesmo, frente às economias hegemô-nicas. Com o aumento da massa de mercadoriasproduzidas pela indústria capitalista, o governoteria aumentada sua receita advinda dos impos-tos, cobrados sobre a maior quantidade de mer-cadorias. Esta solução vai de encontro aos inte-resses do FMI e Banco Mundial, já que implicauma diminuição do superávit, pelo menos nocurto prazo. Esta forma não é nem ao menosventilada pelo governo porque implicaria umadiminuição substantiva dos pagamentos efetua-dos pelo Brasil à Banca internacional.

Finalmente, é importante acentuarmos que éverdadeiramente impossível adentrarmos em umciclo virtuoso de desenvolvimento, como assegu-ra o governo, já que este se encontra sobrestadopelas próprias políticas por ele implementadas:

aumento dos gastos referentes ao serviço da

dívida;

disposições da Lei de Responsabilidade

Fiscal, limitando o gasto de pessoal;

concentração da elevação da carga tributá-

ria sobre as contribuições sociais não repas-

sadas aos demais níveis de governo e,

além da desvinculação de receitas orçamen-

tárias por meio da DRU, que permite des-

viar recursos da área social para o esforço

de contenção dos gastos públicos e geração

de superávit primário. (POCHMANN,

2003, p. 7).

A Lei de Responsabilidade Fiscal, quanto aosgastos sociais, dispõe que as despesas com pes-soal, em cada período de apuração e em cada enteda federação, não poderá exceder os percentuaisde 50% e 60% (para a União e Estados e Municí-pios, respectivamente) da receita corrente líquida.

A lei foi feita para dar garantias ao credor

financeiro, para cortar quaisquer outros

gastos e canalizar os recursos para o paga-

mento da dívida financeira. [...] A lei não

veio para punir os corruptos, não veio pre-

venir ou remediar a malversação dos di-

nheiros públicos. Veio sacramentar a atual

política do governo brasileiro, de subservi-

ência aos credores financeiros. (MIRAN-

DA, 2001. p. 35).

Está claro, pela lei, que há uma séria restriçãoa gastos com pessoal. Assim, os salários dos tra-balhadores, no mundo globalizado, ficam restri-tos a percentuais previamente determinados dasreceitas correntes líquidas. Do ponto de vista docapital, as restrições, limitações do pagamento dasdívidas interna e externa inexistem, apesar de suagrandiosidade, o que demonstra, com clareza me-ridiana, que a LRF é uma lei que serve para colo-car o garrote vil na cabeça do trabalhador, limi-tando, sobremaneira, o aumento no seu salário defome. Para os alegres e risonhos capitalistas, o li-mite para o pagamento de amortização das dívi-das é o zênite, enquanto o salário, que representao pagamento da força de trabalho, resta em nadir.

O aprofundamento, a agudização da crise docapital, das não-mercadorias que outrora se cons-tituíram em uma saída temporária para a crise de29, aponta novos limites para a produção capita-lista. O governo despótico, autocrático destinarárecursos para a engorda do capital financeiro, nasenilidade da economia keynesiana. Nesse sentido,

[...] a inquietude humana chamada traba-

lho só poderá se organizar e objetivar sob

a direção de uma nova bússola: a preser-

vação da vida humana e da natureza, do la-

zer saudável, da produção artística, literá-

ria, erótica. A rosa amorosa e civilizada

existe e está plantada no futuro. Seu aro-

ma, sua cor, sua textura aguardam a socie-

dade que será digna de colhê-la. Não im-

porta o nome da rosa - socialismo, comu-

nismo, cooperativismo -, o que importa é a

rosa. (CAMPOS, s. d.).

Educação: prioridade nacional?

54 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

NOTAS

1 Conforme concepção gramsciana, sociedade civil con-cebida como o conjunto das organizações responsáveispela elaboração e/ou difusão das ideologias: sistemaescolar, Igrejas, partidos políticos, sindicatos, organiza-ções profissionais, meios de comunicação de massa etc.(COUTINHO, 2003, p. 127). 2 É importante sublinhar o fato de que “[...] se se consi-dera o poder como efeito de estruturas no campo da lutade classes, se poderá ver que a capacidade de uma classede realizar seus interesses, que depende da luta de umaoutra classe, depende assim das estruturas de uma for-mação social enquanto limites das práticas de classe. Umadiminuição desta capacidade de uma classe não se traduzautomaticamente em um aumento da capacidade de umaoutra classe, dependendo das estruturas do poder a even-tual redistribuição: uma perda, digamos, do poder daclasse burguesa não significa que este poder se adicionedesse fato ao poder da classe operária. É isso que se en-contra implicado na frase de Marx na Guerra civil emFrança que reporta o fenômeno do bonapartismo ao fatode que ‘ele era a única forma de governo possível nummomento em que a burguesia havia perdido, e a classeoperária não tinha ainda adquirido, a capacidade de diri-gir a nação’”. (POULANTZAS, 1975, p. 123, traduçãonossa).

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Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 55

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 57

Este artigo pretende analisar o papel social dauniversidade brasileira a partir da concepçãode que a educação é um direito social con-

quistado pelas lutas históricas dos trabalhadores.O processo de reformulação da educação supe-rior e de desconstrução desse direito social vemse dando por meio da sua transmutação em “ser-viço público não-estatal”. Por essa via, são diluí-das as fronteiras entre público e privado e, conse-qüentemente, amplia-se o empresariamento daeducação superior.

Nossas análises partem da hipótese de que essareformulação está inserida em um processo maisamplo de reordenamento do Estado capitalista,considerado como uma das principais estratégiasda burguesia internacional para o enfrentamentoda crise estrutural do capital. No Brasil, esse pro-cesso tem seu início na ditadura empresarial-mi-litar, em especial no governo Geisel, mas assumenovas feições a partir do governo de FernandoCollor de Mello, e, principalmente, nos governosde Fernando Henrique Cardoso e de Lula da Sil-va. Este, contrariando muitas expectativas, em-preende um vasto programa de subsídios ao setorprivado de natureza empresarial, radicalizandoum processo que parecia ter seu ponto culminan-te em Cardoso. As análises dos principais docu-mentos elaborados pelo Banco Mundial, a partir

da segunda metade da década de 1990, de-monstram que o reordenamento do Estado e aredução das políticas sociais e dos direitos domundo do trabalho constituem os eixos nortea-dores das políticas dos organismos internacionaisdo capital para a periferia do capitalismo. A efe-tivação de tal processo objetiva difundir e con-solidar um novo projeto de sociabilidade bur-guesa pela utilização da noção “público não-esta-tal” (ou “bem público”) como fundamento polí-tico para: (a) diluir as fronteiras entre público eprivado; (b) legitimar o perverso processo de pri-vatização em larga escala dos serviços públicos e,assim, (c) viabilizar a constituição de um lucrati-vo campo de exploração para o capital em crise: aeducação superior (LIMA, 2005).

Essas análises nos permitem afirmar que o go-verno Lula da Silva, ao utilizar como pressupos-tos de sua ação para o mundo do trabalho, as po-líticas do Banco Mundial para a periferia do capi-talismo, efetiva a desconstrução da educação pú-blica brasileira como um direito social. O direitoà educação é reconfigurado por meio da privati-zação em larga escala e da imposição de uma ló-gica empresarial de que são exemplos a certifica-ção, a fragmentação do ensino e dos conhecimen-tos (considerando um dado o dualismo escolar) eo aligeiramento da formação profissional (ao ad-

Educação: prioridade nacional?

A crise de acumulação de capital eo papel social da universidade brasileira

Marina Barbosa Pinto

Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)

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mitir o “adestramento” profissional desvincula-do da formação científico-tecnológica). Essa des-construção, entretanto, é apresentada como “de-mocratização do acesso à educação” para os seg-mentos mais pauperizados da população brasilei-ra (ProUni, Fies, educação a distância, política decotas, projeto escola na fábrica, “universidades”tecnológicas, cursos seqüenciais, cursos de for-mação profissional) e busca, assim, legitimar suasações por intermédio de uma eficiente operaçãoideológica que reveste essas ações de um ilusórioverniz democrático-popular.

Considerando as proposições orientadorasdeste estudo, o exame das políticas neoliberais emcurso no país tem como premissa fundamental adefinição de que o papel social das universidadesestá diretamente vinculado à formação econômi-ca, social e política em que tais instituições estãoinseridas e deve ser discutido a partir da definiçãode que a educação é um direito social.

Como a conjuntura atual não é de rupturacom a ordem vigente – o sistema capitalista de-pendente – a discussão sobre a universidade nãopode abstrair as condições concretas desse sis-tema; por isso, as presentes contribuições preten-dem colocar em relevo as contradições desse sis-tema, conferindo importância central às lutas daclasse trabalhadora que, afinal, forjou o que exis-te de público na sociedade brasileira. Ao enfati-zar o papel historicamente protagônico dos tra-balhadores, o estudo situa as contra-reformas emum terreno de enfrentamentos e ásperos confli-tos. Seria um grave erro desconsiderar que o go-verno Lula da Silva foi e é capaz de interferir nes-sas lutas, por meio de um processo que Gramscidenominou como transformismo1.

Educação: um direito social ou um serviço público não-estatal?

Ao longo da história da classe trabalhadora emnosso país, travamos uma dura luta contra o ca-pital e tivemos como marco central dessa disputaa construção de alguns delineamentos para lograrum projeto alternativo para a sociedade. Nessaluta, alcançamos uma série de conquistas que nospermitiu impor certo limite à voracidade lucrati-

va do capital. Com todas as restrições, críticas elimites, a Constituição de 1988 pelo protagonis-mo dos movimentos sindical, estudantil e popu-lar, previu, assumiu, reconheceu e oficializou anoção do direito social como algo que é de res-ponsabilidade do Estado executar a partir de umfundo público. Essa noção de direito carrega emsi as contradições da não-ruptura com a ordemdo capital. Entretanto, a Carta contém dispositi-vos que permitiram uma limitada (mas não irre-levante) redistribuição da riqueza socialmenteproduzida. É certo que essa redistribuição se deunos marcos de uma correlação de forças entre asclasses sociais que não permitiu alterar o padrãode acumulação. Mas a força e a expressão de açãoque o movimento dos trabalhadores, estudantes eo popular conseguem acumular em diferentes pe-ríodos de suas trajetórias tampouco foi negligen-ciável, situação que pode ser exemplificada, nosdispositivos sobre a seguridade social, a concei-tuação de empresa nacional, autonomia univer-sitária etc2. Na consolidação dos direitos sociaisno Brasil, observa-se uma especial particularida-de de nossa formação social e das lutas da classetrabalhadora: sua conformação passa pela media-ção do Estado, que dá a materialidade aos direi-tos a partir das políticas sociais.

É a materialidade desses direitos que se queralterar com a reforma universitária proposta pelogoverno Lula da Silva, especialmente por inter-médio de seu ‘componente inovador’ sintetizadona concepção da educação como um “bem públi-co”. Mas, o que quer dizer “bem público”? Nós,os trabalhadores, usamos essa expressão para de-nominar uma série de ações que executamos den-tro da prestação do serviço público na ótica dodireito social, universalmente acessível ao con-junto da população brasileira3.

Certamente, essa não é a definição de “bempúblico” hoje assumida pelo governo Lula da Sil-va para várias outras políticas e direitos sociais epelo Ministério da Educação para a área de edu-cação. Para o MEC, esta noção confunde-se coma de um serviço que é definido a partir de uma sé-rie de regras, de orientações e diretrizes que ca-racterizam o que é uma atividade de educação;

Educação: prioridade nacional?

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nela há uma transmissão de co-nhecimento por um tipo de servi-ço prestado a um segmento da po-pulação. Nessa lógica, o “bem pú-blico” é definido pelo fato de esseserviço ser executado para umsegmento da população, e isto otorna público. Não entra nessecenário o debate sobre como ele éexecutado, para quem ele é execu-tado e com que financiamento eleé executado. Aqui, ao substituir-se a universalização dos direitos epolíticas sociais pela focalização efragmentação das políticas sociais,se dilui a noção de direito comoperspectiva de retornar aos traba-lhadores parte da riqueza socialpor eles produzida, o que só podeser publicamente garantido. Ogoverno Lula da Silva, ao afirmar e privilegiar o‘público não-estatal’, dilui a fronteira entre o pú-blico e o privado e, especialmente, implementa aquebra dos direitos sociais do mundo do traba-lho construídos pela clara definição entre o pú-blico e o privado e a oposição de interesses entrecapital e trabalho.

Nesse sentido, se põe a perspectiva do empre-sariamento da educação: isto é possível ao trans-formá-la em um serviço e em um “bem público”,que pode ser executado por qualquer cidadão,qualquer grupo empresarial, qualquer segmentoda sociedade. Ao Estado, redefinido o seu papel,cabe supervisionar tal processo. Nestes termos aeducação deixa de ser uma política pública e, porconseqüência, a universidade passa a ter um ou-tro papel que longe está de ser o que, desde suaorigem, tem demarcado sua consolidação – o es-paço da produção do conhecimento, do debatede idéias, da formação de profissionais críticoscom fundamento teórico e competência técnicapara ler a realidade brasileira e, inseridos nela, se-rem capazes de transformá-la.

Do ponto de vista do direito social, as pergun-tas fundamentais sobre o papel da universidadebrasileira devem ser: Para quê? Por quê? Para

quem? Como? Com que verba?Pensar a universidade hoje é pen-sar o seu caráter público e, nestamedida, é decisivo o seu financia-mento que, no quadro de um sis-tema capitalista, dá a formataçãoclara e evidente do direito. O go-verno Lula da Silva, em seu proje-to de contra-reforma da universi-dade brasileira, assume a perspec-tiva de desresponsabilização doEstado com o financiamento daeducação pública.

A defesa da educação públicanão se confunde com a defesa daestatização dos direitos sociais.Nosso entendimento é o de que aluta da classe trabalhadora impri-miu uma dinâmica de exigência daalocação de dinheiro público para

a prestação de serviço público compreendido co-mo um direito social (regulamentado em lei). Ca-be ao Estado financiar e assegurar as condiçõesmateriais gerais porque o Estado retém parteconsiderável da mais-valia extraída do trabalho.Assim, quando a classe trabalhadora exige doEstado direitos sociais e autonomia dos serviçospúblicos frente ao governo e ao capital está de-terminando que esses recursos lhe pertencem(pois no capitalismo necessariamente o Estado éhegemonizado pelos interesses das classes domi-nantes). Significa dizer que, ao se retirar o Estadodo dever de assegurar materialmente essas políti-cas (ou reduzir sua capacidade de oferecer à po-pulação esse direito) e ao priorizar como seu pa-pel fundamental o de financiar e regular o ‘servi-ço’ educação, viabiliza-se a educação como umamercadoria oferecida pelo “mercado”, isto é, pelosetor privado. Realizada a metamorfose da edu-cação em ‘bem público’, será o mercado que, defato, definirá a sua distribuição com base na injus-ta lei da oferta e da procura, e assim as pessoas po-derão ter ou não acesso à educação diante dessaimperiosa lei do “mercado”.

O principal argumento utilizado pelo Ministé-rio da Educação, na difusão de seu projeto de

O governo Lula da Silva,ao afirmar e privilegiaro ‘público não-estatal’,dilui a fronteira entre opúblico e o privado e,

especialmente,implementa a quebrados direitos sociais domundo do trabalho

construídos pela claradefinição entre o públicoe o privado e a oposição

de interesses entrecapital e trabalho.

Educação: prioridade nacional?

Educação: prioridade nacional?

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contra-reforma do ensino superior, é o da con-sonância com as exigências da modernidade, como desenvolvimento do país e com a inclusão so-cial. Entretanto, nos parece pouco sustentável odebate estruturado no binômio inclusão-exclu-são porque ele se reduz à aparência de um fenô-meno que é a desigualdade social, que continuainalterado.

Outra questão presente nos argumentos dosdefensores da contra-reforma do ensino superiordo governo Lula da Silva é o desenvolvimentosocial. Tomar o desenvolvimento como o orde-nador das ações governamentais não é exatamen-te uma novidade na história política do Brasil.Mas, para além da retórica midiática e da propa-ganda, o que significa desenvolver o país e colo-car a universidade a serviço desse desenvolvi-mento? Significa, por exemplo, debater num cur-so de agronomia se nós vamos priorizar a produ-ção de melhores grãos para exportação, alimen-tando o círculo vicioso do agronegócio que empo-brece os trabalhadores do campo, expulsa cam-poneses, aumenta a dependência do país vis-à-visao mercado externo e provoca graves danos am-bientais ou se produziremos conhecimento para aconstrução de uma agricultura cientificamente or-ganizada e voltada para o sustento de milhões defamílias famintas em nosso país. Em um curso dearquitetura, a universidade deve voltar-se para aexclusiva formação de arquitetos que respondamàs perspectivas dos grandes empreendimentos deconstrução internacional ou para a busca de so-luções do grave problema brasileiro de habitação?

No escopo da contra-reforma em curso, o pa-pel da universidade passa a ser revisto com baseem princípios e diretrizes que, em sua aparênciamais imediata, compõem o elenco de lutas histó-ricas dos trabalhadores brasileiros, mas que, nasua essência, são reescritos em um contexto deprofunda reformulação do papel do Estado. Re-formulação que expressa simultaneamente as di-retrizes políticas elaboradas pelos organismos in-ternacionais do grande capital e as perspectivasdas frações locais da burguesia dominante queoperam o padrão de acumulação vigente por meiodo governo de Lula da Silva.

Organismos internacionais: crise de acumulação do capital e contra-reforma do Estado da educação

Esses organismos, sujeitos políticos coletivosdo capital, elaboraram, divulgaram e monitora-ram, ao longo da década de 1990, o projeto de re-formulação do Estado nos países periféricos. Talreformulação é viabilizada por meio de um me-canismo identificado como “condicionalidade”4.Cada empréstimo financeiro está condicionado àimplementação de um conjunto de reformas napolítica econômica e nas políticas sociais setoriais,devidamente acompanhadas pelas “assessoriastécnicas” formadas, respectivamente, por repre-sentantes dos organismos internacionais e de cadapaís devedor.

A submissão às políticas dos organismos in-ternacionais é uma ação e uma opção políticaconsciente das burguesias de cada formação eco-nômico-social dependente. Nesse processo, ar-ticulam-se a pressão exercida pelos países impe-rialistas por intermédio de suas agências interna-cionais e, simultaneamente, os interesses políti-cos e econômicos da burguesia ou frações declasse que compõem determinado bloco nativode poder5. O papel de cada governo, portanto, écriar as bases jurídico-institucionais para viabili-zar a reformulação do Estado pelo estabeleci-mento de parcerias com a iniciativa privada, ope-racionalizando, desta forma, a noção de ‘públiconão-estatal’.

O surgimento de alternativas privadas e

ONGs para a provisão de serviços públicos

pode ajudar a cobrir as lacunas na oferta de

bens públicos e prover bens e serviços que

os usuários se dispõem a pagar do próprio

bolso. (BANCO MUNDIAL, 1997, p. 121).

A análise dos relatórios de desenvolvimentomundial, divulgados a cada ano pelo BancoMundial, evidencia como esta instituição finan-ceira elabora um conjunto de pressupostos parafundamentar o discurso sobre a necessidade ur-gente de reformulação do papel do Estado. Dian-te do quadro de estagnação econômica e de am-

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pliação das desigualdades econômicas e sociaisque caracteriza os anos de neoliberalismo, inte-lectuais orgânicos da burguesia percebem a ne-cessidade de difusão de um conjunto de noçõesque reivindiquem a construção de um “Estadomais próximo do povo”, um “Estado em ummundo em transformação”, temática específicado Relatório sobre o Desenvolvimento Mundialelaborado pelo Banco em 19976.

O argumento central desse documento refere-se a uma suposta crise fiscal dos estados nacio-nais na periferia do capitalismo, que demons-traria a incapacidade de o Estado poder arcar so-zinho com o financiamento e a execução de to-dos os serviços públicos. A solução para essa difi-culdade consiste em definir alguns serviços exclu-sivos do Estado e outros que deverão ser assumi-dos pelo conjunto de indivíduos, grupos sociais,ONGs e empresários, em outras palavras, lucra-tivamente no “mercado”7.

Entretanto, diferentemente da concepção pre-sente nos documentos datados do início da déca-da de 1990, fica explícito que o Banco Mundialelabora, a partir da segunda metade da mesma dé-cada, um conjunto de reflexões críticas em relaçãoao fenômeno que identifica como um “distancia-mento entre o Estado e o povo”, gerado pela lógi-ca do Estado mínimo para o trabalho e do merca-do como gestor da vida social.

Essas críticas levaram pesquisadores à conside-ração de que o Banco Mundial estaria revisandosuas posições históricas em defesa de uma eco-nomia de mercado, da liberalização econômica eda redução do papel do Estado, rompendo comos paradigmas do Consenso de Washington8.

Uma análise cuidadosa desses documentos,contudo, demonstra que essas críticas eram dire-cionadas aos princípios orientadores do que Ri-cardo Antunes identifica como “neoliberalismoclássico”, ou seja, essas críticas configuram “tra-ços de descontinuidades” em relação à “fase clás-sica do neoliberalismo” (ANTUNES, 2004, p.107). No entanto, esses traços não caracterizamrupturas com o projeto societário burguês. Oque podemos identificar como “novidade” nodiscurso elaborado e difundido pelos organismos

internacionais, a partir da segunda metade da dé-cada de 1990, é a capacidade de o mesmo projetode sociabilidade burguesa apresentar-se comoum capitalismo reformado ou humanizado oumesmo como um projeto democrático-popular.Essa construção política será difundida pelos in-telectuais orgânicos da burguesia como uma“terceira via”, uma suposta alternativa ao neoli-beralismo e ao socialismo.

Lima (2004), ao estudar a obra de AnthonyGiddens, afirma que o social-liberalismo, ou

[...] terceira via direciona críticas ao neoli-

beralismo argumentando que a lógica neo-

liberal: a) defende o sistema de mercado co-

mo a instância da eficiência econômica e da

liberdade individual; b) enfatiza o indivi-

dualismo econômico como a chave para a

democracia e, c) aborda as transformações

atuais geradas pela globalização de maneira

muito limitada às necessidades de desregula-

mentação dos mercados e maximização dos

lucros, sem perceber a importância do capi-

tal social, ou seja, da ação social voluntária

dos indivíduos e grupos e da solidariedade e

responsabilidade social dos empresários.

(LIMA, 2004, p. 14).

Portanto, o social-liberalismo, ou o projetoneoliberal “envernizado” da “terceira via”, apre-senta a necessidade de a) modernização do centro,realizando críticas ao neoliberalismo e ao socia-lismo; b) rejeição da política de classes por meiodo discurso sobre a necessidade de um “pacto so-cial” ou “concertação nacional” para a construçãode um “novo contrato social” e c) um Estado re-gulador que estimule as ações voluntárias de indi-víduos e grupos sociais; os movimentos sociais eONGs com demandas específicas; a responsabili-dade empresarial; os sindicatos colaboracionistas eas parcerias público-privadas. Segundo o Relató-rio sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997:

Isso significa inserir a voz do povo na for-

mulação de políticas: abrir campo para que

indivíduos, organizações do setor privado e

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE62 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

outros grupos da sociedade civil expressem

suas opiniões [...] Incentivar uma participa-

ção mais ampla na preparação e provisão

desses bens e serviços por meio de parcerias

entre o governo, as empresas e as organiza-

ções cívicas também pode melhorar a sua

oferta. (BANCO MUNDIAL, 1997, p. 116).

É neste quadro político que a noção de “públiconão-estatal” aparece como uma importante estra-tégia para legitimar as políticas governamentais soba aparência de “radicalização da democracia”10.

Na Ásia oriental, ao institucionalizarem

conselhos deliberativos público-privados

formados de representantes de sindicatos, da

indústria e do governo, os estadistas logra-

ram formar um consenso geral sobre ques-

tões de política econômica e o necessário

compromisso de intervir rápida e flexivel-

mente. (BANCO MUNDIAL, 1997, p. 123).

Além de propor a instituição de conselhos públi-co-privados, o Banco defende uma ampla cobertu-ra jornalística e a realização de audiências públicascom ministros e altas autoridades.

O reordenamento do papel do Estado, por-tanto, realiza-se pela diluição das fronteiras entrepúblico e privado, eixo norteador da política dosorganismos internacionais do capital para a pe-riferia do capitalismo, consolidando um intensoprocesso de privatização dos serviços públicos,incluindo a educação e, especialmente, a educa-ção superior11.

A crise da educação superior, segundo odiagnóstico do Banco Mundial, está relaciona-da à crise do setor privado diante do aumentoda inadimplência no pagamento das mensali-dades; à ausência de um marco regulatório dosetor que normatize tanto o financiamento pú-blico para as instituições privadas quanto o fi-nanciamento privado para as instituições públi-cas, caracterizando a concepção de autonomiafinanceira e de gestão do Banco e à adequaçãoda formação profissional às reestruturações nomundo do capital.

A crise do ensino superior, sobretudo no

setor privado, está incentivando uma mu-

dança na magnitude, nos objetivos e nas

formas de intervenção governamental neste

subsetor, para garantir uso mais eficiente

dos recursos públicos. Em vez do controle

direto, a função do governo passa a ser a de

criar, mediante políticas, um ambiente favo-

rável às instituições públicas e privadas de

ensino superior. Promovendo um efeito

multiplicador dos recursos públicos, os go-

vernos vêm incentivando as instituições a

que satisfaçam as necessidades nacionais de

ensino e investigação. Está se demonstran-

do que o êxito da execução de reformas da

educação superior depende: 1) do estabele-

cimento de um parâmetro coerente de po-

líticas; 2) de uma ênfase maior nos incenti-

vos e mecanismo orientados ao mercado,

para aplicar as políticas; e 3) de uma maior

autonomia administrativa das instituições

públicas (BANCO MUNDIAL, 1994, p. 10,

tradução nossa).

Nesse quadro, o Estado assume um papel re-gulador e elabora um conjunto de medidas ju-rídico-institucionais para estimular a diversifi-cação das instituições de ensino superior e a di-versificação das fontes de financiamento da edu-cação superior12.

Uma conclusão importante da análise dos

casos exitosos é que o fomento governa-

mental ao ensino privado superior exige um

marco de políticas e regulamentos que evite

os ‘desincentivos’, como os controles de

preço das matrículas, e que inclua mecanis-

mos de autorização/reconhecimento, fisca-

lização e avaliação das instituições privadas.

Alguns países também deram incentivos fi-

nanceiros para estimular o estabelecimento

de instituições privadas, uma vez que isto

constitui um modo de ampliar as matrículas

a um custo menor para os cofres públicos.

(BANCO MUNDIAL, 1994, p. 7, tradu-

ção nossa).

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 63

Assim, a privatização é uma política de governoe, mais do que isso, uma política que reformula aação do Estado via privatização ‘por dentro’ dasinstituições públicas de ensino, por meio da regu-lamentação das fundações de direito privado; dascobranças de taxas e mensalidades; do corte de va-gas para contratação dos trabalhadores em educa-ção e, simultaneamente, do estímulo, inclusive das“generosas” isenções fiscais, para os empresáriosdo ensino superior.

Essa lógica privatista será aprofundada no Do-cumento estratégico do Banco Mundial: a edu-cação na América Latina e Caribe.

Um número cada vez maior de governos da

região vê a participação do setor privado

como uma solução potencial para muitos

problemas da educação. A participação do

setor privado não somente traz um aumento

do número de vagas escolares, como tam-

bém eleva a qualidade, ao incentivar a com-

petição por fundos públicos entre os pro-

vedores públicos e privados. (BANCO

MUNDIAL, 1999, p. 47).

Essa lógica é articulada ao discurso sobre a im-portância da educação para a coesão social e para aredução da pobreza. A reforma da educação supe-rior, por meio da ampliação do setor privado, apa-rece como estratégia de democratização do acesso.

Diversificar e reformar a educação superior,

para elevar a qualidade e a eficiência, am-

pliar o acesso para as camadas sociais de

renda mais baixa, e fortalecer o papel inte-

gral do setor privado no financiamento e na

prestação do serviço de educação. (BAN-

CO MUNDIAL, 1999, p. 12).

A operacionalização dessa democratização doacesso, nos moldes do Banco Mundial, se dá pormeio de bolsas financiadas com verba pública paravagas em instituições privadas e de empréstimopara os estudantes carentes, de que são exemplos,no Brasil, o ProUni e o Fies.

Sguissardi (2000), em O Banco Mundial e a edu-

cação superior: revisando teses e posições?, analisaos principais aspectos do documento Educaçãosuperior nos países em desenvolvimento - riscos epromessas, divulgado em 2000 e elaborado por umGrupo de Trabalho formado por representantes doBanco Mundial e da Unesco. Nesse artigo, o autorquestiona até que ponto as mudanças no discursodo Banco não significam mera forma de adaptaçãoaos novos tempos e identifica como tese central doBanco a diluição das fronteiras entre público e pri-vado:

Para o Banco, a multiplicação das IES pri-

vadas, a introdução do ensino pago nas IES

públicas e a ampliação da diferenciação

institucional são sempre bem-vindas. Soma-

das a novas fontes alternativas de recursos,

garantiriam competitividade, vista como fa-

tor de maior qualidade, o que apenas não

ocorreria se essa diversificação continuasse

sendo ‘caótica e sem planejamento’. Aposta,

também, na parceria de instituições públicas

(com ensino pago) e privadas com e sem fins

de lucro: ‘Todos os tipos de IES – inclusive

as que operam por filantropia ou em razão

do lucro – podem servir ao interesse públi-

co’. (SGUISSARDI, 2000).

Dois outros documentos do Banco Mundial sãoemblemáticos para se avaliar o grau de afinidade po-lítica entre as propostas dos organismos interna-cionais do capital e o Governo Lula: O Banco Mun-dial no Brasil: uma parceria de resultados e Brasil:justo, competitivo, sustentável, ambos divulgadosem 2003.

O primeiro documento enfatiza como açõespolíticas centrais da primeira geração de reformasestruturais, realizadas ao longo da década de 1990,a reforma do Estado brasileiro e a abertura econô-mica. Além disso, destaca que a segunda geraçãode reformas do setor público deverá dedicar-se àredução dos gastos com esse setor, por intermédiode disciplina fiscal que venha a garantir o aumen-to da credibilidade do país diante dos investidoresinternacionais (BANCO MUNDIAL, 2003a).

O documento Brasil: justo, competitivo, susten-

Educação: prioridade nacional?

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Educação: prioridade nacional?

tável afirma que a efetivação das reformas estrutu-rais, conjugadas com a implementação de políticassociais para os mais pobres, constitui o eixo cen-tral do novo governo brasileiro. Na concepção doBanco, um Brasil mais justo é aquele que imple-menta medidas de transparência social, de que sãoexemplos as reformas da Previdência Social e dosistema de impostos (reforma tributária) e umBrasil mais sustentável é aquele que estimula o au-mento dos níveis de produtividade, incentiva e am-plia a ação dos setores privados. Para que se alcan-ce um Brasil mais competitivo, devem ser imple-mentadas reformas que garantam a confiança dosinvestidores internacionais nos projetos econômi-cos brasileiros.

O Banco Mundial e o FMI, propõem ainda oaumento do superávit primário e a independênciado Banco Central e a tudo isso denominam de ummovimento de ampliação do capital social, ou seja,de “concessão da participação dos mais pobres”para criação de um clima de consenso nacional emtorno das reformas estruturais.

Nessa direção, um elemento político centralpara o Banco, relaciona-se às reformas da políticaeducacional brasileira.

A visão que orienta essas propostas para o

novo governo é a de um Brasil mais justo,

sustentável e competitivo. Esses objetivos

se baseiam no grande progresso e no futuro

promissor do país, mas sugerem priorizar

um maior impulso à educação fundamental

e, em particular, ao ensino médio; ao siste-

ma de transferências sociais, para reduzir a

desigualdade e aumentar a produtividade,

por meio do equilíbrio fiscal, de menos bu-

rocracia e mais comércio internacional.

(BANCO MUNDIAL, 2003b).

O Banco elabora, como enfoque central para ogoverno Lula da Silva, a necessidade de ênfase naalocação de verbas públicas para a educação fun-damental e o ensino médio. Nesse sentido, criti-ca o financiamento público da pesquisa e da edu-cação superior identificados como fatores que di-ficultam o crescimento econômico brasileiro.

O país gasta mais, em termos per capita, em

pesquisa e desenvolvimento (P&D) e com

ensino superior do que a maioria das nações

latino-americanas. Como explicar esse para-

doxo? Em primeiro lugar, o setor público

domina a P&D: os vínculos de pesquisa en-

tre as universidades e o setor privado são re-

lativamente fracos. Em segundo, o setor pri-

vado opera em ambiente freqüentemente

burocrático, o que prejudica as firmas me-

nores e mais novas e a inovação tecnológica.

Em terceiro, a exposição das empresas brasi-

leiras à tecnologia e gestão de ponta por

meio do comércio (e do investimento estran-

geiro orientado para as exportações) é relati-

vamente baixa. E, por último, os gastos com

o ensino superior beneficiam uns poucos

privilegiados. Todos esses fatores impedem

o crescimento econômico. (BANCO MUN-

DIAL, 2003b).

Na crítica ao pensamento formulado nas agên-cias multilaterais, assumidas e implementadas pelogoverno de Lula da Silva, percebemos que esseprojeto de educação, em âmbito internacional,orienta-se, conforme afirmação de Mészaros, parao mercado, para aquilo que se pode aprender paravencer.

[...] essa orientação da educação é um canal

para os propósitos expansionistas da pro-

dução de commodities. Expandir valores

humanos, nesse sentido, se torna algo irre-

levante, porque não gera lucro direto. O in-

teresse hoje é criar meios de expansão do

capital. O que as pessoas aprendem para

sua realização pessoal, os chamados valores

úteis, tem cada vez mais sido compreendido

como valores comerciais ou valores de tro-

ca. (MÉSZAROS, 2000).

Nessa afirmação de Mészaros, reside um pres-suposto fundamental para a apreensão da funçãosocial da universidade e da educação pública nasociedade brasileira, nos dias atuais. Trata-se dofato de que a sociedade regida pela racionalidade

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do capital carrega consigo o miste-rioso poder de uniformizar, sob aforma de mercadoria, todas asmúltiplas expressões da vida sociale individual. O capital mostra-se,assim, cada vez mais, uma forçasem qualquer limite à sua sanha dereprodução. Obstáculos sociais ounaturais, veleidades culturais sãorompidos ou ultrapassados à custade um altíssimo preço humano. Aburguesia, em âmbito internacio-nal, tem procurado vencer todosos óbices à acumulação impostospelas lutas sociais ocorridas desdefins do século XIX e ao longo doséculo XX, o que faz com que ocapitalismo se desnude e se mos-tre, como salienta Fiori (2001), en-tregue às suas próprias leis. Entreesses obstáculos, encontra-se ochamado Estado Social. Ou seja: omodelo de Estado que possuía en-tre suas funções “o desenvolvi-mento de políticas expansivas e anticíclicas, agarantia de serviços públicos, a dotação de infra-estrutura, a realização de alguma redistribuiçãode renda por meio da prestação de serviços so-ciais.” (BHERING, 2000, p. 72). Conforme te-mos constatado nesta conjuntura, o discurso daplena integração social difundido pela burguesiaem tempos de vigência do pacto marshaliano/key-nesiano, tende a desvanecer-se por completo.

Por fim, é imperioso salientar a necessidade dealterar, transformar e ampliar a educação supe-rior no país e esta tem sido uma das mais impor-tantes bandeiras de luta daqueles que defendem ocaráter público da universidade. Por esta razão,não descartamos a necessidade de reformar a uni-versidade brasileira, mas nunca na direção dedestruir a educação pública superior realizada nopaís, como faz a contra-reforma do governo Lulada Silva, que está em curso. As mudanças quealmejamos para o ensino superior brasileiro vi-sam a melhorá-lo e ampliá-lo e, assim, não po-dem resultar em um processo que signifique re-

trocesso e caracterize-se como“contra-reforma” porque supri-me direitos públicos construídospelo mundo do trabalho.

Considerações finaisA essência da contra-reforma

tem dois vetores: primeiro, o quetrata da noção de direito; segundo,o que trata do financiamento.Nessa conjuntura complexa, mui-tos dos que em tempos recentesdefendiam os direitos do trabalhoagora agem franca e deliberada-mente contra os interesses domundo do trabalho e defendem osdo capital. Impera a confusão es-pecialmente pela ‘habilidade’ destegoverno de usurpar as bandeirasda classe trabalhadora brasileira.Tudo que defendemos, tudo emque acreditamos, tudo que cons-truímos, nos últimos trinta anos, éapropriado pelo governo em sua

retórica demagógica e, a seguir, esvaziado de todasua essência historicamente construída.

Nós sabemos o que queremos; queremos umauniversidade pública, gratuita, autônoma e de-mocrática, voltada à resolução dos problemas damaioria dos trabalhadores brasileiros. Pensar osproblemas nacionais à luz da classe que vive-do-próprio-trabalho é pensar o desenvolvimento dopaís a partir de uma outra ótica, distinta da docapital. A proposta alternativa foi construída noâmbito de muitas lutas e de muito esforço deconvergências, mas, sobretudo, de muito esforçode convocação ampla e unitária, o que permitiu aelaboração de documentos como o Plano Nacio-nal de Educação - PNE (Proposta da SociedadeBrasileira) e o Caderno 2 - Proposta do ANDES-SN para a Universidade Brasileira, que resultamde um longo processo de acúmulo e de síntesesativamente construídas.

Para os docentes do ensino superior brasileiro,o resgate da universidade pública pressupõe aampliação do acesso à educação superior e à pro-

Educação: prioridade nacional?

A sociedade regida pela

racionalidade do capitalcarrega consigo

o misterioso poder de uniformizar, sob a forma de

mercadoria, todas asmúltiplas expressões

da vida social e individual.

O capital mostra-se,assim, cada vez mais,

uma força sem qualquer limite

à sua sanha de reprodução.

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dução do conhecimento. Na direção contrária aeste resgate, o Governo Lula destrói a universi-dade pública por meio de várias medidas como oSinaes, a regulamentação das Fundações deApoio, o ProUni e a Lei de Inovação Tecnológi-ca, que atribui à produção do conhecimento omesmo lugar subordinado e dependente das ou-tras dimensões da vida social de um país periféri-co: considera que a produção de pesquisa será ta-refa exclusiva para alguns poucos países, especi-almente os do G-7, e que no Brasil a única pes-quisa possível será a de adaptação de ‘pacotes’tecnológicos à produção local. Para a relação detrabalho do professor-pesquisador, reserva-seuma inteira descaracterização de seu papel por-que ele deverá tornar-se empreendedor. O fetichede fazer do pesquisador um empresário capitalis-ta bem-sucedido oculta a submissão formal e realao capital que se imprimirá ao trabalho acadêmi-co e de pesquisa. Joga-se com a possibilidade derecursos pela facilidade de poder montar-se em-presa de pesquisa, realizar-se convênio com auniversidade e adotar uma promiscuidade nas re-lações de trabalho em que o professor direcionao melhor de sua atividade a fins privados, tudoisso financiado com dinheiro público. É fácilconstatar que o brutal arrocho salarial que a cate-goria vive há dez anos serve de elemento impul-sionador de tudo isso. Assumir esse lugar subor-dinado na divisão internacional do trabalho e naprodução de conhecimento implica abandonar ahistória de pesquisa no país, asconquistas da pesquisa espacial, dabiossegurança, da biotecnologia,dos estudos sobre diversas matri-zes energéticas, da agricultura etc.,nas quais o Brasil logrou umacúmulo fundamental. Lamenta-velmente, com a contra-reformado ensino superior, o governo Lu-la da Silva perpetuou essa destrui-ção. As razões para a destruiçãodas regulações sociais praticadaspelo Estado encontram-se nos in-teresses das corporações transna-cionais que objetivam a “[...] li-

quidação dos direitos sociais, como o assalto aopatrimônio e ao fundo público.” (NETTO &BRANT CARVALHO, 1996, p. 24).

A afirmação da necessidade da universidadepública é a afirmação de que o direito de acesso àeducação superior à totalidade de jovens e adul-tos que desejem estudar e da garantia das con-dições para que o façam, bem como a produçãodo conhecimento no país são direitos inalienáveisdos trabalhadores. Isto supõe negar a dimensãode agência prestadora de serviço, posto que edu-cação não é mercadoria; é, ao contrário, um direi-to e, portanto, tem que ser gratuita e universal.Esses são os elementos constitutivos de um direi-to construído na ótica de um sistema marcadopela luta de classe. É isso o que está em discussão.

Dados divulgados pela Folha de São Paulo em2004 parecem indicar que vivemos um grave re-trocesso no estágio atual de desenvolvimento dopaís. Atualmente o Brasil possui 35 milhões dejovens entre 18 e 24 anos. Desses, apenas 3,5 mi-lhões são universitários, sendo que 2,4 milhõesestudam em IES privadas. Se levarmos em contao imenso contingente de jovens que sequer ter-minam o ensino básico, a situação fica ainda maisgrave. Ou seja, pelo fato de ser altamente “produ-tiva”, igualmente consumidora e, ao mesmo tem-po, ser uma força-de-trabalho extremamente bara-ta, a juventude está mais propensa a se confrontarcom o atual estado das coisas. O número de jovensdesempregados no mundo atingiu o recorde de 88

milhões em 2003, segundo a Orga-nização Internacional do Trabalho(OIT). No relatório Tendênciasglobais de emprego para jovens, oorganismo aponta que 47,3% dosdesempregados, de um total de 186milhões, eram jovens entre 15 e 24anos - apesar de esse grupo repre-sentar apenas 25% da populaçãono mercado de trabalho. Dessetotal, 3,5 milhões estão no Brasil -que responde por 4% do desem-prego juvenil global, embora osbrasileiros representem apenas2,8% da população do mundo.

Educação: prioridade nacional?

O fetiche de fazer do pesquisador um empresário

capitalista bem-sucedidooculta a submissão

formal e real ao capital que se

imprimirá ao trabalhoacadêmico e de

pesquisa.

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A explicação central para estagrave situação está na consolidaçãode uma coalizão de classes em queas frações locais da burguesia maispoderosas são as mais subordi-nadas aos setores dominantes mun-diais, por isso adotam como suas as“condicionalidades” dos organis-mos internacionais que operam emfavor desses setores dominantes.Os últimos governos brasileirostêm procurado integrar a economiaao chamado processo de globaliza-ção, principalmente por meio daabertura comercial e financeira. Soba inspiração da análise de Mandel,podemos afirmar que esta forma deintegração tem sido adotada por“[...] razões de preferência sociopo-lítica, cuja natureza de classe deve ser posta a nu.”(MANDEL, 1990, p. 84) e não pela inexistência deoutras possíveis estratégias.

Por sermos profissionais da educação e pesqui-sadores, sabemos que a atual miséria social e hu-mana não é uma condenação perpétua aos traba-lhadores deste planeta e aos de nosso país. Mas,essa é a história ou talvez, conforme já afirmado,a pré-história da humanidade, e é assim que ela seconstrói. Infelizmente, durante o governo Lulada Silva, tal situação não se modificou. Foramanos nos quais a política de ataques à classe traba-lhadora e a subordinação do governo ao imperia-lismo prevaleceram. Exemplos categóricos dissosão as Parcerias Público-Privadas (PPPs), a “re-forma” da Previdência encaminhada pelo gover-no, a “reforma” universitária em curso e os proje-tos de “reforma” sindical e trabalhista.

É importante ressaltar, no âmbito das contra-reformas em geral e no da contra-reforma uni-versitária em particular, que ela ainda não estáconcluída: foi apresentado recentemente o ante-projeto de Lei Orgânica de Reforma da Educa-ção Superior Brasileira, que prepara o fechamen-to da investida do Governo Lula e do BancoMundial contra o ensino público superior brasi-leiro. Isso fica evidente em pontos como a des-

truição da assistência estudantil,da transformação das atividadesde extensão da universidade em“Primeiro Emprego Acadêmico”,somente para ficar nos exemplosmais gritantes.

A responsabilidade daquelesque defendem que o papel socialda universidade é estar a serviçoda produção e transmissão do co-nhecimento que possa servir à re-solução dos problemas da maio-ria da população e para a forma-ção de profissionais críticos quepossam, ao intervir na realidade,contribuir para modificá-la. Éafirmar, portanto, o caráter pú-blico da universidade, resgatandoseu papel histórico.

NOTAS

1 Para aprofundar este tema cf. Dias, 2004.2 Para aprofundar esta análise ver Netto, 1999.3 Essas análises estão aprofundadas no CadernoANDES-SN, 2004, A contra-reforma da educação supe-rior: uma análise do ANDES-SN das principais iniciati-vas do governo Lula da Silva.4 Análise criteriosa sobre as políticas do Banco Mundialou o “ministério mundial da educação para os países pe-riféricos” é realizada por Leher, 1999.5 Sobre essa temática, ver os estudos de Florestan Fer-nandes, 1975a e 1975b.6 Cabe destacar que, apesar de dedicar uma análise espe-cífica sobre a reforma do Estado no relatório de 1997, oBanco Mundial já elaborava uma série de análises sobre opapel do Estado no cenário da “globalização econômica”,noção exaustivamente apresentada pelo Banco para iden-tificar o conjunto de alterações no projeto burguês desociabilidade diante da crise estrutural do capital. Os re-latórios de desenvolvimento mundial, a partir da metadeda década de 1990, tratam de temáticas referentes a esseconjunto de alterações: a necessidade de infra-estruturaadequada para o desenvolvimento econômico (1994); aimportância do livre comércio e da economia de mercadopara os trabalhadores num mundo integrado (1995); asrelações econômicas internacionais no cenário da econo-mia de mercado (1996); a necessidade de reformulação dopapel do Estado em um mundo em transformação (1997);o papel do conhecimento no desenvolvimento econômi-co e social mundial (1998-1999); incorporando os desa-

A atual miséria social e humana não é umacondenação perpétua

aos trabalhadores deste planeta e aos

de nosso país. Mas, essa é a história ou talvez, conforme

já afirmado, a pré-história dahumanidade, e é assim que ela

se constrói.

Educação: prioridade nacional?

fios do século XXI (1999-2000); as estratégias para a re-dução da pobreza (2000-2001); construindo instituiçõespara uma economia de mercado (2002); desenvolvimentosustentável em uma economia dinâmica (2003); prestaçãode serviços para os pobres (2004) e por um melhor climade investimentos para todos (2005). Todos esses relató-rios estão disponíveis na página do Banco Mundial.7 O Banco Mundial expressa, dessa forma, a concepçãoliberal de Estado e de sociedade civil, na qual o Estado éo guardião do contrato social e a sociedade civil é o soma-tório de indivíduos, grupos sociais, ONGs, movimentossociais, como o espaço da ajuda mútua, da cultura cívica,da responsabilidade empresarial, dos sindicatos colabora-cionistas, fundamento da cidadania burguesa. Para co-nhecer a concepção do Banco, ver Do confronto à colabo-ração: relações entre a sociedade civil, o governo e o Ban-co Mundial no Brasil.8 Sguissardi (2000) analisa os principais aspectos do do-cumento Educação superior nos países em desenvolvi-mento - riscos e promessas, divulgado em 2000 e elabora-do por um Grupo de Trabalho formado por represen-tantes do Banco Mundial e da Unesco. Nesse artigo, oautor questiona até que ponto as mudanças no discursodo Banco não significam mera forma de adaptação aosnovos tempos e identifica como tese central do Banco adiluição das fronteiras entre público e privado: “Para oBanco, a multiplicação das IES privadas, a introdução doensino pago nas IES públicas e a ampliação da dife-renciação institucional são sempre bem-vindas. Somadasa novas fontes alternativas de recursos, garantiriam com-petitividade, vista como fator de maior qualidade, o queapenas não ocorreria se essa diversificação continuassesendo “caótica e sem planejamento”. Aposta, também, naparceria de instituições públicas (com ensino pago) eprivadas com e sem fins de lucro: “Todos os tipos de IES– inclusive as que operam por filantropia ou em razão dolucro – podem servir ao interesse público”.9 Lima (2004) analisa com peculiaridade a questão, desta-cando que a expressão “capital social” é utilizada nos do-cumentos do Banco Mundial, tendo como referência osestudos de Robert Putman sobre as ações cívicas nos Es-tados Unidos. Para aprofundar estas análises, ver BancoMundial (2000).10 A este respeito Genro (2004) e Giddens (1996). 11 Defendendo o financiamento público apenas para aeducação básica (reduzida pelo Banco Mundial a ensinofundamental) e criticando a alocação de verbas públicaspara a educação superior nos países da periferia do capi-talismo, o documento ressalta que “[...] na verdade, pode-se afirmar que o ensino superior não deveria ter um direi-to maior a utilizar recursos públicos disponíveis para aeducação em muitos países em desenvolvimento, em es-pecial naqueles que ainda não conquistaram acesso, eqüi-dade e qualidade adequados nos níveis básico e médio.”(BANCO MUNDIAL, 1994, p. 3, tradução nossa).

12 A primeira prevê a diversificação das instituições deensino superior, sob o pressuposto do desenvolvimentode universidades públicas, privadas e de instituições nãouniversitárias, incluindo os cursos politécnicos, os cursosde curta duração e a educação a distância por meio dasuniversidades abertas com seus modernos meios eletrô-nicos. Tal mecanismo argumenta o Banco Mundial, “[...]pode contribuir para o atendimento da demanda cada vezmaior pela educação pós-secundária e fazer com que ossistemas de ensino se adaptem melhor ao mercado de tra-balho.” (BANCO MUNDIAL, 1994, p. 31). A diversi-ficação das fontes de financiamento das universidadespúblicas apresenta-se como a segunda estratégia, a partirdas seguintes diretrizes: 1) canalizar mais fundos priva-dos para o ensino superior; 2) apoiar os estudantes quali-ficados que não podem continuar os estudos superioresdevido a renda familiar insuficiente; e 3) melhor executara dotação de recursos estatais entre as instituições e dentrodelas (BANCO MUNDIAL, 1994, p. 7, tradução nossa).

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Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 71

As políticas formuladas pelas autoridades go-vernamentais para a educação superior bra-sileira nos anos 1990 apontaram para a ne-

cessidade de uma gestão mais racional das uni-versidades públicas, com ênfase na eficiência e naflexibilidade. A implementação destas políticasdeu início a uma reforma universitária promovi-da simultaneamente à chamada “Reforma do Es-tado”. Coincidindo com uma grave crise econô-mica, ela, geralmente, tem sido explicada como re-sultado de exigências das agências financeiras in-ternacionais que regulam o sistema de crédito nomercado mundial.

O presente trabalho buscou as raízes histó-ricas das diretrizes que nortearam a nova reformauniversitária, mostrando que, já nos anos 1960,eficiência e flexibilidade formavam um binômioque constituía o eixo de um projeto para a edu-cação superior, formulado pelos segmentos maisconservadores da sociedade brasileira. A despei-to da ascensão destes segmentos ao poder com ogolpe militar de 1964, o modelo de universidadeadotado pelo regime autoritário não teve comosua principal referência aquele projeto, o qual se-

ria resgatado a partir de meados dos anos 1980. Apartir de então, sua defesa foi se revestindo deatualidade e de uma sofisticação acadêmica queacabaram lhe conferindo legitimidade.

Para a realização desta pesquisa, foram exami-nados estudos e relatórios produzidos para o Mi-nistério da Educação, nos dois períodos mencio-nados, assim como planos e programas deste Mi-nistério, além da legislação voltada para a educa-ção superior.

O autoritarismo, as dissensões internas e a reforma universitária de 1968

A despeito da existência de escolas superiores,desde os tempos coloniais, foi somente nos anos1920 que apareceram no Brasil as primeiras uni-versidades. O primeiro marco na história do queseria a moderna universidade brasileira, no en-tanto, aconteceu somente em 1934, com a criaçãoda Universidade de São Paulo (USP). O primeirogrande surto de expansão do sistema de educaçãosuperior veio com o pós-guerra, sendo este redi-mensionado para absorver uma crescente deman-da. Paralelamente à expansão, houve um proces-

A reforma da universidade brasileira:novos discursos, velhas propostas

Maria das Graças M. Ribeiro

Professora da Universidade Federal de Viçosa

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE72 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

so de modernização, que, aos poucos, foi incor-porando, ao modelo de base napoleônica, traçosdo padrão norte-americano. Tal modernizaçãoera definida na perspectiva da capacidade de umaprodução tecnológica voltada tanto para a segu-rança nacional como para o desenvolvimentoeconômico e social.

A Universidade de Brasília (UnB), criada em1961, constituiu o paradigma da moderna univer-sidade brasileira, no pós-guerra. Esta buscava de-sempenhar “o papel de agência de assessoramentogovernamental”, para a busca do desenvolvimen-to autônomo do país. (RIBEIRO, 1991, p. 133).

Com o golpe militar em 1964, a fúria da re-pressão se abateu sobre a UnB.Seu câmpus foi invadido, houve oexpurgo de dezenas de estudantese docentes e várias unidades dainstituição foram extintas. De to-do modo, o regime autoritárioacabou por incorporar muitas dasidéias contidas no seu projeto ori-ginal à reforma universitária porele promovida.

A primeira medida do governo militar no pla-no da educação superior foi a edição de uma leique extinguia a União Nacional dos Estudantes(UNE). No mesmo ano, 1964, o Ministro daEducação, Suplicy de Lacerda, descartava a hipó-tese de uma reforma universitária, afirmando nãohaver o que reformar, uma vez que a universida-de brasileira não havia ainda se constituído. Noentanto, não demoraram as iniciativas na direçãode uma reforma. Em 1966, foi assinado o decre-to-lei nº 53 e, no ano seguinte, o decreto-lei nº 252,ambos estabelecendo mudanças significativas pa-ra as universidades. Também em 1966, foi publi-cado pelo Ministério da Educação (MEC) o do-cumento Rumo à Reformulação Estrutural daUniversidade Brasileira, conhecido como Rela-tório Atcon, no qual o consultor norte-america-no Rudolph Atcon apresentava, a pedido daqueleMinistério, suas recomendações ao que consi-derava a necessária reforma de nossa educaçãosuperior. Do mesmo modo, entre 1965 e 1967, ogoverno brasileiro tornava mais estreitas suas

relações com a United States Agency for Inter-national Development (Usaid), no campo daeducação superior, assinando neste último anoum convênio para a assessoria de especialistasnorte-americanos ao setor, o qual não teve êxito,devido às manifestações estudantis contra o mes-mo e a resistência dos especialistas brasileiros comos quais os norte-americanos deveriam atuar. Aofinal deste ano, em face das crescentes pressõespor mais vagas nas universidades públicas, o go-verno nomeou a Comissão Meira Mattos paraexaminar o problema e propor medidas para oensino superior.

Ao tomar todas estas iniciativas, o governo di-tatorial já contava com algumaspropostas para o ensino superior,apresentadas por um organismoda sociedade civil que dava sus-tentação ao grupo no poder e quehavia se organizado antes mesmode desferido o golpe militar. Esteorganismo era o Instituto de Pes-quisas e Estudos Sociais (Ipes),criado no início dos anos 1960,

contando em seus quadros com empresários,militares e intelectuais conservadores, ferrenhosadversários das reformas de base (agrária, fiscal,universitária) então propostas pelo governoGoulart.

O Ipes promoveu dois grandes simpósiossobre reforma educacional, um em dezembro de1964, outro em outubro de 1968. Um pouco an-tes deste último, o governo nomeara um grupode trabalho para estudar a reforma da univer-sidade. Após o prazo de trinta dias, esse grupoapresentou o seu relatório acompanhado de pro-posta de anteprojeto de lei. Examinada por maisde um mês pela assessoria da Presidência daRepública, a proposta foi encaminhada aoCongresso, resultando na Lei nº 5.540/68, a lei dareforma universitária.

José Nilo Tavares (1979), procurando identifi-car os grupos de interesse envolvidos no proces-so que resultou na lei da reforma universitária,contrapõe, de um lado, os interesses daquelesque se expressaram mediante o Relatório Meira

A Universidade deBrasília (UnB), criadaem 1961, constituiu o

paradigma da modernauniversidade brasileira,

no pós-guerra.

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Educação: prioridade nacional?

Mattos e o Relatório Atcon, de outro, interessesque envolviam legisladores e reitores de univer-sidades, os quais se expressaram através das pro-postas defendidas pelo Conselho Federal deEducação (CFE).

Tavares observa que estava em setores empre-sariais a base de sustentação do primeiro grupo,enquanto o CFE apresentava uma composiçãoheterogênea que “refletia uma situação políticaanterior a 1964”. As diferenças político-ideoló-gicas entre os conselheiros e entre os reitoreseram evidentes, mas a defesa da autonomia uni-versitária era o seu ponto de união.

Sendo assim, foram freqüentes os atritos entreaqueles que defendiam a propostada Comissão Meira Mattos e oCFE. Segundo o autor, a linha deconciliação que marcava as re-lações do CFE com o “Sistema dePoder”, foi de grande importânciana “relativa frustração do projetoMeira Mattos”. Quanto a Atcon,havia em suas propostas para auniversidade brasileira algunspontos conciliáveis com a propos-ta defendida pelo grupo de reito-res e de conselheiros do ConselhoFederal de Educação (TAVARES,1979, p. 109).

Foi com base no relatório dogrupo de trabalho antes mencio-nado, cujas propostas se colocavam na mesmalinha dos debates que ocorriam no CFE, que teveinício a reforma da universidade. A lei da refor-ma que, após ser aprovada no Congresso Nacio-nal e devolvida ao Presidente da República, teve,antes de ser sancionada, 45 artigos e parágrafosvetados, deixava de fora o que talvez fossem ospontos essenciais do projeto de Atcon para a uni-versidade brasileira – a reforma administrativa dauniversidade com a sua reconfiguração nos mol-des de uma empresa privada, a política de dota-ção global com a desvinculação “dos controlesadministrativos e financeiros do Estado” e o fimda condição de servidor público dos professores,que deveriam ser submetidos à política de pes-

soal de cada instituição. O fim da gratuidade nasuniversidades, como também defendia o Relató-rio Meira Mattos, não estava na lei. Também nelanão estavam a flexibilização dos currículos doscursos de graduação defendida por Meira Mattose pelos especialistas da Usaid, nem a segmentaçãoinstitucional defendida por estes e pelo Ipes.

A Lei nº 5.540/68 instituía a organização de-partamental, extinguindo a cátedra das universi-dades, estabelecia a matrícula por disciplina e oregime de créditos, o tempo integral para os do-centes, criando-se assim as condições para a im-plantação dos cursos de pós-graduação. No en-tanto, contrariando as orientações de todos os

estudos contratados pelo Minis-tério da Educação (Relatórios deAtcon, Meira Mattos e especialis-tas da Usaid) e mesmo as orienta-ções do Ipes, a lei exigia que asinstituições de educação superiorse organizassem como universi-dades, adotando o princípio daindissociabilidade entre o ensinoe a pesquisa.

A Reforma Universitária de1968 não pode ser entendida se-não no contexto em que foi pro-duzida. Assim, há que se consi-derar o processo de transforma-ções profundas detonadas na so-ciedade brasileira, a partir do gol-

pe militar desfechado em abril de 1964.Ao assumir o poder, os novos governantes ti-

nham um projeto para o Brasil e este envolvia aatuação do Estado como indutor de uma moder-nização que acabou por elevar o país à condiçãode oitava maior economia do mundo capitalista.Nesse processo, o Estado manteve um conjunto deempresas produtoras de mercadorias e serviçosque, junto com as empresas multinacionais, passa-ram a demandar uma força de trabalho melhorqualificada. Esta demanda também foi impulsio-nada pelo espetacular crescimento da economia.Assim, a partir de 1968, teve início o chamado“milagre brasileiro”.

Vale notar que esse processo de crescimento se

A Reforma Universitáriade 1968 não pode serentendida senão nocontexto em que foiproduzida. Assim, háque se considerar o

processo detransformações

profundas detonadas na sociedade brasileira,a partir do golpe militar

de 1964.

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Educação: prioridade nacional?

fez em meio a uma política de endividamento ex-terno, de um arrocho salarial draconiano e deuma feroz repressão a todos os que lançavamcríticas ao governo, especialmente os estudantes.

Não obstante a violenta repressão contra estu-dantes e cientistas, houve, no período que sucedeuao golpe, uma política de estímulo à produçãocientífica daqueles que não se manifestaram con-trariamente às arbitrariedades cometidas pelo re-gime autoritário e uma tentativa de trazer de voltaao país os cientistas que haviam migrado antes dogolpe. Não há dúvida de que o governo militarnão poderia prescindir de profissionais altamentequalificados, na virada para os anos 1970, quandoa economia do país vivia a maior expansão de suahistória. Assim, a reforma universitária foi umaresposta às exigências postas à educação superiorpor uma sociedade que vivia um processo decrescimento sem precedentes.

Rumo a uma nova reforma universitáriaNão é possível ignorar o feroz controle policial

exercido pelo regime autoritário sobre a univer-sidade e a perseguição que se abateu sobre cente-nas de estudantes e professores, muitos dos quaispresos e torturados. Contudo, foi sob o autorita-rismo que se consolidou um moderno sistema deeducação superior. Vale notar que a ausência de ri-gor no cumprimento das exigências previstas na Leinº 5.540 não impediu que a mesma acabasse porcontribuir decisivamente para a modernização dauniversidade brasileira, a qual, a partir dos anos 1970,apresentou um padrão de qualidade que a levou ase destacar entre aquelas do Terceiro Mundo.

Na virada para os anos 1980, a educação supe-rior apresentava os primeiros sintomas de des-gaste. Nos primeiros anos desta década, foramrestringidas as verbas para pesquisa, não mais semantinham nos níveis anteriores os reajustes sa-lariais de professores e não havia contratação denovos docentes. Nos últimos anos da ditaduramilitar, era flagrante a crise da universidade.

Em 1985, com o afastamento dos militares dogoverno, o novo Presidente da República no-meou uma comissão para formular propostas pa-ra a universidade. A Comissão Nacional de Re-

formulação da Educação Superior (CNRES)produziu um relatório que continha muitas daspropostas que iriam aparecer nas políticas gover-namentais na década seguinte. Como desdobra-mento dos seus trabalhos, foi criado, em 1986, oGrupo Executivo para a Reformulação da Educa-ção Superior (Geres), que deveria preparar as me-didas legais para uma reforma universitária. Emoutubro de 1986, o Relatório e o anteprojeto re-sultantes dos trabalhos do Geres foram divulga-dos. O repúdio aos mesmos impediu sua votaçãono Congresso Nacional, de onde foi retirado.

Não obstante a retirada do projeto Geres doCongresso Nacional, as suas linhas gerais mantive-ram-se como referência nos documentos oficiaisposteriores. Nos trabalhos da Assembléia NacionalConstituinte, iniciados logo depois, colocaram-se osembates entre aqueles que defendiam as medidaspropostas pelo Geres e pela CNRES e os que defen-diam as propostas formuladas no campo popular.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu,em seu artigo 207, a autonomia didático-cientí-fica, administrativa e de gestão financeira e patri-monial, reafirmando o princípio da indissociabi-lidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão pa-ra as universidades. Após a sua promulgação, noentanto, prosseguiram os trabalhos de elaboraçãode uma nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB).

Em 1995, com o início do mandato de Cardo-so, um projeto de LDB aprovado na Câmara Fe-deral, após alguns anos de negociações, foi atro-pelado por substitutivo do Senador Ribeiro, como apoio da equipe de Cardoso. Tramitando noCongresso Nacional, este projeto foi se adaptan-do às políticas elaboradas pela equipe do MEC,de modo que, quando aprovada a LDB, em de-zembro de 1996, já se tinha estabelecido uma sé-rie de inovações no sistema de educação superiorque alteravam substancialmente sua configuração.

Os primeiros pronunciamentos oficiais relati-vos à educação superior, no governo Cardoso,partiram do ministro Bresser Pereira, ocupantedo recém-criado, e já extinto, Ministério da Ad-ministração e Reforma do Estado (Mare), e nãodo Ministério da Educação. Bresser Pereira se di-zia disposto a transformar as universidades fe-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 75

Educação: prioridade nacional?

derais em “organizações sociais” a serem regidaspor um contrato de gestão nos moldes das “quasinon-governamental organizations” (Quangos),difundidas nos anos 1980 pelo governo de Mar-garet Thatcher, no Reino Unido.

O mal-estar causado nas universidades portais declarações levou o ministro da Educação,Paulo Renato Souza, a anunciar o seu programapara o setor. A implementação deste programaimplicou a criação do Exame Nacional de Curso,estabelecendo a avaliação de todos os estudantes,no último ano da graduação; em mecanismospara a avaliação de desempenho dos docentescom a introdução de gratificação por produti-vidade; além de mudanças na forma de dotaçãoorçamentária das universidades federais. Em1997, foi editada uma medida queretirava da lei a recomendação deque as instituições de educaçãosuperior se organizassem comouniversidades, o que reconfigura-va o sistema, reconhecendo, alémdesta forma de organização acadê-mica, outras, como os centros uni-versitários, as faculdades integra-das, as faculdades e os institutossuperiores ou escolas superiores.

A mais polêmica das propostasdo governo Cardoso para o ensi-no superior foi a que se referia àautonomia universitária. Buscan-do impedir a auto-aplicação doprincípio de autonomia previstopara as universidades na Consti-tuição, ele negociou sucessivosacordos sem conseguir, contudo,aprovar o modelo de autonomiadesejado.

Ao longo do primeiro mandato de Cardoso naPresidência da República, houve, em torno daspolíticas para a educação superior, uma certa dis-puta entre as autoridades do Mare, que insistiamna transformação das universidades federais em“organizações sociais”, e as autoridades do MEC.Na passagem do primeiro para o segundo man-dato, com início em 1999, foi mudando a corre-

lação de forças desta disputa. Com isto, intelec-tuais das universidades paulistas, responsáveispela elaboração das políticas do MEC forampouco a pouco se retirando do cenário governa-mental, deixando aquele ministério mais permeá-vel a adeptos de uma reforma mais radical no sis-tema de educação superior. No início do segun-do mandato de Cardoso, o Ministério da Educa-ção fez uma nova investida para aprovar a auto-nomia das universidades federais, desta vez, combase num “contrato de desenvolvimento institu-cional” que guardava fortes semelhanças com alegislação que rege as “organizações sociais”.Protestos da comunidade acadêmica frustraramo novo projeto.

Não obstante o insucesso no que se refere àsua proposta de autonomia, oMEC foi apresentando novas pro-postas, as quais foram imprimin-do maior flexibilização ao sistemade educação superior. Exemplodestas propostas é um documentodo Ministério, traçando novas di-retrizes curriculares para os cursosde graduação, as quais esvaziamsignificativamente a base de forma-ção teórica de seus estudantes.

Cabe considerar que as propos-tas e iniciativas das autoridadesgovernamentais para a educaçãosuperior, nos anos 1990, aqui bre-vemente apresentadas, não consti-tuem propriamente uma novidade.

Resgatando um antigo projetoNa década de 1990, tanto os de-

fensores do projeto do Marequanto os do projeto do MEC tomaram comobase de argumentação em defesa de suas propos-tas um discurso muito semelhante àquele conti-do nos documentos do Ipes, dos técnicos daUsaid, nos relatórios Atcon e Meira Mattos.

Em 1966, em seu Rumo à reformulação estru-tural da universidade brasileira, Rudolph Atcon,tratando da autonomia institucional, defendiauma reforma administrativa da universidade para

No início do segundomandato de Cardoso, oMinistério da Educaçãofez uma nova investida

para aprovar aautonomia das

universidades federais,desta vez, com basenum “contrato dedesenvolvimento institucional” queguardava fortes

semelhanças com a le-gislação que rege as

“organizações sociais”.

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Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

“[...] desenvolver mecanismos de controle inter-nos [...]” que permitissem independência acadê-mica e financeira, rompendo o forte controle doEstado. Atcon considerava que somente destaforma seria possível ampliar e consolidar a auto-nomia universitária. Segundo ele, “[...] um plane-jamento dirigido à reforma administrativa dauniversidade brasileira [...]” deveria ter por refe-rência um sistema administrativo tipo empresaprivada. (ATCON, 1966, p. 82).

O mesmo autor considerava que o fato dosprofessores das universidades federais estaremvinculados ao serviço público implicava a intro-dução de todos os vícios daquele sistema nomundo acadêmico-científico.

A proposta de autonomia institucional deAtcon não era muito diferente da versão apre-sentada pelo MEC, em 1999. Nesta, as universi-dades federais seriam geridas por um “contrato dedesenvolvimento institucional” que poderia am-pliar a sua autonomia, desde que estas fizessemuma opção pelo mesmo. O contrato encontraria,conforme o MEC, “plena afinidade” com a Lei nº 9.637/98, que rege as Organizações Sociais.

Vale notar que a proposta de Bresser Pereirade transformar as universidades federais em “Or-ganizações Sociais” estava atrelada ao seu pro-grama de “Reforma do Estado”, mediante o quala educação superior passaria a se constituir como“serviço não-exclusivo do Estado”, podendo opessoal docente perder a sua condição de fun-cionário público.

Já em 1967, o general Meira Mattos, apontava,no seu relatório encomendado pelo governo, anecessidade de “[...] desvincular os atuais mem-bros do [...] magistério, em matéria de venci-mentos, do regime jurídico do funcionalismocivil [...].” (ATCON, 1996, p. 261).

O general antecipava-se ao ministro Paulo Re-nato Souza ao propor a criação de “[...] um siste-ma especial de retribuição inspirado precipua-mente na produtividade do professor.” (AT-CON, 1996, p. 261). O relatório Meira Mattosrecomendava, ainda, a cobrança de taxas paraaqueles que tivessem condições de arcar com oscustos de seus estudos. Na década de 1990, o fim

da gratuidade nas universidades públicas foi umtema latente na pauta do governo. SimonSchwartzman, um dos intelectuais que inspirarao projeto do Ministério da Educação, nos anos1990, e que também assessorava o BancoMundial, em meados da década, chamava atençãopara as crescentes dificuldades econômicas dopaís, afirmando que o financiamento público daeducação superior pública estava “em seu limitemáximo”. Observando que “O financiamentodos estudos de um estudante não deveria de-pender da instituição em que ele está matriculadoe, sim, em princípio, de sua renda pessoal oufamiliar [...]”, o autor afirmava não ver nenhumarazão para os estudantes das universidades pú-blicas não pagassem seus estudos se tivessem ren-da para isto (SCHWARTZMAN, 1996, p. 271).

Do mesmo modo, o Ministro Paulo Renatosugeria que, em razão do crescente ingresso dascamadas de mais baixa renda na universidade, ogoverno viesse, num futuro breve, financiar estu-dantes individualmente, por faixa de renda, aoinvés de financiar instituições. Em entrevista arevista Exame, em 1996, o ministro já defenderaa terceirização da universidade como na Coréia,enviando seus melhores quadros para estudarnos Estados Unidos e na Europa. Para ele, “fazmais sentido do ponto de vista econômico”, poiscom a globalização, o acesso ao conhecimento fi-cou mais fácil, mediante associações e joint ven-tures, as quais poderiam prover empresas “depaíses como o Brasil” com o “know-how que ne-cessitam”.

Vale notar a tônica na necessidade de flexibi-lização do sistema de educação superior tantonas propostas dos anos 1990 como nas propostasdos anos 1960. O Relatório Meira Mattos, porexemplo, afirmava que, “[...] visando a atender,conjugadamente, à pressão da demanda e a ummelhor ajustamento às necessidades de nosso de-senvolvimento sócio-econômico e técnico-cien-tífico [...]”, cabia reduzir os currículos e diminuira duração dos cursos de formação profissional.(ATCON, 1996, p. 267).

Na mesma perspectiva, um dos consultoresnorte-americanos da Usaid também criticava a

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 77

falta de flexibilidade na estrutura da educação su-perior brasileira, sua rigidez, monolitismo e aexistência de currículos mínimos. (HOGE apudCUNHA, 1988, p.190).

A flexibilidade também norteou as reformula-ções curriculares recomendadas para os cursos degraduação pelo Ministério da Educação, em1998. Estas reformulações acabaram, em muitoscasos, por implicar significativo encolhimento notempo e na base teórica da formação profissional.

Os consultores norte-americanos da Usaid tam-bém faziam, nos anos 1960, a defesa de um sis-tema universitário heterogêneo ediferenciado, observando que “Po-de haver grande vantagem na ten-dência dos estudantes mais bri-lhantes se congregarem em certasinstituições.” (CUNHA, 1988, p.189). Do mesmo modo, o Ipes, emseu Forum de Educação, realizadoem 1968, quando a lei da reformauniversitária já estava tramitandono Congresso Nacional, defendeua idéia de que cursos superiores decurta duração coexistissem com oscursos superiores tradicionais ecom os cursos de pós-graduação, pois assim, seatenderia ao “[...] ‘duplo objetivo de alargamentode oportunidades, com maior permeabilidade so-cial nas universidades e, ao mesmo tempo, de for-mação de elites altamente qualificadas’ [...].”(SOUZA, 1981, p. 94).

As mesmas considerações apareceriam no Pla-nejamento Político-Estratégico do Ministério daEducação (1995, p. 26), formulado para o perío-do de 1995 a 1998. Afirmava-se ali que o MECbuscaria “Expandir o sistema público de educa-ção superior pela ‘otimização dos recursos dis-poníveis’ [...], valorizando alternativas institucio-nais aos modelos existentes.”

Na verdade, desde o relatório da ComissãoNacional de Reformulação da Educação Supe-rior, o tema da segmentação institucional foi rea-presentado, sendo defendido, em 1987, por aque-la que se tornaria uma das principais assessorasdo MEC, como algo inevitável. Eunice Durham

defendia a criação de estabelecimentos de ensinosuperior distintos da universidade, “menos com-plexos e mais flexíveis”, sugerindo escolas de for-mação mais técnico-profissional e instituiçõespara uma formação mais humanista, ao estilo dosliberal-art colleges. (DURHAM, 1987, p. 105).

Mais tarde, Durham começou a defender, alémda criação destes, um outro tipo de estabeleci-mento voltado especificamente para a formaçãodos professores que iriam atuar no ensino funda-mental. Tal proposta já era defendida nos anos1960 pelo Ipes, o qual, se inspirando nos tea-

cher’s colleges norte-americanos,sugeria a transformação das facul-dades de filosofia, ciências e letrasem faculdades de educação, quese chamariam “Escolas NormaisSuperiores”.

Em abril de 1997, o decretonº 2.207, que era assinado porCardoso, criava, ao estabelecer adiversificação do sistema de edu-cação superior, novos tipos deinstituição como os centros uni-versitários e as escolas normaissuperiores. No final de 1999, a

tentativa de conferir exclusividade aos cursosnormais superiores para a formação de profes-sores para as séries iniciais do ensino fundamen-tal produziu uma grande polêmica.

Considerações FinaisComo foi possível observar, pontos essenciais

da pauta dos grupos conservadores para a uni-versidade brasileira não foram incorporados àreforma universitária de 1968. Não é comum naliteratura especializada um aprofundamento naanálise das injunções que levaram a Lei nº 5.540à sua versão definitiva, deixando de fora os pon-tos mencionados. No entanto, embora as análisesdos estudiosos apontem o descompasso entreaquela lei e a realidade, elas não podem ignorarque a reforma acabou por induzir à consolidaçãode um respeitável sistema de educação superior.Apontamos aqui três elementos que podem con-tribuir para a compreensão deste fato. Primeira-

Educação: prioridade nacional?

No final de 1999, atentativa de conferir

exclusividade aos cursosnormais superiores para

a formação de professores para as

séries iniciais do ensinofundamental produziuuma grande polêmica.

78 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

mente, como já foi mencionado, uma forte de-manda por profissionais qualificados era apre-sentada, na virada para os anos 1970, em razão doacelerado processo de expansão e modernizaçãoda economia, o que, por outro lado, permitiu aogoverno recorrer à cooptação de parte da comu-nidade científica, acatando parcialmente suas rei-vindicações, ao mesmo tempo que buscava, juntoa esta, a sua legitimação. Por outro lado, há quese considerar a emergência do tema do desenvol-vimento científico e tecnológico no país a partirde 1968, o qual aparece com grande ênfase noPrograma Estratégico de Desenvolvimento de1968-1970, que previa a “gradual criação de umprocesso autônomo de avanço tecnológico”.

Vale ainda notar a importância deste tema parasetores nacionalistas das Forças Armadas que, navirada para os anos 1970, entusiasmados com ochamado “milagre econômico”, se aglutinaramem torno do Projeto Brasil Grande Potência,motivados pela aspiração de transformar o paísnuma potência com relativa esfera de autonomiaem relação à tradicional dependência para com osEstados Unidos.

Foi bem diferente o cenário nos anos 1990. Jána década anterior, a chamada “transição à demo-cracia” se fez em meio a uma grave crise econô-mica, chegando a inflação a alcançar índices alar-mantes. Além disso, foi nos anos 1980 que ofluxo de capitais do exterior, quehavia inflado o “milagre brasilei-ro”, estancou, gerando a crise dadívida externa. Na década seguin-te, o agravamento da crise contri-buiu decisivamente para produzir,no plano político, uma ampla ali-ança que levou Fernando Henri-que Cardoso à Presidência da Re-pública. O combate aos gastos pú-blicos visando à estabilização eco-nômica de modo a garantir “ascondições de governabilidade”, foia tônica do discurso de Cardosopara justificar a chamada “Refor-ma do Estado”.

Não obstante a reforma da

universidade tenha sido coordenada pelo MEC enão pelo Mare, cabe considerar, de um lado, queo comprometimento da capacidade de financia-mento do Estado constituiu o argumento centralpara a implementação das mudanças nas univer-sidades, de outro lado, que parte das propostasde mudança que haviam sido defendidas peloMare para a educação superior acabou sendoincorporada pelo MEC, no segundo mandato deCardoso. A proposta do Mare para a universida-de vinculava-se ao projeto de “Reforma do Esta-do”, aqui já mencionado. Anunciava-se como re-ferência para esta Reforma a experiência da In-glaterra, no início do governo Thatcher, e expe-riências municipais e estaduais que teriam ocor-rido nos Estados Unidos, nos anos 1970, sendoposteriormente incorporadas ao programa deClinton. Era também às experiências destes paí-ses que o Ministro do antigo Mare e parte dos in-telectuais ligados ao MEC se referiam, como foivisto, quando justificavam as mudanças na uni-versidade. Vale notar que o modelo norte-ameri-cano de ensino superior tornou-se no pós-guerrauma referência para os demais países. Com aonda conservadora dos anos 1980, este modelo,juntamente com o modelo inglês reajustado àsdemandas de uma economia capitalista em crise,fez da tradição anglo-saxônica no ensino supe-rior um padrão de referência para um movi-

mento internacional de reformauniversitária. Muito embora a jus-tificativa utilizada por este movi-mento tenha sido a crise econômi-ca, na qual estiveram mergulhadospraticamente todos os países domundo, houve uma razão maior amovê-lo. Esta razão é de ordemideológica, sendo a mesma quemoveu aqueles que, no Brasil dosanos 1960, estiveram aglutinadosem torno do Ipes, na defesa dosrelatórios Atcon e Meira Mattos eainda os especialistas norte-ame-ricanos da Usaid.

Cabe considerar que nos anos1990 houve uma afinidade eletiva

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A defesa da ampliaçãodo campo educacionalcomo esfera de ganhos

privados e a idéia de umsistema de educação

superior tãohierarquizado quanto

é a sociedadeencontraram, no final do

século, condições maisfavoráveis.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 79

da proposta de reforma defendida pelas autori-dades governamentais com o cenário produzidopelo agravamento da crise econômica. Assim, adefesa da ampliação do campo educacional comoesfera de ganhos privados e a idéia de um sistemade educação superior tão hierarquizado quanto éa sociedade encontraram, no final do século, con-dições mais favoráveis. Do mesmo, foi se enfra-quecendo a idéia de educação como direito so-cial, no embalo daquela que seria, como apontouHirschman (1995), a mais recente das três gran-des ondas reacionárias na história.

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Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 81

Aeducação a distância vem-se configurando, aolongo da década de 1990 e início do novo sécu-lo, como uma das principais políticas dos or-

ganismos internacionais, especialmente BancoMundial (BM), Organização das Nações Unidaspara a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e,mais recentemente, Organização Mundial do Co-mércio (OMC), sob a aparência de ampliação doacesso à educação nos países periféricos. Uma aná-lise cuidadosa, entretanto, demonstra que a edu-cação a distância, pela forma e conteúdo que apre-senta, constitui-se em mais uma estratégia de priva-tização da educação, configurando-a como um pro-missor “mercado educacional”, principalmente pa-ra os empresários estadunidenses e europeus.

A ofensiva internacional do capital tem, dessaforma, sufocado o uso crítico-emancipatório dasTecnologias de Informação e Comunicação(TICs) e da educação a distância, como alterna-tiva complementar à formação profissional, namedida em que omite a busca do empresariadointernacional por lucratividade, por intermédioda venda de pacotes tecnológicos; o aprofunda-

mento da dependência científico-tecnológica dospaíses periféricos, bem como a importante açãoda educação a distância, na conformação de men-tes e corações ao projeto burguês de sociabilidade.

A análise da educação a distância só pode serrealizada nos marcos dos reordenamentos emcurso na política de educação superior, quais se-jam: a crescente desresponsabilização do Estadocom o financiamento da educação superior pú-blica; o estímulo a medidas que acentuam a pri-vatização interna das instituições de ensino supe-rior (IES) públicas; o aprofundamento do pro-cesso de empresariamento da educação superior,seja pela ampliação do número de cursos priva-dos ou pela imposição de uma lógica empresarialà formação profissional; a política de redução dotempo de duração dos cursos e de precarizaçãodo trabalho docente. Todas essas ações atravessa-ram o governo Cardoso e estão sendo aprofun-dadas no governo Lula da Silva, inclusive com acriação e consolidação de cursos ou programasde educação a distância em todos os níveis e mo-dalidades de ensino.

Educação a distância ouà distância da educação?

Kátia Lima

Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE82 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Este artigo tem como objetivoanalisar o uso das Tecnologias daInformação e Comunicação (TICs)na educação, a partir do estudodos principais documentos elabo-rados e difundidos pelos organis-mos internacionais do capital queapresentam a política de educaçãosuperior a distância para os paísesda periferia do sistema capitalista.Esta análise demonstra que a edu-cação a distância está sendo apre-sentada pelos organismos interna-cionais como uma das principaisestratégias de “inclusão social”dos segmentos mais pauperizados da populaçãona educação superior; de treinamento em serviçodos trabalhadores e ainda, de configuração demais uma importante via de estabelecimento dasparcerias público-privadas na educação brasilei-ra, intensificando, conseqüentemente, seu pro-cesso de mercantilização.

Organismos internacionais e educação a distância: diversificação dos cursos e das fontesde financiamento da educação nos anos de 1990

Ao longo da década de 1990 e início do novoséculo, vem se desencadeando uma ampliação doespaço privado, tanto nas atividades diretamenteligadas à produção econômica como no campodos direitos sociais historicamente conquistadospelas lutas da classe trabalhadora, o que vem ge-rando um aprofundamento no processo de mer-cantilização da educação. Esse processo alcancaexpressão na educação superior, na medida emque a política dos organismos internacionais res-salta que, a esse nível de ensino, é destinado ummontante de verbas públicas maior do que para aeducação básica. Para reverter essa política, deve-riam ser garantidas verbas públicas para a educa-ção fundamental e a diversificação das fontes definanciamento da educação superior. Quando odiscurso dos organismos internacionais do capitalconsidera a necessidade de redução das verbas pú-blicas para a educação, especialmente superior,abrindo a possibilidade para outras fontes de fi-

nanciamento da atividade educa-cional via setores privados, depre-ende-se que, para garantia da ex-pansão no acesso à educação, é im-prescindível a expansão do ensinoprivado (LIMA, 2002).

O aprofundamento do proces-so de privatização da educação su-perior será realizado a partir dedois eixos norteadores: a) a expan-são de instituições privadas com aliberalização dos serviços educa-cionais; b) a privatização internadas instituições públicas, por meiodas fundações de direito privado,

das cobranças de taxas e mensalidades, do cortede vagas para contratação dos trabalhadores emeducação e do corte de verbas para a infra-estru-tura das instituições. Esses dois eixos norteado-res estão presentes na política do Banco Mundialpara os países da periferia do capitalismo e foramexplicitados no documento La enseñanza superi-or: las lecciones derivadas de la experiencia(BANCO MUNDIAL, 1994), no qual é apre-sentado um conjunto de estratégias para a refor-mulação da educação superior na América Lati-na, Ásia e Caribe. Em todas essas estratégias, aeducação superior a distância aparece como ele-mento central das políticas do Banco para as re-giões anteriormente citadas.

A diversificação das instituições de ensino su-perior constitui-se em uma estratégia central des-sa política, sob o pressuposto de que o desenvol-vimento de universidades públicas, privadas e deinstituições não-universitárias, incluindo os cur-sos de curta duração, atenderia, de forma maiseficiente, às demandas do mundo do capital. Aoferta desses cursos está relacionada ao perfil dosalunos. Tais cursos são direcionados para os tra-balhadores e filhos dos trabalhadores da periferiado capitalismo. Assim, “[...] as instituições não-universitárias ajudam a satisfazer a demanda porensino pós-secundário dos grupos minoritários edos estudantes economicamente em desvanta-gem.” (BANCO MUNDIAL, 1994, p. 35, tradu-ção nossa). No mesmo sentido, a educação a dis-

Educação: prioridade nacional?

A educação a distânciaestá sendo apresentada

pelos organismos internacionais como umadas principais estratégiasde “inclusão social” dos

segmentos mais pauperizados da

população na educaçãosuperior.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 83

tância também é identificada como uma eficienteestratégia de diversificação das instituições de en-sino superior, garantindo o acesso de segmentospopulacionais mais pobres, pois “[...] a educação adistância pode ser eficaz para aumentar, a um cus-to moderado, o acesso dos grupos desfavorecidos,que, geralmente, estão deficientemente represen-tados entre os estudantes universitários.” (BAN-CO MUNDIAL, 1994, p. 36, tradução nossa).

A diversificação das fontes de financiamentodas universidades públicas apresenta-se comouma segunda importante estratégia. Para tanto, oBanco Mundial defende a necessidade de cobran-ça de matrículas e mensalidades para os estudan-tes; o corte de verbas públicas para as atividades“não-relacionadas com a educação” (alojamentoestudantil, segurança e alimentação); a utilizaçãode verbas privadas advindas de doações de em-presas e das associações dos ex-alunos; a vendade cursos de curta duração, consultorias e pes-quisas por meio de convênios firmados entre asuniversidades e as empresas – convênios estesmediados pelas fundações de direito privado,consideradas estruturas administrativamentemais flexíveis para captar verbas privadas e públi-cas com vistas ao financiamento de atividades deensino, pesquisa e extensão, bem como de cursosa distância, desenvolvidos nas universidades pú-blicas. Os alunos que não conseguirem financiarseus estudos participarão de programas de assis-tência estudantil, executados por intermédio doempréstimo financeiro, de bolsas de trabalho nainstituição de ensino superior (públicas e priva-das) e da realização dos cursos em instituiçõesprivadas, as quais receberão isenção fiscal e in-centivos financeiros para admitir o acesso des-ses alunos.

Esse debate foi ampliado com a realização daConferência Mundial sobre a Educação Superior,organizada pela Unesco, em outubro de 1998. Aconferência mobilizou representantes de váriospaíses e utilizou documentos elaborados nas con-ferências regionais realizadas, ao longo da segundametade da década de 1990, em Havana (novembrode 1996), Dacar (abril de 1997), Tóquio (julho de1997), Palermo (setembro de 1997) e Beirute

(março de 1998). Os documentos que orientaramos debates na conferência mundial estavam estru-turados basicamente nos seguintes eixos temáticos:(a) adequação da educação superior à “globaliza-ção da economia”; (b) criação de uma cultura da“autonomia universitária com responsabilidadesocial”, fazendo com que as instituições de ensinosuperior (IES) concebam a gestão administrativacomo o uso eficiente da verba pública e da verbaprivada adquirida por meio das parcerias; (c) esta-belecimento de parcerias das IES com o setor pri-vado, para que esse setor garanta a pertinência daformação profissional sob a marca da empregabili-dade e do empreendedorismo; (d) diversificaçãotanto das IES quanto das fontes de financiamentoda educação superior; (e) revisão curricular paraflexibilização da formação profissional, por inter-médio de módulos e formações mais curtas eprofissionalizantes; (f) estímulo à transferência detecnologia e uso das TICs por meio da educação adistância, estimulando a criação de universidadesabertas/virtuais (ORGANIZAÇÃO DAS NA-ÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, ACIÊNCIA E A CULTURA, 1998).

Dois textos que subsidiaram a conferência sãoemblemáticos na análise do uso das TICs, reduzi-do, para a periferia do capitalismo, à educação adistância: Do tradicional ao virtual: as novas tec-nologias da informação (OILO, 1999) e Apren-dizagem aberta e a distância: perspectivas e consi-derações sobre políticas educacionais (ORGA-NIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AEDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA,1999). Ambos defendem a utilização das TICs paraos “países do Sul”, por meio da educação a distân-cia e do estímulo à criação de universidades virtu-ais. O primeiro texto faz referência à noção de “in-dustrialização do ensino”, nos marcos da interna-cionalização da educação, identificando a educaçãoa distância como uma promissora “indústria glo-bal”. Indicando a política da Unesco para educaçãoa distância, o segundo documento apresenta a no-ção de “cooperação” como articulação de ações,por intermédio de parcerias entre governos, setorprivado e organizações internacionais como asagências da ONU e o Banco Mundial que deverão

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE84 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

[...] encorajar modalidades de ensinomenos caras (carreiras menos longas, mais

objetivas, que recorram parcialmente a

responsáveis por cursos profissionais remu-

nerados por hora...), ensino a distância,obter apoio do mundo industrial e eco-nômico, oferecer parceria com o mundodo trabalho [...] criar, onde for possível,associação de ex-alunos que assumam, detodo coração, a manutenção, direta eindireta, da instituição que os formou, aexemplo do que existe em alguns países.(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A

CIÊNCIA E A CULTURA, 1999, p. 168-

169, grifo nosso).

Nesse mesmo documento, a Unesco afirmaque

[...] atualmente a aprendizagem aberta e a

distância constitui um dos campos da edu-

cação e treinamento que mais rapidamente

está crescendo no mundo todo. Assim, é

concebida em países em desenvolvimento

como instrumento importante para alcan-

çar jovens e adultos cujas necessidades de

aprendizagem, por razões financeiras, geo-

gráficas ou outras, não foram satisfatoria-

mente atendidas pelo sistema de educação e

de treinamento convencionais. (ORGANI-

ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA

A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CUL-

TURA, 1999, p. 675).

A educação a distância é, portanto, direciona-da para os segmentos mais pauperizados da po-pulação e pressupõe a diversificação das fontesde financiamento da educação superior, colocan-do no centro dessa política a diluição das fron-teiras entre público e privado. Tais diretrizes se-rão retomadas um ano depois da realização daConferência Mundial sobre a Educação Superiororganizada pela Unesco, quando o Banco Mun-dial (1999) lançou o Documento estratégico doBanco Mundial: a educação na América Latina eCaribe, contendo suas avaliações quanto às re-

formas educacionais na região durante a décadade 1990 e as diretrizes a serem executadas a par-tir do século seguinte. Também nesse documen-to, as TICs aparecem reduzidas à educação a dis-tância. Sendo produzidas nos países centrais, res-ta aos países periféricos comprá-las e adaptá-las.Destarte, para se ter acesso às TICs, deve-se rea-lizar parcerias com os setores privados, comoreafirma o documento:

[...] o Banco Mundial prestará assistência

aos países para criar uma variedade mais

ampla de instituições de educação superior

e de sistemas de instrução (incluindo os

provedores de educação privada e à distân-

cia) com o fim de oferecer maiores oportu-

nidades educacionais ao crescente número

de egressos da escola secundária, especial-

mente os setores mais pobres. (BANCO

MUNDIAL, 1999, p. 105).

As políticas de educação superior a distânciaganharam novos contornos ao final dos anos1990, com os debates realizados entre os paíseseuropeus, especialmente com o processo instau-rado em 1998, quando os ministros da Educaçãode Alemanha, Itália, França e Reino Unido assi-naram em Paris a Declaração da Sorbonne paracriação do Espaço Europeu do Ensino Superior.Essa proposta foi retomada em junho de 1999,quando 29 ministros da Educação desse conti-nente elaboraram a Declaração de Bolonha(PORTUGAL, 2001), cujo objetivo central erauniformizar o sistema de ensino superior, visan-do à empregabilidade, por meio das seguintes es-tratégias: adoção de sistema de graus comparávele facilmente inteligível; adoção de um sistema ba-seado essencialmente em dois ciclos, pré e pós-graduado; promoção da mobilidade de estudan-tes, docentes e pesquisadores e garantia de umadimensão européia ao ensino superior.

Educação a distância no início do novo século:bases para comercialização dos serviços educacionais

Outro marco fundamental do processo de re-

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 85

formulação da educação superiorocorreu em junho de 2003, em Paris,onde foi realizada a Segunda Reu-nião dos Parceiros da Educação Su-perior (Paris + 5), organizada pelaUnesco e com o objetivo de avaliaros encaminhamentos derivados dadeclaração final da ConferênciaMundial sobre a Educação Superior(1998). Essas avaliações foram dis-ponibilizadas nos Anais da 2ª Reu-nião dos Parceiros da Educação Su-perior (1998-2003). No relatório, aUnesco recupera o quadro conceitu-al e as linhas de ação da Declaraçãode 1998 (acesso e diversificação dasinstituições de ensino superior; vín-culos da formação profissional com o mercadode trabalho; diversificação das fontes de financia-mento da educação superior e cooperação inter-nacional concebida como transferência de tecno-logia dos países centrais para os países periféri-cos) e avalia os resultados da implantação de seusindicativos para a política de educação superior.

O debate realizado em 2003 sobre o uso dasTICs reforça a lógica do documento de 1998 queo considerava restrito à educação a distância, es-pecialmente para os países periféricos. A utiliza-ção da educação a distância como estratégia deampliação do acesso à educação superior estátambém referenciada na necessidade de diversifi-cação das fontes de financiamento da educaçãosuperior: o compartilhamento dos custos da for-mação com os estudantes e seus familiares; a ven-da de serviços educacionais e pesquisas e a reser-va de vagas gratuitas nas universidades públicaspara os melhores alunos, com a cobrança demensalidades para os demais. Nesse quadro, a in-ternacionalização da educação foi concebida co-mo expansão dos “mercados educacionais” e re-moção de todas as barreiras ao comércio de ser-viços, viabilizando a exportação de programas deeducação superior a distância dos países centraispara a periferia; o fornecimento de consultorias ea formação de parcerias para financiamento depesquisas, criando a “educação transnacional”.

(ORGANIZAÇÃO DAS NA-ÇÕES UNIDAS PARA A EDU-CAÇÃO, A CIÊNCIA E A CUL-TURA, 2003).

A mesma lógica de reformulaçãoda educação superior estava presen-te nos documentos elaborados peloInstituto Internacional de EducaçãoSuperior na América Latina e Cari-be (Iesalc). Criado a partir da 29ªConferência da Unesco, para subs-tituir o Centro Regional para Amé-rica Latina e Caribe (Cresalc), seuobjetivo seria promover a coopera-ção entre os Estados dessa regiãopara o desenvolvimento da educa-ção superior. O Iesalc elaborou, em

2003, um importante documento em parceriacom a Oficina Regional da Unesco para Comu-nicação e Informação na América Latina e Ca-ribe (Orcilac), contendo as análises desenvolvi-das pela Cátedra Unesco de Educação a Distân-cia (Cued): A educação superior virtual na Amé-rica Latina e Caribe. Com o documento, visava-se apresentar um panorama da utilização dasTICs na educação superior na região, incluindo oque no documento é identificado como educaçãoa distância não-virtual (livros, videocassetes, tele-visão etc.) até a educação via internet. No docu-mento, reaparecem dois elementos centrais dodebate sobre a reformulação da educação supe-rior: a constituição de uma “educação industrial”operada pelas “megauniversidades globais” e atransnacionalização da educação, que está sendodefinida no âmbito da Organização Mundial doComércio (INSTITUTO INTERNACIONALDE EDUCAÇÃO SUPERIOR NA AMÉRICALATINA E CARIBE, 2003).

Expansão e democratização do acesso à educa-ção superior via utilização das TICs são sinôni-mos de diversificação das instituições e das fon-tes de financiamento da educação superior nessequadro marcado pelo crescente processo de mer-cantilização da educação, sob a direção da OMC,cujo aprofundamento seria visível no início do no-vo século. Nos marcos da atuação da OMC, a edu-

Educação: prioridade nacional?

A utilização daeducação a distânciacomo estratégia de

ampliação do acessoà educação superior

está tambémreferenciada nanecessidade de

diversificação dasfontes de

financiamento daeducação superior.

862- DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

cação está inserida no setor de ser-viços e adquire essa feição, mais espe-cificamente no Acordo Geral sobre oComércio de Serviços (AGCS), queentrou em vigor em janeiro de 1995.Considerando que a existência de ins-tituições privadas de ensino superior,por si só, já caracteriza a oferta dos“serviços educacionais”, em bases co-merciais, a OMC advoga a exigênciade tratamento igualitário para todosos fornecedores internacionais desses“serviços”. No mesmo sentido políti-co, se um país liberar a ação de umauniversidade européia ou estaduni-dense em seu território, deve estendera essa instituição o mesmo tratamentoque oferece às suas universidades: subsídiosfinanceiros, isenções fiscais, entre outros. Para aOMC, esse comércio de serviços educacionais estáagrupado em quatro modos de oferta:

Modo 1 – oferta transfronteiriça: a oferta de

serviços por fornecedores com sede em um

país, para um outro país-membro (educa-

ção à distância, teses etc.); Modo 2 – con-

sumo no exterior: o consumo de serviços

por indivíduos de um país em outros paí-

ses-membros (por exemplo, cursos de lín-

guas no exterior, pós-graduação, treina-

mentos etc.); Modo 3 – presença comercial:

a presença comercial de grupos em um país,

via instalação de campi, franchises no país

de realização do serviço; Modo 4 – presença

de pessoas naturais: a presença de pessoas

físicas de um país executando serviços em

outros países (consultores, professores,

administradores, pessoal para aplicação de

testes etc.). (SIQUEIRA, 2004, p. 150-151).

O documento Servicios de enseñanza (OR-GANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉR-CIO, 1998b) apresenta claramente a concepçãoda OMC sobre a educação como um importantecampo de investimentos privados. O documentoestá estruturado em quatro partes: a primeira

apresenta a definição, a importânciae a estrutura do mercado de servi-ços educacionais. A segunda defineas características do comércio inter-nacional desses serviços. As duasúltimas partes tratam dos compro-missos apresentados pelo AGCS eas perspectivas de comercializaçãoda educação, nas quais “[...] os ser-viços educacionais são definidos ha-bitualmente com referência a qua-tro categorias: serviços de educaçãoprimária; serviços de educação se-cundária; serviços de educação su-perior (terciária); e serviços de edu-cação para adultos.” (ORGANI-ZAÇÃO MUNDIAL DO CO-

MÉRCIO, 1998b, p. 1, tradução nossa).A ação das empresas e universidades estaduni-

denses e européias em outros países é destacadapela OMC como uma importante referência à in-ternacionalização da educação, por meio da cria-ção de “sucursais universitárias”. O maior obstá-culo identificado para a internacionalização/co-mercialização desses “serviços educacionais”, es-pecialmente de nível superior, é a necessidade devalidação dos diplomas e certificados, daí a pro-posta de uma certificação internacional, isto é,que padronize os currículos, diplomas e certifica-dos, tal como proposto pela Declaração de Bolo-nha. Outro obstáculo refere-se à possibilidade deatuação dos provedores estrangeiros em algunspaíses:

Em relação ao estabelecimento de prove-

dores comerciais, é importante mencionar,

entre os possíveis obstáculos, a impossibi-

lidade de obter licenças nacionais (quer di-

zer, de serem reconhecidos como centros de

ensino capacitados para outorgar títulos/-

certificados), as medidas para limitar os in-

vestimentos por parte dos provedores es-

trangeiros de serviços educacionais (por

exemplo, limites máximos de participação

no capital social), as prescrições em matéria

de nacionalidade, as provas de necessidades

Educação: prioridade nacional?

A ação das empresase universidades

estadunidenses eeuropéias em outrospaíses é destacada

pela OMC como umaimportante referênciaà internacionalização

da educação, pormeio da criação

de “sucursaisuniversitárias”.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 87

econômicas, as restrições impostas à con-

tratação de professores estrangeiros e a

existência de monopólios estatais, somada

às subvenções para as instituições locais.

Por exemplo, é importante que cada gover-

no autorize em seu mercado a presença de

provedores estrangeiros de serviços educa-

cionais; alguns países não os reconhecem

legalmente como universidades, circunscre-

vendo a concessão de títulos universitários

às instituições nacionais. (ORGANIZA-

ÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO,

1998b, p. 10, tradução nossa).

A importância da ação destes empresários euniversidades levou o governo estadunidense àelaboração do documento Comunicación de losEstados Unidos: servicios de enseñanza (ORGA-NIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO,1998a). Nele, são apresentados dois eixos bási-cos: a defesa das vantagens da liberalização docomércio de serviços educacionais e os indicati-vos para a superação das restrições a essa libera-lização. Em relação às vantagens do comércioeducacional, no documento estadunidense, con-sidera-se imprescindível o aumento da variedadee da quantidade desses serviços, destacando o es-tímulo para a transferência contínua de tecnolo-gias para a execução de cursos a distância e a pro-dução e venda de material didáticopara os países periféricos. O interes-se estadunidense na internacionaliza-ção/comercialização dos serviçoseducacionais fica evidente quandosão apresentados os valores oficiaiscom a venda de tais serviços:

Segundo dados oficiais dos

Estados Unidos, as vendas

transfronteiriças de serviços

educacionais por empresas

estadunidenses para compra-

dores estrangeiros totaliza-

ram US$ 8.300 em 1997, o úl-

timo ano de que dispõem de

informações. Essas exporta-

ções representam os gastos em ensino e

manutenção de residentes estrangeiros ma-

triculados em universidades e institutos de

ensino superior dos Estados Unidos. Em

1996 (ainda não estão disponíveis as cifras

relativas a 1997), as importações de serviços

educacionais realizadas pelos Estados Uni-

dos totalizaram US$ 1 milhão, cifra que re-

presenta os gastos em ensino e manutenção

de estudantes estadunidenses que realizam

seus cursos no exterior. (ORGANIZA-

ÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO,

1998a, p. 1-2, tradução nossa).

Para ampliar a comercialização dos serviços edu-cacionais, o documento indica a importância dasseguintes ações imediatas para os países-membrosda OMC, no sentido de garantir a superação dasrestrições a sua liberalização: a abertura para mo-vimentação comercial dos provedores internacio-nais de serviços; a garantia da não-aplicação de res-trições ao consumo de serviços estrangeiros, prin-cipalmente no que se refere às limitações legais paraa participação de capital estrangeiro; e a reversão doatual quadro de regulamentação excessiva em re-lação à emissão de diplomas e certificados.

Educação a distância ou à distância da educação? Considerações para o debate

A análise dos principais docu-mentos e ações de utilização dasTICs na educação superior a distân-cia, elaborados pelos organismos in-ternacionais do capital indica que aeducação a distância é apresentadacomo 1) passaporte da educação pa-ra a “globalização econômica” e a“sociedade da informação”; 2) estra-tégia de ampliação do acesso à edu-cação, a partir da articulação dos con-ceitos de espaço, técnica e tempo; 3)uma política de “inclusão social” dossetores mais empobrecidos da socie-dade; 4) uma via de internacionaliza-ção da educação superior, concebidacomo comercialização e transferência

Educação: prioridade nacional?

Um dos principaiseixos de

fundamentação dodiscurso destes

organismos sobre ouso das TICs, em

educação a distância,está associado à sua

promessa integradorada educação na “sociedade dainformação”.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE88 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

de tecnologia produzida nos países centrais; 5) cer-tificação em larga escala, especialmente para a for-mação e treinamento de professores em serviço; 6)um eixo determinante da reconfiguração do tra-balho docente, indicando, inclusive, uma nova de-signação para o professor, que passa a ser um “fa-cilitador”, “animador”, “tutor” ou “monitor”.

Um dos principais eixos de fundamentação dodiscurso destes organismos sobre o uso dasTICs, em educação a distância, está associado àsua promessa integradora da educação na “socie-dade da informação”. O desempregoem escala crescente é justificado,nesse projeto hegemônico, pela in-capacidade individualizada do tra-balhador desqualificado – o “analfa-beto tecnológico” – de se adaptar àsexigências do “mercado de trabalhoinformatizado”, omitindo que nãosão as novas tecnologias as causado-ras do desemprego (um suposto “de-semprego tecnológico”), mas a lógi-ca de acumulação do capital, que ex-pulsa o trabalho vivo. Cabe destacar,inclusive, que o quadro mundial deaprofundamento das desigualdades eda estagnação econômica, caracterís-tica da mundialização financeira,apresenta a possibilidade de uma ex-clusão estrutural de grandes contingentes de tra-balhadores. Esses trabalhadores “não-qualifica-dos” não estarão sequer no exército de reserva,mas serão completamente excluídos do acesso aomercado formal de trabalho. Daí a importânciade o projeto hegemônico reivindicar as reformaseducacionais: podem existir as condições obje-tivas para a construção de lutas coletivas com vis-tas a uma revolução contra a ordem burguesa;não obstante, a burguesia não pode permitir aexistência de condições subjetivas que favoreçamessa construção. As reformas educacionais emcurso expressam exatamente a tentativa da bur-guesia de captar a subjetividade das classes tra-balhadoras sob a aparência de uma “política in-clusiva” desses trabalhadores.

Essas noções cruciais da ideologia burguesa –

“globalização econômica” e “sociedade da infor-mação” – realizam um processo de ideologizaçãomaciça, marcado pela perda da centralidade dotrabalho, substituído pelo conhecimento/infor-mação. O aumento da influência da informaçãona economia, entretanto, não significa a conver-são do capitalismo em uma “sociedade da infor-mação”, pois esse aumento não altera a naturezada reprodução do capital. A “sociedade da infor-mação” é uma sociedade de classes, economica-mente regulada pela lei do valor e socialmente as-

sentada na extração da mais-valia. Aaparência construída sobre a “socie-dade da informação” constitui-seem uma estratégia política e econô-mica fundamental, no sentido degarantir a produção das novas tec-nologias nos países centrais e acompra e adaptação de tecnologiapelos países periféricos. A utiliza-ção das inovações tecnológicas naindústria, no sistema financeiro e nainformatização da educação garantea constituição de variados camposde exploração lucrativa para o capi-tal em crise, em constante busca pornovos mercados consumidores. Umprocesso acirrado, inclusive, pelacompetição – e simultaneamente pe-

las fusões – entre empresas e pelo confronto-competição entre os países imperialistas (KATZ,1996). Não é por acaso que a questão das paten-tes e da propriedade intelectual tem-se constituí-do em objeto de disputa nos acordos de livre-co-mércio, seja em âmbito regional ou internacional.No mesmo sentido, as políticas de desregulamen-tação e privatização dos setores estratégicos dospaíses periféricos (eletricidade, telecomunicações,ciência e tecnologia, educação), implementadas apartir da década de 1970, constituem importantesestratégias para ampliação dos campos de explo-ração do capital (LIMA, 2005).

Um segundo importante eixo de fundamen-tação teórica da política de educação superior adistância está articulado aos conceitos de espaço,técnica e tempo. Esse projeto hegemônico advo-

Educação: prioridade nacional?

As reformaseducacionais emcurso expressam

exatamente atentativa da

burguesia de captar asubjetividade das

classes trabalhadorassob a aparência de

uma “políticainclusiva” dessestrabalhadores.

ga que a “globalização econômica” e a “socieda-de da informação” eliminam as fronteiras, fa-zendo com que todos tenham acesso às tecnolo-gias e informações em tempo real. Entretanto,não pode haver homogeneização do espaço, por-que a acumulação do capital ocorre em ritmosdesiguais de tempo e realiza-se por intermédiodas profundas desigualdades de concentração daprodução e do consumo da estrutura técnico-produtiva, em determinadas regiões e países, emdetrimento de outras áreas do espaço mundial.Ou seja, no espaço convivem tempos desiguais eestruturas técnicas diferenciadas. As inovaçõestecnológicas não alcançam todos ospaíses e regiões, apenas aqueles deinteresse do capital. E, quando al-cançam, duas questões devem serapresentadas: que tipo de acesso e aque tipo de tecnologia? A partir des-se atual sistema técnico – hegemoni-zado pela técnica informacional – éque são estabelecidas as condições domovimento do capital financeiro in-ternacional (SANTOS, 2000). É,portanto, a crise estrutural do capitale a concorrência intercapitalista quedeterminam o desenvolvimento desse sistema téc-nico-informacional, cuja difusão vem sendo reali-zada, durante os anos de contra-revolução neoli-beral, pelos organismos internacionais do capital,especialmente Banco Mundial, Unesco e OMC.

Este é o terceiro eixo norteador da política in-dicada pelos organismos internacionais: a educa-ção superior a distância se inscreverá nos marcosda diversificação das IES e dos cursos, estará as-sociada à diversificação das fontes de financia-mento da educação superior e, especialmente, di-recionada para os segmentos populacionais maisempobrecidos. Diante de tal quadro, o mais ade-quado é que ela se realize de forma associada aoscursos de curta duração e, principalmente, às li-cenciaturas.

A educação superior a distância é apresentadacomo estratégia fundamental para a internacio-nalização/comercialização da educação superior(quarto eixo norteador), concebida por intermé-

dio de três ações básicas: 1) flexibilização e pa-dronização dos currículos; 2) implantação de umsistema de avaliação que estimule a adequação daformação profissional às demandas do mercadode trabalho; 3) realização de uma gestão empre-sarial que viabilize as parcerias entre setor pú-blico e setor privado, pois “[...] a participação dosetor privado, que freqüentemente lidera a de-manda e o uso competente de tecnologia, se tor-nará cada vez mais importante como um meio decolaborar com o setor público para introduzir atecnologia nas escolas e universidades.” (BAN-CO MUNDIAL, 1999, p. 87 tradução nossa).

Com essa fundamentação teórica,o projeto hegemônico considera aimportância da diluição das frontei-ras entre público e privado e natura-liza a alocação de verbas públicas pa-ra instituições privadas e o financia-mento privado de instituições públi-cas que oferecem cursos a distância(LIMA, 2004). O que está em pautaé a expansão comercial da educaçãoa distância, por intermédio de seurápido crescimento, baseado emsoftwares proprietários, desprivile-

giando a utilização de novas tecnologias edu-cacionais de código aberto. A internacionaliza-ção/comercialização será concebida como expan-são dos “mercados educacionais” e remoção detodas as barreiras ao comércio de serviços, via-bilizando a exportação de programas de educa-ção superior dos países centrais para a periferia; ofornecimento de consultorias e a formação deparcerias para financiamento de pesquisas, crian-do a “educação transnacional”, base de sustenta-ção das propostas da OMC: a educação comoserviço.

O quinto eixo a ser destacado relaciona-secom o processo de certificação em larga escala emcurso. A ultrapassagem dos limites postos pelas“velhas tecnologias” representadas, principal-mente, por quadro-negro e materiais impressos,somada às simplificações e deslocamentos quetêm caracterizado as propostas oficiais de educa-ção a distância, expressam o esvaziamento da for-

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 89

A educação superiora distância é

apresentada comoestratégia

fundamental para a internacionalizaçãoe a comercialização

da educação superior.

Educação: prioridade nacional?

90 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

mação de professores, progressi-vamente deslocada para treinamen-to em serviço ou até mesmo “reci-clagem”, visto que a formação ini-cial “presencial” não conta com ofinanciamento internacional con-centrado nas TICs, para a educaçãoa distância, não garantindo, sequer,o direito de acesso às tecnologias no“ensino presencial”. A reconfigura-ção do trabalho docente, por meiode sua precarização, constitui o sex-to aspecto central dessa política. Aperda da centralidade da categoria‘trabalho’ será expressa pela substi-tuição do trabalho docente por prática docente,materialização discursiva do esvaziamento dessetrabalho. A própria designação “professor” temcedido espaço a “facilitador”, “animador”, “tu-tor” ou “monitor” (BARRETO, 2001). Esse pa-radigma é constituído pela substituição tecnoló-gica e pela racionalidade instrumental, está ins-crito na “flexibilização”, sendo coerente com alógica do mercado: quanto maior a presença datecnologia, menor a necessidade do trabalhohumano.

Essas análises permitem-nos afirmar que aeducação superior a distância, ainda que sob aaparência de modernização, inclusão social dossegmentos mais pauperizados da população eadequação do nosso país à “globalização econô-mica” e à “sociedade da informação”, omite umaimportante estratégia de aligeiramento da forma-ção profissional e configuração de um importan-te campo de exploração lucrativa para os empre-sários brasileiros e internacionais, sob a condu-ção dos organismos internacionais do capital.

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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARAA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA.

A perda da centralidade da

categoria ‘trabalho’será expressa pela

substituição dotrabalho docente porprática docente, ma-terialização discursiva

do esvaziamentodesse trabalho.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 91

Aprendizagem aberta e a distância: perspectivas econsiderações sobre políticas educacionais. In:ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA AEDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA;CONSELHO DE REITORES DASUNIVERSIDADES BRASILEIRAS; MINISTÉRIODA EDUCAÇÃO; FUNDAÇÃO COORDENAÇÃODE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DENÍVEL SUPERIOR. Tendências da Educação Superiorpara o Século XXI: Conferência Mundial do EnsinoSuperior, 5-9 out. 1998, Paris. Anais 2. ed. Brasília:FUNDAÇÃO COORDENAÇÃO DEAPERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVELSUPERIOR, 1999. p. 663-726.

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Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 93

Ensino a distância: equívocos, legislaçãoe defesa da formação presencial1

Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon* César Augusto Minto**

* Professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)** Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)

Desfazendo equívocos

Adiscussão sobre o tema “Educação a Distân-cia” (Ed.aD)2 tem se constituído numa searabastante confusa, sobretudo devido à polari-

zação entre duas visões opostas e igualmente ideo-lógicas e apaixonadas: uma, que defende a adoçãoda Ed.aD como forma democrática, moderna eoportuna de levar o conhecimento a todos, em to-dos os rincões deste país continental, induzindo àidéia de que, assim sendo, grande parte dos nossosproblemas educacionais estariam resolvidos, co-mo se fora uma panacéia educacional;3 outra, queadvoga a adoção da Ed.aD apenas e tão somentecomo forma alternativa, portanto complementar,de auxiliar no ensino presencial, enquanto partedos requisitos para a consecução do objetivomaior de garantir a educação, direito de todos edever do poder público. Por óbvio, não desconhe-cemos a existência de inúmeras possibilidades nointerstício dessa polarização, aqui mencionadacom o intuito de mostrar, de forma talvez mais di-dática, sua inadequação.

Tal polarização tem contribuído mais paraobscurecer do que para clarear o debate, que de-ve ser travado de maneira adequada, sob pena decontemplar, de forma apressada e equivocada,qualquer uma das visões citadas, sem que a socie-dade – a maior interessada – tenha condições decompreender e opinar se é ou não lícita a adoçãoindiscriminada da Ed.aD, no país, pois, suposta-mente, é à sociedade que tal adoção beneficiaria.

Isso posto, logo de início, duas questões preci-sam ser elucidadas: 1) desfazer a contumaz indis-tinção entre educação e ensino; e 2) desconstruira confusão, também corriqueira, entre o ensino adistância e a mera utilização de técnicas de infor-mação e comunicação nas atividades didáticas.Assim procedendo, esperamos contribuir paraque as políticas públicas relativas a esse impor-tante tema sejam adotadas somente com vistas aatender às reais necessidades da maioria da popu-lação brasileira.

É bom lembrar que, no dia-a-dia, tem sido co-mum as pessoas usarem as palavras educação e

As respostas à questão O que é? variam sempre segundoa perspectiva a partir da qual a apreciamos. Assim, as respostas

às nossas perguntas podem sempre diferir umas das outras, emboradiversas delas (ou todas) possam ser, eventualmente, válidas.

94 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Educação: prioridade nacional?

ensino como sinônimas, sem que isto cause maio-res problemas; e é até compreensível tal ocorrên-cia, pois, intuitivamente, espera-se que ambasguardem relações estreitas e diretas de reciproci-dade, tanto que é trivial as pessoas pensarem que“a todo ensino corresponde uma aprendizagem”,o que, em tese, contribuiria para a formação edu-cacional, contudo isto nem sempre corresponde àrealidade.4 Mas o ponto crucial, aqui, é que, em setratando de textos oficiais, de dispositivos legaise da adoção de políticas públicas, constitui-se nu-ma impropriedade a confusão entre educação eensino, devendo ser evitada a todo custo.

Há uma diferença clara entre educação e ensino.O conceito de educação é mais abrangente do queo de ensino: a educação é um processo social que,do ponto de vista mais amplo, representa o instru-mental de que o grupo humano dispõe para pro-mover a autoconstrução da humanidade de seusmembros; e, do ponto de vista individual, a possi-bilidade de desenvolver atributos que permitam aoindivíduo construir-se humano (ou construir suaprópria humanidade), a partir de seu equipamentopessoal e da ação do grupo. Ora, tais construções –individual e coletiva – exigem a adoção de políticaspúblicas adequadas, que, por sua vez, implicam anecessidade de articular as várias áreas queconstituem os direitos sociais (Cf. Ar-tigo 6º, da Constituição Federal de1988), cujo atendimento cabe ao po-der público e tem a ver com o grau dehumanidade e de cidadania que se de-seja garantir a toda a sociedade.5

Igualmente importante, mas mui-to menos abrangente do que o con-ceito de educação, o conceito de en-sino diz respeito à forma sistemati-zada – que se constitui num conjun-to organizado, envolvendo a seleçãode conteúdos e métodos – de traba-lho pedagógico, que é adotada com oobjetivo de disponibilizar, a todos osmembros da sociedade, as informa-ções, os conhecimentos e as teoriasque já compõem um acervo de sabe-res que, por sua vez, é patrimônio da

humanidade. Ou seja, quando se fala de ensino,trata-se do meio pelo qual se busca garantir àspessoas, via escolarização formal numa institui-ção específica – a escola, aquilo que lhes é essen-cial para construir suas próprias visões de mundoe poder agir de forma consciente, influindo nahistória e na cultura da sociedade em que vivem.

E nunca é demais lembrar que o ensino impli-ca a necessidade de considerar duas de suas di-mensões indissociáveis, ambas igualmente im-portantes, aqui só dissociadas para mostrar a ina-dequação de tratá-las separadamente: a transmis-são e a construção de saberes. A transmissão dizrespeito, em especial, ao fato de o objeto do en-sino ser o conhecimento já consagrado, cuja vi-gência ainda cumpre um papel significativo, nãoprevalecendo dúvidas essenciais que justifiquemabandoná-lo; a construção, por sua vez, refere-seà possibilidade de elaboração de novos conheci-mentos com base no questionamento daquiloque já se considera obsoleto ou inadequado, poralguma razão fundamentada, bem como numasérie de outras circunstâncias ou ocorrências.6 Aconjunção dessas duas dimensões do ensino am-plia a chance de se obter a consecução de objeti-vos educacionais, mas, ainda assim, ensino não seconfunde com educação, pois o primeiro é ape-

nas um dos meios essenciais para sechegar à segunda.

Isso posto, cabe questionar, in-clusive, a conveniência do uso daexpressão Educação a Distância, da-da a perspectiva conceitual abran-gente que ela, eventualmente, podeevocar (e não corresponder à reali-dade), sendo lícito, até por prudên-cia, adotar simplesmente a expres-são Ensino a Distância (EaD).

A outra questão a ser elucidada,de antemão, refere-se à necessidadede desconstruir a imisção freqüenteentre o ensino a distância (EaD) e amera utilização de técnicas de infor-mação e comunicação, nas atividadesdidáticas. Pouco se sabe sobre a au-toria dessa confusão e sobre os mo-

A conjunção dessasduas dimensões do

ensino amplia achance de se obter a

consecução deobjetivos

educacionais, mas,ainda assim, ensino

não se confunde comeducação, pois o

primeiro é apenasum dos meios

essenciais para sechegar à segunda.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 95

tivos que levaram a propagar, dentre outras, aidéia limítrofe e reducionista de que existe umarelação intrínseca e biunívoca entre EaD e uso detécnicas de informação e comunicação, o que seconstitui numa impropriedade, pelo simples fatode que tais técnicas, às quais não raro se buscaagregar o adjetivo “modernas”, podem ser lite-ralmente utilizadas em todas as situações de en-sino, sejam estas presenciais ou a distância. Isto jáé suficiente para mostrar o equívoco que podedecorrer dessa confusão conceitual.

Outras questões também precisam ser escla-recidas. A primeira delas refere-se ao fato de que,apesar de ser menos abrangente do que a educa-ção, como dissemos anteriormente, o ensino éuma atividade muito mais complexa do que amera difusão de informações, por qualquer meio,moderno ou não; além disso, “[...] as informaçõesnão são, necessariamente, úteis por si, mas sim namedida em que as pessoas e a sociedade possamutilizá-las em benefício de si próprias e do cole-tivo.” (ADUSP, 2005). E cabe lembrar que

Hoje, informações estão disponíveis em

qualquer microcomputador ligado à rede

mundial. O diferencial que caracteriza a

apropriação efetiva do conhecimento é a ca-

pacidade de selecionar criteriosamente as

informações que são relevantes para cada

situação a enfrentar e, especialmente, a ca-

pacidade de correlacionar informações dis-

persas, tanto entre si, quanto com vivências

pessoais e sociais anteriores, julgando sua

validade para o enfrentamento de situações

distintas. (ADUSP, 2005).

Relacionada com a anterior, a segunda questãodiz respeito ao fato de que o conhecimento nãopode ser confundido com acúmulo de informa-ções. Um dos principais meios para a promoçãode acesso ao conhecimento significativo, do pon-to de vista social, é a educação escolar. Sistemáti-ca e formal, ela cumpre a função de ampliar aschances de o educando poder orientar-se, nomeio natural e social em que vive, por meio docotejo de conhecimentos já subsumidos, dos sa-

beres acumulados por gerações anteriores “[...] etambém da descoberta de potencialidades aindanão dadas, cuja consistência é julgada pelo educan-do, pelos seus parceiros de classe e pelo docente queos acompanha, que necessariamente precisa ser bemformado.” Assim, durante séculos, os avanços cul-turais e científicos foram favorecidos, em especial,pela interação dialógica dos estudantes com cole-gas e professores, num ambiente de efervescênciacultural. (ADUSP, 2005, grifos do autor).

Apresentamos, até aqui, alguns argumentos –que consideramos pertinentes – sobre a não con-veniência dos rumos tomados pelo debate sobreo Ensino a Distância (EaD), no país, incluindo apolarização entre defensores incondicionais des-sa alternativa “democratizante” e questionadoresferrenhos de sua utilização indiscriminada, oque, por si só, já cria um clima complexo, quetende a dificultar ou mesmo impedir uma discus-são mais adequada; clima esse agravado por algu-mas questões que apimentam ainda mais o deba-te: a indistinção entre educação e ensino, a imis-ção entre o ensino a distância e a mera utilizaçãode técnicas de informação e comunicação, e a con-fusão entre conhecimento e acúmulo de informa-ções. Vejamos, a seguir, o que prevê a legislaçãosobre EaD, no Brasil.

O que diz a legislação sobre EaDVerificamos, em especial, a parte relativa à

educação, na Constituição da República Federa-tiva do Brasil, de 1988 (CF/1988); a Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional, de 1996(LDB/1996); o Decreto nº 5.622, de 19 de de-zembro de 2005, que regulamenta o artigo 80, daLDB; a Portaria Ministerial nº 4.361, de 29 dedezembro de 2004, que trata, dentre outras ques-tões, dos procedimentos para credenciamento erecredenciamento de instituições de educação su-perior para oferta de cursos superiores a distân-cia; e a Resolução CNE/CES nº 1, de 3 de abrilde 2001, que estabelece normas para o funciona-mento de cursos de pós-graduação, incluindo ospor Ed.aD.7

A CF/1988 não tratou dessa questão, dada asua especificidade. Mas, registre-se que a Carta

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE96 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

Magna induz confusão considerávelno que diz respeito aos conceitos deeducação e de ensino.8

A LDB/1996 deixa claro que dis-ciplina apenas “a educação escolar,que se desenvolve, predominante-mente, por meio do ensino, em insti-tuições próprias.” (§1º, do artigo 1º,grifo nosso). Aqui, já se pode ante-ver uma brecha para a utilização doensino, presencial ou a distância, pa-ra além de nas “instituições próprias” (as esco-las), mas cabe lembrar que o §4º, do seu artigo 32(Seção III – Do Ensino Fundamental), defineque: “O ensino fundamental será presencial, sen-do o ensino a distância utilizado como comple-mentação da aprendizagem ou em situaçõesemergenciais.” Mas é o artigo 80 (Título VIII –Das Disposições Gerais) que trata, em especial,do tema: “O Poder Público incentivará o desen-volvimento e a veiculação de programas de ensi-no a distância, em todos os níveis e modalidadesde ensino, e de educação continuada.” (BRASIL,2006, grifo nosso). Ora, como argumenta JoséAugusto Dias, programas “São atividades espe-ciais, quer para oferecer oportunidade de comple-mentação de estudos, quer para oferecer educaçãocontinuada [...]” e lembra que tal artigo apenas“[...] recomenda o oferecimento de programas, ouseja, não menciona e muito menos autoriza o ofe-recimento de cursos a distância.” (DIAS, 2005, gri-fos no original). Ademais, o autor alerta para o fa-to de que,

[...] mesmo que a Lei permitisse o ofereci-

mento de cursos a distância seria preciso ter

presente que circunstância tornaria desejável

esse procedimento. O ensino a distância so-

mente seria justificável e deveria ser incenti-

vado quando oferecesse oportunidade de es-

tudo em regiões em que não há vagas, ou há

grande deficiência de vagas, nos cursos pre-

senciais. Fora destas hipóteses o curso a dis-

tância não tem justificativa.9 (DIAS, 2005).

Também sobre o artigo 80 da LDB/1996, de

acordo com Erson de Oliveira(2005), a expressão “incentivará” re-vela que a oferta de EaD não seriade responsabilidade direta do Esta-do, mas que, na realidade, o poderpúblico “ofereceria as condições pa-ra a sua expansão privatizante.” Oautor argumenta, com razão, que osparágrafos desse mesmo artigo ape-nas detalham aspectos referentes atal “oferta de condições”: 1) quem

poderá oferecer tais programas? As “instituiçõesespecialmente credenciadas pela União” (§1º),que, por sua vez, também “regulamentará os re-quisitos para a realização de exames e registro dediploma relativos a cursos de educação a distân-cia” (§2º, grifo nosso)10; 2) “As normas para pro-dução, controle e avaliação de programas de edu-cação a distância e a autorização para sua imple-mentação” nas diversas localidades são delegadasaos respectivos sistemas de ensino, que poderãorealizá-las em “cooperação e integração” (§3º); e3) “A educação a distância gozará de tratamentodiferenciado”, o que significa: “custos de trans-missão reduzidos em canais comerciais de radio-difusão sonora e de sons e imagens; concessão decanais com finalidades exclusivamente educativas;[e] reserva de tempo mínimo, sem ônus para oPoder Público, pelos concessionários de canaiscomerciais.” (§ 4º, incisos I a III, respectivamen-te). Como se pode ver, apesar de genérica, a LDB/-1996 mostra preocupação significativa com o EaD.

Ainda sobre a LDB/1996, cabe mencionar queo §4º, do seu artigo 87 (Título IX – Das Disposi-ções Transitórias), institui a “Década da Educa-ção” (1997-2006) e estabelece que até o fim dela“[...] somente serão admitidos professores habili-tados em nível superior ou formados por treina-mento em serviço”. Esse trecho suscita, entre ou-tras, duas questões cruciais. A primeira delas dizrespeito a uma contradição com o artigo 62 (docorpo da lei) – para o exercício do magistério naeducação infantil e nos quatro primeiros anos doensino fundamental admite-se, como formaçãomínima, a de nível médio, na modalidade Nor-mal; pois bem, leitura distorcida desses dois dis-

Registre-se que aCarta Magna induz

confusão considerávelno que diz respeito

aos conceitos deeducação e de ensino.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 97

Educação: prioridade nacional?

positivos permitiu que a Secretaria da Educaçãodo Estado de São Paulo (SEE-SP) criasse um cli-ma de terror entre docentes efetivos, na rede pú-blica, sem formação de nível superior, por receiode perder seus empregos, fato este utilizado pelaSEE-SP, em conjunto com a Universidade de SãoPaulo (USP), a Universidade Estadual Paulista“Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e a PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (PUC-SP),para introduzir um “curso especial de formaçãode professores de 1ª a 4ª série do Ensino Funda-mental” (“PEC/FOR PROF”, depois “PECFormação Universitária”)11, com as seguintes ca-racterísticas básicas: experimental, modular, ali-geirado e com boa carga didática a distância. Asegunda refere-se a um questionamento objetivo:treino forma? Por certo ele pode adestrar, masformar é outra coisa, não é? Vale dizer, além decapciosa, tal iniciativa imiscuiu formação e trei-namento, o que é assaz inadequado. (MINTO &SILVA, 2001; MINTO & MURANAKA, 2001).

O Decreto nº 5.622/2005, como já dissemos,regulamenta o artigo 80, da LDB, apresentando,em seu artigo 1º, uma definição bastante genéricado que se entende por Ed.aD:

Art. 1º Para os fins deste Decreto, caracteriza-

se a educação a distância como modalidade

educacional na qual a mediação didático-pe-

dagógica nos processos de ensino e aprendi-

zagem ocorre com a utilização de meios e tec-

nologias de informação e comunicação, com

estudantes e professores desenvolvendo ati-

vidades educativas em lugares e tempos di-

versos. (BRASIL, 2005).

Além disso, estabelece que a tal modalidade

[...] organiza-se segundo metodologia, gestão

e avaliação peculiares, para as quais deverá

estar prevista a obrigatoriedade de momentos

presenciais para: I – avaliação dos estudantes;

II – estágios obrigatórios [...], III – defesa de

trabalhos de conclusão de curso [...]; e IV –

atividades relacionadas a laboratórios de en-

sino, quando for o caso. (BRASIL, 2005).

Esta a síntese dos incisos I a IV, do § 1º, do ar-tigo 1º, ficando os incisos II e III condicionadosà sua previsão na legislação pertinente. Cabe aquiquestionar, por um lado, a conveniência da defi-nição adotada, que, por si só, não permite a dife-renciação entre os ensinos presencial e a distân-cia; por outro lado, os incisos citados não sãoplenamente esclarecedores, sobretudo no que dizrespeito ao que deverá acontecer, caso os estágiose os trabalhos de conclusão de curso (incisos II eIII) não estejam previstos na “legislação perti-nente”, eles simplesmente deixariam de existir?Se positivo, cabe argüir se isso seria oportuno?12

O Decreto nº 5.622/2005 abre a possibilidadede a Ed.aD ser utilizada – de forma indiscrimina-da – nos mais diversos níveis e modalidades edu-cacionais existentes, no país: da Educação Básica(condicionada ao cumprimento do artigo 30, des-se mesmo Decreto, a ser tratado adiante) até após-graduação (artigo 2º). Ao mesmo tempo,previne algumas situações indesejáveis, porquenão resguardam o conceito de isonomia no tem-po de duração, como por exemplo: “Os cursos eprogramas a distância deverão ser projetados coma mesma duração definida para os respectivoscursos na modalidade presencial.” (§ 1º, do artigo3º, grifo nosso). Também chama a atenção o ar-tigo 6º, sobretudo, mas não apenas, pela impre-cisão de linguagem:

Art. 6º Os convênios e os acordos de coo-

peração celebrados para fins de oferta de

cursos ou programas a distância entre insti-

tuições brasileiras, devidamente credencia-

das, e suas similares estrangeiras, deverão

ser previamente submetidos à análise e ho-

mologação pelo órgão normativo do res-

pectivo sistema de ensino, para que os di-

plomas e certificados emitidos tenham vali-

dade nacional. (BRASIL, 2005).

Isso posto, dentre outras, permanecem algu-mas questões: 1) o artigo 7º, do Decreto em aná-lise, justamente aquele que deveria/deve embasara decisão sobre: “I – credenciamento e renovaçãode credenciamento de instituições para oferta de

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

educação a distância; e II – autorização, reno-vação de autorização, reconhecimento e renova-ção de reconhecimento dos cursos ou programasa distância.” (incisos do artigo 7º), peca por suaexcessiva generalidade; 2) é lícito adotar o EaD –como política pública – de modo tão indiscrimi-nado? Se a resposta for positiva, qual é a base deconhecimento acumulado sobre o tema, de que opaís dispõe, para justificar adoção tão ampla?; 3)por que não se afirma, de forma categórica, que oscursos e programas a distância terão a mesma du-ração que os seus respectivos presenciais?; 4) a re-dação do artigo 6º é muito confusa, inclusive po-dendo evocar uma leitura de que cursos ou pro-gramas realizados por instituições estrangeirasnão precisariam estar “devidamente credencia-dos”, o que, por certo, não se confirma; mas comoentender, também, o açodamento para que diplo-mas e certificados referentes a tais cursos ou pro-gramas, sejam de instituições nacionais ou não,tenham validade nacional?; e, sobretudo, 5) comoexplicar tamanha imprecisão/confusão num sódocumento oficial?

Ainda acerca do Decreto nº 5.622/2005, umaprimeira leitura de seu artigo 30 pode ensejar,simplesmente, a conclusão de que este lhe confe-re, digamos, credibilidade:

Art. 30 As instituições credenciadas para a

oferta de educação a distância poderão soli-

citar autorização, junto aos órgãos norma-

tivos dos respectivos sistemas de ensino,

para oferecer os ensinos fundamental e mé-

dio a distância, conforme § 4º do art. 32 daLei nº 9.394, de 1996, exclusivamente para:

I – a complementação de aprendizagem; ou

II – em situações emergenciais. (BRASIL,

2005, grifo no original).

Na verdade, o caput do artigo 30 apenas infor-ma sobre procedimento para solicitar autoriza-ção para a oferta de tais cursos e repete parte daprópria LDB. Mas seu parágrafo único define, defato, as tais “situações emergenciais”13:

Parágrafo único. A oferta de educação bási-

ca nos termos do caput contemplará a si-

tuação de cidadãos que: I – estejam impedi-

dos, por algum motivo de saúde, de acom-

panhar ensino presencial; II – sejam porta-

dores de necessidades especiais e requeiram

serviços especializados de atendimento; III

– se encontram no exterior, por qualquer

motivo; IV – vivam em localidades que não

contem com rede regular de atendimento

escolar presencial; V – compulsoriamente

sejam transferidos para regiões de difícil

acesso, incluindo missões localizadas em re-

giões de fronteira; ou VI – estejam em situa-

ções de cárcere. (BRASIL, 2005).

Assim, por certo, não se trata de conferir ounão credibilidade ao Decreto analisado, mas –sim – de o poder público considerar o conteúdodesse parágrafo único, do artigo 30, como basepara a adoção do EaD – enquanto política públi-ca – em qualquer dos níveis de ensino, no país.Ademais, uma questão ainda insiste em se fazerpresente: por que será que isso só ocorre no “Ca-pítulo VI – Das Disposições Finais”, do referidoDecreto?

A Portaria Ministerial nº 4.361/2004, como jádissemos, diz respeito aos

[...] processos de credenciamento e recre-

denciamento de instituições de educação

superior (IES), credenciamento para oferta

de cursos de pós-graduação lato sensu, cre-

denciamento e recredenciamento de insti-

tuições de educação superior para a oferta

de cursos superiores a distância, de autori-

zação, reconhecimento e renovação de re-

conhecimento de cursos superiores, bem

como de transferência de mantença, au-

mento e remanejamento de vagas de cursos

reconhecidos, desativação de cursos, des-

credenciamento de instituições, Plano de

Desenvolvimento Institucional (PDI), adi-

tamento de PDI, além de outros processos

afins [...],

definindo que tais processos devem ser proto-

98 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 99

colizados por meio do Sistema de Acompanha-mento de Processos das Instituições de EnsinoSuperior – SAPIEnS/MEC. Ou seja, tal Portariaestabelece os procedimentos burocráticos relati-vos aos processos mencionados, informa sobre ofuncionamento e a responsabilidade de algumasinstâncias dos órgãos da administração federal,na área da educação, inclusive define prazos esanções nos casos de seu descumprimento. Gros-so modo, essa Portaria, ao mesmo tempo em quecausa a impressão de completude, evoca, tam-bém, a sensação de ser quase inacessível aos cida-dãos “comuns”, o que dificulta, ou até inibe,qualquer iniciativa de acompanhamento e con-trole pelos setores sociais organizados, fato esteindesejável.

A Portaria Ministerial nº 4.361/2004 pareceexceder-se nos aspectos técnicos e descuidar-sedos pedagógicos (que podem fazer toda diferen-ça), além de “pulverizar” informações e de formaconfusa. Quanto a este último aspecto, porexemplo, de acordo com o seu artigo 5º, “Para aprotocolização dos pedidos de credenciamento erecredenciamento de faculdades integradas, fa-culdades, faculdades de tecnologia, institutos su-periores ou escolas superiores [...]” deixa-se deexigir a apresentação de “estatuto” e “descriçãoda infra-estrutura, corpo docente, tutoria, plata-forma de educação a distância, metodologia,equipes multidisciplinares, parcerias e pólos,bem como outros elementos específicos paraeducação superior a distância” (incisos III e VII,do artigo 3º, dessa mesma Portaria); pouco maisadiante é que vai se completar a informação an-terior: “No caso de processos de autorização decursos superiores a distância, também deverãoser apresentados os documentos previstos no in-ciso VII do artigo 3º desta Portaria.” (§ 3º, do ar-tigo 9º, grifo nosso) e “No caso de processos dereconhecimento de cursos superiores a distância,também, deverão ser apresentados os documen-tos previstos no inciso VII do artigo 3º destaPortaria.” (§ 3º, do artigo 10, grifo nosso). Ou se-ja, apesar de as informações serem completadasao longo do texto, estas referem-se a fases distin-tas de um processo (credenciamento e recreden-

ciamento, autorização e reconhecimento) queexigem informações claras e objetivas.

Considerando o Decreto nº 5.622/2005 e aPortaria Ministerial nº 4.361/2004, sem ignorar ahierarquia da legislação educacional,14 cabe men-cionar que a Portaria impõe maior rigor, porexemplo, nos casos de pedidos de credenciamen-to e recredenciamento de IES para oferta de cur-sos superiores a distância (artigo 8º), além de cer-cear a possibilidade de as IES solicitarem creden-ciamento “[...] quando titulares e dirigentes inte-grarem outras instituições ou mantenedoras quecomprovadamente tenham cometido irregulari-dades ou tenham sofrido punições nos últimos 5(cinco) anos.” (artigo 7º), o que é correto; en-quanto, por sua vez, o Decreto arrefece o contro-le quando, também por exemplo,

Para oferta de cursos a distância dirigidos à

educação fundamental [sic] de jovens e

adultos, ensino médio e educação profissio-

nal de nível técnico, o Decreto nº 5.622/05

delegou competência às autoridades inte-

grantes dos sistemas de ensino de que trata

o artigo 8º da LDB, para promover os atos

de credenciamento de instituições localiza-

das no âmbito de suas respectivas atri-

buições.15 (BRASIL, 2005).

Ou seja, delegou a definição de aspecto impor-tante do EaD para o “poder local”, o que é alta-mente questionável, num país ainda oligárquico,cuja tradição tem sido a do coronelismo, doclientelismo, do cartorialismo etc., exercendoforte influência junto às comunidades, às lideran-ças e às administrações.

A Resolução CNE/CES nº 1/2001, como jádissemos, estabelece normas para o funciona-mento de cursos de pós-graduação. No que se re-fere a tais cursos a distância, há normas que sãocomuns tanto para os stricto sensu quanto para oslato sensu: ambos só poderão ser oferecidos porinstituições credenciadas pela União, de acordocom o disposto no § 1º, do artigo 80, da LDB/-1996 (Cf. artigos 3º e 11, respectivamente); deve-rão ter, necessariamente, provas e atividades pre-

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE100 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

senciais (§ 1º, do artigo 3º, e parágrafo único, doartigo 11, respectivamente), devendo, no caso doscursos de pós-graduação stricto sensu, os examesde qualificação e as defesas de dissertação ou tese,incluir, em suas bancas examinadoras, pelo menosum (1) membro não pertencente à instituição res-ponsável pelo programa (§ 2º, do artigo 3º) e, nocaso dos lato sensu, estes deverão ter defesa pre-sencial de monografia ou trabalho de conclusãode curso (parágrafo único, do artigo 11). Ou seja,tais normas são bastante acanhadas e flexíveis, pa-ra dizer o mínimo. Mas registre-se que o artigo 2º,da Resolução CNE/CES nº 24/2002 (que alterouparte da Resolução em pauta), estabelece que:

Os cursos de pós-graduação de mestrado e

ou doutorado [portanto, stricto sensu] ofere-

cidos mediante formas de associação entre

instituições brasileiras e instituições estran-

geiras só poderão ser instalados após autori-

zação do Ministério da Educação, conforme

estabelecido no Artigo 1º desta Resolução

[CNE/CES nº 1/2001] e seu parágrafo 1º.16

(BRASIL, 2005).

Isso significa mostrar um certo “pulso”, sobre-tudo numa seara extremamente vulnerável ao ape-tite de instituições de cunho empresarial, nacionaisou estrangeiras, pelo lucro fácil, sem riscos. Mastambém não é lícito ignorar que tal postura “maisenérgica”, digamos, só ocorreu como resultado dapressão dos setores sociais organizados.

Em síntese, a legislação sobre EaD é, no míni-mo, genérica, ostentando características inaceitá-veis em textos dessa natureza, sobretudo pelapossibilidade, ainda que eventual, de evocar lei-turas diversas e contraditórias, o que deve ser evi-tado a todo custo. Por um lado, se tal legislaçãoexacerba os aspectos técnicos e burocráticos, poroutro lado, descuida-se das questões de cunhopropriamente educacional – aliás, raramente men-cionadas, a não ser enquanto dogmas assumidos.Mas, o que é ainda mais preocupante, como jádissemos, é a abertura indiscriminada para o EaDser utilizado em todos os níveis da educação for-mal, sem que o país disponha de acúmulo consis-

tente de conhecimentos sobre o tema. Tal legisla-ção nem sequer explicita claramente se o EaD éconcebido como “modalidade de ensino” (a nãoser no Decreto citado, dentre os documentos aquiconsiderados), como “metodologia” ou apenascomo “estratégia” para se chegar à consecução dealgum objetivo – supostamente educacional, ima-ginamos.

Defesa da formação presencialVamos supor, então, que o projeto de sucessi-

vos governos (referimo-nos aqui, sobretudo, aosdois governos de FHC e ao governo atual) para aEd.aD, embora falem de educação, não se refiramà educação mesma, mas sim ao ensino. Ainda as-sim, uma boa apreciação do tal projeto nos levariaa contra-argumentar que se o seu objeto fosse ex-clusivamente o ensino, fora de qualquer perspec-tiva educativa, seria preciso acrescentar-lheabrangência, de sorte a torná-lo instrumento deuma revolução total e radical em nosso sistema deensino – começando, talvez, pela substituição doMinistério da Educação por um Ministério doEnsino. E, então, tal projeto teria que ser prece-dido de outro que tratasse realmente de educaçãoe no qual se explicitassem os princípios e os pres-supostos que ordenariam o sistema de ensino quedele derivasse – porque nenhum sistema de ensi-no pode prescindir da definição prévia do ideal aque ele deve servir e dos critérios, a começar pe-los éticos, sobre os quais se assentará a tomada dedecisão sobre as importantes questões: O quê?Para quê? e Como ensinar?17

É claro que o EaD ensina e, se bem estruturadoe conduzido, educa, como qualquer outra ativida-de na vida poderia fazê-lo. Aprendemos e noseducamos a vida toda a distância. Através dosnossos pais e por meio de uma série de circuns-tâncias, aprendemos com nossos antepassados,inclusive sem necessidade de os haver conhecido.Aprendemos e podemos educar-nos com autoresque nunca vimos ou encontramos pessoalmente(alguns, de resto, jamais escreveram nada...) e, in-clusive, com quem está há mais de 2000 anos denós – assim, aprendemos e nos educamos com Só-crates, com Platão, com Aristóteles, com Tales,

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADEOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 101

com Pitágoras, com Heráclito, com Anaxágoras,com Anaximandro e por aí afora. Aprendemos enos educamos até com os animais, com as plan-tas, com os rios e os mares, com a paisagem, comas coisas. E a esmagadora maioria desses todosnem sequer poderia “desconfiar” que nos ensina-vam... (e, mais do que nos ensinar, pode educar-nos). Então, se é esse aprendizado e essa educa-ção que o EaD pretende, toquemos em frente!Aliás, ele nem precisa ser proposto (e muito me-nos instituído...) ele existe e se impõe de todos oslados e por toda a vida – queiramos ou não!

Mas, há que se recusar o EaD, se o que com elese pretende é a preparação sistemática para a vidapessoal, social e profissional que a cada um cabeviver e em que a cada um caberá desempenhar-se.E por quê?

Em primeiro lugar, porque a vida humana e oser humano são históricos. Assim, qualquer indi-víduo que fosse obrigado a se autoconstruir abai-xo da cultura de seu tempo construir-se-ia infra-histórico – irremediavelmente abaixo de sua con-dição de humanidade. O tempo humano não ésimplesmente o tempo do relógio, nem é a merae irremediável seqüência de milésimos de segun-do que compõem o tempo físico e nem sequer éa sucessão fluida de presentes. Otempo humano é histórico. Quem es-tiver, pois, abaixo de seu tempo, es-tará aquém de sua condição histórica– autoconstruído e confinado numainfra-humanidade. Seria um infra-homem.

A educação sistemática (educaçãoescolar, formal) não tem o direito deroubar à pessoa as condições doexercício de seu direito de construir-se humana e de humanamente de-sempenhar-se e viver (quanto a talroubo, já estamos muito bem servi-dos de instituições públicas [e priva-das] e sistemas sociais que o prati-cam...). Toda educação sistemática sefaz num contínuo interagir da edu-cação presencial com a distância. Àeducação sistemática compete – pre-

cisamente porque sistemática – ser presencial:uma troca sistemática e organizada em situaçõesde ensino e de aprendizagem assistidas na e pelaconvivência e no e pelo exercício da vivência hu-mana que é, necessariamente, presencial, dado oseu caráter social.

O homem se exerce existencialmente na dupladimensão em que se faz a construção e a auto-construção de sua humanidade: as dimensões in-dividual e social. Se tolhido em qualquer umadessas dimensões essenciais, ou se privado de nu-ma delas se exercer, terá sido amputado em umadas dimensões de sua humanidade; reduzido,pois, a uma infra-humanidade. E existirá comoum infra-homem (é claro que poderá haver casosem que sozinhos os estudantes consigam superaros inconvenientes do EaD). Mas, a estrutura deum sistema de ensino – e, mais ainda, de um sis-tema educacional – tem que ser definida em vistada situação e da configuração correntes na reali-dade em que existe.

De um ponto de vista sociológico, hoje, o sis-tema escolar é um sistema especializado ao qual asociedade tem que confiar a tarefa da educaçãosistemática das novas gerações. A escola e o pro-cesso de escolarização formal por ela desenvolvi-

do têm como condição específica,sobretudo, a interação entre estu-dantes e professores. A eficiência e aeficácia das ações de fato educativasestão relacionadas com o grau deconsciência e de racionalidade nacondução do processo, donde de-corre, para os professores, a neces-sidade de uma nítida compreensãode sua natureza como garantia doclaro conhecimento de seus requisi-tos e exigências, de suas possibilida-des e de suas limitações. Isto implicaa necessidade de incluir, na forma-ção do professor, a abordagem so-ciológica do processo educativo, daqual se espera contribuição essencialna abordagem propriamente peda-gógica: discernimento na identifica-ção das metas gerais a serem pro-

Nenhum sistema deensino podeprescindir da

definição prévia doideal a que ele deveservir e dos critérios,

a começar peloséticos, sobre os quais

se assentará atomada de decisão

sobre as importantesquestões: O quê?Para quê? e Como

ensinar?

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE102 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

postas ou daquelas que permanecem subjacentesà ação do grupo; viabilidade dos fins assumidos,por sua adequação à natureza do processo e aosrecursos disponíveis; coerência e efetividade daação pela compatibilidade com os fins que a de-sencadearam; e adequação dos efeitos da escola-rização aos propósitos que a orientaram (FÉTI-ZON, 1984).

De um ponto de vista filosófico, entendida aeducação como veículo da assunção da humani-dade pela conquista da autonomia pessoal econstatado o professor como agente externo es-pecífico do processo educativo, conclui-se pelaimportância prioritária de uma formação espe-cializada para o professor, que se subentendeatender às condições necessárias, embora não su-ficientes, aos bons desempenhos: 1) da tarefaque, no sistema, incumbe ao professor; e 2) dopróprio sistema escolar face à sociedade que omantém. Essas duas empreitadas são complexas;o ensino – papel primordial do professor – exigedeste um desempenho que não se improvisa, naprática docente, e reclama formação séria e efici-ente.18 Assim, a educação escolar não ocorre pe-las simples circunstâncias socioculturais em açãona escola – logo, o desempenho do professor nãopode ser aleatório, assim como seus resultadosnão podem ser fortuitos: ambos devem ser frutosde uma formação muito cuidadosa. E ensinarsignifica, em essência, potenciar a arte de pensar(inata, no ser humano e, portanto, no estudante),de construir concepções claras que se aplicam aexperiências de primeira mão, selecionar infor-mações relevantes, testar descobertas – logo, aformação do professor implica a posse do mé-todo científico e a capacidade de aumentar achance de sua transferência para a experiência doeducando. Ademais, nenhuma educação sistemá-tica se sustenta sem uma antropovisão e uma cos-movisão consistentes; seu exame, sua crítica e suaconstituição competem à formação do professor(FÉTIZON, 1984).

De um ponto de vista psicopedagógico, consi-derando desde a psicologia da aprendizagem à dodesenvolvimento e à da personalidade, constata-se que há um conjunto de conhecimentos neces-

sários à orientação do procedimento do docente,face ao educando e à garantia das condições mí-nimas daquele “conhecer” a quem se fala, neces-sário ao diálogo e à adequada condução do pro-cesso educativo. Tais conhecimentos devem sercontemplados na formação do professor, e a em-preitada exige que tal formação seja presencial,pois trata-se de tarefas de extrema complexidade,envolvendo o desenvolvimento de um instru-mental que inclui capacidades e habilidades deconhecimento, compreensão, análise, síntese, ava-liação, dentre outras, cuja ausência tornaria lugarcomum a persistência de professores – desprepa-rados, desse ponto de vista – na manutenção demeios inadequados ao processo educativo, semque estes sequer estejam aptos a detectar sua pró-pria inadequação aos fins que eles mesmosselecionaram ou propuseram (FÉTIZON, 1984).

De um ponto de vista metodológico, cabelembrar que, na interação presencial entre pro-fessor(es), estudante(s) e objeto(s) de conheci-mento, é comum ocorrer situações nas quais sepode constatar a inconveniência (fundamentada)da manutenção de determinados saberes e, mui-tas vezes, é preciso quase que alquebrar as con-vicções que os estudantes ainda consideram vá-lidas, pois estes são fiéis escudeiros daquelas, en-quanto elas ainda os satisfazem, ou seja, enquan-to elas ainda lhes parecem fornecer respostas sa-tisfatórias. Tais situações são muito importantesnos processos de ensino e de aprendizagem e fi-cam praticamente inviabilizadas em ambientes“virtuais”. Afora isso, o estímulo à observação, àformulação de hipóteses, à desestabilização, àequilibração, à reelaboração de conceitos – estí-mulo esse impregnado por aspectos afetivos e so-lidários – é um desafio constante no processoeducacional. Processo este que é permeado pelobrilho-opacidade dos olhares, pela ginga dos quebuscam, pelo sorriso maroto dos que encontram,pela fruição individual e coletiva do apreendido,resultando na aquisição, pelos estudantes, de au-tonomia para formular leituras de mundo e atuarcomo sujeitos históricos, e, pelos professores, deefetivação do seu compromisso profissional, mastambém humano. Tal dimensão é intrínseca ao

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 103

ensino presencial e estaria descartada no EaD, as-sim como, em tese, também estariam sendo des-cartados os próprios professores (MINTO &SILVA, 2001).

Assim, pelos motivos já explicitados, a forma-ção inicial tem que ser, necessariamente, presen-cial.19 E por formação inicial entendemos aquelapromovida pelo processo da

[...] educação como instrumento de forma-

ção ampla, permitindo a todos os seres hu-manos um desenvolvimento que respeite

plenamente sua potencialidade, em especial

no que se refere à capacidade de leitura crí-

tica do meio natural e social em que vivem,

assim como um real domínio do acervo de

conhecimentos já produzidos pela socieda-

de (continuamente preservadas as especifi-

cidades e limitações inerentes às respectivas

faixas etárias), permitindo a produção de

novos saberes a partir da crítica daquilo que

já se constatar incompleto ou ultrapassado.

Em outras palavras, essa formação deve ga-

rantir todas as condições para que as pes-

soas possam atuar como seres críticos,

construtores de sua própria cultura, de sua

história e da sociedade em

que vivem, pessoas que se-

jam progressivamente livres

e solidárias, que desenvol-

vam valores e atributos ine-

rentes à cidadania e que aju-

dem a construir uma socie-

dade cada vez mais livre, de-

mocrática, justa e igualitária.

(ADUSP, 2005).

Dessa forma, insistimos, se preten-demos que as atividades didáticas se-jam efetivamente formadoras, elas de-vem ser desenvolvidas na forma pre-sencial: desde a educação infantil, o ensino fun-damental, o ensino médio, o ensino de graduação(licenciatura e bacharelado), até o ensino de pós-graduação (mestrado e doutorado). Vale dizer, aqualquer tempo:

A formação do educando exige relações dia-

lógicas presenciais, para que o professor es-

timule a reflexão, possibilitando o questio-

namento, a problematização, a constatação

e a superação de contradições, a constante

motivação e o crescimento progressivo do

educando a partir da vivência de experiên-

cias efetivamente socializadoras. Todas essas

dimensões ficam extremamente prejudica-

das, se não impedidas, quando da adoção da

[Ed.aD/do] EaD na formação. É dessa inte-

ração presencial que resultam os saberes so-

cialmente referenciados, sendo essa vivência

essencial, sobretudo na formação de docen-

tes, mola-mestra para a continuidade deste

ciclo virtuoso. (ADUSP, 2005).

À guisa de conclusão, recuperamos o mote co-locado em epígrafe, para dizer que, no caso dotema em discussão, nossa resposta a “O que é?”,sem dúvida, trata-se do Ensino a Distância que,“segundo a perspectiva a partir da qual o apre-ciamos”, jamais pode ser confundido com Edu-cação, assim como, também, não é oportuno con-fundi-lo com a mera utilização de técnicas/tec-nologias – modernas ou não – de informação e

comunicação, mas que deve ser usa-do, sim, como rica alternativa com-plementar nas situações de ensinopresencial e como opção viável, sebem estruturado e conduzido, na“formação contínua ou continua-da”. Quanto ao fato de que “as res-postas às nossas perguntas podemsempre diferir umas das outras, em-bora diversas delas (ou todas) pos-sam ser, eventualmente, válidas”,ponderamos ser necessário discernira adoção do EaD, como política pú-blica, pois, ao mesmo tempo em quetal adoção é uma “resposta válida”,

nos casos de “complementação de aprendizagem;ou em situações emergenciais” (Cf. § 4º, do ar-tigo 32, da LDB/1996), não é uma “resposta vá-lida” para a formação – em especial e sobretudo –de professores. Daí, propormos que se adote uma

Educação: prioridade nacional?

Propomos que se adote uma espéciede “cláusula debarreira”, para

impedir que governosincautos tentem

adotar, como políticapública, a educação

sistemática adistância.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE104 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

espécie de “cláusula de barreira”, para impedirque governos incautos tentem adotar, como polí-tica pública, a educação sistemática a distância.

NOTAS

1 Agradecemos as sugestões de Lalo Watanabe Minto,Marília Leite Washington, Nobuko Kawashita e RubensBarbosa de Camargo.2 Usamos a sigla Ed.aD quando nos referimos à Educa-ção a Distância e EaD quando nos referimos ao Ensino aDistância. Ao analisar os textos legais, mantivemos suasmenções originais, mas consideramos imprópria, quasesempre que utilizada, a expressão “Educação a Distân-cia”. Voltaremos a esse assunto mais adiante.3 Se prevalece tal idéia, por decorrência, ela pode induzir,por exemplo, uma outra: a de que o defendido por seusopositores é antidemocrático, anacrônico e inoportuno,o que seria muito nefasto, do ponto de vista social. Esseé um dos motivos pelos quais é preciso minimizar osefeitos das ideologias que permeiam tal discussão. 4 Cabe aqui uma distinção: de atividades didáticas, podedecorrer, ou não, aprendizagem. Mas, se não houveraprendizagem, não terá havido ensino (embora possa terhavido, efetivamente, alguma atividade didática).5 Vale dizer: o que chamamos aqui de “ponto de vistamais amplo”e “ponto de vista individual” expressam di-mensões de um mesmo processo, que é social. Dada aconfiguração da sociedade, hoje capitalista, entendemosque, pelo menos no curto prazo, a única educação quepode propiciar formação é a escolarização formal organi-zada e mantida pelo poder público. 6 Ocorrências tais como: aparecimento de problemase/ou questões que exigem esclarecimento e/ou interven-ção; surgimento de hipóteses a partir de outras percep-ções advindas das correlações entre as diversas ordens deconhecimento; aperfeiçoamento de instrumentos e de-mais recursos de pesquisa, fruto do aperfeiçoamento detécnicas e invenções que respondem a novas demandasde: explicação e/ou solução de problemas de toda ordem,tais como os postos pelas novas formas de convivênciasocial, dos meios de comunicação e pela abertura de fron-teiras entre povos e nações, de novos estados e/ou na-ções; etc.7 Tais documentos constam do sítio eletrônico do Minis-tério da Educação (MEC), Secretaria de Educação a Dis-tância (SEED), como sendo os que definem as baseslegais para a “Regulamentação da EAD no Brasil”. É cu-rioso que não se mencione a peça importante de planeja-mento que é o Plano Nacional de Educação (Lei n°10.172/2001), cuja seção 6 trata de “Educação a Distânciae Tecnologias Educacionais”, mas não desconhecemosque boa parte de seus dispositivos foram contempladosna legislação citada, que analisaremos em seguida. Talvezisto explique a omissão do referido PNE.

8 A CF/1988 (Capítulo III – Da Educação, da Cultura edo Desporto; Seção I – Da Educação) dedica dez artigos(205 a 214) à área, sendo a educação, para além das men-ções nos títulos citados, mencionada explicitamente ape-nas nos artigos 205, 208 e 214; nos demais, prevalece areferência ao ensino, por certo com o significado de “edu-cação escolar”, conforme melhor especificado na LDB.9 Apesar de não discordarmos dos critérios admitidospelo autor para a utilização do EaD (“em regiões ondenão há vagas, ou há grande deficiência de vagas”), mesmoassim, cabe lembrar que qualquer eventual adoção doEaD deve estar acompanhada de um planejamento edu-cacional efetivo, de forma a prevenir que a falta de vagasem cursos presenciais, ou sua insuficiência, continuem aacontecer. 10 Repare-se que aqui já são mencionados cursos e nãoapenas programas. 11 Cabe esclarecer os significados atribuídos pelos seusidealizadores a essas siglas: PEC – Projeto de EducaçãoContinuada; FOR/PROF – Formação de Professores.12 Tais questionamentos levantam problemas, ou sim-plesmente omissões, que um texto oficial não deve sus-citar. Tratando de assunto correlato, Contardo Calligarisadverte: “[...] a complexidade das regulamentações é,tradicionalmente, um convite à corrupção; quando nin-guém sabe direito o que pode e o que não pode, alguémacaba pagando para que o deixem em paz.” (CALLI-GARIS, 2006, p. 14).13 Embora tal artigo refira-se apenas e tão somente aosensinos fundamental e médio a distância.14 Por certo, o Decreto (Presidencial) é superior à Porta-ria (Ministerial), mas não é lícito ignorar que ambos de-vem guardar coerência entre si e, ademais, que o “equilí-brio hierárquico” é delicado e complexo. No caso do en-sino universitário, por exemplo, há necessidade, também,de regulamentação pela própria universidade que, sendoautônoma, mas não soberana, deve se coadunar, por con-seguinte, com os Decretos e as Portarias sobre a matéria. 15 Conforme citado na própria “página inicial” da Secre-taria de Educação a Distância (SEED), no sítio do MEC:http://portal.mec.gov.br/seed/index.php?option=-content&task=vie.16 Artigo 1º, §1º, da Resolução CNE/CES nº 1/2001: “Aautorização, o reconhecimento e a renovação de reconhe-cimento de cursos de pós-graduação stricto sensu sãoconcedidos por prazo determinado, dependendo de pare-cer favorável da Câmara de Educação Superior do Con-selho Nacional de Educação, fundamentado nos resul-tados da avaliação realizada pela Fundação Coordenaçãode Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –CAPES e homologado pelo Ministro da Educação.”17 Pois tudo comporta ensino – inclusive atividades mui-to mais rendosas do que aquelas para as quais o nosso sis-tema de ensino – que é educacional – prepara. A título deexemplo: ensinar a desviar, com competência, recursos

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 105

públicos ou privados, sem deixar traço que possibiliteeventuais punições legais, preparará o estudante paraprofissão muito mais rendosa do que de dar aulas, atendera acidentados, construir casas etc. O exemplo pode pare-cer extremado, mas revela, de forma contundente, a ne-cessidade de critérios éticos nessas questões.18 Em outras palavras, a efetividade da ação educativa quea escola desenvolve depende da capacidade dos professo-res para avaliar objetivamente a viabilidade dos fins e dis-cernir o alcance e os limites dos recursos disponíveis; se-lecionar metodologias compatíveis com a natureza doprocesso e com os fins assumidos como viáveis e para uti-lizar corretamente tais metodologias. (FÉTIZON, 1984,p. 85). 19 A rigor, do ponto de vista conceitual, formação dispen-sa o acompanhamento de qualquer adjetivo que denotecronologia, pois trata-se de um processo ininterrupto;assim, mantivemos o inicial só para diferenciar formaçãodaquilo que atualmente se denomina de “formação con-tínua ou continuada”. Ou seja, defendemos que só fazsentido falar em formação continuada ou contínua – quepode ser provida por EaD bem estruturado e conduzido– se, antes, tiver sido garantida a formação presencial, deboa qualidade, em todos os níveis da educação formal.

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______. Resolução n° 1, de 3 de abril de 2001. Estabelecenormas para o funcionamento de cursos de pós-gradua-ção. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 12,9 abr. 2001.

______. Resolução n° 24, de 18 de dezembro de 2002.Altera a redação do parágrafo 4°, do artigo 1°, e o artigo2°, da Resolução CNE/CES n° 1/2001, que estabelecenormas para o funcionamento de cursos de pós-graduação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção1, p. 49, 20 dez. 2002.

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Educação: prioridade nacional?

Formação docente e educação a distância no Brasil:

democratização ou mercantilização?Céres Maria Ramires Torres*

Tânia Maria Batista de Lima**

*Professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)**Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC)

As possibilidades de formação do professornuma perspectiva mais crítica, substantiva,original, inovadora diante das transforma-

ções que temos vivido historicamente estão cadavez mais distantes. Os dilemas vivenciados pelosprofessores estão vinculados ao processo, mes-mo, de construção de sua identidade, quando to-dos os apelos da sociedade moderna apontam pa-ra o contrário: uma homogeneização absurda eindistinta, no contexto das mídias de massa.

A questão central que se coloca ao professor,enquanto sujeito histórico, passa a ser a seguinte:como construir uma identidade substantivaquando os ditames da ciência e da racionalidademoderna parecem sinalizar, tão somente, um ca-minho de adaptação e de diluição do sujeito fren-te às novas formas de organização da sociedadecontemporânea? Como afirmar-se professor,formador de novas identidades substantivas, emum ambiente em que a docência é desvalorizadasocial e economicamente?

No discurso oficial:

A valorização dos professores da educação

básica é elemento central no cenário da dis-

cussão sobre a educação de qualidade para

todos. O reconhecimento da importância

social e política dos agentes da educação há

de contribuir para a superação dos proble-

mas existentes e para a inserção do país em

novos patamares de cidadania, de democra-

tização e de desenvolvimento [...]. (BRA-

SIL, 1994, p. 11).

Em sintonia com toda essa retórica de valo-rização do professor, são concebidos programasde formação inicial e continuada, oficialmentevisando ao aprimoramento profissional. Ao mes-mo tempo, expondo a contradição, aguçam-se asformas de precarização do trabalho docente,como têm mostrado diversos estudos sobre aquestão (GATTI, 1997), assim como os dados dopróprio Sistema Nacional de Avaliação da Edu-cação Básica (Saeb).

A perda progressiva da qualidade da escolapública deve-se, apenas em parte, à baixa qualifi-cação dos professores; resulta, principalmente,das péssimas condições de trabalho na escola, aíincluída uma remuneração pífia, além das precá-rias condições sócio-econômicas e culturais vi-venciadas pela maioria das crianças e jovens bra-sileiros.

No entanto, não é possível negar que o siste-ma educacional, como um todo, ou seja, o seubaixo teor de qualidade, também contribui paraesse quadro. Constata-se que a ineficácia da esco-

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 107UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

la quanto à produção e difusão dos saberes histo-ricamente acumulados deve-se em parte à inade-quação dos cursos de formação inicial dos pro-fessores que não oferecem programas curricula-res consistentes, tanto na fundamentação teóricaquanto na instrumentalização da prática profis-sional para a realidade da Escola Fundamental.Há ausência da ação/reflexão como princípioeducativo, e o professor ainda é visto como aque-le detentor de conhecimentos cristalizados, ouseja, um mero transmissor de saberes.

A qualidade pretendida no âmbito do sistemaé, quase sempre, associada ao nível de formaçãodos professores, bem como ao trabalho que elesrealizam no cotidiano escolar. O trecho a seguir,do documento Planejamento Político-Estratégi-co, editado no primeiro ano do governo Fernan-do Henrique Cardoso, ilustra a relação que cos-tuma ser estabelecida entre escola e professoresna busca da qualidade do ensino:

[...] todos os estudos e diagnósticos apon-

tam a escola fundamental como a raiz dos

problemas educacionais do povo brasileiro.

Portanto, a prioridade absoluta será a de

promover o fortalecimento da escola de

primeiro grau. Há escolas, há vagas, há eva-

são, há repetência, há professor mal treina-

do, professor mal pago, há

desperdício. Para trilhar um

caminho de seriedade, é pre-

ciso acima de tudo, valorizar

a escola e tudo que lhe é pró-

prio: a sala de aula e os pro-

fessores; o currículo e a for-

mação dos mestres; o resulta-

do da aprendizagem. (BRA-

SIL, 1995, p. 3).

Apesar da ênfase no papel doprofessor como elemento central nadinâmica da educação, muitos críti-cos das atuais reformas educacionaistêm reafirmado a ausência do pro-fessorado na definição, implemen-tação, acompanhamento e avaliação

das políticas educacionais. Ao mesmo tempo emque se exige destes profissionais um forte com-promisso, capacidade reflexiva e desenvolvimen-to de atividades cada vez mais complexas, des-considera-se suas necessidades e desejos, sua voze participação efetiva. Somem-se a isto as dificul-dades no âmbito da valorização da profissão do-cente, particularmente quanto à formação, car-reira docente, salário e condições de trabalho.

O cenário descrito tem incidência direta naprática pedagógica do professor em sala de aula,reflete negativamente em sua auto-estima, em suacapacidade para lidar de maneira autônoma comos dilemas presentes no seu cotidiano profissio-nal, no domínio das competências necessárias aofazer docente e em sua organização coletiva en-quanto categoria profissional.

Considerando-se a profissionalização docentecomo conquista de poder e status diante do Esta-do e da sociedade, o contexto sócio-político, eco-nômico e cultural no qual ela se insere não tem fa-vorecido este processo. Ao contrário, esse contex-to vem fragmentando o professor, dissociando osaspectos profissionais dos aspectos pessoais. Tam-bém não tem sido suficientemente abordada aproblemática de gênero, tão presente na profissãodocente, categoria essencialmente feminina.

Para poder incidir positivamente sobre a rea-lidade, é preciso que o professor sevalorize e seja valorizado social-mente, ocupe espaços estratégicosna definição e condução de elemen-tos políticos e pedagógicos quecompõem a complexa teia da insti-tuição escolar. Ser protagonista é vi-venciar uma formação que primepela autonomia, pelo trabalho cole-tivo, pela reflexão sobre a práticadocente, pela abordagem multidi-mensional do conhecimento, pelorespeito aos diversos saberes doprofessor, pelo acesso às artes e bensculturais, pela apropriação das no-vas tecnologias da informação e co-municação, como elementos funda-mentais à dinâmica de seu trabalho

108 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Em sua luta pelavalorização do

trabalho docente,cabe ao professorfirmeza ao exigir

respeito e garantiada satisfação de suas

necessidades easpirações

profissionais,elementos essenciais

à dignidade notrabalho.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

docente, pelo desenvolvimento depesquisas, pela conquista do tempopara estudos, pela diversidade de es-tratégias formativas e, principal-mente, pela visão do professor comopermanente aprendiz.

Em sua luta pela valorização dotrabalho docente, cabe ao professorfirmeza ao exigir respeito e garantiada satisfação de suas necessidades easpirações profissionais, elementosessenciais à dignidade no trabalho.Para tanto, é necessário que estejaconsciente de seu papel e de suasfunções como educador, assumindoum compromisso pessoal e socialcom a escola de qualidade para todos. Assim, oprofessor encontra-se frente a uma tarefa desa-fiante, cujo embate é cotidiano e exige vontadepolítica e profissional, não apenas dele, mas detodos os envolvidos no sistema educacional,tanto na esfera pública em todos os âmbitos, co-mo na esfera privada.

As reformas educacionais e as políticas de formação docente

As políticas educacionais, particularmenteaquelas vinculadas à formação docente, situam-se nos marcos das reformas educativas que se de-senvolvem na América Latina desde o final dadécada de 1970 e têm como objetivo adequar osistema educacional ao processo de reestrutura-ção produtiva. Nesse sentido, a formação é con-siderada elemento fundamental para a realizaçãodessas reformas, na medida em que contribuempara transformar, aperfeiçoar e melhorar a açãopedagógica do professor no chamado chão daescola, aos moldes da adequação proposta.

Tal processo de reforma educativa na AméricaLatina não se dá, porém, sem resistência por par-te dos trabalhadores da educação e de suas orga-nizações acadêmicas, científicas e sindicais. Exis-tem questionamentos quanto às concepções quetêm orientado tais mudanças. Nessa direção, aAssociação Nacional pela Formação dos Profis-sionais da Educação (Anfope) tem dado uma im-

portante contribuição para a efeti-vação de uma formação baseada naconcepção sócio-histórica do edu-cador, em contraposição ao carátertecnicista e conteudístico que vemcaracterizando as políticas de for-mação do professor da escola básicano Brasil.

Todo o esforço de formulação daAnfope tem sido canalizado para adefinição de uma política nacionalglobal de formação e fixação dostrabalhadores da educação, visandoa sua profissionalização e valoriza-ção. Esta política global deve con-templar, em condições de igualdade,

uma sólida formação inicial no campo da educa-ção, condições de trabalho, salário e carreira dig-nos, além da formação continuada como um di-reito dos professores e obrigação do Estado e dasinstituições contratantes.

Aqui, cabe um rápido histórico em relação aocaminho trilhado pelas políticas de formação emnosso país. A década de 1970 foi marcada poruma hegemonia tecnicista, com ênfase na prepa-ração de mão-de-obra para atender às demandasdas empresas que emergiam no cenário industrialbrasileiro. Nos anos de 1980, porém, até mesmoem função da emergência dos movimentossociais que reivindicavam uma maior democra-tização da sociedade e atendimento das necessi-dades básicas do cidadão, essa hegemonia tecni-cista foi duramente questionada, na perspectivade ruptura com este pensamento que dominava aárea. Surgiram amplas campanhas em torno deuma formação docente que superasse a dicoto-mia entre professores e especialistas, pedagogos elicenciados, especialistas e generalistas.

O movimento dos educadores, além de pro-curar romper com o tecnicismo reinante, buscouconsolidar uma nova concepção profissional nocampo educacional, com ênfase na especificidadeda docência e do trabalho pedagógico. Para tan-to, defendia a base comum nacional, concebidacomo instrumento de luta contra a degradação daprofissão docente, capaz de contribuir para a ga-

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 109

Na década 1980 surgiram campanhas

em torno de uma formação docenteque superasse adicotomia entreprofessores eespecialistas,

pedagogos e licencia-dos, especialistas e

generalistas.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

rantia da igualdade das condições de formação,em oposição à concepção de igualdade de opor-tunidades, tão propalada pelo ideário neoliberalpós-moderno.

Na esfera da sociedade civil organizada, o in-teresse pela formação de professores cresceu nadécada de 1990. Tratou-se de um momento mar-cado por eventos voltados para a reflexão: osCongressos Estaduais Paulistas sobre Formaçãode Educadores, os Encontros Nacionais de Didá-tica e Prática de Ensino (Endipe) e o CongressoÍbero-Americano de Formação de Professores(Santa Maria - RS, abril/2000) são exemplos deencontros de amplitude nacional. Também emoutros fóruns, como a Associação Nacional dePós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)- principal organização de pesquisadores da áreano país - a investigação sobre a formação de pro-fessores ganhou espaço, traduzindo-se em umnúmero crescente de trabalhos sobre o assunto,com significativa contribuição de autores inter-nacionais, dentre eles Nóvoa (2001), Perrenoud(1999) e Schön (2000).

Neste cenário, têm exercido novamente pro-tagonismo ativo as organizações em defesa daformação de professores, como a Anfope e, maisrecentemente, o Fórum em Defesa da Formaçãode Professores.

Um olhar mais detido sobre os fatos históricosnão pode prescindir de considerar que essa lutapela formação do professor insere-se na crescentecrise educacional brasileira, que, por sua vez, é ex-pressão das condições econômicas, políticas e so-ciais em contínua deteriorização, em uma socie-dade profundamente desigual e excludente.

A década de 1990 foi, pois, marcada peloaprofundamento da referida crise, na medida emque representou também o início do processo deconsolidação das políticas neoliberais no campoeconômico e, conseqüentemente, educacional. Ainstitucionalização de tais políticas gerou, ainda,uma concepção de formação diferente daquelaprotagonizada na década de 1980. A formação deprofessores passou a ser pautada na centralidadedo conteúdo da escola (habilidades e competên-cias escolares). Esse período é marcado pela:

[...] ênfase excessiva do que acontece em

sala de aula, em detrimento do que acontece

na escola como um todo. O abandono da

categoria trabalho pelas categorias da prá-

tica, prática reflexiva, nos estudos teóricos

de análise dos processos de trabalho, termi-

nou por centrar a ação educativa na figura

do professor e da sala de aula, na presente

forma histórica, dando margem para a defi-

nição de políticas educacionais baseadas ex-

clusivamente na qualidade da instrução e do

conteúdo, em detrimento da discussão so-

bre os fins da educação, impondo à educa-

ção e à escola a lógica restrita da produção

e do desenvolvimento da laboralidade aos

processos de formação, em uma perspectiva

produtivista unidimensional [...] em detri-

mento da formação humana multilateral.

(FREITAS, 2004, p. 92).

Para muitos autores, esse momento significouum retorno às concepções tecnicistas e pragma-tistas da década de 1970, agora com uma roupa-gem modernizante, deslocando o referencial daqualificação do emprego - qualificação profissio-nal - para a qualificação do indivíduo (KUEN-ZER, 2003, p. 22). O paradigma passa a seraquele do desenvolvimento de habilidades/com-petências comportamentais capazes de atender àsdemandas da sociedade tecnológica. Nesse senti-do, a formação passa a ser organizada para desen-volver um professor com competências para so-lucionar problemas da prática, destituído doscondicionantes históricos, políticos e sociais queexplicam tais problemas.

Está cada vez mais presente um desloca-

mento semântico básico: de trabalho para

atividade docente. Na tentativa de dimen-

sioná-lo, é importante focalizar os proces-

sos favorecedores do esvaziamento do tra-

balho docente, com destaque para a relação

entre a produção de conhecimento e o ensi-

no. (BARRETO, 2002, p. 105, grifo nosso).

A formação do professor passa a ser vista co-

110 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

mo uma ação basicamente individual (quandomuito, situada em um contexto situacional espe-cífico) empreendida com vistas à construção dascompetências necessárias para a realização da ati-vidade pedagógica.

Vale destacar, porém, a necessidade de se pen-sar a formação de professores, também, e especi-almente, para o uso das Tecnologias da Informa-ção e da Comunicação (TICs), numa outra pers-pectiva, crítica e criativa, que considere os sujei-tos em suas demandas concretas e aponte parauma outra perspectiva pedagógica. Há de se bus-car, pois, uma superação do esvaziamento do tra-balho docente capaz de contribuir para um redi-mensionamento qualitativo da prática cotidianados sujeitos na escola.

Caracterizando a natureza do esvaziamentodo trabalho do professor, Barreto (2002) destaca

[...] 03 (três) restrições à perspectiva de to-

talidade constituída por objetivos-conteú-

dos-métodos-avaliação: (1) A primeira é

produto de uma leitura da pedagogia liberal

da Escola Nova, feita a partir dos efeitos do

deslocamento das finalidades do ensino pa-

ra a secundarização dos conteúdos fazendo

com que toda ênfase passasse a ser posta

nos métodos e técnicas de ensino; (2) A se-

gunda restrição, levada ao limite pelo tecni-

cismo dos anos 70, reduziu o ensino à for-

mulação dos objetivos educacionais. Obje-

tivos imediatos que, além do formalismo

não deixaram espaço para desempenhos,

condições e critérios não previstos; experi-

mentada aqui com uma espécie de resistên-

cia passiva, expressa pela utilização mera-

mente formal; e (3) A terceira restrição,

bem mais complexa nas suas configurações

materiais e simbólicas, corresponde ao

neotecnicismo em curso, inscrito num mo-

vimento contraditório de uma ‘globaliza-

ção’ excludente administrada pelos privilé-

gios da crise do modo de produção capita-

lista: os organismos internacionais, os ‘no-

vos senhores do mundo’ (Leher, 1999), a

partir de supostos consensos como os de

Washington. [...] Em termos de propostas

educacionais, as alternativas passam a estar

centradas no uso de tecnologias mais

eficientes. (BARRETO, 2002, p. 106-107).

No rastro deste neopragmatismo, duas carac-terísticas são bem evidentes e relevantes para apresente análise: 1) o aligeiramento da formaçãosuperior de professores em exercício; 2) a utiliza-ção da educação a distância como mecanismo deexpansão da oferta de cursos para professores emserviço.

Com relação ao aligeiramento da formaçãosuperior há de se registrar o fato de os profes-sores se sentirem pressionados pela LDB (Leinº 9.394/96) que, em seu artigo 87, parágrafo 4º,estabelece que até o término da década da educa-ção, somente serão admitidos professores habili-tados em nível superior ou formados por treina-mento em serviço. Presenciou-se uma verdadeiracorrida de professores da educação infantil, doensino fundamental e do ensino médio em buscada aquisição precária e aligeirada de diplomas.

A opção pelo EaD como ‘modus operandi’prioritário para a formação docente

Em vários estados, o poder público, distor-cendo as determinações da LDB e dizendo-sepressionado por dispositivos legais, tem promo-vido cursos maciços de formação superior deprofessores em exercício, muitos desses cursosbaseados em tutorias, mídias interativas, dentrodo conceito de Ensino a Distância (EaD), impul-sionados por consórcios interuniversitários.

Mais recentemente, o Ensino a Distância, co-mo estratégia privilegiada de formação de pro-fessores, foi alçado a outro patamar, ao pretenderatingir jovens recém-saídos do ensino médio, pormeio da Universidade Aberta do Brasil (UAB)1,que representa, no contexto das políticas públi-cas brasileiras, a admissão definitiva de que essaformação será, prioritariamente, realizada de for-ma não-presencial. Na versão oficial:

A UAB resulta de políticas públicas do

MEC para a democratização e expansão do

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 111

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

ensino superior. O projeto foi elaborado no

Fórum das Estatais pela Educação, com

participação da Associação Nacional dos

Dirigentes das Instituições Federais de En-

sino Superior (ANDIFES). A idéia é levar

ensino superior público e gratuito às re-

giões distantes dos grandes centros.

Na primeira etapa, a UAB será formada a

partir da adesão voluntária das 55 universi-

dades federais e dos Centros Federais de

Educação Tecnológica (CEFET), integra-

dos à rede de pólos de apoio presencial.

Cada pólo pode apoiar cursos a distância de

diferentes instituições. O aluno não precisa

morar na cidade na qual será instalada a se-

de da instituição consorciada, o que permi-

tirá o atendimento a todo o país. (BRASIL,

2006).

Como resultado do primeiro edital, publi-cado em 20 de dezembro de 2005, houve respostaà chamada pública para a formação de pólos porparte de 150 municípios, considerando o iníciono primeiro semestre de 2007, e por um númeroum pouco menor para início no segundo semes-tre do mesmo ano.

Analisando a distribuição geográfica dos pó-los salta aos olhos a pouca consistência da argu-mentação oficial: as unidades federativas menosaquinhoadas e de maior extensão territorial estãolonge de ser as que terão mais pólos. Assim, ape-nas quatro municípios no Amazonas propõempólos (Coari e Maués, para o primeiro semestre;Lábrea e Manacapuru, para o segundo semestre),enquanto no Rio Grande do Sul foram propostos35 (22 para o primeiro semestre e 13 para o se-gundo). É bastante provável que os estados e mu-nicípios mais pobres simplesmente não consigamarregimentar os meios materiais necessários àconcretização dos pólos de apoio. A propaladademocratização é mais um dentre os muitos mi-tos atuais.

Também é duvidoso que o objetivo alegadode promover a necessária ampliação do númerode professores anualmente licenciados se concre-tize, mesmo desconsiderando a importante pro-

blemática conceitual associada à proposta de for-mação inicial por intermédio do EaD.

A listagem das Instituições Federais de Ensi-no Superior (Ifes) que se comprometeram a ins-talar, de fato, o EaD nos pólos, mostra que asmais antigas e com experiência no assunto forambastante tímidas em suas proposições para 2007.Assim, a Universidade de Brasília (UnB) propõeao todo sete cursos, nem todos de graduação e,dentre estes, nenhuma das licenciaturas solicita-das pelo MEC; a Universidade Federal do Ceará(UFC) também propõe sete cursos, incluídosMatemática e Química; a Universidade Federalde Santa Catarina (UFSC) propõe cursos, mas dalista preferencial do MEC apenas Ciências Bioló-gicas, oferecidos essencialmente para municípiosdo Paraná (incluindo somente os municípios deTreze Tílias e Videira, em Santa Catarina); a Uni-versidade Federal do Paraná (UFPR) ofereceráem 2007 um único curso da lista, “Saúde paraprofissionais da educação”, em vários municípiosparanaenses; de maneira análoga, a UniversidadeFederal da Bahia (UFBA) oferecerá, apenas naBahia, um único curso da lista, Matemática. AUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM),instituição de origem do Secretário do EaD doMEC, oferecerá o curso de Física em quatro dos31 municípios em que estará presente, majorita-riamente no próprio Rio Grande do Sul.

No outro extremo, a Universidade Federal doEspírito Santo (Ufes) propõe 17 cursos em EaD,em um número grande de municípios do próprioestado, mas também em dois municípios daBahia, um em Minas Gerais e, curiosamente, emOsasco (SP). Dentre os cursos a serem ofertadospela Ufes, alguns ostentam nomes, no mínimo,curiosos, como “Filosofia, Psicanálise e Medici-na”, “Filosofia e Educação no Ensino Religioso”,mas, também, “Gestão de Agronegócios”, Físicae Química.

Podem ser levantadas várias hipóteses quantoàs causas para tal distribuição na oferta de cursos,entre estas, que o atropelo na implementação daUAB tem afastado os grupos de pesquisa commaior acúmulo em EaD.

Com a publicação de novo edital para a se-

112 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

gunda chamada pública para seleçãode pólos municipais de apoio, emnovembro de 2006, houve duas mu-danças importantes no funciona-mento da UAB: para 2008, além dasIfes, foram convocadas, também,IES estaduais e municipais paraapresentação de propostas paracursos em EaD; e o Sistema UAB,antes classificado como experimen-tal, deixou de sê-lo.

Claro está que, com a pulveriza-ção ainda maior na oferta, o acom-panhamento da implementação, sejá era difícil, tornar-se-á impraticá-vel. Some-se a isto o pouco investi-mento (da ordem de apenas R$100/aluno/mês) que a União preten-de dedicar à UAB, incluídos aí os subsídios ad-vindos de Fundações privadas associadas ao Fó-rum das Estatais para a Educação, fundado em2004, e tudo indica que a formação de professo-res se dará em um ambiente ainda mais desfa-vorável que o atual. Contudo, o MEC pretendedisponibilizar, por intermédio da UAB, um nú-mero de vagas que praticamente se equipara aoofertado hoje pelas Ifes. Pode-se concluir facil-mente que o impacto negativo desta iniciativa so-bre o Sistema Público de Educação Superior nãoserá pequeno.

Além da UAB, outras experiências têm sidogestadas no campo da formação docente, especi-ficamente com a utilização do EaD.

A institucionalização em larga escala do EaDjá se configurava, antes mesmo da UAB, como amodalidade de ensino mais provável de ser ado-tada na formação inicial e continuada de profes-sores. Alguns ambientes virtuais, tais como o e-Proinfo2, bem como o TelEduc3, dentre outros, játêm trabalhado em larga escala com cursos deformação, sejam eles de curta duração, de espe-cialização, ou mesmo de graduação.

O Programa de Formação de Professores emExercício (PROFORMAÇÃO)4 é um dos prin-cipais programas de formação docente, estrutu-rado pelo governo federal desde 1999. Desenvol-

ve-se na modalidade de ensino adistância, utilizando materiais auto-instrucionais (impressos e vídeos),serviços de apoio à aprendizagem,atividades coletivas e individuais.São distribuídos guias de estudos ecadernos de verificação de apren-dizagem, ambos com textos parapesquisa e exercícios. Os vídeos uti-lizados abordam conteúdos e estu-dos nas áreas temáticas, incluindosituações de prática pedagógica epropostas de atividades diretamenteligadas à prática docente, sendoutilizados em encontros quinzenais.

Assim, políticas públicas efetivasde formação inicial e continuada doprofessor têm sido substituídas por

cursos a distância, em detrimento de um acom-panhamento presencial, essencial para o aperfei-çoamento da prática pedagógica do professor. Sema vivência da relação humana no binômio ensi-nar/aprender, o futuro professor, se já tinha difi-culdades de estruturar-se como identidade subje-tiva, dada a pressão social prevalente, ver- se-ásubtraído até das escolhas identitárias para osquais alguns mestres costumam ser referência.

A Anfope e demais entidades do campo edu-cacional têm se manifestado com extrema preo-cupação sobre o EaD como alternativa hegemô-nica na formação de docentes. A crítica concen-tra-se principalmente no caráter massificador edesqualificado/desqualificante de tais iniciativas,pois não há controle em relação à sua efetivaqualidade.

Uma das expressões críticas mais contunden-tes quanto à disseminação do EaD no sistemapúblico brasileiro tem sido o Sindicato Nacionaldos Docentes de Ensino Superior (ANDES-SN).

A centralidade da educação a distância -

EaD nas políticas do MEC é cada vez mais

evidente. Aos poucos, está sendo configu-

rado um quadro que terá trágicas conse-

qüências para a educação brasileira, caso

não seja revertido de modo radical. Com

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 113

Políticas públicasefetivas de formaçãoinicial e continuada

do professor têm sidosubstituídas por

cursos a distância, em detrimento de um

acompanhamentopresencial, essencial

para oaperfeiçoamento daprática pedagógica

do professor.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

efeito, a proposta de criação pelo MEC da

Universidade Aberta do Brasil, uma insti-

tuição de direito privado e não-gratuita, a

minuta de decreto que regulamenta o art.

80 da LDB e o disposto na última versão do

anteprojeto de lei que dispõe sobre a edu-

cação superior antecipam a aplicação dos

termos da OMC reclamados pelos EUA,

Inglaterra e Austrália mesmo sem a efetiva-

ção desse Tratado de Livre Comércio (TLC)

no escopo do Acordo Geral de Comércio

de Serviços (AGCS). Em outros termos,

com essas medidas, o Brasil abre seu merca-

do ao comércio transfronteiriço de educa-

ção sem contar nem mesmo com as contra-

partidas usuais nos Tratados de Livre Co-

mércio: é uma abertura unilateral aos cy-

ber-rentistas que estão ávidos pelo acesso

ao expressivo mercado educacional brasi-

leiro que, somente na educação superior, já

movimenta cerca de R$ 18 bilhões/ano.

(ANDES-SN, 2005).

O governo federal vem tentando reduzir o im-pacto da estagnação do financiamento público -que se mostra através da redução relativa de recur-sos para as Ifes e aumento dos gastos fixos (energia,telefonia, manutenção e folha de pagamentos) -, en-cobrindo-a por meio de uma política que se diz deinclusão, mas não explicita que esta se dá via priva-tização. São exemplos, recentes e marcantes, o pro-grama ProUni, as parcerias público-privadas que se utilizam da lei de ino-vação para serem utilizadas nas uni-versidades e a UAB.

Especificamente, no que diz res-peito ao Ensino a Distância, é forço-so reconhecer que há necessidade deaprofundamento da análise sobre os“usos” de tais tecnologias em con-texto educacional, inclusive para quenão se sucumba, como geralmentetem ocorrido, às políticas coloniza-doras dos países desenvolvidos. Épreciso, também, identificar os con-teúdos formativos que poderiam ser

trabalhados através das TICs, sempre enquantocomplementares ao trabalho presencial, que deveser desenvolvido durante a maior parte da for-mação.

A falta de uma política pública clara de for-mação de professores a partir do contexto, dasespecificidades e demandas concretas da práticapedagógica conduz, invariavelmente, à adoção deprojetos pontuais, muitas vezes patrocinados ecapitaneados por empresas privadas, tais comoIntel, IBM, Gerdau, Positivo e outros. As políti-cas públicas precisam incorporar, em suas pro-postas, ações e práticas, o que teoricamente é ex-plicitado nos documentos que as justificam. Seforem comparados os projetos e as propostas im-plementadas serão encontradas inúmeras contra-dições, em face do discurso que pretende cooptaros professores e a sociedade para ações compatí-veis com as reformas neoliberais em andamento.

Os chamados “pacotes tecnológicos” indu-zem subliminarmente uma demanda pelos pro-dutos que as empresas buscam disseminar e ven-der. Assim, a formação realizada nestes progra-mas gera nos professores, gestores e técnicos, anecessidade de utilização a-crítica dos produtos,softwares, aplicativos sem a mínima reflexão so-bre a democratização do acesso a tais possibili-dades tecnológicas no contexto educacional.

Para concluir, é urgente repensar as políticasde formação de professores em andamento, prin-cipalmente se forem considerados os processos

aligeirados e fragmentados que vêmse desenvolvendo no âmbito do sis-tema educacional brasileiro comoestratégia de transformação da edu-cação em mercadoria. O EaD, sob omanto da modernização e demo-cratização das oportunidades edu-cacionais, tem se tornado um espaçovalioso para a ampliação do cyber-rentismo em nosso país. Como bemalertam os professores das universi-dades públicas, reunidos no Congres-so do ANDES-SN:

Com essas medidas – universidade

114 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

O EAD, sob o mantoda modernização edemocratização das

oportunidadeseducacionais, tem setornado um espaço

valioso para aampliação do

cyber-rentismo em nosso país.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

aberta, anteprojeto e decreto – o Governo

Federal coloca o Brasil no circuito da mer-

cantilização da educação sem salvaguardas

relevantes. Recentemente, centenas de diri-

gentes-empresários de universidades que

oferecem EaD reuniram-se na Espanha pa-

ra discutir o mercado latino-americano de

educação. Certamente, os empresários es-

tão comemorando; os educadores, ao con-

trário, organizam a luta que ganhará a den-

sidade necessária para reverter essa ofensiva

do mercado contra a educação pública e gra-

tuita. (ANDES, p. 2, 2005).

Frente a mais esta ofensiva contra a educaçãopública, desta vez focada na cyber-formação deprofessores, faz-se necessária a união de todas asentidades e movimentos que se colocam na defesada qualidade do ensino público, bem como na lutacontra a ampliação de vagas para formação deprofessores por meio do Ensino a Distância. Afi-nal, universalizar com qualidade o acesso à edu-cação em todos os níveis é, conforme a concepçãodos movimentos organizados, em especial dosmovimentos dos educadores, uma luta funda-mental por uma nova sociabilidade, referenciadanas aspirações humanamente autênticas, quais se-jam: o direito à plena formação e ao trabalho.

NOTAS

1 A UAB é um Sistema que consorcia IES públicas comentes federativos interessados em manter pólos de apoioà Educação a Distância, por meio de convênios interme-diados pelo MEC (Decreto nº 5.800/2006). Segundo in-formações do próprio MEC, o público-alvo que se pre-tende atingir com a UAB é amplo: qualquer cidadão quetenha concluído a educação básica e que tenha sido apro-vado em processo seletivo, atendendo aos requisitos exi-gidos pela instituição pública vinculada ao Sistema UAB.2 O e-ProInfo é um ambiente colaborativo de aprendi-zagem que utiliza a tecnologia internet e permite a con-cepção, administração e desenvolvimento de diversos ti-pos de ações: cursos a distância, complemento a cursospresenciais, projetos de pesquisa, projetos colaborativose outras formas de apoio a distância e ao processo ensino-aprendizagem. 3 O TelEduc é um ambiente para a criação, participaçãoe administração de cursos na web. Ele foi concebido ten-

do como alvo o processo de formação de professores parainformática educativa, baseado na metodologia de forma-ção contextualizada desenvolvida pelo Núcleo de Infor-mática Aplicada à Educação da Unicamp. 4 Ver: <http://mecsrv04.mec.gov.br/seed/proform>.

REFERÊNCIAS

ANDES-SN, SINDICATO NACIONAL DOSDOCENTES DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINOSUPERIOR. Educação a distância, abertura do mercadoeducacional ao capital estrangeiro e ampliação espúria daeducação superior: uma crítica à política de EAD dogoverno Lula da Silva. Brasília, DF, set. 2005.

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DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 115

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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$ As políticas de Educação no Governo Lula:cenários e perspectivas

Lisete Arelaro

Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)

Para se avaliar qualquer política pública e, nocaso específico, as propostas educacionais doGoverno Lula I (2003/2006), tem-se que

considerar como pressupostos da análise, não sóa conjuntura encontrada, mas, no caso do Brasil,especialmente, a existência de um Projeto de Es-tado neoconservador implementado e uma ori-entação consistente das Políticas Educacionaisnessa concepção. Não há como desconsiderar,ainda, o fato que fora realizada pelo governoFHC I e II, com êxito, a adequação jurídico-legaldo Aparato Administrativo para aquele fim, e queeste se constituía em forte empecilho adicionalpara uma contraposição rápida à situação vigente.

Por outro lado, havia de maneira bastante ní-tida – e até entusiasmada – uma expectativa sobrea ação do novo Governo, por parte de setoresmajoritários da população brasileira, tanto de se-tores populares, como de movimentos sociais or-ganizados, envolvendo: intelectuais, artistas, pro-fessores, profissionais liberais. Tais setores espe-ravam, com certa ansiedade, o enfrentamentodessas condições de impedimento para a efe-tivação de um novo Projeto Nacional (limitaçõesessas, tanto de ordem jurídicas, como financeirase, também, legais).

Escolhemos como exemplo, por traduzirem o

arcabouço do sofisticado Projeto de adequação“moderna” do Estado Brasileiro, a EmendaConstitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, esua regulamentação, a Lei Complementar nº 101,de 5 de maio de 2000.

A primeira, por ter estabelecido os parâme-tros da reforma do Estado, introduzindo pelaprimeira vez na nossa História Republicana, umnovo conceito de “público” - o público não esta-tal - assim como a (re)conceituação de “serviçospúblicos” e, em conseqüência, autorizando a ter-ceirização do gerenciamento de equipamentospúblicos, reformulando o conceito e os critériosde funcionários públicos “insubstituíveis”, que, apartir de então, passam a ser somente os audito-res fiscais e as polícias. E a segunda, a Lei de Res-ponsabilidade Fiscal (LRF) – a LC nº 101/2000 -, como ficou conhecida pelo marketing políticodesenvolvido na mídia, constituindo-se aparato“competente” de impedimento para a expansãodo aparelho estatal, em especial o dos Municí-pios, que contraditoriamente, haviam acabado dereceber a obrigação de “executores maiores” daspolíticas sociais básicas: de saúde, de educação,de assistência social, de cultura, de habitação, doesporte e de lazer. É importante lembrar que a li-mitação estabelecida para os Orçamentos Públi-

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cos, restringindo em (no máximo) 60%, os re-cursos destinados às Folhas de Pessoal (limitaçãoessa obrigatória para as três esferas públicas –municipal, estadual e federal – a partir de então),significa, sem dúvida, num País em débito com aspolíticas sociais, a privatização dos serviços pú-blicos, na medida em que a expansão dos mesmosdepende, fundamentalmente, de pessoal para asua implementação e funcionamento.

Destacamos, ainda, pela importância que teveno processo de impedimento da ação competentee ágil da Administração Direta, a Lei nº8.666/1994 - que disciplinou as Licitações e re-formulou, na prática para pior, a Lei nº4.320/1964, “sugerindo”, em nomeda “moralidade e da competência”,que a preferência de realização deserviços públicos fossem transferi-dos para os privados, quase inver-tendo o princípio de responsabili-dade pública pois, de ora em diante,o que pudesse ser realizado pelo pri-vado, não poderia (ou deveria) serrealizado pelo público. As “Parce-rias Público-Privadas” (as PPPs),sem controle ou acompanhamentopelo Estado, são bons exemplos des-sa excrescência.

Em relação à Educação, a expec-tativa não era diferente, pois se espe-rava que o novo Governo, se empe-nhasse em relação à disputa, junto àsociedade, e com ela, de (novo) Pro-jeto de Política Educacional.

Para isso, certamente, seria necessária umaefetiva e consistente reorganização administrati-va do MEC, em especial, com a recomposição dadescentralização de sua ação/representação nopaís: as Delegacias Regionais (Demecs) ou equi-valentes; ainda seriam necessárias a redefinição ea adequação de funções de seus órgãos principais:o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais(Inep) e o Fundo Nacional de Desenvolvimentoda Educação (FNDE), para melhor desempenharsuas funções de acompanhamento e avaliação daspolíticas educacionais.

Em relação aos Projetos Prioritários a seremdesenvolvidos, logo nos primeiros momentos doGoverno Lula, sindicatos, movimentos de educa-dores, associações científicas e sociais esperavamque, pelo menos, cinco Projetos se constituíssemem Diretrizes de Ação Governamental, com aurgência e os recursos financeiros que caracte-rizam os projetos assim definidos. Eram eles:

1. (RE) CONCEITUAÇÃO DE GESTÃODEMOCRÁTICA, substituindo, em definitivo,a concepção “peéssedebiana” de Gestão demo-crática (segundo a qual a cúpula define o que, ecomo, fazer e as “bases” simplesmente concor-dam - e colaboram financeiramente - para a efe-

tivação do que foi proposto de cimapara baixo), por um conceito deGestão, onde a participação fossetradutora, necessariamente, de deci-são e realização coletivas;

2. PRIORIZAÇÃO AO EN-FRENTAMENTO DO ANAL-FABETISMO no País, traduzindo,pela primeira vez, na prática educa-cional, o ideal republicano de “Edu-cação como um Direito de Todos”,sem exceção, tendo o ProfessorPaulo Freire, e sua teoria do conhe-cimento, como orientadores dessaprática social e pedagógica;

3. APROVAÇÃO E IMPLE-MENTAÇÃO DO FUNDEB(Fundo de Manutenção e Desenvol-vimento da Educação Básica e Valo-

rização dos Profissionais da Educação) - ou seja,destinação efetiva de volume maior de recursosfederais para a Educação Pública do nível Básico;

4. REFORMULAÇÃO DOS ENSINOSMÉDIO E TECNOLÓGICO - iniciando-sepela revogação sumária do Decreto Federal nº2.208/1997, que separou a formação geral da téc-nica e tecnológica, medida esta que se esperavafosse consubstanciada, através do Diário Oficialda União, no primeiro dia de Governo;

5. REFORMA UNIVERSITÁRIA, visando aum efetivo controle da expansão e da qualidade doEnsino Privado no País, bem como com a retoma-

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A EC nº 19estabeleceu os parâmetros da

reforma do Estado,introduzindo pelaprimeira vez nanossa História

Republicana, umnovo conceito de

“público” – o públiconão estatal - assim

como a(re)conceituação de“serviços públicos”.

da, imediata, da expansão e das condições dignasde funcionamento do Ensino Superior Público.

Da cartola mágica não saiu coelhoApresentamos, de forma sintética, as princi-

pais ações de cada um dos três Ministros da Edu-cação no Governo Lula I e destacamos, especial-mente, a expansão de vagas na Educação Supe-rior e o Fundeb, para uma avaliação das perspec-tivas, frente ao próximo quadriênio.

2003 – Ministro Cristóvão Buarque• Participação na defesa da Reforma da Pre-

vidência Pública (complementação da EC nº20/1998), prioridade estabelecida pós-eleição,que surpreendeu a todos, até ao próprio PartidoPolítico do Presidente – o Partido dos Trabalha-dores (PT), que ficou dividido na defesa do Pro-jeto de Lei, com acusações de “traição” dos tra-balhadores, feitas por diversos agrupamentos in-ternos do Partido;

• Proposta de “Bolsa” Creche, no valor deR$ 50 por mês, para as mães que concordassemem não trabalhar fora e ficar em casa, cuidandodos filhos pequenos (de zero a três anos de idade)+ Kit Pedagógico para as Mães pobres, paraaprenderem a brincar, de forma “educativa” comseus filhos – proposta esta, felizmente, “barrada”pela mobilização realizada pelo MovimentoInter-Fóruns de Educação Infantil (MIEI);

• Avaliação periódica e permanente – de cincoem cinco anos - da “Competência” do Professorde Educação Básica de Estados e Municípios,através de Exame Nacional específico e dos re-sultados apresentados pelos alunos, via ExamesNacionais realizados de forma centralizada peloMEC, tipo Saeb (Sistema de Avaliação do EnsinoBásico), cujo “prêmio” para os melhores – oumais bem sucedidos nesses Exames – seria o deuma “Bolsa Formação”; esta proposta, felizmen-te, também conseguiu ser “barrada” pela mobili-zação liderada pela Confederação Nacional dosTrabalhadores da Educação (CNTE) e parte dosDirigentes Municipais da União Nacional dosDirigentes Nacionais de Educação (Undime);

• Criação do Programa “Brasil Alfabetiza-

do”, substituindo o Projeto “Alfabetização Soli-dária”, com diferenciações pouco significativas,uma vez que a maior parte dos parcos recursospúblicos, destinados à alfabetização de jovens eadultos – à semelhança do Governo FHC – fo-ram destinados ao setor privado.

• Promessa (não cumprida até a presente data)de realização de “Conferências Estaduais e Na-cional de Educação”, com delegados eleitos emcada Estado e com caráter deliberativo, visando àproposição, análise e avaliação das políticas edu-cacionais a serem implementadas pelo Governo.

2004/2005 – Ministro Tarso Genro• Apresentação à sociedade de Minuta do 1º

Projeto de Reforma do Ensino Superior, paradiscussão (bastante confuso e mal escrito);

• Apresentação das 2ª e 3ª versões desse Pro-jeto reformulado e, naquele momento, com avaldo Conselho de Reitores das Universidades Bra-sileiras (Crub);

• Publicação de Editais de Concursos Públi-cos de Títulos e Provas para preenchimento decargos de professores e funcionários do EnsinoSuperior Público e início de realização dos mes-mos; estão em debate até hoje, com adesão dealgumas Universidades e críticas, de outras;

• Apresentação da proposta de “quotas”, co-mo um dos critérios obrigatórios para ingressonas Universidades Públicas e outras propostas deações afirmativas, em especial a valorização, noExame Vestibular, dos estudantes oriundos de es-colas públicas, tanto do Ensino Fundamental,quanto do Ensino Médio;

• Substituição do modelo de avaliação dosCursos Superiores: do “Provão”- adotado desdeo início do Governo FHC I (1995), até o final doGoverno FHC II (2002) - para o “Sinaes”, cujadiferença fundamental se localiza na comparaçãode desempenho: não mais só dos formandos decada Curso, mas dos ingressantes e dos forman-dos, por amostragem, de cada um dos Cursos, detodas as Instituições de Ensino Superior – públi-cas ou privadas;

• É proposto – e aprovado – o Projeto“ProUni”, considerado pelo Governo Lula, co-

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mo projeto de “democratização e expansão doatendimento no ensino superior”, através daoferta de Bolsas de Estudo, abrangendo tanto asInstituições Superiores Filantrópicas, quanto asInstituições Particulares propriamente ditas, re-presentando, sem dúvida, e de forma polêmica,significativa transferência de recursos públicos, eportanto, de financiamento do setor privado deensino; o valor foi estimado em cerca de R$ 600milhões.

2005/2006 - Ministro Fernando Haddad • O Projeto principal foi a implantação do

Ensino Fundamental de nove anos, com inícioaos 6 anos de idade – também esse projeto nãoestava com prioridade definida nos Planos deGoverno (ou de Campanha), uma vez que taliniciativa, ainda que prevista no Plano Decenalde Educação – Lei Federal nº 10.172, de 9 de ja-neiro de 2001 – interessava mais ao PSDB, emfunção de sua “aposta” de que o Fundef seriaprorrogado por mais dez anos, do que pelo PT ePartidos Coligados. Esses, em tese, apostavam naaprovação, a curto prazo, do novo Fundo que osubstituiria – o Fundeb – que envolvia toda aEducação Básica, pois era prioridade de Gover-no, assumida em Campanha e constava do Planodos “100 Dias de Governo”- ainda que não ti-vesse sido, na prática, priorizado. É difícil nãoadmitir que a Educação Infantil, antes com seisanos de duração – de zero aos seis anos de idade– não seja prejudicada (ou “congelada”) com essainiciativa; ademais não foram consideradas asatuais condições físicas das escolas brasileiras,para a realização desse objetivo, sob a perspectivapedagógica;

• Foi mantido, o sistema de financiamento deBolsas de Estudos para o Ensino Superior - oFies -, com redução dos juros anuais, para osalunos de escolas superiores privadas, que não seenquadrem nas condições de “pauperismo” oude custo Curso/ano, exigidas (ou previstas) noProUni;

• O último, e ainda atual Ministro, manteve asantigas Provas Nacionais de Avaliação, e intro-duziu novas; estão em vigor o Enade, na Educa-

ção Superior, o Enem, para todo o Ensino Mé-dio, o Saeb, para o Ensino Fundamental (poramostragem de escolas), a PROVA BRASIL,também, para o Ensino Fundamental (envolven-do o total de crianças do Brasil, na série, anual-mente, escolhida, inclusive a primeira do ensinofundamental!) e o ENCEJA, para a educação dejovens e adultos;

• Foi dado destaque incomum ao Ensino aDistância (EaD), com regulamentação frouxa,atingindo todos os níveis, em particular as gra-duações e pós-graduações stricto sensu;

• Foi encaminhado, ao Congresso Nacional,o Projeto de Lei sobre a Reforma do Ensino Su-perior, PL nº 7.200/06, existindo já propostas dealteração, especialmente por parte de Deputadosdo PFL, PSDB e do PMDB - por sinal, coinci-dentes na forma e nos pontos de alteração - , queagravam os já frágeis artigos referentes ao con-trole da qualidade e expansão do Ensino Supe-rior Privado e de sua gestão democrática, comoprincípio educacional.

• Foi criado o “sistema” Universidade Abertado Brasil (UAB), pelo Decreto nº 5.800/06, insti-tuindo, em proporções alarmantes, a pseudo-for-mação de professores da Educação Básica e deoutros profissionais por meio do Ensino a Dis-tância no Brasil.

Ações envolvendo as IfesSem o devido financiamento adicional, as Ins-

tituições Federais de Ensino Superior (Ifes) têmservido como cartão de visita para as “boas in-tenções” do governo para com a ampliação doacesso a vagas públicas. Ainda à época do minis-tro Tarso Genro, e na mesma ocasião do lança-mento do ProUni, foram apresentados os pri-meiros Projetos de Expansão das UniversidadesFederais; são, entre outros: - UniABC, UniSantos,Uniminas e expansão de campi da Unifesp (Dia-dema, Santos, Guarulhos...), hoje já em funcio-namento, oferecendo parte significativa dos cur-sos programados.

Em 2006, já sob Fernando Haddad, foramrealizados Exames Vestibulares para as novasUniversidades ou novos campi criados, sendo

120 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

mantido o antigo cronograma de realização deConcursos Públicos de ingresso para ProfessorUniversitário, negociado com os Reitores dasUniversidades Federais e com os sindicatos, in-cluídos os campi recém criados. Acrescente-se aisso a ampliação, significativa, de vagas que ocor-reu nos últimos anos em quase todas as Ifes, eestá desenhado o quadro de precarização cres-cente das atividades docentes.

Para coroar, a espantosa ampliação de vagasnas graduações, pretendida pelo sistema UAB,depende, em grande medida, da colaboração dosdocentes das Ifes e, a partir de 2008, também dados docentes dos sistemas estaduais de EducaçãoSuperior. Como conciliar tal sobrecarga de tra-balho com a pretendida qualidade, mesmo se fordesconsiderada a objeção, fundamentada, de boaparte dos educadores quanto ao uso do EaD paraa formação inicial?

A médio prazo, se não houver uma mudançaurgente dos rumos, a situação aqui esboçadaaponta para a destruição do referencial de quali-dade arduamente conquistado pelas Ifes, emba-sado no esforço conjunto de seus trabalhadores.

O Fundeb e sua trajetóriaA primeira Proposta Fundeb, que deveria

substituir o atual Fundo de Manutenção e De-senvolvimento do Ensino Fundamental e Valori-zação do Magistério (Fundef) foi apresentadapelo Governo durante a gestão de Tarso Genro àfrente do MEC, sendo a Confederação Nacionaldos Trabalhadores em Educação (CNTE) a inter-locutora e negociadora principal. Após o aval ini-cial da CNTE, o Governo iniciou negociação in-tensa com a União dos Dirigentes Municipais deEducação (Undime) e com o Conselho Nacionalde Secretários Estaduais de Educação (Consed).

O Projeto Final, ainda nessa Gestão do MEC,previa 14 anos de duração para o Fundeb, vin-culando, para esse Fundo, 20%, dos (no mínimo)25% de recursos de impostos, constitucional-mente destinados à Educação por Estados e Mu-nicípios; destes, 60% seriam reservados ao paga-mento de salários dos Profissionais da Educação.No processo final de negociação, as creches fo-

ram “reincluídas” no Fundeb, após a deflagraçãodo “Movimento das Fraldas Pintadas”, realizadosob a liderança da Campanha Nacional de Edu-cação, no Congresso Nacional. A União se com-prometeu, também, a investir no Fundeb, visan-do o financiamento da Educação Básica, o cor-respondente a 10% do total dos recursos gastospor Estados e Municípios com o Fundo; a Edu-cação de Jovens e Adultos (EJA) recebeu o com-promisso do Governo de que teria o mesmo va-lor/aluno que o estabelecido para o ensino fun-damental, uma vez que a condição inicial, pre-vista nos estudos oficiais, era a sua sub-valora-ção, em relação ao ensino fundamental.

Bem recentemente, durante a gestão de Fer-nando Haddad, foi aprovado pelo Senado Fede-ral e pela Câmara Federal, o Projeto do Fundeb(PEC nº 9/2006), constituindo-se na EmendaConstitucional n° 53, de 20 de dezembro de2006, que manteve, fundamentalmente, a PECoriginal, encaminhada pelo Governo, contandocom a aprovação, especialmente, da Undime, doConsed e da CNTE. As novidades mais impor-tantes são o estabelecimento que, em três anos,deverão estar completamente destinados ao Fun-deb os 20% previstos na EC, e, em segundo lu-gar, a alteração do art. 206, da Constituição Fede-ral, item VIII, estabelecendo “piso salarial pro-fissional nacional” para os profissionais da edu-cação escolar pública, nos termos de lei federal.

Surpreendentemente, no entanto, a regula-mentação da referida Emenda foi proposta atra-vés da Medida Provisória n° 339, de 28 de de-zembro de 2006. Os procedimentos para a im-plementação da EC n° 53, ali estabelecidos, re-ferem-se, em especial, à criação de uma Junta deAcompanhamento dos Fundos, com o fim de“especificar anualmente as ponderações aplicá-veis à distribuição proporcional dos recursos”.Essa Junta, que vai definir anualmente os valoresde cada nível ou modalidade de ensino, não pos-sui representante dos Sindicatos ou da sociedadecivil organizada, mas somente do Estado, poisserá composta de um representante do MEC, umdo Consed e um da Undime. Nas disposições re-ferentes aos Conselhos de Controle Social, fica

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 121UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

vedado que o Presidente dos mesmos seja um re-presentante do Executivo.

A referência “um”, na divisão dos recursos doFundeb, entre os vários níveis, como previsto,corresponde às séries iniciais do Ensino Funda-mental urbano, sendo a ponderação entre as de-mais etapas e estabelecimentos de ensino, o resul-tado de um fator específico, fixado entre 0,70 e1,30 (conforme § 2º, do art. 10, da referida MP).

Pelo jeito, não serão fáceis, nem democráticas,as medidas regulamentadoras do Fundeb...

Assim, não realizadas as alterações básicaspara um novo Projeto de Sociedade, mais justae solidária, quais as Perspectivas, neste qua-driênio, frente a esse quadro... se houver pres-são dos movimentos sociais?

O ANDES, e cada um(a) de nós, aí incluídos(as), precisamos, com urgência:

1. Recompor o FÓRUM NACIONAL EMDEFESA DA ESCOLA PÚBLICA, visando a(re)priorização do Público sobre o Privado - emespecial, com o “congelamento” das ParceriasPúblico-Privadas (PPP), a favor do público esta-tal e da sua qualidade e agilidade de atendimento;

2. Batalhar pela remoção (de parte) do entu-lho jurídico-legal privatizante e autoritário, her-dado do Governo FHC I e II: em especial da ECnº 19 e da LRF, condição sine qua non para a re-composição do caráter “público” do Estado;

3. Insistir na necessidade de (re)composiçãode fontes de recursos para a Edu-cação: transformando, por exemplo,a CPMF em “Imposto” e não mais“Contribuição”- um IPMF; exclu-são da Educação da DRU; transfor-mação da divida externa em investi-mento em educação, e tantas outraspropostas já por nós discutidas, emdiferentes Encontros e Seminários;

4. Exigir a revisão dos vetos doGoverno FHC II, aplicados ao Pla-no Nacional de Educação (PNE),visando efetivar (parte) das metas alipropostas e início da preparação do

próximo PNE (2010/2020); 5. Insistir na (re)priorização da Educação In-

fantil, de zero a seis anos de idade, com denúnciada atuação da Unicef, no “incentivo” ao atendi-mento familiar e comunitário da Primeira In-fância, especialmente, nos países “pobres” ou“em desenvolvimento”, como o nosso (sic);

6. Propor a revisão da Lei de Diretrizes e Ba-ses da Educação Nacional, em especial, recupe-rando a proposta de um Sistema Nacional deEducação, em relação à concepção do “SistemaNacional de Avaliação” vigente, e de Gestão De-mocrática de Educação, nas suas diferentes es-feras e envolvendo os diferentes segmentos;

7. Visar à flexibilização do Ensino Fundamen-tal de nove anos, com inicio aos 6 anos de idade,em especial nas Cidades de porte médio e grande,que podem e devem oferecer a educação infantilde seis anos de duração;

8. Batalhar pela recomposição da qualidadedos ensinos médio e técnico, com menos “habili-dades” e mais formação geral;

9. Lutar pela democratização das formas deacesso às Universidades Públicas, com estabele-cimento de parâmetros para os Exames Vestibu-lares, a partir dos conteúdos efetivamente estuda-dos no ensino médio;

10. Exigir acompanhamento e avaliação maisrigorosos e constantes do Ensino Superior Privado;

11. Insistir na revisão dos critérios de avalia-ção de desempenho dos Professores Univer-sitários e da produção acadêmica, valorizando as

atividades do tripé: ensino, pesquisae extensão, com maior equilíbrio en-tre as suas ponderações avaliativas;

12. Investir na possibilidade deatendimento competente e adequadoaos alunos com necessidades edu-cacionais especiais, a partir da açãocombinada das três esferas públicas,e envolvendo os setores da saúde, daassistência social, da cultura e do es-porte, junto à educação escolar;

13. Priorizar a formação inicialconsistente dos Professores das sé-ries iniciais do Ensino Fundamental

122 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Há necessidade de (re)composição

de fontes de recursospara a Educação:

transformando, porexemplo, a CPMF

em “Imposto” e não mais

“Contribuição”- um IPMF.

e da Educação Infantil, que lhes possibilite o co-nhecimento científico das diferentes correntespedagógicas, oferecendo as condições de infor-mação e formação para a rejeição de manuais deorientação pedagógica “terceirizados”;

14. Participar, inclusive na sua organização, deeventos envolvendo lideranças da América Latina,visando a uma reação, coletiva e solidária, aos mo-vimentos de privatização da Educação, incentiva-dos pelos órgãos internacionais de financiamento.

PerspectivasSe conseguirmos estabelecer uma espécie de

“decálogo” das nossas ações para o próximo qua-driênio, com discussão em todos os Fóruns, emtodos os sindicatos, em todas as associações deque fazemos parte, em todas as nossas aulas, comtodos os nossos colegas e amigos - professores,servidores técnicos e administrativos, alunos,pais, vizinhos -, talvez, consigamos estabelecerum patamar comum de reivindicações e de “ne-cessidades sociais”, que nos motive, de novo, anos envolver/propor/organizar movimentos demobilização popular. De dentro das escolas paratodas as ruas, e delas, para todas as escolas...

Se não conseguirmos nos organizar, de ma-neira mais ampla do que estamos fazendo, vere-mos a “democratização da Educação e do EnsinoPúblico”, em todos os níveis, etapas e modalida-des, ser traduzida em cursos rápidos, de conteú-dos simplórios, organizados por “manuais” deestilo “modernoso”, onde a emancipação do alu-no-cidadão será mais uma figura de retórica doque uma disputa, um objetivo ou um compro-misso real e as “bolsas de todos os nomes” se tor-narão, a única (melhor? mais rápida?) alternativade redistribuição de renda e socialização do co-nhecimento.

Sabemos que essa tarefa coletiva não é fácil,mas, assumamos, como provocação, com Char-les Chaplin, que

“(NOSSO) TALENTO É UM TANTOAUSTERO”.

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DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 123UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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O conhecimento científico é útil?

As pessoas vivem ladeadas por informaçõesveiculadas na TV, rádio e internet e isto de-veria estar associado a um sofisticado co-

nhecimento ou maior devoção à ciência. Entre-tanto, o cidadão comum, muitas vezes, se mostrarefratário aos avanços da ciência. O tempo des-pendido diante da TV é maior do que o despen-dido em salas de aula ou na leitura de um livro,fenômeno que resulta num paradoxo: cada vezmais a sociedade é regulada por inovações cientí-ficas e tecnológicas, mas a crescente complexida-de e sofisticação das informações dificultam acompreensão e o discernimento sobre a impor-tância dessas inovações. O fenômeno tem váriasexplicações, mas usualmente é atribuído às difi-culdades de acesso a uma boa formação acadê-mica (i.e., laboratórios desaparelhados, bibliote-cas pobres e desatualizadas, dificuldades de aces-so aos bancos de dados on-line e impressão detextos e assim por diante). Devido ao proselitis-mo ideológico e a uma postura antiintelectual deseus dirigentes, a qualidade do ensino é descui-dada e os professores são pressionados a produ-zirem algo que tenha relevância social ou aplica-bilidade imediata.

Jornais dedicam espaços generosos a eventosesportivos, horóscopos e sinopses de telenovelas,mas poucos exploram os avanços da pesquisa bá-sica e, quando o fazem, mostram o lado pitorescode um fenômeno ou abordam algo “sensacional”para garantir o interesse das pessoas comuns. Poroutro lado, semanários e revistas de divulgaçãocientífica (ou com pretensão a tal, como SuperIn-teressante) e canais de TV a cabo (e.g., DiscoveryChannel e GNT) mostram descobertas científi-cas ou inovações tecnológicas, mas de forma su-perficial e, muitas vezes, inadequada. Uma vezque o interesse é o aumento das vendas ou dosníveis de audiência, as matérias jornalísticas sãoelaboradas de acordo com tais parâmetros, demodo que o resultado, muitas vezes, é uma de-turpação ou supersimplificação da ciência. Osveículos de comunicação mostram experiênciasbem-sucedidas, proporcionam a idéia de que aatividade científica é sempre prazerosa, não ha-vendo espaço para o fracasso, e que nada resisteao poder de uma “mente genial”. Isto não condizcom o mundo competitivo da ciência, tampoucoreflete as dificuldades que os cientistas encon-tram para realizarem novas descobertas nos di-versos campos do conhecimento.

Educação científica e desperdício de talentos

Rogério F. Guerra

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Educação: prioridade nacional?

126 -- DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Os avanços da ciência estão relacionados comaumento da longevidade, melhoria da qualidadede vida e uma nova atitude do homem em relaçãoaos fenômenos da natureza. Os produtos resul-tantes das investigações científicas são variados,mas podemos citar, como exemplos, os medica-mentos e vacinas, fornos de micro-ondas, tomo-grafias computadorizadas e até a “revolução ver-de” que aumentou a oferta de alimento. Leis,teorias e hipóteses são instrumentos utilizadospelos cientistas para explicar o mundo natural,mas não é sempre que o conhecimento científicoresulta num benefício imediato ao cidadão co-mum. Muitas pessoas se mostram maravilhadasdiante das descobertas e apreciam a cinemato-grafia do gênero sci-fi, mas é comum o iletrismocientífico ou a rejeição à busca de novos conhe-cimentos (misto de antiintelectualismo e antici-entificismo).

O contato do cidadão comum com a ciência einovações tecnológicas ocorre desde o nascimen-to (melhor dizendo, ainda no ventre materno ouaté mesmo antes da concepção) até a morte ouum bom período post-mortem, se considerarmosque seu corpo ainda é objeto de interesse cientí-fico (autópsias, remoção de órgãos para trans-plantes ou uso em aulas de anatomia). Com efei-to, as imagens ultra-sonográficas do bebê no ven-tre materno suscitam tranqüilidade às “mães emgestação”; elas se envolvem numa doce fantasia ese vêem embalando nos braços aquela figura ain-da informe. As imagens e os exames laboratoriaispermitem o diagnóstico de doenças ainda na faseintra-uterina, de modo que o feto pode ser sub-metido a uma delicada cirurgia para corrigir, porexemplo, um problema cardíaco. As mães vêemtodo o processo como resultante dos “desígniosde Deus” e não se dão conta de que as imagensdo bebê são uma feliz conjugação entre ciência etecnologia – porventura a gestação não chega abom termo, o fracasso é atribuído diretamente àequipe hospitalar.

O surgimento de uma nova mentalidadeOs avanços das técnicas cirúrgicas permitem

que pacientes “desenganados” sejam beneficia-

dos com transplantes de órgãos e tecidos extraí-dos de cadáveres ou até mesmo de animais (xeno-transplantes). Transplantes de coração ou de cór-neas atualmente são eventos corriqueiros, masem outros tempos os médicos tinham que recor-rer aos ladrões de cadáveres para realizarem in-vestigações sobre o corpo humano. William Bur-ke e William Hare, dois irlandeses que viviam emEdimburgo (Escócia), nas primeiras décadas doséculo XIX, ganharam notoriedade neste ramode atividade e garantiram o suprimento de cadá-veres ao Dr. Robert Knox, o mais conhecidoprofessor de anatomia de sua época. Quando omodus operandi da dupla foi revelado, as vio-lações de sepulturas geraram forte comoção po-pular e foram parar nos tribunais: Burke foi en-forcado diante de uma multidão extasiada (28 dejaneiro de 1829), Hare escapuliu da justiça, masmorreu na mendicância, e o Dr. Knox perdeu oemprego na universidade e passou a ganhar o seusustento como showman num circo de horrores.O episódio deu origem ao Anatomy Act (1829),instrumento legal que garantiu o suprimento le-gal de cadáveres de indigentes para investigaçõescientíficas nas universidades, mas os ladrões decorpos também inspiraram escritores, como Ed-gar Allan Poe (Premature burial, 1850), CharlesDickens (A tale of two cities, 1859) e RobertLouis Stevenson (The body-snatcher, 1884).Monteiro Lobato também bebeu nessa fontequando escrevera o conto Bocatorta (parte inte-grante da coletânea Urupês, 1918).

Os avanços da ciência proporcionam confor-to, mas também impõem novos desafios éticos,morais e legais, principalmente quando dizemrespeito aos fenômenos relacionados com a vidahumana. Antes do surgimento das técnicas demensuração da vida fetal, o bebê adquiria o statusde ser humano completo somente após o nasci-mento – melhor dizendo, após a secção do cor-dão umbilical. A interrupção da gravidez, volun-tária ou involuntariamente (ocasionada por be-beragens ou algum acidente doméstico, porexemplo), não suscitava problema algum deconsciência. Entretanto, os avanços da embriolo-gia e o surgimento dos microscópios mostraram

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 127

os diversos estágios de desenvolvi-mento do feto e as imagens do bebê,no ventre materno, contribuírampara o fortalecimento de um dogmacatólico, aquele que informa aos fiéisque a vida humana tem início noexato momento da fecundação. Nes-se contexto, a ciência contribuiu pa-ra uma atitude mais conservadoraem relação aos abortos.

Um outro problema ético e legaldiz respeito a algumas técnicas de in-seminação in vitro e as chamadas“mães de aluguel”. No primeiro ca-so, os médicos extraem o materialbiológico de casais que não conse-guem ter filhos de modo natural,mas logo devolve à mulher o óvulofecundado. Em certas circunstâncias,eles devem descartar o material exce-dente (i.e., óvulos fecundados), demodo que, para alguns, o procedi-mento equivale a um feticídio, consi-derando que a vida se inicia no mo-mento da fecundação. No caso dasmulheres que emprestam seus úterospara a gestação de um bebê de outramulher (“mães de aluguel”), surgeum problema legal: o bebê pertence àmulher que o partejou ou pertenceaos indivíduos que emprestaram o material bio-lógico?

A rejeição aos avanços do conhecimento cien-tífico significa, em certas circunstâncias, umapostura anticlerical. Com efeito, judeus e cristãosnão vêem obstáculos morais para o uso de ani-mais na experimentação científica, pois o livro doGênesis esclarece que estes foram criados para onosso usufruto. Uma vez que as investigações ci-entíficas trazem benefícios inquestionáveis ao serhumano, a rejeição ao uso de animais em tais em-preendimentos traz dois problemas à alma docristão: a recusa em fazer uso de um “presente deDeus” e a equiparação indevida de homens e ani-mais, como se estes tivessem o mesmo status di-ante do Criador ou que fossem feitos do mesmo

material (levando em conta o queestá escrito no Velho Testamento,não o que conhecemos a respeito daorigem das espécies, é claro).

Autoridades religiosas podematuar como aliadas da ciência, comoocorreu recentemente à respeitodos xenotransplantes (i.e., trans-plantes de células, tecidos e órgãosde um animal para o ser humano).Os médicos tinham sérias dúvidassobre violações de dogmas religio-sos, pois o corpo de uma pessoa quecarrega um órgão xenotransplan-tado não é, digamos assim, 100%humano. O alimento de origem ani-mal serve para alimentar nossos ór-gãos, mas logo é eliminado, diferen-temente de uma válvula cardíaca ex-traída de um porco que passa a fazerparte da nossa anatomia. Inespera-damente, o Vaticano lançou um do-cumento clarificando que tais pro-cedimentos não interferem na parteessencial do homem (a alma) e, por-tanto, podem ser realizados. Os ca-tólicos também foram tranqüiliza-dos sobre o aspecto moral das pes-quisas com animais transgênicos elhes foi informado sobre a irrele-

vância de saber se o material xenotransplantado éoriundo de um porco ou de um chimpanzé (Na-ture, 4 de outubro de 2001).

Produção de talentos: brain is moneyInovações científicas e tecnológicas influen-

ciaram o cotidiano da vida moderna, como atransmissão de informações por fibra ótica, a te-lefonia celular ou os transplantes de órgãos e ostestes de DNA, os quais ganharam popularidadecom o extinto programa de TV do apresentadorRatinho (veiculado no canal SBT). Muitas ino-vações e descobertas importantes ocorreram noambiente universitário, local onde vicejam a li-berdade acadêmica, o espírito crítico e a valori-zação da competência. Algumas empresas multi-

Os avanços daembriologia e osurgimento dos

microscópiosmostraram os

diversos estágios dedesenvolvimento dofeto e as imagens do

bebê, no ventrematerno,

contribuíram para ofortalecimento de um

dogma católico,aquele que informaaos fiéis que a vida

humana tem início noexato momento dafecundação. Nessecontexto, a ciência

contribuiu para umaatitude mais

conservadora emrelação aos abortos.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE128 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

nacionais remuneram bem seus pesquisadores elhes proporcionam o conforto que simula o am-biente de uma universidade. Elas competem entresi por talentos acadêmicos e algumas chegam a terem seus quadros cientistas laureados com o Prê-mio Nobel. Elas agem desse modo porque sãomovidas por um espírito benemerente? É claroque não. Como veremos a seguir, a pujança eco-nômica de um país pode ser explicada em funçãoda valorização do conhecimento científico etecnológico.

Os Estados Unidos é um país importador decérebros e talentos, desde atletas, intelectuais atécientistas e engenheiros (ALTSCHULD, 2003;BOSCH, 2003). A migração de talentos foi mar-cante ao longo do século XX, mas aumentousubstancialmente no final da II Guerra Mundial.EUA e a ex-URSS, as duas superpotências quesaíram vitoriosas na luta contra as tropas do Eixo(Alemanha, Japão e Itália), passaram a competirpela captura de um valioso despojo de guerra:técnicos e cientistas notáveis. A corrida antece-deu o início de um período de grande tensão(Guerra Fria), mas os EUA novamente saíram vi-toriosos da disputa, pois o mundo havia passadopor uma notável transformação e a força de umpaís agora estava assentada na capacidade cientí-fica e tecnológica. Os EUA já detinham um for-midável poder bélico, resultante da capacidadeinovadora de seus técnicos e cientistas, mas essepoder aumentou substancialmente no pós-guer-ra. Dois projetos secretos contribuíram para asupremacia do país.

A Operação Paperclip foi o nome dado a umempreendimento militar que ocorreu no final daII Guerra Mundial (HUNT, 1991). A expressãoé uma alusão ao procedimento adotado pelos mi-litares para identificar, nos arquivos (um clipe depapel nos prontuários), os cientistas e técnicos daAlemanha que poderiam ser úteis aos EUA noesforço pós-guerra. O alvo eram as pessoas quedetinham conhecimentos estratégicos em arma-mentos (mísseis e foguetes balísticos), guerrabacteriológica ou tecnologia industrial. A opera-ção foi deflagrada logo após a rendição da Ale-manha e estava diretamente subordinada ao gabi-

nete do presidente Harry S. Truman (1884-1972;administração 1945-53). Este detalhe é reveladorda importância que os estrategistas militares da-vam ao conhecimento acumulado pelos técnicose cientistas alemães.

O serviço de inteligência - Joint IntelligenceObjectives Agency (JIOA) elaborou uma lista decientistas e técnicos (engenheiros e médicos). Aintenção inicial era a realização de interrogató-rios detalhados nos EUA, mas logo as autorida-des perceberam que seria um “desperdício de ta-lento” enviá-los de volta à Alemanha, ao final dasinvestigações. Entretanto, a concessão de vistosde residência esbarrava em sérios problemas jurí-dicos, pois o Departamento de Estado notara queo contingente era majoritariamente compostopor nazistas ardorosos e indivíduos que haviamcometido algum tipo de crime de guerra. O dire-tor da JIOA contra-argumentou, alegando queos cientistas e técnicos poderiam contribuir nosesforços de reconstrução dos EUA, o que ate-nuaria, de algum modo, a culpabilidade pelos cri-mes cometidos, e, mais importante, o país pode-ria perder o fabuloso tesouro intelectual para aURSS. De fato, os soviéticos também tinham in-teresse no espólio intelectual dos nazistas, poiscriaram um instituto de tecnologia na parte daAlemanha Oriental (junho de 1945). Logo os ale-mães foram transferidos para a URSS (novembrode 1947), dando origem a um vigoroso programapara desenvolvimento de mísseis balísticos e ex-ploração espacial.

A inteligência militar efetuou uma “limpeza”nos arquivos, de forma que centenas de cientistase técnicos (aproximadamente 760, em 1955) nãoencontraram dificuldades para a obtenção dovisto de residente permanente nos EUA; dentre omontante, muitos ganharam papel de destaque nacomunidade científica local. O empreendimentofoi mantido em segredo, pois constituía uma vio-lação aos mecanismos legais e à própria recomen-dação presidencial para que nazistas convictosnão encontrassem abrigo em solo estadunidense– na Conferência de Potsdam (17 de julho a 2 deagosto de 1945), Truman alegara aos demais líde-res que os EUA não estavam envolvidos em tais

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Educação: prioridade nacional?

atividades, mas os soviéticos não acreditaram e asdesconfianças alimentaram a Guerra Fria.

Um dos troféus mais valiosos da Operação Pa-perclip foi Wernher von Braun (1912-77), joveme brilhante cientista do regime nazista. Ele foi umdos pioneiros no uso de combustível líquido emfoguetes e desempenhou papel fundamental nacriação dos terríveis foguetes V-1 e V-2 (“máqui-na da vingança”), que tantos estragos causaramem Londres. Por volta de 1936, von Braun se de-sentendera com Heinrich Himmler, o chefe dapolícia secreta nazista, mas foi libertado da prisãograças à intervenção direta de Adolf Hitler. Aofinal da guerra, ele se rende às tropas dos EUA eacaba se fixando definitivamente nos EUA, ondeganha o status de herói por suas contribuições àsatividades aeroespaciais. Os problemas legais coma migração foram contornados com adulteraçãoou simples omissão de informações; os arquivospermanecem em segredo até os dias atuais.

A Operação Paperclip permitiu avanços na ex-ploração aeroespacial e a criação da NASA (Na-tional Aeronautics and Space Administration),assim como permitiu a implantação do Programade Mísseis Balísticos Intercontinentais (Intercon-tinental Ballistic Missile Program, ICBM). Entre-tanto, o leitor inteligente poderia ver duas obje-ções morais no processo de “purgação de culpa”à qual os antigos colaboradores do regime nazis-ta foram submetidos. Em primeiro lugar, o pro-cesso deveria beneficiar os países que mais sofre-ram com as atrocidades da guerra – os EUA en-traram tardiamente na luta contra as tropas doEixo e, em termos comparativos, não sofreramtanto as atrocidades da guerra – lembremos o ho-locausto judeu e as duas bombas atômicas queforam despejadas sobre o Japão. Em segundo lu-gar, o espólio intelectual dos nazistas deveria serutilizado para fins pacifistas, mas alimentou acorrida armamentista e contribuiu para a supre-macia dos EUA no cenário mundial.

Operação Alsos foi o nome dado ao esforçoconcentrado pelos EUA e Grã-Bretanha na cap-tura de cientistas e técnicos alemães que deti-nham conhecimentos de física nuclear. Also noidioma grego é equivalente à “luva”, uma home-

nagem ao General Leslie M. Groves (groves noidioma inglês significa “luvas”), o diretor do Pro-jeto Manhattam. Enquanto a Operação Paperclipvisava especificamente à posse do conhecimentocientífico e tecnológico no campo da balística(mísseis e foguetes intercontinentais), a Opera-ção Alsos tinha como preocupação o monopólioda construção de artefatos nucleares. No final daguerra, os EUA e o seu principal aliado, a Grã-Bretanha, perceberam que tinham que agir rápi-do, pois havia o risco de que o domínio tecnoló-gico pudesse cair nas mãos dos soviéticos. Entre-tanto, logo ficou evidente que os EUA estavammais avançados em física nuclear que a Alema-nha, mas isto não impediu que fossem captura-dos cientistas notáveis daquele país, como Wer-ner K. Heisenberg (1901-76, Prêmio Nobel emFísica/1932), Otto Hahn (1879-1968, PrêmioNobel em Química/1944) e Carl Friedrich vonWeizsäcker (1912- ); eles foram aprisionados porvários meses em Farm Hall (Inglaterra) para in-terrogatórios, mas logo foram libertados. Muitosequipamentos foram enviados para os EUA, poistambém havia a preocupação de que o materialfosse confiscado pela URSS (HUNT, 1991;JUDT & CIESLA, 1996).

O cenário brasileiro: “cães perseguindo carros”

Operação Paperclip, as “luvas do general” eGuerra Fria? Que lições podemos extrair doenorme apetite dos EUA pelo conhecimento ci-entífico e tecnológico? Em primeiro lugar, amente talentosa é um bem inestimável, muitomais valioso que as reservas cambiais de um país.A Alemanha e o Japão foram destroçados duran-te a II Guerra Mundial, mas, graças à operosi-dade e capacidade intelectual de suas populações,os dois se soergueram e atingiram notável pro-gresso com o tempo. Benjamin Franklyn (1706-90) é o autor de uma conhecida expressão: Timeis money (“Tempo é dinheiro”). Se ele fosse vivo,talvez a frase fosse outra: Brain is money (“Cé-rebro é dinheiro”). Em segundo lugar, é impor-tante que a nação valorize seus filhos talentososatravés de programas eficientes, desde o ensino

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE130 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

fundamental até o universitário.A riqueza de um país se mede pela capacidade

intelectual de seu povo, algo que não é tão sub-jetivo como se pensa. Com efeito, são indicado-res seguros desse fator o número de patentes, otamanho da comunidade científica (número dedoutores ou de pessoas laureadas com o PrêmioNobel, por exemplo) ou facilidade de acesso aoensino superior. Por muito tempo persistiu aidéia de que a riqueza de uma nação estava estri-tamente subordinada ao tamanho de seu territó-rio e de suas riquezas minerais. Isto é parcial-mente verdadeiro (ou parcialmente falso) comopode ser percebido a partir de um novo paradig-ma adotado por países de dimensões continen-tais, como a China e Índia, os quais adotam estra-tégias para minimizar o atraso cientifico e tecno-lógico.

Alguns países do Oriente Médio possuem re-servas colossais de petróleo, mas a enorme ri-queza não é traduzida em bem-estar e desenvol-vimento. Fenômeno curioso ocorre com as nos-sas exportações de commodities, como foi abor-dado numa interessante matéria jornalística(Veja, 15 de novembro de 2006). Com efeito, foiapontado que nós somos o maior produtor decafé desde o século XVIII, mas os maiores expor-tadores de café processado são a Alemanha e aItália, países que não produzem o cobiçado pro-duto. Eles compram os melhores grãos, dão-lhessuas marcas e revendem com lucros extraordiná-rios o café processado para o restante do mundo.A exportação de commodities traz lucro ao paísprodutor, mas os lucros são maiores quando al-guma tecnologia é agregada ao produto.

O número de doutores tem aumentado com otempo, mas a possibilidade de emprego nas uni-versidades públicas e privadas é reduzida, devidoà inexistência de concursos ou razões orçamentá-rias. Por seu turno, as empresas brasileiras aindanão despertaram para a importância da pesquisacientífica e tecnológica, diferentemente do queocorre nos países desenvolvidos. O desempregode um jovem doutor é algo lastimável sob todosos aspectos, de forma que não basta simplesmen-te aumentar o contingente de doutores, mas é

fundamental a criação de mecanismos para fixá-los no mercado de trabalho. A situação do Brasilnesse aspecto se assemelha à corrida de um cãoque corre tenazmente em perseguição a um carroem movimento – quando o alcança, ele não sabeo que fazer. O que faz um recém-doutor para en-frentar o desemprego? Muitas vezes, ele ingressanum programa de pós-doutoramento no exteriore nunca mais retorna ao país.

A evasão de talentos beneficia diretamente osEUA e alguns países ricos da Europa e, é claro,prejudica enormemente os países periféricos.Problema semelhante ocorre com a Argentina,nosso vizinho. Com efeito, uma análise mostrouque aquele país mantém cerca de dois milhões deestudantes matriculados em instituições de ensi-no no exterior (80% do montante nos EUA e Eu-ropa). Duas décadas atrás, este número era estima-do em 800 mil e estima-se que atingirá 7 milhõespor volta do ano 2025. Isto é ainda mais desalen-tador, pois uma boa parcela (43%) dos estudantesde doutoramento e pós-doutoramento não retornaà Argentina após a conclusão de seus estudos (Jor-nal da Ciência, 13 de novembro de 2006).

Este tipo de análise também ressalta algo quejá sabemos: os EUA são um país inovador e com-petitivo em diversos setores do conhecimento,graças ao baixo custo de importação de talentos.Outros estudos revelam que até a desenvolvidaGrã-Bretanha exporta seus talentos para osEUA, pois este país se mostra incapaz de produ-zir o número suficiente de técnicos e cientistaspara a manutenção de seu poderio econômico(ALTSCHULD, 2003; BOSCH, 2003). A Organi-zação para Cooperação e Desenvolvimento Eco-nômico (OCDE) estima que cerca de 25% das em-presas criadas no Vale do Silício são capitaneadaspor profissionais oriundos da China e Índia – elascriaram cerca de 52 mil empregos e proporciona-ram aos EUA um lucro estimado de US$ 17 bilhões(SCHMITT & SOUBEYRAN, 2006).

Vários scholars reconhecem que o Brasil é umgrande exportador de talentos, desde jogadoresde futebol até a inteligência acadêmica excepcio-nal. A evasão de cérebros foi detectada há muitotempo (DE AZEVEDO, 1968), mas o problema

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Educação: prioridade nacional?

só tem aumentado com o tempo. Opaís não é atraente aos jovens pes-quisadores devido ao ethos acadêmi-co: a burocracia institucional “en-gessa” a mente criadora, impedindoas inovações. As universidades pú-blicas estão desaparelhadas e “cain-do aos pedaços” e a remuneraçãodos professores vem decaindo como tempo, fenômeno que ocorre des-de o ensino fundamental até o supe-rior. Os jovens anseiam por ambien-tes mais adequados para a realizaçãode seus ideais, de forma que umaforça gravitacional os atrai para paí-ses mais acolhedores. A nossa inteli-gência acaba migrando no ápice desua capacidade produtiva e o fenô-meno revela algo trágico: os paísesmais pobres alimentam o desenvolvimento dosmais ricos, pois cedem seus tesouros mais ines-timáveis (i.e., os ricos se tornam mais ricos e ospobres, ainda mais pobres).

O ethos acadêmicoA estrutura universitária é “amarrada”, exces-

sivamente formal e valoriza muito os títulos aca-dêmicos, não as habilidades intrínsecas. O apegoà grade curricular dos cursos de graduação beiraà compulsão. Um aluno que solicita a transferên-cia para uma instituição também terá grandes di-ficuldades para validar seus créditos, mesmo sen-do oriundo de uma instituição idônea e de pres-tígio. Uma vez que as disciplinas não são as mes-mas ou tenham nomes diferentes, ele acaba fican-do para trás no curso de graduação; a frustraçãoé grande e o aluno pode ser induzido a abando-nar o curso de graduação. A burocratização é umsintoma da fragilidade institucional, pois seus di-rigentes não são movidos para contemplar as ne-cessidades individuais dos alunos, mesmo diantede motivos racionais, e confundem maleabilidadegerencial com laissez-faire.

Desperdício de energia intelectual ocorre nomomento em que o jovem compete por uma va-ga num curso universitário. Alguns desses cursos

exibem uma grande proporção decandidatos por vaga, tal como ocor-re com as carreiras tradicionalmentevalorizadas pela sociedade ou comos cursos que exigem investimentoinstitucional (i.e., compra de equi-pamentos e montagem de laborató-rios, como os cursos de EngenhariaMecânica e Medicina). Muitos alu-nos inteligentes e dotados de boaformação intelectual não atingem apontuação mínima e, portanto, nãoconseguem acesso aos bancos uni-versitários. Eles devem esperar umanova chance ou optam por outroscursos, algo que suscita uma enormefrustração no candidato e em seusfamiliares. Por outro lado, dentreaqueles que conseguem a tão deseja-

da vaga, alguns não completam o curso ou a pon-tuação atingida não é traduzida num bom de-sempenho acadêmico, pois muitos alunos in-gressam na universidade sem conhecerem a na-tureza do curso que escolheram. As instituiçõesnão facilitam as mudanças de curso, de formaque os alunos insatisfeitos devem prestar um no-vo vestibular para ingressar num novo curso.Perde-se tempo e energia e os investimentos ins-titucionais vão para o ralo.

As universidades gostam de apregoar a valori-zação da pesquisa, mas o que realmente ocorrenão é isso. Um recém-doutor que pleiteia umavaga de professor numa instituição federal de en-sino é logo eliminado da disputa, se porventurasofrer de alguma deficiência na expressão verbal.Usualmente, o processo seletivo abrange provasde títulos e uma aula ministrada diante de umabanca examinadora – como as duas provas têmpeso equivalente, um candidato brilhante podeperder a vaga para outro mais loquaz, emboracom baixo potencial para a carreira científica.Um outro problema diz respeito ao curso de gra-duação e à área em que o candidato obteve o tí-tulo de mestre ou doutor. Se a banca examina-dora entende que existe uma incompatibilidadenos títulos, o pobre-coitado terá multiplicado as

O desemprego de umjovem doutor é algolastimável sob todos

os aspectos, de formaque não bastasimplesmenteaumentar o

contingente dedoutores, mas éfundamental a

criação demecanismos para

fixá-los no mercadode trabalho.

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Educação: prioridade nacional?

suas dificuldades para iniciar uma carreira comoprofessor numa universidade.

Um exemplo esclarece melhor isto: se porven-tura um recém-formado em medicina ingressanum programa de pós-graduação em história, vi-sando satisfazer o desejo de enveredar pela his-tória da medicina, ele não terá dificuldades paraencontrar um programa e um orientador que oaceite como aluno. Entretanto, no momento emque ele realiza um concurso para ingressar nacarreira acadêmica, a sua carreira pode ser preju-dicada devido ao espírito obtuso dos membrosda banca examinadora – o depar-tamento de medicina barra-lhe asportas alegando que a sua pós-gra-duação não condiz com a sua for-mação inicial e, por sua vez, o de his-tória alega que o pobre-coitado não éum historiador por formação. A plu-ralidade acadêmica deveria ser esti-mulada, mas a mediocridade entendeque ela é um defeito.

Professores universitários geralmente são vis-tos como habitantes de uma torre de marfim, al-go que não é totalmente desprovido de sentido.O cidadão comum é movido por uma percepçãoutilitarista a respeito do conhecimento científico,pois indaga: “qual é a utilidade disso?” ou “Paraque serve isto?” A busca pelo conhecimento útilo afasta do pensamento reflexivo e isto explicauma expressão popular terrível: “Quem sabe,faz. Quem não sabe, ensina”. Muitas vezes, ele sóvaloriza o conhecimento científico no momentoem que algum familiar é acometido de uma graveenfermidade, ocasião em que ele exibe um inte-resse inusitado por novos fármacos ou procedi-mentos cirúrgicos. O abalo emocional acentua apercepção utilitarista, de modo que a pessoa põede lado certas objeções, como o uso de animaisna pesquisa experimental, e repudia o baixo in-vestimento governamental em ciência e tecnolo-gia. Este tipo de atitude não é de toda ruim e fazparte das idiossincrasias do gênero humano.

Os alunos se preocupam com a relevância dasdisciplinas para a sua futura vida profissional, es-peram que o curso seja mais “prático” que “teó-

rico” e que as aulas sejam “interessantes”. Estu-dam somente os temas de que mais gostam, o queexplica as dificuldades que os professores têmpara ministrar aulas de estatística, fisiologia oulógica da experimentação científica. Nesse con-texto, o ensino se torna superficial e os professo-res de instituições privadas realizam, para nãoperderem o emprego, verdadeiro malabarismopara entreter seus alunos. É normal que os pro-fessores utilizem certa dose de humor para remo-ver a modorra numa sala de aula, mas o exageropode transformar as aulas num show circense. A

formação acadêmica não deve serdescuidada, pois o desapego à ciênciae o antiintelectualismo facilmenteafloram num cenário desse tipo.

Pragmatismo econômico e “suavefracasso”

O Brasil é o “país do futuro” des-de o ufanismo hiperbólico de Stefan

Zweig (1881-1942), judeu austríaco que migrarapara o nosso país (1940) para fugir das atroci-dades da II Guerra Mundial. Ele vivera os doisúltimos anos de sua vida em Petrópolis/RJ e ti-vera tempo de escrever suas impressões sobre oBrasil, antes de cometer suicídio com a segundaesposa. Zweig é autor de Brasil, país do futuro(1940), obra que iludiu muitos e serviu para ali-mentar a propaganda nacionalista de GetúlioVargas (1883-1954, administração 1939-1945).Ele havia fugido, às pressas, do nazismo e acaba-ra se deparando com uma terra completamentediferente de sua fria e cinzenta terra natal. OBrasil foi descrito como uma terra paradisíaca,local onde os homens viviam em harmonia coma natureza exuberante, sem tocá-la. O calor in-tenso, a bonomia dos brasileiros e a beleza dasflorestas permitiam antever um esplendorosofuturo. O ufanismo de Zweig foi criticado poralguns intelectuais e até hoje persiste a suspeitade que suas palavras ternas e gentis serviram debarganha para um visto de residência, afinal con-cedido por Vargas. O livro é ruim sob vários as-pectos e, não obstante, o azedume, quase sete dé-cadas transcorridas desde a sua publicação é tem-

A pluralidadeacadêmica deveria

ser estimulada, masa mediocridade

entende que ela éum defeito.

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Educação: prioridade nacional?

po suficiente para o surgimento do suposto futu-ro alvissareiro do Brasil.

A expressão “suave fracasso” foi criada peloembaixador Rubens Ricupero para designar aperda de competitividade do Brasil em relação aomundo. Em certas circunstâncias, o país exibeuma melhora em seus indicadores sociais, masuma comparação com o grau de evolução dos de-mais países do mundo mostra um efeito que es-capa aos olhos da população: o nosso atraso éconsiderável e, com efeito, ele vem aumentadocom o tempo. O “suave fracasso” pode ser cons-tatado a partir da análise de dois parâmetros con-fiáveis: o Índice de Desenvolvimento Humano(IDH, relatório da Organização das Nações Uni-das), e o Programme for International StudentAssessment (Pisa, relatório da Organização para aCooperação e Desenvolvimento Econômico).Os dois parâmetros merecem uma análise maisatenta, pois direta ou indiretamente estão relacio-nados com o investimento governamental emeducação.

Por mais que o governo atual alardeie umapreocupação com o bem-estar social, o IDH doBrasil piorou se compararmos com a performan-ce dos demais países. Em termos globais, nósocupamos o nada honroso 69º lugar, entre 177países analisados pelos técnicos da ONU. Umavez que a pontuação se refere aos dois últimosanos, a pontuação geral obtida, no ano 2003, foi0,788 (68º lugar). Houve alguma melhora no ano2004, pois a pontuação subiu para 0,792, mas de-caímos na posição comparativa (69º lugar) de-vido ao fato de que o mundo progrediu numa ve-locidade maior. Os especialistas são unânimes emreconhecer que o Brasil precisa investir mais re-cursos em educação e saúde para encontrar o ru-mo do pleno desenvolvimento social.

O Pisa é outro parâmetro confiável e tambémpermite uma análise comparativa. Ele mede a ca-pacidade de leitura (compreensão e interpretaçãode textos, documentos, listas, gráficos e diagra-mas), habilidades matemáticas (competência emvários níveis, como o domínio das quatro opera-ções, álgebra e geometria ou realização de cálcu-los probabilísticos e raciocínio quantitativo) e

conhecimento científico (domínio dos conceitoscientíficos nas áreas da saúde, meio ambiente,tecnologia e processos biológicos, compreensãode textos e de evidências científicas, assim comoo raciocínio dedutivo). Alunos secundaristas de32 países foram submetidos aos testes e, nova-mente, a nossa performance oscilou entre as úl-timas posições ao longo do tempo.

O número de patentes ou de cientistas notá-veis também revela o vigor científico e tecnológi-co de um país. Nesse sentido, parece que há algode errado com o Brasil, se comparamos a nossapopulação com a da Argentina, país vizinho quejá teve alguns de seus filhos contemplados com oPrêmio Nobel em ciências. Com efeito, lembra-mos Bernardo Houssay (Fisiologia ou Medicina,1947), Luis Leloir (Química, 1970) e César Mils-tein (Fisiologia ou Medicina, 1984), sem contaros dois cidadãos que foram laureados com o Prê-mio Nobel da Paz: Carlos Saavedra Lamas (1936)e Adolfo Pérez Esquivel (1980). Infelizmente,nenhum brasileiro colocou as mãos na láurea,mas alguns chegaram perto, como Carlos Chagas(imortalizado com o epônimo “Doença de Cha-gas”) e Jayme Tiomno, físico que estudara estru-turas subatômicas.

Até no terreno da religiosidade nós ficamos pa-ra trás, pois o maior país católico ainda não teveum filho 100% brasileiro que fosse alçado ao pan-teão da santidade – a valorosa Madre Paulina (queDeus a tenha!) despendeu a maior parte de sua vidaem Santa Catarina, mas nasceu na Itália. Outracuriosidade: Sir Peter Brian Medawar (1915-87;Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina) nasceue viveu boa parte da meninice em Petrópolis/RJ,mas foi registrado na Embaixada Britânica. Ao re-lembrar a infância no Brasil (Memoirs of a thinkingradish, 1986), o notável imunologista relata queapreciava a comida brasileira, especialmente ofeizão que nunca faltava nos pratos, e chegara a teralgum interesse pelos negócios que o irmão maisvelho tinha na cidade de Gubernador Valdares.Medawar chega a ser pungente quando discorresobre a paisagem e o clima do Brasil, mas o senti-mentalismo não foi suficiente para oferecer umavisão mais favorável a respeito dos brasileiros e

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Educação: prioridade nacional?

tampouco contribuiu para preservar os rudi-mentos do idioma português.

Verifobia, tecnofobia e iletrismo científicoAs universidades estão cada vez mais preo-

cupadas com a adaptação dos currículos às neces-sidades do mercado de trabalho, fenômeno querevela enormes transformações. Antes, elas eramo local adequado para o desenvolvimento da pes-quisa básica e tecnológica e tinham os olhos vol-tados para o futuro, mas, hoje, a vanguarda é o“mercado de trabalho” (GUERRA, 2005). É ra-zoável a preocupação com as necessidades domercado de trabalho e mudanças na sociedade,mas as universidades são o celeiro da inteligênciae a formação acadêmica não deve ser descuidada.Dentro desse novo paradigma, seria inimaginávelgastar energia, talentos e recursos consideráveisna investigação da estrutura molecular do DNA,descoberta fantástica que até hoje nos espantacom a sua aplicabilidade. Pesquisas com células-troncos também deveriam ser postas de lado,pois o conhecimento se encontra ainda em faseexperimental e apenas prenunciamos o seu enor-me poder terapêutico.

O anticientificismo está relacionado com a ve-rifobia (verus, algo real ou verdadeiro + phobus,ação de horrorizar, dar medo). Trata-se de umaexpressão que é utilizada para designar o temordiante da verdade. A palavra não consta dos mo-dernos dicionários, mas foi bastante discutidanum texto de Bailey (2001). A verifobia conflitacom a atividade científica, pois esta se baseia nabusca contínua de conhecimentos e explicaçõespara fenômenos naturais. Por outro lado, o ile-trismo científico é um conceito genérico que éutilizado para explicar o baixo discernimento oufluência do cidadão comum a respeito dos enun-ciados científicos. Ele é resultante das dificuldadesde acesso ao ensino de boa qualidade e da crescen-te complexidade do conhecimento científico.

O iletrismo científico é comumente associadoàs dificuldade de acesso ou deficiências no siste-ma de ensino, mas é inadequado imaginar que es-tes sejam os únicos fatores causais. Com efeito, oiletrismo pode ser resultante da verifobia, pois a

rejeição ao conhecimento científico impede que apessoa abra os olhos e contemple os avanços daciência. Quanto mais nos distanciamos do co-nhecimento científico, mais nos tornamos volun-tariamente ignorantes de novas descobertas nosdiversos campos da atividade científica. Dessaforma, uma postura anticientífica, verifóbica outecnofóbica não revela uma mente desaparelhadade habilidades cognitivas ou alguma deficiênciaintelectual. Ao contrário, pessoas que lêem asprevisões astrológicas (horóscopos) ou fazem re-gressões às vidas passadas, muitas vezes, exibemboa formação acadêmica e reconhecem as con-quistas da ciência, mas cultivam uma visão filosó-fica acerca da vida que conflita com a atividadecientífica.

Uma parcela importante da população exibeuma rejeição ao uso de animais nas investigaçõescientífica ou ensino (e.g., aulas práticas sobre téc-nicas cirúrgicas, efeitos farmacológicos ou psi-cologia experimental). Também ocorre uma re-jeição ao pensamento reducionista e mecanicista,métodos quantitativos, lógica e filosofia da ciên-cia. Por outro lado, cidadãos inteligentes exibemcerta simpatia pela pseudociência, representadapela parapsicologia, criacionismo científico,design inteligente, programação neurolingüística,cirurgias mediúnicas e regressões às vidas passa-das. O conhecimento científico e tecnológico écumulativo, de forma que a geração atual é amaior beneficiaria da epopéia humana em buscada compreensão e domínio das forças da nature-za. Entretanto, é ela que se mostra mais preo-cupada em estabelecer os limites da atividade ci-entífica. O paradoxo é alimentado pelos filmesapocalípticos de Hollywood (e.g., Laranja Me-cânica ou Blade Runner), mas é ingenuidade ima-ginar que possamos interromper a busca por no-vos conhecimentos ou que possamos nos conten-tar com o atual nível de conhecimento que dispo-mos sobre a natureza.

Conclusão: qual é o nosso futuro?O Brasil é, infelizmente, um grande desperdi-

çador de energia intelectual e o descaso governa-mental, nesse quesito, é alarmante. Com efeito,

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nós somos um país exportador de talentos e nãodispomos de uma política bem definida que valo-rize a carreira acadêmica. Devido à globalizaçãoe ao maior fluxo de informações, o nosso cotidia-no está se tornando cada vez mais complexo, algoque, por si só, já justifica uma educação mais so-fisticada. Por outro lado, potências econômicasvalorizam a competência técnica e científica e asautoridades se mostram atentas à qualidade dosistema educacional; EUA e alguns países da Eu-ropa recorrem às importações de talentos parasuprir suas necessidades.

A relação entre ciência e tecnologia é muitopróxima, de modo que uma descoberta experi-mental pode resultar num medicamento de gran-de valor terapêutico ou uma inovação tecnológi-ca de grande valor comercial (e.g., TV digital,fornos de micro-ondas ou veículos mais econô-micos). Empresas de grande porte reconhecem ovalor do conhecimento, pois remuneram adequa-damente e oferecem aos seus técnicos e cientistascertas condições que simulam o ambiente univer-sitário (i.e., horários flexíveis, liberdade de criaçãoe valorização da competência).

O que ocorre com a educação no Brasil? Algoterrível, pois nós nos deparamos com prédios“caindo aos pedaços”, professores desmotivadospela queda nos rendimentos, proselitismo ideo-lógico dos dirigentes e estrutura administrativaexcessivamente emperrada. Tais problemas sãoantigos, mas eles foram acentuados a partir daadoção, nos últimos anos, de estratégias econô-micas de curto prazo: o governo exibe umaobsessão por superávits fiscais ou “enxugamen-tos” da máquina administrativa, mas não leva emconsideração o impacto negativo de tais procedi-mentos sobre a formação de futuros cidadãos –diferentemente de outros países que avançaramrumo ao desenvolvimento pleno, devido aos in-vestimentos em educação. De modo geral, a si-tuação é pouco alvissareira e, tudo indica, tende ase agravar com o tempo.

É necessário um salto qualitativo para quepossamos atenuar o enorme atraso no sistemaeducacional brasileiro. Nesse sentido, a expres-são “suave fracasso” é útil para perceber este fe-

nômeno: o nosso atraso é marcante e avançospontuais não são suficientes para que possamosacompanhar a evolução científica e tecnológicado mundo. Apesar da perda de prestígio e quedada auto-estima, os professores desempenham pa-pel crucial na disseminação do conhecimento eformação do caráter do cidadão. Isso é verdadei-ro, pois no fundo de nossa alma ainda persisteum julgamento positivo das antigas professorasdo ensino fundamental que transmitiam seus co-nhecimentos misturados com calor humano. As-sim sendo, relembremos a música “Meus temposde criança” (1956):

“Que saudades da professorinhaQue me ensinou o beabá.”

Ataulfo Alves (1909-69)

REFERÊNCIAS

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BAILEY, R. Overcoming veriphobia: learning to lovetruth again. British Journal of Educational Studies,49(2), p. 159-172, 2001.

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JUDT, M. & CIESLA, B. Technology transfer out toGermany after 1945. Amsterdam: Harwood AcademicPublishers, 1996.

DE AZEVEDO, T. Evasão de talentos. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1968.

HUNT, L. Secret agenda: the United Statesgovernment, nazi scientists, and Project Paperclip, 1945to 1990. Gordonsville: St. Martin’s Press, 1991.

GUERRA, R. F. Impressões sobre a universidadeinsalubre. Plural/APUFSC, 14(11), p. 4-13, 2005.

SCHMITT, N. & SOUBEYRAN, A. A simple modelof brain circulation. Journal of International Economics,69, p. 296-309, 2006.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 137

Sob este título provocativo, e a partir de dadosparciais de duas pesquisas formais em anda-mento, envolvendo pesquisadores seniores da

área de educação, em diálogo com algumas análi-ses de Antunes, Frigotto, Kuenzer, Morosini eSilva/Bittar/Veloso, sobre as relações entre capi-talismo, trabalho, educação, discutimos algumasdimensões controvertidas da pós-graduação naatual conjuntura globalizada. Especialmente pro-curamos evidenciar que os dispositivos destina-dos a qualificar a formação de pesquisadores, e asproduções por estes geradas, têm conferido ‘pa-drões de qualidade’ aos progressos quantitativosque todos celebramos neste âmbito e nível deformação superior. Porém, esses padrões de qua-lidade não podem, nem devem, ser confundidoscom rigor propriamente dito, consistência e/ourelevância científico-acadêmica. Nessa pequenadistinção (cujas conseqüências não são desprezí-veis), entre promover padronizações e regulaçõeseficazes1, e fazer ciência (formando cientistas ri-

gorosos e éticos, cujo trabalho venha a dignificar aexistência das futuras gerações) resta um vácuo, aespera de análises criteriosas capazes de iluminarpontos cegos, que não vemos ou não queremosver, talvez, porque obrigariam à insurreição contrainimigos poderosos, diante dos quais baixamos asarmas, antes mesmo de pensar em levantá-las.

Nas páginas a seguir procuro mergulhar nessevácuo, em três movimentos: o de evidenciar algu-mas das dimensões que justificam as políticas na-cionais de produtividade da Capes, naquilo queelas têm de construtivo; o de entender que taispolíticas estão capturadas e enredadas na perver-sidade do sistema capitalista e, como tal, repro-duzem efeitos devastadores sobre a pós-gradua-ção; e o de voltar o olhar para o cotidiano dospesquisadores, para as suas práticas e habitus,nos quais se manifestam inúmeras conseqüênciasnocivas deste complexo emaranhado de variá-veis, seja nos profissionais pesquisadores, sejanas suas produções.

Políticas que impedem o que exigem:dimensões controvertidas na avaliação

da pós-graduação brasileiraAna Maria Netto Machado

Professora da Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac)

138 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Qualificação da quantidade: quem não quer?

A partir da expansão do sistemade pós-graduação verificada na últi-ma década no país, a qualificação daquantidade das produções científicasbrasileiras vem sendo motivo depreocupação crescente, tanto porparte da comunidade de pesquisa-dores, como pelos órgãos de contro-le, avaliação e fomento da pesquisa eda pós-graduação. Estudo desenvol-vido por Silva, Bittar e Veloso(2004), revela que desde o segundoPlano Nacional de Pós-Graduação(PNPG) aparecia formulada a

[...] preocupação com a ‘qua-

lidade, manifestada, seja nos

profissionais formados, seja

nas pesquisas realizadas’. Para

acompanhar a qualidade do

sistema, acenava-se, então, para a necessi-

dade de se criarem ‘estímulos e condiçõesfavoráveis’ para o ‘aumento qualitativo’

dos programas de pós-graduação, ‘[...] acio-

nando mecanismos de acompanhamento eavaliação’ (II PNPG, 1998, p. 25). Para jus-

tificar o processo de avaliação, o Plano ex-

plicitava que a ‘exigência da qualidade’ pro-

vinha de três indicadores: ‘o mercado, a

própria comunidade científica, e as insti-tuições governamentais com poder políti-co-normativo ou detentoras de recursosde financiamento’ [...]; desse modo, a ava-liação deveria ser um processo a ser imple-

mentado para garantir a qualidade dos

programas de pós-graduação, levando em

consideração ‘o mérito [...] e os resultadosfinais esperados’ [...]. (136-137, grifos nos-

sos).

A partir dos termos grifados, podemos reco-nhecer alguns dos desdobramentos que se segui-ram na década subseqüente, e a clara ênfase emalguns deles, em detrimento de outros. Os ‘estí-

mulos e condições favoráveis’, ‘oacompanhamento’ e ‘as exigênciasda própria comunidade científica’têm sido relativamente pouco enfa-tizados nas iniciativas que hoje mo-nitoram e controlam os programasde pós-graduação e os pesquisado-res. Em contrapartida, vimos expan-dir-se a avaliação na perspectiva docontrole quantitativista, inspiradana hegemônica cultura da econo-mia, gerando como efeito a trans-formação de quase tudo e todos em‘mercadoria2. As instituições deten-toras do poder normativo e finan-ciador (Capes, CNPq etc.), no in-tuito de criar um sistema eficaz quepromovesse e qualificasse as pesqui-sas e produções, instalaram no Bra-sil o sistema mais sofisticado daAmérica Latina. Porém, ele não es-capa de uma lógica de ‘meritocracia’

centrada em ‘resultados’ medidos quantitativa-mente (produtos, rankings valendo pontos e cré-ditos etc.), sistema que gerou e ainda gera muitasqueixas e reivindicações por parte dos pesquisa-dores e das comunidades dos Programas.

Se por um lado podemos reconhecer pontospositivos nas modalidades de indução da pesqui-sa e da produção, postas em marcha em nossopaís, por outro lado, o conhecimento e o própriopesquisador vêm sendo transformados em mer-cadorias com valor de troca a ponto de estarem,no limite, sujeitas às flutuações da bolsa de valo-res. O artigo Trabalho docente no ensino superiorsob o contexto das relações sociais capitalistas traza contribuição de Sevcenko que utiliza ilustraçãonesse sentido:

O professor ideal agora é um híbrido de ci-

entista e corretor de valores. Grande parte

de seu tempo deve ser dedicado a preencher

relatórios, alimentar estatísticas, levantar

verbas e promover visibilidade para o seu

departamento. O campus vai se reconfigu-

rando num gigantesco pregão. O gerencia-

Se por um ladopodemos reconhecerpontos positivos nas

modalidades deindução da pesquisae da produção, por

outro lado, o conhecimento e o

próprio pesquisadorvêm sendo

transformados emmercadorias comvalor de troca, nolimite, sujeitas às

flutuações da bolsade valores.

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 139

mento, de meio acabou se tornando o fim

na universidade. A idéia de que todos se

empenhem no limite de suas forças. (SEV-

CENKO, apud LEDA, 2006, p. 81).

Tais metamorfoses foram se instalando insi-diosa e rapidamente nos últimos anos, num ema-ranhado de demandas e exigências ‘para ontem’,em uma lógica tarefeira, que pouco tempo temdeixado para uma análise passível de levar a refle-xões e posicionamentos político/éticos necessá-rios, diante deste panorama. Cabe aqui lembrar adifundida e muito citada consideração de Moraes(apud MOROSINI, 2004) sobre o que ela temdenominado tempos de ‘recuo da teoria’.

No Brasil, Moraes aponta que as políticas

de formação docente na década de 1990

objetivaram desfertilizar a escola investin-

do na formação de um docente desintelec-

tualizado, pouco adepto ao exercício da crí-

tica, sendo marcadas pelo recuo da teoria

no discurso epistemológico. (p. 92).

Por um lado, a comunidade científica tem va-lorizado e depositado confiança nos dispositivosregulatórios desencadeados pelos órgãos gover-namentais - centrados no controle e num mode-lo único, aplicado a realidades distintas de nossopaís continental - para atingir as metas desejadasno sistema de pós-graduação: formação de pes-quisadores e geração de ‘produtos’ (conhecimen-tos científicos) de qualidade.

Por outro lado, nos bastidores, circula boadose de descrédito e certo consenso: um acordotácito envolve o conjunto de pesquisadores emuma grande performance, na qual cada um de-sempenha o seu papel, num espetáculo coletivoque recebe prêmios, aplausos e financiamentos,mas faz parte do ‘circo global’, permanecendo arealidade quase intocada pelo nosso savoir faire,como explicitaremos por meio de uma série deexemplificações ao longo deste escrito. Nos pou-cos e breves espaços/tempos em que têm lugardebates3 e reflexões, o mal-estar impera... até omomento seguinte, em que a próxima urgência o

apagará (congresso, banca, edital de pesquisa,conferência, concurso, comissão, paper, parecer,reunião, aula, comitê editorial, orientação, rela-tório, viagem etc.).

Políticas que impedem o que exigemO título do trabalho, Políticas que impedem o

que exigem, invocando uma frase que podería-mos chamar, com os psicólogos da Escola de Pa-lo Alto, na Califórnia, de esquizofrenizante4 oude ‘duplo vínculo’, contém uma ambigüidade ra-dical (dois mandatos impossíveis de serem cum-pridos, mas que, ao mesmo tempo, precisam sercumpridos). Algo semelhante a essa experiênciaperturbadora está presente na vida dos pesquisa-dores atualmente.

Este tipo de situação contraditória encontratradução aproximada, num outro campo, nasformulações de Kuenzer (2005) e Frigotto(2005), e a tradição marxista os inspira, quandoanalisam o impasse pelo qual passa o capitalismona atualidade e a necessidade de ultrapassá-lo.

[...] a superação destes limites só é possível

através da categoria contradição, que permite

compreender que o capitalismo traz inscritoem si, ao mesmo tempo, a semente de seu

desenvolvimento e de sua destruição. Ou se-

ja, é atravessado por positividades e negativi-

dades, avanços e retrocessos, que ao mesmo

tempo evitam e aceleram a sua superação.

(KUENZER, 2005, p. 91, grifos nossos).

Transpondo esta lógica para o âmbito da pós-graduação, vemos que o desenvolvimento rápidoque o sistema teve nos seus quarenta anos deexistência, e seus resultados em termos de pro-dutividade, forte e firmemente induzidos pelaspolíticas de avaliação e controle da Capes, estásendo acompanhado por um ‘inimigo’ insidiosoque corrói as suas entranhas. É necessário aquitrazer alguns detalhes concretos do que estáacontecendo com os pesquisadores e com as suasproduções, para dar visibilidade ao problema, nasua dimensão mais cotidiana e palpável.

Os exemplos que traremos mais adiante no

Educação: prioridade nacional?

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texto têm como intuito convocar os pesquisado-res à reflexão sobre o sentido de pesquisar/publi-car, para além da obediência subserviente a regrase recomendações oficiais, em busca de obterprestígio e vantagens (boas notas nas avaliaçõesda Capes e os prêmios delas decorrentes), paraalém também da disseminação de queixas, hojegeneralizadas. No frenesi que envolve pesquisa-dores contemporaneamente, não se tem paradopara pensar na complexidade ou na sobre-deter-minação dos fenômenos que envolvem este seg-mento nobre da vida do país. Uma série de ele-mentos, altamente complexos e contraditórios,converge para compor esta realidade, na qual seentrecruzam impactos da economia internacionalcom necessidades intrínsecas à pesquisa propria-mente dita, como veremos na seqüência.

Pesquisar, escrever, publicar: o ciclo da produção científica

Não é difícil admitir que a pes-quisa cujos resultados não circulamampla e publicamente não podecumprir seu ciclo e não pode fazervaler o seu impacto na realidade. Aonão se tornar conhecida, ao perma-necer nos bastidores, em relatóriosconfinados, de difícil acesso, a pes-quisa não pode servir de base a no-vos estudos, não promove descobertas, nem con-tribui para a evolução do conhecimento. Tam-pouco viabiliza aplicações tecnológicas nos vá-rios âmbitos da vida, nem gera conseqüências ca-pazes de beneficiar as populações da Terra, aju-dando a solucionar, progressivamente, os gravesproblemas que a humanidade continua a en-frentar.

A lógica de manter os saberes e descobertasem segredo, longe do alcance da maioria, temacompanhado as tradições místicas, foi exploradaem todos os tempos em organizações totalitáriase é hoje praticada amplamente na maneira deprodução capitalista, o que no âmbito da ciênciase configura, para citar um exemplo, na tensão“publicações x patentes”. Uma ilustração expres-siva desta tensão entre conhecimento público e

privado fica nítida ao confrontarmos o conheci-do movimento mundial de software livre à pode-rosa Microsoft. Uma das maiores fortunas do pla-neta, acumulada a partir de descobertas científi-cas e desenvolvimentos tecnológicos, a Microsoftcaracteriza-se como um caso bem-sucedido eideal no contexto da economia capitalista. En-quanto esta acumula capital e poder na mão deum, o modelo do software livre avança silenciosoe solidário, por redes mundiais de interessadosem um crescimento coletivo e anônimo, que abremão do prestígio e lucros pessoais acumulados.

Caberia dizer que o modelo mais adequadoao desenvolvimento ético da ciência, da produ-ção de conhecimentos está bem mais próximo domovimento do software livre do que da concen-tração de capital e poder da Microsoft. Na lógicade compartilhamento, a ampla e rápida socializa-ção das pesquisas e seus resultados é o carro-

chefe. Para que as descobertas cir-culem, sejam conhecidas, elas preci-sam ser registradas: não há ciênciasem escrita! As descobertas preci-sam inscrever-se em suportes acessá-veis pela comunidade de pares e pe-los interessados de modo geral. Nes-se sentido, o jornalismo científico éuma área que vem se desenvolvendo,outorgando o direito, ao grande pú-

blico, de ter alguma informação sobre o que oscientistas vêm desenvolvendo nos seus laborató-rios em linguagens herméticas. A própria progra-mação da televisão aberta nos últimos anos veminvestindo em doses condensadas, como é pró-prio da cultura midiática, nesse tipo de divulga-ção, com considerável aceitação do público.

É nessa vertente que os incentivos, exigências einduções da Capes, para instalar a cultura da pes-quisa e das publicações, num país sem muita tra-dição de práticas escritas, se justifica e é nobre,pois é necessário que os trabalhos dos pesquisado-res apareçam no espaço público. Leia-se: publica-ções que possam ser acessáveis por muitas pessoas.

A razão para as exigências da Capes sobre osProgramas de Pós-graduação (PPG), em termosde pressionar os pesquisadores para publicarem,

Educação: prioridade nacional?

Para que asdescobertas circulem,

sejam conhecidas,elas precisam ser

registradas: não háciência sem escrita!

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 141

Educação: prioridade nacional?

reside nessa lógica básica do movi-mento da ciência e, nesse sentido,precisa ser compreendida, aceita epraticada.

Entretanto, é possível perceberque as tentativas da Capes, no senti-do de induzir os docentes da educa-ção superior brasileiros, acostuma-dos a um modelo de Universidadenapoleônico, voltado para a for-mação profissional, encontra aindafortes resistências. A cultura da pes-quisa, e o próprio modelo humbold-tiano, como é conhecida a Universi-dade centrada na pesquisa, ainda érelativamente pouco difundido noBrasil, e muito mal compreendido. Entretanto, selemos a obra ‘Por uma Universidade Orgânica’,do filósofo alemão Johann Gottieb Fichte (1762-1814), um dentre os personagens que rodeavamWilhelm Humboldt em torno de 1800, quandoda criação da Universidade de Berlim, da qualeste último foi o fundador, ficamos admiradosem perceber como, já naquela época, as questõescom as quais nos debatemos em nosso meio atu-almente, estavam postas como desafios e geravampropostas que ainda não conseguimos imple-mentar dois séculos depois. Vejamos apenas umfragmento do Plano dedutivo de Fichte, no qualele apresenta uma concepção de Universidadecuja função seria cultivar nos alunos o processode como chegar ao conhecimento. Observe-se napassagem abaixo a semelhança com a terminolo-gia que impera hoje na nossa pós-graduação:

O Plano dedutivo é uma reflexão sobre as

medidas a serem tomadas ante desafios co-

mo, por exemplo, encontrar novas formas

de interação entre professor e aluno [...]; a

introdução de novos critérios para avaliar a

qualidade da produção acadêmica; ainda, a

reformulação dos conceitos de ciência e

pesquisa. Com efeito, não se trata mais de

adicionar, completar e armazenar conheci-

mentos disponíveis, mas desenvolver pes-

quisas, conforme uma metodologia. Assim

se institui um novo tipo de erudito que

tenta atrair os estudantes a partir de

suas linhas de pesquisa. (FICHTE,

1999, p. 17-18, grifo do autor).

A partir das leituras e considera-ções apresentadas, vai ficando cadavez mais nítida a complexidade docampo da pós-graduação, o quantoprecisamos de pesquisas que tomemcomo objeto de investigação temasassociados à formação de pesqui-sadores e, também, aos meandros daprodução de conhecimentos. Perce-bemos o quanto as políticas da Ca-pes são incompreendidas por boa

parte da comunidade da pós-graduação; o quan-to elas são obedecidas mecanicamente, sem quese compreenda o seu alcance ou seu sentido; oquanto é preciso explicitar as razões das exigên-cias postas, que não são tão evidentes como podeparecer a quem está com elas familiarizado.

No XII Seminário Nacional Universitas/BR,ocorrido em Campo Grande (MS), em final denovembro e início de dezembro de 2006, profe-riu conferência Roberto Verhine, naquele eventorepresentante da área de Educação junto a Capes.Sua fala intitulou-se Avaliando a avaliação daCapes. Na hora do debate, vários questionamen-tos em tom queixoso foram manifestos a respeitodas exigências de produtividade. Ao responder àsreclamações dos pesquisadores inconformados,Verhine mostrou, primeiramente, que as exigên-cias não são tão exageradas: três artigos publica-dos em periódicos qualificados no período de trêsanos. Efetivamente, se em três anos de pesquisaum investigador não experimentar o impulso deescrever algum resultado de seu trabalho e nãoquiser mostrá-lo a seus pares, talvez possamospensar que ele se equivocou na escolha da profis-são. A realidade, vista desta maneira, não parecetão aterradora quanto os discursos que circulamno meio da pós-graduação entre os pesquisadores.

Entretanto, o efeito boataria5 se dissemina ecresce como bola de neve difundindo um verda-deiro terrorismo, que talvez traia as intenções da-

Precisamos depesquisas que tomem

como objeto deinvestigação temas

associados à formação de

pesquisadores e,também, aos meandros da produção de

conhecimentos.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE142 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Educação: prioridade nacional?

queles que pensam as políticas na-cionais neste âmbito, e que, final-mente, estão assentadas em razõesplausíveis, associadas ao que descre-vemos sob a designação de ciclo dapesquisa científica no item anterior:pesquisar, escrever, publicar.

Um outro dado pontual que po-de ser útil para clarear este cenáriofoi obtido em fevereiro de 2006,quando tive a oportunidade de par-ticipar de uma Oficina promovidapela Universidade Católica de Brasí-lia (UCB) para quarenta represen-tantes de Instituições de Ensino Su-perior (IES) não públicas, a pedidoda Capes. A UCB estava no topo do ranking deaprovação de PPG novos entre as IES não públi-cas, e foi essa condição que parece ter inspirado aidéia de promover a Oficina, para compartilhardos percursos bem sucedidos dessa IES: uma es-pécie de orientação para instituições que estariamem processo de implementação de PPG.

Nessa ocasião teve uma breve, mas importanteparticipação, Renato Janine Ribeiro, atual Diretorde Avaliação da Capes. Ribeiro explicou as razõespelas quais, em determinado momento, a Capestinha sustado as visitas aos Programas. O motivoexplicitado foi de que os representantes enviadospela Capes (que eram numerosos) interpretavam etransmitiam, muitas vezes, em nome do órgão ofi-cial, orientações e exigências distorcidas, regras rí-gidas e inflexíveis, nas quais se perdia a orientaçãoe o sentido originalmente concebido. O que deve-ria ser uma orientação acabava, muitas vezes, re-sultando em uma desorientação.

Muitíssimas IES tem investido somas conside-ráveis em consultorias que supostamente for-necerão ‘dicas’ infalíveis para aprovação de umPPG, sem, no entanto, obter sucesso. Porque, dealguma maneira, quer-se obedecer a regras paraobter resultados, de uma maneira instrumental emecanicista, sem aprofundar o sentido dessas re-comendações emitidas pelas autoridades oficiais àsquais se atribui um poder que, de fato, elas não têm.

Dez meses depois de ter acesso à observação

de Ribeiro, breve, mas muito instru-tiva como informação, escutei davoz de Verhine6, que a Capes optoupor avaliar pelos produtos, porquemuitos caminhos podem obter re-sultados relevantes. E a Capes nãoestá interessada em controlar os ca-minhos ou os processos adotados. Aquestão central é: se há pesquisa, elatem que oferecer um resultado. Eesse resultado tem que aparecer pu-blicamente.

Os investimentos em pesquisa sãoaltos, envolvem recursos públicosque não devem, nem podem, ser des-perdiçados e se espera que eles bene-

ficiem a sociedade e as populações. Em última análise, o controle aparentemente

rígido e intolerante da Capes poderia ser interpre-tado como uma luta contra o desperdício. Entre-tanto, é uma tarefa ingrata, árdua e difícil. De algu-ma maneira, conforme Verhine, as comissões daCapes têm se esforçado para implementar modali-dades que promovam menos injustiça, tendo con-cluído que é menos discutível e menos perigosoavaliar os resultados em termos quantitativos, doque aprovar ou reprovar um PPG utilizando cri-térios qualitativos, pois estes são mais suscetíveisàs idiossincrasias, perspectivas e interesses das di-ferentes, e numerosas, comissões de avaliadores.

Finalmente, o modelo atual de avaliação nãoestá sendo visto nem sequer por aqueles que opraticam neste momento como ideal, mas sim co-mo o menos frágil que tem sido possível imple-mentar, estando em constante aprimoramento, apartir do esforço coletivo daqueles que se inte-ressam por este tipo de questão como foco depesquisa e reflexão. Nesse sentido, a ação solidá-ria, coletiva e cumulativa pode chegar a asseme-lhar-se, resguardadas as devidas proporções, à di-nâmica da evolução do software livre.

Entretanto, malgrado as metas de qualificaçãoda pesquisa brasileira, que o sistema de avaliaçãoda Capes tem perseguido, muitas inconsistênciaspersistem, e é importante identificá-las, descrevê-las, socializá-las. São algumas dessas inconsistên-

Os investimentos empesquisa são altos,envolvem recursospúblicos que não

devem, nem podem,ser desperdiçados ese espera que eles

beneficiem asociedade e

as populações.

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Educação: prioridade nacional?

cias, que escapam às formas de controle e avalia-ção atualmente praticadas, que nos desafiamos asinalizar, no intuito de contribuir com a criaçãode novos dispositivos de orientação, que possamser capazes de imprimir mais ética, mais rigor ci-entífico-acadêmico e mais justiça na pesquisa ena pós-graduação brasileira.

Duas equações infelizes: ‘quando a quantidadedeteriora a qualidade’ e ‘o controle substitui aorientação’

No item anterior procurei atribuir sentido àspolíticas de produtividade irradiadas pela Capes.Neste, vamos olhar para algumas práticas dospesquisadores atualmente, tentando evidenciarde que maneira as recomendações, àmedida que são interpretadas super-ficialmente, acabam impedindo arealização de sua própria finalidade,num efeito perverso, que é necessá-rio superar.

Para alcançar os números que fes-tejamos nas estatísticas internacio-nais atuais, autores de prestígio são,muitas vezes, levados a sutis cons-trangimentos, que se entremeiamcom as melhores intenções solidáriascom os pares menos experientes:compactuar com a publicação de pa-lestras transcritas e rapidamente re-visadas, cujos conteúdos se repetem, mas passama contar como produções novas, em função doprestígio de tais personagens, construído ao lon-go de anos. Tais publicações, apesar de seu méritoe qualidade são, de certa forma, inócuas, quandoconsideradas no sentido cumulativo que se esperadas produções científicas, em termos de avançosdo conhecimento nas diferentes áreas.

Uma outra astúcia para aumentar o númerode publicações é o fato de considerar-se lícito eválido que, de uma tese ou dissertação, sejamaproveitados os capítulos, com pequenas altera-ções, ou tal qual compunham a tese, como arti-gos, às vezes com anos de distância entre a defe-sa da tese e a publicação. A reflexão pertinenteneste caso é: se, de fato, o autor de uma tese tiver

se tornado um pesquisador, ele não poderá, ho-nestamente, não ter avançado em seu pensamen-to, a partir do conjunto do seu trabalho, de modoque seria impublicável um texto fatiado, parcela-do, tal qual integrou o documento original, oucom ligeiras adaptações. Porém, o pragmatismodos números admite e consente essas manobrasgeradoras de estatísticas, mas que não significamo resultado de reflexões e avanços de um sujeitoque trabalha no campo intelectual, lê, estuda, pes-quisa, reflete e vai ampliando, progressivamente,ao longo do tempo, a sua compreensão das ques-tões que o animam enquanto pesquisador.

Mais um exemplo sobre as produções (seriapossível mencionar inúmeros outros, em outras

atividades típicas da pós-gradua-ção7): o abuso das co-autorias emfavor da proliferação do número detrabalhos e artigos. Assinar todos ostrabalhos dos orientandos: se seisorientandos apresentam um pôsterou trabalho em um evento, o orien-tador inclui seis produções no seucurrículo Lattes. Alguns comitês adhoc de eventos começam a inibir es-te tipo de prática, restringindo o nú-mero de trabalhos por autor em ca-da evento.

Caso fizéssemos uma reduçãomatemática desse conjunto de pro-

duções, eliminando as repetições etc., provavel-mente constataríamos que avanços ínfimos fo-ram realizados sobre as temáticas trabalhadas.Porém, quem dispõe de tempo suficiente para fa-zer tal revisão ou controle pente-fino? Podería-mos dizer que estamos barateando ou sucatean-do, reciclando as nossas pesquisas e trabalhos,em nome de satisfazer a uma suposta demandavoraz e irracional por quantidade de produções.Embora estejamos completamente capturadosnessa lógica, oriunda do campo da economia, queentende o resultado de uma pesquisa como mer-cadoria, fruto de uma linha de produção industri-al, mais cedo ou mais tarde ela deverá ter um bas-ta, ou pelo menos nos cabe pensar em reverter talsituação, que já dá mostras de esgotamento.

Estamos barateandoou sucateando,

reciclando as nossaspesquisas e

trabalhos, em nomede satisfazer a umasuposta demandavoraz e irracional por quantidade de produções.

Nesse sentido, contribui Frigotto (2005), aolembrar a reflexão do historiador Eric Hobs-bawn que situa

[...] como questão central do século XXI

não a produção de mercadorias, mas a dis-

tribuição da riqueza por uma esfera públi-

ca... [...] A conclusão necessária a ser tirada

deste horizonte de análise com todas as suas

conseqüências teórico-práticas, é a de que

as condições históricas no plano do avançodas forças produtivas mediante sobretu-do a ciência e tecnologia, incorporadas àprodução - e a exponencial concentração

de riqueza, com a contrapartida de uma ex-

ponencial produção de desemprego, traba-lho precário, miséria e des-truição de direitos, como

nos indicam Mészáros (1996)

e Jameson (2001), já mostram

que o modo de produção ca-

pitalista é tardio. Vale dizer,

um sistema que deveria ser

suplantado, já que agora so-

mente se constitui em força

destrutiva. ( p. 69, grifos nos-

sos).

Pareceria que recém ingressamos,no âmbito da pós-graduação, na lógi-ca de produção de mercadorias,quando ela já dá mostras de esgota-mento, e estamos longe de nos voltarmos para adistribuição da ‘riqueza’, que neste caso deveriaser a disseminação e disponibilização dos avançoscientífico/tecnológicos conquistados pela ciêncianas diversas áreas para amplas camadas das popu-lações (sistemática que iria na contramão da atualtendência, direitos autorais, patentes etc., comoapontávamos no início do texto).

Desemprego8, trabalho precário, miséria edestruição de direitos atingem hoje as profissõesmais intelectualizadas, e podemos falar tambémda ‘miséria intelectual’ nas universidades, a partirda descrição recém apresentada de alguns aspec-tos relativos aos resultados de pesquisas. De al-

guma maneira estamos compactuando com adestruição dos direitos a um trabalho decente,digno e ético, e participando de uma extensa cor-rente de irresponsabilidade, ao consentir em pu-blicar da maneira como estamos fazendo, rebai-xando a nossa condição, enquanto profissionaiscapazes de pensar e contribuir para construirconsciência e conhecimentos consistentes.

Cidadão mínimo, profissional ‘sem tempo’Um pouco adiante da passagem anterior, Fri-

gotto (2005, p. 72) considera que os processoseducativos vêm tendo cada vez mais “[...] comoobjetivo produzir o ‘cidadão mínimo’ nos ter-mos de análise de Hugo Zemelmann ou a for-mação de ‘deficientes cívicos’ de que nos fala

Milton Santos.” De alguma maneira,o frenesi do cotidiano dopesquisador, exigido a atuar em inú-meras frentes, simultaneamente,vem impondo ao seu dia-a-dia umalógica implacável e minimalista, emque tudo dura pouco e a interrup-ção é a regra (certamente uma situa-ção nada favorável para o trabalhocientífico sério, que exige paciênciae recusa do imediatismo).

A partir do encurtamento deprazos para realização de mestradose doutorados, que foi a primeira me-dida que impactou os pesquisadoresquando da mudança do modelo de

avaliação da Capes e da migração do paradigmade formação de professores para o de formação depesquisadores, em meados de 1990, a ‘falta detempo’ e as urgências passaram a ser uma con-stante no discurso de todo pesquisador: tantoconstituem-se em elemento de orgulho e altaauto-estima (o pesquisador é tão solicitado quesua agenda se assemelha à de um ministro!),quanto representam um tormento, que emmuitos casos tem chegado a se transformar emmal-estar ou doença crônica, ou até grave, con-forme pesquisas de Codo (1999) e Senett (1999)sobre doenças no trabalho.

O tempo esquadrinhado tem sido forjado por

O frenesi do cotidiano

do pesquisador, exigido a atuar

em inúmeras frentes, simultaneamente,

vem impondo ao seudia-a-dia uma lógica

implacável e minimalista.

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Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

exigências oficiais, favorecidas pelas inovaçõestecnológicas disponibilizadas para o público emgeral ou, algumas, especificamente voltadas paraos pesquisadores (e-mails, chats, salas virtuais,skype, blogs, celulares sofisticados, orkut, plata-forma Lattes, bancos de dados da Capes, CNPq,Inep, Universitas, periódicos on-line, incontáveis‘sites fundamentais’ etc.). O resultado é que esta-mos atualmente plugados 24 horas, podendo seracessados em qualquer lugar e a qualquer mo-mento, e ainda não desenvolvemos formas deoferecer resistência a esse verdadeiro assédio9 dotrabalho sobre a vida privada.

Ricardo Antunes (2005, p. 37), ao analisar apenetração da noção de ‘qualidade total’ em nos-so meio, menciona a ‘falácia da qualidade’ nelaembutida, que impõe, justamente, adiminuição do tempo de durabili-dade dos produtos industriais, aosquais podemos acrescentar aqui, os‘produtos intelectuais’ e as pesqui-sas em geral, sujeitas a todo tipo decronometria e mensuração. Até aexistência do pesquisador parece tersido capturada por esta lógica daquantidade. Embora a longevidadeseja bastante comum entre pessoasdedicadas às lides científicas, o es-paço da vida privada vem sendo in-vadido pelo espaço público, e o nú-mero e diversidade de pequenas oucurtas atividades que uma pessoadeve realizar e gerir em sua jornada ficou extre-mamente inflacionado. Cada atividade é feitamais rapidamente, facilitada pelas tecnologias.Porém, o número de atividades aumentou, inva-dindo a noite, quando não a cama do sujeito, ti-rando-lhe o sono10, ou até interferindo no seuapetite sexual. Além de ganhar vertiginosidade.A seguinte passagem pode ajudar a examinar es-tas questões:

A necessidade imperiosa de reduzir o tempo

de vida útil dos produtos, visando aumentar

a velocidade do ciclo reprodutivo do capi-

tal, faz com que a ‘qualidade total’ seja, na

maior parte das vezes, o invólucro, a apa-rência ou o aprimoramento do supérfluo,

uma vez que os produtos devem durar cada

vez menos para que tenham uma reposição

ágil no mercado. A ’qualidade total’, por

isso, deve se adequar ao sistema de metabo-

lismo sócio-reprodutivo do capital, afetan-

do desse modo tanto a produção de bens e

serviços, como as instalações, maquinários e

a própria força humana de trabalho. (AN-

TUNES, 2005, p. 37, grifos nossos).

Não é difícil olhar sob esse prisma para a pós-graduação. Onde se pede relevância, com fre-qüência os resultados são supérfluos, os prazosdemasiado breves, propícios para evitar o ama-

durecimento das leituras, das análi-ses, das reflexões, das elaborações,das discussões aprofundadas com ospares. O tempo dos grandes seminá-rios deixou saudades naqueles que osconheceram.

Uma preocupação relevante dosorientadores das primeiras geraçõesda pós-graduação, diz respeito aoabandono da leitura dos autoresclássicos, em favor da leitura dos pa-pers dos últimos três ou cinco anos:atualização! Com a quantidade deartigos que se acumulam dia a dia, énecessário fazer opções. E a opçãoprivilegiada pelos PPGs tem sido

descartar (excluir) os não descartáveis! Os cha-mados clássicos não são descartáveis, suas idéiastêm se mantido válidas ao longo de séculos. Aonão conhecer os clássicos, as novas gerações po-dem iludir-se, acreditando estar inovando, quan-do na verdade estão, na maioria das vezes, rein-ventando a roda. É muito claro para os intelectu-ais brasileiros que merecem essa designação, aserviço de quê e de quem militam as políticas queimpedem a formação de quadros com densidadeteórica e autonomia. Inimiga da durabilidade dosprodutos, a ‘qualidade total’, como uma das es-tratégias do capital, acaba, afirma Antunes (2005,p. 38), “[...] desencorajando e mesmo inviabi-

Ao não conhecer os clássicos,

as novas geraçõespodem iludir-se,acreditando estar inovando, quando na verdade estão,

na maioria das vezes, reinventando

a roda.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

lizando práticas produtivas orienta-das para as reais necessidades huma-no-sociais.”

Transformados, os próprios pes-quisadores, em sujeitos, senão decurta duração, ao menos de curtadedicação a uma mesma atividade,podem reconhecer-se como uma ge-ração de ‘hipercinéticos’; aquelesque deviam se concentrar para ana-lisar realidades, dados, ler, escrever,sustentar um debate etc., pululamde uma atividade a outra (aulas nagraduação, na pós-graduação, nasespecializações, bancas, pareceres,viagens, congressos, artigos, levantamento de da-dos, orientações, cursos de extensão, palestrasaqui e acolá, participação em seleções... etc. etc.),não encontrando sossego para questionar o seufazer ou a sua maneira de fazer.

Na busca de manter-se incluído no PPG, nosistema, nos fóruns, no grupo de pesquisa, na re-de etc. etc., experimentam claramente o que o sis-tema lhes inculca. Como afirma Frigotto (2005,p. 72), o sistema “[...] pretende convencer os ex-cluídos de que eles são os culpados por sua ex-clusão.” A contrapartida é verdadeira e se aplicaao pesquisador que foi induzido a sentir-se oúnico responsável pela sua inserção profissional;por isso, não pode distrair-se, não pode perdertempo, não pode não atender aos chamados e ur-gências, pois ser demandado em muitas frentessignifica inclusão. A corrida para ‘engordar oLattes’, e a luta desesperada por manter a sua in-serção, instala um verdadeiro ‘vale tudo’, quemantém os pesquisadores produtivos, mas, nãoraro, competitivos. Porém, de alguma forma,conseguindo tornar inócua boa parte de suas pes-quisas, esgotando a sua finalidade nesse cômputoestatístico, e terminando o ciclo das descobertassem que elas incidam no campo social ou geremalgum benefício significativo.

Nesse misto de prazer e dor, e ao sabor de de-mandas superpostas, o modus vivendi dos pes-quisadores vem assumindo a característica decerto nomadismo, uma movimentação exacerba-

da11 que, ao mesmo tempo em queamplia seus horizontes e universali-za as suas concepções, torna a suaexistência dispersiva e praticamenteimpede a compenetração necessáriaao estudo e à reflexão aprofundada.

Diante desse cenário o leitor co-meçará a constatar que o sistema deavaliação da Pós-graduação em vi-gor, centrado no controle da quanti-dade, mesmo estando baseado emfundamentos válidos, está a serviçoda lógica econômica capitalista queimpera no mundo. Não resta dúvidaque esta lógica gera resultados apre-

ciáveis. Contudo, esses resultados positivosquantificáveis vêm acompanhados de formas efi-cazes e criativas de impedir a realização plenado que exige. No frenesi coletivo que vivemos,as regras do jogo são cumpridas visando finsimediatistas e instrumentais, números, notas, fi-nanciamentos (‘engordar’ as estatísticas, ‘engor-dar’ o currículo Lattes, melhorar o formulárioAPCN12 etc.). Porém, se examinada mais de per-to, a consistência dos processos e produtos émuito mais cosmética do que efetiva. Enquan-dram-se nessa categoria, muitas das redes de pes-quisa, convênios internacionais, diretórios degrupos de pesquisa do CNPq, avaliações envol-vendo ad hocs, editais, co-autorias, participaçõesem eventos internacionais etc. Muitas dessas ati-vidades são arranjos e acordos entre pares, indi-víduos ou instituições, no intuito de fazer fun-cionar o sistema, movimentar recursos etc., masnão significam, necessariamente, pesquisas efeti-vamente relevantes, com envolvimento e partici-pação engajada, avaliações criteriosas e resulta-dos com verdadeiro impacto social.

Daremos aqui um exemplo desta dinâmica,que não é exagerado chamar de farsa, da qualmuitos leitores reconhecerão a veracidade: trata-se do caso de apresentações de trabalhos em al-guns eventos internacionais. Nos dias atuais aindústria de eventos científicos é próspera. Umadas fontes de renda de muitas cidades e países,que constroem sofisticados centros de eventos,

A corrida para‘engordar o Lattes’, e

a luta desesperadapor manter a sua

inserção, instala umverdadeiro ‘vale

tudo’, que mantémos pesquisadores

produtivos, mas, nãoraro, competitivos.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

associados às redes hoteleiras e de restauração:uma nova forma de turismo, rentável, que movi-menta as economias planetárias. Neste tipo deevento, é fácil aprovar trabalhos. Inclusive presti-giosas universidades européias e de outros conti-nentes não escapam desta nova forma de comér-cio intelectual. Temos escutado inúmeros rela-tos-denúncia de pesquisadores que atravessam oAtlântico com recursos públicos para apresentarum trabalho no exterior, diante de uma ‘platéiamínima’ e muitas vezes brasileira. O caso maishilariante é apresentar seu trabalho, no exterior,em uma sala, cujos participantes são colegas co-nhecidos da própria região do expositor, ou atéda mesma Universidade. Pois essa atividade aca-ba caracterizando-se como uma inserção interna-cional, pontuando generosamente para a avalia-ção do agraciado e do seu Programa. Quantaspesquisas poderiam ser financiadas com os valo-res destinados a uma viagem e custeio comoessa... se é que assim podemos dizer... inútil?

O ‘rigoroso’ sistema de avaliação da Capesnão tem sido capaz de filtrar este tipo de desvio,que escapa, como muitas outras inconsistências,como areia entre os dedos. Em todos os demaistópicos mencionados, poderíamos apresentar ca-sos13, que não são tão exceção como se possa pen-sar, de situações merecendo atenção.Alimentam estas reflexões, relatos,não necessariamente sistematizados,que vieram à tona como efeitos co-laterais das pesquisas por nós desen-volvidas. As questões não estavamem pauta no roteiro inicial. Porém,ao escutar pesquisadores, em entre-vistas abertas, sobre os problemasda pós-graduação, dados como estesforam surgindo e clareando a nossacompreensão dos bastidores do sis-tema. Consideramos que merecemestudo, pois são indicadores de im-propriedades que representam pre-juízos significativos para o conjuntodos pesquisadores e para o país, ca-racterizando desperdício dos escassosrecursos públicos de que dispomos.

Para interromper e retomarAcácia Kuenzer, no seu artigo Exclusão inclu-

dente e inclusão excludente, retoma a clássica di-visão entre trabalho intelectual e trabalho ma-nual estabelecida por Marx & Engels como prin-cípio básico do capitalismo, para mostrar que es-te continua gerando formas de impedir a supe-ração dessa segmentação fundamental, conse-guindo, assim, perpetuar-se como sistema de ex-ploração do trabalho, em todos os segmentos dasociedade.

A escola, dirá Kuenzer (2005, p. 79), “[...] porsua vez, constituiu-se historicamente como umadas formas de materialização desta divisão. Ela éo espaço por excelência, do acesso ao saber teóri-co divorciado da práxis”. Seria de se esperar quena pós-graduação stricto sensu, instância acadê-mica na qual a pesquisa ocupa lugar central, aprodução de conhecimentos é o ofício privilegia-do e a autonomia e a autoria são encorajadas e es-peradas, esta divisão fosse finalmente dissolvida.Ao pesquisar, ao produzir ciência, ao escreverobras reflexivas, analíticas e gerar teorias, esta di-visão é superada. Talvez por essa razão a escolabásica e mesmo a graduação esteja obrigada a fra-cassar no ensino da escrita. Quem escreve e, so-bretudo, quem escreve e publica, exerce um ato

intelectual por excelência, sem dei-xar de estar exercendo um ato ma-nual. Diferentemente da oralidade,escrever é trabalho intelectual e tra-balho manual ao mesmo tempo.Mesmo utilizando um computadorde última geração, escrever ainda sefaz com as mãos. Esta superação,que poderia se dar em todos os ní-veis educacionais, promoveria a tãoacalentada autonomia, criatividade epossibilidade crítica: um trio, semdúvida, perigoso de habilidades, quea Universidade Humboldtiana, porsinal, tem entre seus princípios.

Pois, como vimos ao longo destetrabalho, é justamente sobre aquelespoucos brasileiros que conquista-ram o domínio dessa ferramenta

Temos escutadoinúmeros relatos-

denúncia depesquisadores que

atravessam oAtlântico com

recursos públicospara apresentar umtrabalho no exterior,

diante de uma‘platéia mínima’ e

muitas vezesbrasileira.

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simbólica poderosa, a escrita, que recai um con-junto de políticas devastadoras (não pelo que elaspropõem, em si, como vimos anteriormente,mas, talvez, pela maneira como são dissemina-das), voltadas para anular a capacidade reflexiva,instaurando uma lógica que reconduz o pesqui-sador e o professor à condição de “[...] cada vezmais um executante, um técnico executante, nu-ma perspectiva cada vez mais instrumental.”(MOROSINI, 2004, p. 92).

Se por um lado somos, todos, cúmplices eatores neste cenário, seria injusto desconsiderarreflexões, movimentos14 e reações, que têm vindoà tona durante a última década, em torno destesproblemas. Porém, no cômputo dos inconforma-dos, o saldo ainda pesa mais, na balança, do ladodo que temos chamado de ‘muro da lamentava-liação’. Muito recentemente, começam algunspesquisadores a desenvolver análises a respeitoda cultura dominante na pós-graduação; começa-mos a ter bancos de dados sofisticados, ricos emdados, mas, que têm sido, por enquanto, muitomais usados no sentido de promover a expansãodo sistema e regulá-lo, do que propriamente paraestudos científicos15. É nesta vertente que nos in-serimos, propondo-nos a continuar explorandotemas deste teor.

NOTAS

1 Isto é, que conseguem ser obedecidas.2 Sobretudo ditadas por regras internacionais que ‘desre-conhecem’ as fronteiras e soberanias nacionais.3 A expansão da pós-graduação gerou aumento do con-tingente de mestrandos e doutorandos que tem inflacio-nado os eventos científicos, que, em conseqüência têm sedisseminado, ampliando os espaços para a apresentaçãode pesquisas. Porém, o tempo para debate foi minimiza-do de tal forma, que a apresentação se transformou numaforma de ‘ponto’, cuja finalidade principal é a validação ea acreditação da produção. Nesse sentido, orientadoresdas primeiras gerações da pós-graduação lamentam a per-da de espaço para reflexões aprofundadas e a tecnoburo-cracia que se instalou no meio científico.4 Esta frase evocou uma cena de uma revista com ilus-trações pornográficas, francesa, do século XVIII. A cenasadomasoquista mostrava o desenho de um homem ex-posto a uma mulher nua em pose sensual, que ele não po-dia alcançar. O homem estava preso em uma engenhoca

mecânica, tal que, caso ele tivesse uma ereção, seria grave-mente ferido por pontas afiadas em várias partes docorpo. Este homem estava exposto a uma situação ambí-gua: obrigado e, ao mesmo tempo, impedido de ter umaereção. Uma situação sem saída. A expressão brasileira ‘secorrer o bicho pega, se ficar o bicho come’, de uma ma-neira mais branda fala da mesma cena, cujo resultado éuma espécie de colapso e aniquilamento do sujeito, que sevê em uma situação insustentável.5 Embora o termo possa parecer inadequado, é precisolembrar o peso dos boatos na economia e na políticamundiais. A bolsa de valores funciona na base da boata-ria, que é capaz de quebrar empresas ou países de um diapara o outro. O poder da linguagem é, com freqüência,minimizado.6 Durante o XII Seminário Universitas/GT11 Anped,Campo Grande/MS: UCDB, 01/12/2006.7 Temos programado um conjunto de produções voltadaspara analisar as diferentes dimensões típicas do métier dopesquisador e que fazem parte de seu cotidiano.8 Cabe aqui mencionar o grande contingente de doutoresque tem sido meta do governo Lula formar (10 mil dou-tores por ano). Onde irão inserir-se tais quadros alta-mente capacitados? Dados parciais da pesquisa dedoutorado, em andamento, de Vânia Maria Alves (alunado PPGE da UFSC sob orientação de Lucidio Bianchettie minha orientação), focalizando a inserção dos doutoresformados nesse Estado, vem revelando que próximo dametade desse contingente de novos doutores insere-se empequenas IES não públicas do interior catarinense. Tam-bém tem se verificado que essa inserção é temporária, ecomeça a se configurar como um campo de trânsito, poismais cedo ou mais tarde, os novos doutores, depois deganhar experiência nessas pequenas instituições, inserem-se, via concurso, em Ifes. Uma certa itinerância e insegu-rança caracteriza também a profissão pesquisador.9 A título de exemplo do quanto esta invasão do espaçoprivado está acontecendo, mencionamos o evento Políti-cas de Ciência e Tecnologia e condições de trabalho do-cente, promovido pela ANDES/PR, ocorrido em 26/10/-2006 na UFPR, do qual participamos de uma mesa redon-da, para discutir a precarização da condição docente noâmbito da pós-graduação, a partir das políticas governa-mentais difundidas para esse nível da educação superior.10 Interessante estudo do psiquiatra Mario EduardoCosta Pereira (2003), sobre a insônia, situa na invençãoda energia elétrica o fim da garantia de sono tranqüilo,uma vez que a noite passou a ser tão útil como o dia.11 No âmbito da educação básica a movimentação exces-siva sempre foi considerada um sintoma a ser tratado, quedificulta a compenetração das crianças nas tarefas esco-lares, e costuma levar a consultar o neurologista: as cha-madas crianças hipercinéticas. Hoje, a produção da in-dústria farmacêutica tem produzido inúmeras inovaçõesno campo dos medicamentos, e inventado também as

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Educação: prioridade nacional?

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doenças que permitem as linhas de produção funcio-narem. Os déficits de atenção, alterações da memória,depressões etc., figuram entre os sintomas que pesquisa-dores apresentam, sem contar com a apelação genérica dostress, termo que justifica a medicalização de grandescontingentes da população, sem maiores explicações oujustificativas.12 Trata-se do Aplicativo para Propostas de Cursos No-vos utilizado pela Capes para avaliar os Programas dePós-Graduação stricto sensu.13 Está em nosso programa de produções para um futuropróximo abordar sistematicamente os diversos tópicosaqui apenas elencados.14 Destaque para o Fórum Paulista de Pós-Graduação,sob a liderança de Antônio Joaquim Severino, Sandra Zá-quia e outros, a partir de 1990.15 A pesquisa citada, desenvolvida por Silva, Bittar e Ve-loso (2004), integrantes do grupo Universitas, mapeandoas temáticas publicadas no periódico Infocapes entre1996 e 2000, revela, nas primeiras edições examinadas,preocupações com o planejamento e o estabelecimentode políticas para formação de recursos humanos (no caso,pesquisadores), porém, circunscrita ao exterior. Os arti-gos discutem a necessidade de regular a concessão de bol-sas para mestrado e doutorado, isto é, direcionar os in-vestimentos do país para áreas de interesse nacional. Rei-teramos que a pesquisa abordando temas relativos à for-mação do pesquisador no Brasil e à pós-graduação con-tinua escassa, e a subárea constitui-se em filão importan-te, inovador e estratégico na área educacional.

REFERÊNCIAS

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DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 149

Educação: prioridade nacional?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Incluido en Antología poética. Mario Benedetti. Alianza Editorial. El libro de bolsillo. Biblioteca de autorBA 0078. Madrid, 1999.

DEFENSA DE LA ALEGRÍA

150 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Defender la alegría como una trinchera defenderla del escándalo y la rutina de la miseria y los miserables de las ausencias transitorias y las definitivas

defender la alegría como un principio defenderla del pasmo y las pesadillas de los neutrales y de los neutrones de las dulces infamias y los graves diagnósticos

defender la alegría como una bandera defenderla del rayo y la melancolía de los ingenuos y de los canallas de la retórica y los paros cardiacos de las endemias y las academias

defender la alegría como un destino defenderla del fuego y de los bomberos de los suicidas y los homicidas de las vacaciones y del agobio de la obligación de estar alegres

defender la alegría como una certeza defenderla del óxido y la roña de la famosa pátina del tiempo del relente y del oportunismo de los proxenetas de la risa

defender la alegría como un derecho defenderla de dios y del invierno de las mayúsculas y de la muerte de los apellidos y las lástimas del azar

y también de la alegría

MMaarriioo BBeenneeddeettttii

Professora da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal

Fluminense, Marina Barbosa Pinto tem uma trajetória traçada

pelas lutas sociais. Desde os tempos de bancária, trilhou e cons-

truiu seu caminho na vida sindical. Como docente da UFF, parti-

cipou da seção sindical local como diretora, vice e chegou à presi-

dência da ADUFF. Em 2000, participou da diretoria nacional e, em

2004-2006, presidiu o ANDES-SN.

Em meio a um governo supostamente popular-democrático, Ma-

rina não se furtou à luta pela desconstrução desse discurso, nem se

deixou abalar pelas dificuldades: sua gestão foi marcada por emba-

tes, greves, intervenções e denúncias quanto aos rumos do país, no

governo Lula.

Marina Barbosa Pinto é daquelas personalidades que reúne teo-

ria e prática: pesquisadora dos movimentos sociais, do movimento

sindical e do mundo do trabalho, levou a teoria para a militância

sindical e da militância político-sindical trouxe a experiência que

enriquece a teoria e permite a leitura crítica da realidade.

Entusiasta, militante nas várias frentes de luta, Marina Barbosa

Pinto acompanha as transformações sociais com a clareza das difi-

culdades de mudança num mundo imerso no capitalismo, mas com

a fé inabalável na possibilidade da construção de um coletivo popu-

lar e democrático, convicta não só da necessária e urgente defesa da

educação pública em nosso país como da ruptura com o sistema em

que vivemos.

Memória Docente

152 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Marina Barbosa Pinto“... só existe diferença entre iguais, entre os desiguais existe hierarquia.”

Por AAnnttôônniioo PPoonncciiaannoo BBeezzeerrrraa*

U&S: Marina, faça um breve relato da suatrajetória na militância sindical local, regional enacional. Como você começou sua militância atéser presidente do sindicato nacional?

Marina: Eu comecei a trabalhar na Universi-dade Federal Fluminense em 1993. A minha ex-periência de vida militante até aí foi enquantobancária de um banco privado no Rio de Janeiro.Acumulei muita experiência de militância, umamilitância muito diferente do que é uma militân-cia sindical no setor público. Vim para a univer-sidade trabalhar já numa fase diferente da vida,uma fase em que eu estava apostando num outroprojeto profissional. Mas a vida militante é umaopção e assim que cheguei comecei a atuar nosindicato local. Comecei a participar dos gruposde trabalho, das assembléias, dos seminários efui construindo uma relação até me apresentarcomo uma força para somar aos que aqui já ti-nham uma trajetória de luta.

A ADUFF é uma seção sindical que tem umpeso local, um peso nacional, tem uma trajetória

de formação de quadros importante para o mo-vimento sindical nacional e acho que o queaconteceu comigo foi um pouco a continuidadenum patamar diferenciado. Assim, eu vim para osindicato e desde esse tempo eu já participei dediferentes gestões. No âmbito local, eu fui parteda secretaria de uma gestão, vice-presidente deuma outra gestão e presidente da seção sindical.

Nessa trajetória, a experiência com a mili-tância nacional foi também a partir das discus-sões locais, das tarefas locais, participando doseventos nacionais, dos grupos de trabalho. Mi-nha atuação sempre foi no Grupo de Trabalhode Política de Formação Sindical, trabalhandomuito numa linha de contribuir com a discussãolocal e, a partir dessa discussão, procurar con-tribuir para a discussão nacional.

E acho que a minha relação com a militâncianacional se fortaleceu mais no período em que

Memória Docente

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 153

A vida militante é uma opção.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

nós vivemos a situação mais triste do ANDES-SN, que foi quando a oposição dirigiu o nossosindicato e passamos a ser um grupo político deoposição àquela gestão, de 1998 a 2000. Ali, euacho, alguns militantes nossos tiveram um papelimportante, de agregar, de construir uma inter-venção firme na trajetória de luta do nosso sindi-cato. Foi quando construí um pouco as bases pa-ra que o coletivo considerasse a possibilidade deeu cumprir essa tarefa nacional, que foi a presi-dência do sindicato. Depois desses dois anos emque atuamos como oposição nacional, eu contri-buí com uma gestão: fui do bloco da vice-presi-dência, na gestão de 2000 a 2002, e depois retor-nei como presidente do sindicato, na gestão de

2004. É uma trajetória de uma pessoa que se dis-põe a construir coletivamente esse processo eque, a partir das discussões locais e das tarefaspreviamente definidas, foi contribuindo e ten-tando construir uma intervenção em âmbito na-cional.

U&S: Quanto a sua militância política,agora política-partidária, como se deu essa opçãopolítica bem à esquerda? Como você articulouisso com o movimento nacional, levando aindaem consideração a existência de uma certa rejei-ção, com relação a determinados comportamen-tos femininos, o próprio machismo que domina omovimento docente? Mas você se colocou comêxito nesse contexto. Fale um pouco sobre essefato.

Marina: A minha origem de militância estávinculada à igreja católica. Eu sou do interior doestado do Rio de Janeiro, a minha família é todacatólica e quando, por volta dos meus 15 anos,comecei a ter contato com uma possibilidade,uma intervenção mais politizada, vinculada à

Teologia da Libertação, eu comecei a atuar, masnaquele momento, como já disse para oANDES, me parecia tão somente uma questãode fé. Depois, quando a gente vai se politizandomais, que vai compreendendo melhor as relaçõessociais e a representação política dessas relações,eu percebi que, de fato, já era uma militância,quando eu me envolvia com a discussão das ter-ras na minha cidade, com a ajuda aos moradorespara enfrentar os grandes fazendeiros. Depoisdisso, fiz uma experiência de estudo em Fri-burgo, é uma cidade maior, próximo da minhacidade, também num colégio de padres, ondeconsegui uma bolsa de estudos para fazer osegundo grau e então ali se estreitaram mais os

laços e foi quando militeiefetivamente na construçãodo Partido dos Trabalha-dores.

Minha entrada na mili-tância partidária foi via aminha experiência e minhaação como militante de fé

da igreja, da Teologia da Libertação. Quando eufui para o Rio de Janeiro estudar, fazer facul-dade, os horizontes se abriram, porque a genteconhece a militância do movimento estudantil,as diferentes correntes políticas, os embates,eram momentos de efervescência, era a luta peladerrocada final da ditadura, o ato dos milhões naCinelândia, vivi tudo isso, e aí comecei a conhe-cer melhor o que eram os embates dentro dessaopção política mais geral que eu tinha feito, foiquando optei por militar na então ConvergênciaSocialista. Eu militei nessa organização política,que depois, ao ser expulsa do PT, construiu umnovo partido político, que foi o partido que é oPSTU hoje. Foram 19 anos da minha vida... Éuma vida.

Aprendi muito nesse tempo de militância.Sou uma pessoa convicta de que para construirum projeto estratégico de mudança dessa ordempolítica, perversa, cruel, exploradora, é necessá-ria a militância em diferentes frentes, na frentesindical, na frente partidária, é necessário atuarde um modo amplo no enfrentamento das dife-

Memória Docente

154 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Partido não pode mandar em sindicato e nem sindicato pode dar a linha de umpartido, eles têm papéis diferentes dentroda luta por uma nova sociedade.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

rentes formas que esse capitalismo usa para des-truir as nossas vidas. Eu digo que viver a vidahoje é uma militância. Sobreviver, criar os fi-lhos, é também uma frente de militância. Então,para mim, essa experiência foi muito rica, por-que tive oportunidade de apreender questões,que quando eu avancei nos meus estudos inte-lectuais - no mestrado, no doutorado - essa ex-periência pôde se combinar muito. Meus temasde estudo são os movimentos sociais, a luta dostrabalhadores e essa suposta idéia de cidadão, deque a gente tem direitos nesse sistema. Ao traba-lhar na desconstrução dessa visão dominante, deque o nosso lugar é o lugar do cidadão e não dotrabalhador, essa minha militância partidária emilitância sindical contribuíram muito para umavisão mais crítica dentro da própria academia.Depois, por diferenças de posição política, demétodo de trabalho, considerei que esse não eramais um lugar que eu poderia estar para desen-volver o que eu aprendi, o que eu construí, o queeu acredito, e segui minha vida na militância sin-dical e sempre com uma clareza muito grande deque uma coisa não se sobrepõe a outra,de que os espaços e os papéis são dife-rentes, que eles se interligam em ter-mos de projetos estratégicos, mas a lutapartidária, a ação partidária tem o seulugar e o seu espaço e ela jamais podeinterpor às ações e aos espaços do sin-dicato. A necessária autonomia e a se-paração desses espaços, eu acho, é o grande mo-tivo e o grande argumento para seguir trabalhan-do na perspectiva da independência dessas inter-cessões, ainda que, enquanto indivíduo, as expe-riências que se travam nesses lugares vão se com-plementando, fazendo a gente crescer.

Então, para mim, estar num partido que hojese coloca (eu reivindico a existência do PSOL),como instrumento democrático nesse país de-pois da derrocada do PT como um instrumentode luta da classe, é importante, mas eu acreditoque a militância sindical e a militância partidáriasão componentes necessários na vida de cadaindivíduo para transformar essa realidade, maseles não podem ter uma relação de simbiose apá-

tica. Eles tem que ter uma relação de comple-mentaridade, respeitando o espaço e o papel quecada momento desse cumpre na vida de cada um.Partido não pode mandar em sindicato e nemsindicato pode dar a linha de um partido, elestêm papéis diferentes dentro da luta por uma no-va sociedade.

U&S: Você foi a terceira mulher a presidir oANDES, a primeira foi Maria José Feres, numaconjuntura especial, situada em um contexto detransição, a passagem do regime militar para ademocracia. Você também assumiu a presidênciaem um contexto muito especial, não mais detransição, mas um contexto de ‘esperança’ em umgoverno de base popular. Sabemos que alimen-tamos um pouco essa esperança, essa confiançanas mudanças. Quais eram as suas expectativasquando você se dispôs a ser presidente doANDES e quais as suas frustrações quando essaidéia de esperança foi abalada?

Marina: Nossa gestão se deu num momentoextremamente delicado. A gestão anterior en-

frentou um dos principais ataques do governoLula, logo no início do seu mandato, que foi aReforma da Previdência. Mas naquele momentoainda havia uma resistência mais ampla, umapossibilidade de você construir ações unitáriascom vários segmentos para resistir ao processo.À medida que fomos derrotados na Reforma daPrevidência e que o governo Lula começa a inci-dir de modo direto, desrespeitoso, acintoso, so-bre os movimentos organizados, com a máximade que os que estão comigo tem tudo, os que nãoestão comigo serão derrotados, dizimados - essa éa lógica do governo para o movimento organiza-do, que para mim é a maior derrota que esse go-verno pôde imprimir aos trabalhadores, porque a

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DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 155

A eleição de Lula foi uma vitória desses movimentos - o processo de

desenvolvimento do governo negou essa vitória.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

eleição de Lula foi uma vitória desses movimen-tos - o processo de desenvolvimento do governonegou essa vitória. Mas do ponto de vista da re-lação dele com os movimentos, nós, da gestão2004-2006, vivemos um momento de, digamos,ação mais direta do governo sobre os setores or-ganizados para fazer valer o seu projeto, coop-tando esses movimentos. O ANDES, ao não serender, sofreu as conseqüências de não se render.São entidades paralelas, são exclusões de proces-sos de debates, são tentativas de desmoralizaçãodo sindicato. Esse contexto é muito difícil.

A minha expectativa, quando assumi oANDES, vinha carregada de receios, de muitaresponsabilidade, mas a principal questão queme motivava era que nós tínhamos a capacidade,tivemos naquele momento, da construção dachapa, de finalizar uma unidade para enfrentaressa conjuntura difícil. No nosso coletivo de

construção da chapa, tivemos diferenças, tive-mos proposições diferenciadas, mas terminadoaquele processo saímos como um homem só,com unidade, para construir o enfrentamento eessa era a expectativa que eu tinha. Acho que acategoria tem uma visão muito presidencialista.Isso nos coloca numa posição bastante delicada,mas minha expectativa era de que eu pudesse, naconstrução do processo de condução do traba-lho da gestão, construir, o mais democratica-mente possível, uma ação do sindicato que pu-desse ser construída naquela diretoria, refletindoos anseios da base e levada adiante de modo ex-tremamente democrático.

A minha principal expectativa era essa. Tivea felicidade de ter um conjunto de companheirose companheiras que assumiram esse desafio. Eucostumo brincar e dizer que na verdade não erauma presidente, era um coletivo. A relação como secretário geral e com o tesoureiro que, na es-trutura do sindicato, são as pessoas que condu-

zem cotidianamente o sindicato, foi de uma inte-ração extraordinária. Eu posso dizer que ne-nhum discurso meu, nenhuma fala minha, foifeita, nesse sindicato, sem a leitura atenta dosdois, sem a opinião dos dois, sem a posição co-letiva de nós três. A minha expectativa, desseponto de vista, não se frustrou, porque ela foiconstruída como uma posição da direção na re-lação com a sua base, na relação das tarefas a se-rem cumpridas.

Agora, acho que um dos grandes dramas quenós vivemos foi que a nossa gestão também ex-perimentou um momento em que os estragosfeitos pelo governo anterior, e assumidostambém pelo governo Lula, já se consolidavamnas universidades. Havia uma dificuldade doprocesso do trabalho docente, uma sobrecargado trabalho, uma precarização e uma ideologiaque avançavam tentando convencer as pessoas

que o sindicato não émais o seu lugar. En-tão, consolidar e for-talecer mais o tra-balho do sindicato foio grande desafio. E

acho que nós avançamos bastante, mas precisá-vamos avançar mais. O que utilizamos comotática foi reafirmar as posições do sindicato,entrando em todos os espaços, em todas as lutas.Então, por isso, fizemos uma série de movimen-tos: aprovar agenda para a educação superior noBrasil, aprovar instrumentos legais que prova-vam que era possível construir projetos de lei elegislatura a favor de uma educação pública, deum ensino superior público.

Acho que a frustração maior foi ter que con-viver com um momento especial do movimentosindical, muito duro para os movimentos com-bativos e classistas. Sentar numa mesa de nego-ciação em que, do outro lado da mesa, estãoaqueles que, durante 10, 15 anos, negociavamcom você do lado de cá da mesa. Essa mudançaé uma mudança que não pode ser desprezada. Ogoverno Lula não te conhece por dentro, nóstambém não o conhecemos muito, mas ele assu-miu métodos diferentes do nosso, estranhos a

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156 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Esse movimento de ‘ganhar’ a categoria para a resistência e fazer com que ela não desista da resistência foi o processo mais difícil.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

nós. Você sentar numa mesa, apresentar seus nú-meros. Do outro lado, ter seu companheiro que,até cinco meses antes, fazia esses números comvocê e ouvir: esses seus números não servem,não é mais esse o critério... Esse é um elementobastante duro de ter vivido nessa gestão e acategoria responder a isso é difícil, porque vocêtambém tem que levar em consideraçãoa militância, que não é só um problemade apreender racionalmente a questão, énecessário que ela elabore os seussentimentos em relação a esse processo.Como essa esperança se desmonta e cai,desmorona um castelo a sua frente em que tudoaquilo que ela apostou e acreditou se descons-truiu com uma faixa no peito de Presidente daRepública. Esse movimento de ‘ganhar’ a cate-goria para a resistência e fazer com que ela nãodesista da resistência foi o processo mais difícil.Eu não diria frustração, porque acho que nósresistimos e garantimos espaços, expressão e pu-demos dizer para a sociedade o seguinte: não háum pensamento único, não há uma concertaçãonacional. Há uma imposição por métodos es-tranhos a nós e uma descaracterização da demo-cracia no movimento.

U&S: Em termos objetivos, quais foram ostrabalhos, as ações para superar essa relação quepassou a ser uma relação de oposição, já quevocês não podiam mais contar com aquele pessoalque se tornou diferente. Que trabalho foi feitopara que não houvesse a frustração, mas que otrabalho continuasse de alguma maneira, pelomenos, na relação com o parlamento, com oCongresso.

Marina: Fizemos dois movimentos. Primei-ro, nós aprofundamos as nossas análises: estuda-mos muito, produzimos muito, o GT-PolíticasPúblicas elaborou barbaridades na minha gestão,como em outras, mas entendíamos que era ne-cessário destrinchar as propostas, entender osignificado delas, desvendar aquele processo.Essa foi uma opção. A partir daí, reafirmar osnossos princípios e apresentar propostas alterna-tivas para a sociedade, professores, demais sin-

dicatos, parlamento, inclusive utilizando táticasque até então a gente não estava usando, umaagenda, um projeto de lei que prova que é possí-vel manter o financiamento do jeito que defen-demos e não o financiamento como o governopropõe. Nós, digamos assim, aprofundamos asanálises e continuamos na trilha de ação que o

sindicato desenhou e vem desenhando na suahistória - com exceção daquela interrupção trá-gica que tivemos -, que é o enfrentamento, a au-tonomia, porque nos permite dizer o que que-remos, onde estamos. Também a situação deapresentar alternativas, de se apresentar comoquem quer fazer o diálogo e propõe, consisten-temente, a partir das suas análises, alternativasque são viáveis, e demonstrar para a sociedade epara os professores que é um problema de von-tade política, que é um problema de opção, quealternativas práticas, técnicas, financeiras sãopossíveis de serem construídas.

Tivemos também um duplo movimento quefoi viajar o Brasil inteiro, estar em todas as seçõessindicais, fazer discussão do sindicato nacionalvia regionais, aparecer mais, estar mais presente,e no âmbito do Congresso Nacional, enfrentar odebate em todos os espaços que se apresentavam.Todos. Em todas as comissões: as comissões dedefesa do serviço público, comissão em defesa daeducação, comissão de ciência e tecnologia, co-missão de telecomunicações; em todas essas co-missões o sindicato teve assento, presença e nãodeixou, em nenhum momento, de apresentar assuas propostas. Acho que esse trabalho é um tra-balho importantíssimo que fizemos no âmbito dadefesa mais geral da educação pública.

Dois outros movimentos se combinaram,que foi o movimento de aprofundar a discussãosobre a situação do movimento sindical brasilei-ro; a gente se debruçou sobre isso, nós discuti-mos a situação de representação dos trabalhado-

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DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 157

O tempo de resistência é o tempo que se prova a firmeza dos

princípios e a coerência das ações.

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res, quais eram as melhores formas para lutar, pa-ra juntar, para garantir que as pessoas seguissempresentes, também, depois de um bom tempo dediscussão de que a CUT não representava maisessa possibilidade de alçar uma luta mais forte,mais representativa, nos desfiliamos da Central eseguimos atuando em todos os espaços que reu-niam os lutadores, aqueles que não queriam essavirada do jogo contrário aos movimentos sindi-cais, de perda dos direitos. Nós estivemos pre-sentes, em todos esses espaços, dialogando, cons-

truindo... E o ANDES cumpria um papel inte-ressante porque como nosso funcionamento temparticularidades, ele é diferente dos demais sin-dicatos, ele tem uma experiência diferente - eaqui não estou julgando se é melhor ou pior, é sódiferente -, o que eu vi e o que nos empenhamospara fazer foi cumprir o papel daquele que agre-ga, daquele que abre seus espaços, abre suas asase diz: venham! Vamos ter disposição política, va-mos discutir as nossas diferenças, vamos fecharem quatro, cinco, seis itens programados, aquelesque nos unificam, vamos discutir as nossas açõese vamos construir a resistência, porque o inimigoestá lá fora, não está aqui...

Eu costumo dizer o seguinte: só existe dife-rença entre iguais, entre os desiguais existe hie-rarquia. Entre os trabalhadores, entre os que de-fendem a educação pública, esses que defendemos direitos dos trabalhadores, não há diferença.Nós somos iguais, nós não somos diferentes. Es-sas diferenças são diferenças pontuais, de tática,de momento e isso é possível resolver e oANDES se empenhou nessa perspectiva: juntar,juntar, juntar o tempo todo. Tentamos isso emvárias passeatas. O ANDES abriu sua estrutura,sua infra-estrutura, sua sede. As seções sindicais

se envolveram com esse movimento de reco-nhecer a necessidade de um avanço na organi-zação dos trabalhadores. Agora estamos no de-bate sobre a Conlutas, que é toda uma discussãoque está mobilizando uma parte importante danossa vanguarda e que precisa ser aprofundada,porque vamos tomar essa decisão no Congresso.

Por fim, uma outra frente de ação foi cuidardos setores do sindicato. O setor das federaistem vida própria, tem já uma dinâmica muitoavançada, porque é maior, porque tem uma

experiência acumulada. Enfrenta-mos uma greve duríssima e o or-gulho dessa greve não é pelo tempoque ela durou, mas pelo que ela foicapaz de dizer à sociedade, aosprofessores, com toda a dor de vi-ver esse enfrentamento. Mas comtoda a dificuldade, não nos rende-mos, não nos rendemos ao mais

fácil, não nos rendemos ao que parecia ser a so-lução e mantivemos firmes os nossos princípios.O tempo de resistência é o tempo que se prova afirmeza dos princípios e a coerência das ações eo ANDES provou isso.

No âmbito das particulares, avançamos mui-to também. O tratamento diferenciado permitiudiscutir, inclusive, a natureza do trabalho doprofessor do setor das particulares e a repercus-são disso na sua vida de militância, na sua vidasindical. Enfrentamos, estamos enfrentandoagora, as conseqüências disso, mas fizemosrepresentação na OIT, fizemos denúncias, dos-siês, fizemos discussões aprofundadas sobre aforma de militar no setor privado, que é dife-rente do setor público, mas esse ainda é um ele-mento que precisa avançar muito no nosso sin-dicato. Toda vez que discuto isso me lembro daminha vida como bancária... A gente militava demodo clandestino, militava com uma retaguardado setor público de bancos nos ajudando a avan-çar no enfrentamento com os banqueiros do se-tor privado e isso nós vamos ter que aprendertambém no nosso sindicato: o que é enfrentar opatrão, empresário da área da educação.

No setor das estaduais, uma grande expres-

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158 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Esse sindicato é muito mais do queuma defesa de corporação, ele é umatrincheira de defesa da estratégia queé ter uma educação pública a serviçoda população desse país.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

são do nosso avanço foi a unidade maior dessesetor, uma diretriz maior de enfrentamento. Tiveo orgulho de que, em todas as lutas, em todas asgreves, em todos os enfrentamentos pelos dife-rentes estados desse país, os professores punhamcomo linha de frente da sua pauta o aumento dorecurso financeiro para a educação pública da-quele estado, daquele município, então isso pro-va que esse sindicato é muito mais do que umadefesa de corporação, ele é uma trincheira de de-fesa da estratégia que é ter uma educação públicaa serviço da população desse país.

Foram muitas lutas, muitos enfrentamentos,não acertamos em tudo, evidentemente, masavançamos bastante.

U&S: Durante a sua presidência, o movi-mento PROIFES se manifestou sem ‘máscaras’.Esse movimento já passou por vários nomes.Como você avalia esse movimento e a disputa deespaço na condução da política sindical doANDES? Qual a sua avaliação desse movi-mento, sobretudo nesse momento em que eleaparece sem máscaras?

Marina: O sindicato sempre teve, na sua tra-jetória, algo que é extremamente saudável, que éo perceber diferente. Nós sempre tivemos, nabase do nosso sindicato, proposições diferentes,pessoas que se aglutinavam para disputar elei-ções com chapas diferentes, programas diferen-tes, essa é a vida de um sindicato.

O que existe de qualitativo e diferente nesseprocesso é que a existência do governo Lula, es-pecialmente a política de relação com o movi-mento organizado do governo Lula, determinoua queda da máscara. Determinou a criação oficialde um sindicato de carimbo. É como eu digo queeles são. São entidade oficial e chapa branca. Porquê? A oposição, ela é uma oposição que não tri-lha o caminho da autonomia e da independência,revelou, ao longo desse último período, de mo-do mais explícito, a sua concepção sindical, deque a depender dos senhores administrativos,nós podemos estar atrelados ou não. E nós te-mos uma diferença de fundo com isso. É o opos-to disso. Independentemente dos senhores da

administração, nós nos manteremos autônomossempre. O que não quer dizer que quando tiver-mos acordo com uma determinada proposição,vamos dizer que não, o que interessa e o que de-termina é o interesse da categoria.

O que eu tenho como análise desse processoé o seguinte: o governo tem os seus aliados, issofaz parte do processo político, e esses aliadostêm uma perspectiva - isso não foi só noANDES - os movimentos organizados e as enti-dades dos trabalhadores devem estar a serviço daimplementação das propostas desse governo,porque trabalham com uma lógica, muito entreaspas, de que esse é o nosso governo.

A priori nós não podemos dizer isso, mas in-dependentemente disso, depois de dois, três anosdo primeiro mandato, nós já sabíamos que essegoverno não era nosso. Era dos banqueiros, erados organismos internacionais, era do empresa-riado. Então, o que acontece? O governo monta,financia e sustenta politicamente uma chapa deoposição... Essa chapa perde a eleição. Perde aeleição e começa a construir uma intervenção queé, primeiro, de desconstrução da nossa concep-ção sindical, em termos de trabalhar o professordo ensino superior na sua totalidade, indepen-

dentemente das instituições. Começa a trabalharcom uma linha: nós temos que ter a separaçãodos professores das federais, professores das es-taduais, professores das particulares, isso é umenfrentamento direto à nossa concepção sindical;segundo, trabalham com uma perspectiva de quea política do ANDES é uma política que destróia possibilidade de os professores estarem numpatamar melhor do momento histórico, pois elesconsideram que esse momento é o momento deconstruir um novo país.

Ao assumir uma posição de seguir tão so-mente defendendo o que sempre defendemos,não construímos outras proposições. Nós pega-mos o PNE da sociedade brasileira, que todosconstruímos juntos, pegamos as propostas cons-truídas por todas as instâncias da educação para

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DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 159

A esperança está na luta.

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debater a proposta que o governo fazia de refor-ma universitária... Nós discutimos os critériosde financiamento que, ao longo de 15, 20 anos,assumimos como bandeiras centrais do movi-mento. Essas pessoas dizem o seguinte: esse nãoé mais o momento disso. Esse é o momento deredefinirmos nossos patamares de reivindicaçãoporque precisamos ajudar a construir um outromomento do país. Ao fazer isso, eles começam aatuar dentro do sindicato, depois de perder aeleição, e cada vez mais sofrem derrotas, porqueessa construção não é a construção que a cate-goria docente tem, ao longo do seu tempo. Elessão derrotados mais vezes nas instâncias do sin-dicato, nos congressos. Nos debates defendem apermanência na CUT porque a CUT é a saídapara fortalecer o movimento diante do governoLula, para dar um exemplo mais explícito dadiferença. E o que acontece? Como eles come-

çam a perder cada vez mais no debate demo-crático das instâncias do sindicato, surge umasaída construída dentro do Ministério da Edu-cação, a partir de uma intervenção direta do go-verno, aparece uma nova entidade: o ANDESque siga fazendo o seu movimento. Vamos cons-tituir, à época, diziam, um fórum de debates,que, na prática, pela ação do governo, foi alçadaà condição de sindicato, quando é chamado paraa mesa de negociação.

Quero registrar que não se passam 25 anosde vida de um sindicato impunemente. Nesses25 anos, esse sindicato educou muito essa cate-goria do ponto de vista político, estratégico erecebi muitos e-mails, muitas cartas e muitos te-lefonemas de pessoas hipotecando solidariedadeao nosso sindicato e que me diziam que estavacorreta a posição do sindicato naquele enfrenta-mento. Algumas pessoas, inclusive, diziam: nãovotei em você para presidência do sindicato, mashoje você é a minha presidente, porque o gover-no não pode fazer isso.

Na verdade, a tática desse grupo que quer

destruir o ANDES, a partir da ação do governoe daqueles que querem transformar o nosso sin-dicato num sustentáculo das propostas governa-mentais, começa a mudar e disputar as seçõessindicais para, a partir daí, tentar mudar o perfildo ANDES.

Esse é um alerta que, temos que ter e alian-çados com muitas das reitorias locais. Você disseuma coisa certa: aqueles que eram oposição à li-nha política do sindicato - as instâncias, as deci-sões -, puderam, a partir da força vinda do go-verno e da sustentação política dura do governo,tirar sua máscara e dizer: na verdade, o que que-remos é destruir o ANDES-SN e fazer dessa ca-tegoria, a partir da sua representação, alvo desustentação do projeto governamental.

U&S: Você foi presidente dois anos e fez esseenfrentamento ao governo Lula. A gestão atualvai prosseguir nesse enfrentamento. Apesar de setratar do mesmo governo, há diferenças porque,no começo, ele ainda trazia alguma esperança.Hoje você não tem mais isto, você tem o aprofun-damento do que aconteceu lá, que é o desmontedo movimento sindical. O que o sindicato deve-ria ter feito, que você não pôde fazer, porque essaexpectativa não estava ainda firmada na cabeçados dirigentes do sindicato, para melhor enfren-tar as dificuldades?

Marina: Temos feito várias reuniões, come-çando os preparativos para o Congresso, para osGTs locais. Tivemos uma conversa, alguns diasatrás, discutimos um pouco que conjuntura éessa, qual é a situação dos professores, acho quevocê tem toda razão, o que se avizinha são tem-pos muito difíceis. O governo está costurando abainha final, nesse momento, e o que vai deter-minar essa costura? O acordo entre todos ossegmentos que estão hoje dirigindo o país, mes-mo os que se dizem oposição, que é o ataque aostrabalhadores para garantir a rentabilidade docapital, a partir da destruição dos direitos dostrabalhadores. Temos a terceira geração de refor-ma da previdência, reforma trabalhista, reformasindical, tudo isso está posto no imediato. E oque a gente percebe da categoria, e eu inclusive

Memória Docente

160 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007

Eu não tenho vida se eu nãotiver vida militante.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 161

tenho uma avaliação que não é só da categoriadocente, acho que existe um processo de desmo-bilização estrutural. Como disse no início, é ne-cessário elaborar racionalmente e do ponto devista da vontade política, o que precisa, nessemomento, é um trabalho de convencimento e dearrebanhar as pessoas, ganhá-las, para não sedeixar derrotar por essa ausência de expectativade que esse governo possa fazer diferente.

A gente usava uma frase, ao final de cada do-cumento nosso, que era a seguinte: a esperançaestá na luta. Eu acho que é convencer-se disso.Por quê? Porque os ataques vão vir. Outro diaum professor dizia, aqui na UFF, que agora nãovai ter mais secretário nos departamentos, temosque digitar todas as notas. E ele me perguntava:Marina, mas isso não podemos fazer, vamos cor-roborar com a idéia de não ter mais técnico-ad-ministrativo na universidade. Falei: de fato... En-tão, eu estou dando esse exemplo para mostrar asobrecarga de trabalho, não é só um problema dedar três, quatro disciplinas, de não ter dinheiropara pesquisa... É no dia-a-dia, é pela ponta queo governo vai implementando o seu projeto, é lápela ponta, quando você tem que preencher re-latório, não sabe muito bem para que, quandovocê não entende aqueles critérios para realizarsuas atividades... É por essa ponta que o governovai implementando seu projeto. Aí o que percebocomo necessário - tenho certeza que essa direto-ria já está fazendo e vai seguir fazendo - é avançarno trabalho de base do nosso sindicato, é fazercom que as pessoas saiam dessa imersão, a imer-são da sobrecarga do trabalho, da precarizaçãodo trabalho e da imersão de que não é possívelconquistar nada.

O maior problema hoje é que pode consoli-dar-se um sentimento de que nada mais adianta.São tempos difíceis, temos que esperar, temosque... Isso não podemos permitir. Há resistênciasocorrendo no Brasil, na América Latina. Há ummovimento de resistência dos imigrantes na Eu-ropa, há movimento de efervescência dos traba-lhadores pelos seus direitos, que ainda está frag-mentado, que ainda é aquém da necessidade domomento, mas o que não podemos permitir, e eu

sei que essa diretoria vai trabalhar nesse sentido,é que a gente fortaleça essa fragmentação, essa se-paração. A gente não deve deixar que esse maras-mo e essa desesperança tomem conta. Precisamosreafirmar que. na luta, no debate e no embate, essaesperança se reaviva e faça o sorriso surgir, traga apossibilidade de andar, de caminhar, em Brasília,sob um sol enorme, das manifestações, noCongresso e dizer: queremos respeito, vocês aquisão nossos empregados, nossos comandados.

U&S: Marina, por fim, quais são seus planosfuturos de atuação no ANDES-SN?

Marina: Quando terminou o últimoCONAD, que voltei para minha casa, para meucompanheiro, para meus filhos pequenos, meucompanheiro, os meus filhos me diziam: vocêprecisa de um tempo de adaptação, para voltarpara casa, para o trabalho... É meio isso mesmo.

Eu já estou trabalhando, dei três disciplinasesse semestre, já apresentei projeto de pesquisa,estamos trabalhando num projeto de extensão,voltei com tudo para minha vida acadêmica, paraminha sala de aula, para os meus alunos, para abiblioteca, para os estudos, eu priorizei isso ago-ra. Mas eu não tenho vida se eu não tiver vida mi-litante. Continuo atuando na ADUFF, partici-pando do GT local, indo para as assembléias...

Pretendo seguir aprendendo com esse sindi-cato, seguir atuando como base desse sindicato,cumprindo as tarefas que coletivamente a genteconstruir e apostando que a luta dos trabalhado-res desse país, com os passos que ele vai ser capazde dar, vai avançar e que eu vou estar nela. Semisso a gente não tem coração ‘vivo’, sangue cor-rendo, porque não tem como dar uma aula semdiscutir com os meus alunos a situação da uni-versidade que o meu sindicato vai lutar pra queeles tenham melhores condições de aula e que eupossa ser uma professora melhor para eles. Vou‘seguir’ a vida, tentando atuar politicamente, mi-litando no sindicato e continuar sendo feliz, comos amigos, a militância, os alunos.

* Antônio Ponciano Bezerra é Pró-Reitor da Universi-dade Federal de Sergipe e editor da revista Universidadee Sociedade

Memória Docente

164 - DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Foi lançado em 2006, o livro Universidade: ademocracia ameaçada, organizado por Waldir

Rampinelli, Valdir Alvim e Gilmar Rodrigues.Trata-se de uma obra composta por 14 artigos,todos de autoria de integrantes do cotidiano uni-versitário: professores, pós-graduandos, jornalis-tas e servidores técnico-administrativos da Uni-versidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e deoutras universidades públicas brasileiras e latino-americanas.

O traço comum a amalgamar os artigos é aforte preocupação para com a defesa do caráterpúblico da Universidade, sob diversos ângulosdo trabalho realizado no interior da instituição.Daí o próprio título da obra, que apresenta comoinspiração e como força motriz o entendimentode que, para que se consiga ampliar, com firmezae coerência, tal compromisso com o ‘público’, éindispensável a ampliação e o aprofundamentodas práticas democráticas também no âmbito daprópria Universidade. Inclusive porque esta ins-tituição, mantida pelos cofres públicos, diante doavassalador domínio do analfabetismo, funcionalou não, a caracterizar historicamente a sociedade

brasileira, é um campo privilegiado para a pro-moção do avançar da democracia em nosso meio,teórica e praticamente (para perceber mais pro-fundamente o significado disto, é fundamentallembrar que a pesada e distorcida carga tributárianacional, proporcionalmente, acaba incidindomais sobre a multidão dos brasileiros que ga-nham menos, sob a forma de impostos indiretos,como o ICMS). Considero importante recordarque a UFSC proclama como sua missão produzir,sistematizar e socializar o saber filosófico, cientí-fico, artístico e tecnológico na perspectiva da cons-trução de uma sociedade justa e democrática. Seráque tal mister vem, de fato, sendo perseguido econcretizado? Universidade: a democracia amea-çada possibilita levantar sérias dúvidas a respeito,chegando mesmo a afirmar que a democracia en-contra-se ameaçada.

Diante da continuidade secular do abissalquadro de excludência, que mantém o Brasil navergonhosa posição de ser um dos campeõesmundiais no quesito desigualdade econômico-social, apenas superado por um e/ou outro paísdo continente africano (geralmente marcados pe-

Por que a democracia encontra-se ameaçadano interior da universidade?

Marli Auras

Professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Resenha

DF, ano XVI, nº 39, fevereiro de 2007 - 165UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

la presença de guerra civil entre seus diferentesgrupos étnicos), urge perguntar pela real densi-dade do caráter público da propalada democraciabrasileira e, também, já que são questões inter-relacionadas, pelo caráter público da universida-de pública. Se o grande traço de nossa paisagemsocial é a desigualdade, a marcar feito um vergãogerações e gerações de nossos patrícios Brasilafora, seria ingenuidade imaginar que a Universi-dade nada ou pouco tenha a ver com tudo isso. Éfundamental, pois, que venha a contribuir para acriação de um outro “clima cultural”, que pro-blematize profundamente o status quo, que bus-que desvelar - em todos os campos do saber - agênese e os nexos responsáveis pela sempre rei-terada reprodução do mesmo, de modo a possi-bilitar o avanço das condições históricas capazesde, efetivamente, promover a construção da respublica. Tal imperativo demanda, ao fim e ao ca-bo, a construção de um projeto nacional, demo-crático e popular, que trate de responder, de fato,ao desafio de mobilizar legiões e legiões de brasi-leiros, de todas as idades e quadrantes, para a ge-ração de um coletivo que possa romper com acondição subalterna e garantir mais e mais uma vi-da decente e digna para o conjunto da população.

Os artigos, encharcados por esse caráter mi-litante, desafiam ao debate, à produção de novase singulares sínteses a partir da diversidade dotrabalho realizado nesta instituição. Vale a penaconferir. O leque das discussões vai do papel dosintelectuais latino-americanos na transformaçãosocial aos rumos da educação universitária bra-sileira, sob o domínio do capital financeiro e doconservadorismo. O que vem a ser democracia (épreciso “democratizar a democracia”) e a própriaidéia de universidade, a relação entre o público eo privado e a questão do exercício do poder nointerior da instituição, seus vários processos elei-torais, a acelerada corrida pelo Lattes (condiçãosine qua non para a vida acadêmica), a ausência deuma política de comunicação entendida como umbem público, a greve de nove meses dos servidoresda UERJ e o desvelamento do discurso suposta-mente democrático da reitoria e a cerrada luta domovimento estudantil da Universidade Estadual

de Londrina pelo alargamento de sua participação,são temas trabalhados em Universidade: a demo-cracia ameaçada. Mas, há ainda mais.

O leitor interessado encontrará artigos que,feito dardos, lançam perguntas fundamentais,tais como: Com a universidade pública em desca-so, é a sua reforma que precisamos discutir?, Porque atualmente se descarta com tanta facilidade ocompromisso nacional que ‘toda’ universidadepossui?, Como é possível que milhares de univer-sitários brasileiros se dirijam, ano após ano, àsuniversidades estadunidenses e européias e nãopercebam que as instituições que freqüentam enas quais conquistam seus títulos são ‘universida-des nacionais’?. Continuam, na obra, as proble-matizações, todas fecundas e fundamentais,abordando a relação: crise da universidade, desa-fio digital e democratização do ensino (Formaçãoeducacional para aprender a comprar ou paraaprender a refletir?). Por fim, gostaria de desta-car um artigo que, pela riqueza e seriedade desuas fontes, alcança o caráter de uma denúncia:Ensino público e gratuito: a problemática dos cur-sos de pós-graduação lato sensu e as fundações deapoio. Você sabia, caro leitor, que há casos deprofessores que conseguem faturar cerca deR$ 70 mil mensais só com a remuneração rece-bida das fundações? E que há casos de alguns tãoenvolvidos com o oferecimento de cursos pagos,fora da sede, que chegam a ser substituídos pelosseus doutorandos que, como orientandos-profes-sores, são remunerados pelas aulas ministradas?

Para finalizar, faço minhas as palavras da pro-fessora Zilda M.G. Iokoi, da Universidade de SãoPaulo (USP), responsável pelo prefácio: “Consi-dero que este livro será muito significativo para odebate sobre a democratização da universidade,que, como puderam observar, é equivalente ao dademocratização da sociedade”.

Universidade: a democracia ameaçadaWaldir Rampinelli, Valdir Alvim e Gilmar Rodrigues (Orgs)São PauloXamã264 p.

Resenha