sumário - acervo digital: home · web viewfoi o cientista euclides, no século iii a.c., a dar...

129
Salvatore D’Onofrio Pesquisando (teoria e prática de monografia) Sumário Prefácio Cap. I - A QUESTÃO DO SABER: o conhecimento e sua tipologia O conhecimento empírico, técnico e mítico O conhecimento filosófico O conhecimento científico A interação dos conhecimentos Cap. II - A QUESTÃO DO MÉTODO (Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Bacon, Popper) Cap. III - O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DE UMA PESQUISA Conceituação do trabalho científico 1.ª etapa: “O que fazer?” – Escolha do tema e do orientador: esboço de um plano provisório 2.ª etapa: “Com o que fazer?” – Busca do material: planejamento operacional 3.ª etapa: “Como fazer?” – Seleção e organização do material coletado: plano definitivo 4.ª etapa: “Para quem fazer?” – Redação final Cap. IV - APRESENTAÇÃO DO TRABALHO: citação bibliográfica Parte introdutória Corpo do trabalho Conclusão e posfácio Anexos 1

Upload: vuquynh

Post on 16-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Salvatore D’Onofrio

Pesquisando(teoria e prática de monografia)

Sumário

Prefácio

Cap. I - A QUESTÃO DO SABER: o conhecimento e sua tipologia

O conhecimento empírico, técnico e míticoO conhecimento filosóficoO conhecimento científicoA interação dos conhecimentos

Cap. II - A QUESTÃO DO MÉTODO

(Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Bacon, Popper)

Cap. III - O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DE UMA PESQUISA

Conceituação do trabalho científico1.ª etapa: “O que fazer?” – Escolha do tema e do orientador: esboço de um plano

provisório2.ª etapa: “Com o que fazer?” – Busca do material: planejamento operacional3.ª etapa: “Como fazer?” – Seleção e organização do material coletado: plano definitivo4.ª etapa: “Para quem fazer?” – Redação final

Cap. IV - APRESENTAÇÃO DO TRABALHO: citação bibliográfica

Parte introdutóriaCorpo do trabalhoConclusão e posfácioAnexosReferências bibliográficasModalidades de citação

Cap. V - TIPOLOGIA DO TRABALHO INTELECTUAL

Tese/dissertação – trabalho didático/científico – monográfico/panorâmico – Artigo/ensaio – resumo/resenha – currículo/memorial – roteiro/relatório

Cap. VI - METODOLOGIA APLICADA AO ESTUDO DA LITERATURA

1

Page 2: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Visão sincrônica (estrutura do texto): enfoque linguístico, semiótico, estilístico, formalista, estruturalista, fenomenológico, temático

Visão diacrônica (evolução do texto): análise sociológica e psicológica, teoria dos arquétipos, dos gêneros e dos movimentos – o método comparativo

A integração metodológica

Cap. VII - EXERCÍCIO DE LEITURA

IntratextoIntertextoExtratexto

CONCLUSÃO

Bibliografia

Prefácio

A motivação para tornar público este meu trabalho se prende a uma nova experiência de ensino. Professor Titular da área de Teoria da Literatura e Literatura Comparada, já aposentado pela UNESP, recebi convite para ministrar módulos de um curso de Especialização em Metodologia da Pesquisa no campus da Universidade Federal de Mato Grosso, em Pontal do Araguaia, com bolsa de Desenvolvimento Regional do CNPq. A desculpa de não ser da área pedagógica não teve êxito: pediram-me que levasse para a sala de aula minha experiência de longos anos de docência, pesquisa e orientação de trabalhos.

Aceitando o desafio, li a bibliografia sobre metodologia que estava ao meu alcance e redigi os vários tópicos do curso. Testei em classe a matéria elaborada e percebi boa receptividade. Os próprios participantes do curso sugeriram que organizasse os apontamentos, publicando um livro sobre o assunto para que discentes e docentes de outras faculdades pudessem, também eles, se beneficiar do meu esforço intelectual. Aí está o resultado: um trabalho sobre metodologia da pesquisa escrito por um literato e não por um pedagogo! Essa óptica diferente explica, em grande parte, a peculiaridade deste livro em relação à bibliografia existente sobre o assunto.

Meu intuito principal foi estimular todos os que, por obrigação ou opção, iniciam a árdua tarefa da pesquisa intelectual a pensar por si próprios, a criar o hábito da reflexão. Romper os automatismos linguísticos e ideológicos, limpar a mente de todos os dogmas e preconceitos, é o primeiro passo para se fazer ciência, buscar a verdade. O estudo de obras de filósofos e cientistas, que se preocuparam com a teoria do conhecimento, o

2

Page 3: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

problema epistemológico, procurando um método, um “caminho” seguro para a descoberta científica, o fazer artístico e a atividade crítica, é de grande ajuda para a realização de um trabalho intelectual sério. Pesquisar não é repetir, transcrever, parafrasear aquilo que os outros já disseram acerca de determinado assunto, mas refletir sobre o material recolhido e apresentar sua contribuição pessoal.

A parte prática da elaboração do trabalho foi dividida em várias etapas, cada fase sendo estudada em seus elementos essenciais, alertando constantemente para a coerência interna entre as partes. Deixamos bem claro que, além das normas genéricas, fundamentadas na lógica mental, válidas para a realização de qualquer trabalho, o pesquisador deve conhecer também os métodos peculiares da área de conhecimento em que se situa sua pesquisa. Assim, de acordo com nossa especialidade, a literatura, apresentamos vários enfoques possíveis de um texto artístico.

Além da parte referente à metodologia aplicada ao estudo da obra de arte literária em seus aspectos internos e externos, o que distingue este trabalho é seu espírito crítico. O aposentado, como a criança ou o louco, goza do privilégio da impunidade: é-lhe dado o poder de expressar o que sente, de dizer verdades presas na garganta, sem medo de sofrer sanções. Ao longo da carreira universitária, fomos obrigados a conviver com normas e praxes que, no lugar de estimular, acabavam entravando as atividades de pesquisa por serem inúteis, anacrônicas, injustas ou cretinas. Em vários momentos do presente trabalho discutimos algumas dessas práticas que desestimulam a produção científica.

Infelizmente, as verbas destinadas ao ensino e à pesquisa nas universidades públicas brasileiras, além de serem insuficientes, são mal administradas. É triste constatar que, enquanto a tecnologia avança a passos gigantescos, a educação e a cultura acusam um constante retrocesso. Os alunos entram e saem de nossas universidades cada vez mais despreparados. Está na hora de refletirmos seriamente sobre os rumos da escola pública em todos os seus níveis, que estão interligados. O professor, o orientador, o chefe de departamento, cada qual em sua esfera de atuação, deve fazer o que estiver a seu alcance para que a chama da inteligência se mantenha sempre acesa. É indiscutível a asserção de que sem pesquisa não há progresso!

Cap. I - A Questão do Saber: o Conhecimento e sua Tipologia

O homo sapiens distingue-se dos outros seres do universo pelo sentimento da descoberta, pela curiosidade, por possuir a capacidade de conhecer o mundo em que vive e ter consciência de suas sensações e de seus desejos. Portanto, o que deveria ser fundamental no homem é o exercício constante da faculdade de observar atentamente a realidade circundante, questionar os valores impostos pela sociedade, evitar os estereótipos linguísticos e ideológicos, raciocinar além da doxa, da opinião comum, pois, como dizia o saudoso Nélson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”.

Mas, infelizmente, o homem costuma renunciar à prática da reflexão, do bom senso, do equilíbrio, da coerência. Vivemos o dia a dia sem nos darmos conta do absurdo existencial. Falamos por automatismos, usando palavras e frases sem sentido, cultivamos hábitos nocivos à nossa saúde, seguimos rituais religiosos com pouca fé e muita

3

Page 4: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

hipocrisia, escolhemos políticos que não atendem aos interesses da coletividade, promulgamos leis injustas ou impraticáveis, estabelecemos padrões de comportamento que causam nossa infelicidade. Enfim, não conseguem atingir o equilíbrio entre a necessidade da satisfação dos instintos individuais e as exigências da vida em sociedade. E isso porque o que reina soberana é a estupidez humana! Apenas como exemplo de nossa incúria no exercício da razão, gostaria de tornar pública minha indignação toda vez que, ao tomar assento num avião a jato, em voos internacionais ou domésticos, encontro escrito atrás do assento que está à minha frente:

“Fasten seat-belt while seated.”(Mantenha os cintos atados enquanto sentado.)

Tal enunciado, além de redundante, pois já existe o sinal luminoso e o aviso oral da tripulação, é ridículo (queria ver como é possível manter os cintos atados estando de pé!) e, ainda por cima, falso: quem viaja de avião sabe que deve atar os cintos na decolagem, no pouso e nas turbulências, mas não durante todo o tempo que se está sentado. Ora, milhares de pessoas, do mais alto nível social e cultural, passam longas horas com uma escrita tão idiota na frente de seus olhos, sem se dar conta da cretinice e sem reclamar junto à companhia de aviação! Isso porque não costumamos refletir sobre o que se passa a nosso redor, sendo guiados por puros automatismos. Infelizmente, a ciência ganha mais em conhecimento do que a sociedade em sabedoria. A verdade é que, como disse o sábio chinês Confúcio, “aprender sem pensar é simplesmente inútil”.

Portanto, adquirir um conhecimento apenas técnico, sem refletir sobre a utilidade de sua aplicação ou sobre seu valor estético ou formativo, é um desperdício de inteligência humana. O hábito da reflexão deveria ser o denominador comum do cientista, do artista, do pedagogo, de qualquer homem, enfim, que queira fazer uso correto da razão. É triste constatar que estamos vivendo a civilização do conhecimento e não da sabedoria. Isso explica por que, apesar dos formidáveis avanços tecnológicos, ainda persistem inúmeros conflitos, de ordem política e religiosa, individual e social. Deveríamos pôr em prática o profundo achado do famoso historiador inglês Arnold Toynbee:

“A sabedoria é o conhecimento temperado pelo juízo.”Uma vez exposto nosso ponto de vista sobre o saber em geral, passamos a examinar as principais formas específicas de conhecimento, acompanhando as várias fases da evolução da vida em sociedade.

O conhecimento empírico

Do grego empeirikós, é o tipo de conhecimento proveniente apenas da experiência do dia a dia, da observação dos fenômenos da natureza, das sensações que o contato com o mundo exterior estimula em nós: o sentido do calor à aproximação de uma fonte de energia térmica, o medo da escuridão, a satisfação que nos proporcionam a bebida e a comida, o prazer da conjunção carnal, etc. Tal conhecimento, que serve principalmente para satisfazer os dois instintos fundamentais, a conservação própria (pela alimentação) e a conservação da espécie (pela cópula), é comum a todos os seres vivos, vegetais e animais, sendo também uma característica dos agrupamentos humanos mais primitivos. É

4

Page 5: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

preciso, porém, não confundir o conhecimento empírico da vida prática, com o empirismo teórico, um filão da especulação filosófica que, como veremos mais adiante, vai tornar-se a base da metodologia científica.

O conhecimento técnico

O étimo grego tecné corresponde ao nosso saber fazer, o know how, conforme a cultura inglesa. Este tipo de conhecimento já não é proporcionado apenas pelo instinto, pelas sensações, pela observação ingênua, pois requer a intervenção da razão que estabelece regras de procedimento para a fabricação de objetos ou o exercício de diversas atividades. É o conhecimento do “como” fazer algo e dos meios a serem usados para a realização de tarefas. Assim, o homem, ao longo de sua evolução existencial, aprendeu a técnica da pesca, da caça, do cultivo da terra, da criação de animais, da fabricação de objetos de uso (sapatos, facas, etc.), de culto (estátuas de divindades) ou de arte (poemas, pinturas, melodias, etc.). Aprendeu também a técnica da cura de doenças ou de rituais para convívio social e culto religioso. O conhecimento técnico está na base da profissionalização. Na sociedade moderna, a aprendizagem é indispensável para qualquer atividade humana, para a fabricação de qualquer objeto, quer de uso, quer de arte. Sem técnica, não seria possível fazer cinema, construir pontes, realizar um bom jogo de futebol.

O conhecimento mítico

O homem, desde que descobriu sua faculdade cognitiva, buscou uma resposta para suas dúvidas existenciais, querendo saber sobre a origem do universo e de si próprio, sobre o porquê do sofrimento e da morte. A palavra religião, em seu significado etimológico, implica a crença de uma ligação entre o mundo natural, visível e um pressuposto mundo sobrenatural, invisível. É muito difícil encontrar um agrupamento humano, primitivo ou civilizado, que não acredite numa força misteriosa, considerada criadora do universo, a que se deve prestar culto. O tipo de religião varia conforme a sociedade e as épocas. Politeísmo, monoteísmo e panteísmo são os macrogêneros que agrupam uma infinidade de crenças.

O sistema religioso mais sugestivo, a nosso ver, foi o paganismo greco-romano. A mitologia inventada pelos habitantes da Grécia antiga sobreviveu à crença primitiva e tornou-se manancial inesgotável para a criação de obras de arte literária e plástica. As epopeias, as tragédias, os templos, as estátuas, as pinturas, até a música, estão intrinsecamente relacionados com os mitos de Dionísio, de Apolo, de Júpiter, de Vênus, etc. O mito, como se sabe, é uma história fantástica inventada para tentar explicar a origem do cosmo, do homem, de objetos, para justificar comportamentos ou compreender a natureza de sentimentos e paixões. Assim, por exemplo, em noites de tempestade, o grego primitivo, apavorado com raios e trovões, imaginava que Júpiter, o pai dos deuses, irado por algum motivo, encarregava seu filho Vulcano, o deus do fogo, a fabricar setas incandescentes e a lançá-las contra a humanidade. Daí a necessidade de realizar ritos expiatórios para acalmar a raiva divina. Mais tarde, quando a ciência avança e demonstra que o raio não passa de uma descarga elétrica provocada pelo atrito entre o ar frio de uma nuvem e a quentura do solo, o mito perde sua crença e se transforma em lenda.

5

Page 6: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

O conhecimento mítico, teológico, religioso, em geral, por não ter nenhuma sustentação lógica ou racional, fundamenta-se apenas no princípio da autoridade: a verdade sobre a fundação do mundo, a origem e o destino do homem, bem como seu comportamento ético, teria sido revelada por entes superiores a seres privilegiados. A Bíblia, os livros sagrados do Velho e do Novo Testamento, contém o conjunto das doutrinas supostamente reveladas pelo deus do judaísmo e do cristianismo a profetas e a evangelistas. Também outros sistemas religiosos (budismo e islamismo) exigem o ato de fé: a pressuposição da intervenção divina na criação do mundo (cosmologia) e no regimento da vida em sociedade (ética).

É uma verdade indiscutível que o sentimento religioso é conatural ao ser humano, pois não existe nenhuma sociedade, primitiva ou civilizada, que não acredite em seres sobrenaturais ou que não pratique alguma forma de culto. E isso porque homem nenhum, em nenhum lugar ou tempo, se conforma com o absurdo da morte, sonhando com a continuação da vida num além e imaginando a alma como uma entidade imortal, porque espiritual, podendo viver separada do corpo perecível. Outro motivo da crença na divindade é a impotência em resolver seus problemas existenciais: a doença, a fome, a maldade, a injustiça, a dor fomentam o desejo da existência de outro mundo onde seria feita justiça, os bons sendo premiados e os maus punidos. Toda religião é uma utopia salutar, porque o homem não conseguiria suportar a dor da existência se não acreditasse na possibilidade de uma vida melhor após a morte. Portanto, qualquer sentimento religioso, de indivíduos ou de grupos étnicos, deve ser respeitado, devendo a liberdade de culto ser uma norma internacional, praticada por todos os povos.

Se o conhecimento religioso, como acabamos de ver, não tem fundamento racional ou científico, tendo por suporte apenas a crença numa palavra revelada, não entendemos a razão das sangrentas lutas religiosas que ainda hoje envergonham até povos considerados civilizados. É preciso aceitar o fato incontestável de que não existe nenhuma religião “ortodoxa”, quer dizer, verdadeira, em sentido absoluto, porque toda religião é válida apenas para quem acredita nela. Lutar para suplantar um credo por outro é um ato de insânia, uma ofensa contra a inteligência humana. Sem falar do fanatismo extremo a que chegam alguns grupos étnicos. Se matar em nome de Deus já é inconcebível, imaginem então o absurdo dos suicídios individuais e coletivos que, volta e meia, algumas seitas religiosas cometem, na vã esperança de passar para uma vida melhor.

Ainda no primeiro século antes de Cristo, Lucrécio, poeta e filósofo romano, ao comentar em seu De Rerum Natura (Sobre a natureza das coisas) a passagem mitológica de Agamenão induzido a sacrificar sua filha Ifigênia à deusa Diana, exprimia sua revolta contra a ignorância humana com a famosa expressão: “Quantos crimes não se cometem em nome da religião!” É vergonhoso constatar que, até agora, o homem não aprendeu a controlar seu sentimento religioso: haja vista as lutas sangrentas entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte, entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio ou os últimos suicídios coletivos de seitas religiosas, como na Guiana, em 1978 (mais de 900 seguidores de Jim Jones), em Waco, EUA, em 1933 (o “profeta” David Koresh e mais 80 membros de sua seita), na Suíça, em 1944 (48 membros da Ordem do Templo Solar) e na Califórnia, em 1997 (39 jovens de uma seita apocalíptica ligada à internet, que acreditavam que, com sua morte física, iriam pegar carona no cometa Hale-Bopp). Como

6

Page 7: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

dizia o escritor francês Renan: “A única coisa que nos dá a ideia do infinito é a imbecilidade humana.”

O conhecimento filosófico

Do grego philo (amante) e sophia (sabedoria), a filosofia tenta suplantar o princípio da autoridade, sustentáculo próprio do saber teológico, pela razão ou pensamento reflexivo. Filósofo, portanto, conforme o sentido etimológico, é o homem que ama o saber num sentido geral, aquele que procura respostas para os interrogativos fundamentais da existência, não por meio da crença numa revelação transcendental, mas mediante o raciocínio lógico. De onde se originou o cosmo? Existe outra vida após a morte? Matéria e espírito são inseparáveis? Além da aparência, existe uma essência das coisas? O que é a consciência, a razão, a verdade? Qual é o fundamento do sentimento ético? A felicidade reside no exercício do livre-arbítrio, satisfazendo os instintos individuais, ou na observância dos preceitos sociais?

Para responder a essas perguntas existenciais o homem exercitou sua inteligência em várias áreas do saber filosófico: a cosmologia, que formula hipóteses para explicar a origem do universo; a lógica, que estuda as regras do raciocínio correto para se chegar a qualquer tipo de conhecimento; a ética, que analisa os conceitos do bem e do mal, do certo e do errado, as normas morais do comportamento humano; a estética, que investiga a essência do belo e suas relações com o útil; a epistemologia ou teoria do conhecimento, que tem como objeto o estudo da natureza da verdade, a confiabilidade do saber, o método correto de investigação.

Através dos tempos, vários pensadores criaram sistemas filosóficos globalizantes, na tentativa de responder de forma coerente a todas essas indagações. Os dois sistemas mais importantes, que constituíram a espinha dorsal do saber filosófico, são o idealismo e o materialismo, que tiveram suas origens respectivamente no pensamento de Platão (427 -347) e de Aristóteles (384-322). Platão, preocupado em resolver o problema da aparência enganosa das coisas e a subjetividade das sensações, pressupõe a existência de um mundo transcendental onde existiriam as formas primeiras, as essências ou as ideias; todos os objetos do mundo da realidade visível e tangível seriam apenas cópias, representações, fantásmatas dos protótipos espirituais.

Aristóteles, contestando seu mestre, não admite a existência de nada fora do mundo da realidade empírica, substituindo o princípio da transcendência pelo da imanência: as ideias das coisas estão nas próprias coisas e não num hipotético mundo sobrenatural, extraterrestre. Segundo o pensamento aristotélico (a que voltaremos no capítulo seguinte, ao estudarmos a questão do método), a mente humana, usando da faculdade da “abstração”, consegue separar o geral do particular e chegar assim à formulação das ideias dos objetos existentes. No aspecto genérico, residiria o ideal. A ideia da árvore está contida na própria árvore, conforme o princípio do ilemorfismo (ilé = matéria e morfé = forma), a conjunção do corporal ao espiritual. A ideia seria apenas a representação mental de uma coisa.

Dessa forma, o uno (o ideal) coexiste com o múltiplo (o real), sendo as ideias imanentes aos objetos sensíveis. Esclarecendo melhor: enquanto para Platão a alma humana é imortal, pois, uma vez expiada a culpa que a obrigou a ficar na prisão do corpo, retorna a seu lugar de origem no mundo das ideias, para Aristóteles a alma morre com o

7

Page 8: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

corpo, pois o espírito não existe fora da matéria, sendo ele a “forma” do objeto; a alma e o corpo são, portanto, indivisíveis. Lembramos a bela imagem das duas faces de uma folha de papel, distintas mas não divisíveis, formulada pelo lingüista Saussure para explicar a diferença entre significante e significado.

O idealismo platônico foi retomado, ao longo da história da filosofia ocidental, por vários pensadores e com diferentes conceituações. O idealismo subjetivo, que costuma ser chamado de racionalismo, teve no filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) seu principal cultor, de cujo nome se originou o cartesianismo: todo o conhecimento é um processo mental que vem de dentro para fora, pois existem ideias inatas, como a do eu pensante, a da existência de um ser supremo criador e organizador do universo, a da existência do objeto, a matéria do mundo exterior, oposta ao espírito que a percebe, etc. O idealismo crítico: segundo o filósofo alemão Emanuel Kant (1724-1804), as impressões provocadas pelos sentidos são avaliadas e interpretadas pela faculdade do entendimento, a categoria fundamental do espírito humano. O pensamento kantiano foi retomado pela tríade de patrícios alemães Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1854) e Hegel (1770-1831), que chegaram a postular o idealismo absoluto: todo o real é apenas uma ideia, anulando-se assim a distinção entre o conceito e a realidade, entre o interior e exterior, entre o sujeito pensante e o objeto existente. A realidade só existe, só é verdadeira, enquanto pode ser pensada.

O Materialismo (de matéria), Realismo (de res = coisa) ou Positivismo (positivo = concreto) constitui a outra vertente da filosofia no Ocidente, centrada no pensamento aristotélico. Passada a longa fase da Idade Média, durante a qual a filosofia foi considerada apenas uma ancilla, uma serva da Teologia, visto que os sistemas filosóficos formulados por Platão e Aristóteles eram usados com o objetivo principal de explicar os livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento, na tentativa de encontrar uma fundamentação racional para os mistérios e os dogmas da fé cristã, com o advento da Renascença, a partir do século XV, o pensamento reflexivo começou a desvincular-se das crenças religiosas, aproximando-se mais da investigação científica.

O Empirismo britânico (Thomas Hobbes, 1588-1679; John Locke, 1632-1704; George Berkeley, 1685-1753; David Hume, 1711-1776) consagra essa tendência renascentista, retomando o princípio aristotélico de que a experiência sensível é a única fonte de conhecimento, sendo as ideias apenas “abstrações” formadas com base na combinação de dados provenientes da observação ou da sensação. Mas será o Positivismo francês a consumar o divórcio da Filosofia e da Teologia, colocando o pensamento reflexivo a serviço exclusivo das Ciências Naturais. Segundo seu criador, Auguste Comte (1798-1857), a humanidade passou por três etapas.

Na fase teológica ou mítica, o homem tentou compreender os fenômenos da natureza imaginando a intervenção de seres sobrenaturais, por meio da criação de mitos, de dogmas, de doutrinas religiosas: predomina a explicação antropomórfica, pois o homem cria os deuses à sua imagem e semelhança, atribuindo-lhes vícios e virtudes elevados à mais alta potência. Na fase metafísica ou filosófica, essas entidades sobrenaturais são despersonalizadas, tornando-se apenas conceitos, abstrações, ideias: o saber mítico ou religioso é substituído pelo conhecimento racional, pela reflexão sobre as relações que existem entre os fenômenos. Na etapa positiva ou científica, enfim, o conhecimento dá-se pela descoberta das leis imutáveis da natureza. A filosofia, então, deixando de lado qualquer preocupação com problemas transcendentais, assume um

8

Page 9: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

papel eminentemente epistemológico: o pensamento reflexivo estará a serviço do progresso científico, ajudando na formulação de métodos eficazes para o conhecimento da verdade.

No mesmo filão do pensamento positivista, com suas raízes no pensamento aristotélico, podemos encaixar outras correntes filosóficas. O Materialismo dialético de outra tríade de filósofos alemães, formada por Feuerbach (1804-1872), Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), mais voltada para o estudo dos conflitos entre as várias classes sociais. O Existencialismo de Kierkegaard (1813-1855), de Nietzsche (1844-1900), de Heidegger (1889-1976), de Sartre (1905-1980): o que importa é a existência, o indivíduo, a situação em que o homem se encontra e não a essência, a transcendência, o absoluto, as normas gerais, pois o conhecimento da verdade, assim como os valores éticos, é sempre algo de subjetivo, um ato da livre escolha do indivíduo, que deve responder a solicitações de determinadas situações existenciais relacionadas com o hic et nunc, o aqui e o agora.

O conhecimento científico

O étimo latino scientia (ciência, saber) deu origem a vários cognatos na língua portuguesa: ciente, discente, docente, cientista, científico, cientificar, cientismo. Num sentido amplo, portanto, a palavra ciência diz respeito a qualquer tipo de saber. Por isso, falamos de ciências físicas, biológicas, humanas, etc. Na antiguidade greco-romana não havia muita distinção entre as várias atividades do espírito: era chamado de “sábio” aquele que sabia das coisas. Assim, por exemplo, Aristóteles, além de tratar de filosofia, escreveu obras sobre poética, estética, ética, política, retórica, física, astronomia, zoologia. Mais ainda na Renascença encontramos o homem com um saber enciclopédico. Exemplo luminar é o italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) que, além do artista imortal da pintura, foi também poeta, arquiteto, escultor, engenheiro, cartógrafo, geólogo, botânico, físico, tendo inventado maquinarias que o tornaram precursor da aviação, da hidráulica, da óptica, da acústica.

Num sentido estrito, o termo científico relaciona-se ao estudo da natureza física, visando à compreensão de seus fenômenos, a sua classificação e à dominação dela por parte do homem e em seu benefício, usando métodos rigorosos de investigação. O conhecimento científico pretende suplantar quer o princípio da autoridade, próprio do saber religioso, quer o pensamento abstrato que se serve apenas da razão, peculiar do saber filosófico, na tentativa de alcançar a distinção entre o verdadeiro e o falso por meio de uma comprovação irrefutável. Uma vez observada a repetição de um fenômeno e feita uma rigorosa experimentação, chega-se à formulação de uma lei que não admite contestação. Assim, seriam absolutamente verdadeiros princípios de matemática (a soma é maior do que suas partes), de estatística (o número dos homens casados é exatamente igual ao das mulheres casadas), de geometria (um quadrilátero conserva seus lados sempre iguais, embora aumente de tamanho), de física (pela lei da gravidade, o magnetismo terrestre atrai os corpos para baixo). Assim, credulidade e raciocínio seriam superados pela observação e experimentação.

A história da cultura no Ocidente apresenta grandes nomes de cientistas ainda na era antiga. Citamos os nomes mais famosos: Pitágoras, da ilha grega de Samos (570-496 ?), o grande mestre da Matemática, percebia a presença de números em todos os fenômenos da natureza, até mesmo na música; o siracusano Arquimedes (287-212),

9

Page 10: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

matemático e físico, famoso pela exclamação heureca (“encontrei”), quando, ao lavar-se numa banheira, descobriu o princípio fundamental da hidrostática; Plínio o Velho (23-79), naturalista romano, escreveu 37 livros sobre história natural e morreu asfixiado no afã de observar de perto o fenômeno da erupção do Vesúvio. Mas, ressalvando esses e outros casos singulares, a tomada de consciência sobre a importância da atividade científica no tocante ao saber só acontece no início da era moderna, a partir do século XVI, quando o homem sentiu a necessidade de procurar um conhecimento mais objetivo, mais seguro, com maiores garantias de certeza na busca da verdade.

O Renascimento europeu assinala não somente o triunfo das letras e das artes, mas também o despertar do espírito científico que constituirá a base da Revolução Comercial e Industrial, a partir das grandes viagens dos descobrimentos marítimos, que deslocaram o eixo do comércio do Mediterrâneo para o Atlântico. Tudo isso foi possível graças às invenções da bússola, da pólvora, da imprensa, da máquina a vapor e, sobretudo, pela revolução na astronomia com a descoberta do heliocentrismo: não é o Sol a girar ao redor da Terra, conforme rezava o antigo sistema ptolemaico, pois se descobriu que nosso planeta não é uma plataforma chata e imóvel, mas um globo giratório, pequeno componente do imenso sistema solar. Para tanto, contribuíram renomados cientistas: o polonês Copérnico (1473-1543), o primeiro a declarar que a Terra não era o centro do cosmo; o pisano Galileu (1564-1642), que deu importantes contribuições ao sistema copernicano, negando o geocentrismo e demonstrando o movimento da Terra, além de suas numerosas invenções, especialmente no campo da óptica física e geométrica, da termologia, da mecânica dinâmica e estática; o inglês Newton (1642-1727), o descobridor do cálculo diferencial e integral, além de criador de um sistema formal e matemático construído a partir de quatro axiomas, chamado “as Leis de Newton”: o princípio da inércia, da propulsão em linha reta, da ação e reação, da atração universal.

Essas e outras descobertas deram início à luta entre a ciência e a religião, especialmente a católica, que até então se considerara a depositária única e absoluta do saber. Começava a afirmar-se a superioridade da razão, da lógica, da investigação científica, sobre a pseudoverdade dos dogmas baseados nos textos bíblicos. O teatrólogo Bertolt Brecht, na peça A Vida de Galileu, expõe dramaticamente o sofrimento do cientista italiano, condenado à fogueira pelo tribunal da Santa Inquisição por defender a tese do movimento da Terra. Obrigado a retratar-se, para não ser queimado vivo, ao sair do tribunal teria exclamado a famosa frase: “Eppur se muove” (“contudo ela se move).O golpe mortal da ciência contra o judaísmo e o cristianismo se deu com o evento do evolucionismo. Darwin (1809-1882), após uma viagem marítima de cinco anos coletando toneladas de material animal e vegetal, aperfeiçoou a tese lamarquiana da transmissão hereditária de caracteres adquiridos e expôs suas ideias sobre a teoria evolucionista, opondo-se frontalmente à tese criacionista, assim como aparece no livro do Gênese.

Segundo a Bíblia, as espécies orgânicas seriam tantas quantas as criadas por Deus, sem possibilidade de misturar-se. Opostamente, Darwin demonstrou que as espécies não são fixas, derivando-se uma da outra pelo processo de seleção natural. O próprio homem, por meio de uma evolução que durou milhões de anos, encontraria sua remota origem em primatas aparentados com macacos. A publicação de sua obra A Origem das Espécies, em 1859, escandalizou o mundo cultural da época. Colocou-se a questão: quem seria mentiroso o profeta que afirmara ter tido uma revelação divina pela qual o homem teria sido criado diferentemente dos animais, pois nele o Criador teria insuflado o sopro divino

10

Page 11: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

que torna a alma imortal; ou Darwin, o cientista que demonstrara a falácia de tal teoria mediante a análise rigorosa dos elementos da natureza? A verdade é que o Criacionismo só pode ser sustentado por um ato de fé, enquanto o Evolucionismo tem fundamentos científicos.

Mais recentemente, sucessivas descobertas científicas intensificaram as perplexidades e as discussões de ordem religiosa e ética: a inseminação artificial, a invenção da dinamite e da bomba atômica, as viagens interplanetárias, a guerra bacteriológica, a fertilização em vidro, o transplante do coração, a pílula contraceptiva e abortiva, a mãe de aluguel, a clonagem de animais. Na verdade, se, de um lado, a ciência não pode sofrer limitações para seu desenvolvimento, de outro lado, ela não deveria ser posta a serviço de objetivos esdrúxulos, nocivos à humanidade. A história demonstra o engano em que caíram os teóricos do Positivismo. A crença de que a ciência, conhecendo as causas determinantes dos fatores hereditários e ambientais, seria capaz de resolver todos os problemas sociais que afligiam a humanidade daquela época, instaurando a felicidade na face da Terra, foi apenas uma ilusão, outro mito.

Não obstante todo o progresso, o século passado sofreu os efeitos dolorosos de duas guerras mundiais e de outros inúmeros conflitos locais; o horror de duas bombas atômicas que mataram e deformaram gente inocente, no Japão; a vergonha da existência de bolsões de miséria absoluta, a exploração do trabalho humano, a prostituição infantil, a injusta distribuição de bens, a corrupção desenfreada no meio político, o fanatismo religioso, a falta de planejamento familiar e populacional. Enquanto a ciência não inventar um antídoto contra a estupidez, a ignorância e o egoísmo individual ou de grupos, todas suas descobertas contribuirão muito pouco para a construção de uma sociedade humana justa e feliz!

Aliás, a própria certeza do conhecimento científico ultimamente está sendo questionada: a mecânica quântica, de Max Planck (1858-1947) e a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein (1879-1955), revelaram a inconsistência da física newtoniana; Sigmund Freud (1859-1939), o pai da psicanálise, ressaltou a força do inconsciente no comportamento ético. Enfim, as chamadas ciências exatas também elas são incapazes de apresentar um conhecimento absolutamente certo e indiscutível, pois todo o saber está sujeito a mudanças no tempo e no espaço. Por exemplo, segundo Popper, afirmar, com base na experiência, que todos os cisnes são brancos, é uma verdade apenas provisória, válida até que em algum lugar e em certo tempo não se encontre um cisne de cor preta!

O conhecimento artístico

A Arte é uma forma de conhecimento da realidade, assim como a Filosofia e todas as Ciências. Admirar um templo, um quadro; ler um poema, um romance; assistir a um filme ou peça teatral; ouvir uma sinfonia, uma canção: tudo isso importa em captar uma parcela de sentido do mundo, que cada obra de arte tem dentro de si. Alcançar um saber é a finalidade primordial de qualquer atividade humana. O que diferencia a aprendizagem científica da artística é apenas o meio utilizado: enquanto os vários tipos de conhecimento científico (matemático, físico, químico, biológico, etc.) se servem da observação e da comprovação, as várias formas de arte (literatura, pintura, cinema, teatro, etc.) têm como meio de expressão a fantasia. O que irmana todas as artes é o recurso à

11

Page 12: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

ficção. Ficcional, cognato de fictício, pode significar inexistente, falso, mentiroso, além de imaginário, fantasioso. A arte seria, portanto, uma bela mentira, tanto que Fernando Pessoa, usando a figura do paradoxo, peculiar de seu estilo, chama o poeta de “fingidor”, no poema Autopsicografia de seu Cancioneiro. Eis a primeira estrofe, que se tornou famosa:

“O poeta é um fingidorFinge tão completamente

Que chega a fingir que é dorA dor que deveras sente.”

Só que o conhecimento artístico é falso apenas no plano histórico ou na realidade física: Capitu, a imortal personagem do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, não é um ser existente no plano da realidade material, porque não nasceu da união carnal de um homem e de uma mulher, mas é apenas fruto da fantasia, da inteligência criadora de seu autor. E por ser uma entidade espiritual, ela se tornou imortal, não estando sujeita às leis do tempo e do espaço. Morreu o autor, mas não sua criatura artística. Mas o fato de não ser real não quer dizer que a personagem de ficção não seja verdadeira. Muito pelo contrário: a figura de Capitu é mais autêntica do que qualquer mulher do mundo da realidade.

Explicamos: o ser humano, em carne e ossos, é vítima das normas sociais e dos preconceitos morais. Pelo sentimento do pudor ou por medo de sofrer sanções, a gente acaba ocultando as ideias e os desejos mais recônditos, que contrariam as convenções ético-sociais. Recorremos, portanto, ao uso da máscara psicológica de seres bem-comportados, integrados no convívio social, vivendo de uma forma hipócrita, sem nunca manifestar nossas aspirações mais secretas, que são muitas vezes inconfessáveis. Isso não acontece com o ser ficcional que, por se apenas fruto da fantasia, não está sujeito a apreensões ou ao medo de sofrer penalidades. Tal liberdade faz com que as criações artísticas possam exprimir as verdades mais profundas do ser humano, atingindo o universal, o eterno, o absoluto. Segundo a bela expressão do escritor Franz Kafka, “a literatura é sempre uma expedição à verdade”.

Outra peculiaridade do conhecimento artístico é sua polissemia, a capacidade de captar múltiplos sentidos ao mesmo tempo ou em espaço e épocas diferentes. Enquanto a verdade científica é unívoca ou monológica, visto que, uma vez descoberto ou comprovado o princípio ou a lei, não se admite mais discussão, pois o fato é ou não é, o conhecimento artístico está centrado no dialogismo, na polifonia, na ambiguidade, podendo atingir a própria contradição: algo pode ser e não ser ao mesmo tempo, dependendo da perspectiva, do ponto de vista do leitor ou do espectador. A obra de arte nunca encerra um único sentido, sendo possíveis várias e diferentes interpretações. Dependendo do grau de cultura e de sensibilidade de quem o admira, o objeto de arte adquire sentidos sempre renovados.

A compreensão da forma e dos conteúdos de uma obra de arte literária ou plástica é inesgotável. Isso explica por que, séculos após séculos, ainda admiramos estátuas gregas, ainda representamos tragédias de Shakespeare, ainda nos encantamos com versos do poeta latino Catulo, ainda discutimos sobre a traição de Capitu e a verdadeira paternidade de seu filho. A história ficcional é ambígua porque na arte não importa a

12

Page 13: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

resposta, mas o questionamento, não a verdade fatual, mas a verossimilhança psicológica. Isso porque o ser artístico transcende o padrão individual, buscando alcançar um protótipo universal. Os poemas de Homero para os habitantes da Grécia antiga, assim como as passagens bíblicas para os hebreus, tinham o papel fundamental de ensinar os homens a viver em sociedade. Ainda hoje, apesar da desvirtuação da leitura provocada pelo progresso da televisão, do cinema, da informática, trechos poéticos de Dante, de Shakespeare, de Fernando Pessoa, de Camões, de Machado de Assis, de Carlos Drummond de Andrade continuam exercendo a função de lições de vida.

A interação dos conhecimentos

Ao concluir essas leves considerações sobre os vários tipos de conhecimentos, é oportuno salientar que o saber não se adquire por compartimentos estanques, conforme uma rígida ordem de sucessão. Numa sociedade indígena ou primitiva, com o conhecimento mítico e empírico, ocorre também a prática do artesanato, podendo dar-se ainda a manifestação de uma ciência rudimentar. Se é lícito admitir que a evolução da sociedade humana determine mudanças na tipologia do saber, tal transformação deve ser vista em termos de predominância de um modo sobre o outro, nunca como exclusividade. Assim, apenas de forma geral, podemos dizer que a era antiga se caracterizou pelo predomínio do saber mítico e artístico, enquanto a era moderna aprimorou o conhecimento filosófico e científico. O erudito italiano Giambattista Vico (1668-1744), o pai da Filosofia da História, em sua obra principal, A Ciência Nova, consegue formular uma síntese entre a teoria “linear” do desenvolvimento histórico da humanidade, centrada na ideia do progresso, e a teoria “cíclica” dos cursos e recursos históricos, baseada no princípio da recorrência.

Pela teoria do progresso, um período da história do homem divide-se em três etapas: a época dos deuses, quando predomina o governo teocrático, a sensação, a natureza violenta; a época dos heróis, caracterizada pela aristocracia guerreira, pela nobreza, pela imaginação; e a época dos homens, centrada na democracia, na ordem social, na razão. Pela teoria cíclica, cada período se renova ao longo da história de uma forma alternativa, o fim de um ciclo de cultura dando origem a uma nova fase de barbárie, e assim sucessivamente. Isso explicaria por que civilizações outrora gloriosas, como a grega, a egípcia, a chinesa, entraram em declínio, voltando ao estágio primitivo.

Outra consideração a ser feita é que a dificuldade em distinguir os vários tipos de conhecimento não atinge apenas o plano diacrônico, mas também o sincrônico. Arte, ciência e filosofia dialogam no dia a dia, pois a atividade criativa e a atividade reflexiva estão intrinsecamente relacionadas na prática social. A correspondência entre os vários ramos do saber é um fato incontestável. Freud foi estimulado a descobrir um dos princípios fundamentais da psicanálise, o Complexo de Édipo, com base na reflexão sobre um trecho da peça Édipo Rei, do dramaturgo grego Sófocles. O escritor francês Jules Verne (1828-1905) criou o romance científico de antecipação: suas obras de literatura fantástica, além de serem a base da moderna ficção científica, oferecem sugestões valiosas para o desenvolvimento científico. Aliás, o próprio nome science fiction indica a simbiose entre a arte e a ciência.

No sentido contrário, é a ciência ou a filosofia a influenciar as artes. Veja-se, por exemplo, o romance naturalista do escritor francês Émil Zola, que usa a teoria do

13

Page 14: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

determinismo e o método científico da observação dos fatos reais para a criação de seus personagens. Diz-se que viveu em um bordel por vários meses para melhor caracterizar a personagem-título de seu romance Naná. Mais recentemente, o professor norueguês Jostein Gaarden teve a feliz ideia de misturar filosofia e ficção. Inovando no ensino da História da Filosofia, criou um romance, O Mundo de Sofia, de sucesso mundial, no qual envolveu numa trama romanesca o melhor do pensamento reflexivo dos pré-socráticos aos melhores filósofos da atualidade.

Na vida prática, é difícil distinguir e separar perfeitamente as atividades utilitárias, artísticas, científicas ou filosóficas. Até que ponto nosso pensar é filosófico ou nosso canto é artístico? Uma cadeira Luís XV, que dois séculos atrás era feita para sentar-se, hoje serve apenas para decoração de ambiente: um objeto de uso tornou-se de arte. É que a diferenciação entre a finalidade das várias atividades humanas é relativamente recente, própria de sociedades altamente civilizadas. Entre os povos primitivos, toda atividade individual ou grupal está em função da comunidade, visando à sua conservação. Assim, por exemplo, o desenho de um animal numa pedra ao longo de um caminho, antes de um valor estético, tem a finalidade de alertar sobre o perigo da existência do animal feroz naquela região. Rudimentos de arte, de filosofia e de ciência encontram-se misturados com mitos e ritos religiosos nas atividades cotidianas.

Basta refletir sobre o fato de que a Medicina só no fim do século passado, com o químico e biologista francês Louis Pasteur (1822-1895), o descobridor dos microorganismos, adquiriu o estatuto de verdadeira ciência. Antes, por muitos séculos e vários lugares, era uma atividade mágico-religiosa, praticada por sacerdotes, pajés e curandeiros, que exigiam a fé do doente na força espiritual do exorcista como principal meio de cura. Ainda hoje, não é raro o caso de encontrarmos cientistas supersticiosos ou poetas fascinados por descobertas científicas. Marinetti, o pai do Futurismo, tentou anular a tradicional antinomia da ciência e da arte, apregoando a síntese entre a máquina e o sentimento. O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, que morreu aos 84 anos, em 1998, considerado um dos escritores símbolos da América hispânica (junto com o chileno Pablo Neruda, o peruano Mario Vargas Llosa, o colombiano Gabriel García Márquez e o argentino Julio Cortázar), afirmou claramente a existência de uma interação profunda entre arte, filosofia e ciência:

“Para mim, a poesia e o pensamento são um sistema de vasos comunicantes.A fonte de ambos é a minha vida: escrevo sobre o que vivi e vivo.”

Terminamos esse capítulo de nosso trabalho sobre a problemática do conhecimento humano, apresentando um esquema de sua tipologia:

Tipo de conhecimento Meio utilizadoGENÉRICO REFLEXÃOEMPÍRICO EXPERIÊNCIATÉCNICO APRENDIZAGEMMÍTICO CRENÇAFILOSÓFICO RAZÃOCIENTÍFICO EXPERIMENTAÇÃOARTÍSTICO FANTASIA

14

Page 15: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Cap. II - A Questão do Método

Do grego méthodos, a palavra significa o caminho a percorrer para alcançar objetivos específicos. A metodologia, portanto, tem muito a ver com a Teoria do Conhecimento, que os gregos chamavam Epistemologia, de epistéme (ciência), o estudo crítico, o fundamento lógico dos princípios que deviam regular as atividades das várias ciências. Evidentemente, a escolha do caminho para atingir a verdade implica a utilização de meios adequados para cada tipo de conhecimento. Não existe um único método de pesquisa científica, pois ele varia conforme o assunto e a finalidade. Entre a multiplicidade dos métodos possíveis, porém, é fundamental podermos distinguir e relevar elementos comuns a todos eles, sob pena de negarmos a própria possibilidade da metodologia como disciplina curricular.

Os fundamentos que deveriam orientar o pesquisador, a nosso ver, são os seguintes: a atitude intelectual, a seriedade da investigação, a busca da documentação, o rigor da análise, o hábito da reflexão, a honestidade intelectual, o desejo de contribuir para o progresso civilizacional. Pesquisar com método não é copiar, transcrever o que outros disseram sobre determinado assunto, mas cultivar o espírito crítico, amadurecer por dentro, ter originalidade, oferecer sua visão da realidade. O conhecimento dos resultados obtidos por pesquisas anteriores deve servir como base para avançar na busca de novas experiências. Não me lembro quem criou a bela imagem do gênio visto como um anão sentado em cima de um gigante, que é a tradição cultural. Ele apenas acrescenta mais um degrau à montanha do conhecimento que o precedeu.

Pitágoras de Samos (572-510?), um dos maiores pensadores pré-socráticos, foi o primeiro filósofo-cientista a preocupar-se com o problema do método para o conhecimento da realidade. Infelizmente, dele e sobre ele sabemos muito pouco e indiretamente. Foi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras, entre os quais os mais conhecidos são o quadrado da hipotenusa e a escala numérica. O pitagorismo tornou-se um movimento que misturava religião e ciência. Era uma doutrina esotérica, hermética, pois compreensível apenas por círculo de iniciados, que defendia a metempsicose, a transmigração da alma por meio de corpos diferentes, bem como a purificação do espírito por meio do conhecimento. A ideia central do pitagorismo, porém, está na concepção da realidade como essência matemática. O mundo não pode ser conhecido por meio dos sentidos, que são enganadores, mas por um padrão racional com base nos números, nas proposições e nas formas geométricas. O número, à medida que quantifica, é o princípio da ordem e da harmonia. O método da aprendizagem filosófica e científica idealizado por Pitágoras é, portanto, essencialmente numérico ou quantitativo, pois, segundo ele, a tessitura profunda do universo é formada por acordes. A matematização, por considerar a realidade como algo absolutamente objetivo, comensurável, evita o dissenso, a controvérsia.

Sócrates (470-399), diferentemente da maioria dos sofistas, os artistas da palavra que ensinavam retórica e filosofia com fins lucrativos e por meio de silogismos, raciocínios formalmente corretos, mas enganosos e vazios de conteúdo, assumiu a

15

Page 16: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

profissão de pedagogo como uma missão de vida. Nascido em Atenas, filho do escultor Sofronisco e da parteira Fenareta, dedicou a maior parte de sua existência ao ensino em praça pública, dialogando especialmente com os jovens, até ser acusado de corruptor da juventude e ser condenado a beber cicuta, um veneno mortal. Não deixou nenhuma obra, pois achava que um livro, assim como uma estátua, era objeto mudo, a que não se podia perguntar nada. Conforme seu pensamento, a transmissão do saber só se dá por meio do diálogo, da pergunta e da resposta entre mestre e discípulos. Conhecemos, em parte, suas ideias por meio do testemunho do historiador Xenofonte, dos escritos dos discípulos Platão e Aristóteles, das obras do comediógrafo Aristófanes e do filósofo Euclides de Megara.

O método socrático de ensino desenvolve-se em duas etapas: primeiro vem a ironia e depois a maiêutica. A primeira fase consiste numa espécie de terraplenagem, a limpeza geral do terreno, libertando o espírito de toda forma de preconceito, de superstição, de soberba intelectual, levando os discípulos a perceber sua ignorância por meio da instilação da dúvida metódica. A palavra grega eiróneia literalmente significa interrogação: pela técnica do diálogo, o filósofo grego levava o interlocutor a perceber sua ignorância sobre o assunto em questão, desmascarando sua presunção. Evidencia-se, assim, que o conhecimento proveniente da doxa, da opinião comum ou do mundo das aparências, pode não ter consistência lógica, induzindo muitas vezes ao engano. A fase irônica leva, portanto, à agnósia, à consciência da ignorância: “Só sei que nada sei”, teria afirmado Sócrates e por tal achado paradoxal foi considerado o homem mais sábio da Grécia, conforme teria revelado o oráculo do deus Apolo no templo da ilha de Delfos.

A segunda fase do método socrático já é positiva: maieutikós, para os gregos, era a técnica de fazer vir à luz. Sócrates costumava dizer que sua profissão era semelhante à de sua mãe, que era parteira. Como ela ajudava com as mãos a partejar um ser humano, ele, com sua mente, por meio do processo dialético de perguntas e respostas, induzia seus interlocutores a descobrir a verdade que estaria dentro deles. Conforme o postulado da reminiscência, que será melhor desenvolvido pelo discípulo Platão na Teoria das Ideias, o conhecimento verdadeiro é o conceptual, que está dentro do espírito humano, conseguindo captar o universal, enquanto as realidades particulares do mundo exterior são efêmeras e enganosas. Da agnósia da primeira fase passamos, portanto, para a autognose do segundo momento do método: “Conhece-te a ti mesmo”, a famosa frase atribuída à pitonisa de Delfos como resposta à indagação sobre a essência da sabedoria, passa a ser o melhor legado que Sócrates nos deixou, pois sua dialética funciona como instrumento de reflexão sobre os problemas da existência humana. Ele nos ensinou que a sabedoria tem dúvidas, enquanto a ignorância tem certezas!

Platão (428-348) foi o mais famoso discípulo de Sócrates. De família aristocrática e de muita influência política na cidade de Atenas, começou a refletir sobre as falhas de um sistema de organização social que, apesar de democrático, tinha condenado a uma morte injusta o mais sábio dos homens. Em sua escola de cultura filosófica e política, chamada Academia por utilizar um ginásio de esportes, Platão foi expondo a doutrina de seu mestre, que imortalizou em seus Diálogos (Menon, Fédon, Banquete, Fedro, Crátilo, Eutidemo, Teeteto, Timeu, Sofista, República, entre outros), cujo personagem principal, na maioria dos escritos, é o próprio Sócrates.Mas, aos poucos, foi superando o pensamento do mestre, apresentando um sistema filosófico mais completo, centrado na Teoria das Ideias. Ele parte do postulado de que o

16

Page 17: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

mundo da realidade sensível tem como causa explicativa a existência de uma realidade transcendental, constituída pelas “ideias”, essências puras e absolutas, independentes dos objetos materiais e do intelecto humano. Assim, cada classe de realidades do mundo exterior (árvores, animais, cadeiras, etc.) teria como paradigma uma ideia transcendental. Os objetos materiais seriam apenas fantásmatas, imagens, cópias imperfeitas e transitórias das ideias invisíveis e eternas.

Para tornar possível o conhecimento do mundo das ideias, Platão admitiu outra hipótese, a da reminiscência: a alma humana, imortal e preexistente ao nascimento do corpo, teria contemplado as ideias antes de juntar-se ao corpo, considerado a prisão do espírito. Conhecer, portanto, é recordar o que a alma já sabia antes da incorporação. Metaforicamente, Platão tenta explicar as várias fases do conhecimento humano por meio da alegoria da caverna: o homem, que sai das trevas de um antro subterrâneo e passa por diversos graus de sombra e luz até chegar a olhar diretamente para o Sol, representa o caminho do saber que vai do conhecimento do mundo físico até o universo das ideias. Da doxa, conhecimento da esfera sensível, da opinião comum do mundo das aparências por meio da diánoia, o pensamento reflexivo, chega-se à nôesis, a evidência intelectual, a contemplação das ideias puras e absolutas.

Do ponto de vista psicológico, a alegoria da caverna e a doutrina da reminiscência poderiam ser entendidas como uma tentativa de explicação metafísica para a constatação natural de que nada se aprende pela primeira vez. A expressão “saber é recordar” evidencia uma profunda verdade existencial, pois todo conhecimento duradouro e frutífero só se obtém pelo amadurecimento do espírito. A experiência que nos vem do mundo exterior é armazenada em nossa mente e, aos poucos e inconscientemente, é burilada pela atividade intelectual ininterrupta de nossa mente, até tornar-se sangue de nosso sangue, adquirindo feições peculiares, de acordo com o tipo de personalidade de cada ser humano. Assim, depois de um longo processo de interiorização, o conhecimento está pronto para vir à luz, para ser transmitido aos outros.

Aí entra o papel do pedagogo, do professor, do orientador: ajudar os discípulos, primeiro, a armazenar conhecimento e, em seguida, a encontrar os meios adequados para que os conceitos adquiridos possam ser exteriorizados de modo correto e inteligível. Portanto, o método dialógico de ensino e aprendizagem, idealizado e praticado por Sócrates, e aperfeiçoado por Platão, em seu dúplice aspecto da ironia e da maiêutica, não é uma peça de museu intelectual: pode ser utilizado ainda hoje e com bons resultados se adaptado a nossa realidade. Sua maior virtude é o estímulo para a formação do hábito da reflexão, insuflando a dúvida sobre a verdade de nosso saber com o fim de podermos superar os automatismos mentais, o primeiro passo para o conhecimento científico.

Aristóteles (384-322), natural de Estagira, cidade de cultura grega, embora pertencente politicamente à Macedônia, foi o preceptor do filho do rei Felipe, Alexandre, que passará à história como Magno, o Grande. Quando seu pupilo ascendeu ao trono macedônico, em 336 a.C., e preparou a famosa e fatídica expedição para a conquista do Oriente, Aristóteles voltou a Atenas, onde já estudara durante sua juventude, como discípulo de Platão. Na capital da Ática abriu seu instituto, o Liceu, mais conhecido como a escola peripatética, porque seus discípulos aprendiam passeando pelos pórticos (o peripato).

O estagirita acabou criando um sistema filosófico diametralmente oposto ao de seu mestre Platão. Se este deu início ao filão da corrente idealista, aquele lançou as bases

17

Page 18: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

do pensamento realista ou materialista: os dois sistemas filosóficos – idealismo e materialismo – que disputarão a preferência dos pensadores ao longo da história da filosofia no Ocidente, alternando-se no poder da inteligência e dando origem a várias ramificações.

O pensamento aristotélico nega qualquer raciocínio por hipótese, todo postulado gratuito, especialmente a existência da transcendência. Para o estagirita, nada existe além da natureza observável. A mente humana é como uma “tábua rasa”, um papel em branco, onde serão impressas as sensações provenientes do mundo exterior. As ideias das coisas estão na própria realidade e são percebidas pela faculdade da abstração, que separa o geral do particular: a ideia de árvore é apenas um produto mental resultante da operação intelectual de separar o que é particular de cada árvore (cor das folhas, tipo de ramificação, formato da copa, etc.) do que é comum a todas elas (raízes, tronco e ramos).Além da distinção entre gênero e espécie, Aristóteles analisa outras categorias fundamentais do saber humano: a diferença entre substância e acidente, entre ato e potência, o princípio da causalidade, em que distingue quatro tipos de causa: a material (o mármore de uma estátua), a formal (estátua de um homem e não de um cavalo), a final (a intenção que moveu o artista), e a eficiente (o próprio agente, o artista). Sua cosmologia imagina o universo constituído de várias esferas (motores-móveis), acionadas por um motor-imóvel, um ato puro (“um pensamento que se pensa a si mesmo”), que poderia ser identificado com Deus. Além de filosofia, tratou dos assuntos mais diferentes (física, lógica, ética, poética, estética), deixando-nos uma copiosa obra escrita que influenciou a cultural medieval e renascentista, tanto que o poeta italiano Dante Alighieri, no grandioso poema didático-alegórico A Divina Comédia, denominou Aristóteles como “o pai dos que sabem”.

O método de ensino e de aprendizagem utilizado por Sócrates e Platão pode ser considerado dedutivo por estar baseado em alguns postulados admitidos aprioristicamente, sem nenhum fundamento lógico ou científico, tais como a existência de um mundo transcendental, onde estariam as ideias ou formas absolutas dos objetos materiais; a separação entre a alma (considerada imortal) e o corpo perecível, porque composto de partes que o tempo desagregará; a metempsicose, a crença na transmigração de uma alma por vários corpos em diferentes gerações. Aristóteles, diferentemente, utiliza o método indutivo, pois se serve do caminho inverso, indo da análise dos elementos particulares para chegar à formulação de princípios ou ideias gerais.

A distinção, porém entre os dois métodos – o indutivo e o dedutivo –, segundo nossa opinião, é puramente teórica, porque na prática da pesquisa científica, filosófica ou artística, os dois processos andam juntos. Usando a bela imagem do linguista Saussure para explicar os dois aspectos do signo – o significante e o significado – indução e dedução são como as duas faces da mesma folha de papel: realidades distintas, mas inseparáveis. De fato foi, de um lado, a observação de que o mundo exterior e material, o das aparências, nos leva a enganos, e, de outro lado, a constatação de que o homem, apesar de sua precariedade, é capaz de criar obras imortais, que induziram Platão a formular a premissa categórica da existência de outra realidade, a transcendental, em que os valores humanos da verdade, da beleza, da justiça, etc. pudessem sobreviver em formas absolutas e eternas, além da realidade sensível.

Na Idade Média, a cultura eclesiástica utilizou muito o método aristotélico, fundamentado sobre o silogismo, uma argumentação estritamente lógica pela qual, por

18

Page 19: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

meio de duas proposições, uma maior e outra menor, chamadas premissas, chega-se a uma dedução formal incontestável, denominada conclusão:

“Todos os homens são mortais. (premissa maior)Eu sou homem. (premissa menor)Logo, eu sou mortal.” (conclusão)

Evidentemente, a verdade da conclusão está diretamente relacionada com a verdade das premissas. Muitas vezes, porém, o argumento silogístico medieval, como o discurso sofístico dos filósofos pré-socráticos, era capcioso e podia induzir a enganos. Assim, por exemplo, a premissa maior de que todos os homens são bons (no sentido filosófico de “entes” com relação à não-existência) podia levar à falsa conclusão de que Fulano de Tal, por ser homem, seria necessariamente bom (do ponto de vista moral).Mais profícuo era o método dialético, de herança platônica, que, utilizando a técnica do diálogo, da discussão – a disputatio medieval –, desenvolvia processos mentais sob o signo da oposição: toda “tese” admitia uma “antítese” que levava a uma “síntese”; esta, por sua vez, podia constituir-se numa nova tese, que dava início a outro processo dialético. A partir do século XI, com o surgimento das primeiras universidades na Europa, voltadas primordialmente para o ensino da Filosofia e da Teologia, começou a carreira acadêmica que exigia a defesa de teses, como veremos melhor no capítulo dedicado à tipologia do trabalho intelectual.

Mas foi na Renascença que teve início a formulação do verdadeiro método científico de investigação, que se aperfeiçoou gradativamente pelo estímulo da Revolução Comercial e Industrial. As grandes navegações levaram ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia, do continente americano e de vários arquipélagos, deslocando o eixo do comércio do Mar Mediterrâneo para o Oceano Atlântico. Tais façanhas foram possíveis graças à invenção de importantes ferramentas, como a bússola, a cartografia, a tipografia, a máquina a vapor, a pólvora. O descobrimento de novas terras e gente diferente ampliou o horizonte do universo até então conhecido, estimulando a troca de mercadorias, a atividade industrial e a própria pesquisa científica. Faremos uma breve referência a filósofos e cientistas que mais contribuíram para o avanço do problema metodológico.

René Descartes (1596-1650), matemático e filósofo, é considerado o pai do racionalismo gnosiológico e um dos inventores do método moderno de investigação científica. O estudioso francês pretendeu encontrar o caminho para superar as incertezas de sua época, minada por uma corrente céptica e pessimista, encabeçada por Montaigne. Formulando a dúvida metódica, é levado a duvidar de tudo aquilo que não tem a mesma característica das noções da Matemática: a evidência, a clareza e a distinção. Rejeita, assim, as ideias “factícias” (as que se referem ao mundo exterior em contínua mudança) e as “fictícias” (as forjadas pela imaginação ou fantasia que variam conforme a vontade particular de cada sujeito), para considerar apenas as ideias “inatas”, que, como os conceitos da matemática, são axiomáticas, indiscutíveis, evidentes e estáveis, porque comuns a todos os homens: ninguém duvida que 2 + 2 é igual a 4 ou que um triângulo tenha três lados.

A primeira dessas certezas inabaláveis é a própria existência humana: “Se duvido, penso; se penso, existo.” O cogito ergo sum torna-se o parâmetro de qualquer

19

Page 20: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

conhecimento, distinguindo-se o ser pensante da coisa pensada, o sujeito do objeto, a alma do corpo, Deus criador (ser perfetíssimo) do mundo criado (seres contingentes). Assim, Descartes, reafirmando o poder convincente do princípio da causalidade, já explorado por Aristóteles, lança as bases da corrente racionalista que encontrará em Malebranche, Spinoza e Leibniz seus melhores cultores.

É importante notar que a clareza e a coerência perseguidas por Descartes no campo do conhecimento filosófico e científico não atingiram também a esfera ética. Convencido de que a moral é algo variável no tempo e no espaço, ele propõe uma ética “provisória”, do hic et nunc (do aqui e agora), que atenda às injunções de ordem política, social e religiosa. E ele próprio dá o maior exemplo do conformismo apregoado: ao saber da condenação de Galileu, deixa de publicar um trabalho científico no qual ele também sustentava a tese de movimento do planeta Terra. A verdade, sim, mas desde que ela não nos prejudique! Essa será a essência da moral burguesa, profundamente hipócrita, pela qual os valores humanos da verdade, da justiça, da lealdade, da liberdade, etc. são ideológicos e não reais, visto que são apenas impostos ou desejados, mas não realmente vividos.

O que é mais importante, porém, para os fins do presente texto, é verificar a conceituação e o procedimento do método cartesiano de pesquisa, exposto em sua obra mais famosa: Discurso sobre o Método para Bem Conduzir a Razão e Buscar a Verdade nas Ciências, mundialmente conhecido com o nome abreviado de Discurso do Método. Sintetizamos o que achamos mais importante nas seis partes em que a obra está dividida.Na 1.ª parte: as ciências e as artes até então praticadas não se preocupavam com a função essencial da inteligência que é distinguir o verdadeiro do falso; apenas a Matemática, pelo rigor de seu método, apresentava certezas absolutas, mas que não eram aplicadas à investigação da realidade. Na 2.ª parte, são apresentadas quatro normas fundamentais do método cartesiano: (a) estabelecer a dúvida metódica, não aceitando nada sem ter certeza absoluta; (b) usar o processo analítico para dividir qualquer problema em seus elementos mínimos; (c) agrupar os conhecimentos elementares obtidos em organismos complexos, efetuando assim a síntese; (d) estabelecer as relações entre as várias verdades particulares descobertas, chegando assim a uma comprovação da tese ou da teoria em questão.

A 3.ª parte é dedicada à formulação de uma “moral provisória”: enquanto não se alcançar a verdade absoluta, é preciso obedecer às normas sociais existentes e conviver com as opiniões mais moderadas. A 4.ª parte é a mais importante, pois é aí que está exposta a essência do método, de que já falamos: podemos duvidar de tudo, mas não do fato de duvidar, sendo a existência do pensamento a primeira certeza inata, pois imanente ao próprio ser humano. Na 5.ª parte, Descartes tenta aplicar seu método a pesquisas de física, especialmente à explicação da circulação do sangue, considerando o corpo humano, em seu funcionamento, semelhante a qualquer outro organismo. Na 6.ª parte, enfim, o filósofo francês explica por que não publicou antes alguns de seus trabalhos: o medo de provocar escândalos e sofrer penalidades, como aconteceu com o cientista italiano Galileu Galilei.

Como podemos verificar pelo resumo apresentado, Descartes retoma alguns pontos da investigação filosófico-científica já tratados pelos gregos: a tentativa pitagórica de matematizar o conhecimento e a realidade; a dúvida metódica implícita na ironia socrática; a existência de ideias inatas do idealismo platônico. Mas sua metodologia do trabalho intelectual é profundamente revolucionária com relação a seu passado próximo,

20

Page 21: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

à herança cultural de mais de um milênio de Idade Média, marcada pela crendice e pelo autoritarismo intelectual. O filósofo francês contesta bravamente qualquer forma de dogmatismo: acima do princípio da autoridade, quer religiosa quer laica, ele eleva o altar da razão: nada pode ser aceito cega e automaticamente; para tudo, até mesmo para admitir a existência de Deus, se exige uma explicação lógica. O caminho proposto foi o de recusar toda a crença sustentada apenas em escritos ou palavras, aceitando-se como verdadeiro somente aquilo sobre o qual não existisse dúvida. O adjetivo cartesiano passou a ser sinônimo de clareza, distinção, raciocínio incontestável. O racionalismo de Descartes tornou-se o fundamento intelectual da cultura europeia do Seiscentos e Setecentos, desaguando nos movimentos do Iluminismo e da Enciclopédia e fornecendo a base teórica do Idealismo alemão.

Francis Bacon (1561-1626), filósofo inglês contemporâneo do francês Descartes, é o outro pilar seiscentista da grande revolução operada no campo do pensamento reflexivo e da pesquisa científica, que fornece os fundamentos epistemológicos para uma nova teoria do conhecimento. Ele tem em comum com Descartes a luta contra o dogmatismo mental, ainda herança da cosmovisão medieval. Propõe, portanto, o livre exame da realidade física e psíquica em busca da verdade, sem as amarras de qualquer forma de preconceito, utilizando métodos de investigação objetivos que pudessem levar a resultados indiscutíveis, universalmente aceitos pela comunidade intelectual. A diferença está na não-aceitação das “ideias inatas”: Bacon, retomando o princípio aristotélico da “abstração”, afirma que as ideias se originam da experiência sensível, “nada havendo no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos”.

A mente humana é uma “tábua rasa” sobre a qual se imprimem os conceitos produzidos pelas sensações provenientes do mundo exterior. Se Descartes é o pai do racionalismo gnosiológico, Bacon é o fundador do empirismo científico, pelo qual a experiência sensível é a única fonte do conhecimento. Sua obra fundamental é o Novum Organum (Novo Órgão ou elementos de interpretação da natureza), publicado em 1620, como primeira parte de um trabalho maior: Instauratio Magna (A Grande Restauração), que não foi levado ao término. Organon é o nome de uma obra de Aristóteles sobre lógica, a ciência do pensamento enquanto indaga sobre a verdade. O texto baconiano inclui um prefácio e dois livros. Na introdução, o filósofo inglês critica quer os dogmáticos quer os cépticos, pois, para ele, é possível chegar a conhecimentos verdadeiros desde que se use um novo método de pesquisa, adequado à realidade objetiva. O ponto de partida é libertar-se dos preconceitos, que ele denomina ídolos, os quais dificultam a visão correta das leis da natureza.

Na primeira parte, ele expõe as quatro causas da estagnação filosófica e científica, que impedem o conhecimento da verdade e o progresso da ciência: (1) idola tribus, os enganos inerentes à própria espécie humana, composta de seres imperfeitos e contingentes; (2) idola specus, o engano do espelho, retomando a imagem da alegoria da caverna de Platão, próprio do ser individual que se deixa levar pelas aparências das coisas; (3) idola fori, o engano da linguagem, pelo uso da forma silogística e dos costumes sociais que não correspondem à verdade existencial; (4) idola theatri, o engano da fantasia, da imaginação, das escolas filosóficas e teológicas, da autoridade dos antigos. A lição mais profunda que se pode aprender da leitura do primeiro livro é que é preciso descobrir, estudar e seguir as leis imutáveis da realidade física, pois “a única forma de dominar a natureza é obedecer-lhe”.

21

Page 22: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

No segundo livro do Novum Organum, Bacon apresenta o funcionamento do novo método de pesquisa, baseado na indução: é preciso reunir todos os fatos nos quais um fenômeno se apresenta numa “tábua” ou mesa de presença e todos os fatos nos quais o fenômeno não aparece em outra mesa, a tábua da ausência, pelo critério analítico da eliminação. Numa terceira mesa, na tábua dos graus, são catalogadas as variações de intensidade dos fenômenos. Tal procedimento analítico nos dá um resultado apenas provisório, que deve ser submetido à experimentação, porque novos fatos podem induzir a conclusões diferentes. Em síntese, o método da pesquisa científica baseado na indução experimental, assim como formalizado por Bacon, apresenta as seguintes fases:

1) Observação do fenômeno;2) Análise de seus elementos constitutivos, estabelecendo relações quantitativas e

qualitativas entre eles;3) Indução de hipóteses;4) Verificação das hipóteses por meio do experimento;5) Generalização do resultado formulando uma lei, se as hipóteses forem confirmadas.

Bacon expõe os princípios teóricos do método indutivo ou analítico, centrado na observação seguida da comprovação, largamente utilizado, na prática, pelos melhores cientistas de sua época: Galileu, Copérnico, Leonardo da Vinci, Newton. Deste último, já se tornou lendário o procedimento que o levou ao descobrimento da lei da gravitação universal e da atração terrestre: narra-se que, observando a queda do fruto da macieira, teria se perguntado por que a maçã cai em lugar de subir ou ficar parada no espaço. Realizou, em seguida, uma série de experiências, jogando objetos de diferentes pesos de várias alturas, chegando à confirmação da tese de que os corpos físicos mais densos caíam mais rapidamente ao solo por vencerem com maior facilidade o atrito do ar atmosférico.

O método baconiano tornou-se universal e absoluto em sua aplicação nas ciências naturais, indicando o caminho da verdade: a indução passou a suplantar o silogismo, o raciocínio substituiu a crença, a experimentação afugentou o princípio da autoridade divina ou humana. Este é o aspecto mais profícuo do Renascimento, que consagra a passagem da era medieval para a Idade Moderna. Apesar da oposição sistemática da Igreja Católica, absurdamente fechada em seu dogmatismo tradicional e cega a qualquer nova descoberta da ciência, o método de pesquisa, idealizado por Descartes, formalizado por Bacon e praticado pelos estudiosos das ciências exatas e biológicas, avançou ao longo de mais de dois séculos. Chegou ao apogeu na segunda metade do século XIX com o Positivismo, o Determinismo e o Evolucionismo, aspectos particulares do movimento geral do Materialismo, cuja missão principal era a luta contra o clericalismo retrógrado, propondo uma cultura laica, completamente desvinculada de qualquer forma de religiosidade.

Mas o triunfo do cientificismo não teve vida longa. Como já vimos, a crença de que a ciência, descobrindo as causas dos fenômenos naturais, os fatores genéticos e as condições econômicas, pudesse resolver todos os problemas existenciais não deixou de ser apenas um mito a mais. Além dos inegáveis benefícios, a Revolução Industrial não deixou de ter algumas consequências desastrosas: apontamos apenas o aumento dos bolsões de miséria nas cidades pelo êxodo do campo. O progresso científico não impediu

22

Page 23: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

a ocorrência de catástrofes causadas pela estupidez humana, tais como as duas Guerras Mundiais, as explosões da bomba atômica no Japão, a Guerra do Vietnã, as lutas religiosas na Irlanda do Norte e no Oriente Médio, o genocídio de judeus, a miséria absoluta em que vivem países subdesenvolvidos da África, da Ásia, da América Latina.

A crise das ciências exatas, que se achavam detentoras da certeza e da verdade, foi consequência de várias tendências do pensamento reflexivo do início do século XX: o intuicionismo, de Bérgson; o existencialismo, de Kierkegaard, Heidegger e Sartre; a psicanálise, de Freud e Jung; a Teoria da Relatividade, de Einstein; a fenomenologia, de Husserl; o comunismo, de Marx e de Lenin; a psicologia, de Piaget; a percepção da totalidade do gestaltismo; a superação do conceito de personalidade única, da univocidade da verdade e do absolutismo da certeza, expressa artisticamente pela poesia heterônima de Fernando Pessoa e pelo teatro de Pirandello, em que a personagem de ficção, à semelhança da pessoa do mundo real, é apresentada como ser plurifacetado, sem coerência de caráter.

Todo esse complexo ideológico põe em crise o método de investigação científica que já se tornara tradicional. Em primeiro lugar, nega-se a validade de um método único para qualquer tipo de pesquisa, admitindo-se uma primeira grande divisão entre o sistema epistemológico das ciências exatas e biológicas, com relação à metodologia aplicável ao estudo das ciências humanas. Para o primeiro tipo de conhecimento, o chamado método científico no sentido estrito, com base na indução com seus dois momentos da observação e da comprovação, é muito eficiente; mas, para o conhecimento das humanidades (Filosofia, Letras, Artes Plásticas, Teatro, Cinema, Psicologia, Sociologia, Direito), funciona melhor o método dialético, mais apto a apresentar a discussão das ideias, a análise de sentimentos opostos, o questionamento das convenções ético-sociais.

O modelo matemático é, por sua natureza, demonstrativo e indiscutível, tendo como caráter peculiar a clareza, a certeza, a imutabilidade; já o modelo da linguagem natural, que dá formas às artes, à sociologia, à jurisprudência, não tem uma cadeia de razões indefectíveis, vivendo um contínuo processo de disputa, estando as ideias sempre em litígio. Se a verdade científica é unívoca e a verdade humana é poliédrica, nada mais justo que haja uma diferenciação metodológica para o conhecimento desses dois macrocosmos.

Ultimamente, porém, a própria certeza do modelo matemático do saber entrou em crise. Como acenamos, ao tratarmos do conhecimento científico, não existem valores completa e eternamente absolutos. Além disso, é preciso refletir sobre o fato de que o discurso científico não pode ser inteiramente separado do discurso político, social, ético, artístico, pois o homem que faz ciência não pode alienar-se dos valores da comunidade onde vive. Um moderno estudioso da metodologia científica, Karl Raimund Popper, ao romper com o positivismo lógico da escola de Viena, afirma que o estudo da cosmologia não pode ser dissociado do problema fundamental do homem: entender o mundo em que vivemos implica o conhecimento de nós mesmos e de nossos vizinhos!

A conclusão a que podemos chegar, após essa breve exposição do pensamento dos principais estudiosos da Teoria do Conhecimento, não deixa de ser uma corroboração do óbvio: não existe um método único aplicável a qualquer tipo de pesquisa. Além do discurso das ciências, há o discurso das artes, da filosofia, da crítica, cada qual exigindo um caminho próprio a ser percorrido. Mas existe também algo em comum que deve amalgamar todas essas linguagens, distinguindo a atividade verdadeiramente intelectual

23

Page 24: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

do charlatanismo: a seriedade da pesquisa, a busca da verdade, a honestidade profissional, a coerência metodológica, a indignação perante a mentira, a injustiça, a tirania, o estímulo à reflexão sobre a vida na natureza e em sociedade com a intenção de melhorar o convívio entre os homens. Gostaríamos de finalizar este capítulo lembrando um pensamento de Einstein:

“A única finalidade da educação deve consistir em preparar indivíduosque pensem e ajam como indivíduos – independentes e livres.”

Cap. III - O Processo de Elaboração de uma Pesquisa

Conceituação do Trabalho Científico

Um texto escrito, independentemente do assunto, do tipo ou do tamanho, para poder ser considerado um trabalho científico deve apresentar certas peculiaridades. No dizer de um estudioso da metodologia da pesquisa (Severino, 18, p. 78),

“todo trabalho científico, seja ele uma tese, um texto didático, um artigo, uma resenha, tem que ter uma construção lógica, tornando-se uma totalidade de inteligibilidade, estruturalmente orgânica, formando uma unidade autônoma, inteligível para qualquer leitor que não tenha participado da sua elaboração”.

Refletindo um pouco sobre tal conceituação, percebemos que uma das qualidades essenciais de um trabalho de pesquisa é a coerência interna de sua feitura: qualquer texto científico tem que ter um começo, um meio e um fim, quer dizer uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão, as três partes que tornam o trabalho homogêneo e lhe conferem uma unidade autônoma, permitindo que possa ser lido e entendido em si e por si sem pressupor conhecimentos específicos sobre o assunto. A consequência dessa estruturação lógica é a sua inteligibilidade: todo leitor medianamente informado acerca do tema deve perceber a proposta do trabalho, a metodologia empregada e os resultados alcançados.

Podemos apontar outras características do trabalho científico: conter uma problemática, pois qualquer pesquisa relevante não parte de premissas indiscutíveis, navegando na dúvida, encontrando dificuldades e controvérsias no árduo caminho da busca da verdade; revelar uma experiência crítica: independentemente do tema tratado e do resultado obtido, um trabalho de pesquisa funciona como treinamento para ordenar dados e se acostumar a refletir sobre eles; apresentar alguma novidade: o pesquisador responsável nunca escreve apenas pelo prazer de escrever ou por obrigação profissional, arriscando “chover no molhado”. Qualquer trabalho intelectual deve ser uma contribuição, por menor que seja, para o progresso da ciência e em benefício da coletividade. Pesquisar não é repetir, transcrever ou parafrasear o que os outros já disseram sobre o assunto, mas, utilizando a tradição cultural já existente, acrescentar algo de novo que aprofunde ou esclareça o tema em pauta. Enfim, o aspecto mais importante do trabalho científico é seu processo terapêutico: a busca da verdade, independentemente dos resultados, já é um fator de enriquecimento espiritual e de satisfação pessoal! Apresentamos, a seguir, as várias etapas da elaboração de um trabalho de pesquisa:

24

Page 25: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

1 a Etapa: “O que fazer?” -- Escolha do tema e do orientador: esboço de um plano provisório

Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre o trabalho imposto e a pesquisa livremente escolhida. No primeiro caso, a opção é bem limitada, pois tem que obedecer às ordens de um mandante que estabelece padrões de composição. Se, por exemplo, o professor do 3o colegial manda Maria analisar um conto de Machado de Assis ou exige da classe um trabalho de aproveitamento sobre a matéria dada, é evidente que os alunos não têm escolha. Gostem ou não do autor, da obra ou da disciplina, são obrigados a fazer os trabalhos de casa, seguindo as orientações do mestre. Da mesma forma, um representante farmacêutico é obrigado, diária, semanal ou mensalmente, a apresentar o relatório sobre as atividades desenvolvidas, dizendo como e quando entrevistou médicos e donos de farmácias, relacionando as observações recebidas sobre a aceitação dos produtos. Para isso, ele deve ter recebido treinamento específico do supervisor de vendas. Nesses e noutros casos semelhantes, trata-se apenas de “cumprir tarefas”.O fato de ser um trabalho imposto, porém, não impede que seja bom e que possa ser considerado científico e merecer sua publicação numa revista especializada, se possuir as características enumeradas acima. Pensamos particularmente nos trabalhos em equipe, em que a vontade individual está a serviço de um projeto comum ou na participação em revistas temáticas, em dicionários ou enciclopédias. O trabalho por encomenda pode, ele também, ter um relevante valor científico ou artístico. Diz-se que o poeta latino Virgílio teria escrito o poema épico A Eneida atendendo a uma ordem de Otávio Augusto, que queria que fossem exaltadas em versos líricos as origens gloriosas do Império Romano: dessa encomenda surgiu uma das mais belas epopeias que o gênio humano soube criar!

Diferente é o trabalho de livre escolha, quando a pesquisa é feita não por imposição, mas por iniciativa própria. Aí se manifesta em toda sua plenitude a vocação do pesquisador para o trabalho intelectual, o desejo de entregar-se numa comunidade cultural para contribuir, mediante os frutos de suas pesquisas, no avanço das ciências exatas, biológicas ou humanas. Mas, por não haver um tema marcado, surge a grande dificuldade, especialmente do pesquisador principiante, em não saber o que fazer, nem por onde começar. A dúvida é muito vasta, pois não sabe decidir-se por um trabalho histórico ou teórico; se escolhe um autor antigo ou contemporâneo, nacional ou estrangeiro; se parte para a análise de textos ou estuda gêneros ou movimentos; se dá ao trabalho um caráter filológico ou filosófico, quer dizer, se vai privilegiar o significante ou o significado; se se dará melhor com o estudo de um único autor ou vai dedicar-se a um trabalho comparativo. Enfim, a escolha do tema exige sempre um estudo exploratório muito sério, pois dela depende, em grande parte, o sucesso do trabalho.

É por isso que, para a matrícula num curso de pós-graduação de mestrado ou doutorado, todas as universidades credenciadas pelo governo exigem a aceitação do candidato por um orientador, docente titulado e experimentado, a quem caberá julgar se o tema escolhido pelo orientando é factível e útil. Para tanto, o orientador terá que examinar os seguintes fatores:

1. Verificar se aquilo que Salomon (17, p. 198) chama de “marco teórico de referência” está ao alcance do orientando, quer dizer, ter certeza de que o pesquisador novato conhece, pelo menos razoavelmente, o contexto cultural em que deverá inserir-se o tema a ser tratado. E isso porque nenhum novo conhecimento surge do zero. Existe,

25

Page 26: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

conforme outra expressão do estudioso citado (ibidem), um “trânsito dialético”: todo saber implica um conhecimento anterior suscetível de superar-se e criar então um novo saber. Nenhum trabalho em profundidade é possível sem antes ter-se feito a terraplenagem da superfície. O conhecimento genérico é a conditio sine qua non para qualquer conhecimento especializado. Darwin pôde estudar as origens das espécies porque já existia a classificação genérica feita por Linneu!

2. Ter certeza de que as fontes de consulta e o quadro metodológico da pesquisa estejam ao alcance do candidato. Quer dizer, o material deve ser acessível, manejável e utilizado com um método bem definido, apto para a realização daquele trabalho específico. Neste item, é oportuno verificar o conhecimento de línguas estrangeiras como apoio bibliográfico. Evidentemente, o candidato a pesquisador que domine apenas a língua materna encontrará dificuldades no desenvolvimento de qualquer trabalho científico, pois livros específicos ou artigos em revistas especializadas nem sempre se encontram traduzidos para o português. Além disso, confiar em traduções é sempre perigoso, pois os significados, ao serem transcodificados para significantes diferentes, podem apresentar distorções que alteram o sentido do texto original. Vale lembrar a máxima italiana: “traduttore, traditore” (todo o tradutor é um traidor). Entretanto, também não é preciso cair no excesso oposto de excluirmos do horizonte qualquer possibilidade de trabalho intelectual sobre autores cuja língua desconhecemos. O fato de não saber grego ou russo não deve impedir o acesso ao conhecimento de textos fundamentais da Literatura Ocidental. Usando-se boas traduções é possível, por exemplo, fazer uma boa leitura temática de A Ilíada, de Homero, ou de Crime e Castigo, de Dostoievski.

3. Julgar se vale a pena explorar determinado tema. Um trabalho sério de pesquisa implica sempre um grande investimento: além do enorme desgaste da atividade intelectual do pesquisador e de seu orientador, há gastos com a compra do material necessário (livros, revistas especializadas, aparelhagens), com viagens às vezes até o exterior, com bolsas de estudo financiadas por entidades públicas ou fundações particulares, com afastamento remunerado de docentes. Ora, se não houver um retorno cultural satisfatório, o prejuízo público ou privado será irreparável. Por isso, na escolha do tema é preciso muito cuidado, tentando evitar os dois extremos: a banalidade e a excentricidade. O assunto a ser tratado não pode visar a um resultado óbvio, que não acrescente nada de interessante na área de conhecimento escolhida; de outro lado, de modo geral, não deveria ser excessivamente técnico, hermético, inteligível apenas para alguns especialistas ou apresentar algo que interesse somente a amantes de curiosidades.

O fruto de longos meses ou anos de um trabalho intelectual deve ir ao encontro das necessidades culturais de uma vasta camada, contribuindo para a melhor compreensão de problemas existenciais, sociais, cívicos, humanos, enfim. Os benefícios de uma pesquisa bem realizada devem aparecer não somente nas áreas das ciências biológicas ou exatas, em que os resultados são mais práticos e palpáveis, mas também no campo das ciências humanas. Um bom trabalho de Sociologia ou de Psicologia, assim como a análise correta e a interpretação convincente de um texto literário, de uma obra de arte plástica, de um filme ou de uma peça teatral são contribuições relevantes para o conhecimento da realidade em que vivemos e um estímulo para melhorar nosso comportamento social.

26

Page 27: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

4. Fazer a dosagem dos tópicos do tema, tendo em vista o tempo disponível. Quanto menor for o prazo atribuído ao orientando, mais restrita deve ser a área de abrangência do tema. Umberto Eco (8, p. 14) acha que para fazer um trabalho de tese é preciso “não mais de três anos e não menos de seis meses”. Ele se refere à tese exigida pelas universidades italianas para a conclusão do curso de graduação. Realmente, com um período de tempo inferior a um semestre, é difícil realizar um trabalho científico sério, uma monografia de certo fôlego, porque, além do tempo cronológico indispensável para a busca do material, sua sistematização, a redação final e a preparação do aparato bibliográfico, necessita-se de um tempo psicológico para que o tema e seus tópicos amadureçam no espírito do pesquisador. Se, como vimos, segundo Platão, o saber é um recordar, pois ninguém aprende pela primeira vez, é preciso voltar constantemente ao assunto a ser tratado, refletir profundamente sobre as opiniões colhidas, formar seu ponto de vista a respeito do tema e expressá-lo com um estilo próprio. Pesquisar não é fazer colagem, transcrição ou paráfrase de textos críticos sobre determinado assunto de forma quase automática, mas amadurecimento intelectual, reflexão profunda, exercício constante de uma redação própria que confira ao pesquisador um estilo peculiar de expressão e um modo próprio de pensar.

De outro lado, o mesmo assunto estudado por mais de três anos torna o tema cansativo, enfadonho, correndo o risco de passar a sofrer da chamada “neurose de tese”. Isso ocorre ou porque escolhemos um tema errado, maior do que nossa capacidade, ou por falha de orientação ou por sermos acometidos da doença do perfeccionismo: queremos esgotar toda a bibliografia existente sobre o assunto, não importa em que lugar ou em que idioma, tendo a pretensão de realizar um trabalho definitivo, inquestionável. A experiência e a humildade nos ensinam que todo trabalho é sempre relativo e provisório, susceptível de ser retomado posteriormente, pois a atividade científica implica avanço constante e qualquer tema nunca poderá ser esgotado de forma absoluta, visto que a perfeição é um alvo intangível. Lembramos o ditado popular:

“O ótimo é o pior inimigo do bom.”O papel do orientador, porém, não se limita apenas a ajudar na escolha do tema: sua função é acompanhar seu pupilo também nas outras etapas da pesquisa, que veremos a seguir. Sem dúvida, para que a orientação seja eficiente e produtiva, são necessários encontros constantes e periódicos para dirimir dúvidas acerca do trabalho. Isso só será possível se se estabelecer uma relação “simpatética” entre o orientador e orientando. É o respeito e a admiração mútua que tornam agradáveis os contatos. Se não se estabelecer um clima de estima e de afeição, as sessões de orientação tornar-se-ão fadigosas e desestimulantes. Enfim, nada se consegue a frio, porque na vida tudo é um ato de amor, um dar e um receber.

Geralmente, um trabalho de pesquisa de largo fôlego acaba constituindo um triângulo amoroso, uma comunhão espiritual entre três personalidades: a do pesquisador, a do orientador e a do autor escolhido. Exemplificando: estudar a obra literária de Machado de Assis exige que o orientador e o orientando gostem das coordenadas estéticas e dos conteúdos ideológicos do grande escritor carioca, e que haja certas afinidades de caráter que tornem agradável o convívio entre mestre e aluno. E isso porque, na maioria das vezes, o discípulo aprende mais pelas longas conversas que tem com seu orientador do que com a leitura de livros. Lembramos que o diálogo entre mestre e alunos era a forma pedagógica mais desenvolvida na Grécia antiga. As escolas, nada

27

Page 28: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

convencionais e frequentadas pela elite, eram denominadas pelo lugar onde ocorria o convívio: a Academia (ginásio de esportes), de Platão; o Peripato (os pórticos), de Aristóteles; o Jardim, de Epicuro. As aulas eram ministradas na forma dialógica de perguntas e respostas entre o sábio e seus seguidores, durante as atividades corriqueiras da vida: banquetes, passeios públicos, banhos coletivos. E porque as mulheres eram excluídas da vida social, confinadas ao gineceu, o convívio assíduo apenas entre homens podia levar à pederastia. Transcrevemos um trecho de um livro clássico sobre o assunto, História da Educação na Antiguidade, de H. Marrou, (38, p. 59):

“Para o homem grego, a educação (paideia) residia essencialmente nas relações profundas e estreitas que uniam pessoalmente um espírito jovem a um mais velho – que era, ao mesmo tempo, seu modelo, seu guia e seu iniciador – relações essas que uma chama passional iluminava com um turvo e cálido revérbero.”

Evidentemente, para nós, educados na civilização cristã, causa estranhamento, para não dizer espanto, tal tipo de relação entre mestre e discípulos. É preciso, porém, considerar que a Grécia clássica cultivou uma moral aberta, em que ainda não existia o conceito pecado. Uma relação hetero ou homossexual era considerada como algo natural, sem nenhuma implicação de ordem ética. O contato físico de dois corpos, entre os quais existisse atração mútua, podia causar uma troca de energias positivas, uma transmissão de sabedoria quase por osmose, além de ser uma fonte de prazer. Mas aqueles eram outros tempos, quando o ser humano ainda gozava do direito à felicidade, aos prazeres da vida, podendo exercer sua liberdade individual sem medo de ser castigado pela sociedade, nem de ser condenado às penas do inferno!

Voltando ao papel do orientador de hoje, após a escolha do tema, ele deve ajudar o aprendiz na formulação de um Plano Provisório das atividades da pesquisa. Chamamos este plano de provisório porque ele vai ser alterado, quase inevitavelmente, ao longo do avanço do trabalho intelectual. Ele serve para quebrar um círculo vicioso: o pesquisador não saberia que material procurar, se não tivesse um plano preestabelecido e, de outro lado, não poderia definir os tópicos do plano que pretende desenvolver antes de ter todo o material a sua disposição. Portanto, à medida que a busca vai apresentando novos elementos, o plano inicial necessitará ser modificado, eliminando uns tópicos, acrescentando outros, diminuindo ou aumentando capítulos. Enfim, a discussão sobre o trabalho científico deve produzir o que Salomon (17, p. 18) chama de “diálogo criador” entre professor e aluno, funcionando o orientador como interlocutor crítico. As relações entre mestre e discípulo devem sempre visar ao alcance de dois objetivos fundamentais: a busca da verdade e o exercício da liberdade. Se, de um lado, o orientador não pode ser um carrasco, impondo tema e metodologia em desacordo com as aspirações do mestrando ou doutorando, de outro lado, não pode ser tão liberal a ponto de aceitar orientar qualquer tipo de trabalho sem alertar sobre sua exequibilidade e utilidade.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é que o processo de aprendizagem não se limita apenas às relações entre orientador e orientando. O discente, especialmente se estiver engajado num curso de mestrado ou doutorado, receberá auxílios valiosos dos outros docentes de disciplinas da área de concentração escolhida e das de domínio conexo, do convívio com os colegas e professores do campus universitário, dos encontros em reuniões acadêmicas e científicas. No dizer de Severino (18, p. 122), “a pós-

28

Page 29: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

graduação, mais que um conjunto de cursos, deveria constituir-se num espaço em que se desdobrasse um constante debate de ideias, de troca de conhecimentos, de reflexão, de estudo, de leitura e de discussão”.

2 a Etapa: “Com o que fazer?” -- Busca do material: planejamento operacional

Uma vez acordado o tema da pesquisa entre orientador e orientando e traçado um plano provisório de trabalho, começa a segunda fase, que consiste na busca dos instrumentos necessários. O material a ser procurado e estudado, evidentemente, varia conforme a natureza do trabalho científico. Para as ciências humanas, em geral, as fontes principais são bibliográficas. A documentação pode provir de fontes de primeira mão (manuscritos, fac-símiles, edições originais ou críticas, entrevistas com autores, pesquisas de campo) ou de segunda mão (traduções, comentários de textos, antologias, dicionários, enciclopédias, histórias literárias ou artísticas, artigos de revistas, anotações de aulas ou palestras, consulta a sites de busca na Internet).

As bibliotecas públicas e privadas são os lugares mais frequentados por pesquisadores. As melhores já têm catálogos computadorizados, também com a possibilidade de consultas interbibliotecas, localizando o material desejado édito ou inédito (bancos de tese) em qualquer parte do Brasil ou até do exterior. A conexão com a internet pode propiciar uma ajuda relevante. Outros meios de coleta de informações são as buscas em livrarias, a participação em congressos científicos, as viagens aos lugares onde o tema a ser desenvolvido teve seu centro de irradiação. Chegamos, assim, à chamada pesquisa de campo, auxiliada pelos princípios da estatística, fundamental para alguns tipos de trabalho científico.

Nesta segunda fase, que poderia ser denominada heurística pela predominância da técnica da busca da documentação, o pesquisador deve alcançar o que, como vimos na etapa anterior, Salomon chama de “marco teórico da referência”, o contexto cultural da tese a ser desenvolvida. Como afirma outro estudioso de metodologia já citado, Severino (18, p. 32), “o homem é um ser culturalmente situado”. Qualquer estudante universitário, que queira não apenas obter um diploma, mas dedicar-se integralmente ao árduo trabalho do ensino e da pesquisa, deve procurar adquirir uma informação completa sobre a área específica de sua atuação e um conhecimento razoável das áreas afins, além de uma boa cultura geral. Evidentemente, tal saber não se adquire em pouco tempo, sendo o resultado de uma soma de informações armazenadas no espírito ao longo de muitos anos. A garantia do sucesso de um pesquisador é sua base cultural formada nos bancos escolares de bons ginásios, colégios e faculdades. Evidentemente, falhas de formação existem, mas podem e devem ser superadas. Aí é de fundamental importância o papel do orientador que deve exigir leituras complementares e a frequência de cursos de bom nível para suprir as deficiências culturais de seu pupilo, antes de iniciar o trabalho em profundidade de uma monografia.

A verdade é que o processo de aprendizagem procede do geral para o particular. Primeiro, é necessário consultar as obras de assuntos genéricos e depois, gradativamente, passar para a leitura de trabalhos específicos sobre o tema. Assim, por exemplo, no caso de estudos literários, se alguém quisesse fazer uma pesquisa científica sobre obras do escritor português Eça de Queirós, o procedimento deveria ser o seguinte: consultar, de início, enciclopédias, dicionários e histórias da Literatura Portuguesa que tratam do

29

Page 30: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

movimento realista e de seus pressupostos ideológicos (positivismo, determinismo, evolucionismo); a seguir, as obras do e sobre o autor; depois, tratados teóricos sobre análise e interpretação de textos, no caso, sobre teoria da narrativa, para conhecer em profundidade os elementos constitutivos do texto em prosa. Munido de toda essa bagagem de conhecimentos externos e internos da obra de arte literária, ele estará em condições de enfrentar o tema específico escolhido.

O grande problema do pesquisador, porém, reside no modo de armazenar o material coletado, que será usado mais tarde na redação do trabalho. Não podendo confiar na memória, ele deve ter o registro de tudo o que leu, ouviu, descobriu. Para tanto, faz-se necessário o uso de fichários. Pela nossa experiência pessoal, aconselhamos utilizar três tipos de fichas, que podem distinguir-se por cores ou tamanhos:

1. Fichário bibliográfico: é um arquivo onde devem ser guardadas as indicações exatas e completas das fontes a serem utilizadas na elaboração do trabalho científico. Trata-se do registro bibliográfico de livros, artigos de revistas, verbetes de dicionários, anotações de aulas, de participação em congressos, de monografias inéditas, etc. Este fichário é indispensável para compor a listagem em ordem alfabética da bibliografia geral, que será colocada no final do trabalho, conforme os ditames da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que analisaremos mais adiante. Cada trabalho encontrado sobre o assunto a ser estudado deve constar desse fichário bibliográfico com várias informações úteis: além da citação propriamente dita (nome do autor, da obra e do tradutor, local e data de publicação), deve conter a indicação de seu paradeiro: se já está em posse do pesquisador, se se encontra em tal biblioteca (registrar o número de “chamada”), se pertence ao orientador ou a outro docente, colega ou amigo, se pode ser encontrado em livrarias ou procurado em sebo, caso a edição esteja esgotada; se já foi lido no todo ou em parte ou se ainda não foi consultado. Esse fichamento é indispensável por vários motivos: além de servir para a composição da bibliografia final, registra as obras que ainda não foram consultadas e facilita a localização de livros, artigos e outro material já lido, mas a que, às vezes, é preciso voltar no decorrer da redação final do trabalho.

2. Fichário de leituras: deste segundo tipo de ficha deve constar o resumo de todas as obras lidas. Cada trabalho consultado deve ter uma ficha própria, em que conste o sumário do assunto. Aí podem ser feitas observações sobre os capítulos ou as passagens que interessam mais de perto ao tema da tese. Lembramos que cada obra, quer de ficção, quer de crítica, pode ser submetida a várias fases de leitura: lúdica, analítica, seletiva, interpretativa. Entretanto, a experiência nos ensina que, na maioria das vezes, falta o tempo necessário para ler várias vezes a mesma obra, por mais interessante que seja. Por isso, a prudência aconselha a registrar o máximo das informações necessárias desde a primeira leitura.

3. Fichário temático: são as fichas mais importantes e mais difíceis de serem compiladas. O tema de uma monografia vem dividido em vários tópicos ou motivos recorrentes. No plano provisório do trabalho científico, deve constar o elenco dos tópicos a serem investigados, como se fosse uma espécie de ementa de uma disciplina. Cada um desses subtemas precisa ter uma ficha própria ou mais fichas numeradas, em que deverão ser anotadas todas as referências encontradas ao longo das múltiplas leituras. Por exemplo, se alguém quisesse fazer uma monografia sobre “a concepção do amor na

30

Page 31: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

poesia de Cecília Meireles”, o fichamento temático deveria ser organizado de forma que abrangesse todos os aspectos do tratamento do amor encontráveis na totalidade dos poemas que tratam do amor idealizado, outra do amor carnal, outra do ciúme, outra do sentimento de abandono, etc. Outras fichas poderiam registrar as figuras de estilo de que a poetisa se utiliza para o tratamento do tema: metáforas, sinédoques, imagens espaciais ou temporais, etc. Evidentemente, ao longo da pesquisa, os tópicos inicialmente previstos podem sofrer alterações e ser ampliados, restringidos, substituídos, na dependência do material encontrado. É fundamental que os apontamentos colhidos venham sempre acompanhados, nas fichas, de sua localização precisa. Quer as transcrições diretas (trechos colocados entre aspas), quer as citações indiretas (trechos parafraseados), devem conter a indicação do nome da obra (que pode ser abreviado) e do número da página. Isso para não ter problema de citação, caso a passagem seja utilizada na redação final do trabalho.

Para economizar tempo, aconselhamos a fazer a operação com os três tipos de fichários concomitantemente. Assim, ao entrarmos em contato com um texto, seja ele de fonte primária ou secundária, em primeiro lugar devemos registrar no fichário bibliográfico a indicação exata de todos os elementos exigidos pela ABNT e sua localização. Depois, no fichário de leitura, colocaremos o sumário da obra e algumas observações eventuais. Enfim, no decorrer da leitura do texto, registraremos nas fichas temáticas as passagens que consideramos pertinentes ao assunto em estudo. As anotações no fichário temático devem ser exatas, pois muitas delas poderão ser utilizadas na redação do trabalho ou sob forma de citação direta, colocando entre aspas frases ou períodos de autores ou críticos, ou usando-se o discurso indireto, reproduzindo apenas ideias ou doutrinas. Em ambos os casos, é preciso sempre ter o registro correto da fonte, incluindo o número da página.

Ao falarmos em fichas, referimo-nos a um tipo de papel cartolina, de vários tamanhos e de diferentes cores, guardadas em gavetas apropriadas e dispostas em ordem alfabética. Embora tradicional, evidentemente esse não é o único meio de coleta e armazenagem do material de uma pesquisa. Hoje, com o espantoso progresso da informática, o sistema de fichas de papel vem sendo substituído por arquivos em microcomputadores. Esse avanço tecnológico oferece muitas vantagens, especialmente para quem domina bem o mecanismo da computação. Com a prática, cada pesquisador, dependendo do tipo de trabalho e da sua competência no manuseio de modernos recursos eletrônicos, encontrará o meio mais eficiente para levar a bom termo sua tarefa de coletar e ordenar o material.

3 a Etapa: “Como fazer?” -- Seleção e organização do material coletado: plano definitivo

Uma vez em posse de um material suficiente para o desenvolvimento do tema central do trabalho científico, passa-se para a fase principal e mais difícil, que é a seleção do material e sua divisão em tópicos. A nosso ver, não é indispensável esgotar toda a bibliografia sobre o assunto. Se se esperar para ler mais um artigo publicado em revista alemã ou conseguir a tradução de mais um livro editado no exterior e numa língua não familiar ao pesquisador, a redação de uma monografia nunca será iniciada. É bom convencer-se de que sempre faltará algo mais, evitando assim a mania do perfeccionismo

31

Page 32: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

e tendo consciência de que qualquer trabalho, por melhor que seja, será sempre imperfeito e provisório, podendo ser retomado posteriormente. Por isso, devemos contentar-nos em trabalhar com o material que estiver ao nosso alcance, antes que o cansaço da busca nos leve ao desânimo.

A feitura de qualquer monografia se reduz fatalmente à estruturação de três partes fundamentais: a introdução, o desenvolvimento e a conclusão, que seguem aproximadamente o processo dialético da tese, antítese e síntese. Quer dizer, coloca-se o tema, problema ou hipótese de trabalho; analisam-se argumentos e opiniões pró ou contra; conclui-se tentando uma síntese das razões opostas. Todo trabalho intelectual sério, bem-feito, implica a superação das contradições existentes sobre a questão proposta: o estudo do passado, do que já foi dito sobre o assunto, é indispensável para o aprofundamento do tema com o fim de acender novas luzes. Como salienta Salomon (17, p. 238), neste retorno, o passado reencontrado não é repetido, mas modificado, superado, pois o mito do “eterno retorno” é apenas uma ilusão metafísica: a lei da natureza, do pensamento e da arte está centrada no modo espiral e não do círculo, no enrolamento e não na simples volta. O material recolhido no fichamento temático deve ser analisado, selecionado e estudado com olhos postos na elaboração das três partes relacionadas. É preciso separar as fichas que tratam da introdução e da conclusão das que contêm o material do corpo da pesquisa. Estas, por sua vez, serão divididas nos vários tópicos que constituirão os capítulos dos trabalhos. Evidentemente, primeiro deve-se organizar e redigir o corpo do trabalho, para depois introduzi-lo e conclui-lo, muito embora, na apresentação final do projeto, a parte introdutória venha antes. E isso porque não se pode prometer aquilo que talvez não se consiga fazer. Somente após a seleção e a análise de todo o material obtido e da profunda reflexão do pesquisador sobre esse material, é que se pode organizar o Plano Definitivo do Trabalho, com o sumário das várias partes a serem redigidas.

4 a Etapa: “Para quem fazer?” – Redação final

Roman Jakobson, em seus conhecidos estudos sobre os fatores da comunicação, destaca a importância da tríade: emissor-mensagem-receptor. Qualquer relacionamento inter-humano, quer oral quer escrito, pressupõe a existência de alguém que sabe (o emissor) e está disposto a comunicar o objeto de seu conhecimento (a mensagem) à outra pessoa (o receptor). Entre esses três elementos, deve existir sintonia, caso contrário entra ruído na comunicação e a operação de transmissão do saber fica prejudicada. Quer dizer, o emissor deve saber adaptar o conteúdo e a forma da mensagem à natureza do destinatário. Seria simplesmente ineficiente, para não dizer insensato, falar de assuntos filosóficos para uma criança de 5 anos.

Da mesma forma, o investigador, no ato de colocar no papel o resultado de sua pesquisa, deve ter em mente o destinatário de seu trabalho intelectual. Como veremos em outro capítulo, existem vários tipos de trabalhos científicos, cada qual com diferentes destinatários. A linguagem a ser usada para apresentar uma comunicação num congresso científico, por exemplo, não será a mesma da utilizada para escrever um livro didático destinado aos alunos do primeiro grau. Portanto, adaptar o plano da expressão e o plano do conteúdo do texto crítico ao nível cultural do público que se quer atingir é o princípio fundamental para o sucesso da pesquisa. Mas, independentemente desse fator, a redação

32

Page 33: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

de um trabalho intelectual tem normas e características gerais que devem ser observadas, não importe o tamanho ou a finalidade da pesquisa:

A) Autenticidade: a redação é o momento mais penoso, mas também o mais importante do trabalho científico, pois é no esforço de colocar no papel, com palavras próprias, o conteúdo dos vários tópicos pesquisados é que se dá a aprendizagem. Coletar dados e organizar o material são apenas a fase preliminar, “o trabalho de cozinha”, por assim dizer. A contribuição para o progresso da ciência dá-se pela reflexão sobre o conteúdo temático e o modo pessoal de sua apresentação. Segundo os formalistas russos, a arte consiste no príon, no processo, na forma do arranjo estético que se dá à linguagem para expressar ideias e sentimentos. Algo semelhante acontece com a linguagem crítica: um pesquisador distingue-se de outro pelo modo peculiar de elaborar um plano de trabalho e pelo estilo pessoal de sua execução. A diferença está no fato de que o artista se serve da fantasia e o crítico da razão; o primeiro trabalha no plano conotativo, o segundo no denotativo. Exige-se, portanto, do pesquisador redação própria: em hipótese nenhuma deve apossar-se sub-repticiamente da escrita dos autores consultados sob pena de cometer plágio, apropriação indébita, desonestidade intelectual. Se considerar necessário fazer referência a textos alheios, deve sempre citar a fonte e, no caso de transcrição ipsis litteris, deve também colocar aspas. Todo cuidado é pouco porque, às vezes, o plágio acontece involuntariamente: ao utilizar o material recolhido nas fichas temáticas, o pesquisador pode confundir, na redação final, reflexões suas com períodos copiados de livros, omitindo a citação da fonte.

B) Clareza: a linguagem de uma monografia científica não deixa de ser uma metalinguagem, pois fala de outras linguagens. Como tal, ela tem que ser referencial, denotativa, sem apresentar as conotações próprias da linguagem-objeto. Assim, por exemplo, um trabalho de análise e interpretação de um texto literário não pode ser ambíguo, plurívoco, polissêmico, características próprias da linguagem poética. Como observa Umberto Eco (8, p. 116), “um psiquiatra que descreve doentes mentais não se exprime como os doentes mentais”. Assim, um crítico literário não pode se exprimir por metáforas. O papel do crítico é explicar, tornar explícito o que está implícito, fazer vir à luz os sentidos recônditos numa obra de arte, numa doutrina filosófica, numa teoria científica. Ele funciona como intermediário entre o objeto estético ou científico e o público menos esclarecido. É lamentável constatar que alguns trabalhos críticos são mais complexos e herméticos do que os textos de arte ou ciência que pretendiam elucidar! Em lugar de esclarecer, acabam confundindo ainda mais a cabeça do pobre leitor com teorias esdrúxulas, fórmulas e gráficos de difícil compreensão.

C) Correção, concisão, neutralidade: o discurso crítico tem que ser redigido numa linguagem correta do ponto de vista gramatical e sintático, respeitando os padrões de regência nominal e verbal, de concordância, de ortografia, de pontuação. Deve estar bem perto da norma culta, afastando-se de qualquer tipo de regionalismo. Tal exigência não é uma questão de purismo linguístico ou de pedantismo acadêmico: sua finalidade é facilitar a leitura do trabalho. Por exemplo, uma vírgula deslocada que separa o sujeito do verbo ou a inversão do predicado colocado antes do sujeito da oração dificultam o entendimento do texto. O escritor-crítico não pode permitir-se licenças poéticas concedidas ao escritor-artista, pois o desvio da norma, a ambiguidade ou a polissemia são características peculiares da linguagem poética. A redação de um trabalho científico deve

33

Page 34: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

ser clara, simples, concisa, objetiva, impessoal, evitando referências pessoais, arcaísmos ou neologismos, clichês, lugares-comuns, detalhes supérfluos, o óbvio e a redundância. Outros cuidados a serem tomados: usar critérios gráficos uniformes para margens, parágrafos, espacejamentos; colocar aspas simples ou duplas conforme a necessidade, sem se esquecer de seu fechamento; fazer uso das maiúsculas apenas nos casos previstos na norma culta de nossa língua; sublinhar ou usar uma grafia diferente para destacar títulos de livros ou de revistas, palavras não dicionarizadas ou em língua estrangeira, aportuguesar apenas os nomes das obras e dos autores clássicos consagrados: A Ilíada, Dom Quixote, O Asno de Ouro, Homero, Júlio César, etc. Seria uma deformidade inaceitável num trabalho crítico citar o dramaturgo italiano Luigi Pirandello pela adaptação de seu nome em vernáculo como “Luís Pirandelo”!

Cap. IV - Apresentação do trabalho e citação bibliográfica

A forma de apresentar os resultados de uma pesquisa depende de seu tamanho, de sua peculiaridade e do destinatário. Expor os primeiros frutos de um trabalho científico em andamento numa seção de um congresso, por intermédio de uma meia dúzia de laudas, evidentemente, requer um tratamento diferente da apresentação de uma tese de doutoramento, com mais de 300 páginas, a ser defendida perante uma banca examinadora. Todavia, de modo geral, qualquer trabalho intelectual, não importa a natureza (a tipologia dos vários trabalhos científicos será vista no próximo capítulo), deve conter as três partes já analisadas acima: introdução, desenvolvimento e conclusão.

Parte introdutória

É composta de vários elementos que têm a finalidade de preparar o leitor para o estudo do trabalho. Ela pode conter um frontispício, ou folha de rosto, em que consta o nome do autor, da obra, do orientador, da editora, da instituição, do lugar e a data da apresentação ou publicação, conforme o caso. Logo em seguida, vem o sumário ou índice no qual são relacionados os vários tópicos em que o trabalho está dividido, com a indicação do número da página que dá início a cada capítulo. Pode seguir um prefácio ou introdução, que apresenta os motivos que levaram à escolha do tema, o tratamento metodológico e os resultados que se pretende conseguir. Esta parte inicial pode ainda conter uma apresentação, feita por um crítico ou amigo do autor, no caso de a obra ser destinada à publicação; agradecimentos a entidades ou pessoas que colaboraram para a realização do trabalho; dedicatória a um amigo ou parente; enfim, uma epígrafe, citação de um trecho de alguma obra importante, relacionada com o tema apresentado.

Corpo do trabalho

É a parte central, mais longa e mais importante do trabalho científico. Se a pesquisa for de largo fôlego, geralmente se encontra dividida em capítulos. Aí se dá o desenvolvimento do tema proposto. Como fizemos referência, lançando mão do processo dialético, o pesquisador expõe o estado da questão, a tese; logo em seguida discorre sobre

34

Page 35: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

as opiniões contrárias, a antítese; enfim, apresenta sua tentativa de resolução do problema, a síntese.

Conclusão ou posfácio

Dependendo do tamanho do trabalho, a conclusão pode estar implícita no final do trabalho ou ocupar um capítulo à parte. O importante é que o posfácio retome o que estava prometido na introdução, demonstrando que a pesquisa conseguiu atingir os objetivos propostos, apesar das dificuldades encontradas. Pode ainda sugerir que outros assuntos relacionados com o tema desenvolvido são passíveis de serem retomados em trabalhos posteriores.

É de fundamental importância que estas três partes (introdução, desenvolvimento e conclusão), além de terem uma coerência interna, sejam redigidas de forma harmônica, respeitando as proporções entre os três momentos. A introdução e a conclusão não podem ocupar mais do que uma décima parte do corpo do trabalho. Este, se precisar ser dividido em capítulos, deve apresentar a maior homogeneidade possível: não fica bem desenvolver um tópico em duas páginas e outro em 20. É preciso saber agrupar a matéria para evitar-se a desproporção entre as partes. Se o trabalho for pequeno, não precisa dividi-lo em partes, nem colocar introdução e conclusão em capítulos separados. De uma forma sintética, num bloco só, o pesquisador apresentará os três elementos constitutivos do trabalho científico.

Anexos

Após a conclusão, o trabalho pode comportar outros elementos: anexos ou apêndices, textos, tabelas, gráficos que, por um motivo ou outro, o pesquisador não quis incluir no corpo do trabalho, mas considera de ajuda para o leitor entender a obra realizada; glossários, elenco de termos técnicos com as respectivas definições; índice remissivo; bibliografia, que pode ser geral ou particularizada, específica para cada tópico importante. Tudo depende do tamanho e do tipo da pesquisa. Há trabalhos pequenos, nos quais se encontram citadas apenas duas ou três obras: neste caso, não há necessidade de colocar a seção bibliografia, incluindo as citações no corpo do trabalho, entre parênteses ou com notas de rodapé. É preciso distinguir a bibliografia geral, o conjunto dos títulos sobre o assunto, das obras consultadas ou referências bibliográficas. O autor pode optar pela indicação apenas das obras citadas no decorrer do trabalho ou colocar todas as obras por ele consultadas, mesmo as não citadas, ou, mais ainda, relacionar todos os resultados sobre o assunto de cuja existência ele teve conhecimento, mas não pôde ou não quis ler.Se o trabalho for de largo fôlego, especialmente se acadêmico (dissertação de mestrado ou tese de doutorado), aconselha-se dividir a bibliografia em partes, relacionando separadamente as obras do autor estudado, as de crítica sobre o autor, o momento histórico ou o gênero e, enfim, sobre a peculiaridade do tema. Para a elaboração da bibliografia final, evidentemente, o pesquisador vai servir-se do fichário bibliográfico que o acompanhou durante todo o percurso de sua pesquisa. Ele vai colocar os textos de arte e de crítica em ordem alfabética, seguindo as sugestões da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), publicadas no Rio de Janeiro em 1989, com base nos critérios internacionais de editoração. Há referências bibliográficas completas e outras sucintas,

35

Page 36: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

citando-se apenas os cinco elementos essenciais na seguinte ordem: autor, obra, cidade, editora, ano. Vamos analisar as principais variações de cada elemento:

Referências bibliográficas

1) Nome do autor: coloca-se primeiro e em letras maiúsculas o sobrenome (simples ou composto) e, depois de uma vírgula, os prenomes inteiros ou apenas suas iniciais:

CANDIDO, AntonioSALOMON, D.V.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo deBUARQUE DE HOLANDA, SérgioAGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de

Se a obra for de coautoria dupla, citam-se os dois autores, usando o mesmo critério:

BILAC, O. e PASSOS, G. Tratado de Versificação. 8.ª ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1944.

Se existirem mais de dois autores, já convém citar apenas o primeiro, seguindo da expressão et alii (e outros) ou, conforme o caso, acrescentar as abreviaturas org. (organizador), coord. (coordenador), comp. (compilador), ed. (editor):

DUBOIS, J. et alii. Retórica Geral. São Paulo: Cultrix/USP, 1974.COUTINHO, A. (org.) A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1969. 5 v.

Se se quiser destacar apenas o trabalho de um autor numa obra coletiva, a citação é feita da seguinte forma:

BREMOND, C. A Lógica dos Possíveis Narrativos. In: (Vários) Análise Estrutural da Narrativa. Petrópolis: Vozes, 1972. p. 110-135.

Se a obra for anônima, a entrada é dada diretamente pelo título:

CHANSON de Roland. Paris: Morri, 1948.

Se a publicação for coletiva, cita-se em letra maiúscula o nome da entidade:CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO. Curitiba: Associação Publicitária do Paraná, 1979.

2) Título da obra: deve ser reproduzido da forma como se encontra no trabalho referenciado, inteiramente sublinhado ou usando uma grafia diferente (negrito ou itálico), colocando em maiúscula apenas a letra inicial da primeira palavra e os nomes próprios e científicos. Se o trabalho contém um subtítulo, este deve ser citado apenas se apresentar elementos importantes para compreender a natureza do assunto tratado:

36

Page 37: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: Autores e Obras Fundamentais. 2.ª ed. São Paulo: Ática, 1990.

A obra pode encontrar-se publicada ou inédita (dissertações e teses), ser um livro ou um artigo de revistas, jornais, boletins, anais. Neste caso, o que deve ser posto em maior destaque ou grafado inteiramente em letras maiúsculas é o nome do periódico, enquanto o título do artigo pode ser colocado entre aspas ou em grafia diferente:BEIRÃO, M.F.S.F. Vivência do Espaço e do Tempo na Criação Artística. Revista de Psicologia Normal e Patológica, São Paulo, ano 16, n.º 2, p. 103-108, abr.- jun. 1970.

3) Lugar e tempo da editoração: é preciso deixar claro, além de quem deu à luz um trabalho científico, também onde e quando. A ordem normal é colocar, logo depois do nome do autor e do título da obra, o nome da cidade e da editora, seguidos, em algarismos arábicos, do ano da publicação:

ECO, Umberto. Como se Faz uma Tese. São Paulo: Perspectiva, 1996.

As coisas, porém, não são sempre tão fáceis. Há numerosos problemas que dificultam o conhecimento de dados importantes, especialmente em se tratando de livros antigos, impressos quando não havia exigências editoriais e a ciência da informática ainda sequer balbuciava. A referência bibliográfica apresentada acima, por exemplo, parece completa, mas não o é: pode levar ao engano um leitor de pouca cultura, não sabendo que o autor é italiano e a obra, uma tradução. Mas a ignorância não é só do leitor: em 1970, aproveitando o sucesso do filme Fellini: Satyricon, a editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, lançou uma nova tradução do romance de Petrônio, escrevendo na contracapa Do Original Francês (sic!): Le Satyricon. Ora, será que a equipe técnica de editoração desconhecia que o texto original é latino e não francês e que o tradutor tinha feito a tradução em língua portuguesa, tendo como texto de base a tradução francesa do original de Petrônio, escritor romano? E por que fazer uma tradução de segunda mão, quando existiam e ainda existem no Brasil bons conhecedores da língua latina? Apesar deste erro imperdoável, tratando-se de uma editora bem conceituada naquela época, não citar o tradutor, como fizemos, é uma grande injustiça que se faz ao esforço intelectual de uma transcodificação. Portanto, a referência deveria ser mais esclarecedora, trazendo pelo menos o nome do tradutor:

ECO, U. Como se Faz uma Tese. Trad. do italiano por Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1996.

Há casos em que é necessário citar também o nome original da obra, a cidade do país estrangeiro e as datas da primeira edição na língua original e daquela traduzida. Quando um livro teve mais de uma edição, é preciso indicar a publicação exata a que se faz referência:

AGUIAR E SILVA, V. M. de. Teoria da Literatura. 3.ª ed. Coimbra: Almedina, 1974.

37

Page 38: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Se a obra for publicada em várias partes, o número dos volumes deve aparecer no final da referência bibliográfica:

CARPEAUX, O. M. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, [s.d.] 8 vs.

Pode acontecer que, na contracapa do livro, estejam omissos elementos importantes. Colocam-se, então, entre colchetes, as siglas das expressões latinas correspondentes à falta: [s.n.] = sine nomine, para a ausência do nome da editora; [s.l.] = sine loco, quando não aparece o nome da cidade; e [s.d.] = sine data, quando falta o ano da edição.

Modalidades de citação

Trataremos agora das referências bibliográficas a serem feitas ao longo do corpo do trabalho, as chamadas citações, indicativas dos lugares de onde transcrevemos trechos sob a forma de discurso direto, colocando frase ou períodos entre aspas; ou indiretamente, parafraseando as ideias dos autores consultados, usando nosso próprio discurso. Para distinguir claramente as citações do texto de base das de literatura crítica, seria útil colocá-las em grafias diferentes, tendo o cuidado de abrir um novo parágrafo quando a citação no discurso direto for longa, ultrapassando três linhas. Pelo menos ¾ da redação do trabalho científico deve ser de nossa autoria, utilizando a escrita de outros apenas quando for estritamente necessário. Devem-se, assim, evitar transcrições ingênuas, de caráter geral ou de livros de pouca relevância. Cita-se um texto ou para ser interpretado ou para ser criticado ou em apoio à nossa tese. Para a indicação da fonte no corpo do trabalho são possíveis três sistemas:

Nota de rodapé

É a forma mais antiga e ainda hoje usada especialmente em trabalhos acadêmicos. Após a transcrição do trecho, coloca-se um número no alto, correspondente à nota de rodapé, onde deve constar a referência bibliográfica completa, acrescida do número da página. Para não se repetir o nome do autor ou da obra, as notas de rodapé costumam trazer siglas de abreviaturas: idem ou id. (mesmo autor); ibidem ou ib. (na mesma obra); op. cit. ou o.c. (obra já citada). O número de notas de rodapé pode ser relativo a cada página ou progressivo, referindo-se à quantidade de notas contidas num capítulo ou na obra inteira.

Ano de publicação

De acordo com esta outra modalidade, a indicação do locus da citação é colocada não em baixo da página, mas no corpo do trabalho, no próprio texto, reservando o uso do rodapé apenas para as notas explicativas ou de acréscimo à referência bibliográfica, indicadas por asteriscos. Após o trecho citado ou parafraseado, abre-se um parêntese, no qual vai constar o sobrenome do autor, o ano da edição da obra e o número da página. Se se usar

38

Page 39: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

este critério de citação, é preciso colocar em destaque, na bibliografia final, o ano de publicação das obras, pois é o elemento escolhido para a identificação da fonte.

Exemplo desse tipo de citação:

“A poesia lírica carece tão pouco de conexões lógicas, quanto o todo de fundamentação. Na poesia épica, quando, onde e quem terão que estar mais ou menos esclarecidos antes de a história iniciar-se. Com muito mais razões, o autor dramático tem que pressupor a existência de um teatro, e o que falta à fundamentação do todo é acrescentado posteriormente.” (Staiger, 1975:46).

Número da obra

É o sistema mais moderno e mais eficiente, que estamos usando de uns anos para cá, com boa aceitação por parte de leitores e orientandos. Na listagem por ordem alfabética da bibliografia geral, que é colocada no fim do trabalho, cada obra recebe um número, sempre na ordem crescente, mesmo se as referências bibliográficas forem divididas em partes. No corpo do trabalho, após a transcrição ou a paráfrase de uma ideia, coloca-se entre parênteses ou colchetes o número correspondente à obra citada e o número da página. Se, pelo contexto, não é possível ao leitor identificar o autor citado, é aconselhável pôr também seu sobrenome, antes do número da obra. Assim, por exemplo, se alguém quiser citar um trecho da Poética de Aristóteles e essa obra, na bibliografia geral, adquiriu o número 4, terá as seguintes opções:

1. “A peripécia é a súbita mutação dos sucessos, no contrário”, conforme afirma Aristóteles (4, p. 119).2. A figura da “peripécia”, conforme a estética clássica, é uma repentina reviravolta dos acontecimentos (Aristóteles, 4, p. 119).

O único inconveniente no uso desse sistema é que as obras consultadas só podem adquirir a numeração ao término do trabalho. Por isso, o pesquisador, durante as fases da coleta do material, de sua seleção e da primeira redação por partes, deve ter o cuidado de colocar nas fichas, provisoriamente, a abreviatura do nome da obra que, eventualmente, poderá ser citada. Só depois de elaborada a bibliografia geral, por ordem alfabética e numerada cada obra, ele terá condições de substituir, na redação final, o nome da obra pelo seu número. Mas este trabalho será compensado pela facilidade com que o leitor poderá visualizar a citação bibliográfica.

Tabela de abreviaturas mais usadas.

art. artigo de uma lei ou de um regulamentocap. capítulo; plural: caps.cf., ou v. (vide) confronte, vejacol.ou c. coluna; plural: Colled. edição; plural: eds.e.g. ou p.ex. do latim exempli gratia = por exemplo

39

Page 40: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

fig. figura ou sentido figurado; plura: figs.f. ou fl. ou fol. folha; plural: ff. ou follibid. ou ibidem do latim = no mesmo lugar (mesma obra e mesma página)idem do latim = a mesma coisa (mesmo autor)i.e. do latim id est = isto é, quer dizerinfra do latim = ver abaixol. t. ou vol. livro, tomo ou volume (plural: vols.) – obras em partesloc. cit. lugar citado anteriormenteMS manuscrito; plural: MSSn. nota (de citação)NB. ou Obs.: note bem, observaçãoN. do A. nota do autorN. do T. nota do tradutorN. do E. nota do editorn. ou no Númeroop. cit. ou o.c. obra já citadapassim do latim: “aqui e ali” (quando a ideia está dispersa na

obra)p. ou pág. página; plural: pp. ou págs.par. ParágrafoPS ou “em tempo” do latim: post scriptum (adendo no fim de um texto)pseud. pseudônimo (o nome do autor não é o verdadeiros.d. do latim sine data (da edição)s.l. do latim sine loco (não aparece o lugar da publicação)s.n. ou anon. do latim sine nomine (anônimo = autor desconhecido)s. ou seg. seguinte; plural: ss.sic advérbio latino que significa: “assim”, “desse jeito”!supra acima, verificar o que foi dito antestab. Tabelatr. ou trad. Traduçãov. verso; plural: vv.vs. ou versus advérbio latino de oposição: clássico vs. românticovers. versículo; usado especialmente nas citações bíblicas

V - Tipologia do trabalho intelectual

Nossa preocupação, até agora, foi apresentar os elementos estruturais de uma pesquisa padrão, no sentido de genérica. As questões examinadas relativas ao saber, ao método, ao processo de elaboração de um trabalho científico e ao uso da bibliografia são comuns a qualquer tipo de atividade intelectual, independentemente de sua natureza, de seu tamanho ou de sua finalidade. O pesquisador, o professor ou o aluno não acostumado a refletir sobre essas atividades do espírito humano estaria, evidentemente, num caminho errado: a vocação para a intelectualidade requer um espírito crítico que esteja constantemente pensando e repensando sobre o objeto de seu interesse que, afinal, não

40

Page 41: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

deixa de ser sempre uma reflexão acerca de algum aspecto da existência. Passaremos, a seguir, à análise das formas específicas mais comuns de trabalhos de pesquisa, agrupando os vários tipos em binômios contrastivos ou apenas diferenciadores.

Tese/dissertação

A tese de doutoramento é a modalidade mais importante e mais antiga de trabalho científico. Sua origem está diretamente relacionada com o surgimento das primeiras universidades na Europa, no começo do século XII. Depois que passou o longo inverno do vazio cultural da Alta Idade Média, época que vai do século V d.C. (fim do Império Romano do Ocidente) até o século XI (o início das Cruzadas, que romperam o bloqueio árabe dos portos do Mediterrâneo) e começou a primavera da Pré-Renascença europeia, a atividade intelectual tomou um novo impulso. A disputatio acadêmica tornou-se a sucessora da maiêutica socrática, do método dialético de Platão e do racionalismo silogístico de Aristóteles. Os que aspiravam a ocupar um cargo de docência em alguma faculdade de Filosofia ou de Teologia, as primeiras e mais importantes áreas de conhecimento então cultivadas, deviam apresentar uma tese, uma nova doutrina ou teoria, a ser definida perante uma banca examinadora que arguia o candidato apresentando argumentos contrários (a antítese). Se a defesa fosse vitoriosa, ele conseguia a aprovação anunciada pela famosa expressão doctorem habemus (temos um novo doutor). Esta modalidade de trabalho acadêmico varou os séculos e é viva até hoje, conforme comprova a sigla PhD (Philosophy Doctor), usada nos países anglo-saxônicos para designar qualquer pesquisador que defendeu tese nas ciências humanas.

É preciso não confundir esse doutoramento stricto sensu, fruto da pesquisa de docentes universitários ou conseguido após um curso de pós-graduação, do doutoramento como término das atividades discentes de um curso de graduação. Na Itália, por exemplo, não existe distinção entre bacharel, licenciado e doutor. Todo mundo sai de uma faculdade já laureado, com o diploma de doutor, porque, após o término dos exames exigidos, o aluno é obrigado a defender uma tese de fim de curso, indispensável para obter a láurea. Mas, geralmente, trata-se de uma pesquisa modesta, correspondendo, mais ou menos, às monografias para Licenciatura ou ao TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) exigido por algumas Faculdades no Brasil. Não é preciso, porém, ridicularizar os italianos quando eles dizem “siamo tutti dottori” (somos todos doutores), porque a impropriedade terminológica é ainda pior entre nós: chamamos de doutor ao médico, ao advogado, ao político, ao coronel, embora nenhum deles tenha defendido tese.

O termo doctor, segundo o étimo latino, significa aquele que sabe, designando a pessoa que tem um conhecimento profundo sobre um assunto e deu prova deste seu saber excepcional mediante a realização de um trabalho sério, original e inédito, conseguindo a aprovação de especialistas num concurso público. O que tem criado muita celeuma é o problema da originalidade da tese de doutoramento. É bom deixar claro que originalidade não é sempre sinônimo de invenção, de descoberta, de algo de novo num sentido absoluto. Como salienta Salomon (17, p. 179), o próprio nome significa retorno à origem, à fonte primeira, ao arquétipo, à verdade essencial esquecida pelo passar do tempo. Os antigos romanos diziam nihil novi sub sole (nada de novo debaixo do sol), ditado cujo sentido se aproxima da famosa lei de Lavoisier, cujo valor ultrapassa os limites da química:

41

Page 42: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

“Nada se cria e nada se destrói: tudo se transforma.”

De modo geral, a função de uma tese é rever sob uma óptica diferente, guiada pela reflexão pessoal, novos aspectos sobre determinado conhecimento. No campo das ciências humanas, a “descoberta”, que confere valor científico a um trabalho de tese, pode ser uma nova técnica de análise e de interpretação de um texto literário, a publicação de um manuscrito que lança nova luz sobre a biografia de um autor, a sistematização de ideias que se encontravam dispersas em vários textos, a divulgação em nosso meio cultural de obras estrangeiras importantes por meio de uma boa tradução acompanhada por uma introdução esclarecedora e comentários críticos, etc. (cf. Eco, 8, p. 2). Se o tema já foi explorado anteriormente, a originalidade da tese deve residir no arranjo crítico do material, pelo qual se coloca em evidência tópicos ou ângulos novos, contribuindo para uma melhor compreensão do assunto.

A nosso ver, a preocupação com a originalidade muitas vezes tem desvirtuado a finalidade essencial de um trabalho de tese que é sua contribuição para o melhoramento da vida em sociedade, por meio da aquisição de novos conhecimentos que nos ajudem a compreender nós mesmos e o mundo em que vivemos. A utilidade dos resultados de um trabalho de pesquisa fica prejudicada pelo temor de não satisfazer às exigências dos membros da banca examinadora: no afã de ser original a qualquer custo, o pesquisador gasta longos anos de trabalho estudando um assunto de pequena relevância apenas porque não foi anteriormente explorado, cuidando mais da apresentação técnica do que da importância do conteúdo. Consequência disso é que o trabalho de tese, após sua defesa, por ser excessivamente técnico e pormenorizado, não oferece possibilidade de publicação, ficando sua divulgação restrita a um diminuto círculo de especialistas no assunto. Será que vale a pena gastar tanto tempo, fosfato e dinheiro por parte do pesquisador, do orientador e do órgão financiador para a realização de um trabalho de tese destinado a ficar engavetado?

Além da tese de doutorado, em algumas universidades, especialmente na rede pública de ensino superior do Estado de São Paulo (USP – Unicamp – Unesp), ainda existe a exigência da defesa de outra tese para o concurso de livre-docência, se o professor quiser galgar mais um degrau da carreira universitária. Em princípio, o trabalho de pesquisa para este fim deve ser mais profundo, mais especializado e de maior fôlego, se comparado com a tese de doutoramento. Várias vezes questionamos nos órgão colegiados de nossa universidade, a Unesp, a utilidade dessa outra tese e do próprio concurso nos moldes em que vem sendo realizado. O conceito e a prática da livre-docência pertencem a algumas universidades da Europa, onde especialistas, que não integram o corpo docente permanente, são convidados para ministrar cursos paralelos às disciplinas obrigatórias ensinadas pelos professores de carreira (catedráticos e seus assistentes). Tal tipo de docência é chamada de “livre” porque o curso ministrado não pertence ao rol das disciplinas curriculares, não é oferecido regularmente e o aluno não tem obrigação de participar. Ora, se nada disso tem a ver com a realidade de nosso ensino universitário, por que fazer um concurso para uma função que não existe?

Se for para estimular a produtividade do docente, por que não substituir tal concurso, como também o de adjunto e o de titular, por exames de julgamento de memorial periodicamente, a cada três ou cinco anos? Anulando-se a distinção burocrática entre cargo e função, a carreira universitária ficaria totalmente aberta: após o concurso de

42

Page 43: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

ingresso para professor assistente (com exigência mínima de título de mestre), o docente teria apenas a obrigação de defender a tese de doutorado. Em seguida, respeitando os prazos prefixados, poderia solicitar a apreciação de suas atividades de docência, de pesquisa e de prestação de serviços, mediante a defesa e o julgamento de seu memorial por uma banca examinadora. Se aprovado, passaria do nível de doutor I para o de doutor II e assim sucessivamente até a aposentadoria, recebendo um aumento financeiro para cada grau galgado, substituindo-se, assim, as gratificações por anos de serviço pela produtividade.

Essa nova forma de carreira, já adotada em algumas universidades federais, facilita a vida dos docentes universitários e estimula mais seu trabalho, pois evita a obrigatoriedade de concursos anacrônicos e maçantes, estando cada professor livre para exercer as atividades que considerar mais úteis para o desenvolvimento cultural seu e da comunidade. As qualificações de docente livre, adjunto e titular não têm sentido: além de pecar contra a semântica, são entraves para a universidade alcançar sua verdadeira finalidade, que é a busca da verdade, o progresso das ciências e das artes, o melhoramento da vida em sociedade. É penoso participar da banca examinadora de um concurso para professor titular: um colega nosso, como mais de 30 anos de carreira, já com idade de se aposentar, é submetido a uma prova didática para demonstrar que sabe dar uma aula! Alguém já pensou no vexame que o docente e a universidade sofreriam se houvesse reprovação? A instituição deveria admitir que sustentou por tantos anos um educador de gerações de alunos que não sabia ministrar uma aula decente! A exigência da prova didática tinha sua lógica na época da fundação da Universidade de São Paulo, a primeira de nosso país, quando os professores estrangeiros que quisessem aqui ficar e efetivar-se no ensino público como catedráticos, além de naturalizarem-se brasileiros, deviam provar que sabiam comunicar-se na língua portuguesa. Mas hoje não tem mais sentido: a prova didática deve ser uma exigência de início e não de fim de carreira!

Quando será que a universidade pública brasileira vai acabar de vez com os anacronismos, os entraves burocráticos, a má gestação dos parcos recursos destinados à educação, a prática da politicagem, da luta interna pelo poder? Causa estranhamento o fato de que o meio universitário, no qual se produz e se irradia o saber, não cultive o hábito da reflexão sobre si mesmo e a prática do bom senso, convivendo com normas e costumes absurdos, dignos da ficção kafkiana! Há coisa mais ridícula, por exemplo, do que a colação de grau, o uso da beca, o ritual da formatura? Que dizer, então, do ritual cruel da recepção dos calouros? São ainda resquícios das cerimônias da investidura medieval, satirizadas por Cervantes em seu Dom Quixote, especialmente no episódio da consagração do herói como cavaleiro, quando lhe é colocada na cabeça uma bacia de barbeiro pelo dono da estalagem. O aluno que terminou um curso, sendo aprovado em todos os exames exigidos, não poderá receber o diploma se não lhe for posto na testa o chapéu mágico, símbolo da transmissão do saber! É interessante notar que essas e outras instituições folclóricas medievais, já em desuso nas milenárias universidades europeias, ainda são cultuadas nos países novos, onde a universidade quase não tem história!

Pedindo perdão pelo desabafo, voltamos à análise dos vários tipos de pesquisa. Além das teses examinadas, outro trabalho acadêmico é a dissertação para a obtenção do título de mestre. Atualmente, mestrado e doutorado são dois momentos dos cursos de pós-graduação, instituídos para preparar os formados em faculdades que pretendem iniciar carreira universitária ou simplesmente continuar seus estudos no seio de uma

43

Page 44: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

universidade para adquirir conhecimentos mais profundos nas áreas de sua predileção. O que distingue os dois tipos de trabalho é apenas o nível; a natureza é a mesma: de modo geral, a dissertação de mestrado é de menor fôlego (uma média de 150 páginas) e não requer originalidade. Dissertar significa tratar com conhecimento de causa e de maneira metodologicamente correta um tema ou ponto doutrinário. Do mestrando não se exige uma descoberta, uma tese para defender, mas apenas (o que não é pouco) a demonstração de que ele sabe pesquisar, pois conhece e utiliza razoavelmente os elementos estruturais do trabalho científico, conforme vimos anteriormente: a escolha de um tema exequível e interessante; a metodologia adequada e o processo dialético de desenvolvimento; a busca e a organização do material; a redação clara e o uso correto das fontes bibliográficas. O trabalho de mestrado está ainda vinculado à fase de iniciação à ciência, sendo a primeira grande manifestação dos dotes do pesquisador, de sua vocação para a intelectualidade e de sua capacidade de fazer exercícios de reflexão pessoal sobre o assunto tratado.

Didático/científico

Essa oposição está centrada sobre a figura do destinatário do trabalho intelectual. Como já vimos ao tratarmos da redação, quem escreve deve ter sempre presente no espírito o receptor de sua mensagem. A palavra “didático”, segundo seu étimo grego, está intimamente relacionada com a atividade de quem ensina, do pedagogo, do professor. Chamamos didático, portanto, um trabalho direcionado à melhoria do ensino e da aprendizagem dos alunos. Um livro didático tem que expor da forma mais clara possível o conteúdo programático de uma matéria curricular de certa série e grau da escola pública e privada. Como contraponto a essa atividade de docência está a atividade discente: o aluno deve realizar tarefas como trabalhos didáticos de resposta para dar prova da aprendizagem da matéria ministrada nas aulas e exposta nos livros. Podemos considerar como paradidáticos os trabalhos não destinados à determinada série do grau de ensino, mas que visam a uma divulgação cultural mais genérica. Nessa classificação, estariam incluídos os dicionários, as enciclopédias, os livros de história das ciências, das artes e da filosofia, os manuais ou tratados de fundamentação teórica.

Já o objeto do trabalho científico não é o ensino, mas a pesquisa, buscando não tanto a divulgação quanto a produção do saber e tendo como finalidade não a exposição do conteúdo programático de certa área do conhecimento, mas a apresentação de algo novo, a interpretação diferente de um texto, com o intuito de contribuir para o progresso das ciências e das artes. Existem pesquisadores “puros” que passam sua vida em laboratórios ou investigando aspectos da realidade, a serviço de entidades públicas ou particulares. Este não é o caso dos professores do ensino público, contratados para exercerem atividades de docência, de pesquisa e de prestação de serviços, em regime de tempo integral. Para eles, docência e pesquisa são atividades complementares que se integram mutuamente. Se, de um lado, a investigação científica eleva o nível das aulas, de outro lado, o contato com os alunos em sala de aula ou no convívio com seus orientandos estimula o professor à pesquisa no esforço de produzir um novo material para superar as falhas verificadas. A nosso ver, pode existir um pesquisador que não seja professor, mas não um docente que não exerça também atividades de pesquisa, sob pena da degradação do ensino, em qualquer nível. Tanto é verdade que, nos países culturalmente avançados, nenhum professor de ginásio, de colégio ou de faculdade

44

Page 45: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

recebe sua remuneração por hora-aula. Todos são mensalistas com dedicação exclusiva ao ensino e à pesquisa, sendo pagos não apenas para ministrar aulas, mas também para sua preparação remota e próxima, a correção de tarefas, a orientação de trabalhos, a atualização do conhecimento. Um professor obrigado a ministrar 40 aulas semanais para poder sobreviver é o maior atestado da pobreza cultural de um povo!

Monográfico/panorâmico

O prefixo grego monos (de onde derivam palavras como monge, mosteiro, monossílabo, monolítico, etc.), correspondente ao latino solus (solteiro, solitário, solidão), significa um só e graphein = escrever. Como se pode verificar, etimologicamente, monografia define um trabalho intelectual concentrado sobre um único assunto. Portanto, é errado confundir monografia com tese de doutoramento, dissertação de mestrado ou trabalho final de curso universitário. Qualquer pesquisa pode ser chamada de monográfica se verter sobre um tema único, desde um artigo de revista até um tratado de métrica. E, vice-versa, uma tese para um concurso acadêmico não tem que ser necessariamente monográfica, podendo abranger vários aspectos de uma realidade.

Enquanto o trabalho monográfico focaliza um tema peculiar, o estudo panorâmico apresenta o assunto em toda a sua amplitude. A opção por um ou outro tipo depende da vontade do pesquisador e, sobretudo, da natureza do assunto. Se a matéria a ser estudada já é do conhecimento de um grande público, não tem sentido realizar um trabalho panorâmico, sendo mais prudente a abordagem de um assunto peculiar, ainda não explorado satisfatoriamente pela crítica. Assim, por exemplo, realizar um trabalho de pesquisa sobre toda a ficção de Machado de Assis, aqui no Brasil, onde o autor e suas obras já foram exaustivamente estudadas por críticos ilustrados, seria uma temeridade, pois o pesquisador, inevitavelmente, acabaria fazendo ‘chover no molhado’. Já um trabalho panorâmico sobre a vida e a obra de um poeta, artista ou cientista de alguma região interiorana de nosso imenso país, desconhecido pelo grande público, seria uma contribuição relevante, por ser uma novidade no âmbito da cultura nacional.

O mesmo diga-se de um estudo global sobre uma personalidade que produziu suas obras fora do Brasil. Realizar um estudo de apresentação da totalidade das obras de um filósofo, cientista, literato, artista plástico, cineasta ou músico (pensamos em Kafka, Pirandello, Sartre, Einstein, Marx, Freud, Mozart, apenas para citar alguns nomes) pode ser uma contribuição de grande interesse para nosso desenvolvimento cultural, visto tratar-se de gênios, mestres de um saber que deve ser necessária e internacionalmente divulgado. Enfim, o trabalho panorâmico está mais próximo do tipo didático, pois visa à difusão do saber, enquanto o monográfico se aproxima mais da pesquisa propriamente científica, preocupado como está com a produção do conhecimento. Os dois tipos de atividade intelectual (o científico estaria para a indústria como o didático para o comércio, se nos permitirem a formulação de tal equação para esclarecer melhor a diferença) são úteis e valiosos, implicando-se mutuamente, desde que realizados com rigor metodológico.

Artigo/ensaio

45

Page 46: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Passamos agora a tecer leves considerações sobre trabalhos intelectuais menores, mas que ocupam o dia a dia dos docentes universitários e de todos os que lidam com a produção científica. O sentido que nos interessa, entre os diferentes paradigmas do lexema artigo, é de um escrito a ser publicado num periódico, seja ele uma revista, um jornal, um anuário, etc. Como o próprio nome sugere, o artigo é uma pequena parcela de um saber maior, cuja finalidade, de modo geral, é tornar pública parte de um trabalho de pesquisa que se está realizando. O artigo pode destinar-se a uma revista ‘miscelânea’, que aceita qualquer tipo de assunto, ou especializada em determinada área de conhecimento ou temática que, para cada número, escolhe um assunto a ser desenvolvido por seus colaboradores. Neste último caso, o artigo é feito sob encomenda, pois é a direção da revista que vai solicitar, com certa antecedência, a participação dos especialistas no tema que será o objeto da edição do número subsequente. Acerca da elaboração de um artigo, não podemos dar sugestões, pois cada revista tem seu corpo editorial que estabelece as próprias normas de editoração, determinando o número de laudas e a tipologia de citação bibliográfica.

Já o ensaio, do francês essai, embora possa ser menor do que o artigo, é um estudo concludente, que não remete a trabalhos anteriores ou futuros, redigido numa linguagem de alto nível, com exposição lógica e rigor de argumentação. Mas, se o ensaio é fechado quanto à sua estrutura, ele é muito mais aberto quanto ao sentido. O autor tem a plena liberdade de defender determinado ponto de vista, sem a obrigação de provar o que afirma por meio de uma documentação ou de aparato bibliográfico. Portanto, não fica bem que o autor de um ensaio seja um crítico principiante, pois tal tipo de trabalho intelectual convém apenas a um profissional de renomeada sabedoria, ancorado numa longa experiência de estudo e de reflexão sobre a matéria específica e sobre a vida em geral.

Resumo/resenha

A palavra inglesa abstract tornou-se o termo técnico para designar um tipo de trabalho intelectual de pequeno porte, expresso em nosso idioma por vários vocábulos: resumo, recensão, sinopse, fichamento, resenha. Evidentemente, não se trata de sinônimos, pois o nível de profundidade difere de uma denominação para outra. O abstract é assim definido por Salomon (17, p. 132): “Apresentação concisa e seletiva do texto de um artigo, obra ou outro documento, pondo em relevo os elementos de maior interesse e importância, sendo frequentemente redigido por outra pessoa que não o autor.” Tal resumo ou sinopse, se encabeçar artigos publicados em revistas de divulgação internacional, deve ser traduzido para a língua inglesa, atualmente o idioma de comunicação entre as nações, para que o leitor estrangeiro possa providenciar a tradução do artigo inteiro, se a matéria for de seu interesse.

Nessa mesma linha de trabalho curto está a comunicação (chamada também de informe), que se apresenta numa sessão de um congresso científico. Sua peculiaridade em relação ao resumo é que, embora possa ser exigida sua apresentação por escrito, a exposição é feita oralmente, sendo suscetível de provocar um debate com a plateia interessada. Já a resenha é diferente do resumo por natureza: mais do que apresentar apenas a súmula do conteúdo, o resenhista deve tecer considerações críticas sobre o

46

Page 47: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

trabalho científico ou artístico, analisando sua estrutura e sua importância, não fugindo da responsabilidade de apontar também defeitos graves, se for o caso.

Currículo/memorial

O curriculum vitae é a relação ordenada de todos os fatos importantes da vida de um profissional; nele se encontram, com os dados pessoais, todas as atividades desenvolvidas numa certa área do conhecimento, seguindo a ordem cronológica. Mas é preciso tomar o cuidado de relacionar apenas aquilo que se pode provar. Por isso, os que aspiram a percorrer uma carreira devem adquirir o hábito de exigir e guardar atestados, certificados, todo tipo de comprovante das atividades relevantes. A elaboração de um currículo varia conforme a natureza de cada profissão. Há empresas, órgãos empregadores públicos, entidades fornecedoras de bolsa de estudo, que já têm formulários apropriados: aí é só preencher. Manda a prudência, porém, que cada qual confeccione seu currículo e o mantenha constantemente atualizado, tendo sempre à mão os comprovantes de cada item relacionado. Com a ajuda de um microcomputador, essa tarefa, hoje, é extremamente fácil.

O memorial é um currículo comentado, a história de uma vida refletida, a autoanálise dos fatos memoráveis, visando especialmente a pôr em luz a evolução na área de conhecimento escolhida. Em seu uso mais frequente, o memorial é o relato crítico da produção intelectual, científica e acadêmica de um candidato a um concurso público para ocupar um grau mais alto na carreira universitária. Suas atividades de docência, de pesquisa e de prestação de serviços à comunidade, além de comprovadas, devem ser analisadas, justificadas e defendidas publicamente perante uma banca examinadora. É necessário que o material, ao apresentar a trajetória acadêmico-profissional do docente, comprove que as atividades exercidas estão inseridas no projeto global de sua produção e que esta vem ao encontro das necessidades da instituição. Enfim, enquanto a palavra currículo encerra o sentido de “correr”, de uma exposição rápida dos fatos importantes, o termo “memorial” sugere um parar para pensar, a lembrança, a reflexão crítica sobre a produção profissional, científica ou artística que for, e sobre nossa contribuição para darmos um sentido à vida, de modo geral.

Roteiro/relatório

Muitas vezes, usa-se a palavra roteiro como sinônimo de projeto ou de plano de pesquisa. O motivo é que, em ambos os casos, temos a apresentação de uma lista de tópicos a serem desenvolvidos. O que é incorreto, a nosso ver, é falar de roteiro de um projeto, pois o projeto não deixa de ser um roteiro. A diferença reside no tamanho e na finalidade do trabalho intelectual: falamos de projeto ou plano quando a pesquisa é de largo fôlego, vai ocupar um longo tempo de estudo e será apresentada para o julgamento de uma banca examinadora, de um conselho editorial, de uma junta industrial ou comercial. Já o roteiro se refere à listagem dos elementos de um trabalho mais modesto, que pode ser a exposição de um seminário, a programação de uma excursão turística, etc.

Ficando no campo estritamente didático, o expositor de um seminário deve preparar e distribuir com antecedência um texto-roteiro dos tópicos a serem discutidos. O seminário distingue-se da aula teórica pela participação coletiva por meio do diálogo:

47

Page 48: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

cabe ao coordenador apenas estimular a discussão, apresentando questões e suscitando dúvidas. Ora, se os participantes não estiverem a par do assunto, não poderão intervir, e o seminário transforma-se num monólogo, numa aula ministrada por um aluno, substituto do professor, geralmente com degradação de nível. Daí a necessidade da entrega prévia de uma apostila-roteiro, da qual constam a temática, o esquema de tratamento e a bibliografia básica, para que todos estejam em condições de tomar parte da discussão. Seminário significa semear ideias!

O relatório está para a conclusão como o roteiro para o projeto de pesquisa, com a mesma diferença apontada anteriormente: a conclusão cabe num trabalho de grande vulto, enquanto o relatório diz respeito a atividades menores. Em ambos os casos, a parte final deve retomar a proposta inicial. Como a conclusão remete à introdução, o relatório deve fazer referência ao roteiro do trabalho anteriormente apresentado. Conforme seu sentido próprio, a função do relatório é prestar contas do trabalho desenvolvido durante certo tempo. Há vários tipos de relatórios: semanal, anual, trienal, etc., conforme as exigências da entidade a que se presta serviço. Além dos relatórios acadêmicos das atividades de docência, de pesquisa e de prestação de serviços, há outros referentes a bolsas de estudo, afastamentos para participação em congressos, etc. Um relatório, para ser satisfatório, deve evidenciar as atividades desenvolvidas conforme a promessa apresentada no plano inicial e dentro do prazo previsto. Se houver algum desvio do projeto proposto (e isto é muito provável de acontecer, pois todo plano é sempre provisório e a pesquisa é essencialmente dinâmica), é preciso explicar o motivo da mudança de rumo perante as dificuldades encontradas.

VI - Metodologia aplicada ao estudo da literatura

A matéria dos capítulos até agora estudada diz respeito à elaboração de qualquer tipo de trabalho intelectual, não importando a área de conhecimento. Apontamos as normas gerais para a construção lógica de um texto científico e refletimos sobre as atividades de ensino e de pesquisa que envolvem o cotidiano de docentes e discentes de ciências exatas, biológicas ou humanas. É preciso, porém, deixar bem claro que não existe um método único, uma fórmula mágica que, uma vez aprendida e aplicada, possa dar conta da confecção de qualquer trabalho intelectual. A nosso ver, além do conhecimento dos princípios gerais, cada área de conhecimento deveria formular suas linhas metodológicas específicas e, dentro dessas, o pesquisador deveria encontrar o caminho mais apropriado para o desenvolvimento do tema escolhido. O problema metodológico implica, portanto, um processo de afunilamento: o pesquisador deve conhecer, primeiro, os conceitos e normas gerais da metodologia do trabalho científico; em segundo lugar, os vários enfoques possíveis específicos de sua área de conhecimento; e, por último, entre estes, escolher o tipo de abordagem mais apto à natureza e à finalidade do trabalho a ser realizado.

Para demonstrarmos como funciona essa proposta metodológica, após a exposição dos princípios gerais, apresentamos em seguida os vários enfoques possíveis de uma obra dentro da área de conhecimento de nossa competência, a literatura, e, no capítulo final, a parte prática, por meio do exercício da análise e interpretação de um texto literário

48

Page 49: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

específico. Antes, porém, convém definir o que se entende por “Literatura”. Consideramos a literatura como

“uma forma de conhecimento da realidade que se serve da ficção e tem como meio de expressão a linguagem artisticamente elaborada” (D’Onofrio, 26, p. 9).

Essa nossa definição, além de diferenciar a literatura da filosofia, das ciências e das outras artes, evidencia sua essência (o arranjo artístico do material linguístico) e sua finalidade principal (um modo peculiar de compreensão da realidade). A literatura é constituída pelo conjunto imenso de textos criados pela fantasia de poetas, romancistas, contistas e dramaturgos ao longo de séculos, em diferentes línguas e nos diversos países.

Para possibilitar o estudo de um material tão rico, os críticos, desde o filósofo grego Aristóteles, no século III a.C., apresentaram várias propostas de agrupamento das obras de arte literária em gêneros e épocas. A palavra texto deriva do latim textu (tecido), cujo radical tec originou vários vocábulos da mesma família: tecido, têxtil, textura, etc. Seu sentido etimológico de entrelaçamento de fios se ampliou para a significação genérica de elementos fortemente ligados entre si: trama ou entrecho. Com efeito, um texto literário é um conjunto de elementos linguísticos artisticamente estruturado, que visa a transmitir parcelas de significado da realidade.

Portanto, dois fatores têm que despertar o interesse do pesquisador: a estrutura artística do texto e a realidade sociocultural em que ele foi produzido. Daí a existência de dois métodos fundamentais para o estudo da literatura: a abordagem interna, estrutural, sincrônica, pela qual a obra é analisada em seus elementos constitutivos, como objeto de arte, independentemente do autor e da época; e a abordagem extrínseca e diacrônica, pela qual o texto literário é visto em seu contexto cultural, influenciado pela natureza do gênero a que pertence, em sua evolução de uma forma para outra e, pelas condições históricas, relacionado com fatores sociais e com a ideologia da época.

Essas duas modalidades metodológicas, que exporemos melhor em seguida, antes de serem contrastivas ou opositivas, são complementares, implicando-se mutuamente. A nosso ver, o procedimento de análise e interpretação de uma obra de arte literária deve passar por três etapas sucessivas: a fase do estudo do intratexto (verificação do arranjo estético de seus elementos constitutivos); do intertexto (a relação que a obra estabelece com outros textos do mesmo autor, do mesmo gênero ou da mesma época); e do extratexto (os princípios ideológicos e os padrões ético-sociais do espaço e do tempo da produção da obra).

Visão sincrônica da literatura (estrutura do texto)

O método da abordagem interna da obra literária, centrado na análise de seus elementos constitutivos, possibilita vários enfoques. Indicaremos, sucintamente, os mais importantes por sua eficácia operacional.

O enfoque linguístico

Como já vimos, o conceito de texto implica o entrelaçamento dos vários elementos que compõem a linguagem humana: fonemas, morfemas, lexemas, sememas.

49

Page 50: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

A ciência que estuda os componentes da palavra e as relações entre os vários termos de um enunciado é a linguística, que recebeu sua roupagem moderna pelo suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), considerado o pai das principais correntes linguísticas da atualidade: a glossemática, de Hjelmslev; a funcional, de Martinet, Jakobson e da escola linguística de Praga; a distribucional, de Bloomfield e da escola norte-americana; a generativa, de Chomsky.

As maiores contribuições da ciência da linguística para a crítica literária residem no estudo da natureza do signo linguístico (composto de um significante e de um significado), das diferentes funções da linguagem (relacionadas com os fatores da comunicação humana), do relevo dado a várias dicotomias: fala e sistema, sintagma e paradigma, sincronia e diacronia, polo metonímico e polo metafórico. Tais conceitos e oposições formam o arcabouço metodológico que ajuda o estudioso da literatura a perceber a poeticidade de uma obra, oferecendo meios para poder distinguir um texto literário de um tratado científico, de um livro de história, de uma reportagem jornalística.

A função poética da linguagem provoca desvios da norma comum no afã de romper os automatismos linguísticos com o fim de obrigar o leitor a pensar nas palavras e nos vários sentidos que elas podem conter. Os desvios são encontráveis em relação à palavra isoladamente considerada (metaplasmos), às relações que as palavras estabelecem entre si (metataxes) ou ao sentido (metassememas). Quem quiser realizar uma abordagem linguística, portanto, deverá fazer o levantamento de todas a alterações que ocorrem num texto literário, revelando os vários tropos ou figuras de estilo: metáforas, metonímias, anacolutos, antíteses, perífrases, onomatopéias, etc. Evidentemente, o estudioso não pode parar na coleta dos dados, limitando-se a fins estatísticos. Sua obrigação de crítico é interpretar os motivos dos desvios linguísticos que levaram o poeta a construir uma linguagem diferente.

O enfoque semiótico

A semiótica, também chamada de semiologia, é a ciência que estuda os signos como sistema de sinais utilizados na comunicação humana. A abordagem semiótica de um texto, portanto, além de considerar o aspecto puramente linguístico, vê a obra de arte literária como um sistema de signos que, a par de outros sistemas não poéticos (moda, alimentação, trânsito, mitologia, etc.), tem a finalidade da comunicação de uma mensagem, sendo a expressão de um conteúdo ideológico. O sistema de signos que compõem a obra literária está inserido num sistema maior, a língua, que, por sua vez, faz parte do macrossistema da semiótica, a ciência geral dos signos que regulam a vida humana. A semiologia estuda a constituição íntima do signo (relações entre significante e significado); a estrutura sintática (plano sintagmático) e a estrutura semântica dos signos (plano paradigmático); as relações entre emissor e receptor (aspecto pragmático); as relações entre emissor e receptor (a função conativa dos signos).

A semiologia como ciência foi enunciada por Ferdinand de Saussure, que previu sua possibilidade de existência e seu campo de aplicação. Foi, porém, o filósofo e cientista norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) a dar os passos decisivos para a constituição de uma ciência semiológica. Seu conceito de interpretante (signo que dá sentido a outro signo) e sua classificação dos signos em ícone (relação imagética ou de semelhança), índice (relação de contiguidade) e símbolo (relação convencional)

50

Page 51: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

constituem o fundamento dos estudos sobre os signos. Na trilha de Peirce caminharam outros semiológicos famosos: Ernst Cassirer, Eric Buyssens, Louis Hjelmslev, Roland Barthes, A.J. Greimas, Umberto Eco.

Para o estudo intrínseco da literatura, são de importância fundamental as distinções semiológicas entre plano de expressão e plano de conteúdo, entre sintagma e sistema, entre denotação e conotação. Ainda é preciso notar que a semiologia “pode dar maior atenção aos aspectos comunicativos dos signos e, portanto, aos diferentes códigos em que eles se agrupam e às mensagens que com eles se formulam; ou à natureza e ao valor dos próprios signos, vistos em seu aspecto inventivo, criativo, e em sua potencialidade expressiva. No primeiro caso, tem-se um estudo do codificado; no segundo, um estudo da codificação.” (Segre, 40, p. 98). Acrescentamos que a semiologia, se quiser ser realmente um método eficiente de análise e de interpretação da obra de arte literária, deve preocupar-se com os dois aspectos, quer com a função estética, quer com a função comunicativa dos signos, relacionando sistemas de formas com sistemas de significados.

O enfoque estilístico

A estilística veio substituir a antiga Retórica, a arte do falar bonito. Ela adquiriu estatuto de método objetivo de análise literária quando deixou de ser normativa (imposição de regras para a composição de um texto) para ser descritiva (análise dos modos de expressão peculiares a um artista, a um gênero ou a uma época). Isto se deu a partir do começo do século passado com estudiosos alemães (Vossler e Leo Spitzer), italianos (F. de Sanctis e Benedetto Croce), espanhóis (Amado e Dámaso Alonso), franceses (C. Bally, J. Marouzeau, M. Cressot, P. Guiroud, M. Riffaterre), e de língua inglesa, pelo close reading do new criticism (I. A. Richards, W. Empson, O. Brooks).

A análise estilística de uma obra literária pode ser feita por duas abordagens distintas e complementares: análise do estilo do plano da enunciação e análise do estilo do plano do enunciado. Pela primeira, examina-se o discurso literário, estabelecendo as relações entre emissor e receptor e distingue-se entre discurso direto, indireto ou misto, entre forma monológica ou dialógica, entre estilo modalizante ou avaliatório. Pela segunda, examina-se a predominância dos elementos fônicos, as propriedades rítmicas e melódicas da frase, as peculiaridades das construções sintáticas, as categorias que denunciam o aspecto representativo ou figurativo do texto.

O enfoque formalista

Trata-se de uma posição metodológica da crítica que substitui a oposição tradicional entre forma e conteúdo pela relação entre material (os elementos fônicos, lexicais, sintáticos e semânticos do texto) e priom (processo ou procedimento: a maneira pela qual o material é manipulado para produzir o efeito estético). A organização do material usado pelo escritor, que pode ser de fundo mítico, histórico, psicológico, imitativo de uma natureza exterior ou interior, deve ser feita segundo um procedimento de singularização, que leva a uma visão peculiar do objeto, libertando a percepção do automatismo. Segundo V. Chklovski, o poeta age como um turista que vê uma paisagem pela primeira vez, sentindo o efeito de estranhamento que a novidade causa em seu

51

Page 52: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

espírito. Em L. Tolstoi, por exemplo, o procedimento de singularização “consiste no fato de que ele não chama o objeto por seu nome, mas o descreve como se o visse pela primeira vez e trata cada incidente como se acontecesse pela primeira vez” (43, p. 46). A literariedade do texto, isto é, a diferença específica que faz com que um produto de linguagem seja considerado uma obra de arte, segundo os formalistas russos, consiste no arranjo estético do material utilizado.

Como o princípio da forma é o traço distintivo da percepção estética, o crítico tem por ofício analisar o priom da obra para descobrir-lhe a especificidade que torna o texto literário um objeto estético. A atividade dos formalistas iniciou-se em Moscou, em volta de 1914, continuou em Praga, após a condenação pública feita pelo regime marxista, e de lá se estendeu para a Europa mais ocidental. Entre as contribuições que marcaram a análise do texto literário, assinalamos os estudos sobre o verso e o conceito de função, entendida como átomo importante de narratividade, formulado por V. Propp e aplicado ao estudo do conto maravilhoso.

O enfoque estruturalista

A partir da década de 60, estudiosos franceses substituem o conceito de forma pelo de estrutura como ponto de partida para a análise do texto literário. A concepção de estrutura, entendida como relação entre as partes de um conjunto, pode ser rastreada em antigas noções das ciências naturais, matemáticas e humanas, em que se confundem noções afins, como sistema, organismo, conjunto, modelo, forma. Aplicado à linguística por Wilhem Humboldt, o termo estrutura encontra-se em Saussure e nos formalistas russos que usam indiferentemente forma ou estrutura.

Foi Claude Lévi-Strauss que deu notoriedade ao termo estrutura ao transferi-lo da Linguística para a Antropologia. A teoria lévi-straussiana está fundamentada no princípio do isomorfismo entre as leis do pensamento e as leis do real. Captar as estruturas de determinados comportamentos humanos significa expressar racionalmente o inconsciente metaindividual que sustenta as regras do funcionamento social. Segundo essa teoria, a estrutura não poderia ser individualizada num objeto particular, mas num modelo teórico formulado a partir da análise de vários objetos.

Distinguiríamos, então, a forma (o todo orgânico de um objeto concreto) da estrutura (modelo geral elaborado pela análise dos elementos constitutivos e invariáveis, comuns a este e a outros objetos do mesmo grupo ou da mesma espécie). Aplicado aos estudos literários, o conceito de estrutura de Lévi-Strauss levaria a dar um novo nome ao trabalho proppiano: o formalista russo não teria descoberto a morfologia, mas a estrutura do conto fantástico, visto que V. Propp construiu seu modelo com base na análise de um corpus constituído de cem narrativas populares.

À margem das questões teóricas acerca do conceito de forma e de estrutura, deve ser salientada a enorme relevância dos chamados estruturalistas franceses para a análise e a compreensão do texto literário, especialmente no que toca o estudo da narrativa ficcional. Trilhando o caminho iniciado por V. Propp, eles procuraram generalizar seu método de trabalho, estendendo as pesquisas para a análise não só do conto fabuloso, mas também de qualquer tipo de narrativa.

Roland Barthes amplia o conceito proppiano de função, acrescentando às funções distributivas ou sintagmáticas, que ocorrem em relação ao fazer (núcleos e catálise), as

52

Page 53: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

funções integrativas ou paradigmáticas do plano do ser (índices e informantes); A.J. Greimas reduz as 31 funções de Propp a dez duplas, agrupando-as em três categorias básicas (as ações que dizem respeito ao contrato, à prova e à viagem do herói) e as sete esferas de ação das personagens a seis actantes (dois no eixo do querer: sujeito vs objeto; dois no do saber: destinador vs destinatário; e dois no do poder: ajudante vs oponente); Claude Bremond procura captar a rede de possibilidades lógicas que engendram a narratividade, por meio da distinção de três momentos (virtualidade, passagem ao ato e resultado) e de dois processos (melhoramento e degradação); T. Todorov estuda as categorias da narrativa literária de uma forma geral, estabelecendo uma dicotomia entre história (análise lógica das ações e das relações entre as personagens) e discurso (análise do processo da enunciação ou foco narrativo).

O enfoque fenomenológico

Este tipo de abordagem se limita à descrição da obra literária, considerada como um fenômeno, isto é, como ela aparece aos olhos e à intuição do observador. A experiência perceptiva é o fundamento de todas as operações da consciência. O analista de formação fenomenológica aproxima-se do texto literário com mente pura, afastando de si as influências de qualquer tradição cultural, autoridade crítica, pressuposição lógica sobre a constituição do objeto artístico, de qualquer modelo de análise preestabelecido. A fenomenologia é, ao mesmo tempo, um modo de ver e um método. O método consiste no modo de ver e este modo de ver constitui o método.

A análise fenomenológica distingue no objeto artístico vários aspectos ou estratos que, no texto literário, são identificados como óptico, fônico, lexical, sintático, semântico, ideológico, figurado. É preciso salientar, porém, que tal estratificação só existe graças ao esforço analítico do crítico, porque o texto é percebido pelos sentidos e pela consciência, à primeira vista, como um todo orgânico, uma forma homogênea. Os princípios dessa doutrina filosófica foram aplicados ao estudo da literatura por Roman Ingarden, ligado à escola fenomenológica de Husserl. O trabalho principal de Ingarden encontra-se traduzido para nossa língua pela Fundação Calouste Gulbenkian: A Obra de Arte Poética. Lisboa, 1965.

O enfoque temático

É um dos métodos mais tradicionais de análise literária, revitalizado pelas contribuições de pesquisadores ligados ao formalismo, à psicanálise e ao estudo de arquétipos. Para este tipo de abordagem, é interessante ler o trabalho de B. Tomachevski, intitulado Temática (in: 43). O estudioso russo, preocupado em descobrir o priom da obra literária, procede à desmontagem do texto e encontra seus elementos constitutivos nos motivos, elementos indecomponíveis, átomos de narratividade e de significação, unidades temáticas mínimas. Distingue entre motivos associados (indispensáveis para a compreensão da fábula, constituída pelo material narrativo em sua ordem cronológica) e motivos livres (os componentes da trama, a disposição artística dos fatos); entre os motivos dinâmicos (que dizem respeito ao fazer das personagens) e motivos estáticos (relacionados com o ser dos atores e com a descrição do ambiente). Podemos ainda distinguir entre leitmotiv (um motivo que se repete com insistência na obra) e topos

53

Page 54: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

(motivos que se repetem em várias obras do mesmo autor, da mesma época ou do mesmo gênero literário). A conjunção de vários motivos, que são os suportes da mesma significação, constitui o tema, que pode ser parcial (referente a um único segmento semântico) ou principal (referente à significação da obra em sua totalidade); particular (específico de uma obra) ou universal (comum a várias obras de diferentes épocas); atual ou histórico.

Quanto ao tipo de análise temática mais universalizante que, em vez de preocupar-se em colher os motivos esteticamente distribuídos ao longo de determinada obra, rastreia os tema gerais pertencentes à essência de uma cultura, traduzimos um trecho do Dictionnaire Encyclopédique des Sciences du Langage:

“Na época contemporânea, quase todos os sistemas temáticos se inspiram numa ou noutra tendência psicanalítica: a teoria dos arquétipos, de Jung; a dos componentes materiais da imaginação (os quatro elementos), de Bachelard; a dos ciclos naturais (as quatro estações, as horas...), de Frye; a dos mitos ocidentais (Narciso, Édipo...), de Gilbert Durand. Estas construções, tão engenhosas quanto frágeis, ameaçam constantemente de fazer desaparecer a especificidade literária: querendo englobar toda a literatura, elas englobam mais do que a literatura; de outro lado, recusar-se a reconhecer a existência de elementos temáticos no texto literário não resolve o problema. É preciso chegar a mostrar a semelhança entre a literatura e os outros sistemas de signos, ao mesmo tempo em que se demonstre sua especificidade: este trabalho ainda não foi feito.” (30, p. 284-285).

Visão diacrônica (evolução do texto)

A abordagem extrínseca da literatura olha o texto mais do ponto de vista de sua evolução no tempo e no espaço do que de sua composição interna. É o método mais tradicional de estudo da obra literária, relacionado, de certa forma, com os avanços filosóficos, científicos, metodológicos e ideológicos do positivismo e do evolucionismo da segunda metade do século XIX. Como teria sido muito difícil para o cientista inglês Charles Darwin apresentar a tese revolucionária sobre as origens das espécies sem a classificação anterior em gêneros, feita pelo botânico sueco Carlos Linneu, assim, ao crítico literário seria impossível analisar uma obra peculiar, uma espécie de arte, sem o recurso ao estudo do gênero a que pertence e da época em que foi produzida. Como as espécies do mundo biológico evoluem continuamente de uma forma para outra sob o impacto da luta pela sobrevivência, assim as obras de arte adquirem várias feições em conformidade com as mudanças da sociedade. Se, a partir do romantismo, não se produziram mais poemas épicos relevantes, foi porque não existiram mais heróis nacionais dignos de serem exaltados. Explicar, assim, por exemplo, o como, o quando e o porquê se deu a passagem da narrativa épica para a forma romanesca é uma das tarefas da crítica diacrônica.

Essa modalidade de abordagem do texto literário é centrípeta, visto que a atividade crítica parte de fora para dentro: estudam-se a biografia do autor, as condições socioculturais que formaram sua personalidade, as escolas e os movimentos literários que lhe forneceram os cânones estéticos e o complexo ideológico em que viveu. Munido destes conhecimentos, o crítico inicia a análise e a interpretação de um texto dado,

54

Page 55: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

visando especialmente verificar até que ponto o autor é ‘filho de sua época’, reproduzindo as formas estéticas e os conteúdos ideológicos da classe social e do movimento literário. Entre as várias modalidades desse enfoque histórico e externo da obra artística, destacamos algumas que apresentam um relevante sucesso operacional:

Análise sociológica

Este tipo de abordagem considera a literatura, a par das outras atividades artísticas, como produto e expressão da cultura e da civilização de um povo nas diversas fases de seu desenvolvimento. A interação escritor-sociedade é proveniente dos seguintes fatores: a) o emissor (o escritor) é um ser socializado, que sente e vive os problemas políticos, sociais, religiosos e éticos de seu grupo; b) o código (a língua) de que se serve não é um fator individual, mas institucional, coletivo, cuja função primordial não é artística, mas prática, de comunicação; e por mais que o escritor possa alterar a linguagem, usando-a de modo peculiar para obter a função poética, o certo é que a parole artística só é possível a partir de uma langue; c) a mensagem (o texto produzido), muito embora fruto de uma individualidade poética, não é uma mônade estética, pois sofre as influências das convenções dos gêneros e dos movimentos que são produtos de uma coletividade: mesmo quando o artista é um renovador de formas estéticas e de conteúdos ideológicos (é o caso dos grandes autores ou gênios), ele não pode fugir da tradição cultural de que é obrigado a servir-se para estabelecer o contraste; d) o destinatário (o leitor), enfim, apesar de ser ficcionalmente virtual no ato da criação artística, não deixa de participar da mesma realidade histórica do escritor: quer dizer, o autor tem o intuito de atingir um público que vive os problemas de sua época, embora, devido ao caráter polissêmico e universalizante da verdadeira obra artística, esta possa ser usufruída também por leitores posteriores.

A crítica sociológica explora a análise dos quatro fatores apontados e procura inserir a obra literária num contexto cultural e social. Ela é válida do ponto de vista epistemológico, não quando, lançando mão de métodos específicos das ciências exatas, tenta explicar o fenômeno literário, buscando as causas na realidade econômica ou considerando a arte como expressão de uma ideologia, mas quando se preocupa em compreender os sentidos possíveis de uma obra, estabelecendo homologias entre as estruturas artísticas e as estruturas mentais de certos grupos sociais. É o chamado estruturalismo genético, cujo melhor formulador foi Lucian Goldmann. No que toca especificamente ao estudo do romance, por exemplo, o sociólogo francês apresenta a seguinte hipótese:

“A forma romanesca parece-nos ser a transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado. Existe uma homologia rigorosa entre a forma literária do romance, tal como acabamos de definir, nas pegadas de Lukács e de Girard, e a relação cotidiana dos homens com os bens em geral e, por extensão, dos homens com os outros homens, numa sociedade produtora para o mercado” (32, p. 16).

Numa linha semelhante de pesquisa trabalha o prof. Antonio Candido, autor da obra Literatura e Sociedade, que considera o fator social não apenas como matéria de que se

55

Page 56: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

serviria o artista, mas também e especialmente como um agente de estrutura e, então, como determinante do valor estético. Visto desta maneira, o fator social deixa de ser apenas um referente extratextual para tornar-se um elemento interno à obra de arte literária. Análises de tipo sociológico realiza também Erich Auerbach que, no famoso livro Mimesis (a representação da realidade na literatura ocidental), tenta estabelecer uma estreita ligação entre o estilo das obras de um autor e as estruturas sociais da época. Já os pensadores e críticos alemães Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, ligados à estética marxista, estão preocupados em explicar o fenômeno da massificação da cultura, pois as técnicas de reprodução (a fotografia, o clichê, a litografia, o cinema) destroem a aura de individualidade do objeto artístico, substituindo o valor de culto pelo valor de consumo.

Análise psicológica

Tem em comum com o estudo sociológico da obra de arte o olhar de fora para dentro. A diferença está na maior importância que a abordagem psicológica confere ao estudo da personalidade do autor, deixando em segundo plano os fatores epocais. É muito antiga a concepção da arte como fruto de uma personalidade psiquicamente excepcional. Platão concebe o poeta como um indivíduo temporariamente possesso pela divindade: ele só poderia criar nos momentos em que se sentisse inspirado. Não obstante a concepção antitética de Aristóteles, que considera o poeta como um ser lúcido, no pleno gozo de suas faculdades intelectuais, um artífice que estrutura livre e conscientemente o material poético, a teoria platônica da inspiração artística como dom divino impregna as concepções sobre a criação literária na cultural ocidental. O mito da musa inspiradora, onipresente na poesia épica grega, latina e renascentista, cristianiza-se na estética neoplatônica de Marsílio Ficino: as musas são substituídas pelo Espírito Santo. A gênese da obra literária, portanto, é vista como semelhante à gênese dos Livros Sagrados e o poeta é considerado um profeta, um sacerdos, investido de um saber transcendental.

A teoria platônica do poeta inspirado e a teoria aristotélica do poeta artífice encontram uma reformulação na oposição salientada pelo filósofo alemão F. G. Nietzsche entre espírito dionisíaco e espírito apolíneo. Dionísio (na mitologia grega) ou Baco (na mitologia romana), fruto híbrido do amor de Júpiter com a princesa tebana Sêmele, por não ser aceito no Olimpo, errou pela Terra, ensinando aos homens o cultivo da uva e a produção do vinho. Seus fiéis, sátiros e bacantes, durante a celebração ritual, num estado de embriaguez, sentiam-se possessos pelo deus e compunham seus cantos sob a inspiração direta de Dionísio. A poesia ditirâmbica era um tipo de arte produzida por pessoas transformadas, que declinavam momentaneamente de sua personalidade durante as festas carnavalescas em honra de Baco. Contrastando com Dionísio, Apolo era um deus integrado no convívio celeste, patrono da luz e da ordem. A essência do ideal estético apolíneo reside na harmonia das formas, na exata proporção das partes com o todo. O artista que se inspira em Apolo é um ser que lúcida e conscientemente constrói suas mensagens, um técnico que conhece seu ofício.

Outros críticos, sem se referir explicitamente às teorias de Platão ou de Aristóteles acerca da gênese da criação poética ou à oposição nietzschiana dionisíaco/apolíneo, também fazem distinção entre um tipo de literatura fruto de espíritos estética e ideologicamente inconformados e a produção literária de escritores que não contestam os valores estéticos e as convenções sociais de sua época. Pensamos na oposição entre

56

Page 57: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

literatura dialógica e monológica de M. Bakhtine, entre fase irônica (mythos do Inverno) e romanesca (mythos do Verão) de N. Frye, entre escritores apocalípticos e integrados de U. Eco. Tal dicotomia pode ser percebida na oposição “romântico vs clássico”, estendendo-se estes termos não na concepção histórica de movimentos literários, mas como atitudes estéticas e espirituais, que enformam as várias fases da produção artística. Nesse sentido, na história da literatura, teríamos uma alternância da posição romântica e da atitude clássica perante a vida. A concepção do autor inspirado e do ator artífice representaria duas invariantes, estética e ideologicamente indicativas de valores constantes no meio das configurações variáveis de que se reveste cada período literário.

A crítica psicológica, porém, com pretensões científicas afasta-se dessas especulações míticas e supra-históricas, procurando encontrar a gênese da criação artística na carga biopsíquica de que o autor é portador. As modernas teorias da psicanálise, quando aplicadas ao estudo da obra literária, têm substituído o pensamento antigo da inspiração como dádiva divina pela teoria da arte como neurose. A gênese do furor poético residiria, então, num desequilíbrio emocional do autor, causado ou por deficiência física (a cegueira de Homero, a corcunda de Leopardi, etc.). O poeta seria um ser excepcional, inadaptado ao ambiente, que sublima na arte os recalques do subconsciente, quer individual (Freud), quer coletivo ou rácico (Jung). Na opinião de David Daiches,

“pode-se considerar a biografia de um autor, ilustrada pelos fatos externos de sua vida e por elementos outros, tais como cartas e documentos que tenham o caráter de confissões e, com isso, construir uma teoria sobre a personalidade desse autor – seus conflitos, frustrações, experiências traumáticas e neuroses, ou o quer que seja – e valer-se de tal teoria para esclarecer cada uma de suas obras” (28, p. 337).

A biocrítica e a psicocrítica, centrada sobre o estudo da personalidade do autor, têm várias falhas, fáceis de ser apontadas: a) não serviriam para a análise de obras cujo autor seja anônimo ou suas notícias biográficas escassas; b) admitem implicitamente que toda obra literária seja imbuída de espírito dionisíaco e possua uma ideologia revolucionária; c) confundem o eu do narrador com o eu do autor, misturando elementos do mundo real com o universo imaginário; d) quando alcançam seu intento, conseguem apenas explicar a gênese da produção literária, não atingindo a compreensão nem da forma estética, nem do conteúdo ideológico.

A crítica psicológica adquire valor literário somente quando, da mesma forma que vimos em relação à crítica sociológica, tem o texto artístico como objeto de pesquisa; isto é, quando as leis e os princípios da psicologia e da psicanálise são aplicados não ao estudo da pessoa do autor, mas das personagens de ficção. Quer dizer, a metalinguagem crítica pode valer-se de elementos conceptuais oriundos das ciências psicológicas para explicar o comportamento de uma personagem, sua evolução emocional, suas contradições existenciais, suas idiossincrasias, suas reações ao ambiente ou o relacionamento psíquico que une ou separa as personalidades de determinada obra literária.

Também as categorias do espaço e do tempo ficcional podem ser relacionadas com estados psicológicos. Pode-se até chegar à determinação da estrutura poética de um

57

Page 58: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

texto, utilizando apenas elementos teóricos extraídos da psicologia. Como bem evidencia um estudioso do assunto, Dante Moreira Leite, na conhecida obra Psicologia e Literatura (36), de uma forma plena ou parcial, consciente ou inconscientemente, é impossível analisar e interpretar um texto literário sem lançar mão de processos psicológicos, pois a escolha do crítico não consiste em utilizar ou não a psicologia, mas em usar a psicologia do senso comum ou a psicologia científica.

Teoria dos arquétipos

Trata-se de construções críticas que se apoiam em concepções gerais sobre a cultura e a civilização dos povos com um olhar globalizante, rastreando fases e modos na história da literatura. Quem melhor trabalha nessa linha de pesquisa é o estudioso norte-americano Northrop Frye. Ele individualiza quatro tipos de crítica:a. A crítica histórica: teoria dos modos (o trágico, o cômico e o temático);b. A crítica etológica: teoria dos símbolos (fase literal, forma, mítica e anagógica);c. A crítica arquetípica: teoria dos mitos (mito da primavera = comédia; do verão = romance; do outono = tragédia; do inverno = sátira e ironia); d. A crítica retórica: teoria dos gêneros (épica, prosa, drama e lírica).

A maior ressalva que pode ser feita ao sistema crítico proposto por N. Frye é que ele não considera a obra literária como uma produção artística individual. Mas o autor de Anatomia da Crítica é coerente com tal posição teórica, pois, na “introdução polêmica” à sua obra, afirma que a crítica é uma estrutura do pensamento autônomo em relação à arte; que não existe aprendizado direto da literatura; que o que se apreende não é literatura, mas crítica da literatura; que um poema é imitação de outros poemas, fruto de convenções e gêneros e que, portanto, “para que haja crítica é necessário que a obra examinada seja relacionada com os dados de um quadro conceptual formado por referência indutiva a uma perspectiva de conjunto da literatura” (31, p. 18). Infelizmente, o recurso a um macrossistema crítico desse naipe, embora sendo fascinante e culturalmente muito rico, é operacionalmente ineficaz para a análise e a interpretação de um texto literário!

Teoria dos gêneros

A tripartição da literatura nos gêneros narrativo, lírico e dramático foi proposta por Aristóteles, o primeiro estudioso da teoria da literatura. Ele distinguiu a palavra narrada por um contador de histórias, em terceira pessoa (gênero épico ou narrativo); da palavra cantada pelo poeta, em primeira pessoa, com acompanhamento musical (gênero lírico); e da palavra representada por atores perante espectadores, em segunda pessoa, por meio do diálogo entre as personagens (gênero dramático). Quanto ao conteúdo, em síntese, o gênero narrativo (poesia épica, romance, novela, etc.) consiste em contar uma história; o gênero lírico em expressar um sentimento; e o gênero dramático (tragédia, comédia, ópera, etc.) em discutir um problema existencial.

Emil Staiger (42) distingue os substantivos épica, lírica e drama, usados tradicionalmente pela didática escolar para um macroagrupamento dos diferentes tipos de obras de ficção, segundo determinadas características formais (uma longa narração, um

58

Page 59: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

poema curto e uma peça teatral, respectivamente), dos adjetivos épico, lírico e dramático, conceitos que, oriundos da ciência da literatura, passaram a expressar virtualidades fundamentais do ser humano: o épico corresponde ao domínio do figurativo, o lírico ao do emocional e o dramático ao do lógico. No mesmo caminho, podemos relacionar a tripartição genérica da literatura com os três planos da linguagem de que fala o filósofo alemão Cassirer: o lírico é homólogo à linguagem na fase da expressão sensorial (idade pueril); o épico à linguagem na fase da expressão figurativa (juventude); o dramático à linguagem na fase da expressão conceptual (idade adulta).

Roman Jakobson (34), relacionando as funções da linguagem com os fatores da comunicação, vê o princípio diferenciador da poesia lírica na predominância emotiva, orientada para a expressão do subjetivismo do emissor; o do gênero narrativo na preferência para a função referencial, orientada para o contexto objectual; o da poesia dramática na marcação da função conativa, orientada para o destinatário. Tal distinção está baseada no fato de que algumas espécies de obras literárias focalizam a pessoa que fala, o eu do narrador (formas líricas); outras a pessoa a quem se destina a mensagem, o tu do receptor (formas dramáticas); outras a pessoa de quem se fala, o ele do enunciado (formas épicas e romanescas).

Essas e outras considerações que poderiam ser feitas sobre a natureza dos gêneros literários são de grande auxílio para a análise e a interpretação de uma obra. Todavia, não podemos esquecer que a pureza dos gêneros foi um mito da estética clássica. Em verdade, qualquer texto literário contém elementos de narratividade, de liricidade e de dramaticidade: num romance podemos encontrar momentos líricos ou dramáticos; no script de uma peça teatral há a presença de uma história ficcional; o poema lírico pode conter uma mini-história (no caso da balada, por exemplo) ou o diálogo dramático entre o eu poemático e uma personagem. A classificação de uma obra num determinado gênero, portanto, está baseada no critério da predominância e não na exclusividade. Dizemos que o poema Os Lusíadas pertence ao gênero narrativo porque é uma obra que, embora composta em versos, apresenta o predomínio dos elementos da narratividade (a essência do poema épico de Camões é a narração da viagem de Vasco da Gama em busca do caminho marítimo para Índia), sem prejuízo da presença de momentos líricos ou dramáticos.

No estudo do processo genético de um gênero literário, podemos distinguir, do ponto de vista diacrônico, três fases, correspondentes aos arquétipos da vida: nascimento, maturidade e morte ou transformação. Quando um gênero literário chega ao apogeu, ele é canonizado, proposto como modelo digno de ser imitado, tornando-se um clássico no sentido etimológico do termo. Daí, pelas constantes repetições, pelas sucessivas reproduções, criam-se automatismos e estereótipos que provocam o desgaste e a perda de sua original força criadora, levando-o paulatina e inelutavelmente para a etapa final de sua vida, que é o desaparecimento, a mudança de funções ou a transformação num novo gênero ou numa nova forma literária. É o que aconteceu, como já acenamos, com a passagem da poesia épica para o romance. Portanto, devido ao aspecto evolutivo das formas literárias, o princípio orientador da divisão em gêneros deveria ser o recorte sincrônico, porque não existem gêneros eternos. Constatamos a existência de gêneros literários com base na observação das obras produzida em determinados períodos históricos, que apresentam homologias de forma e de conteúdo.

59

Page 60: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Em vista da função prática da divisão da literatura em gêneros, achamos que deve ser mantida a distinção tradicional entre poesia e prosa, não porque restrinjamos a poeticidade ao texto versificado, mas porque, quanto ao aspecto formal, existe substancial diferença entre os dois modos de poetar. A poesia, stricto sensu, caracteriza-se pelo ritmo da repetição: verso, do latim versus, significa para trás, retorno, pois o poeta volta sobre os mesmos fonemas (rima e aliteração), o mesmo número de sílabas (metro) o mesmo ritmo (acento), a mesma ordem de disposição das palavras (quiasmo). A prosa, pelo contrário, segue o ritmo da continuação: do latim prorsus, indica o andar para frente, usando um discurso lógico, sem interrupção, em que há perfeita coincidência entre a pausa fônica e a pausa semântica.

Segundo releva Roman Jakobson (34), enquanto a poesia faz largo uso da capacidade metafórica, operando no campo associativo ou da seleção, a prosa dá preferência à metonímia, atuando no eixo da contiguidade. Isso explicaria por que a estética romântica e simbolista privilegia o culto da poesia versificada, enquanto a estética do realismo se realiza quase exclusivamente na obra em prosa. Ultimamente, têm-se separado a teoria e a análise literária em dois campos: um que trata da poética do verso (nível óptico, fônico, lexical, sintático, semântico, com o estudo das figuras de estilo que envolvem o poema); outro da poética da prosa (foco narrativo, trama, personagens, tempo, espaço e outros elementos estruturais mais específicos do romance).

Teoria dos movimentos

Os compêndios de história e de teoria costumam dividir as obras da literatura ocidental, produzidas desde Homero até nossos dias, em três idades ou eras, cada qual subdividida em épocas ou períodos: Era antiga (do século V a.C. ao V d.C.: período grego, alexandrino, romano, cristão); Era medieval (do século V ao XV) e Era moderna (período renascentista, barroco, romântico, realista, simbolista, modernista, contemporâneo).

Mas essa divisão é discutível, pois dá margem a vários equívocos. Por exemplo, quando se fala da Idade Média como época das trevas, não podemos esquecer que nesse período foram produzidas obras de um valor estético e humano incalculável: a poesia trovadoresca, a novela de cavalaria, os cantos épicos nacionais (La Chanson de Roland, El Cantar de Mio Cid, Os Nibelungos), A Divina Comédia de Dante Alighieri, a lírica de Petrarca, os contos satíricos de Boccaccio. É preciso, pois, distinguir a primeira fase da Idade Média, que vai da queda do Império Romano do Ocidente (século V) ao início das Cruzadas (século XI), quando realmente houve obscurantismo provocado por uma paralisia cultural que acometeu a Europa por mais de seis séculos (os motivos deste atraso não cabe aqui discutir). Já a segunda fase da Idade Média, que vai do século XI ao XV, é considerada uma pré-Renascença.

Na verdade, a tese de Arnold Hauser, defendida na importante obra História Social da Literatura e da Arte (33), de que o início da Era Moderna deveria ser recuado por uns três séculos, fazendo-o coincidir com as primeiras manifestações literárias das línguas neolatinas e anglo-saxônicas, tem muito fundamento. Por esse prisma a Idade Média, reduzida apenas à primeira fase, seria realmente mediana, acusando o vazio cultural que se deu durante a longa passagem da civilização greco-romana ao surgimento das línguas nacionais nos vários países da Europa. O conceito de “moderno”, nas línguas

60

Page 61: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

assim como nas culturas, estaria em contraste apenas com “clássico”, expressão da mundividência grega e latina. O que não pode acontecer é confundir a era moderna com a época do chamado modernismo brasileiro. Tal denominação se originou da famosa Semana da Arte Moderna, ocorrida na cidade de São Paulo em 1922, quando um grupo de poetas e pintores promoveu um movimento de renovação cultural, adaptando à realidade brasileira inovações estéticas trazidas da Europa. A crítica literária brasileira começou a falar, então, de autores pré-modernistas ou pós-modernistas sem muito critério, pois o conceito de moderno é temporal e não estético. Talvez seja para evitar tais confusões terminológicas que os críticos europeus não usam a denominação de modernismo, chamando a produção artística do século 20 de literatura de “vanguarda”, individualizando as várias correntes estéticas: futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo.

Na verdade, a divisão da literatura em períodos é problemática. Notamos a ausência de critérios rigorosos para a determinação das épocas: ora se recorre a rótulos políticos (época vitoriana), ora a fases históricas (século 20, geração de 30), ora a um momento cultural abrangente (renascença), ora a um estilo das artes plásticas (rococó), ora a uma denominação estritamente literária (arcadismo). A confusão deriva do fato de que as tradicionais histórias das literaturas não tratam somente de obras especificamente literárias, mas englobam quase todas as atividades humanísticas das várias épocas. São mais histórias da civilização de um povo do que de sua literatura, não distinguindo os poetas dos literatos. Sob este aspecto, explica-se porque Benedetto Croce separa a literatura, que teria uma função cultural ampla, da poesia, expressão artística de um sentimento individual. Enquanto a arte é eterna, atemporal, a cultura, circunscrita a um tempo e a um espaço, pertence ao reino da mudança.

Não querendo polemizar com o citado erudito italiano, queremos ressaltar que um texto poético é composto sempre de um misterioso entrelaçar-se de historicidade e de originalidade. Segundo Wehrli (44, p. 146), a história não aparece mais como evolução, mas como estratificação, pois todas as épocas estão presentes contemporaneamente. A filosofia existencialista ensina que na obra de arte o ser genuíno é possível não como criação nova, mas apenas como repetição: as grandes obras, os espíritos privilegiados, estendem a mão acima dos tempos e, no fundo, dizem todos a mesma coisa, embora de forma diferente.

Tentando apresentar uma definição, podemos considerar que um período literário é constituído por um conjunto de obras, espacial e temporalmente delimitado, que se caracteriza, no plano da expressão, por um sistema de normas e cânones estéticos e, no plano do conteúdo, por um complexo de ideias indicadoras de uma cosmovisão. Individualizar e descrever uma época literária, portanto, implica conhecer seu sistema de normas estéticas e seu código ideológico, rastreando sua origem, sua evolução e sua transformação. Um período literário surge em oposição ao imediatamente anterior. O romantismo, por exemplo, surge em oposição ao neoclassicismo, retomando motivos artísticos e espirituais do medievalismo. Os períodos literários possuem zonas de interpenetração e as datas demarcadoras não têm um valor absoluto, mas são apenas balizas indicativas da passagem de um período para o outro.

O processo de evolução da literatura é lento e gradativo, seguindo um ritmo dialético: a tese é constituída pelo nascimento de formas novas, aptas a expressar uma

61

Page 62: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

diferente visão da realidade; a antítese é a afirmação consciente, o estágio de maturidade desse novo sentir, expresso por um sistema de normas em oposição ao código artístico e ideológico do período anterior; a síntese é determinada pela transformação num novo período: as formas literárias de uma época, chegando ao apogeu, cristalizam-se, criam automatismos, e a consequente repetição de estereótipos estéticos e espirituais privam as produções artísticas de seu caráter de originalidade e de novidade.

A fase dos epígonos de um período conjuga-se com a fase dos precursores do período seguinte. A consciência da mudança distingue, a nosso ver, o movimento do período ou época. Assim, por exemplo, o romantismo, além de uma época, é também um movimento cultural, porque seus expoentes, filósofos, artistas e poetas, tiveram o propósito de opor-se ao complexo estético-cultural do classicismo. Já o barroco não pode ser considerado um movimento, porque não houve consciência de oposição à estética renascentista.

O método comparativo

Num sentido amplo, a figura da comparação, entendida como a relação entre dois ou mais elementos, é a base de qualquer conhecimento. Só se pode aprender comparando. Sem a existência de um segundo termo não haveria predicação, pois não poderia se afirmar coisa alguma. Dizer, por exemplo, que Maria é bonita, alta, magra ou inteligente implica a existência de outras moças que não possuem tais atributos. Todo o saber, pois, repousa em estabelecer semelhanças e diferenças e qualquer processo de análise, quer no campo das ciências quer das artes, opera encontrando relações de conjunção e de disjunção entre elementos. O primeiro método moderno e científico para o estudo das línguas foi a linguística comparada de Humboldt.

No sentido estrito, aplicado ao estudo das obras de arte literária, o método comparativo pode constituir-se numa disciplina à parte, chamada de Literatura Comparada. O fundador dessa disciplina foi Paul Van Tieghem com a publicação da obra La Littérature Comparée, em 1931. Seu raio de ação é muito vasto, podendo investigar relações de homologias entre várias obras, diferentes autores, diversos gêneros e movimentos literários. Na maioria dos casos, os estudos comparativos procuram descobrir as influências que alguns autores exercem sobre outros. Assim, por exemplo, se tem estudado muito as influências dos humoristas ingleses (Dickens, Sterne) e alemães (Heine) para explicar o estilo irônico que caracteriza a ficção de Machado de Assis.

O sonho de encontrar os sinais de um cosmopolitismo literário remota à época romântica: a Weltliteratur, de Goethe; o Homo universalis, de Madame de Stäel e de Chateaubriand; o diacronismo dialético (o tempo como força viva do passado agindo no presente), de Schlegel. O primeiro trabalho sobre o assunto talvez seja a obra “Sobre a origem dos progressos e do estado atual de qualquer literatura”, publicada em 1799, pelo jesuíta espanhol refugiado na Itália, Juan Andrés, que sustenta a tese da existência de uma literatura geral ou universal.

À margem dessas questões teóricas, na prática, o método comparativista funciona muito bem para distinguir os elementos comuns a várias obras (o que possibilita a determinação de gêneros e épocas literárias) dos elementos específicos de cada texto (o que salva a individualidade artística). Sem negar as diferenças estruturais e semânticas que conferem o caráter de unicidade a uma obra literária e fazem com que a distingamos

62

Page 63: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

de outras obras da mesma época, gênero ou autor, é possível e necessário que se encontrem os elementos comuns que a insiram num contexto cultural. Pelo próprio conceito de estrutura, a diversidade só pode ser encontrada com base na análise da unidade de traços característicos. Não podemos estabelecer a diferença específica sem antes termos captado a semelhança genérica. Posto como hipótese, se existisse uma obra literária que não partilhasse com outros textos artísticos semelhanças de formas e de conteúdos, tal obra, além de inclassificável, seria incompreensível.

A integração metodológica

Ao concluirmos essa rápida e despretensiosa resenha das várias modalidades de abordagem do texto literário, convém insistir sobre a necessidade de integrar os vários métodos, cada qual ressaltando mais um aspecto da obra literária do que outro, pois não são entre si incompatíveis. Muitas vezes, trata-se apenas de uma questão de terminologia. Do ponto de vista metodológico são irrelevantes as distinções entre forma e estrutura, função e motivo, estilo e procedimento, tema e objetivo, fenômeno e objeto. Haja vista a aproximação que os autores da Retórica Geral fazem entre o esteta Benedetto Croce e o estruturalista Roland Barthes:

“A estética moderna esforçou-se exatamente por instaurar procedimentos de análise daquilo que Croce decretava não analisável. Isso não quer dizer que todas as posições outrora definidas por Croce, tão agressivamente, sejam hoje abandonadas. Deve-se mesmo verificar que sua tese fundamental, aprofundamento das ideias de F. De Sanctis,, segundo a qual a arte é forma e nada mais que forma (opondo forma à matéria e não ao conteúdo), é hoje mais nova do que nunca. Identificando a arte com a linguagem, Croce recusava todas as concepções linguísticas da arte como mensagem – concepções que reduzem a mensagem ao conteúdo – já que para ele, do ponto de vista estético, a mensagem é mensagem como tal. Estamos então autorizados a passar ousadamente de Benedetto Croce a Roland Barthes, do filósofo italiano ao neo-retórico francês, para quem “a literatura não é mais que uma linguagem, isto é, um sistema de signos: sua existência não está na mensagem, mas no sistema’” (29, p. 25).

Um exemplo concreto de integração de modelos de análise é fornecido pelo excelente trabalho de M. Bakhtine (23). Ligado ao formalismo russo, mas trabalhando com muita autonomia, para descobrir o priom artístico da obra de Dostoievski, pesquisa as fontes mais antigas da literatura ocidental, encontrando na sátira do grego Menipo a forma dialógica que caracteriza a ficção dostoievskiana. Salienta, assim, o princípio dicotômico verificável pela análise contrastiva entre obras literárias enformadas pela percepção monológica da verdade (textos literários de caráter idealístico) e obras dialógicas, imbuída do espírito carnavalesco e de teor realístico. O polimorfismo é visto como constituinte específico da estrutura poética da ficção do romancista russo. Por meio de uma análise minuciosa e exaustiva das obras, Bakhtine salienta as formas estéticas de Fiodor Dostoievski, relacionado-as com a série literária a que estão ligadas (as obras de caráter dialógico) e, por sua vez, relaciona a série literária com a linha cultural (a percepção carnavalesca do mundo). Detecta, assim, um tipo específico de concepção da vida que possibilita a produção de certas formas artísticas. Encontramos, então, num único trabalho, o recurso – consciente ou inconscientemente, pouco importa – a várias

63

Page 64: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

modalidades de crítica: formal-estruturalista, genético-literária, temático-arquetípica, psicossociológica.

Essa simbiose, além de ser possível, é indispensável, se se quiser fazer crítica eficiente e integral. David Daiches compara o crítico literário, que se sirva de um único enfoque e que não seja dotado de uma técnica de sugestão, a um crítico musical que for somente técnico em acústica, e conclui sua obra com as seguintes palavras:

“Todos os críticos literários eficientes enxergam alguma faceta da arte literária e desenvolvem nossa consciência a seu respeito. Mas a visão total, ou até mesmo algo que se aproxime dessa visão, só advém àqueles que aprenderam a combinar as modalidades de compreensão proporcionadas por inúmeros critérios críticos”

(29, p. 381).

Tal pensamento é comungado por Roman Jakobson, quando, ao encerrar sua famosa conferência sobre a estreita relação entre linguística e poética, afirma::

“Todos nós que aqui estamos, todavia, compreendemos definitivamente que um linguista surdo à função poética da linguagem e um especialista de literatura indiferente aos problemas linguísticos e ignorante dos métodos linguísticos são, um e outro, flagrantes anacronismos” (34, p. 62).

Em verdade, se o objeto da crítica (o texto literário) é, por sua própria natureza, poliédrico e polissêmico, não poderia ser analisado e compreendido em sua integridade por um sujeito (o crítico) que não conheça uma variedade de métodos de abordagem e não tenha uma relevante erudição. Além disso, muitas e variadas são as formas artísticas que solicitam a atividade crítica. É impossível encontrar uma fórmula ou um modelo que sirva, com a mesma eficácia, para a análise e a interpretação quer de um poema, quer de um romance, de um conto popular como de uma epopeia, de uma poesia lírica ou de uma peça dramática. O modelo de análise proposto por V. Propp para o estudo do conto folclórico não pode ser aplicado para a interpretação de uma narrativa de introspecção psicológica, assim como a abordagem linguística a que R. Jakobson (35) submete o poema Ulysses não teria o mesmo resultado se aplicada a outro poema de Fernando Pessoa desprovido de esquema rímico e estrófico. Serviremo-nos desse texto poético, ampliando a análise feita pelo estudioso russo, como exemplo prático de integração metodológica.

VII - Exercício da leitura

Ulysses

“O myto é o nada que é tudo.O mesmo sol que abre os céusÉ um mytho brilhante e mudo –O corpo morto de Deus,Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

64

Page 65: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Foi por não ser existindo.Sem existir nos bastou.Por não ter vindo foi vindoE nos creou.

Assim a lenda se escorreA entrar na realidade.E a fecundá-la decorre.Em baixo, a vida, metadeDe nada, morre.”

(Fernando Pessoa: 39)

O intratexto

Para o estudo do poema citado, deveríamos seguir a démarche que consideramos mais racional: primeiro, a análise dos elementos internos do texto artístico; a seguir, a relação que esse produto poético estabelece com outros textos do mesmo autor; enfim, sua relação com o mundo exterior, na tentativa de apresentar nossa interpretação, isto é, captar alguns sentidos possíveis. Todavia, esse caminho, como veremos, às vezes pode sofrer bifurcações, precisando misturar análise com interpretação, elementos internos com dados do mundo exterior, lançando mão, ao mesmo tempo, de vários tipos de enfoques.

Começando pela abordagem intratextual, verificamos que o nível gráfico ou óptico do poema, em seu aspecto fenomenológico, evidencia a presença de um título e de três estrofes, cada qual composta de cinco versos, sendo o último verso de cada quinteto mais curto que os demais. Trata-se, portanto, de uma forma poemática peculiar, pois não tem uma estrutura estrófica tradicional, como um soneto, por exemplo. Em sua configuração, o título representa a cabeça e as estrofes o corpo do poema. O título, geralmente, é indicativo do tema, antecipando o sentido geral da obra ou revelando a personagem principal ou fornecendo importantes determinações espaciais ou temporais. Assim, por exemplo, o título do romance cíclico de Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento, já sugere que se trata de uma longa narrativa, um vasto painel diacrônico sobre a saga de duas famílias gaúchas, cujas paixões são fustigantes como o vento das estepes.

No poema em tela, o título apresenta um referente extratextual: o personagem Ulisses é uma das grandes figuras da mitologia greco-romana, imortalizado em numerosas obras de arte. A literatura, a escultura, o teatro, o cinema, ao longo dos séculos, têm-se servido do mito de Ulisses como material para a construção de obras de alto valor estético e humano. Portanto, sem o conhecimento dos principais dados acerca dessa biografia fantástica, cujo nome aparece no título, a interpretação do poema seria impossível. Faz-se necessária, então, logo no início, a saída do texto para o extratexto, porque um elemento externo, do mundo mitológico, passou a integrar o objeto poético, fazendo parte de sua estrutura interna. O crítico deve investigar tratados de mitologia greco-romana e lendas sobre as origens do povo português. O resultado de tal pesquisa levaria o estudioso ao seguinte conhecimento:

Narra o mito que Odisseu (o nome grego do latino Ulisses) nasceu como consequência de uma dúplice artimanha preparada pelos dois homens mais inteligentes

65

Page 66: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

da Grécia pré-histórica: Sísifo, rei de Corinto, para vingar-se de Autólico que lhe roubara o rebanho, seduziu sua filha Anticleia; mas era o que o próprio Autólico tinha planejado, pois era seu desejo ter um neto que herdasse a astúcia de seu rival Sísifo. A moça Anticleia, abandonada por Sísifo e grávida de Odisseu, desposou Laertes, rei de Ítaca, que assumiu a paternidade da criança. O jovem Ulisses, educado pelo sábio centauro Quirão, na idade de contrair núpcias, apaixonou-se por Helena, a mulher mais bonita da Grécia; mas por serem uma centena os pretendentes, desistiu da competição e casou-se com Penélope, prima de Helena. Declarada a guerra da coligação grega contra a cidade de Troia para a reconquista de Helena, esposa do rei Menelau, raptada pelo príncipe troiano Páris, Ulisses foi obrigado a participar do assédio de Troia, vítima de um pacto por ele mesmo estabelecido: os concorrentes à mão de Helena comprometiam-se a respeitar a vontade da moça na escolha do esposo e a defender a união do casal. Depois de dez anos de cerco e de lutas, Troia foi expugnada pelo ardil da construção do famoso cavalo de madeira, invenção do próprio Ulisses, que, oferecido aos troianos, continha em seu ventre soldados helênicos. Daí a expressão proverbial “presente de grego”. Após a guerra, o herói iniciou a viagem de retorno a Ítaca, onde o esperavam a fiel esposa Penélope e o devotado filho Telêmaco. A vingança de Vênus, porém, deusa do amor e protetora dos troianos, fez com que a viagem de retorno demorasse mais de dez anos. O herói precisou superar tempestades marítimas, naufrágios, sereias sedutoras, ciclopes antropófagos, o amor de Circe, de Calipso e de Nausica, até conseguir aproar em sua ilha, onde ainda foi obrigado a lutar ardilosamente para vencer os poderosos próceres que aspiravam ao reino e à mão de sua esposa.

O mito de Ulisses foi criado pelos gregos para exaltar sua expansão marítima e afirmar o triunfo de um povo civilizado sobre a força bruta de povos bárbaros e sobre os percalços do destino. O grego Odisseu representa ainda: o poder da inteligência, pois o apelido de astuto define muito bem sua personalidade, porque, como vimos, a capacidade de preparar ardis o acompanha do nascimento à morte; o triunfo final do amor conjugal sobre as relações extramatrimoniais; a dedicação à terra de origem em relação às vicissitudes no estrangeiro; o sentimento de fidelidade da esposa Penélope; a devoção filial de Telêmaco; a gratidão dos escravos da corte; enfim, a afirmação dos ideais cívicos e morais.

Outro referente extratextual presente no poema em estudo, desta vez de forma implícita, é Lisboa e, em geral, o povo português. Na segunda estrofe, o advérbio de lugar “aqui” só pode referir-se à terra do autor, Fernando Pessoa, elemento do mundo da realidade. A mesma coisa acontece com o pronome “nos”, que se encontra antes dos verbos “bastou” e “creou”, indicando os portugueses. E isso, porque, segundo outro mito, Luso, filho do deus Baco, teria sido o fundador do povo português (daí o adjetivo “lusitano”). Ulisses, durante suas andanças nas proximidades das Colunas de Hércules, os rochedos de Gibraltar e de Ceuta, que ladeiam o estreito entre a África e a Europa, onde os antigos pensavam que o mundo acabasse, teria desembarcado na extrema ponta do continente europeu e dado origem à cidade de Lisboa. Tal lenda encontra sua justificativa na etimologia do nome: Lisboa é um derivado fonético de Ulissipona, ‘a cidade de Ulisses’. E é a palavra Uissipona que se encontra estampada no frontispício da coletânea de poemas enfeixados no livro Mensagem, a que pertence o texto que estamos analisando.

66

Page 67: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

A explicação do título Ulisses é necessária para a compreensão do poema também por outro motivo: quando o ciclope Polifemo perguntou a Ulisses qual era seu nome, o herói grego astutamente respondeu: “Meu nome é Ninguém.” Assim Polifemo quando, cegado por Ulisses, ao pedir a ajuda dos outros ciclopes, gritou “Ninguém me cegou, Ninguém quer me matar”, não foi atendido pelos colegas, que pensaram que ele estava brincando. Ora, como veremos, o poema todo está fundamentado num jogo de palavras, na relação dos termos contraditórios do ser e do não ser, ao mesmo tempo.

Começando propriamente a análise da estrutura do texto, na primeira estrofe, o poeta nos dá sua definição do mito mediante uma oração predicativa, em que se encontram identificados dois termos contrários: “O mito é o nada que é tudo.” O sintagma evidencia uma figura retórica chamada de oximoro (quase sinônimo de antítese ou paradoxo), que consiste na predicação de um termo contrário ou contraditório, em relação ao sujeito da oração. Trata-se de um metassemema, a figura de sentido presente no poema todo, sobre o qual está centrado o potencial estético e semântico do texto. O primeiro verso apresenta duas formas oximóricas encadeadas:

a. “O myto é”, que exprime a existência, e sua predicação “o nada”, que indica a não-existência;b. “nada”, que exprime uma totalidade negativa, e sua predicação “tudo”, que indica uma totalidade positiva.

Para entendermos a figura retórica, o tropo de sentido, é preciso distinguir as duas escalas de valores. Uma, em que o mito pode ser considerado um nada, e outra em que pode ser um tudo. O mito é nada do ponto de vista da realidade histórica, porque é fruto da imaginação popular que inventa histórias fantásticas acerca de seres sobrenaturais, na tentativa de explicar a origem das coisas ou padrões de comportamento; o mito é tudo do ponto de vista espiritual, porque nenhum povo pode viver sem crenças que lhe expliquem a causa dos fenômenos e lhe determinem as regras de conduta.

Ainda na primeira estrofe, notamos outra forma oximórica: o “Sol”, que é considerado também um mito (o símbolo do renascimento diário), tem como aposto “o corpo morto de deus / / vivo e desnudo”. A oposição de corpo de Deus morto e vivo, ao mesmo tempo, pode ser entendida da seguinte maneira: Deus é visto como morto porque coisificado num astro e vivo porque é a sua luz que dá calor e possibilita a existência da vida no universo.

A segunda estrofe refere-se à ação de um mito específico, o de Ulisses, que chega à costa atlântica e dá origem ao povo lisboeta. “Este”, do primeiro verso, está ligado anaforicamente a Ulysses, título do poema; o advérbio de lugar “aqui” indica a proximidade com o sujeito da enunciação, que nesse caso deve ser identificado como o próprio autor, Fernando Pessoa, cidadão de Lisboa, assim como “nos” se refere ao povo português. Como se pode observar, o conhecimento da realidade exterior é indispensável para a compreensão da estrutura interna do poema: texto e extratexto se entrelaçam!

Os três versos medianos são formados por três oximoros de contraditoriedade: Ulisses existiu e não existiu, foi e não foi suficiente, chegou e não chegou. Também aqui, para entendermos o metassemema, é preciso distinguir duas escalas de valores diferentes: Ulisses não existiu no plano histórico, da realidade física, porque é um mito; mas ele existiu no plano espiritual, porque a crença numa origem sobrenatural estimulou o povo português a imitar as façanhas de seu fundador, aventurando-se no mar para a descoberta e a conquista de novas terras.

67

Page 68: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

A última estrofe tem como momento ideológico a proliferação do mito: este fecunda a realidade e se espalha entre os povos. A oposição da parte espiritual, alimentada pelo mito, e de sua parte material, expressa pelo advérbio de lugar “em baixo”, é apresentada mediante um dúplice oximoro de contrários: vida versus morte e metade versus nada. Pela semântica comum, nada, como é uma totalidade negativa, não poderia ter uma metade. Mas a linguagem poética supera esse paradoxo: o poeta, tendo definido o mito como um nada-tudo, a vida, metade de nada, passa a ser também metade de mito. Quer dizer, a vida humana é regida, de um lado, pela força do mito, e, de outro lado, pela força da realidade. O que morre no ser humano é sua parte material, que é perecível, ao passo que o elemento mítico, por ser espiritual, perpetua-se continuamente no seio da humanidade, sendo fator de seu progresso civilizacional.

À margem da análise semântica do poema, notamos o estreito paralelismo existente entre a forma da expressão e a forma do conteúdo, percebível especialmente pelo uso do léxico (escolha das categorias gramaticais): o poeta, na primeira estrofe, quando quer apenas definir o mito de uma forma geral, usa só substantivos (que indicam a essência ou a existência das coisas) e adjetivos (que qualificam os seres), com a presença de verbos apenas na forma copulativa é ou na forma adjetiva que abre; na segunda estrofe, para salientar a ação do mito, usa exclusivamente verbos indicadores do fazer, com a ausência total de substantivos e de adjetivos; na terceira estrofe, para indicar sua proliferação, troca o masculino mito pelo feminino “lenda”, gênero marcado para sugerir o ato da procriação.

Elemento estrutural relevante é também o paralelismo fonossemântico. As relações entre som e sentido concorrem para conferir um valor estético ao conteúdo ideológico. O poema é composto de três pentásticos, cada estrofe sendo formada por quatro heptassílabos e um verso mais curto, de quatro sílabas, com rima alternada de esquema ABABA. Cada estrofe apresenta um campo sonoro fechado, mas próprio, pois não se repete nos outros dois quintetos, para marcar a diferença de conteúdo que distingue as três partes do poema.

A primeira estrofe, pela rima final, estabelece um chamamento fônico entre as palavras tudo – mudo e desnudo, que qualificam o mito, e os substantivos céus – Deus, o nome genérico da divindade e sua localização tradicional. A leitura vertical do primeiro pentástico, portanto, apresenta o entrelaçamento sonoro entre os elementos disfóricos do mito (uma totalidade sem voz e sem forma visível) e seus elementos eufóricos (uma entidade espiritual que vive numa esfera superior).

Na segunda estrofe, a relação sonora que liga entre si os três verbos aportou – bastou – creou sugere a ação progressiva do mito na terra portuguesa; e a chamada fônica da rima dos outros dois verbos de ação existindo – vindo reforça a ideia da chegada do mito como quintessência da vida. Na última estrofe, enfim, a rima entre os verbos que se referem à lenda, escorre – decorre – morre, indica seu nascimento, propagação e transformação; enquanto a concordância sonora realidade – metade repete fonicamente o conteúdo semântico mais importante do poema: o mito-lenda, ao transcender o mundo material, torna-se o elemento espiritual que sustenta o sonho humano de alcançar a imortalidade.

Acabamos de fazer uma rápida leitura interna do poema, interrogando o próprio texto para que apresentasse alguns sentidos possíveis, mediante a análise de seus vários níveis: gráfico, fônico, lexical, sintático. Mas, como já dissemos várias vezes, apenas a

68

Page 69: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

abordagem intrínseca é insuficiente para dar conta de toda a riqueza semântica da obra de arte literária. Como vimos, existem, no próprio texto, referências ao mundo histórico, à realidade material e cultural que, se ignoradas, impossibilitam qualquer interpretação inteligente. Mesmo se o texto não apresentasse referentes extratextuais explícitos, o recurso ao conhecimento da vida do autor, do gênero literário a que se filia e do ambiente cultural em que foi produzido é indispensável para a compreensão mais ampla da obra. Daí a necessidade de prosseguirmos a análise, avaliando o poema Ulysses no conjunto da obra poética e do mundo cultural de Fernando Pessoa.

O intertexto

A análise intertextual visa a situar o poema Ulisses na série poética publicada por Fernando Pessoa sob o título de Mensagem, dividida em três partes: Brasão, Mar Português e Encoberto. Os títulos já sugerem que se trata de uma poesia altamente patriótica, que exalta as figuras ilustres de Portugal e sua maiores façanhas. Essa série, com outras coletâneas (Cancioneiro, Poemas Dramáticos, Poesias Coligidas, entre outras), pertence à produção poética ortônima assinada pela próprio Fernando Pessoa, com seu nome verdadeiro, diferenciando-se de mais três séries poéticas, assinadas com nomes fictícios, os heterônimos Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.

Fernando Pessoa tornou-se imortal não apenas pela beleza de seus versos e pela acuidade de seus pensamentos críticos sobre a vida e sobre a arte, mas especialmente por ter inventado, pela criação dos heterônimos, personalidades poéticas distintas de si próprio: não se limitou a assinar seus poemas com nomes fictícios, mas inventou, para cada nome, uma entidade humana e poética com biografia, cosmovisão e tendências literárias prórias. A heteronomia, portanto, é um processo de desdobramento de personalidade: da aparente unidade psíquico-intelectual de Fernando Pessoa emanam e se substancializam diferentes modos de sentir o mundo e a poesia. O poeta português, autodefinindo-se “um novelo embrulhado parao lado de dentro”, procura desembrulhar-se, colocando para fora de si as diversas tendências filosóficas, artísticas, humanas, que se encontravam confusas em seu espírito:

“Multipliquei-me, para me sentir,Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,Despi-me, entreguei-me,

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”

A coexistência de várias pessoas, de “vozes” diferentes no mesmo ser, cria um tormento no espírito do poeta: daí a necessidade de quebrar “a cadeia de ser um”, de libertar-se do sofrimento dos contrastes acumulados dentro de si. O fundamento psíquico da criação heterônima reside na complexidade do ser humano: o espírito é um “pseudossimplex”, a unidade do ser não passando de um mito ou preconceito. Cada um de nós encerra dentro de si uma pluralidade de vozes, de tendências, de desejos, de ideias, de sentimentos que, muitas vezes, por serem contraditórios, provocam uma angústia existencial. Fernando Pessoa conseguiu superar artisticamente essa contradição, imaginando a coexistência de

69

Page 70: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

vários seres dentro de si, cada qual indicando uma faceta peculiar de sua personalidade. Foi assim que ele pôde:

“Sentir tudo de todas as maneiras,Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,Realizar em si toda humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.”

Entre os vários heterônimos ou alter egos criados pela fértil imaginação do singular poeta português, destacamos os três citados anteriormente que, com o ortônimo, formam as quatro maiores personas poéticas de Fernando Pessoa. Já vimos que a poesia do “ele próprio”, o ortômimo, representa a voz do saudosismo português. O heterônimo Ricardo Reis que, como Fernando Pessoa, poetiza de forma tradicional, usando esquemas estróficos, rímicos e rítmicos consagrados, exprime toda a herança clássico-pagã presente no espírito do poeta lusitano.

O assunto do presente texto sobre metodologia nos impede de apresentar uma visão completa da poesia deste e dos outros heterônimos. Apenas como exemplos de intertextualidade, transcrevemos alguns trechos que nos possam dar uma ideia das coordenadas estéticas e dos valores ideológicos presentes na obra poética atribuída a Ricardo Reis, a Alberto Caeiro e a Álvaro de Campos. De Ricardo Reis, cujos traços pseudobiográficos o apresentam como jovem de família abastada, educado num colégio jesuíta, latinista e helenista, o seguinte poema reafirma o tema do carpe diem, tratado pelo poeta epicurista Horácio, que se tornou um tópico da poética clássica: a exortação ao gozo dos prazeres da vida em vista da fugacidade do tempo e da imprevisibilidade da morte:

“Como se cada beijoFora de despedida,

Minha Cloe, beijemo-nos, amando.Talvez que já nos toque

No ombro a mão, que chamaÀ barca que não vem senão vazia;

E que no mesmo feixeAta o que mútuos fomos

E a alheia soma universal da vida.”

Alberto Caeiro, considerado por Fernando Pessoa como mestre dos outros heterônimos e de si próprio, foi o alter ego a se esboçar por inteiro no espírito do poeta português. Na biografia imaginária traçada para esse heterônimo, Fernando Pessoa apresenta Caeiro como um jovem loiro, de olhos azuis e infantis, que nasceu em Lisboa em 1889, mas viveu toda sua vida no campo, na companhia de uma tia, morrendo de tuberculose em 1915. Sua formação escolar não passou do curso primário e sua poesia pretende ser como sua vida: simples, espontânea, instintiva, inspirada pelo cotanto direto e imediato com a natureza:

70

Page 71: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

“A minha poesia é naturalComo levantar-se o vento.”

Ele é o poeta da realidade objetiva, porque descreve o que vê e o que sente, longe de qualquer elucubração mental, inimigo de todas as filosofias. O poeta Alberto procura susbtituir o pensamento pelas sensações, o subjetivo espiritual pelo real, a reflexão pela visão direta das coisas. A matéria de sua poesia é o mundo que o circunda: árvores, sol, ovelhas, flores, etc.:

“Eu nunca passo para além da realidade imediata.Para além da realidade imediata não há nada.”

O cão-guia de Alberto Caeiro não é nem o cérebro nem o coração, mas a visão:

“Eu nem sequer sou poeta: vejo.”

Este heterônimo, além de negar a possibilidade de o homem filosofar (porque, segundo ele, não existe uma “constituição íntima das coisas”, sendo os seres e o objetos apenas fenômenos da natureza) e de injetar qualquer subjetivismo (que levaria à distorção da realidade objetiva), ele também recusa todo tipo de estética, aproximando a poeisa da prosa, da linguagem cotidiana:

“Por mim escrevo a prosa dos meus versosE fico contente...”

“Não me importo com as rimas. Raras vezesHá duas árvores iguais, uma ao lado da outra.”

No próprio momento em que se confessa antifilósofo e antipoeta, porém, Alberto Caeiro, paradoxalmente, se revela como um dos maiores artistas da palavra e um exímio pensador. Refletindo bem, no próprio ato de negar a filosofia, Caeiro está fazendo filosofia, visto que seus versos são gerados sob o signo da dialética e da polêmica com os cultores do pensamento especulativo. O mesmo acontece em relação à estética literária: no momento em que se opõe e critica o modo da poesia tradicional, feito de fidelidade aos cânones métricos e retóricos, ele cria uma nova estética (especialmente por isso é considerado “o mestre”), a do “versolivrismo”, da pobreza lexical, da repetição, do polissíndeto, da aproximação de termos e conceitos opostos, do “sensacionismo”. Sua aversão, portanto, ao pensamento teórico, à poética formal e a qualquer tipo de cientificismo, mais do que pertencer à estrutura de sua personalidade, configura-se como uma atitude mental proposital, que funciona como contraponto às linguagens poéticas e às cosmovisões de Fernando Pessoa ortônimo e dos outros heterônimos.

Entrando um pouco no campo da análise extratextual, a poesia de Caeiro pode ser vista como reação a quase todas as orientações filosóficas e estéticas da época: opõe-se ao saudosismo português que exaltava o passado; ao decadentismo francês que cultivava o vago e o imaginário; ao futurismo italiano que enaltecia a vida mecanizada; a toda sorte de psicologismo, subjetivismo, humanitarismo. A indiferença de Caeiro perante o

71

Page 72: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

sofrimento é uma denúncia da impostura dos ideais filantrópicos apregoados por cristãos e humanitaristas. Para esse heterônimo, os seres humanos, como os elementos da natureza, são imutáveis, cada qual devendo seguir seu curso e seu destino, não havendo possibilidade nem necessidade de modificações. Os entes naturais são como são porque são assim. Se quisermos atribuir um “ismo” à poética de Alberto Caeiro, o que mais lhe convém é o “sensacionismo”: a poesia deve descrever, numa linguagem clara e precisa, os seres e os objetos assim como são apreendidos pelos sentidos. E nada mais! Se quisermos encontrar um fundamento filosófico para tal estética devemos recorrer à doutrina fenomenológica de Edmund Husserl: a verdade dos seres e dos objetos está em sim mesmo e é apreendida pela experiência que deles temos.

O outro heterônimo, Álvaro de Campos, também é imaginado como discípulo de Alberto Caeiro, só que de formação e tendência opostas às de Ricardo Reis, com o qual trava constantes lides acerca do ideal de vida e do modo de poetar. Esse heterônimo expressa a faceta de Fernando Pessoa voltada para o mundo moderno, a civilização industrial, o universo das máquinas, de que sente o fascínio e a repulsa, ao mesmo tempo. Entre o mundo da natureza sempre presente no mestre Caeiro colocam-se seus dois principais discípulos: um, Reis, voltado para o passado, cultor da tradição clássica; outro, Campos, olhando para frente, o poeta do Futurismo.

Pela biografia ficcional inventada por Fernando Pessoa, sabemos que Álvaro nasceu em Tavira, em 1890, filho de judeus portugueses, e estudou na Escócia, tirando o diploma de engenheiro naval pela universidade de Glasgow. Acusou as influências literárias de Walt Whitman, poeta norte-americano, em sua época considerado escandaloso, quer pela forma de sua poesia (verso livre e vocabulário de baixo calão), quer pelo conteúdo (exaltação da sensualidade impudica), e de Marinetti, poeta italiano fundador do futurismo. Em verdade, mais do que whitmaniano ou futurista, Álvaro de Campos é o poeta das sensações, não instintivamente vividas como queria o mestre Caeiro, mas esteticamente expressas. Poderíamos considerar o “sensacionismo” como o filão português da vanguarda europeia.

O conteúdo pragmático da poesia desse heterônimo, centrado na exteriorização das sensações, de qualquer tipo que elas sejam, é realizado por uma estética que adapta a forma ao material: à liberdade que goza a substância do conteúdo corresponde a mesma liberdade na forma da expressão. Diferentemente da do heterônimo Ricardo Reis e da de Fernando Pessoa ele próprio, a poesia de Álvaro de Campos, como a do mestre Caeiro, compõe-se de verso livre, sem divisão estrófica regular, sem metro, sem rima. O ritmo corre livre, sem os artifícios dos esquemas e das imagens retóricas da poesia tradicional, adequando-se ao rápido progresso da vida moderna. A esse hetorônimo devemos algumas das mais belas páginas da poesia portuguesa do século XX: Opiário, Ode Marítima, Tabacaria, Poema em Linha Reta, Datilografia, Ode Triunfal. Deste último poema, transcrevemos uma estrofe, apenas parea saborearmos a poética do heterônimo Álvaro de Campos:

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –Na minha mente turbulenta e incandescidaPossuo-vos como a uma mulher bela,Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,

72

Page 73: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

O extratexto

As formas e os conteúdos poéticos, até agora revelados pela análise dos elementos internos do texto de base Ulisses (o poema em si = o intratexto) e das relações que ele estabelece com outras obras de Fernando Pessoa (a poesia dos heterônimos = o intertexto), devem ser examinados no contexto de uma série cultural mais abrangente, que ultrapassa a figura do poeta português, atingindo o universo estético e ideológico da época em que ele viveu. Nossa intenção, neste estágio final de análise que envolve o mundo externo à obra de arte, é investigar sua vida e os movimentos filosóficos e artísticos das primeiras três décadas do século XX, no afã de distinguir o que é comum ao momento histórico e o que é específico de Fernando Pessoa. Como já dissemos antes, procurar estabelecer semelhanças e diferenças é o único método eficaz para o conhecimento profundo de uma realidade material ou espiritual, científica ou artística.

Os principais dados biográficos de Fernando Pessoa podem ser assim resumidos: nasceu em Lisboa em 1888, completou os estudos secundários na África do Sul, familiarizando-se com a literatura anglo-americana: Milton, Byron, Keats, Poe foram os poetas mais lidos. Em 1905 voltou definitivamento para Portugal, vivendo ora sozinho, ora na companhia de uma tia espírita, exercendo a profissão de tradutor. Entrou em contato com as modas estéticas do restante da Europa, especialmente com os simbolistas franceses e os futuristas italianos. Mas foi a tradição poética portuguesa que mais atraiu sua atenção: Antero de Quental, Camilo Pessanha e Teixeira de Pascoais exerceram influência fundamental na produção poética ortônima.

Com Mário de Sá-Carneiro, José Régio e outros poetas exponenciais da época, publicou poemas e artigos teóricos em três revistas literárias, sucessivamente – Águia, Orpheu, Presença –, que tentavam uma renovação da poesia e da cultura lusitanas. Fernando Pessoa morreu em 1935, na mesma cidade natal, deixando-nos uma riquíssima produção poética, além de vários escritos em prosa sobre teosofia, esoterismo, crítica literária. O que faz dele um poeta singular, porém, é a criação dos heterônimos, cuja produção artística está reunida nas chamadas Ficções do Interlúdio.

A capacidade de sentir dentro de si várias entidades ao mesmo tempo, de desdobrar sua personalidade ou, para usar um seu neologismo, de se “outrar”, manifesta-se em Fernando Pessoa desde a infância: com apenas 6 anos de idade cria o primeiro heterônimo, Chevalier de Pas, em cujo nome “escrevia cartas dele a ele mesmo”. A produção dos poemas em língua inglesa da juventude, entre 1903 e 1909, é atribuída a Alexander Search. Mas é a partir de 1914, ano em que imagina ter andado “viajando a colher maneiras-de-sentir”, que o poeta português inventa os três heterônimos mais bem-acabados, atribuindo-lhes a autoria das Ficções do Interlúdio. A nosso ver, para a gênese dos heterônimos concorreram vários fatores:

1) A constituição biopsíquica de Fernando Pessoa, que se autodefiniu como um “histérico-neurastênico”. Admitimos que seu caráter excessivamente sensível contribuiu

73

Page 74: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

para que se ensimesmasse, se olhasse mais para dentro do que para fora, cultivasse poucas amizades, tivesse uma grande dificuldade em se relacionar afetiva e sexualmente com mulheres e procurasse no álcool a fuga da realidade. A introversão induz à introspecção, fazendo com que o poeta descobrisse, analisasse e desse vida própria às contradições que o habitavam, configurando fantasias interiores. Mas daí a sustentar a tese da gênese patológica dos heterônimos a distância é grande. Como revelou Octavio Paz, enquanto o neurótico é súcubo de suas obsessões, o artista as domina e as transforma em objetos estéticos.

2) O interesse pela teosofia, alquimia e ciências ocultas. É sabido que Fernando Pessoa, como outros poetas de sua época (Novalis, Poe, Baudelaire, Yeats), interessou-se pelos fenômenos parapsicológicos e pelas doutrinas místicas, que proliferavam na Europa no começo do século XX, com o intuito de combater o racionalismo e o materialismo dominantes. A convivência com uma tia médium levou Fernando Pessoa a participar de sessões espíritas. Além disso, traduzindo para a língua portuguesa livros encomendados pela Sociedade Teosófica, acabou familiarizando-se com a doutrina simbólica da ordem rosa-cruciana. Descobriu em si faculdades mediúnicas, chegando a praticar a escrita automática e a imaginar de comunicar-se com o mundo dos espíritos. Paralelamente, o estudo da astrologia levou-o a admitir a influência dos astros no destino humano, tanto que, a certa altura de sua vida, teve a intenção de profissionalizar esses conhecimentos e abrir um consultório de astrólogo. Enfim, o conhecimento da alquimia fez-lhe estabelecer uma comparaçao entre o processo de criação e a atividade alquimista:

“O gênio é uma alquimia. O processo alquímico é quadruplo: a) putrefação; b) albação; c) rubrificação; d) sublimação. Deixam-se primeiro apodrecer as sensações; depois de mortas embranquencem-se com a memória; em seguida rubrificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam com a expressão”.

As experiências mediúnicas e os conhecimentos das ciências ocultas induziram certa crítica biográfica a admitir a hipótese de serem os heterônimos “cristalizações de eus superterrestres” no ser real de Fernando Pessoa. Tal hipótese é insustentável se se atentar quer para a grande lucidez mental do poeta português, quer para o lado materialista de seu espírito, quer para a unidade humana e poética de sua personalidade, apesar da diversidade das facetas em que ela se nos apresenta. A criação heterônima deve ser considerada, essencialmente, ficção, fingimento artístico, drama íntimo, jogo cerebral e poético. Qualquer relação que se possa estabelecer entre a gênese dos heterônimos e a vida real do escritor português está fadada a ser uma mera conjectura, mesmo quando estiver fundamentada nos próprios escritos de Fernando Pessoa. Devemos acreditar nele, por exemplo, quando afirma, em carta a Casais Monteiro, que apenas num dia (8 de março de 1914) escreveu de pé e a fio, trinta e tantos poemas, com o título de O Guardador de Rebanhos, sob o nome de Alberto Caeiro, e mais seis poemas da coletânea Chuva Oblíqua, assinada por seu nome verdadeiro? Não esqueçamos que Fernando Pessoa chamou o poeta de fingidor e nele é difícil estabelecer limites entre a realidade e a fanstasia, entre a vida e arte. O poeta português “ele mesmo” não é mais real ou menos ficcional do que qualquer outro heterônimo. A nosso ver, os seres imaginários que diz o habitarem não são senão as várias posições estéticas e ideológicas que o poeta viveu ao longo de sua vida, independentemente de qualquer “inspiração” momentânea ou influxo

74

Page 75: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

sobrenatural que possa ter sofrido como pessoa fisica. A criação heterônima é fruto de longa maturação humana e poética de que seu autor tem plena consciência.

3) Os antecedentes culturais: a partir do início do século XX, pela influência da filosofia existencialista, pela difusão das várias correntes psicanalistas e pelo progresso das teorias científicas sobre a relatividade, o dogma antigo da personalidade una e compacta entra em crise. Vários escritores procuram expressar em forma de arte literária a multivocidade do ser humano. O tratamento dessa tese pode ser encontrado em filósofos, dramaturgos e poetas. Kierkegaard, o pai do existencialismo, desdobrou-se em vários autores pela necessidade de se manter imparcial diante do desenrolar de seu pensamento dialético; o pensador francês Renan, em seu Diálogos Filosóficos afima que, quando refletia, tinha a impressão de ser o autor de um diálogo entre os dois lóbulos do cérebro; o poeta Unamuno coloca na base do sentimento trágico da vida a luta, dentro do mesmo indivíduo, entre a inteligência (as forças racionais) e a vida (o instinto natural), considerando o vital irracional e o racional antivital; o russo Evreinoff, no drama O Teatro da Alma, considera as personagens como várias subindividualidades componentes desse pseudossimplex que se chama espírito; o poeta francês Valéry revela que, quando procurava a solução de um problema estético, sentia-se um double, como se fosse duas pessoas distintas; Antonio Machado inventa “os poetas apócrifos” para transformar-se em outro eus. Mas é o dramaturgo italiano Luigi Pirandello que, a nosso ver, melhor se aproxima de Fernando Pessoa na concepção da pluralidade existente no ser humano. A personagem “Pai” da famosa peça Seis Personagens à Procura de um Autor afirma claramente a plurifacetação da personalidade:

“O drama para mim está todo nisso: na convicção que tenho de que cada um de nós julga ser um, o que não é verdade; porque é muitos; tantos quantas as possiblidades de ser que existem em nós: 'um' com este; 'um' com aquele – diversíssimos! E com a ilusão, etretanto, de ser sempre 'aquele um' que acreditamos ser em cada ato nosso. Não é verdade!”

Estes testemunhos demonstram que na época de Fernando Pessoa a personalidade humana já não era considerada como algo coerente, monolítico e indivisível, reputando-se o espírito como um agregado de sensações e ideias diferentes e contraditórias. Tal concepção nova da personalidade, que pairava no ambiente cultural das primeiras décadas de nosso século, deve ter influenciado o poeta português na criação de seus heterônimos, sem todavia tirar-lhe o brilho da genialidade, quer porque em nenhum outro escritor a despersonalização foi sentida tão fortemente, quer porque foi expressa artisticamente de modo todo peculiar. Só em Fernando Pessoa a heteronímia chegou ao ponto da dramatização, pois ele soube transformar as várias correntes humanas e estéticas, que existiam dentro dele, em seres autônomos em constante conflito.

4) A intelectualização dos sentimentos: a poética moderna diferencia-se da romântica pelo fato de que o poeta, mais que sentir-se um inspirado, opera como um artífice, um construtor de seus versos, e distingui-se da poética clássica pela atitude crítica do autor perante a gênese e o processo de sua construção artística. Fernando Pessoa, como T.S. Eliot, E.A. Poe, P. Valéry, Mayakovski e outros grandes poetas, é, ao mesmo tempo, criador e crítico de sua poesia. A análise do processo da criação poética e a preocupação crítica procedem paralelamente à construção da obra de arte, no intuito de arrancar a poesia do mito do mistério e da inspiração divina (a figura da musa inspiradora é posta de escanteio) e apresentar o poético como um produto do homem para

75

Page 76: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

o homem, realizado na plenitude da consciência. O conhecido verso de Fernando Pessoa“O que em mim sente, está pensando”

expressa bem a tomada de consciência do poeta em face do ato da criação artística.Pensamento e sentimento, faculdades do espírito que por longo tempo foram

consideradas antitéticas, cada qual estando ao centro de duas estéticas divergentes – a clássica e a romântica --, encontram sua conjunção e sua simbiose nos melhores poetas modernos. Hoje, a expressão corrente para denominar essa nova poética é a inteligência emocional. O pensamento sentido e o sentimento pensado enformam a matéria da poesia dos maiores escritores, entre os quais se destaca Fernando Pessoa. Nele, poética e estética andam de braços dados. À medida que cada heterônimo é a encarnação de uma tendência literária, ele funciona também como crítico da corrente contrária, personificada por outro heterônimo. Assistimos, então, dentro do mesmo poeta, a um drama vivido por artistas da palavra. Segundo Fernando Pessoa, o poeta dramático é o melhor de todos, porque só ele consegue despersonalizar-se, pondo para fora e expressando em forma de arte os diferentes modos de ver o mundo e de sentir a poesia.

Conclusão

Se conseguimos alcançar os objetivos propostos, cabe ao leitor julgar. A verdade é que todo trabalho é limitado, provisório, destinado a ser superado por pesquisas posteriores. É dessa forma que a ciência avança: toda investigação aproveita os resultados de estudos anteriores, acrescenta elementos novos e prepara o caminho para ulteriores conquistas. O conhecimento do passado é fundamental para os avanços futuros. Sem tradição cultural não há progresso. Daí termos analisado as principais contribuições de filósofos e cientistas que se preocuparam com o problema metodológico, antes de explicar as várias etapas da elaboração de uma monografia. A prática da pesquisa científica não pode ser eficiente sem o prévio embasamento teórico.

Mais importante do que o ensinamento do uso de fichários e a aprendizagem de normas técnicas de composição é o estímulo à reflexão sobre o material investigado. O orientador da pesquisa deve lutar contra os automatismos ideológicos incrustados na mente de seu discípulo para que ele pense e julgue por si próprio, ao mesmo tempo em que o aconselha no uso do melhor caminho para alcançar os objetivos propostos. Pelo capítulo dedicado ao exercício de leitura, vimos quantos conhecimentos técnicos e culturais são necessários para analisar e interpretar um pequeno poema. Adquirir métodos de trabalho implica aprender a buscar e ordenar o material necessário para o desenvolvimento do tema escolhido. Essa função é tão fundamental que os coordenadores dos cursos de pós-graduação, quase todos, exigem que a disciplina metodologia da pesquisa seja obrigatória para qualquer área de conhecimento.

Bibliografia

A - SOBRE METODOLOGIA EM GERAL

76

Page 77: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

1- ANDRADE, M.M. Introdução à Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Atlas, 1994.

2- BACHELARD, G. O Novo Espírito Científico. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Col. Os Pensadores, 28).

3- BACON, Francis. Novum Organum. 2.ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.4- BARRASS, Robert. Os Cientistas Precisam Escrever. 3.ª ed. São Paulo: Queiroz,

1994.5- CARVALHO, M. C. De (Org.). Construindo o saber: técnica de metodologia

científica. 2. ed. Campinas : Papirus, 1989. 6- CERVO, A. L., BERVIAN, P. A. Metodologia científica. 3. ed. São Paulo : McGraw-

hill, 1983.7- DESCARTES, René. Discurso do método. Lisboa : Sá da Costa, 1956.8- ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo : Perspectiva, 1996.9- GIL, Antônio C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo : Atlas, 1994.10- KÖCHE, José C. Fundamentos de metodologia científica. 7. ed. Caxias do Sul :

Universidade de Caxias do Sul/Vozes, 1984.11- POPPER, Karl. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte : Itatiaia, 1975.12______. A lógica da pesquisa científica. São Paulo : Cultrix/USP, 1975.13______ . Autobiografia intelectual. São Paulo : Cultrix/USP, 1977.14- REY, Luís. Planejar e redigir trabalhos científicos. 2. ed. São Paulo : Blücher, 1993.15- ROCCO, M. T. Fraga. Literatura/ensino; São Paulo : Ática, 1981.16- RUIZ, João A. Metodologia científica. São Paulo : Atlas, 1992.17- SALOMON, D.V. Como fazer uma monografia. 3. ed. São Paulo : Martins Fontes,

1994.18- SEVERINO, A.J. Metodologia do trabalho científico. 19. ed. São Paulo: Globo,

1994.19- VERA, Armando A. Metodologia da Pesquisa Científica. Porto Alegre: Globo, 1973.

B) METODOLOGIA APLICADA AO ESTUDO DA LITERATURA

20- AGUIAR e SILVA, Vítor M. De. Teoria da Literatura. 3.ª ed. Coimbra: Almedina, 1974.

21- ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Guimarães, 1964.22- AUERBACH, Erich. Mimese. São Paulo: Perspectiva/USP, 1971.23- BAKHTINE, M. A Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, 1981.24-_____. Questões de literatura e de estética. 4.ª ed. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1998.25- CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965.26- D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: Autores e Obras Fundamentais. 2.ª

ed. São Paulo: Ática, 2007.27_____. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.28- DAICHES, David. Posições da crítica em face da literatura. Rio de Janeiro :

Acadêmica, 1967.29- DUBOIS, J. Et alii. Retórica geral. São Paulo : Cultrix, 197330- DUCROT, O. TODOROV, T. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem.

São Paulo : Perspectiva, 1977.31- FRYE, N. Anatomia da crítica. São Paulo : Cultrix, 1973.

77

Page 78: Sumário - Acervo Digital: Home · Web viewFoi o cientista Euclides, no século III a.C., a dar aspecto formal a vários teoremas escritos pelos discípulos e seguidores de Pitágoras,

32- GOLDMANN, L. Sociologia do romance. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1967.33- HAUSER, A. História social da literatura e da arte. 2. ed. São Paulo : Mestre Jou,

1972. v. 2.34- JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. São Paulo : Cultrix, 1975.35- JAKOBSON, R. Linguística, poética e cinema, São Paulo : Perspectiva, 1970.36- LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. São Paulo : Nacional, 1967.37- LOTMAN, Iuri. La structure du texte artistique. Paris : Gallimard, 1973.38- MARROU, H-I. História da educação na antiguidade. São Paulo : EPU/MEC, 1975.39- PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro : Aguilar, 1974.40- SEGRE, CESARE. Os signos e a crítica. São Paulo : Perspectiva, 1974.41- SOURIAU, E. A Correspondência das Artes. São Paulo: Cultrix/USP, 1983.42- STAIGER, E. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1975.43- Teoria da Literatura: formalistas russos (vários). Porto Alegre: Globo, 1971.44- WEHRLI, Max. Teoria Generale della Letteratura. Milão: Mursia, [s.d.].

NB: Para a abordagem do texto literário, relacionamos apenas as obras citadas. Para uma bibliografia mais rica a esse respeito, remetemos aos compêndios de literatura de nossa autoria, relacionados pelos números 26 e 27, nos quais se encontram obras selecionadas por autores e assuntos.

78