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sumário SUPERDOTAÇÃO: CONCEITOS E CONTROVÉRSIAS LÍGIA ASSUMPÇÃO AMARAL ORIGINAL 5-11 DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DURANTE O SONO EM CRIANÇAS E JOVENS COM SÍNDROME DE DOWN: PROPOSTA DE ORIENTAÇÃO FAMILIAR PARA MELHOR QUALIDADE DE VIDA TELMA ROCHA CAMARGO E SILVANA MARIA BLASCOVI-ASSIS ORIGINAL 12-18 CRIANÇAS DE ALTO RISCO: EVOLUÇÃO DOS ASPECTOS LINGÜÍSTICOS E COGNITIVOS PAULA SCALA CHIARATTI E COLABORADORES ORIGINAL 19-23 AVALIAÇÃO NEUROPESICOLÓGICA DE CRIANÇAS PORTADORAS DE PARALISIA CEREBRAL HEMIPARÉTICA CONGÊNITA: ESTUDO PRELIMINAR MARIA DE LOURDES MERIGHI TABAQUIM E SYLVIA MARIA CIASCA ORIGINAL 24-29 ADAPTAÇÃO BRASILEIRA DO “INTERNATIONAL DYSLEXIA TEST”: PERFIL COGNITIVO DE CRIANÇAS COM ESCRITA POBRE ALESSANDRA G. SEABRA CAPOVILLA E COLABORADORES ORIGINAL 30-37 ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DO FILME “O OITAVO DIALÍGIA ASSUMPÇÃO AMARAL ORIGINAL 38-44 PROJETO AÇÃO CONJUNTA: A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO COM GRUPO DE FAMÍLIAS DE PORTADORES DE DEFICIÊNCIA MENTAL PARA A INCLUSÃO SOCIAL CLÁUDIA GALVANI E COLABORADORES DEPOIMENTO 45-48 RESENHA 49 SERVIÇOS 50-51 AGENDA 52 3

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sumário

SUPERDOTAÇÃO: CONCEITOS E CONTROVÉRSIAS LÍGIA ASSUMPÇÃO AMARAL ORIGINAL 5-11 DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DURANTE O SONO EM CRIANÇAS E JOVENS COM SÍNDROME DE DOWN: PROPOSTA DE ORIENTAÇÃO FAMILIAR PARA MELHOR QUALIDADE DE VIDA

TELMA ROCHA CAMARGO E SILVANA MARIA BLASCOVI-ASSIS ORIGINAL 12-18 CRIANÇAS DE ALTO RISCO: EVOLUÇÃO DOS ASPECTOS LINGÜÍSTICOS E COGNITIVOS

PAULA SCALA CHIARATTI E COLABORADORES ORIGINAL 19-23 AVALIAÇÃO NEUROPESICOLÓGICA DE CRIANÇAS PORTADORAS DE PARALISIA CEREBRAL HEMIPARÉTICA CONGÊNITA: ESTUDO PRELIMINAR

MARIA DE LOURDES MERIGHI TABAQUIM E SYLVIA MARIA CIASCA ORIGINAL 24-29 ADAPTAÇÃO BRASILEIRA DO “INTERNATIONAL DYSLEXIA TEST”: PERFIL COGNITIVO DE CRIANÇAS COM ESCRITA POBRE

ALESSANDRA G. SEABRA CAPOVILLA E COLABORADORES ORIGINAL 30-37 ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DO FILME “O OITAVO DIA” LÍGIA ASSUMPÇÃO AMARAL ORIGINAL 38-44 PROJETO AÇÃO CONJUNTA: A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO COM GRUPO DE FAMÍLIAS DE PORTADORES DE DEFICIÊNCIA MENTAL PARA A INCLUSÃO SOCIAL

CLÁUDIA GALVANI E COLABORADORES DEPOIMENTO 45-48 RESENHA 49 SERVIÇOS 50-51 AGENDA 52

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superdotação: conceitos e controvérsias lígia assumpção amaral Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo RESUMO: SUPERDOTAÇÃO: CONCEITOS E CONTROVÉRSIAS: A autora apresenta algumas de suas reflexões sobre os conceitos de superdotação, e

sobre as controvérsias deles decorrentes, a partir de uma tomada sócio-histórica do entendimento desta condição no Brasil

UNITERMOS: Superdotação - Excepcionalidade

ABSTRACT: HIGHLY GIFTED INDIVIDUALS: CONCEPTIONS AND CONTROVERSIES: The author presents some reflections on the conceptions of highly

gifted individuals, and on the controversies resulting from these conceptions, considering a social and historical comprehension of this condition in Brazil.

UNITERMS: Highly gifted individuals - Deficiency

Artigo Original AMARAL, L.A. - Superdotação: conceitos e controvérsias. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.57, p.5-11, 2001.

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Se desejarmos compreender o verdadeiro sentido da “água benta” devemos, mais que estudar suas propriedades físico-

químicas, conhecer as suposições e crenças dos que a usam.

Thomas Szasz O presente artigo tem como objetivo compartilhar

algumas reflexões, sobre superdotação, advindas de um momento particular de estudo – refiro-me ao meu processo de preparação para o concurso de Livre-Docência a que me viria submeter, na USP, em fins de 98. Ou seja, um dos pontos a abordar no referido concurso tinha exatamente o título deste texto.

Assim, após anos e anos de estudos e pesquisas relacionados à deficiência, havia que pesquisar o outro pólo, digamos assim, de um hipotético gradiente referido à esfera cognitiva do ser humano. Obviamente tive que me dedicar ao tema da superdotação de forma intensa – já que com a temática por mim melhor conhecida (a da deficiência) praticamente só havia em comum um rótulo genérico: excepcionalidade.

Mas, interessantemente esse foi o ponto por mim sorteado para a prova escrita, e que resultou no texto-matriz deste que ora compartilho.

Assim, naquele momento, como neste, opto por começar abordando o fato de a inclusão da superdotação vir sendo feita, há muito, no âmbito da excepcionalidade. Há muito, também, isso vem sendo por mim questionado (Amaral, 1988), dentre outras razões por haver sido criada - com o termo excepcionalidade - uma grande abstração conceitual, um grande guarda-chuva, sob o qual se “abrigam” tantas e diferentes condições humanas.

Como já referi, também em texto anterior (Amaral, 1996), o termo “excepcionalidade” surge no começo do século, firma-se na década de 50, fortalece-se rapidamente nos anos seguintes, tornando-se praticamente hegemônico nas décadas de 70 e 80, em muitos contextos geográficos. Sua origem insere-se, de acordo com alguns estudiosos, como dois autores de “manuais” tradicionais (Telford e Sawrey, 1975 e Cruickshank, 1988), em um movimento, cíclico, de enfrentamento de preconceitos, que substitui por novas aquelas palavras que, no decorrer dos anos, são apropriadas pela linguagem coloquial mas revestidas de cunho depreciativo e afastando-se drasticamente de seu teor científico. Ou seja, historicamente os termos utilizados para identificar determinadas condições - especialmente aquelas referidas a déficit intelectual - passaram a fazer parte

do vocabulário de insulto, como é o caso de “idiota”, “imbecil”, “cretino”, “débil”, “mongolóide” etc.

Todavia, apesar dessa intenção explícita, é possível pensar-se também em outros aspectos da questão, que na seqüência apresento como indagações, sendo que algumas delas, aliás, venho formulando desde o final dos anos 80 (Amaral, 1988). São elas: O grande móvel do termo excepcional terá sido apenas o incentivo da comunidade científica a um termo “mais adequado”? Ou terá sido uma forma de simplificar algo não tão facilmente simplificável, para tornar mais possível o assenhorear-se do “saber”? Ou terá sido para camuflar ou mesmo negar (no caso da deficiência) a própria idéia do déficit, da não completude, da falta enfim geradora de perplexidade e incômodo? O mesmo poderia ser dito sobre a inclusão, nessa mesma generalização, de condições como a velhice e a superdotação.

Seja como for, muitos de nós, pesquisadores da área, defendemos a idéia de que o termo excepcionalidade pode ser visto, por um lado, como uma generalização indevida e, por outro, como um eufemismo do qual podemos abrir mão com amplos benefícios, substituindo-o, conforme o contexto, ou por uma denominação geral: deficiência, ou por denominações específicas: deficiência física, mental etc., quando nos referirmos a condições peculiares do desenvolvimento humano.

Posteriormente foram sendo criadas outras terminologias, sendo a atual (e politicamente correta) a de “portador de necessidades especiais”. Trata-se a meu ver do mesmo eufemismo, da mesma generalização indevida, do mesmo “guarda-chuva”...

Mudam-se os nomes, mas mantém-se como um recorte específico em relação aos seres humanos - e eis aí uma outra questão a ser levantada: um recorte efetuado a partir de uma pressuposição de normalidade/anormalidade.

Como, talvez, não caiba discutir aprofundadamente essa questão - para isso remeto o leitor ainda a outro texto anterior (Amaral, 1995) -, limito-me a pontuar os três critérios básicos sobre os quais se apóia seu dimensionamento, a partir de três tipos de parâmetros: estatístico, estrutural/funcional e ideológico - o último concretizado em um “tipo ideal”, datado e contextualizado.

Penso que a superdotação foi sendo definida a partir especialmente do primeiro e do último critérios, na ordem inversa.

Assim, e como veremos mais à frente, parâmetros ideológicos e psicométricos (sucessiva e às vezes

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simultaneamente) definiram a condição de superdotação. Aliás, não é à toa que podemos encontrar na literatura especializada a expressão “supernormais” (grifo meu).

Estudando através de diferentes autores, pude constatar um remeter-se ao passado longínquo, como legitimação da criação da própria “categoria”.

Lucito (1971) - que menciono nominalmente uma vez que, ao que tudo indica, é uma fonte importante para os teóricos brasileiros e dos Estados Unidos da América (como respectivos exemplos: Alencar e Telford) - nos informa que na China, 2.200 aC, crianças eram submetidas a exames especiais para verificação de suas capacidades intelectualmente diferenciadas; algumas delas eram chamadas de “divinas” e encaminhadas à Corte por significarem “um presságio de prosperidade nacional”.

Na Grécia, através do discurso de Platão, somos informados de que os indivíduos com inteligência superior deveriam ser selecionados logo nos primeiros anos de vida, tendo suas habilidades cultivadas em benefício do Estado.

Percebe-se desde então o movimento de valorização de capacidades superiores inatas: semente do enaltecimento de heranças genéticas.

Provavelmente a partir dessa matriz de entendimento, Galton, em 1869, faz uma articulação terrificante (?) com a questão da superdotação. Diz Feldhusen (1995) que Galton, confiante em suas descobertas e conclusões, teria sugerido haver chegado o momento de iniciar esforços no sentido de aperfeiçoar a “raça humana”.

Temos, já, instigantes correlações construídas através dos séculos, seja entre potenciais “naturalmente” desenvolvidos e superdotação, seja entre esta e benefícios para o Estado.

Penso que é sobre essas duas correlações que qualquer reflexão sobre a temática em pauta deve ser desenvolvida. Mas, vejamos como isso se passa em tempos mais recentes, até a atualidade.

Lucito e demais autores consultados remetem-se a Terman como o grande iniciador de estudos sistemáticos sobre a superdotação, a partir de 1904. Em 1920 inicia o estudo mais significativo, do ponto de vista quantitativo, com aproximadamente mil pessoas - que viriam a ser acompanhadas no decorrer de suas vidas. Era, todavia, para os estudiosos, apenas mais uma semente naquele solo preparado por antigas gerações.

Porém, a esses interesses (que podem ser entendidos como pontuais) segue-se um investimento

extremamente significativo a partir da década de 50. Por que? O mesmo Lucito aponta quatro principais razões, das quais mais nos interessam as duas últimas. Mas vejamos todas:

1. Existência de um sistema humanístico de valores que propugnava igualdade de oportunidades de desenvolvimento até o limite das potencialidades de cada um.

2. A constatação da grande perda do potencial intelectual superior, uma vez que poucos chegavam ao Terceiro Grau.

3. Necessidade de superdotados como líderes na Ciência e na Política, em função do conflito internacional entre “ideologias comunistas e democracia ocidental”.

4. Dada a impossibilidade de “aperfeiçoamento geral da capacidade inata”, através da “seleção natural”, fazia-se necessário preparar os superdotados para as tarefas complexas da sociedade moderna.

Sinalizei que nos interessavam mais as duas últimas em função do raciocínio até aqui desenvolvido, baseado, por um lado, na constatação dos interesses supra-individuais envolvidos e, por outro lado, pelo reconhecimento da “incapacidade de melhorar o cabedal da espécie”∗, ainda aqui remetida aparentemente a interesses coletivos. Mas, na verdade, que interesses eram esses? Seriam mesmo tão humanitários, voltados para a coletividade universal? Ou seriam, antes, direcionados para a supremacia norte-americana que viria, afinal, a assumir-se e consolidar-se nos dias em que vivemos?

E isto nos leva à primeira das quatro razões apontadas por Lucito, que pode, então, ser vista com outros olhos!

Dada essa matriz norte-americana (mas, aliás, as leituras efetuadas me informaram de igual movimento, embora com discurso diferente, na então União Soviética), vejamos qual o percurso, no Brasil, da questão e alguns de seus momentos mais significativos.

Leoni Kaseff é apontada como uma das pioneiras na área, tendo escrito, em 1931, o livro “A Educação dos Supernormais”.

Em 1933 Estevão Pinto advoga o uso dos testes e a efetivação de pesquisas para identificar e desenvol-ver os superdotados por “conveniência econômica do Estado”.

∗ Obviamente, nesse momento histórico longe se estava de prever projetos

(reais e não de ficção científica) como, por exemplo, o do Genoma.

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Na década de 40, Sílvio Rabelo questiona a adequação da escola comum para os superdotados.

Em 1945, Helena Antipoff realiza, no Instituto Pestalozzi do Rio de Janeiro, grupos com jovens para discussão de questões remetidas à arte; posteriormente, na Fazenda do Rosário (Minas Gerais), implantará um programa educacional - na linha do desenvolvimento de potencialidade superiores - com alunos da zona rural.

Mas será apenas na década de 70 que a expansão de estudos e intervenções educacionais se fará mais presente.

Sobre essa expansão Alencar (1986, 1994 e 1995) discorre, enfatizando que três foram os fatos que a favoreceram:

1. A Lei 5.692 (de 1971), em seu artigo 9º especialmente.

2. A ocorrência de um primeiro encontro científico de fôlego sobre a temática: o “Seminário Nacional de Superdotados”.

3. A vinda de especialistas norte-americanos ao Brasil, como consultores do MEC.

Bem, discorrer sobre o contexto político em que é gerada, e principalmente promulgada, a Lei 5.692 foge aos objetivos do presente texto, mas lembrá-lo é fundamental.

Por outro lado, o terceiro dos fatos assinalados pela autora nos confirma o “berço” e os “braços que balançam o berço” das propostas brasileiras em relação à superdotação.

E diz textualmente Alencar, no Prefácio de sua obra “Psicologia e Educação do superdotado”, de 1986:

“... esse interesse é possivelmente fruto da consciência de que o futuro de qualquer nação depende da qualidade e competência de seus profissionais, da extensão em que a excelência for cultivada e do grau em que condições favoráveis ao desenvolvimento do talento, sobretudo intelectual, estiverem presentes desde os primeiros anos da infância (o que ocasiona) retorno para o país que investe de forma adequada na sua elite intelectual.” (Grifos meus).

Não precisaríamos de muito mais que essas frases para identificar muito do ideário que fez eclodir e sustentou as décadas de ditadura militar de nosso país, adequadamente disfarçado no próprio teor da Lei 5.692 sob um discurso não elitista.

Tendo optado, como o leitor já percebeu, por não iniciar o presente texto pelo sinalizado pelo nome do artigo, mas sim por um breve panorama histórico,

vejo-me agora já disponível para trazer alguns dados conceituais.

Mas desejo antes, quase como a título de epígrafe deste tópico, citar Nietzche (1983):

“Todo conceito nasce por igualdade do não igual (...) O grande edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza que são próprios da matemática.”

Vejamos, pois, algumas questões conceituais e terminológicas.

Quanto à terminologia, os teóricos estudados são unânimes em mencionar a variedade de termos empregados para a referência às pessoas que se destacam em “superioridade” (seja lá o que for que essa palavra indique). Assim, são arroladas as seguintes possibilidades:

Criança Prodígio =aquela que apresenta um desempenho excepcional ou capacidade elevada de memória nos primeiros anos de vida.

“Idiot Savant” = aquele que apresenta uma habilidade superior em uma área específica, simultaneamente a retardo mental. Modernamente (segundo Reily, 1994) o termo utilizado é “Síndrome Savant”.

Gênio = aquele que dá uma contribuição original e de grande valor numa área específica, valorizada socialmente.

Superdotado = aquele com desempenho elevado tanto acadêmico como artístico, esportivo e de liderança, assim como marcante raciocínio abstrato.

A palavra “talentoso” é, muitas vezes, utilizada como sinônimo.

A partir do termo superdotado é que são, usualmente, elaboradas as definições vigentes (aqui e em inúmeros outros países). Mas a questão é bastante complexa e disso nos dá dados Abraham que, em 1958, identificou 113 (cento e treze!) definições. Segundo Lucito (1971), Abraham agrupou essas definições em seis categorias:

1. Projeção profissional 2. Conceito de inteligência 3. Ponto de vista social 4. Ponto de vista percentual 5. Criatividade 6. Padrão intelectual. Pode ser instigante tentar identificar, na

conceituação vigente no Brasil, os aspectos sugeridos por essas categorias. Para isso vejamos o que diz a Portaria CENESP/MEC nº 69, de 28/08/86,

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reproduzida também no documento do MEC (1995) sobre “Diretrizes Gerais”.

Mas isso será feito um pouco mais à frente, pois desejo compartilhar uma interessante constatação que fiz. Ou seja, ao cotejar esse documento do MEC (de 1995) com o texto de Alencar (1994) percebi, neste último, a presença de algumas palavras não acrescentadas na formulação do MEC - essas palavras, nas linhas seguintes, estarão identificadas pelos parênteses que as envolvem e pelo tipo de letra:

“Superdotado: educando que apresenta notável desempenho e/ou elevada potencialidade nos seguintes aspectos, isolados ou combinados:

- capacidade intelectual (superior) - aptidão acadêmica (especial) - pensamento criador (e produtivo) - capacidade de liderança - talento especial para artes (visuais, arte

dramática, música) - (habilidade) capacidade psicomotora.” Sem aprofundar adequadamente (pela própria

exigüidade do espaço de um artigo) deixaria algumas perguntas no ar, como por exemplo: Superior em relação a quê, a quem? O que é uma aptidão acadêmica “especial”? Produtivo para quem? Qual a diferença conceitual entre habilidade e capacidade?

Vemos aqui algumas pistas interessantes se nos lembramos dos critérios de normalidade/anormalidade enfocados no início deste texto. Parece mesmo que parâmetros numéricos (lastimavelmente perpetuados em testes de avaliação de inteligência através dos QIs) e ideológicos têm sua primazia no contexto desta pós-modernidade.

Mas a “tipologia” oferecida pelo MEC traz ainda outras importantes questões - para enunciá-las vejamos os “tipos” arrolados na publicação de 1995:

1. Intelectual = “flexibilidade, independência e fluência de pensamento, produção intelectual, julgamento crítico, habilidade para resolver problemas.

2. Social = liderança, sensibilidade interpessoal, poder de persuasão, atitude comparativa.

3. Acadêmico = capacidade de atenção, concentração, memória, interesse e motivação.

4. Criativo = capacidade de encontrar soluções diferentes e inovadoras, facilidade de auto-expressão, originalidade, flexibilidade.

5. Psicomotricinestésico = habilidade e interesse por atividades físicas e psicomotoras, agilidade, força, resistência.

6. Talentos especiais = destaque em Artes Plásticas, Literárias, Musicais e Dramáticas.”

Aqui também algumas perguntas ficam no ar: habilidades para resolver que tipo de problema? Ou seja, quais os “problemas” que estão sendo valorizados? Poder de persuasão para persuadir a quem? De quê? Motivação, muito mais que indício de superdotação, não está ligada a um conjunto de fatores pessoais e sociais? Capacidade de encontrar soluções inovadoras estaria atrelada a uma “inteligência superior”? Por que?

Embora, neste momento, essas perguntas fiquem no ar, penso que, mais que tudo, elas sinalizam a profunda ambivalência de nossa sociedade em relação aos integrantes dos diferentes “grupos” e, talvez, em especial ao aqui abordado. Quero com isso dizer que, ao reconhecer e valorizar certas características, isto é feito no âmbito individual; mas, os especialistas, ao propugnarem o investimento nas pessoas que as têm, remetem-se ao social. E firma-se aí a dicotomia indivíduo/sociedade, há tanto questionada por estudiosos da Filosofia, da Psicologia, da Sociologia etc.

Um outro aspecto a considerar, embora inequivocamente ligado aos anteriormente abordados, refere-se às propostas educacionais vigentes, a partir das Diretrizes do MEC. Assim, passo a discorrer brevemente sobre isso.

Diz nossa instância superior que “para atender adequadamente às necessidades do superdotado e ajudá-lo a desenvolver os seus potenciais em benefício próprio e da sociedade” (grifo meu) pode-se optar por algumas alternativas.

Segundo Alencar (1995), são elas: a) Aceleração = favorecer o cumprimento de um

programa em menos tempo, seja por admissão precoce, seja por favorecer o “salto” de uma série.

b) Enriquecimento = incluir novas unidades de estudo no conteúdo, favorecer o desenvolvimento de projetos originais, oferecer cursos extracurriculares etc.

c) Segregação = possibilitar freqüência à classe especial ou afastamento da classe comum por determinados períodos de tempo.

De forma geral, eu diria que - em consonância com outros profissionais que questionam o encaminhamento dado às questões referidas aos “infradotados” e aos “superdotados” - muitos dos argumentos da autora (assim como das medidas legais), insistentemente arrolados no decorrer dos textos, são, de fato, pertinentes em relação a qualquer aluno/educando.

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Assim, as críticas que podem e devem ser feitas ao ensino (de forma global) ficam esmaecidas frente às oportunidades propugnadas para os superdotados. Ou, dito de outra forma, a “pobreza” do sistema educacional afetaria tão somente aqueles que foram dotados “pela natureza” de capacidades acima da média da população, sendo eles os principais prejudicados!

Se considerarmos as estimativas oficiais de “incidência” de superdotação na população (5% e 20% se incluídos os chamados “talentosos”), o que oferecer de mais e melhor para os outros 95% ou, na melhor das hipóteses, 80%?

Existem ainda muitas outras questões que alimentam controvérsias. Sobre algumas delas é possível desenvolver tópicos ou sugerir reflexões, tais como: correlações com características físicas, com o ambiente, com aspectos ligados ao chamado ajustamento, com o rendimento acadêmico...

Em meu entender, um ou dois panos-de-fundo existem por trás dessas questões e das controvérsias que geram.

Um deles é o como, o quando e o quanto do cotidiano das pessoas é influenciado pelas matrizes conceituais em vigor e pela própria experiência. A primeira matizada por diagnósticos e prognósticos. A segunda pelo viver.

Um outro pano-de-fundo é o existir ativo de cada um, que definirá apropriações individuais e históricas (grifo a conjunção, uma vez que o individual “puro” é uma falácia arcaica), confirmadas pelas ressonâncias de rótulos advindos do panorama conceitual vigente no contexto científico e do panorama de significados vigente no imaginário coletivo.

Mas voltemos às correlações. A que mais nos levam, por exemplo, as

correlações com características físicas? O que nos dizem, nas linhas e entrelinhas, os estudos que comprovam que, como grupo, os superdotados são melhores em várias medidas (altura, peso, força muscular etc.)? Eugenia? Possibilidades alimentares? O que não encontrei usualmente nos textos foi a problematização desse aspecto; quando muito, pequenas ressalvas.

Quanto às correlações com o meio-ambiente, o que percebi foi uma ênfase no grupo mais próximo do superdotado, especialmente a família nuclear, caracterizada como “estruturada” (obviamente nos moldes da família burguesa), constituída por adultos que exercem profissões diretivas (quantos seriam no universo das multinacionais, nos conglomerados por

fusão, na globalização da economia?), preferencialmente liberais, localizados em extratos econômicos altos etc. Será preciso levantar questões pontuais? Ou a meta-argumentação fala por si mesma?

No que se refere ao “ajustamento”, interessantemente são arrolados estudos com resultados controversos. Uns indicam que os superdotados são mais aceitos socialmente, o que é afirmado por sua alta escolha em estudos sociométricos. Mas, aqui cabe uma pergunta: escolhidos para que? Isso porque os instrumentos sociométricos são usualmente construídos por questões ligadas às escolhas referidas a diferentes atividades: intelectuais, de cunho afetivo, de lazer etc.

Outros estudos apontam para dificuldades sistemáticas no convívio social (lembro-me agora de mais ou menos recente reportagem da revista Veja, na qual uma das jovens entrevistadas diz que em sua escola anterior (agora está em um projeto especial) era vista como uma “chata”).

Existe, pois, alguma generalização possível, que ignore a quantidade de fatores que constroem nossas personalidades? Que indicam caminhos de relacionamentos interpessoais?

O rendimento acadêmico é outro ponto controvertido. Alguns estudos afirmam o bom êxito e as melhores avaliações; outros estudiosos citam, por exemplo, Einstein, como alguém que não teve um bom rendimento escolar, mas que ninguém ousaria duvidar de sua genialidade.

Esses e outros aspectos me levam a questionar, além da própria “categoria”, a legitimidade da construção de um “perfil” do superdotado (ou de qualquer grupo construído a partir de parâmetros tantas vezes ilegítimos ou, ao menos, incompetentes).

Um exemplo desse perfil é trazido por Alencar (1986), tal como proposto por Tuttle e Becker, a saber: curioso; persistente; crítico de si e do outro; senso de humor altamente desenvolvido; não propenso a aceitar afirmações, respostas ou avaliações superficiais...

Seria pois a curiosidade exclusiva do superdotado? A persistência? A crítica? O senso de humor?... Ou as condições sociais vigentes são o que, exatamente, propiciam ou negam essas características como valorizáveis?

Mesmo temendo passar um tom panfletário, eu perguntaria: em nosso contexto sócio-cultural (excluindo-se os discursos “politicamente corretos”), do pobre são esperadas curiosidade e crítica? Seu

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humor é visto como “senso de” ou como escapismo? E do deficiente mental? Do cego? Do surdo? Do paraplégico? As pistas que temos nos falam da falácia do perfil e do movimento acrítico que a acompanha.

Ainda citando pesquisa (de Torrence), Alencar traz outra “caracterização”, na qual estão incluídos: independência; auto-suficiência; uso do tempo de forma “produtiva”, sem que seja necessária uma estimulação constante...

As perguntas possíveis continuam no mesmo diapasão!

Finalmente, gostaria de salientar, em relação à bibliografia consultada, que encontrei obras fundamentalmente voltadas para os “benefícios da comunidade” que, para meu uso, chamei de “pragmáticas”, e outras voltadas também para aspectos pessoais/subjetivos, que pensei sob uma denominação “político-humanista”. Embora ciente das armadilhas dessa divisão, julgo que ela me ajudou a pensar questões mais amplas, algumas das quais já abordei no início do texto, quando me debrucei sobre o panorama histórico.

Assim, e para terminar, gostaria de voltar minha atenção para a segunda “corrente”. Para isso lanço mão do livro de Rachel Rosenberg (1973), o qual, embora escrito em difíceis anos (e a isso a autora não pôde, ou não desejou, se furtar), traz a dimensão do individual e do cotidiano (e portanto político) à baila.

Dentre inúmeras de suas contribuições enfatizarei apenas uma, até porque é das mais importantes na área da psicologia: a questão das pressões sofridas por aqueles identificados como superdotados.

Essas pressões são, na visão da autora, de duas ordens: interna e externa, reconhecendo-se as profundas articulações entre ambas.

Assim, Rosenberg nos propõe, com base em estudos diversos por ela mencionados, que as pressões internas (que, obviamente, se correlacionam, com intensidade, às externas) se concentram em torno de uma altíssima expectativa da pessoa em relação à sua própria performance - o que, freqüentemente, como pressão psíquica, ocasiona uma “sub-auto-avaliação” e, em conseqüência, auto-estima e auto-imagem “rebaixadas”.

Dentre as externas são enfatizadas as pressões que emanam de pais, professores, sistema educacional - não para culpabilizar os dois primeiros, mas para situá-los também como coadjuvantes do terceiro. Essa pressão pode ser exercida no sentido

de “expor”, de cobrar fortemente etc. Se isso ocorrer poderemos perceber conseqüências penosas para a pessoa - como o seria (e é) para qualquer um. A expectativa de sucesso contínuo e a sua cobrança fazem, certamente, com que o cotidiano se desenrole em campo tenso - e eis aí um solo bem pouco fértil para um existir digno e ético, além de prazeroso!

Enfim, que existem pessoas que “brilham”, até independentemente do contexto, é certo; mas que precisem transformar-se em baluartes e defensoras do brilho das nações onde nasceram é, no mínimo, desrespeitoso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Alencar, E.M.L.S. - Psicologia e educação do superdotado. São Paulo, EPU, 1986. 2. Alencar, E.M.L.S. - Perspectivas e desafios na educação do superdotado. In: Alencar, E.M.L.S. - Tendências e desafios na Educação Especial. Brasília, MEC, 1994. 3. Alencar, E.M.L.S. - Novas contribuições da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. 3ª ed. São Paulo, Cortez, 1995. 4. Amaral, L.A. - Do Olimpo ao mundo dos mortais. São Paulo, EDMETEC, 1988. 5. Amaral, L.A. - Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules). São Paulo, Robe Editorial, 1995. 6. Amaral, L. A. - Deficiência: questões conceituais e alguns de seus desdobramentos. Cadernos de Psicologia (Sociedade Brasileira de Psicologia), v.2, n.1, p.3-12, 1998. 7. Barros Santos, O. (Org.) - Superdotados: quem são? Onde estão? São Paulo, Pioneira, 1988. 8. Brasil. Diretrizes gerais para o atendimento educacional de alunos portadores de altas habilidades. Brasília, MEC, 1995. 9. Cruickshank, W.M. e Johnson, G.O. - A Educação da criança e do jovem excepcional. 3ª ed. Rio de Janeiro, Globo, 1988. 10. Feldhusen, J.F. - Algumas contribuições da Psicologia à Educação do superdotado. In: Alencar, E.M.L.S. - Novas contribuições da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. 3ª ed. São Paulo, Cortez, 1995. 11. Lucito, L.J. - Crianças superdotadas. Rio de Janeiro, Livro Técnico, 1971. 12. Nietzche, F. - Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. In: Nietzche, F. São Paulo, Editora Abril, 1983. (Coleção “Os Pensadores”). 13. Reily, L. H. - Armazém de imagens: estudo de caso de jovem artista portador de deficiência múltipla. São Paulo, 1994. 255p. (Tese - Doutorado p- IP-USP). 14. Rosenberg, R.L. - Psicologia dos superdotados: identificação, aconselhamento, orientação. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973. 15. Telford, C.W. e Sawrey, J.M. - O indivíduo excepcional. 3ª ed. Rio de Janeiro, Zahar., 1978.

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distúrbios respiratórios durante o sono em crianças e jovens com síndrome de down: proposta de orientação familiar para melhor qualidade de vida

telma rocha camargo(1) e silvana maria blascovi-assis(2)

(1) Aluna do quarto ano do Curso de Fisioterapia da UNIP – Sorocaba, SP (2) Fisioterapeuta da Fundação Síndrome de Down, Doutora em Educação Física-UNICAMP, Docente Titular do curso de Fisioterapia da UNIP-Sorocaba RESUMO: DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DURANTE O SOSNO EM CRIANÇAS E JOVENS COM SÍNDROME DE DOWN: PROPOSTA DE

ORIENTAÇÃO FAMILIAR PARA MELHOR QUALIDADE DE VIDA: HIDROTERAPIA EM PEDIATRIA: Este estudo investiga a relação entre problemas respiratórios e alterações do sono, tais como a apnéia obstrutiva do sono ou a síndrome do sono inquieto, em crianças e jovens com Síndrome de Down, e como o fisioterapeuta pode atuar de forma preventiva neste quadro. Participaram dessa pesquisa 40 sujeitos com Síndrome de Down, de ambos os sexos e com idade entre 0 e 21 anos, e suas famílias. Os dados foram coletados na Fundação Síndrome de Down (Campinas – SP), através da distribuição de questionários, a partir dos quais foi possível levantar dados sobre cirurgias realizadas, problemas respiratórios específicos, qualidade do sono, dinâmica familiar e orientações terapêuticas já recebidas. Com base nos resultados e na literatura pertinente, foi elaborada uma proposta de orientações fisioterápicas visando melhorar o quadro respiratório e a qualidade do sono desses indivíduos, esperando com isto colaborar para uma melhor qualidade de vida desta população.

UNITERMOS: Síndrome de Down - Distúrbios respiratórios - Sono - Distúrbios do sono

ABSTRACT: RESPIRATORY DISORDERS DURING SLEEP IN CHILDREN AND YOUNG WITH DOWN’S SYNDROME: A PROPOSAL FOR FAMILIAR

ORIENTATION FOR BETTER QUALITY OF LIFE: This study inquires the relation between respiratory and sleep disorders, such as obstructive sleep apnea or unquiet sleep syndrome, in children and young with Down’s syndrome, and how the physiotherapist can work in a preventive matter. Forty individuals with Down’s syndrome, with ages from 0 to 21 years old, and their families took part of this study. Data was collected at Fundação Síndrome de Down (Campinas, SP) through distribution of questionnaires to families, who gave information on eventual surgeries, specific respiratory disorders, quality of sleep, familiar dynamics and therapeutic instructions accepted at once. Literature and the data collected in this study enabled us to elaborated a suggestion of physiotherapeutic guidance, so that the individuals can have better respiratory exposition and better quality of sleep, and as a consequence better quality of life.

UNITERMS: Down’s syndrome - Respiratory disorders - Sleep - Sleep disorders

Artigo Original CAMARGO, T.R. e BLASCOVI-ASSIS S.M. - Distúrbios respiratórios durante o sono em crianças e jovens com síndrome de

Down: proposta de orientação familiar para melhor qualidade de vida. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.57, p.12-18, 2001.

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A Síndrome de Down (SD) é a alteração genética mais comum entre os casos de deficiência mental. O quadro característico apresenta alterações e atrasos no nível psicomotor, de linguagem e cognitivo.

Logo após o nascimento, a criança é encaminhada pelo médico para a realização de alguns exames, que devem ser realizados nos primeiros anos de vida (Brasil, 1994). O exame cardíaco é indicado logo nos primeiros meses, para que seja verificada a presença ou não de cardiopatia congênita. Em caso positivo, a criança é acompanhada regularmente pelo cardiologista até que se decida sobre uma possível cirurgia.

Outra característica presente em parcela desta população é o quadro respiratório comprometido, com freqüentes obstruções nas vias aéreas. Este quadro pode levar a infecções respiratórias mais sérias, que são encontradas em maior freqüência em crianças que também apresentam cardiopatia congênita (Pueschel, 1993).

De modo geral, os problemas respiratórios são crônicos, já que diversos autores relatam que existem evidências de alterações nos mecanismos de defesa para esta população, predispondo às infecções de repetição (Pueschel, 1993). As desordens respiratórias devem, portanto, ser tratadas de forma preventiva, para que a ocorrência de complicações do tipo pneumonias de repetição seja minimizada.

Nos últimos anos, a literatura médica tem apresentado vários registros de distúrbios do sono e apnéia obstrutiva em indivíduos com SD (Bower e Richmond, 1995; Jacobs e colaboradores, 1996; Lefaivre e colaboradores, 1997; Ferri e colaboradores, 1997; Ferri e colaboradores, 1998; Levanon e colaboradores, 1999; Schwartzman e colaboradores, 1999). Esta se deve, principalmente, às possíveis obstruções por hipertrofia de amídalas ou adenóides, estenose de vias aéreas superiores, macroglossia, laringomalácia, traqueobroncomalácia, entre outras, causando respiração irregular durante o sono, com roncos e agitação da criança (Pueschel, 1993; Jacobs e colaboradores, 1996).

Outros aspectos fenotípicos presentes em portadores da SD também podem contribuir para facilitar a ocorrência dessas crises de apnéia noturna, tais como: hipotonia da musculatura faríngea, protrusão da língua, redução das dimensões da traquéia, ocorrência de secreções, faringe com diâmetro diminuído, hipoplasia da região média da face e micrognatia, podendo ainda a obesidade ser um fator adicional na gênese da apnéia do sono

(Schwartzman e colaboradores, 1999). Ainda para a criança com SD, os autores destacam que os dois únicos tipos de distúrbio do sono que ocorrem de forma significativa são a apnéia do sono e a síndrome do sono inquieto. A diferença entre elas é que, no segundo caso, a agitação e o aumento dos movimentos corporais são mais presentes nas primeiras horas do sono, sem episódios de apnéia, e não há indicação de tratamento.

Embora existam relatos na literatura sobre a apnéia obstrutiva do sono em crianças com SD, pouco se fala sobre as características do sono destas crianças, especialmente sobre o sono fragmentado ou interrompido e movimentação excessiva durante o sono. Levanon e colaboradores (1999) estudaram um grupo de 23 crianças com SD com o objetivo de determinar as características do sono para esta população, relacionando-as aos distúrbios respiratórios. Registraram dados significativos sobre a fragmentação do sono e a ocorrência de distúrbios respiratórios nas crianças estudadas.

Ferri e colaboradores (1997) estudaram comparativamente um grupo de dez pessoas com SD sem problemas relevantes em vias aéreas e sete sujeitos com a Síndrome do X-frágil com o objetivo de obter dados sobre o modelo respiratório do sono em sujeitos com SD sem complicações. Observaram que mesmo sem complicações respiratórias evidentes, o grupo de pessoas com SD apresentou maior índice de apnéia de origem central.

Andreolli e colaboradores (1997) definem a apnéia como a completa cessação do fluxo de ar por dez ou mais segundos, sendo comum em muitas pessoas. Porém, quando esta ocorrência se torna prolongada e freqüente, pode trazer conseqüências desfavoráveis que estabelecem a síndrome da apnéia do sono, manifestada por perturbação crônica do sono e sonolência diurna excessiva. Os mesmos autores destacam que o diagnóstico da apnéia do sono pode ser considerado quando os pacientes se queixam de sonolência diurna excessiva, podendo esta vir acompanhada de incapacidade para concentração, depressão, irritabilidade e alterações de personalidade. Pode ainda ser relatada pelo paciente ou por outro membro da família a ocorrência de roncos altos, resfolegas, engasgos e inquietude.

O tratamento cirúrgico vem sendo indicado por muitos estudiosos da área, embora existam relatos de ocorrência de sintomas residuais no período pós-cirúrgico para parcela significativa dos pacientes

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submetidos a este tratamento (Jacobs e colaboradores, 1996; Bower e Richmond, 1995).

O contato com famílias de crianças e jovens com SD tem nos mostrado, no dia-a-dia, que a ocorrência de problemas respiratórios freqüentes, associada aos distúrbios do sono, acarreta prejuízos na qualidade de vida não apenas para a criança, mas para muitos dos que com ela convivem.

Alguns programas de acompanhamento respiratório na Fisioterapia têm sido referidos (Enriquez e colaboradores, 1993), com o objetivo de manter a higiene brônquica desses pacientes, trabalhando de modo preventivo, evitando, assim, um alto índice de infecções.

As atividades no meio líquido, como a hidroterapia ou a natação, têm se mostrado eficazes na melhora das condições de higiene brônquica, sendo recomendadas para pacientes que possam ser beneficiados com uma melhor condição do aparelho respiratório (Blascovi-Assis, 2001).

Estudos paralelos sugerem procedimentos que levam a melhores condições respiratórias, considerando-se também que os distúrbios do sono podem estar associados a variáveis como o estresse e outros fatores emocionais.

O recurso da música vem sendo cada vez mais indicado para combater o estresse e melhorar o funcionamento das funções sistêmicas do organismo em crianças ou adultos, sendo comprovada a influência do ritmo no funcionamento das estruturas cerebrais (Watkins, 1997; Levin, 1998).

Várias técnicas de massagem como a Shantala (Leboyer, 1992) e a reflexologia (Gillanders, 1999) foram desenvolvidas visando os cuidados com a saúde e o bem-estar do indivíduo, melhorando a qualidade de vida.

A qualidade da alimentação bem como o controle na quantidade e no horário da ingestão de alimentos vêm sendo estudados por alguns autores, relacionando-se o aumento de peso e os distúrbios do sono com hábitos inadequados (Loughin e colaboradores, 1981; Andreolli e colaboradores, 1997). A obesidade vem sendo referida em diversos estudos como variável diretamente relacionada à presença da apnéia do sono (Mancini e Halpern, 1997; Mancini e colaboradores, 2000). Além disso, Stratford (1989) refere-se à posição da criança para a amamentação, que deve ser a mais próxima possível da vertical, evitando-se, assim, a inalação do alimento. Em estudo realizado pelo mesmo autor, foi constatado que crianças com SD cujos pais tiveram orientação e

suporte apresentaram menor incidência de problemas respiratórios do que crianças de pais não orientados. As orientações incluíam entre outras informações, a dieta adequada e a recomendação da prática de atividades físicas regularmente.

O sedentarismo deve ser combatido em todo programa de controle de peso, sendo recomendadas mudanças no estilo de vida, incluindo alimentação saudável, balanceada e a realização de exercícios físicos diariamente. Fatores como fumo, álcool, refeições fartas, principalmente no período noturno, são também relacionados ao agravamento das crises de apnéia (Mancini e Halpern, 1997).

O posicionamento para dormir também deve ser cuidadosamente focado, já que existem posições que favorecem melhor passagem de ar nas vias aéreas superiores, como o decúbito lateral, sendo desfavorável o decúbito dorsal (Andreolli e colaboradores, 1997). Os fatores desencadeantes da alergia respiratória também devem ser considerados quando se trata de proporcionar melhores condições para a desobstrução das vias respiratórias, uma vez que as reações alérgicas podem aumentar o desconforto quando associadas a outros problemas, como a apnéia do sono (Cruz, 1994).

Considerando a importância do sono para o melhor desenvolvimento de qualquer pessoa, já que o mesmo desempenha função de restauração do sistema nervoso (Guyton, 1977), nosso objetivo neste trabalho foi investigar, a partir de informações da própria família, as características do sono de crianças e jovens com SD, descrevendo suas principais alterações e propondo um programa de orientação à família visando melhorar as condições respiratórias e a qualidade do sono desses indivíduos.

MÉTODO Participaram deste estudo* 40 indivíduos com SD,

entre 0 e 21 anos, sendo 18 meninas e 22 meninos. Os dados foram coletados a partir de um

questionário distribuído para as famílias de crianças e jovens que freqüentavam a Fundação Síndrome de Down, em Campinas, São Paulo. O questionário foi respondido pelos pais e devolvidos em prazo estipulado por ocasião da sua distribuição. As questões abordavam aspectos sobre a identificação,

* Pesquisa subsidiada pela Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Paulista – UNIP, dentro do Programa “Iniciação Científica”

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8. Sono interrompido ou fragmentado como nome, sexo e idade; os cuidados com a saúde, como medicação, cirurgias realizadas, internações, características do sono; dados sobre a dinâmica familiar e as orientações já recebidas relacionadas à melhoria das condições respiratórias e ao sono do filho.

9. Enurese noturna

Os dados foram analisados seguindo um roteiro pré-estabelecido, considerando-se variáveis do tipo sexo, idade e presença de cardiopatia.

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20

30

40

50

60

70

Por

cent

agem

1 2 3 4 5 6 7 8 9

Características do sono

MeninasMeninos

FIGURA 1 - CARACTERIZAÇÃO DO SONO

RESULTADOS Os dados coletados mostraram que nove dos 40

sujeitos já haviam sido submetidos a cirurgias cardíacas, sendo seis do sexo feminino e três do sexo masculino. A ocorrência de pneumonia foi registrada para 31 dos 40 sujeitos, sendo 12 meninas e 19 meninos, ocorrendo internações em 21 casos. Problemas respiratórios relacionados à alergia foram relatados por 11 famílias, sendo mais comuns em meninas (sete casos) do que em meninos (quatro casos).

Na Figura 1 podemos observar que alguns fatores

caracterizam o sono das crianças e jovens estudados. Estes foram analisados separadamente de acordo com o sexo. São eles:

Os dados sobre os comportamentos diurnos para os sujeitos estudados estão apresentados separadamente para meninos e meninas na Figura 2.

Os comportamentos diurnos foram observados a partir de dados sobre:

1. Sono agitado 2. Movimentação excessiva

1. Sonolência freqüente 3. Roncos 2. Irritabilidade 4. Insuficiência respiratória 3. Dores de cabeça 5. Engasgos 4. Dificuldades para concentração.

0

10

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Porc

enta

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1 2 3 4 5 6 7 8 9

Características do sono

MeninasMeninos

6. Suspiros 7. Fala durante a noite

FIGURA 2 - CARACTERÍSTICAS DO COMPORTAMENTO DIURNO

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A dinâmica familiar é afetada por fatores como dormir junto com os pais ou prejudicar a qualidade de sono deles. Dos 40 participantes do estudo, observou-se que 11 dormem com os pais, sendo seis meninas e cinco meninos. Os demais dormem sozinhos (três meninas e sete meninos) ou com outros membros da família, como irmãos, avó ou primos (oito meninas e dez meninos). Para 11 famílias, a qualidade do sono do filho com SD interfere na qualidade do sono de outros membros da família, sendo que qautro dormem com os pais, cinco dormem com os irmãos e dois dormem sozinhos.

As orientações terapêuticas já recebidas pelas famílias constavam de: higiene nasal com soro fisiológico (75%), prática regular de atividades físicas (30%), posicionamento no leito (25%), uso de medicação com orientação médica (22,5%), uso de inalador (22,5%), uso de vaporizador (12,5%), dieta alimentar (10%), uso de oxigênio em casos específicos (2,5%) e realização de exercícios respiratórios (2,5).

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO Neste estudo ficou evidente que os transtornos do

sono ocorrem em grande parte da população de pessoas com SD. Reconhecemos que em muitos casos o procedimento cirúrgico pode se fazer necessário para a desobstrução das vias aéreas e para a melhoria da qualidade de vida. Entretanto, nosso papel enquanto terapeuta é buscar alternativas menos agressivas para minimizar ou eliminar as possíveis causas dos transtornos respiratórios.

Levando-se em conta os resultados obtidos, principalmente relacionados à caracterização do sono, ao comportamento diurno e às orientações terapêuticas já recebidas pelos familiares, podemos analisar, de acordo com os percentuais calculados, que há índices semelhantes entre os sexos referentes a características como sono agitado, movimentação excessiva, roncos, insuficiência respiratória, engasgos, fala durante o sono ou enurese noturna. O que mais diferencia o tipo de sono entre os sexos é a maior presença de suspiros no sexo masculino (59,9% contra 11,1% nas meninas). Nota-se, ainda, que os meninos apresentam maior percentual de fragmentação do sono (36,6% contra 16,6% das meninas).

Os dados da Figura 2, que se referem às características do comportamento diurno, apontam

semelhança na irritabilidade para ambos os sexos e maior ocorrência de dores de cabeça para as meninas. No entanto, encontramos maior índice de sonolência para os meninos, e conseqüente maior falta de concentração para os mesmos quando comparados às meninas, de acordo com os relatos familiares, colocando-os em desvantagem se comparados às meninas. Este achado confirma a teoria de que o desequilíbrio entre sono e vigília afeta o desempenho do sistema nervoso (Guyton, 1977).

Ainda com relação ao tipo de sono, observamos não haver nenhum relato a partir de diagnóstico médico da ocorrência da síndrome da apnéia obstrutiva do sono. Certamente, os dados seriam mais precisos se os indivíduos analisados pudessem passar por exames de monitoramento do sono, o que de fato não aconteceu neste estudo nem fora dele para esses sujeitos. Não é rotina na área médica o estudo do sono para esses indivíduos, mesmo para aqueles que relatam distúrbios significativos.

A falta de diagnóstico preciso, diferenciando os distúrbios do sono entre a síndrome da apnéia do sono ou a síndrome do sono inquieto, dificulta a atuação terapêutica, pois, enquanto para a primeira pode haver indicação de tratamento cirúrgico eficaz, para a segunda não há tratamento específico (Schwartzman e colaboradores, 1999).

Os resultados obtidos sobre as orientações terapêuticas já recebidas indicam que poucas informações sistematizadas foram passadas a essas famílias, merecendo maior atenção por parte dos terapeutas.

A partir dos dados analisados neste estudo e do trabalho de outros autores, pudemos elaborar um protocolo de orientação padronizado, cujo objetivo é melhorar as condições respiratórias de modo geral dos indivíduos com SD. A partir da melhoria dessas condições esperamos garantir um melhor aproveitamento em todas as atividades realizadas, desde o brincar até a vida escolar e o trabalho, contribuindo dessa forma para uma melhor inclusão social das pessoas com SD.

O protocolo consta das orientações descritas a seguir, que devem ser cuidadosamente explicadas para a família:

1. POSICIONAMENTO PARA DORMIR: pessoas que dormem em decúbito elevado obtêm sono mais tranqüilo. Isto, na prática, significa elevar a altura da cabeceira da cama, colocando um pedaço de tijolo nos pés da região da cabeceira, fazendo com que a

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cabeça fique mais elevada do que os pés da criança. Aconselha-se também dormir na posição lateral, com variação entre direita e esquerda, pois as dificuldades respiratórias aparecem mais quando se dorme em decúbito dorsal. 2. POSICIONAMENTO PARA ALIMENTAÇÃO: para as crianças pequenas, orienta-se que a alimentação feita com mamadeiras seja dada em posição mais ereta, evitando a inalação da alimentação líquida. Quando o bebê é alimentado deitado, aumenta a chance de aparecimento de otites ou inalação do líquido, podendo provocar infecções respiratórias. 3. CONTROLE DE PESO: o excesso de peso é fator de risco para as alterações obstrutivas do sono. Desde cedo, a preocupação com o ganho excessivo de peso deve estar presente, pois é fato comprovado que os indivíduos obesos apresentam maiores dificuldades para respirar durante o sono. 4. INGESTÃO DE ALIMENTOS NO PERÍODO QUE ANTECEDE O SONO: a obstrução das vias aéreas durante o sono também pode estar relacionada à ingestão de alimentos pesados durante a noite. Deve haver controle na alimentação noturna, estimulando-se o hábito de alimentação mais leve e sem exageros neste horário. 5. PRÁTICA REGULAR DE ATIVIDADE FÍSICA: crianças e jovens que mantêm prática regular de atividades físicas apresentam menor índice de problemas respiratórios. Isto reforça a idéia de que os exercícios bem como a prática desportiva regular devam ser sempre incentivados para esta população, pois, além de promover melhor qualidade de vida (e de sono), auxilia também no controle de peso; deve-se evitar o sedentarismo. 6. PRÁTICA DE EXERCÍCIOS RESPIRATÓRIOS, HIDROTERAPIA OU NATAÇÃO: quanto melhor a condição do aparelho respiratório, melhor a condição do sono. Atividades na água auxiliam na manutenção da higiene brônquica e no controle e domínio da respiração. Recomenda-se a prática de hidroterapia ou natação regularmente, além dos exercícios respiratórios realizados com apitos, cornetas, língua de sogra, bexigas, incluindo os instrumentos musicais de sopro.

7. INVESTIGAÇÃO DE FOCOS ALÉRGICOS NO AMBIENTE FAMILIAR: cobertores, bichos de pelúcia, tapetes, cortinas ou almofadas podem tornar-se focos de alergia. O pó acumula-se nesses objetos que poderão ser o foco alérgico dos distúrbios respiratórios, agravando o quadro de perturbação do sono. Tais objetos devem ser evitados no ambiente da casa e especificamente no local de dormir. 8. UMIDIFICAÇÃO CONSTANTE DO AR: principalmente em épocas secas deve-se manter o ar umidificado, colocando-se bacias com água nos cômodos da casa. 9. HIGIENE NASAL: o hábito de realizar a higiene nasal através da instilação do soro fisiológico deve ser instaurado desde o primeiro ano de vida. A utilização constante do soro fluidifica as secreções nasais proporcionando maior conforto para as vias respiratórias. 10. TRABALHO ESPECÍFICO DA MUSCULATURA PERIORAL: recomenda-se o acompanhamento com um profissional da Fonoaudiologia para que a musculatura oral seja trabalhada de modo adequado, facilitando os padrões respiratórios. 11. MÚSICA: A música pode funcionar como recurso adicional para acalmar a criança na hora do sono. Prefira os ritmos lentos, próprios para o relaxamento. 12. UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DE MASSOTERAPIA: o sono agitado, além de estar vinculado às condições respiratórias, pode estar vinculado às situações de estresse que estão presentes em nossas vidas nos dias de hoje. A massagem infantil proporciona um maior relaxamento à criança, trabalhando com o toque e o afeto entre ela e sua família. Sugere-se que a criança seja massageada antes de dormir, pelo corpo ou pelos pés. Pode-se ainda seguir a seqüência da massagem Shantala, seguindo-se o ritual característico (horário, vestimenta e ambiente apropriados). A massagem, que é um dos recursos que aumenta a liberação das endorfinas, pode ser realizada independentemente da idade, em crianças ou jovens.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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crianças de alto risco: evolução dos aspectos lingüísticos e cognitivos paula scala chiaratti(1), roberta sprocatti(2), ana maria s. g. piovesana(2)

(1) Fonoaudióloga com Pós-graduação “Latu Senso” em Fonoaudiologia Aplicada à Neurologia Infantil pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (2) Fonoaudióloga Clínica com Pós-graduação “Latu Senso” em Fonoaudiologia Aplicada à Neurologia Infantil pela UNICAMP, ex-Supervisora do Setor de Fonoaudiologia Aplicada à Neurologia Infantil - UNICAMP (3) Médica Neurologista Infantil, Professora Doutora da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP RESUMO: CRIANÇAS DE ALTO RISCO: A EVOLUCÃO DOS ASPECTOS LINGÜÍSTICOS E COGNITIVOS: O objetivo deste estudo foi avaliar e

comparar o desempenho lingüístico e cognitivo de crianças de alto risco (neonatos prematuros e de muito baixo peso) com atraso no desenvolvimento de fala e de linguagem e a mudança de comportamento de seus pais, antes e após o período de intervenção fonoaudiológica e orientação familiar. Os resultados após análise e comparação indicaram maior evolução no GII, mostrando avanços no desempenho global das crianças e principalmente na mudança do comportamento dos pais frente a estimulação de fala/linguagem da criança, estratégias para a redução do hábito deletério, controle da sialorréia e imposição de regras e de limites. Verificou-se a necessidade da intervenção fonoaudiológica e principalmente a importância da assistência aos pais para solucionar dúvidas e proporcionar meios que favoreçam o desenvolvimento global das crianças e uma melhor aceitação das dificuldades de seus filhos.

UNITERMOS: Prematuridade - Baixo peso ao nascimento - Desenvolvimento infantil - Família

ABSTRACT: HIIGH RISK CHILDRE: LINGUISTIC AND COGNITIVE EVOLUTION: Linguistic and cognitive performance of high risk children (premature and

very low weight newborn) with retardation in speech development as well as their parent’s behavior changes were assessed and compared before and after speech therapy intervention and familiar orientation. Results indicate a better evolution in GII (in which speech therapy intervention and familiar orientation were carried out), pointing out to advances in the global performance of the children as well as in the behavior of their parents in face of children’s speech stimulation, strategies used for reducing injurious habits and controlling salivary drooling, and practice of rules and limits. The need of speech therapy for these children was confirmed, and the importance of assisting the parents to solve doubts and to provide means favourable to children global development as well as to accept better their children’s difficulties were clearly evidenced.

UNITERMS: Premature newborn - Low weight at birth - Children development - Family Artigo Original CHIARATTI, P.S.; SPROCATTI, R.; PIOVESANA, A.M.S.G. - Crianças de alto risco: evolução dos aspectos lingüísticos e

cognitivos. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.57, p.19-23, 2001.

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O avanço das ciências médicas tem favorecido a sobrevida das crianças prematuras e de baixo peso. Desta forma, ocorreu um aumento da incidência de alterações de desenvolvimento dessas crianças.

Diferentes concepções biológicas podem prever que alterações iniciais na formação e maturação biológicas do bebê trazem sequelas. Estas podem interferir no processo normal de evolução física, motora, auditiva e psicológica da criança, influenci-ando o seu processo de aquisição e desenvolvimento de linguagem (Perissinoto, 1996).

Na literatura é referido que a grande maioria dos sobreviventes às complicações pré e perinatais desenvolve, tardiamente, distúrbios múltiplos na primeira infância ou idade escolar, incluindo dificuldades de aprendizagem, integração visomotora, linguagem e distúrbios de comportamento.

Luoma e colaboradores (1998) estudaram o desenvolvimento de fala e de linguagem em crianças nascidas com ou menos de 32 semanas de gestação, comparadas a um grupo de crianças nascidas a termo, com idade, sexo e condições sociais seme-lhantes. Concluíram que as crianças prematuras apresentaram pobre produção e compreensão de linguagem e de fala, atingindo escores significativa-mente inferiores em todas as habilidades avaliadas.

A prematuridade é a patologia neonatal que se associa com maior frequência às seqüelas neurológicas. A Organização Mundial da Saúde, baseando-se em grupos pediátricos europeus, estabeleceu que os bebês nascidos vivos antes de 37 semanas de gestação, a contar do primeiro dia do último período menstrual, são considerados recém-nascidos prematuros ou pré-termo (RNPT).

Segundo autores como Goulart (1998) e Behrman e colaboradores (1997), doenças maternas podem levar a um parto prematuro, como secundário a infecções maternas e intercorrências obstétricas.

O RNPT em convivência forçada com o meio extra-uterino antes do previsto ainda não apresenta uma capacidade totalmente funcional para as suas necessi-dades em relação aos seus órgãos e sistemas, surgindo as complicações mais ou menos freqüentes, de acordo com o grau de imaturidade, que serão detectadas e cuidadas ao longo de sua vida (Avery, 1978).

Esta população depende de cuidados especiais desde o nascimento, uma vez que estes recém-nascidos (RN) estão mais sujeitos a uma série de doenças que podem ocasionar alterações em seu desenvolvimento, no qual o sistema nervoso tem que

se desenvolver sob condições não fisiológicas e, freqüentemente, prejudiciais.

As complicações do Sistema Nervoso no RNPT são principalmente aquelas ligadas aos aparelhos respiratório e vascular e à icterícia neonatal (Stopiglia, 1997; Goulart, 1998).

Na literatura vários autores referem em seus trabalhos defazagem em sinais de evolução normal em crianças prematuras, consistindo em ritmo alterado no processo de linguagem, a partir de fatores biológicos e ambientais.

A linguagem é considerada um dos aspectos mais importantes do desenvolvimento, sendo um meio fundamental de comunicação e interação social. Esta organiza as nossas experiências com o mundo, permitindo a integração e aprendizado. É também um canal de transmissão de informações complexas de uma pessoa à outra, sendo uma forma de comunicação distintivamente humana (Kandel e colaboradores, 1997).

A aprendizagem da linguagem pela criança surge natural e rapidamente no curso do primeiro ano de vida, dependendo da harmoniosa integração dos fatores biológico, afetivo e social (Zorzi, 1993).

Para o autor, a evolução infantil depende basica-mente de dois fatores: características individuais da criança e características de seu ambiente. No primeiro plano predominam as condições orgânicas e afetivas e, no segundo, aspectos sócio-familiares e oportunida-des de aprendizagem. Alterações ou inadequações destes aspectos podem ocasionar atrasos no curso normal do desenvolvimento da criança.

O desenvolvimento da linguagem não termina no primeiro ano de escolaridade regular; no entanto, as vocalizações mais importantes ocorrem entre um e cinco anos de idade. Posteriormente, as mudanças se apoiam, basicamente, mais no aperfeiçoamento das capacidades já adquiridas, do que no aparecimento de capacidades totalmente novas (Bee, 1986).

A autora refere ainda que a compreensão da linguagem verbal surge antes mesmo de sua expressão, sendo que crianças entre três e quatro anos são capazes de entender muitas formas de sentenças, antes mesmo de usarem-na espontanea-mente na sua própria fala.

O trabalho de Passos, em 1994, citado por Perissinoto (1996), conclui que os RNPT e de muito baixo peso apresentam alterações no processo de aquisição e desenvolvimento de linguagem, caracterizadas pelo atraso no seu aparecimento, alterações no ritmo do desenvolvimento de recepção e

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emissão de estruturas lingüísticas mais complexas, ampliação de vocábulos, recepção de ordens verbais e construção de frases.

A amplitude da ação fonoaudiológica com a criança prematura envolve toda a gama de comportamentos necessários à comunicação e seus eventuais distúrbios (Perissinoto, 1996).

A identificação e compreensão dos sinais iniciais de desvios no processo de evolução de linguagem proporcionam a intervenção correta e adequada junto à criança e, principalmente, por intermédio da família/ambiente.

Na literatura são ressaltados estudos que referem a mãe como elemento condutor da estimulação e maior eficácia em seus tratamentos quando houve maior participação da família. Dessa forma, o atendi-mento clínico fonoaudiológico não deve se restringir ao trabalho exclusivo com a criança, mas também atender a sua família, que traz dúvidas e necessita de explicações e orientações (Guedes, 1989).

OBJETIVO Este trabalho buscou verificar a importância da

orientação sistemática à família para o desenvolvi-mento lingüístico e cognitivo de crianças prematuras e de muito baixo peso com atraso no desenvolvimento de fala e de linguagem bem como a mudança de com-portamento dos pais frente às dificuldades de seus filhos.

MÉTODO SUJEITOS: Fizeram parte deste estudo seis crian-

ças, sendo três do sexo masculino e três do sexo feminino, entre 18 e 24 meses de idade, nível sócio-econômico médio-baixo, tendo sido todos neonatos prematuros, de muito baixo peso ao nascimento e adequados para a idade gestacional. As crianças foram divididas, aleatoriamente, em dois grupos: Controle (GI), crianças que receberam intervenção fonoaudiológica e seus pais não receberam orientação familiar, e Experimental (GII), crianças que receberam intervenção fonoaudiológica e seus pais, orientação familiar.

MATERIAL: Foram utilizados: Protocolo de Investi-gação Fonoaudiológica composto de três partes (A - Anamnese, B - Avaliação da Criança, C - Avaliação dos Pais), Guia de Orientação Familiar, jogos lúdicos e AVD.

PROCEDIMENTOS: Foram realizadas 13 sessões de atendimento fonoaudiológico distribuídas em: uma sessão para anamnese; duas sessões para a avaliação/reavaliação da criança; duas sessões para avaliação/reavaliação dos pais e oito sessões de terapia fonoaudiológica, com 30 minutos de duração, uma vez por semana. A orientação familiar foi realizada sistematicamente para o GII, participando o responsável pelo atendimento.

A terapia fonoaudiológica bem como as orientações desenvolvidas no trabalho foram realizadas pela fonoaudióloga Paula Scala Chiaratti, aprimoranda do Programa de Aprimoramento em Fonoaudiologia Aplicada à Neurologia Infantil – UNICAMP, em 1998.

Com o Protocolo de Investigação Fonoaudiológica obteve-se:

PARTE A: condições de gestação e parto, antecedentes familiares patológicos, aspectos psicológicos e circunstanciais da família; desenvolvimento neuropsicomotor, sociabilidade e hábitos deletérios da criança.

PARTE B: aquisição e desenvolvimento de fala e de linguagem, sistema sensório-motor-oral e funções neurovegetativas. Estes dados foram obtidos através da avaliação de Aspectos Cognitivos (processos perceptuais, funções básicas e resolução de problemas), Funcionalidade da Linguagem e Comunicação Oral (emissão e recepção do código oral, aspectos fonoarticulatórios).

PARTE C: rotinas e hábitos da criança, atitudes e atividades dos pais em relação às dificuldades de seus filhos. Esta avaliação foi dividida em seis itens, compreendendo: Estimulação, Brinquedos, Social, Regras e Limites, Alimentação e Hábitos.

Os desempenhos encontrados pelas crianças e seus pais foram classificados como Adequado (A), Moderadamente Adequado (MA) e Inadequado (I), com pontuação máxima de 2 e mínima de 0.

A partir do conjunto de todos os dados, foram elaboradas estratégias específicas para ser utilizadas durante a intervenção fonoaudiológica, e foi feito o planejamento da orientação familiar (Guia de Orientação Familiar).

RESULTADOS E CONCLUSÕES A partir dos resultados obtidos em todos os

aspectos analisados, após o período de intervenção e orientação familiar, foi encontrada maior evolução nos

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desempenhos lingüístico e cognitivo das crianças do GII (Tabela 1).

No início do trabalho foram encontrados desempenhos semelhantes nas crianças de ambos os grupos, sendo:

- Aspectos Cognitivos (I) em GI e GII, em que as crianças apresentaram atenção auditiva e visual reduzida e apenas foram capazes de identificar partes globais do corpo.

- Resolução de Problemas, o GI manteve comportamento (I); as crianças não foram capazes de resolver problemas de ordem motora, enquanto no GII as crianças apresentaram comportamento (A), com iniciativa e resolução de problemas motores.

- Funcionalidade da Linguagem (I) no GI, em que as crianças, embora tenham utilizado a linguagem com função, apresentaram dificuldades de interação e de estabelecimento de vínculo com a terapeuta e pouca ou nenhuma intenção comunicativa, e (A) no GII, em que as crianças utilizaram a linguagem funcionalmente, apresentaram interação e estabelecimento de vínculos com a terapeuta e intenção comunicativa.

- Comunicação Oral (I) em ambos os grupos, ocorrendo predominância do código gestual para a comunicação e assistematicidade do uso da oralidade (palavra-frase), hábito persistente de sucção de chupeta ou digital, respiração oral, inadequação da musculatura orofacial e sialorréia.

- Recepção do Código Oral, as crianças de GI e GII apresentaram comportamento (A), sendo capazes de compreender ordens verbais simples envolvendo situações concretas.

TABELA1 - SOMATÓRIA DA PONTUAÇÀO ALCANÇADA PELAS CRIANÇAS ANTES (A) E APÓS (D) INTERVENÇÃO FONOAUDIOLÓGICA E ORIENTAÇÃO FAMILIAR Aspectos

Cognitivos Funcionalidade da Linguagem

Comunicação Oral

Total

A 4 1 4 9 Grupo 1 D 5 1 5 11

A 6 3 4 13 Grupo 2 D 12 3 10 25

TABELA 2 - SOMATÓRIA DA PONTUAÇÃO ALCANÇADA PELOS PAIS ANTES (A) E APÓS (D) INTERVENÇÃO FONOAUDIOLÓGICA E ORIENTAÇÃO FAMILIAR

Estimulação

Brinquedos

Social

Regras e Limites

Alimentação

Hábitos

Total

A 0 3 5 0 6 0 14 Grupo 1 D 0 3 5 2 6 1 17

A 2 3 4 0 6 0 15 Grupo 2 D 6 4 4 6 6 6 32

Após o trabalho não foram encontradas

modificações de comportamentos nas crianças pertencentes ao GI. No GII foram alcançadas mudanças quanto aos Aspectos Cognitivos (A), com relação aos quais as crianças apresentaram aumento da atenção auditiva e visual e aquisição dos conceitos básicos esperados para a idade, e com relação à Comunicação Oral (A), no subitem Emissão, passando as crianças a eleger o código verbal como principal canal de comunicação, fazendo uso de palavra-frase e início de palavra-justaposta, e (MA) no subitem Aspectos Fonoarticulatórios, em que as crianças apresentaram maior controle da sialorréia e redução do uso do hábito deletério, permanecendo as demais inadequações.

Analisando as respostas apresentadas pelos pais de ambos os grupos, foi possível encontrar o predomínio de mudanças no desempenho dos pais do GII (Tabela 2).

No início do trabalho foram encontrados comportamentos semelhantes nos dois grupos, sendo:

- Alimentação (A), em que os pais ofereciam alimentos diversificados à criança, associada à ausência de transtornos alimentares.

- Brinquedos (MA), pois os pais forneciam brinquedos variados às crianças, porém sem seleção de estímulos (estimulação excessiva).

- Regras e Limites, Estimulação e Hábitos (I), tendo os pais o hábito de atender aos comportamentos inadequados de seus filhos (“crises

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de birra”), utilizar palavras inadequadas e atitudes incorretas e não estimuladoras para o desenvolvi-mento de fala e de linguagem e por não terem feito nenhuma tentativa para reduzir o uso do hábito deletério pela criança.

- O Social foi considerado (A) para GI, por freqüentarem locais diferentes constantemente, tendo a criança maior contato com pessoas da mesma faixa etária e adequada interação, e (MA) para GII, pois, apesar das crianças apresentarem adequada interação, dificilmente freqüentavam locais diversificados e tinham contato com outras crianças.

Após o trabalho, apenas os pais de duas crianças do GI apresentaram modificações (A) em seus comportamentos, nos itens Regras e Limites, não cedendo os pais aos comportamentos inadequados dos filhos, e Hábitos, em que os pais procuraram alternativas para reduzir o uso do hábito deletério pela criança.

No GII os pais alcançaram modificações (A) em seus comportamentos em três itens, permanecendo inalterados os demais. Estas mudanças foram em Estimulação, passando os pais a proporcionar atividades corretas e estimuladoras para o desenvol-vimento de fala e de linguagem e não uso de palavras inadequadas; Regras e Limites, não cedendo os pais aos comportamentos inadequados dos filhos, e Hábitos, em que os pais procuraram alternativas para reduzir o uso do hábito deletério pela criança.

Foram encontrados avanços, mais ou menos significativos, no desempenho das crianças e pais de ambos os grupos, dando indícios de uma evolução favorável quanto ao desenvolvimento de fala e de linguagem e mudança de comportamentos inadequados quando acompanhados com profissional especializado, abordando não apenas as necessida-des das crianças, mas também as dúvidas e dificul-dades dos pais em como lidar com seus filhos.

Autores como Almeida e Bevilacqua (1987), que desenvolveram trabalhos com orientação familiar, seja com grupos de pais ou individualmente, referiram que a participação dos responsáveis bem como a mudan-ça em seu comportamento resultaram numa significativa melhora na evolução dos pacientes.

Guedes (1989) acrescenta que as modificações dos comportamentos dos pais quanto a seus filhos,

alcançadas com a orientação familiar, demonstram melhor aceitação de suas dificuldades, uma diminuição da ansiedade e uma busca em conjunto para atingir os objetivos propostos em terapia.

Como encontrado na literatura, este trabalho mostrou a importância de serem realizadas orientações sistemáticas aos familiares, uma vez que foi verificado que a participação dos pais e a mudança de seus comportamentos e atitudes frente às dificul-dades de seus filhos favoreceram a integração entre família-terapeuta bem como um maior e mais rápido avanço na evolução da criança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Almeida, E.C. e Bevilacqua, M.C. - O trabalho fonoaudiológico com um grupo de pais de crianças deficientes auditivos. Distúrbio da Comunicação, v.2, n.3-4, p.153-9, 1987. 2. Avery, G.B. - Neonatologia, fisiopatologia e cuidados do recém-nascido. São Paulo, Artes Médicas, 1978. 3. Bee, H. - A criança em desenvolvimento. São Paulo, Harbra, 1986. 4. Behrman, R.E.; Kliegaman, R.M.; Arvin, A. - Tratado de pediatria. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1997. 5. Goulart, A.L. - Intercorrências perinatais como causas de sequelas neurológicas. Temas sobre Desenvolvimento, v.37, n.7, p.5-13, 1998. 6. Guedes, Z.C.F. - Grupo de pais: uma experiência de mútua compreensão. Distúrbios da Comunicação, v.3, n.1, p.49-55, 1989. 7. Hernandes, A.M. - Atuação fonoaudiológica em neonatologia: uma proposta de intervenção. In: Andrade, C.R.F. - Fonoaudiologia em berçário normal e de alto risco. São Paulo, Lovise, 1996. v.1. p.43-98. 8. Kandel, E.R.; Schwartz, J.H.; Jessel, T.M. - Fundamentos da neurociência e do comportamento. Rio de Janeiro, Prentice Hall do Brasil, 1997. 9. Luoma, L. - Speech and language development of children born at <= 32 weeks gestation: a 5 year prospective follow-up study. Develop. Med. Child Neurol., v.40, n.6, p.380-87, 1998. 10. Perissinoto, J. - Atuação fonoaudiológica com o bebê prematuro: acompanhamento do desenvolvimento. In: Andrade, C.R.F. - Fonoaudiologia em berçário normal e de risco. São Paulo, Lovise, 1996. p.129-48. 11. Stopiglia, M.C.S. - Avaliação neurológica de recém nascidos pré-termo acometidos por hemorragia periventricular. Campinas, 1997. [Tese - Mestrado - Universidade Estadual de Campinas]. 12. Zorzi, J.L. - Aquisição da linguagem infantil: desenvolvimento, alterações, terapia. São Paulo, Pancast, 1993.

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avaliação neuropsicológica de crianças portadoras de paralisia cerebral hemiparética congênita: estudo preliminar maria de lourdes merighi tabaquim(1) e sylvia maria ciasca(2)

(1) Psicóloga, Doutoranda em Ciências Biomédicas / Neurologia na Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Sagrado Coração - USC, Bauru (2) Professora Doutora da Disciplina de Neurologia Infantil do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP RESUMO: AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA EM CRIANÇAS PORTADORAS DE PARALISIA CEREBRAL HEMIPARÉTICA CONGÊNITA: ESTUDO

PRELIMINAR: A neuropsicologia envolve o domínio das relações e inter-relações das funções cerebrais e do próprio comportamento, e portanto a avaliação é fundamental para documentar o grau de evolução e levantar dados que possibilitem desenvolver técnicas de intervenção. O objetivo desse projeto piloto foi a avaliação Neuropsicológica em crianças portadoras de Paralisia Cerebral na forma Hemiparética Congênita (PC-HC). Este estudo envolveu 15 crianças, numa faixa etária de 6 a 10 anos, freqüentando escolas da rede pública e privada da cidade de Bauru-SP, classificadas em quatro grupos diferenciados. Grupo I com PC-HC sem comprometimento mental; Grupo II formado por crianças com PC-HC com deficiência mental leve; Grupo III, por crianças com dificuldades de aprendizagem escolar, sem deficiência mental; e o Grupo IV, como controle.Os dados analisados intergrupos versaram sobre a presença ou a ausência de habilidades relacionadas às funções motora, cognitiva, perceptual, mnésica, da linguagem e domínio da leitura e escrita. Os resultados mostraram que cada grupo apresentou um perfil de competência, em que fatores como idade cronológica-mental são significativos para a manutenção das crianças nesses grupos.

UNITERMOS: Paralisia cerebral - Hemiparesia congênita - Avaliação neuropsicológica

ABSTRACT: NEUROPSYCHOLOGICAL ASSESSMENT OF CHILDREN WITH CEREBRAL HEMIPARETIC CONGENITAL PALSY: PRELIMINARY STUDY:

Neuropsychology involves the understanding of the relation and the interrelation between the cerebral functions and the behavior itself. Therefore, assessment is crucial to bring evidences about the level of evolution and to raise data which allows the development of techniques for intervention. The objective of this pilot study was the neuropsychological assessment of children with cerebral hemiparetic congenital palsy (PC-HC). This study involved 15 children between 6 and 10 years old, all of them students at public and private schools in the city of Bauru - SP. They were classified in four different groups: Group I: children with cerebral hemiparetic congenital palsy, but with no mental retardation; Group II: children with cerebral hemiparetic congenital palsy with light mental etardation; Group III: children with learning disabilities, but with no mental retardation, and Group IV: as a control group. The analysed inter-group data indicated the presence or the absence of the abilities related to the motor, cognitive, perceptual and memory functions of the language as well as to the ability of reading and writing. The results showed that each group presented an own profile of their competence, in which the age and chronological-mental factors were relevant to keep the children in the referred groups.

UNITERMS: Cerebral palsy - Congenital hemiparesis - Neuropsychological assessment

Artigo Original TABAQUIM, M.L.M. e CIASCA, S.M. - Avaliação neuropsicológica em crianças portadoras de paralisia cerebral hemiparética

congênita: estudo preliminar. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.57, p.24-29, 2001.

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O desenvolvimento biológico e psico-social da criança é baseado em uma série de experiências que ela é capaz de vivenciar, a partir da percepção do próprio corpo, do conhecimento e exploração, para um processo evolutivo cumulativo de aquisições motoras, intelectuais, sociais e de linguagem, e quanto mais especializadas se tornam estas aquisições, maior será o domínio frente ao seu contexto e a si próprio.

A criança com lesão cerebral e danos no seu desenvolvimento encontra-se exposta a limitações na realização de suas experiências, interferindo no processo adaptativo assim como na organização na personalidade. Portanto, a busca pela melhoria efetiva de procedimentos diagnósticos e alternativas de intervenção são essenciais para minimizar as possíveis seqüelas decorrentes da condição lesional do cérebro (Lefèvre, 1996).

Os estudiosos de diferentes áreas têm procurado entender as diversas causas da Paralisia Cerebral (PC) e, para tanto, têm contado com avanços significativos na anatomia patológica, genética médica e estudos por imagem, que contribuem com informações descritivas relacionadas às malformações do Sistema Nervoso Central (SNC), infecções congênitas, lesões hipóxico-isquêmicas etc.

Para o “Little Club” (apud Schwartzman, 1993), “... paralisia cerebral é um distúrbio do movimento e da postura, persistente mas não invariável, aparecendo nos primeiros anos de vida pela interferência no desenvolvimento do SNC, causada por uma desordem cerebral não progressiva”. A classificação de PC não é possível por sua etiologia, nem através do sítio de lesão encontrado, mas sim baseando-se nos sinais clínicos apresentados e universalmente usados. Estudos recentes têm indicado fatores pré-natais como contribuintes para a ocorrência de PC (Piovesana, 1993; Piovesana et al., 2001).

Devido às causas e tipos clínicos serem variados, o prognóstico funcional também é incerto, no que se refere à independência da criança para a execução de atividades da vida diária, da linguagem, aprendizagem e integração psico-social. O sistema neurológico comprometido, de acordo com a sede anatômica da lesão e em relação à parte do corpo afetada, recebe diferentes designações. A hemiparesia congênita (HC) é uma forma de paralisia cerebral, com desordem motora unilateral, em que um hemicorpo é acometido por etiologia pré-natal, e a classificação quanto ao grau de comprometimento motor (leve, moderado, grave e severo) é usada em combinação com a

classificação anatômica e clínica (Piovesana et al., 2001).

A incidência de paralisia cerebral no Brasil é desconhecida, e os levantamentos estatísticos se tornam insipientes porque os dados são descentralizados e não há obrigatoriedade de notificação da ocorrência. No entanto, pode-se presumir uma incidência elevadíssima em razão das condições sócio-econômicas precárias de grande parte da população, para a qual faltam cuidados adequados à gestante, à parturiente, aos recém-nascidos e lactentes, e da alta mortalidade infantil que possibilita a redução do número de paralisados cerebrais sobreviventes. No entanto, a literatura é concordante ao colocar em primeiro ou segundo lugar a forma hemiparética de ocorrência, deixando clara a importância do conhecimento desta entidade, tanto clínico como laboratorial (Piovesana, 1993; Tabaquim, 1996).

As alterações cerebrais, em decorrência do acometimento das funções corticais superiores, são responsáveis pela perda da integridade do sistema nervoso central (SNC). O desenvolvimento do neo-córtex humano envolve migração neuronal, diferen-ciação, amadurecimento dos neurônios, e vasos sangüíneos (Kandel e colaboradores, 1995). O enten-dimento desse processo é de fundamental importância para a compreensão dos mecanismos responsáveis pelas diferentes alterações neurológicas, a partir de lesões congênitas ou adquiridas. A perda da integrida-de anatômica e funcional do SNC compromete o indivíduo na capacidade de aprendizagem, senão diretamente em uma relação de causa e efeito como decorrência indireta do quadro neurológico envolvido, também pelas alterações motoras que interferem na aprendizagem acadêmica (Ciasca, 1990).

Na metade do século XIX foi comprovado que regiões específicas do cérebro, relacionadas com as funções cognitivas, eram constituídas de centros, cada qual responsável por uma determinada função com-plexa (Nitrini, 1996). Atualmente, a visão predominan-te é a de que as funções superiores se organizam como sistemas funcionais complexos ou redes de conexões, não dependendo de um centro único, mas da ação em conjunto de diversas regiões conectadas entre si. Cada região é responsável por uma ou mais operações elementares e contribui de modo particular para uma função complexa (Luria, 1985, apud Nitrini, 1996).

No Brasil, Lefèvre foi um dos pioneiros no estudo das atividades nervosas superiores, considerando a neuropsicologia um campo de estudos para o qual não há delimitação precisa na investigação dos aspectos

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da consciência, atenção, orientação retenção e memó-ria, inteligência e emoção, linguagem e praxia. A sua compreensão exige a utilização dos recursos semioló-gicos da Neurologia e da Psicologia (Lèfevre, 1989).

Como a neuropsicologia envolve o domínio das relações e inter-relações das funções cerebrais e do comportamento, a avaliação é fundamental para documentar o grau de evolução e levantar dados que possibilitem desenvolver técnicas de intervenção. Além disso, a avaliação neuropsicológica deve promover e aprofundar o conhecimento do funcionamento cerebral, permitindo avaliar como se desenvolvem os processos psicológicos, lingüísticos e perceptuais, comparando-os e revelando a interdependência dos mesmos (Christensen, 1979).

Na aprendizagem, o diagnóstico pode ser empre-gado como um meio efetivo de prevenção para a criança que apresenta problemas acadêmicos em decorrência de algum déficit físico, psicológico, social, escolar, sensorial ou ainda em razão da interação desses vários aspectos. Aliado a isto, há falta de pes-quisas na área diagnóstica que possibilitem a análise tanto do processo avaliativo, como dos métodos e instrumentos específicos envolvidos (Ciasca, 1990).

Este trabalho teve por objetivo o levantamento e a análise de dados referentes ao diagnóstico neuropsicológico em crianças com paralisia cerebral na forma hemiparética congênita (PC-HC). Este estudo se justificou pela carência de instrumentos específicos de avaliação neuropsicológica na literatura para esta população. Além dessa perspectiva bastante limitada, geralmente a criança com PC-HC é rotulada como deficiente mental, ou de difícil avaliação (Piovesana, 1993). É fundamental salientar que, para o propósito deste estudo, a criança com PC-HC teoricamente teria um padrão de resposta mais similar ao grupo de distúrbios de aprendizagem, pois, embora sem lesão cerebral, apresentam disfunções na aprendizagem. E a criança hemiparética, com a possibilidade da funcionalidade unilateral preservada, teria, a priori, expressividade da resposta, não especificamente da área motora, mas das demais áreas da aprendizagem, como linguagem, memória, percepção viso-espaço-temporal, leitura, escrita, habilidade numérica e cognição. Neste estudo comparativo, no qual os dados levantados foram pareados em níveis de desempenho, a possibilidade de conexões neurológicas decorrentes da plasticidade neuronal, promoveria níveis similares de padrões de resposta entre os grupos, assim como um referencial de análise correlato.

MÉTODO Sujeitos Fizeram parte desta pesquisa 15 crianças, de seis

a dez anos, classificadas em quatro grupos: I - PC-SDM: três crianças com paralisia cerebral,

sem deficiência mental, duas do sexo masculino com sete e nove anos, e uma do feminino com nove anos;

II - PC/CDM: três crianças com paralisia cerebral, com deficiência mental (leve), do sexo masculino, com oito, nove e dez anos de idade;

III- N/PA: três crianças sem seqüelas neurológicas, sem deficiência mental, apresentando problemas de aprendizagem, do sexo masculino, com sete, nove e dez anos;

IV - N/SDM: seis crianças sem alterações do desenvolvimento, caracterizando o grupo de controle, sendo três do sexo masculino com seis, sete e dez anos, e três do feminino, com idades de oito, nove e dez anos.

Foram critérios de inclusão no estudo: I - PC/SDM: 1) idade cronológica entre seis e dez anos; 2) diagnóstico neurológico de PC-HC realizado a

partir de anamnese e Exame Neurológico tradicional, realizado no CEPs - Centro de Educação para a Saúde da Universidade do Sagrado Coração, em Bauru;

3) nível mental médio, avaliado pelo Teste Raven - Matrizes Progressivas.

II - PC/CDM: 1) idade cronológica entre seis e dez anos; 2) confirmação do diagnóstico neurológico de PC-

HC a partir de anamnese e Exame Neurológico tradicional, realizado no CEPs - Centro de Educação para a Saúde da Universidade do Sagrado Coração, em Bauru;

3) nível mental abaixo da média, avaliado pelo Teste Raven - Matrizes Progressivas.

III - N/PA: 1) idade cronológica entre seis e dez anos; 2) dificuldades na aprendizagem escolar, com

fracasso na leitura, escrita e operações aritméticas (queixa escolar);

3) sem outras alterações em níveis sensorial, mental, comportamental e neurológico;

4) nível mental médio, avaliado pelo Teste Raven - Matrizes Progressivas.

IV - N/SDM: 1) idade cronológica entre seis e dez anos; 2) sem queixa escolar ou de desenvolvimento;

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3) nível mental médio, avaliado pelo Teste Raven - Matrizes Progressivas.

Com exceção do grupo II - PC/CDM, cujas crianças estavam matriculadas no ensino especial, todas as demais crianças freqüentavam classes regulares da Rede Oficial de Ensino. Para a formação do Grupo IV - N/SDM, a escolha foi aleatória.

Procedimento A) Coleta de dados: Levantamento da população

junto às Escolas da Rede Oficial de Ensino, Instituições e Profissionais Liberais; Aplicação do Teste Raven - Matrizes Progressivas para crianças, como critério de inclusão nos grupos;

O Exame Neuropsicológico foi elaborado a partir dos pressupostos de Aleksandr Ramanovich Luria, que empregou grande parte dos seus estudos na investigação de pacientes adultos com lesões cerebrais focais, principalmente aquelas relacionadas às funções corticais superiores no homem. As provas, tendo como base o diagnóstico neuropsicológico de Luria (Cristensen, 1979), foram organizadas para investigar dez áreas funcionais do desenvolvimento infantil ligadas aos processos de aprendizagem. O Quadro 1 mostra as áreas e subáreas do Exame Neuropsicológico.

As provas empregadas neste exame relacionaram-se à conduta maturacional neurológica das funções corticais superiores. Quantitativamente,

foi definido pela complexidade e necessidade de investigação específica da área.

B) Análise dos dados: Foi realizado o pareamento intergrupal das funções motora, cognitiva, sensitiva, gnósica, visual e da praxia construtiva, correlacionadas com as funções corticais, cujos dados foram coletados na aplicação do Exame Neuropsicológico. A Figura 1 mostra os esquemas de procedimento da análise.

Os dados coletados versaram sobre a presença (S) ou ausência (N) de habilidades relacionadas às funções motora, cognitiva, perceptual, mnésica, da linguagem e domínio da leitura e escrita. Foram considerados também os acertos parciais das respostas (P).

RESULTADOS E DISCUSSÃO Os resultados mostraram cada grupo com um

perfil de competência, em que fatores cognitivos relacionados a habilidades metalingüísticas foram significativos para determinar os níveis de respostas. Segundo Demont (1997), esta capacidade da criança de refletir sobre a linguagem é fundamental no processo da leitura e escrita, isto é, quando ela é capaz de estabelecer a relação entre o grafema e o fonema. A Figura 2 mostra os resultados comparativos entre o grupo controle, com problemas de aprendizagem e de paralisia cerebral.

QUADRO 1 - ÁREAS E SUBÁREAS DO EXAME NEUROPSICOLÓGICO 1. Funções Motoras das mãos 1.1 - Movimento Simples 1.2 - Bases Cinestésicas 1.3 - Organização Óptico-Especial do ato motor 1.4 - Organização Dinâmica do Ato Motor 1.5 - Formas Complexas de Praxias 1.6 - Regulação Verbal do Ato Motor

6. Linguagem Expressiva 6.1 - Fala Nominativa 6.2 - Fala Narrativa

2. Organização Acústico-Motriz das Estruturas Rítmicas

7. Leitura e Escrita 7.1 - Análise Fonética 7.3 - Escrita 7.2 - Síntese Fonética 7.4 - Leitura

3. Sensações Cutâneas Superiores e Funções Cinestésicas 3.1 - Táteis 3.2 - Musculares e Articulatórias 3.3 - Estereognosia

8. Processos Mnésicos 8.1 - Compreensão da Estrutura Numérica 8.2 - Memória Lógica Pictórica e Ideográfica

4. Funções Visuais Superiores 4.1 - Percepção de Objetos e Desenhos 4.2 - Orientação Espacial 4.3 - Operações Intelectuais no Espaço

9. Destreza Aritmética 9.1 - Compreensão da Estrutura Numérica 9.2 - Operações Aritméticas 9.3 - Atividade intelectual Discursiva

5. Linguagem Receptiva 5.1 - Compreensão de Palavras 5.2 - Identificação de Cenas 5.3 - Compreensão de Orações Simples 5.4 - Compreensão de Estruturas Gramaticais Lógicas

10. Processos Cognitivos Lingüísticos 10.1 - Compreensão de Imagens Temáticas 10.2 - Formação de Conceitos

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N/SD

FIGURA 1 - DIAGRAMA REPRESENTANDO AS INTER-RELAÇÕES DOS PROCEDIMENTOS

REFERENTES AO EXAME NEUROPSICOLÓGICO

A Tabela 1 mostra resultados indicando que o grupo de crianças com paralisia cerebral (PC/CDM) e aquele com problemas de aprendizagem (N/PA) tiveram desempenhos semelhantes na organização das estruturas rítmicas (33,33%). Este dado mostra a ocorrência de desorganização práxica, característica em ambos os grupos. Fonseca (1995) refere-se nomeadamente à motricidade fina, dificuldades perceptivo-motoras e à incoordenação óculo-manual em crianças com dificuldades na aprendizagem.

Nas funções visuais superiores, o grupo PC mostrou maiores dificuldades que o de PA, mas, nas funções de linguagem receptiva, as crianças com distúrbio de aprendizagem tiveram desempenhos inferiores ao de paralisia cerebral. Nas tarefas envol-vendo análise fonética de leitura e escrita, não houve diferença nas médias obtidas por ambos os grupos.

Nas Habilidades Numéricas observaram-se resultados semelhantes entre PA e PC, diferenciando-se significativamente do grupo controle. Ambos os grupos (PC e PA) mostraram dificuldades expressivas nos processos cognitivos lingüísticos, especificamente na compreensão de imagens temáticas e formação de conceitos.

A diferença de desempenhos entre as crianças do grupo com problemas de aprendizagem e com paralisia cerebral foi significativa nas tarefas que envolveram a área motora, justificada pelas alterações do SNC, e confirmando a casualidade estatística encontrada na literatura (Ferraretto e Souza, 1998). No entanto, nas tarefas relacionadas às áreas da linguagem, o grupo com problemas de aprendizagem demonstrou resultados inferiores aos de crianças com paralisia cerebral. A aprendizagem escolar, nomeada-mente da leitura, escrita, cálculo e linguagem, cons-tituiu algumas das tarefas com menores rendimentos em todos os grupos experimentaisdade maior para aquele com quei

Os desempenhos discutidos sugeriram relação com a falta de domínio do código lingüístico, de habilidades perceptuais fonológicas e sintáticas, necessárias à aquisição da leitura e escrita.

Foram observadas produções baixas nos grupos de aprendizagem e com paralisia cerebral relacionadas às alterações da motricidade suplementar e da organização acústico-motriz perceptual do ritmo, domínios esses importantes no aprendizado, uma vez que envolve a manutenção de posturas adequadas, funções práxicas e gnósicas na expressão da leitura e escrita.

CONCLUSÃO Este estudo permitiu concluir que as crianças com

paralisia cerebral, mesmo com cognitivo comprometido, próximo à média inferior, pareou-se com aquelas que apresentavam dificuldades na aprendizagem escolar, em tarefas relacionadas à leitura e escrita. Nos aspectos da linguagem expressiva, tanto sobre a fala nominativa em que se exigiu habilidade na recuperação de repertórios lexicais, quanto da fala narrativa em que se verificou a expressão verbal, morfológica, semântica e pragmática, os grupos obtiveram escores semelhantes, embora distanciados da performance do grupo controle, uma vez que o processamento de áreas como da linguagem, leitura e escrita, envolve o uso de rotas específicas da aprendizagem (Gerber, 1996). Além disso, os dados evidenciaram uma compatibilidade de desempenho motor, confirmando achados da literatura segundo os quais a criança com dificuldades de aprendizagem (DA) apresenta dispraxia e desorganização psicomotora, característica comum entre os lesionados cerebrais (Fonseca, 1995).

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, com expressivi-xa escolar (N/PA).

PC/SD

PC/CD

N/PA

0

20

40

60

80

100

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

N/SDMN/PAPC/CDM

FIGURA 2 - REPRESENTAÇÃO GRÁFICA DOS DESEMPENHOS DOS GRUPOS TESTADOS NAS PROVAS DO EXAME NEUROPSICOLÓGICO

TABELA 1 - DADOS PERCENTUAIS DOS DESEMPENHOS OBTIDOS PELOS GRUPOS AVALIADOS N/SDM N/PA PC/CDM

PROVAS S N P S N P S N P 1 78,94 10,53 10,53 87,72 12,28 0 14,81 61,11 24,08 2 44,45 44,45 11,10 33,33 66,67 0 33,33 66,67 0 3 96,30 3,70 0 92 7,40 0 55,56 40,74 3,70 4 77,78 11,11 11,11 66,67 22,22 11,11 22,22 55,56 22,22 5 77,78 19,44 2,78 25 63,89 11,11 47,22 50 2,78 6 88,90 5,55 5,55 27,78 55,55 16,67 27,78 55,5 16,67 7 97,92 2,08 0 20,84 79,16 0 20,83 79,17 0 8 88,89 0 11,11 50 44,44 5,56 5,55 77,78 16,67 9 66,67 33,33 0 14,29 85,71 0 14,29 80,95 4,76

10 100 0 0 16,67 77,78 5,55 11,12 83,33 5,55

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Christensen, A.L. - El diagnóstico neuropsicológico de Luria. Madrid, Pablo del Rio, 1979. 205p. 2. Ciasca, S.M. - Diagnóstico dos distúrbios de aprendizagem em crianças: análise de uma prática interdisciplinar. São Paulo, 1990. 118p. (Dissertação - Mestrado - USP). 3. Demont, E. - Consciência fonológica, consciência sintática: que papel (ou papéis) desempenha na aprendizagem eficaz da leitura? In: Gregóire, J. e colaboradores - Avaliação dos problemas de leitura: os novos modelos teóricos e suas implicações diagnósticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. p.45-87. 4. Ferraretto, I. e Souza, A.M.C. - Paralisia cerebral: aspectos práticos. São Paulo, Memnon, 1998. 390p. 5. Fonseca, V. - Introdução às dificuldades de aprendizagem. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995. 388p. 6. Gerber, A. - Problemas de aprendizagem relacionados à linguagem: sua natureza e tratamento. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996. 426p. 7. Kandel, E.R.; Schwartz, J.H.; Jessell, T.M. - Essentials of neural science and behavior. Stanford-Connecticut, Appleton e Lange, 1995. 591p.

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adaptação brasileira do “international dyslexia test”: perfil cognitivo de crianças com escrita pobre alessandra g. seabra capovilla(1), ian smythe(2), fernando c. capovilla(3)), John everatt(2)

(1) Docente do Programa de Mestrado em Psicopedagogia da UNISA e do Instituto de Psicologia da USP (2) Professores do Departamento de Psicologia da Universidade de Surrey, Inglaterra (3) Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP RESUMO: ADAPTAÇÃO BRADILEIRA DO “INTERNATIONAL DYSLEXIA TEST”: PERFIL COGNITIVO DE CRIANÇAS COM ESCRITA POBRE: O International Dyslexia Test

(IDT) avalia diferentes habilidades cognitivas relacionadas à aquisição de leitura e escrita, como consciência fonológica, processamento auditivo, processamento visual, velocidade de processamento, seqüenciamento, habilidades motoras, raciocínio e habilidades matemáticas. Ele já foi traduzido para diferentes línguas e é usado como instrumento para o diagnóstico da dislexia em uma série de países. Este estudo preliminar, com alunos brasileiros de primeira série de escola pública, teve como objetivo adaptar o teste ao português brasileiro e verificar as habilidades cognitivas em que bons e maus leitores diferem. Os resultados mostraram que crianças com dificuldades de escrita tiveram desempenhos significativamente inferiores às crianças sem dificuldades de escrita em consciência fonológica, processamento auditivo, seqüenciamento e velocidade de processamento. Entretanto, seus escores foram semelhantes em habilidades motoras, processamento visual e habilidades aritméticas. Tais resultados são similares àqueles encontrados em outras ortografias alfabéticas, como o inglês e o alemão. Isto confirma a importância da consciência fonológica, do processamento auditivo e do seqüenciamento para a aquisição de leitura e escrita em ortografias que mapeiam a fala no nível fonêmico.

UNITERMOS: International Dyslexia Test - Desenvolvimento Cognitivo - Dislexia - Escrita

ABSTRACT: BRAZILIAN ADAPTATION OF THE INTERNATIONAL DYSLEXIA TEST: COGNITIVE PROFILE OF CHILDREN WITH POOR WRITING: The International Dyslexia

Test (IDT) assesses different cognitive abilities related to the acquisition of reading and writing, such as phonological awareness, auditory processing, visual processing, speed of processing, sequencing, motor abilities, reasoning, and arithmetic abilities. It has been translated to different languages and is used as a dyslexia diagnosis instrument in a number of countries. This preliminary study, with public school Brazilian first graders, aimed at adapting the test to Brazilian Portuguese and using it to assess the cognitive abilities in which good writers and poor writers present significant differences. Results showed that children with writing difficulties (i.e., poor writers) scored lower than did good writers in phonological awareness, auditory processing, sequencing, and speed of processing. However, their scores were comparable with respect to motor abilities, visual processing and arithmetic abilities. Such results are similar to those found in other alphabetic orthographies, such as English and German. This confirms the importance of phonological awareness, auditory processing and sequencing to the reading and writing acquisition of orthographies that map speech at the phonemic level.

UNITERMS: International Dyslexia Test - Cognitive development - Dyslexia - Writing

Artigo Original CAPOVILLA, A.G.S.; SMYTHE, I.; CAPOVILLA, F.C.; EVERATT, J. - Adaptação brasileira do “International Dyslexia Test”:

perfil cognitivo de crianças com escreita pobre. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.57, p.30-7, 2001.

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A dislexia do desenvolvimento tem sido estudada por diversos pesquisadores em todo o mundo. As definições deste conceito, porém, são variáveis. Segundo Harris e Hodges (1981), a dislexia pode ser definida como uma forma primária de problema de leitura devido a algum tipo de disfunção do sistema nervoso central. De acordo com a World Federation of Neurologists (1968), a dislexia do desenvolvimento é o distúrbio em que a criança, apesar de ter acesso à escolarização regular, falha em adquirir as habilidades de leitura, escrita e soletração que seriam esperadas de acordo com seu desempenho intelectual. O National Institute of Health americano define dislexia como "um dos vários tipos de distúrbios de aprendizagem. É um distúrbio específico de linguagem de origem constitucional e caracterizado por dificuldades em decodificar palavras isoladas, geralmente refletindo habilidades de processa-mento fonológico deficientes. Essas dificuldades em deco-dificar palavras isoladas são freqüentemente inesperadas em relação à idade e outras habilidades cognitivas e acadêmicas; elas não são resultantes de um distúrbio geral do desenvolvimento ou de problemas sensoriais" (Research Committee, The Orton Dyslexia Society, 1995).

A palavra dislexia é derivada dos radicais gregos dis (dificuldade) e lexis (palavra). Um dos primeiros registros de dificuldades de leitura e escrita data de 1896, quando Pringle Morgan, um médico inglês, documentou o caso do menino Percy no British Medical Journal. O menino tinha sérias dificuldades com palavras escritas e letras, apesar de ter boas habilidades em outras áreas.

Assim como variam as definições sobre a dislexia, também variam os fatores que são apontados como causais por diferentes teorias. Historicamente, de início, a dislexia foi relacionada a dificuldades de processamento visual (Bronner, 1917; Orton, 1937). De acordo com tal interpretação, as dificuldades de leitura e escrita seriam conseqüentes a problemas com discriminação visual, movimentos oculares, memória visual e convergência binocular (Eden e colaboradores, 1995; Catts, 1996). Tal hipótese, porém, não foi confirmada por estudos de intervenção em que disléxicos eram submetidos a programas para desenvolver o processamento visual. Naqueles estu-dos, apesar de apresentarem ganhos em habilidades visoespaciais, seu desempenho em leitura e escrita continuava rebaixado (Grégoire e Piérart, 1997).

A partir dos anos 70, estudos como o de Shankweiler e Liberman (1972) e os de Vellutino e colaboradores (1977) começaram a enfatizar a importância do processamento fonológico para a

leitura e a escrita, e o foco passou do processamento visual para o fonológico (Vellutino, 1979; Liberman e colaboradores, 1982; Torgesen, 1988). A Hipótese do Déficit Fonológico foi corroborada por inúmeras pesqui-sas, com evidências de que dificuldades metafonológicas predizem dificuldades ulteriores na aprendizagem da leitura, e de que intervenções para desenvolver consci-ência fonológica produzem ganhos em leitura e escrita (Bradley e Bryant, 1983; Lundberg e colaboradores, 1988; Cunningham, 1990; Lie, 1991; Torgesen e Davis, 1996; Elbro e colaboradores, 1996; Schneider e colaboradores, 1997; Capovilla e Capovilla, 2000).

Tais distúrbios fonológicos poderiam levar a diferentes dificuldades, freqüentemente encontradas nos maus leitores, como por exemplo o baixo desempenho em determinados subtestes do WISC, padrão conhecido como perfil ACID, que corresponde a desempenhos inferiores nos subtestes de Aritmética, Código, Informação e Dígitos. De acordo com Nicolson e Fawcett (1994), as dificuldades com o sub-teste de Dígitos (que requer a repetição de números nas ordens direta e inversa) seriam decorrentes de um distúrbio na estocagem fonológica que, por sua vez, poderia estar relacionada a representações lexicais deficientes (Elbro, 1998). Já as dificuldades no subtes-te de Informação seriam decorrentes, num primeiro momento, do baixo vocabulário e, num segundo momento, da dificuldade de extrair informação da palavra escrita. Ambas as dificuldades comporiam um círculo vicioso, de modo que as crianças que têm menor vocabulário teriam maior dificuldade em apreender significado a partir da leitura, o que levaria a um rebaixamento ainda maior do vocabulário, e assim sucessivamente. Tal processo é denominado por Stanovich (1986) de efeito de Mateus.

Porém, conforme Nicolson e Fawcett (1994), os baixos desempenhos nos subtestes de Código e Aritmética não podem ser bem explicados apenas pela Hipótese do Déficit Fonológico. Alguns outros distúr-bios parecem estar subjacentes a tais dificuldades. Por exemplo, Miles (1983) sugere que o baixo desem-penho em Aritmética pode estar relacionado a uma dificuldade em aprender associações (como relacionar o número ao seu nome e valor, ou memorizar resulta-dos de operações básicas). Já o subteste de Código estaria relacionado à velocidade de processamento. Aliás, vários estudos têm relatado que os maus leitores e os disléxicos apresentam baixa velocidade de processamento de informação, tanto de informação auditiva quanto de informação visual ou tátil (e.g., Rudel e colaboradores, 1981; Swanson, 1987).

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Assim, atualmente há vastas evidências de que os disléxicos apresentam desempenhos inferiores aos dos normoléxicos em tarefas de consciência fonoló-gica (envolvendo manipulação de fonemas), memória de trabalho fonológica, discriminação de fonemas, velocidade e precisão de acesso léxico (Olson, 1992) e, freqüentemente, eles apresentam, ainda, dificul-dades em uma série de tarefas não-verbais, como aritmética e velocidade de processamento de infor-mação. Evidências de dificuldades significativas com memória de trabalho fonológica, discriminação de fonemas e velocidade de processamento foram recentemente documentadas num estudo experi-mental comparando bons e maus leitores brasileiros (Capovilla e colaboradores, 2000).

É importante considerar, ainda, a influência do sistema ortográfico sobre o tipo de dislexia em interação com o fator causal prevalecente. De acordo com Goswami (1997), em diferentes ortografias, as dificuldades e os padrões de erro dos disléxicos também são diferentes. É necessário, portanto, comparar os desempenhos de crianças brasileiras com os de crianças de outras nacionalidades. Do ponto de vista das correspondências entre grafemas e fonemas, enquanto a ortografia do português usado no Brasil é bastante regular, a do inglês é consideravelmente menos regular (Parente e colaboradores, 1997). A maior parte da pesquisa sobre dislexia do desenvolvimento é conduzida com crianças falantes do inglês (Smythe e Everatt, 2000). Os achados focalizando dificuldade de processamento fonológico em disléxicos podem, assim, estar refletindo a influência da ortografia alfabética sobre a aquisição da leitura e escrita em inglês.

Por exemplo, na ortografia ideofonêmica chinesa (Morais, 1994) as crianças freqüentemente apresentam erros por confusão visual, i.e., a troca de caracteres visualmente semelhantes, mas não relacionados fonologicamente. Um erro freqüente também no chinês é a troca semântica, em que um caractere é trocado por outro semanticamente semelhante, mas não relacionado a ele de modo visual ou fonético. Tais erros são bastante incomuns em ortografias alfabéticas, como o inglês ou o português, e estão relacionados ao aspecto visomorfêmico da ortografia chinesa.

Nesta abordagem que considera a influência da ortografia, Smythe (2000) define dislexia como “uma dificuldade na aquisição de leitura, escrita e soletração que pode ser causada por uma combinação de distúrbios fonológicos, visuais e de processamento

auditivo. Podem também estar presentes dificuldades na evocação de palavras e na velocidade de processamento”.

É necessário, portanto, investigar quais são as relações entre a ortografia e as diferentes dificuldades subjacentes aos problemas de leitura e escrita. Pode-se levantar a hipótese de que em cada ortografia haja diferentes fatores causais subjacentes a tais proble-mas. Ou, por outro lado, os mesmos distúrbios podem ser encontrados, mas com diferentes prevalências em função das características da ortografia.

Para que tal comparação possa ser feita, porém, é preciso desenvolver instrumentos internacionais de avaliação, de forma que crianças de diferentes países possam ser avaliadas com base em um teste padrão, possibilitando as comparações entre ortografias. Um dos instrumentos desenvolvidos com este objetivo é o International Dyslexia Test ou IDT (Smythe e Everatt, 2000), que avalia diferentes aspectos do processa-mento cognitivo e que está sendo traduzido para diferentes línguas, permitindo a comparação do desempenho de crianças disléxicas e normoléxicas em diferentes países. No presente estudo o Interna-tional Dyslexia Test foi traduzido para o português brasileiro e aplicado a 12 crianças de primeira série de ensino fundamental público, com vistas a obter uma adaptação brasileira preliminar do mesmo e a avaliar os subtestes em que diferem crianças brasileiras com bom e mau desempenho de escrita sob ditado.

MÉTODO Participantes: Participaram do presente estudo 12

crianças (seis sem dificuldade de escrita sob ditado e seis com esta dificuldade) selecionadas a partir de uma amostra de 90 crianças de três turmas de primeira série de uma escola pública de ensino fundamental do interior do estado de São Paulo.

Instrumento: O International Dyslexia Test

(Smythe e Everatt, 2000) avalia diferentes aspectos do processamento cognitivo. É dividido em duas partes, uma de aplicação coletiva e outra de aplicação individual.

A parte coletiva contém os seguintes subtestes: 1. alfabeto: a criança deve escrever as letras do

alfabeto em seqüência; 2. cópia de formas: a criança deve copiar quatro

diferentes formas geométricas; 3. aritmética: a criança deve solucionar 20

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operações aritméticas simples; 4. ditado: a criança deve escrever 30 palavras e

dez não-palavras faladas pelo examinador; 5. memória de curto-prazo (digit span): o

examinador diz 16 seqüências de dígitos, cada uma com dois a nove dígitos e, após cada uma das seqüências, a criança deve escrever os dígitos;

6. raciocínio: a criança deve responder ao teste de Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, escala especial.

Além destes subtestes, com base no desempenho da criança na parte coletiva, são ainda analisados os fatores:

1. qualidade da escrita; 2. espelhamentos de números eventualmente

cometidos no subteste de memória de curto-prazo. A parte coletiva contém os seguintes subtestes: 1. leitura de palavras: a criança lê 14 linhas com

cinco palavras cada; 2. leitura de não-palavras: a criança lê dez não-

palavras; 3. aliteração: o examinador fala três palavras, e a

criança deve identificar qual delas começa com som diferente das demais;

4. rima: o examinador fala três palavras, e a criança deve dizer qual termina com um som diferente das demais;

5. contagem decrescente: a criança deve contar de trás para frente, de três em três números, a partir do número 100;

6. repetição de palavras: o examinador fala seqüências com duas a cinco palavras, e a criança deve repeti-las;

7. repetição de não-palavras: o examinador fala seqüências com uma a quatro não-palavras, e a criança deve repeti-las;

8. batidas rítmicas: o examinador bate seqüências rítmicas com um lápis e a criança deve reproduzi-las;

9. nomeação rápida de figuras: a criança deve nomear uma seqüência de 40 desenhos, sendo quatro desenhos diferentes que aparecem dez vezes cada um. É computado o tempo total despendido na nomeação;

10. nomeação de números: a criança deve nomear rapidamente duas linhas com 54 números em cada uma delas. É computado o tempo total despendido na nomeação dos números;

11. desenho de memória de formas: são mostradas à criança cinco figuras, uma por vez, que ela pode observar por cinco segundos e então deve desenhar de memória;

12. seqüência de formas: a criança vê uma seqüência de figuras e, depois, sem o estímulo visual inicial, deve organizar um outro conjunto de figuras na mesma seqüência e orientação;

13. habilidades motoras: o examinador faz uma seqüência de movimentos com as mãos, e a criança deve repeti-la;

14. discriminação de sons: o examinador fala 20 pares de palavras e a criança deve dizer, para cada par, se as palavras começam ou não com o mesmo som;

15. repetição inversa de números: o examinador fala oito seqüências com dois a cinco dígitos cada uma, e a criança deve repetir a seqüência na ordem inversa;

16. seqüências: a criança deve dizer a seqüência dos dias da semana e dos meses do ano.

Assim, os subtestes do IDT avaliam diferentes

habilidades cognitivas, que podem ser agrupadas da seguinte forma:

1) leitura: de palavras e de não-palavras; 2) escrita: ditado e análise da qualidade da escrita; 3) habilidades matemáticas: aritmética e contagem

decrescente; 4) consciência fonológica: rima e aliteração; 5) processamento auditivo: - discriminação fonológica (discriminação de

sons); - memória de curto-prazo (digit span, repetição de

números na ordem inversa, e batidas rítmicas); - memória seqüencial auditiva (repetição de

palavras e não-palavras); 6) processamento visual: - discriminação e percepção visual (cópia de

formas); - memória de curto-prazo visual (desenho de

formas de memória); e - memória seqüencial visual (seqüência de

formas); 7) velocidade de processamento: nomeação

rápida de figuras e de números; 8) seqüenciamento: alfabeto e seqüências; 9) habilidades motoras; 10) raciocínio: Matrizes Progressivas de Raven.

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Desta forma, o IDT objetiva traçar o perfil cognitivo da criança, descrevendo o seu desempenho em cada uma das habilidades avaliadas. Isto permite verificar em quais aspectos o desempenho da criança se encontra dentro do esperado para a sua idade e nível escolar, e em quais aspectos seu desempenho está abaixo ou acima do esperado. Com tal perfil, é possível diagnosticar as dificuldades subjacentes aos problemas de leitura e escrita, e promover intervenções focais e, portanto, bem mais eficazes para a remediação destes problemas.

Procedimento: A parte coletiva do IDT foi aplicada

às 90 crianças. A partir dos resultados obtidos, foram selecionadas 12 crianças distribuídas em dois grupos: seis crianças com altos escores em ditado (grupo controle) e seis crianças com baixos escores em ditado (grupo experimental). As seis crianças do grupo experimental eram emparelhadas às seis crianças do grupo controle em todas as características, exceto o desempenho em ditado. Ou seja, elas pertenciam à mesma turma, eram do mesmo sexo, tinham idades equivalentes (com tolerância de até quatro meses), e tinham escores equivalentes no teste Raven (com tolerância de até três pontos no escore bruto), mas tinham os desempenhos os mais discrepantes possíveis no escore de ditado total (i.e., incluindo palavras e não-palavras). Este procedimento permitiu comparar crianças com habilidades de raciocínio equivalentes, mas com diferentes habilidades de escrita. Para assegurar que a tolerância de até três pontos no escore no teste Raven não afetasse os resultados, os escores nesse teste foram usados como covariante nas análises estatísticas.

Tal delineamento permitiu comparar os desempenhos das crianças nos vários subtestes do IDT, analisando as diferenças de desempenho entre as crianças com e sem dificuldades de escrita, e mantendo controlados o raciocínio, a idade, o sexo e a turma das crianças (i.e., o currículo escolar ao qual elas eram expostas).

RESULTADOS Foram conduzidas Análises de Covariância

(Ancovas) tendo como variável independente o desempenho de escrita sob ditado (bom e mau), e como variável dependente o desempenho em cada um dos subtestes do IDT. Foi também usado como covariante o desempenho das crianças no teste Raven. O controle do nível de raciocínio das crianças

foi feito pois, apesar de os dois grupos serem estatisticamente equivalentes no teste Raven (p=.159), o escore médio do grupo experimental foi inferior ao do grupo controle (14.5 e 18.2, respectivamente).

A Tabela 1 sumaria os resultados, em cada subteste do IDT, dos grupos controle (com boa escrita sob ditado) e experimental (com pobre escrita sob ditado). São apresentados os escores médios, conforme as Ancovas, dos dois grupos, as estatísticas p e F obtidas. Os efeitos significativos encontram-se ressaltados em itálico. Após o nome de cada subteste encontra-se descrito, entre parênteses, o escore máximo que poderia ser obtido pelas crianças naquela tarefa.

Conforme a tabela, houve diferença significativa entre os grupos experimental e controle em diversas medidas. Além do escore no Ditado, com base no qual os grupos foram separados, houve diferenças em: primeiras letras no Ditado, Alfabeto, Aliteração, Leitura de não-palavras, Leitura de palavras (total correto em um minuto), Nomeação rápida de números, Qualidade da escrita, Repetição de números (dígitos na maior seqüência, total de acertos) e Seqüências. Ou seja, crianças que têm desempenho pobre em escrita sob ditado tendem a ter desempenho significativamente mais pobre em uma série de habilidades avaliadas pelo IDT, em especial naquelas relacionadas à leitura, escrita, consciência fonológica, processamento auditivo, seqüenciamento e velocidade de processamento. Porém, não houve diferença entre os grupos em tarefas relacionadas a habilidades matemáticas, processamento visual e habilidades motoras.

CONCLUSÕES No presente estudo o International Dyslexia Test,

um instrumento internacional para a avaliação da dislexia, foi traduzido para o português brasileiro e aplicado a 12 crianças de primeira série de ensino fundamental público, com vistas a avaliar os subtestes em que diferem crianças brasileiras com bom e mau desempenho de escrita sob ditado. O estudo demonstrou que crianças com baixo desempenho em escrita sob ditado também tendem a obter escores rebaixados numa série de subtestes do International Dyslexia Test. Assim, pode-se dizer que a adaptação brasileira do International Dyslexia Test foi eficaz em discriminar entre crianças com bom e mau desempenho de escrita sob ditado e em identificar as

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TABELA 1. RESULTADOS DOS GRUPOS CONTROLE (BOA ESCRITA SOB DITADO) E EXPERIMENTAL (POBRE ESCRITA SOB DITADO) EM CADA SUBTESTE DO IDT. SÃO APRESENTADOS OS ESCORES MÉDIOS, AS ESTATÍSTICAS P E F OBTIDAS A PARTIR DAS ANÁLISES DE COVARIÂNCIA. OS EFEITOS SIGNIFICATIVOS ENCONTRAM-SE RESSALTADOS EM ITÁLICO. Leitura

Subteste GC GE p F (1, 9) Leitura de palavras - Escore total (máximo = 14) 3.25 0.41 0.121 2.92 Leitura de palavras - corretas em 1 min 13.87 0.96 0.025 7.22 Leitura de não-palavras (máximo = 10) 5.61 0.39 0.006 12.42 Escrita Subteste GC GE p F (1, 9) Ditado de palavras (máximo = 30) 15.58 1.75 0.000 32.51 Ditado de não-palavras (máximo = 10) 5.17 0.17 0.000 30.63 Ditado total (máximo = 40) 20.75 1.91 0.000 35.46 Primeiras letras no ditado (máximo = 40) 35.0 11.0 0.000 45.19 Qualidade da escrita (máximo = 5) 4.17 3.33 0.026 7.09 Habilidades matemáticas Subteste GC GE p F (1, 9) Aritmética (máximo = 20) 2.81 0.86 0.08 3.90 Contagem decrescente – escore em 1 minuto 1.21 1.12 0.93 0.01 Consciência fonológica Subteste GC GE p F (1, 9) Aliteração (máximo = 10) 7.43 3.91 0.013 9.51 Rima (máximo = 20) 10.79 7.88 0.276 1.35 Processamento auditivo: discriminação fonológica, memória de curto-prazo e memória seqüencial

Subteste GC GE p F (1, 9) Discriminação de sons (máximo = 20) 18.7 16.5 0.208 1.84 Repetição números, maior seq. (máximo = 9) 4.84 2.50 0.018 8.38 Repetição números, total (máximo = 16) 6.84 2.49 0.004 14.28 Repetição inversa números, maior compr. (máximo = 5) 2.58 2.42 0.635 0.24 Repetição inversa números, total correto (máximo = 8) 2.75 2.42 0.45 0.62 Batidas rítmicas (máximo = 12) 4.23 3.10 0.276 1.35 Repetição de palavras (máximo = 7) 4.63 3.37 0.174 2.18 Repetição de pseudopalavras (máximo = 8) 4.23 3.77 0.458 0.6 Processamento visual: discriminação e percepção visual, memória de curto-prazo visual e memória seqüencial visual

Subteste GC GE p F (1, 9) Cópia de formas (máximo = 7) 4.38 2.79 0.178 2.13 Desenho de formas: Forma 2 (máximo = 10) 6.05 6.11 0.958 0.003 Forma 3 (máximo = 10) 6.75 6.41 0.773 0.09 Forma 4 (máximo = 10) 4.4 3.8 0.187 2.04 Forma 5 (máximo = 10) 2.9 4.6 0.213 1.79 Seqüência de formas: a) Total de linhas em seqüência (máximo = 8) 2.76 3.24 0.616 0.27 b) Máximo de cartas em seqüência correta (máximo = 5) 2.72 3.44 0.33 1.06 c) Erros de rotação em seqüências corretas 1.53 2.31 0.61 0.28 d) Total de erros de rotação 14.01 11.32 0.18 2.12 Velocidade de processamento Subteste GC GE p F (1, 9) Nomeação rápida de figuras (em segundos) 47.15 64.01 0.113 3.08 Nomeação rápida de números, linha 3 (em segundos) 49.56 82.27 0.006 13.05 Seqüenciamento Subteste GC GE p F (1, 9) Alfabeto (máximo = 1) 0.937 0.396 0.041 5.68 Seqüências (máximo = 2) 0.96 0.04 0.013 9.64 Habilidades motoras Subteste GC GE p F (1, 9) Habilidades motoras: Mão direita (máximo = 3) 2.39 1.78 0.09 3.74 Mão esquerda (máximo = 3) 2.30 2.03 0.49 0.51 Ambas as mãos (máximo = 3) 2.32 2.80 0.75 0.11 Raciocínio: Matrizes Progressivas de Raven Subteste GC GE p F (1, 10) Matrizes Progressivas de Raven (máximo = 36) 18.2 14.5 0.159 2.31 Reversões Subteste GC GE p F Reversões

0.09 0.95 0.50 0.49

várias habilidades cognitivas associadas a esse desempenho, quais sejam leitura, escrita, consciência

fonológica, processamento auditivo, seqüenciamento e velocidade de processamento. Assim, as dificulda-

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des mais marcantes nas crianças com desempenho pobre em escrita sob ditado foram relacionadas principalmente ao processamento fonológico e seqüencial, e não ao processamento visual ou às habilidades motoras.

Tais achados são semelhantes aos de estudos conduzidos em outras ortografias alfabéticas, como o inglês e o alemão (Cunningham, 1990; Torgesen e Davis, 1996; Schneider e colaboradores, 1997), reforçando a importância das habilidades de consciência fonológica e de seqüenciamento para a aquisição de leitura e escrita em ortografias que mapeiem a fala no nível fonêmico. Os dados também são compatíveis com o levantamento de literatura de Grégoire (1997), bem como com os dados de Capovilla e colaboradores (2000).

Estes resultados corroboram ainda a importância de desenvolver e implementar procedimentos de intervenção que desenvolvam o processamento fonológico, tal como descritos em Capovilla e Capovilla (1998). Tais procedimentos são eficazes para auxiliar a alfabetização em contexto regular de sala de aula, bem como para a remediação de atrasos ou distúrbios de leitura e escrita em crianças disléxicas, conforme comprovado em Capovilla e Capovilla (2000).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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of the dyslexic child. In: Peer, L. e Reid, G. (Eds.) - Multilingualism, literacy and dyslexia. London, David Fulton Publishers, 2000. 30. Stanovich, K.E. - Matthew effects in reading: some consequences of individual differences in the acquisition of literacy. Read. Res. Quart., n.21, p.360-407, 1986. 31. Swanson, H.L. - Verbal coding deficits in the recall of pictorial information by learning disabled readers: the influence of a lexical system. Am. Educat. Res. J., n.24, p.143-70, 1987. 32. Torgesen, J.K. - Studies of learning disabled children who perform poorly on memory span tasks. J. Learn. Disab., n.21, p.605-612, 1988.

33. Torgesen, J.K. e Davis, C. - Individual difference variables that predict response to training in phonological awareness. J. Exp. Child Psychol., n.63, p.1-21, 1996. 34. Vellutino, F.R. - Dyslexia: theory and research. Cambridge, The MIT Press, 1979. 35. Vellutino, F.R.; Steger, J.A.; Moyer, S.C.; Harding, C.J.; Niles, J.A. - Has the perceptual deficit hypothesis led us astray? J. Learn. Disab., n.10, p.375-85, 1977. 36. World Federation of Neurologists - Report of research group on dyslexia and world illiteracy. Dallas, WFN, 1968.

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algumas reflexões a partir do filme “o oitavo dia” lígia assumpção amaral Instituto de Psicologia da USP RESUMO: ALGUMAS REFLEXÕES A APRTIR DO FILME “O OITAVO DIA”: A autora discorre criticamente sobre o filme “O oitavo dia”, centrando as suas

observações em alguns pontos que considera problematizadores, mesclando diferentes níveis de reflexão, todos voltados para a dicotomia permanente inclusão/exclusão da pessoa deficiente.

UNITERMOS: Sïndrome de Down - Deficiência mental - Inclusão

ABSTRACT: THINKING ON THE FILM “THE EIGHTH DAY”: The author discourses critically about the film “The eighth day”, centring her observations on

some points which she considers very questionable and quite problematic, mixing different levels of reflection, all of them turned to the dichotomy inclusion/exclusion of the mental handicapped individual.

UNITERMS: Down’s syndrome - Mental retardation - Inclusion

Artigo Original AMARAL, L.A. - Algumas reflexões a partir do filme “O oitavo dia”. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.57, p.38-44, 2001.

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Em 1998 fui convidada para participar de um debate sobre o filme objeto destas reflexões, debate esse ocorrido em evento denominado “II Ciclo de Cinema: A projeção da deficiência”, organizado pelo LIDE/USP.

Embora repousando na gaveta - apenas coloca-das em itens -, as idéias então desenvolvidas tiveram tal eco, e geraram tanta controvérsia, que venho sendo solicitada a publicá-las. Naturalmente me será impossível reproduzir fielmente a totalidade de minha fala, uma vez que, como disse, não tenho seu registro - tão somente alguns tópicos, pobremente registrados.

Todavia, penso ser possível retomar as reflexões, pois encontro também em minha memória muitos dos aspectos então abordados. Além disso, no decorrer dos poucos anos que se seguiram, não deixei de pensar sobre as questões que relacionam produtos culturais e deficiência; assim, muito provavelmente, estarei entrando por atalhos não percorridos naquele momento.

Mas, de início, desejo deixar bem explicitada minha posição de profundo respeito às produções artísticas, se por mais não fosse, em especial por ter participado, desde os sete anos de idade, da “Escolinha de Arte” do Museu de Arte de São Paulo e por ter sido, na adolescência, membro da Academia Paulista de Escritores Juvenis. Ou seja, desde muito minhas relações com o universo da Arte são de ordem vivencial e, portanto, afetiva. Talvez até mesmo em conseqüência disso, minha produção acadêmica, muitas vezes, tenha focado manifestações artísticas: desde um acompanhamento temporal das reprodu-ções plásticas de Hefestos, passando por haver produzido artigos e centrado minha tese de doutorado na Literatura Infanto-Juvenil, por elaborar textos que abordam fotos de Joel-Peter Witkin, telas e desenhos de Anita Malfatti e Frida Kahlo, trechos de obras de Shakespeare e Machado de Assis (Amaral, 1991a, 1991b, 1991c, 1992, 1995, 1998 e 1999), sempre centrando minhas observações e percepções a partir do respeito ao artista e à sua obra, permitindo-me, porém, aquilo que venho chamando de segunda leitura, de caráter, mais que tudo, problematizador/ instigador de reflexão.

Portanto, e deixando claro que mais que suas mensagens explícitas o filme pode levar a novas leituras, proponho-me a sistematizar algumas questões advindas de minha visão pessoal, ou, como diria Vigotsky (1972), proponho-me a fazer a “crítica do leitor”. Isto posto, passo a compartilhar as prometidas reflexões.

Embora o filme seja muito bonito plasticamente, com uma direção impecável - e, provavelmente, bastante respeitosa com o trabalho de interpretação do jovem ator Pascal Duquene, o qual deixa entrever um profundo empenho e grande investimento em sua atuação - e traga aspectos interessantes e cenas instigantes, que poderíamos chamar de “positivos”, vou centrar minhas observações em alguns outros pontos que desejo trazer à baila para problematiza-ção (já que toda obra é aberta à leitura sob diferentes ângulos e percepções), o que farei, em vários momentos, mesclando diferentes níveis de reflexão.

Reverter a quase invisibilidade do deficiente e de questões a ele relacionadas – e tornar um pouco mais familiar a condição de deficiência, propiciando um ultrapassar da perplexidade e do estranhamento - é, penso, o grande mérito do filme.

Em 1919 Freud (s.d.), no texto “El siniestro”1 já nos falava da presença do estranhamento nas relações humanas e clarificava que este (causa comum de distanciamento entre as pessoas) corresponde à dolorosa e ambivalente experiência psíquica de nos confrontarmos com algo que, simultaneamente, é familiar e estranho. A familiaridade é acalmadora, o inusitado é assustador – quando ambos se apresentam juntos, a ambivalência se faz presente, gerando conflito e tensão.

A frase de Harry ao dar uma palestra, no início do filme, é interessante contraponto: “É mais familiar a relação com a semelhança, só a diferença choca.”; contraponto, pois não focaliza, exatamente, a tensão provocada pela ambivalência desencadeada pela presença simultânea do familiar e do estranho, da semelhança e da diferença. As duas condições são postas como antagônicas e ponto final.

Ora bem, muito do que tem sido dito (inclusive por mim) sobre a freqüente rejeição ao diferente/deficiente baseia-se exatamente nessa experiência psíquica, pois esse ser é muito familiar (já que humano) e, concomitantemente, estranho por suas peculiaridades (físicas, sensoriais ou mentais) que o diferenciam significativamente daquele que com ele entra em contato. Além disso, por fugir ao “tipo ideal” vigente, oculta-se ou é ocultado para, de certa forma, preservar o narcisismo de cada interlocutor e o de seu grupo de referência.

Por isso, muitos de nós que se dedicam à temática da deficiência investem e “apostam” em qualquer meio que torne a diferença/deficiência visível, para que a paulatina

1 Traduzido, na versão da Standard Edition, para o Português por “O estranho”.

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aproximação com os diferentes/deficientes acalme o turbilhão que o estranhamento produz e possibilite a emergência de sentimentos de mútuo pertencimento ao humano. Insisto, pois, que o grande mérito do filme é focar e tornar visível a pessoa com deficiência – no caso do filme em questão, o seu protagonista, um jovem com Síndrome de Down: Georges.

Um outro aspecto a destacar, como bela contribuição, até porque as cenas são construídas e tratadas com extrema sensibilidade e delicadeza, é a “admissão” da sexualidade de Georges e Nathalie (sua namorada e igualmente com Síndrome de Down). Fato raro, uma vez que, muito freqüentemente, pessoas como eles ou são vistas/retratadas como assexuadas - portanto “angelicais” -, ou como hiperssexuadas - portanto “feras” perigosas, como já discuti em um artigo (Amaral, 1994). Essa adjetivação da sexualidade é uma significativa faceta do estigma (ao qual voltarei mais à frente), ou seja, uma generalização indevida, geradora de ansiedade, muito freqüentemente desnecessária.

Esses dois aspectos - a visibilização e o reconhecimento de um legítimo exercício da sexualidade - não podem deixar de receber aplausos, assim como outros que eu não venha a abordar, mas que nem por isso deixam de merecê-los. Minha intenção, certamente, não está sendo a de reduzir o filme “a pó”, destruindo suas qualidades. Complementarmente, o que me proponho, aqui, é provocar um outro nível de reflexão.

Assim, e para iniciar esse registro problematizador (ou mais polêmico, como enfatizaram, por sua reação, alguns dos espectadores na exibição do filme, no mencionado evento) gostaria de lembrar, num breve e relativamente recente vôo histórico, algumas das abordagens (nas áreas de saúde e educação) relacionadas à condição de deficiência.

Nas décadas de 50, 60 e 70, a ênfase estava posta nos aspectos, chamemos assim, “materiais/objetivos”: gênese, diagnóstico, prognóstico, reabilitação etc. Na de 80, iniciou-se um contexto reflexivo a partir de um novo foco, o da subjetividade, primeiramente centrado na própria pessoa (sentimentos, como o de perda; questões relacionadas à auto-estima; comportamentos adequados/inadequados etc.) para, finalmente, dirigir-se (como em muitas outras áreas e objetos de estudo) aos aspectos que transcendem a pessoa/condição como “problema”, passando a focalizar: contexto sócio-econômico-cultural; condições para

independência e autonomia; complexidade nas relações interpessoais etc.

Nos anos 90 temos uma certa “reviravolta” do foco, pois, mais que tudo, um forte ponto de confluência dos olhares está relacionado a questões referidas aos direitos humanos e cidadania, especialmente em sua interface com a integração/inclusão/inserção social (ou qualquer nome que se queira dar).

O ser integrado/incluído/inserido, de fato, remete a dois aspectos básicos ligados ao contexto sócio-cultu-ral: o real e oficial (pelo acatamento à legislação vigente) e o real e extra-oficial, caracterizado pela disponibilidade para receber (e não apenas “tolerar”) e fazer circular no universo amplo da vida aqueles que são marcados, mais que pela deficiência, pelo estigma que a reveste.

Venho insistindo, ao longo dos muitos últimos anos - no mínimo desde 1989 -, na tridimensionalidade da deficiência lato sensu (a partir de sugestão da WHO, 1980): impairment = deficiência, disability = incapacidade e handicap = desvantagem2.. Dimensões estas que proponho sejam vistas como constituidoras de dois subconceitos: “deficiência primária” e “deficiência secundária”.

À primeira correspondem a deficiência propriamente dita (por exemplo, ter o tímpano perfura-do) e as eventuais limitações reais e objetivas dela decorrentes (no exemplo: não ouvir). Ou seja, susten-to que a deficiência existe para alguns, sim, e não é socialmente construída; o que é construída é a “aura” que circunda a condição objetiva, aura que correspon-de à deficiência secundária – e nesta última se inscre-vem os preconceitos, os estereótipos e o estigma.

Faz-se, pois, necessário lançar novas luzes sobre a questão: explicitar que a deficiência existe e que nem todos são deficientes; escapar de discursos (provavelmente alguns até bem intencionados) de cunho eminentemente demagógico: “somos todos deficientes” (imperfeitos somos todos e isto é inegável, mas deficientes?) ou “ninguém é deficiente” ou, ainda, “a deficiência é um produto puramente cultural”. Paraplégicos, cegos etc. que o digam com o surgimento inesperado de um leão em plena rua!

Algumas dessas idéias nos levam ao risco da “ampla, geral e irrestrita” integração/inclusão/inserção social de toda e qualquer pessoa com deficiência, defendida, paradoxalmente, até por instituições 2 A tradução dos termos corresponde à versão oficial da OMS (1990) para o

Português, elaborada sob coordenação do Secretariado Nacional de Reabilitação de Portugal.

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fechadas ou “totais” – para usar expressão cunhada por Foucault.

Digo risco, pois baseiam-se (com muita probabilidade) em representações que buscam, a todo custo, ocultar a diferença em si e, mais que isso, ocultar as divisões sociais existentes, sejam elas calcadas na lógica da produção, da estética, ou de qualquer outra que esteja do lado dos interesses dos grupos dominantes. A conseqüência desse ocultamen-to pode ser (e é) um eventual abandono em relação às necessidades de estratégias que possam diminuir as reais limitações que, então, de limitações passam a ser fatores de desigualdade. Aqui é possível indagar: - onde fica o “igualitarismo democrático”? Com efeito, o que algumas vezes se garante é uma inclusão marginal - expressão de José de Souza Martins (1997) - ou mesmo uma possível exclusão permanente. Penso que um subtexto do filme se deixa aí entrever

Nessa linha de pensamento e após esse pequeno intermezzo, voltemos às propostas da década de 90, com sua ênfase na integração/inclusão/inserção... Pois bem, seria essa a matriz sócio-cultural do filme, mas não é. Vários elementos nele presentes nos remetem às décadas anteriores e, até mesmo, a séculos passados.

Um primeiro ponto a assinalar é que o convívio entre Harry e Georges poderia levar o primeiro e o espectador a confrontarem-se com limites antigos e estáveis e os perceberem como antigos e questionáveis. Isso porque se perdem algumas fronteiras dadas como claramente demarcatórias de terrenos há muito definidos: normal/anormal, competente/incompetente, mestre/aprendiz... Aspecto importante pois a permanência de padrões cristalizados em torno da deficiência contribui com a manutenção histórica da desigualdade social e da rejeição contextual e individual.

Inscreve-se aí o que é “típico” da deficiência, sublinhando-se estas ou aquelas cores, mas sempre dentro de uma estereotipia. No caso deste filme: “bondade/maldade”, “adequação/inadequação”, “cooperativismo/egoísmo”, ora de Harry, ora de Georges, são sempre colocados em pólos opostos e jamais como componentes de um gradiente, mais que tudo, profundamente humano.

Se a dialética se tornasse o eixo, passaríamos de uma “inferioridade” humana para a alteridade, e aí poderíamos refletir sobre os meandros que constituem tanto uma como outra. Nessa perspectiva, os deficientes eventualmente não mais ficariam à mercê dos “grilhões” de sua deficiência, mas correriam

sempre – e o filme retrata isso - o risco de ficarem à mercê das expectativas de um “jeito de ser” próprio. É, ainda uma vez, a busca de um enquadramento e também a oportunidade de cobrança de uma transposição de saberes e fazeres próprios para saberes e fazeres legitimados no contexto social mais amplo. É praticamente isso que o filme nos diz, ao apontar grandes e pequenas faltas de saberes e fazeres por parte de Georges, inadequações sublinhadas, enfim.

Mas esse ângulo será explorado mais à frente, pois agora convido o leitor a adentrar outro atalho, este referido às situações de confronto e de cotidianidade.

De há muito se fala de identificação coletiva (o “nós”, representativo de ideal, normalidade, completude etc.) como um dos andaimes da discriminação, da segregação e da violência (simbólica ou física) quando grupos “inimigos” se defrontam em situações de competição, de conflitos ideológicos ou mesmo de sangrentas guerras. Identificação que se alia a outro mecanismo, outro andaime: a projeção, quando ao inimigo (o “eles”) cabem todas as desqualificações, a anormalidade, as faltas, o erro. Adicionalmente é importante lembrar que a conjunção adversativa precípua é o “ou”. Por outro lado, e também de há muito, afirma-se que a vivência compartilhada no cotidiano tende a quebrar, em incontáveis vezes, esse bastante perverso plural dicotômico.

No filme, hipoteticamente, de um nós ou eles (marca histórica de discriminação e segregação, pela oposição e conflito explícitos) passa-se a um eu e um você - possibilidade dialética, que não abriga dicotomia e maniqueísmo. Diluiriam-se, assim, no dia-a-dia de Harry e Georges (e cotidiano poderia ser um precioso espelho do contexto mais amplo) as fronteiras absolutas entre deficiência e não deficiência. Mas, em seu lugar ficam, de fato, grandes abstrações. Por exemplo, construindo um caminho seguro para mensagem aparentemente democrática, mas de fato encobridora (“irmã” das anteriormente mencionadas) corporificada em uma pergunta que pode ficar ressoando aos ouvidos do espectador: quem é o deficiente? George o é, sem dúvida, e isso não pode ser negado; Harry não o é, e isso tampouco pode ser negado. Como disse, a pergunta enganosa fica pairando no ar.

Por outro lado, não se trata apenas do encontro entre diferentes; trata-se, sobretudo, do encontro entre cotidianos iguais e diferentes simultaneamente.

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Iguais apesar de e por razões e formas distintas, tanto no mais corriqueiro, imediato, como no mais sofisticado: alimentar-se, seguir as direções estabelecidas, ser escravo do relógio, satisfazer as expectativas da audiência (seja comer, sem gostar, batatas fritas, seja repetir ad nauseam palestras decoradas) atropelar os próprios desejos, necessidades e preferências... Diferentes em tudo que constrói um dia-a-dia no aqui/agora em ambientes diversos e a partir de múltiplas solicitações internas, mas, sobretudo, externas (no Instituto, Georges detesta batatas fritas, na lanchonete as pede!).

Mas, como disse, uma grande marca do filme é o sublinhar de inadequações cotidianas por parte de Georges, mesmo que dispostas de forma “coerente” e sendo retratos cristalizados de reações “esperadas” (mais uma vez a generalização indevida) de um deficiente. Só para lembrar algumas: Georges segue as setas da estrada como seguia as do Instituto onde vivera internado, antes de fazer a mala e ir em busca de sua casa; ao ser perguntado sobre o idioma que fala, e frente a uma “pista” de inglês, repete diálogos de aula; arrota, boceja; suja a casa de Harry; cumprimenta as pessoas, de dentro do carro, dando-lhes a mão quando este pára; grita na loja de sapatos, urra como o leão da Metro; joga o telefone de Harry pela janela do automóvel; agride, com gestos, um motorista do caminhão; fica parado sob a chuva com o endereço da irmã na mão estendida para o alto (tal qual Kasperhouser?); joga coisas ao chão na casa da irmã; ri do tombo de Harry; chupa os dedos após comer batatas; confunde o sorriso da garçonete com sedução e a pede em casamento; ao ser “recusado” grita, joga-se no chão; o mesmo acontece na cena da danceteria, quando abraça a moça e esta reage... E mais: seus devaneios são retratados quase como alucinações.

Paralelamente surgem as inadequações de Harry; estas - quase desconcertantes a um olhar menos atento, pois não seriam esperadas de um homem jovem, belo, bem sucedido profissionalmente... - são apresentadas de forma bem menos sutil e eivadas de uma tônica recriminatória, digamos assim: compulsão pelo trabalho; esquecimento das filhas na estação de trem; truculência; uso do chocolate como chamariz (chantagem?); agressão à mulher; destruição de objetos... mas os devaneios de Harry não são identificados com alucinações.

No geral, as dimensões ideológicas ficam assim meio que perdidas, e Harry nos é apresentado (para além de todo o contexto no qual nasceu e foi criado) como um “mau menino”; simultaneamente (e para

além de todo o contexto no qual nasceu e foi criado) Georges nos é apresentado como um “bom menino”, que, apenas quando rejeitado, reage de forma inadequada, como seria esperado de um deficiente.

Assim, ao último caberá espelhar inversamente o primeiro e trazê-lo para os caminhos do bem, assim como a quase todos os componentes da sociedade retratada no filme (irmã e cunhado, vendedora e gerente da loja, guarda, a namorada e seus pais, garçonete... e, claro, Luiz Mariano, o cantor da música tema) que adotam, na cena da morte de Georges, seu lema e cantam sua música com olhares profundamen-te compungidos (mea culpa?).

Por outro lado, gostaria de lembrar que a relação que se estabelece entre Georges e Harry é mais complexa que a usualmente referida entre deficientes e não deficientes, já que, no filme, são tanto complementares como antagônicas. E este é o melhor aspecto do filme. Ambos os protagonistas alternam-se nos papéis de “descontrolados”, “acronológicos”, “moderadores”... Porém, ao lado dessa possibilidade dialética, vemos a reafirmação da dicotomia. Por um lado, Harry é figurado como um belo “invólucro” vazio. Por que? Por outro, Georges o é como um “invólucro” desviante, mas pleno. Por que?

Complementarmente, vemos que no filme todo há uma alternância entre o controle e o descontrole, a fantasia e a realidade, o angelical e o demoníaco, a vida e a morte. Dialética ainda. Mas também dicoto-mias nos são impostas: anjo versus demônio, pureza versus contaminação, veracidade versus falsidade, bem versus mal, bom versus mau... No fundo, no fundo, o embate entre extremos.

Adicionalmente, diria que as realidades que se contrapõem são marcadas mais pelas diferenças que pelas semelhanças, embora isso não seja perceptível a um primeiro olhar, pois o que está em jogo, fundamentalmente, é a questão do poder formal. Enquanto em Harry há a presença da instituição do saber e da competência, que lhe outorgam não só um poder de potência mas também um poder de domínio (pensemos em suas palestras no início do filme); para Georges o que é outorgado é um poder “incompetente” (impotente?) porque simplificado, robotizado, desvalorizado, cristalizado, imóvel quase.

O que se vê é que nem um nem outro apresentam contradições na competência, embora em algumas cenas, e de maneira estereotipada e forçada, os papéis se invertam - invertam e não dialoguem entre si! A tal ponto que somos levados a pensar que um é,

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afinal, verdadeiramente sábio (Georges) e o outro simplesmente aprendiz (Harry). As multiplicidades de forma de ser e fazer se perdem em uma perversa gangorra. Temos aí a questão da identidade contrastiva, marcada pela(s) falta(s).

Assim, George, para o espectador, é um ser sábio e puro imerso num contexto contaminado - mas será por essa razão que o filme tenta “contaminar” sua imagem nas cenas de descontrole, de inadequação social? Esta é uma questão importante, pois um dos grandes “perigos” desse produto cultural é fazer justamente a caricatura do deficiente (um estereótipo também), acentuando as cores da “incompetência” social, de uma forma descolada da história da própria personagem. Esta é outra crítica ao filme.

Crítica porque a mitificação da bondade “natural” da pessoa com deficiência mental (em especial a com Síndrome de Down) - a ser “preservada”, e a inade-quação “esperada” no contexto social mais amplo – a ser consertada, podem, em meu entender, sublinhar a qualidade de um “outro muito outro”, de um “ser exter-no a este mundo” (e, portanto, de um mundo outro), um ET; justificando-se, assim, de forma explícita, sua exclusão do cotidiano e, posteriormente, da própria vida.

Uma outra questão pode ser levantada. Esta remetida à culpa, especialmente em sua articulação com papéis parentais. A música tema do filme está remetida à figura da mãe; inclusive, é dirigindo-se a ela que, logo de início, Georges canta “Quero ir embora”. Essa personagem ausente/presente é uma figura fantasmagórica e central do filme. Seria, pois, a presença/ausência de Harry junto às filhas um contraponto? No primeiro caso, a morte desculpabilizaria a mãe, e o trabalho compulsivo culpabilizaria o pai?

Ainda quanto à figura materna, claro está que em nosso contexto sócio-cultural cabe a ela (mesmo que desenvolva também trabalhos externos à casa) o cuidado dos filhos – mormente aqueles com doenças ou deficiências. Todavia, esse fato é transmitido pelos meios de comunicação com um tom de agrilhoamento e peso - um Sísifo feminino e atual! E mais: como único ponto de apoio e cuidado. Assim, somente à “heróica” mãe (“vitimada pela tragédia”) cabe toda e qualquer responsabilidade.

Se isso, por um lado, é o retrato amplo de uma realidade quase genérica, por outro é - tal como explicitada no filme (e em muitos outros produtos culturais) - uma preconcepção legitimada, sem maior crítica ou reflexão. Assim, a morte da mãe é a “sentença de morte” do filho. Vale a pena pensar

sobre isso, problematizando a cristalização desse papel de eterna cuidadora. Isso porque há décadas outras figuras familiares têm estado bastante presen-tes no acolhimento e apoio aos filhos que não são ou não estão doentes ou deficientes e, embora ainda em pequena escala, para os que o são ou estão.

Há, pois, sempre, que se contextualizar historicamente o papel dos pais e de outros integrantes da família no decorrer de uma saga que lhe é própria - o que o filme, infelizmente, não faz, deixando margem a que se veja o núcleo familiar de Georges (excluída a mãe) como vilão.

E esse é um outro ponto a criticar, pois a família estendida de Georges (irmã e cunhado especificamente), tal como se apresenta ao espectador, é enfocada de forma superficial. Assim, embora algumas frases “jogadas”, as lágrimas do cunhado e a expressão de sofrimento da irmã digam algo dos possíveis conflitos, isso é tratado de forma, como disse, bastante superficial, restando a enorme possibilidade de se encarar, de fato, essa família como vilã. Superficialidade perigosa!

Assim, como complementarmente a mãe é a única figura retratada como de profundo apego e apoio a Georges, temos mais uma dicotomia: a boa mãe e os maus familiares. O que isto estaria sinalizando ao espectador? Quanto de perpetuação de preconceitos e estereótipos estaria tendo espaço nessa visão que beira o maniqueísmo? Quanto de “heroicidade” caberia às mães e de “perversidade/omissão” aos demais familiares? Quanto de energia, em função disso, pode ser despendida por aquelas para manterem o estandarte de heroínas, e para estes para livrarem-se da pecha de perversos/omissos?

Quase finalizando estas reflexões, mais um tema se apresenta. De fato, mais uma pergunta que compartilho. Por que será que no início do filme, na seqüência de cenas da criação - no sexto dia - há a dos seres humanos, “de todas a cores”, quando surgem outros deficientes e o próprio protagonista se inclui, dizendo “Se nasce um menino chamam de Georges.” (no sétimo dia, “domingo, descansou”, e na tela uma joaninha sobe em direção às nuvens); já nas seqüências finais, quando quem surge na tela, vivo, é Harry, a fala que acompanha a quase última cena, entre outras frases, diz: “No sétimo dia fez as nuvens – para descansar. Se as olhamos por longo tempo vemos todas as histórias... E então ele se perguntou se não faltava nada. No oitavo dia fez Georges e viu que era bom.” Georges não foi feito, então, com os outros homens? Não era um ser humano de fato?

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3. Amaral, L.A. - Prejudice and stereotypes in Art's Universe: some considerations about handicaps. XIV ISPA Colloquium. Braga, Portugal, 1991c. (Abstracts).

Voltando à relação entre os protagonistas e pensando em identidade como metamorfose, nos caminhos desbravados por Ciampa (1996), é como se Harry vivesse a sua identidade (pseudamente “fixa”) através do contraponto com a de Georges. É quase como se Harry perdesse a si mesmo quando encontra Georges.

4. Amaral, L.A. - Espelho convexo: o corpo desviante no imaginário coletivo, pela voz da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo, 1992. (Tese - Doutorado - Instituto de Psicologia da USP). 5. Amaral, L.A. - Adolescência/Deficiência: uma sexualidade adjetivada. Temas em Psicologia, n.2, p.75-9, 1994. 6. Amaral, L.A. - Um delírio entre a vida e a morte a partir de “Leda de Witkin” (1995). In: Frayze-Pereira, J.A. (Org.) - Colóquio Arte-Dor . São Paulo, Laboratório de Psicologia da Arte do PST do IP-USP, no prelo.

Mas, para que um novo Harry possa viver, Georges tem que morrer e tornar-se um “anjo” que, agora, encarapitado numa árvore, olha a terna cena familiar quando pai e filhas se acariciam mutuamente. 7. Amaral, L.A. - Deficiência, Vida e Arte. São Paulo, 1998. (Tese -

Livre-docência - Instituto de Psicologia da USP). O “anjo” acena. 8. Amaral, L.A. - A diferença na literatura: um convite a “segundas leituras”. (1999). In: UNICAMP - (Sem téitulo), no prelo.

Em off o espectador ouve risos de crianças e um grito de alegria de Harry.

9. Ciampa, A.C. - A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. 5ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1996.

O que há por trás disso? Morte versus vida? Contraposição novamente!

Eis aí minha mais forte crítica ao filme: por que Georges precisou morrer? Não haveria mesmo lugar para ele?

10. Freud, S. - El siniestro (1919). In: Obras completas. 3ª ed. Madrid, Biblioteca Nueva, vol. II, p.1876-91, s/d. 11. Martins, J.S. - Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo, Paulus, 1997. (Coleção Temas da Atualidade). 12. OMS - Organização Mundial de Saúde - Classificação internacional das deficiências, incapacidades e desvantagens (handicaps): um manual de classificação das conseqüências das doenças. Lisboa, OMS/SNR, 1989.

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depoimento projeto ação conjunta: a importância do trabalho com grupo de famílias de portadores de deficiência mental para a inclusão social3

cláudia galvani Pedagoga com Especialização em Psicopedagogia (UNIP), Supervisora e Professora do Curso de Pós-graduação “latu senso” em Psicomotricidade no ISPE-GAE, Coordenadora do Programa Comunitário da APAE/SP déborah neistein Fonoaudióloga Clínica (USP), Mediadora em Grupos de Familiares de Portadores de Deficiência Mental no Programa Comunitário da APAE/SP josé moacir de lacerda júnior Médico Pediatra e Homeopata, Auxiliar de Ensino na Disciplina de Pediatria, Área de Neonatologia, da FMABC, Médico do Programa Comunitário da APAE/SP josiane cristina masson Terapeuta Ocupacional (PUCAMP) do Programa Comunitário da APAE/SP e Membro da Equipe Interdisciplinar do Projeto Ação Conjunta da APAE/SP maria ângela e.spina maia Psicóloga (FMU) com Especialização em Psicodiagnóstico e Mestrado em Saúde Materno-Infantil (UNISA), Psicóloga do Projeto Ação Conjunta da APAE/SP nara lúcia de sousa Estudante de Psicologia, Recreacionista do Projeto Ação Conjunta da APAE/SP, atuando com crianças e jovens deficientes mentais

nereide aparecida s. albuquerque Assistente Social (PUC-SP) do Programa Comunitário da APAE/SP, Membro da Equipe Interdisciplinar do Projeto Ação Conjunta da APAE/SP ovilia badessa de abreu Psicóloga (FMU) do Programa Comunitário da APAE/SP, atuando no projeto “Momento da Notícia”

3 Trabalho desenvolvido por equipe interdisciplinar da APAE de São Paulo

“A mãe deseja obscuramente que a sua pergunta nunca receba resposta, para que possa

continuar a fazê-la. Mas precisa de força para continuar, e é isso que ela vem pedir. Precisa de uma testemunha, uma testemunha que sinta que

por trás da fachada de tranqüilidade, ela não agüenta mais”.

Maud Mannoni

O ser humano, por natureza, existe

e subsiste dentro dos relacionamentos, e só lhe é possível buscar identidade nestes contextos, ou seja, nos outros. Neste sentido, a partir desta afirmação, torna-se mais evidente a necessidade de pertencer a um grupo em busca de uma identidade e de formação de uma estrutura de personalidade.

Dando continuidade a este pro-cesso, o indivíduo, para garantir a sua saúde mental, necessita estar inserido, ou seja, incluído num mundo social, facilitador do seu desempenho global.

Família, escola, igreja e comunidade são modelos de grupos.

Os grupos têm exercido uma função de ajuda positiva, estruturando e contribuindo para um bem estar psico-social das famílias, sejam quais forem suas especificidades.

O grupo de famílias do portador de deficiência mental, tem um modo de agir e sentir peculiar nas suas características.

Segundo PRATT (1967), a livre discussão entre os condutores do grupo e os membros cria um clima de emulação, que se mostra excelente na recuperação dos sentimentos negativos exercendo o que se chama “função continente” do grupo.

Já em 1910, FREUD postulava a força do trabalho grupal. O grupo como transmissor das leis sociais por intermédio do inconsciente. A humanidade produz a cultura.

Os parâmetros de referência, comparação e formação de identidade, em portadores de Deficiência Mental,

encontram-se desestruturados, resultando em grau de abati-mento por vezes patológico, em que o desconforto toma conta do modo de vida do indivíduo e de sua família.

O impacto acaba por determinar condutas positivas (quando levam as famílias a buscar uma instituição que as posicione) ou negativas (quando o im-pacto as impede de ajudar o filho, por-tanto, deixando de incluí-lo dentro da própria família e, por conseqüência, na comunidade). Os genitores precisam buscar sinais orientadores de suas ações.

No grupo pode-se buscar as normas de conduta, que são feitas e construídas no contexto grupal. Estar em grupo os torna pertencentes a uma facção, retirando-os de uma solidão existencial que, em última instância, os leva a uma situação de menos valia e de exclusão social. O grupo possui empatia, que leva os membros à situação de profunda compreensão.

KEWIN (1993) preconiza que qualquer indivíduo, por mais que seja ignorado, faz parte de um contexto do seu grupo social, influenciando e sendo por ele fortemente influenciado e modelado.

BION (1970) contribuiu com conceitos fundamentais para a com-preensão do ser humano inserido no grupo, ou seja, a relação que o indiví-duo tem com o grupo é a da relação continente/conteúdo. O grupo é um modelo dessa premissa, sendo de tama-nho mais reduzido, segundo o qual os seus integrantes são reconhe-cidos em sua história particular. Res-salta, ainda, que a estruturação de qualquer indivíduo requer a sua participação em grupo.

Para LEVI-STRAUSS (1980), a família é unidade grupal na qual se desenvolvem três tipos de relações pessoais: aliança (casal), filiação (pais e filhos) e consangüinidade (irmãos) – e que a partir dos objetivos genéricos de

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depoimento

preservar a espécie, nutrir e proteger a descendência e fornecer-lhe condições para a aquisição de suas identidades pessoais, desenvolveu, através dos tempos, funções diversificadas de transmissão de valores éticos, este-ticos, religiosos e culturais. Neste contexto grupal, todas as questões serão abordadas e trabalhadas, possibilitando que as famílias ampliem sua participação na comunidade, estando estruturadas e integradas.

JUSTIFICATIVA E MÉTODO Diante da realidade social

brasileira, na qual é notória a insuficiência de recursos para o portador de deficiência mental, a APAE de São Paulo criou em 1994 o Projeto Ação Conjunta, objetivando oferecer atendimento à família do portador de deficiência mental no sentido de acolhê-la e orientá-la, procurando ampliar seus recursos internos e promover mudanças nas relações interpessoais.

O atendimento às famílias é realizado semanalmente por uma hora e 30 minutos durante um ano. O trabalho é realizado em grupos de aproximadamente dez famílias, conduzidos por técnicos da equipe interdisciplinar: uma psicóloga, uma assistente social, uma fonoaudióloga, uma terapeuta ocupacional, um médico pediatra, recreacionistas e voluntárias. Os portadores de deficiência mental são atendidos concomitantemente aos grupos de familiares. Não há critérios seletivos para composição dos grupos de portadores de deficiência.

Para ser inserida em um grupo, cada família passa por um encontro informativo sobre o trabalho. Após sua adesão, estabelece-se um contrato e firma-se o seu encaminhamento com data e horário do grupo em formação.

Como recursos para o desenvolvi-mento do trabalho, faz-se uso de aulas interativas, técnicas de dinâmicas de

grupo, leitura e discussão de textos, apresentação de vídeos, atividades grafo-expressivas, oficinas para confecção de material.

Após cada encontro, os profis-sionais se reúnem e podem, neste momento, trocar informações quanto ao desenvolvimento de cada criança, quanto aos seus ganhos, suas transfor-mações, suas novas aquisições e atividades preferidas. Pode-se, desta forma, estar constantemente informando os pais sobre o que observamos e orientando-os sobre de que forma podem realizar novas e diferentes tentativas com os seus filhos.

Dependendo da atividade proposta, o profissional que trabalha com os fa-miliares pode participar do grupo das crianças e observar também o desen-volvimento e possibilidades de cada uma delas. Realiza-se também encon-tro das recreacionistas com os fami-liares, quando podem trocar informações.

Os grupos são compostos de forma significativa por mães. Ocorre a participação eventual de alguns pais, avós, tios ou irmãos mais velhos. A participação nos grupos está aberta àqueles que têm contato significativo com a criança.

DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO Procura-se desenvolver atividades

sempre em função do que os partici-pantes determinam, sabem e conhecem, aproveitando as suas idéias, os seus recursos, as suas observações e considerações.

Há uma série de atividades que são propostas, mas é sempre impor-tante a participação do grupo na de-finição da ordem em que elas devem ocorrer. Caso surja um assunto emergencial que se queira discutir, a proposta do dia pode sofrer alterações (por exemplo, a chegada do diagnóstico, para alguma delas.

É necessário comentar que não há um grupo igual ao outro. Cada grupo encerra um projeto, com suas possibili-dades e particularidades.

Percebemos, inicialmente, neces-sidade grande dos familiares de falar sobre a história de seus filhos. Este é um momento de exercício importante da escuta. Permitimos desta forma que todos falem e partilhem suas histórias com os outros membros do grupo.

É muito importante manter o humor no grupo, para que se possa garantir leveza e fluidez do trabalho.

Por ocasião do desligamento, o grupo é convidado para elaborar um símbolo que represente seu processo de aprendizagem ao longo do ano de convívio. Freqüentemente optam por realizá-lo, vivenciando neste momento a retrospectiva do trabalho.

A IMPORTÂNCIA DO BRINCAR Um foco importante do trabalho

relaciona-se ao brincar. Conversa-se com os familiares sobre sua impor-tância, sobre o papel do brinquedo no desenvolvimento da criança, como também se promove a confecção de um brinquedo que seja adequado aos interesses de seus filhos.

Inicialmente, os pais são convidados para falar sobre suas brincadeiras favoritas na infância. Incentiva-se para que todos falem e revivam um pouco do significado do brinquedo na sua vida pessoal.

Em um segundo momento, realizamos uma visita à brinquedoteca da Instituição, quando há a oportuni-dade de se estabelecer contato não só com os brinquedos industrializados, mas também com os brinquedos feitos

com sucata. Após esta visita, discute-se sobre os interesses da criança e a adequação da confecção de um brinquedo para eles. No encontro seguinte, o material necessário é trazido, e ali, um ajudando o outro, o brinquedo é confeccionado.

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depoimento Convém ressaltar que em

encontros anteriores já se havia conversado sobre os interesses e brincadeiras favoritos de cada criança, quando cada participante teve a oportunidade de falar também sobre o que eles mais gostam de fazer e partilhar com seus filhos.

Neste momento, fala-se sobre a importância em seguir os interesses da criança, favorecendo desta forma para que haja um número crescente de atividades com significados compartilhados, nas quais o foco de atenção seja comum.

RESULTADOS O resultado é observado pelos dos

relatos dos participantes, quando referem que passam a dar mais atenção aos filhos, a ter mais paciência com eles, a falar mais com eles, a olhar mais para eles e entender melhor suas necessidades.

“Eu falava, eu não vou ensinar este burro mais não. Hoje eu tenho mais calma, eu passo esta tranqüilidade pra ele. O pai era calmo, mas muito distante. Ele não vem no grupo, mas com o que eu falo pra ele, ele mudou também. Achamos que nós tínhamos que mudar. Bater não vale a pena. Eu não falava nada, não conversava com ele. Achava que não valia a pena. Quando eu percebi que ele entendia as coisas, eu comecei a conversar com ele. A gente tem que se educar para eles. A gente é o espelho da casa” (Mãe de criança com cinco anos, portadora de deficiência mental de grau e etiologia a esclarecer, apresentando atraso importante na aquisição e desenvolvimento da linguagem. Ambiente familiar descrito como afetivo e interessado).

“Dou mais atenção. Quando ele quer alguma coisa eu presto atenção. Agora eu entendo mais ele. Eu dou valor às coisas que ele fala, e converso mais com ele também” (pai de uma

criança de cinco anos, portadora de deficiência mental, Encefalopatia Crônica Idiopática não evolutiva).

“Eu dava muitas ordens. Dizia: Vem pra cá, vai prá lá, sai daí, pára com isto, pega aquilo. Agora não. Agora eu converso mais com ele mesmo. Eu conto as coisas pra ele. Tenho mais paciência. Entendo também ele melhor” (Depoimento de tia de criança de seis anos portadora de Síndrome de Down).

CONCLUSÕES Observa-se que as famílias

atendidas se fortalecem a partir do momento que têm seus problemas compartilhados, sentem-se ouvidas e apoiadas, deixando de se sentirem isoladas em seus problemas. O grupo funciona como suporte e reproduz o modelo familiar em muitos momentos com o acolhimento necessário que os membros da família necessitam.

Conscientizam-se de que há formas de melhorar a qualidade de suas vidas e a de seus filhos, repensam posturas, modificam referenciais, transformam os seus relacionamentos com os seus filhos, estabelecem nova forma de comunicação e interação e, finalmente, conseguem identificar potenciais e capacidades no filho, passando a incluí-los definitivamente no grupo primeiro: a “família”.

Percebe-se que famílias que possuem membros com deficiência mental sentem necessidade de se organizar, devido a fortes mecanismos cristalizados ao longo do percurso destas relações vividas no seio familiar. A família isolada,ou seja, sem um grupo referencial pode apresentar dificuldades para dar conta destas questões, precisando ser trabalhada por um grupo específico, para redimensionar suas metas de vida.

O coordenador deve agir como facilitador nesta conversação, condu-zindo o grupo para um processo de

aprendizado mútuo. Deve permitir que o grupo todo fale. Ele define o rumo da discussão e realiza o fechamento. O tempo todo o grupo está exercitando o diálogo..

Em relação às crianças e jovens atendidos, as mudanças ao longo do trabalho com as famílias são notáveis: tornam-se mais independentes nas atividades e hábitos de vida diária, desenvolvem a capacidade de interagir com outras crianças, adquirem comportamento social adequado, sendo capazes de respeitar limites e regras sociais que os levam a perceber o “outro”.

A missão do Projeto Ação Conjunta é a inclusão dos Deficientes Mentais na própria família, pois sabe-se que a real inclusão tem início neste contexto. Ao desmistificar a deficiência mental na própria família, inclui-se o sujeito deficiente. O processo de inclusão na sociedade fica facilitado quando as famílias se tornam cidadãs.

Considerando que a “inclusão social” inicia-se no seio familiar, reconhecemos que o trabalho realizado em grupo com os familiares das pessoas portadoras de deficiência mental é a oportunidade de termos esse processo facilitado e realizado.

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depoimento

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