sumÁrio...eu brinco, eu tenho minha boneca; euresisto: é minha a minha infância. assim também...

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SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12 2. UM JOGO FEITO PARA PERDER: A PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA ........... 17 2.1 A POTÊNCIA DO JOGO......................................................................................................18 2.2 DUELOS ENTRE JOGOS: AGÔN, ALEA, MIMICRY E ILINX. .....................................................31 2.3 MIMICRY .........................................................................................................................38 2.4 O MONÓLOGO DE LUCKY: NO REINO DA ILINIX ...................................................................55 3. ACASO E REPETIÇÃO: O JOGO COMO RESISTÊNCIA ............................................... 66 3.1 À ESPERA DO IMPREVISTO: ALEA .....................................................................................66 3.2 ALEA E MIMICRY : DIFERENÇA E REPETIÇÃO.....................................................................74 3.3 AGÔN: O JOGO EM FALSO ................................................................................................96 3.4 O JOGO COMO PROFANAÇÃO: A FALÊNCIA DA EMPRESA OCIDENTAL................................105 4. TRAGICÓMEDIA, COMITRAGÉDIA ............................................................................... 121 4.1 ESPERANDO GODOT: GÊNEROS EM JOGO .....................................................................122 4.2 A SUSPENSÃO DA CATARSE: O DRAMA SOB SUSPEIÇÃO ..................................................127 4.3 REARRANJOS CORAIS NA MODERNIDADE ........................................................................144 4.4 MENINO, MENSAGEIRO OU NOVO DEUS EX-MACHINA? .....................................................153 5. A LIBERDADE DE NADA SER ....................................................................................... 163 5.1 CLAUSURAS, JOGO E LIBERDADE ...................................................................................163 5.2 GINASTAS DO IMOBILISMO .............................................................................................167 5.3 O DELITO DE TER NASCIDO: O MOTIVO DA LIBERDADE EM CALDERÓN E BECKETT .............179 6. ENTRE BRINQUEDOS E RUÍNAS: JOGO E LUTO NA CENA BECKETTIANA ........... 202 6.1 REVOLVENDO ENTULHOS ..............................................................................................202 6.2 LUTO E MELANCOLIA .....................................................................................................213 6.3 A MELANCÓLICA LUDOTECA BECKETTIANA ......................................................................220 7. CONCLUSÃO .................................................................................................................. 240 8. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 248 9. ANEXOS .......................................................................................................................... 256 xi

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12

2. UM JOGO FEITO PARA PERDER: A PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA ........... 17

2.1 A POTÊNCIA DO JOGO ...................................................................................................... 18 2.2 DUELOS ENTRE JOGOS: AGÔN, ALEA, MIMICRY E ILINX. ..................................................... 31 2.3 MIMICRY ......................................................................................................................... 38 2.4 O MONÓLOGO DE LUCKY: NO REINO DA ILINIX ................................................................... 55

3. ACASO E REPETIÇÃO: O JOGO COMO RESISTÊNCIA ............................................... 66

3.1 À ESPERA DO IMPREVISTO: ALEA ..................................................................................... 66 3.2 ALEA E MIMICRY : DIFERENÇA E REPETIÇÃO ..................................................................... 74 3.3 AGÔN: O JOGO EM FALSO ................................................................................................ 96 3.4 O JOGO COMO PROFANAÇÃO: A FALÊNCIA DA EMPRESA OCIDENTAL ................................ 105

4. TRAGICÓMEDIA, COMITRAGÉDIA ............................................................................... 121

4.1 ESPERANDO GODOT: GÊNEROS EM JOGO ..................................................................... 122 4.2 A SUSPENSÃO DA CATARSE: O DRAMA SOB SUSPEIÇÃO .................................................. 127 4.3 REARRANJOS CORAIS NA MODERNIDADE ........................................................................ 144 4.4 MENINO, MENSAGEIRO OU NOVO DEUS EX-MACHINA? ..................................................... 153

5. A LIBERDADE DE NADA SER ....................................................................................... 163

5.1 CLAUSURAS, JOGO E LIBERDADE ................................................................................... 163 5.2 GINASTAS DO IMOBILISMO ............................................................................................. 167 5.3 O DELITO DE TER NASCIDO: O MOTIVO DA LIBERDADE EM CALDERÓN E BECKETT ............. 179

6. ENTRE BRINQUEDOS E RUÍNAS: JOGO E LUTO NA CENA BECKETTIANA ........... 202

6.1 REVOLVENDO ENTULHOS .............................................................................................. 202 6.2 LUTO E MELANCOLIA ..................................................................................................... 213 6.3 A MELANCÓLICA LUDOTECA BECKETTIANA ...................................................................... 220

7. CONCLUSÃO .................................................................................................................. 240

8. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 248

9. ANEXOS .......................................................................................................................... 256  

xi

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12

1. INTRODUÇÃO

Brincar é a condição fundamental para ser sério1.

Arquimedes.

A foto que serve de epígrafe a este trabalho é do fotógrafo Alberto Korda (1928-

2001), que se tornou mundialmente conhecido pelas fotos de Che Guevara e Fidel durante a

Revolução Cubana. O artistaconsiderava essa fotografia uma das mais significantivas de

sua trajetória. "Eu nunca pensei em mim como um grande fotógrafo até que fiz esta imagem

da menina cubana segurando um pedaço de madeira. A mãe dela me disse que ela fingia

que era sua boneca. Esta é para mim a foto mais importante da minha carreira2”, afirmou

certa vez, Alberto Korda. É bom lembrar que Korda é o autor da célebre foto de Che

Guevara de cabelos longos, usando boina com uma estrela, considerada o maior ícone

gráfico do mundo do século XX.

A imagem, responsávelpor umaguinada na vida do fotógrafo foi, segundo seu relato,

fruto do acaso. Em 1958, enquanto trabalhava num vilarejo pobre da região de Pinar Del

Rio, Korda deparou-se com uma menina pequena e assustada com a câmera que ele

carregava. Era a testemunha perfeita da miséria da região: vestia roupas humildes e

segurava um pedaço de madeira, com o qual ela brincava como se fosse uma boneca. A

ternura e o desvelo com que a menina cuidava deseu brinquedo, que tinha inclusive uma

roupa própria, comoveram Korda. A partir de então, ele passou a se interessar pela questão

da pobreza no país e aderiu às causas revolucionárias.

Talvez Korda esteja certo em julgar que seja esse oinstante mais importante captado

por sua câmera fotográfica. O olhar de Che perdido no horizonte, icônico, mobilizou muitos

jovens em busca de uma utopia, mas a figura de Che Guevara conseguiu ser cooptada pelo

utilitarismo do capital, e tornou-se, desafortunadamente, uma das imagens mais fetichizadas

1ASSIS, André Koch Torres. Arquimedes, o Centro de Gravidade e a Lei da Alavanca. Montreal, Quebec: Apeiron Montreal, 2008. 2 Fonte: http://www.arthistoryarchive.com/arthistory/photography/Alberto-Korda.html

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do capitalismo, aparecendo em camisetas e produtos que nada têm a ver com os ideais e o

mundo com que deveria estar sonhando o jovem revolucionário, quando o flash da máquina

roubou de seus olhos aquele lampejo de esperança.

Outra coisa, contudo, se vê, no olhar firme da garota de Korda. Sua mirada para as

lentes do fotográfo é de uma suavidadeinabalável; desafiadora,ela segura aquele pedaço de

madeira - que talvez tivesse destino mais certo como lenha para o fogão -, de forma

resoluta. É uma criança pobre, de vestes simples, mas que, em contrapartida,parece dizer:

eu brinco, eu tenho minha boneca; euresisto: é minha a minha infância.

Assim também vejo os personagens de Samuel Beckett. De posse de seus detritos,

objetos residuais e fraturados, as criaturas beckettianas parecem resistir a que lhes roubem

a possibilidade de habitarem um estranhado país da infância, no qual, à parte da catástrofe,

solidão e abandono, ainda são capazes de jogar seus jogos.

Beckett,ao referirir-se ao Work in Progress, de James Joyce,afirma que na obra do

autor de Ulisses a forma é conteúdo e conteúdo é a forma. “Os senhores queixam-se de que

esse material não é escrito em inglês. Não está escrito em forma alguma. Não é para ser

lido – ou, antes, não é só para ser lido. É para ser contemplado e ouvido. Esta não é a

escrita sobre alguma coisa; é a coisa em si” 3.

O que dizer então deEsperando Godot, cujo tema é uma ausência tão pujante quanto

qualquer presença? Poderíamos supor, talvez, que as falas ditas pelos personagens, seus

gestos e jogos, nessa peça em que a ação inexiste, mais que a tematização de uma espera,

seja uma espera em si mesma. A linguagem ali está esperando; ela é pura suspensão. Isso

parece ensejar que uma leitura da obra de Beckett não deva providenciar, necessariamente,

um encontro que coloque um fim à espera, oferecendouma interpretação definitiva para os

impasses,a latênciae o vazio que esse intervalo da espera provoca.

3Assim continua Beckett: “quando o sentido é dormir, as palavras adormecem. Quando o sentido é dança, as palavras dançam. Pegue-se a passagem no fim da pastoral de Shaun: a linguagem está bêbada, já que o personagem também está”.BECKETT, Samuel. Dante... Bruno...Vico...Joyce. In:NESTROVSKI, Arthur (organização). Riverum. Ensaios sobre James Joyce. Trad. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 331-332.

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Talvez seja mais seguro nos atermos à escuta dessa ausência, desses detritos e

jogos encenados pelos personagens, para a busca de uma interação com essa poética

depauperada e sua relação com o silêncio, constantemente renovado numa arte da palavra

que consiste em usar os vocábulos como inutensílios:“dobrar a palavra, para, nessa medida,

restituir tudo quanto subtrai4”. Pensamos que, nessa investida, talvez, a infância, como o

silêncio, nos devolvam a uma instância em que a máscara disforme e opaca da criatura

humana, na contemporaneidade, nos seja parcialmente desvelada.

Por isso, escolhemos a categoria do jogo como base investigativa deste trabalho. A

célebre obra de Huizinga, Homo Ludens5, nos auxiliará neste itinerário, apresentando

caminhos com os quais ora convergiremos e dos quais ora nos afastaremos. Isso porque o

jogo, na obra do professor holandês, não aparece apenas como elemento de investigação

estética: para o autor, a cultura nasce do jogo. O último é anterior à primeira,

acompanhando-a e transformando-a desde as mais longínquasorigens até a

contemporaneidade. Seus estudos tomaram o jogo como uma forma peculiar de atividade,

como “forma significante”, como função social e lhe atribuem uma função seminal naquilo

que chamam hoje de civilização.

Entretanto, se pensarmos no que aconteceu com a cultura do ocidente, em diálogo

também com a obra de Freud, “O Mal estar da civilização”, (traduzida, no Brasil,

recentemente, como o “Mal estar da cultura”), talvez entendamos um pouco melhor a

maneira como se processam os jogos de Beckett, no momento em que sua obra, em nossa

opinião, aparece também uma ferrenha crítica à civilização ocidental.Nessa empresa, nos

valeremos também de Roger Caillos6 e as quatro categorias dos jogos que ele forjou para

pensarmos nossa cultura: mimicry, alea, ilinx, âgon.

4Cf.Tagliaferri, Aldo. Joyce e Beckett: Leitura Terminável e Interminável.In:NESTROVSKI, Arthur (organização). Riverum.Ensaios sobre James Joyce. Trad. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 176. 5HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010. 6CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990.

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Para Huizinga, “o jogo é uma atividade voluntária7”. Sujeito a ordens, preso apenas

às regras e ao cálculo,deixa de ser jogo, perdendo sua espontaneidade e vigor criativo.

Logo, o jogo está, de uma maneira ou de outra, ligado à questão da liberdade. É evidente

que Huizinga entende a liberdade em um sentido mais lato, sem tomar como referência o

problema filosófico do determinismo, mas sim a territorialidade especial que o espaço do

jogo inaugura, ainda que seja em um espaço circunscrito. “As crianças e os animais brincam

porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade8.”

No entanto,o lugaronde brinca a criança não deixa de ser um espaço no qual ela

encena suas experiências, vitórias e frustrações. Neste trabalho, tentaremos pensar um

pouco a respeito desse espaço especial inaugurado pelo lúdico e sobre como se dá a

liberdade em seus limites. Essa liberdade se funda, em nossa visada, a partir de uma

disposição bastante singular diante do mundo: a disposição melancólica.

Nesse sentido, tomaremos o ato de brincar como uma experiência poética na

continuidade do espaço-tempo, em que uma relação extraordinária com o real se prenuncia.

O estado de quase alheamento em que se encontra a criança que brinca, aliada à

concentração que não permite intrusões, não deixa de estar em fricção com o mundo.

Tanto a criança quanto o adulto, ao brincarem, habitamuma região que não pode ser

negligenciada: “essa área do brincar não é a realidade psíquica interna. Está fora do

indivíduo, mas não é o mundo externo9”.O estado de interseção permanente que a

brincadeira instaura,coloca em diálogo o real e a fantasia, plasmando um imaginário capaz

de estender as possibilidades de compreensão da realidade.São manipulados, dentro dessa

zona, objetos ou fenômenos oriundos da realidade externa. Ao fazê-lo, contudo,é revelada

uma porção deinterioridade de quem os maneja, pois,nesse domínio de orientação

autônoma,os objetos colocam em cursoprocessos procriativos de umapercepção ativada do

7HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.33. 8Ibidem. p. 3. 9 WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.76.

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real. “Sem alucinar, a criança põe para fora uma amostra do potencial onírico e vive essa

amostra num ambiente escolhido de fragmentos oriundos da realidade externa10”.

Assim pensava Winnicott, com sua teoria dos objetos transicionais e espaço em

potencial11. Ao brincar, os fenômenos externos são manipulados a serviço do sonho; os

materiais se tornam significantes; animados por sentimentos oníricos, são investidos pela

subjetividade de quem joga. O brincar envolve o corpo em razão da manipulação de objetos;

quando a brincadeira está em curso, há um apagamento entre as fronteiras do objeto

utilizado e do ser que o manipula. Os objetos, por sua vez, adquirem novos significados,

afastados de sua instrumentalidade habitual. O ato de jogar, assim, é uma reinscrição do ser

no espaço e tempo, porque também reiventa a temporalidade, integrando-o a um tempo

muito particular - desintegrador e integrador, simultaneamente, em relação a realidade

daquele que joga. Tempo inaugural, de um novo modo de ser e estar no mundo.

Assim, o jogo também pode ser pensado como categoria ontológica.Segundo Eugen

Fink12, “o jogo humano tem um significado mundano, uma transparência cósmica”. Ele, o

jogo, é uma das mais claras evidências da nossa existência finita. Brincando, o homem não

permanece em si mesmo, perde a centralidade do eu. Desloca-se, então, para uma

realidade “extática e excêntrica”, na qual, contudo, não deixa de dialogar com a realidade

exterior. Jogando, diz Eugen Fink, “o homem sai de si mesmo, em um gesto cósmico, e dá

uma interpretação rica de sentido a todo o mundo13.”

O jogo tem como aliado o tédio. Para Huizinga, uma das características

fundamentais do jogo “é que ele jamais é imposto pela necessidade física ou dever moral, e

nunca se constiuti como tarefa, sendo sempre praticado nas horas de ócio, com exceção

dos rituais religiosos, que têm uma função cultural reconhecida14”.

10WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 76. 11 Idem. 12 FINK, Eugen. Le jeu comme symbole du monde. Le signification cosmique du jeu humain.Paris: Éditions de Minuit, 1960, p.19-20. 13Idem. 14HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.11.

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Huizinga conclui que é inerente ao jogo o fato de ser livre. Ele próprio consiste em

uma manifestação de liberdade. Uma segunda característica do jogo, portanto, intimamente

ligada à primeira,é que o jogo não é “vida corrente”, “nem vida real”. Pelo contrário, trata-se

de uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação

própria. Os jogos das crianças, contudo, nos adverte15, não são desprovidos de seriedade:

“eles se processam com um enlevo e um entusiasmo que chega ao arrebatamento e, pelo

menos temporariamente, absorvem inteiramente seu jogador”.

Acredito que, como a menina de Korda e sua boneca, os personagens de

Beckettfizeram de seus jogos, de suas narrativas, de sua imobilidade, e, principalmente, de

sua espera, uma instância de resistência. Não tentaremos, contudo, simplificar o

estranhamento desse mundo infantil; nem supor, apressadamente, no que consistem os

jogos na construção da poética cênica de Beckett. Aqui, nesta tese, manteremos a mesma

atitude de desconfiança que Beckett atribuía à linguagem: tateamos.

2. UM JOGO FEITO PARA PERDER: A PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA

15 Idem.

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Desta vez, eu sei para onde estou indo, não é mais a antiga noite, a noite recente. Agora, é um jogo que eu vou jogar. Nunca soubejogar, até agora. Bem que eu queria, mas era impossível. Mas tentar, tentei. Acendia todas as luzes, olhava bem em volta, começava a brincar com o que via. Brincar é o que as pessoas e as coisas mais adoram fazer, certos animais também. A princípio, todas vieram de bom grado, vieram todos a mim, felizes que alguém quisesse brincar com elas. Se eu dizia, “agora eu quero um corcunda”, imediatamente um corcunda vinha correndo, todo prosa da bela bossa com que ia representar. Não lhe ocorria que eu poderia pedir que ele tirasse a roupa. (BECKETT, in: Malone Morre) 16

2.1 A potência do jogo

Esperando Godotfoi escrita em francês pelo irlandês Samuel Beckett, durante apenas

quatro meses do ano 1949. Sua encenaçãoganhou os palcos sob a direção deRoger Blin,

depois de Beckett haver assistido, por duas vezes, Sonata dos espectros, de Strindberg,

peça da qual Blin era o encenador, no Théâtre de La Gáité-Mortparnasse.Ao que parece,

Beckett julgara-o capaz de compreender edirigir o seu texto,e, depois de alguma espera,

finalmente pôde vera estreia de Esperando Godot no pequenoThéâtre de Babylone, em 05

de janeiro de 1953.

A recepção não foi desprovida de escândalo: o público não entendeu. “Alguns

aplaudiram, outros assobiaram, protestaram, houve até troca de insultos”, segundo Emile

Lavielle17.Jean Anouilh, um dos primeiros a publicar uma matéria elogiosa em Arts,

descrevia a encenação de Godotcomo “um esquetemusic-halldos Pensées de

Pascaldesempenhados pelos Irmãos Marx” 18. Jean-Jacques Gautier manteve o mais

absoluto silêncio em Le Figaro. Alain Robbe-Grillet escreveu na Critique (Fevereiro de 1953)

um artigo, “Samuel Beckett ou a presença sobre a cena”, no qual estabelecia uma relação

16 BECKETT, Samuel. Malone Morre. Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p.10-11. 17 LAVIELLE, Emile. En Attendant Godot. Paris:Librairie Hachette, 1972, p.13. 18LAVIELLE, Emile. En Attendant Godot. Paris:Librairie Hachette, 1972, p.13.

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entre a postura dos personagens em cena e a filosofia de Martin Heidegger, no que diz

respeito ao Dasein.Outras leituras, de base teológica, viram na peça uma espécie de

reinterpretação do cristianismo.

Entre as diversas possibilidades de leitura que a obra apresentou,a interpretação a partir

do existencialismo de Sartre parece, à época, haver contado com maior número de adeptos.

Segundo Émile Lavielle19, “uma visada sartreana do trabalho é bem plausível. Embora a

doutrina de Beckett não seja a de A Nauseaou a do Ser e o Nada e esteja para além de

qualquer expressão ideológica, Esperando Godot está carregada de noções

existencialistas.” É verdade:há vários temas existencialistasna peça. Mas se os

personagens tagarelam, sua loquacidade não pretende chegar a nenhuma conclusão ou

conceito. Os temas são esvaziados, superpostos em clichês nos quais Beckett desfila aos

olhos do leitor a fragilidade, a vulnerabilidade dos discursos prontos. Os personagensnão

contam com projetos para a existência, apenas jogam. Dizerqualquer coisa,naquele

contexto, é o que precisam, e o uso de paradoxos, de forma intermitente, não nos permite

reconhecer algo que se assemelhe à proposta de Sartre, que tinha na ação do sujeito diante

do mundo, um de seus principais pressupostos.

De qualquer forma, não é difícil imaginar hoje a perplexidade que a peça causara na

ocasião de sua estreia. Sua encenação materializano palco uma crise concernente à própria

forma dramática na modernidade, na qualas três unidades – tempo, ação e espaço –

cunhadas por Aristóteles, encontram-se radicalmente subvertidas.

Esperando Godotpassa-se em um espaço impreciso. Um caminho e uma árvore são os

elementos do cenário no qual se encontram Vladimir e Estragon; personagens, que, ao que

parece, têm naquele local um encontro com um senhor a quem chamam de Godot. Nenhum

relógio ou bússola para lhes demarcarem tempo e espaço: tão incerto como o lugar em que

obrigatoriamente devem aguardar Godot é o próprio personagem a quem esperam. Sobre o

seu nome se tem edificado, no árduo esforço exegético da crítica ao longo dos anos, um

19 Idem. .

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20

sem-número de apostas.Segundo o crítico George Hensel20, uma das primeiras

interpretações, dentre várias outras que tentavam explicar o nome Godot, “seria que a

primeira parte significariaGod, palavra inglesa que significa Deus; e a terminação,ot, um

sufixo extraído da língua francesa, que, anexado ao nome,estaria ali para dar a ideia de

diminutivo”.

Poderíamos supor, então, Godot como esse falso demiurgo, um artífice dotado do mais

nefasto humor negro, que se diverte à custa do sofrimento de suas criaturas? O próprio

Beckett tratou de refutar as especulações acerca do nome do ilustre visitante a quem

esperam os dois notáveis vaudevilles. Quando interrogado certa vez, em Berlim, em 1967,

se o nome Godot era inspirado em um nome de família em cuja casa ele se hospedara no

sul da França, Beckett contestou, e, em outra ocasião, acabou por afirmar, em carta a Alan

Schneider21, que nem mesmo ele sabia o que significava o nome, e, se o soubesse, o teria

explicado no próprio espetáculo22.

Os personagens se tratam por apelidos numa alternância de ternura e crueldade nunca

coincidente entre as partes. Estragon é Gogo e Vladimir é Didi. Vladimiré maisinclinado à

elucubrações, pronto para transformar o comentário mais trivial em qualquer coisa da mais

profunda aspiração metafísica. Gogo, por sua vez, está quase sempresentado, inclinando-

se, mancando, caindo. Sua postura nunca é altiva e resoluta: seus tropeços o levam ao solo

constantemente. Se Gogo dá maior atenção às suas botas, é ao seu chapéu que se detém

Didi. No encontro com Pozzo, Estragonquer que Lucky dance;Didi,que ele pense. Os pés

de Estragon fedem e Didi tem mau-hálito.Enquanto Gogoé dado apantomima,Didiinclina-se

paraa retórica.A simetria23 se estende até o número de letras que possuem os nomes dos

20HENSEL, George. Samuel Beckett. Breviarios Del Fondo del Cultura Económica 224, México, 1968, p. 34-35. 21Diretor da primeira produção americana da peça.

22 ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 38.

23 FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/ Krapp’s Last Tape. London: Faber and Faber, 2000, p.74.

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personagens: Vladimir e Estragon possuem oito letras; os apelidos, quatro (correspondência

análoga ao outro par da peça, Pozzo e Lucky, ambos com cinco letras no nome).E mesmo

as falas obedecem amatrizes que se alternam: oAtoIItermina comas mesmaslinhas do Ato I;

apenas os personagens que as enunciam se revezam.

De acordo com Beckett, contudo, “não há nenhum interesse especial ligado à escolha de

nomes: nenhuma intenção de sua parte, por exemplo, em "internacionalizar" a peça, dando

aos personagensdenominações que provem de línguas diversas; francês para Estragon,

russopara Vladimir ou no uso do inglês para Lucky e italiano para Pozzo24”.

Em todo caso, mesmo os nomes não são fixos: se Vladimir chama-se Vladimir, o menino

que traz a mensagem de Godot se dirige a ele como "Senhor Albert" e,a certa

altura,Estragon dá o seu nome como Adam, numa alusão irônica ao personagem bíblico. No

primeiro manuscrito da peça, Estragon é chamado, ao longo do primeiro ato, de Levy (um

nome judeu com óbvias conotações bíblicas), e,já na versão oficial, Estragon, quando

questionado sobre seu nome por Pozzo,diz, sem titubear, quese chama Catulo25. Vladimir

seria o lado intelectual do homem; Estragon o corpóreo. Seus nomes sugerem aspectos

complementares da natureza humana.Eles carregam aspectos da personalidade de cada

um: “Vladimir, por exemplo, nome russo, significa “senhor do mundo”, nome que sugere sua

aspiração em dominar o universo via intelecto, dado suas inclinações filosóficas. Já

Estragon, palavra francesa para erva estragão,calha bem em um personagem com apetites

físicos tão marcantes26”.

Insigificante, porém, torna-se a discussão sobre os nomes dos personagens, quando a

empresa avança para acrítica. Como a teoria literária27 cresceu e transformou-se durante

todo este período, Godote as demais peças do autor têm sido sujeitadas a uma grande 24 Idem. 25 Na tradução brasileira, de Fábio Souza Andrade, que utilizamos neste trabalho. O texto inglês traz a palavra Adam (Adão) e não Catulle, como no francês. “Adam”, por razões óbvias, traz uma ideia de homem originário, universalidade. O nome, em hebraico, quer dizer humanidade. 26 WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 32. 27BOXALL, Peter. Waiting for Godot/Endgame. A reader’s guide to essential criticism.First Responses to Waiting for Godot and Endgame.New York:Palgrave Macmillan,2003, p.5-10.

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variedade de abordagens analíticas, que procuraram um meio de dar expressão crítica para

a novidade dramática de Beckett.

Apesar da relutante resistência às interpretações,segundo Peter Boxall28, “o diálogo

agonístico e difícil entre Beckett e crítica literária tem o seu princípio organizador, presente

em batalhas teóricas e políticas que cercam as peças dos anos cinquenta até a década de

noventa”. Há um abismo político que se abriu na recepção crítica de Beckett na década de

cinquenta, após as primeiras montagens de Esperando Godot e Fim de Partida. Martin

Esslin e Theodor Adorno foram os primeiros a apresentarem ensaios relevantes sobre o

trabalho do autor. O primeiro, o arrolou ao grupo de produções do chamado “Teatro do

Absurdo”, destacando a forte dose de humanismo que a peça Esperando Godot trazia em

seu bojo, na atitude de persistência dos personagens em prosseguirem, mesmo

medianteuma existência que não possuía nenhuma finalidade. Já a leitura de Adorno, ao

contrário, não ofereceu tal representação, que a alguns pareceu enaltecedora, de uma

humanidade incansável. Em seu ensaio sobre Fim de Partida,29e mais tarde na Teoria

Estética,30Adorno afirmava que Beckett dramatiza a deterioração da cultura, após as

atrocidades do século XX.A realidade seria a transposição, na arte,de uma forma que visava

a um ataque ao conceitotradicional de poético, considerado até entãocomo algo superior e

consagrado. “A poesia retirou-se para o abandono sem reservas ao processo de desilusão,

que destrói o conceito de poético; é o que torna irresistível a obrade Beckett.” 31Na visão do

autor da escola de Frankfurt, a peça é uma crítica mudaaos processos sociais que levaram

a esse quadro de destruição, que é muda porque não há mais uma linguagem cultural

intacta com a qualarticular a resistência ou protesto. Para Adorno, oteatro de Beckett foi

além dos poderes interpretativos da teoria ou filosofia, porque o que ele dramatizava era

28 Idem. 29 ADORNO, Th. W. Notas sobre literatura. Intento de entender Fin de partida. Madri: EdicionesAkal, 2009, p.270. 30Ibidem. p. 34. 31Ibidem. p. 482-483.

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justamente o fracasso de tais discursos, expressando a depravação de condiçõesdo mundo

contemporâneo.

Ainda não se desenvolveu, salvoengano32, uma abordagem da obra de Beckett, a

partir da categoria do jogode forma minunciosa. Adorno, por exemplo, eliminou a

possibilidade de um estudo nesse sentido logo de saída, quando enxergou na produção

artística do século XX, e de forma específica em Beckett, o princípio lúdicocomo uma forma

de cumplicidade secreta com o “destino, representando o peso míticoque a arte gostaria de

lançar fora.”33 Para ele, se era impossível pensar a arte sem o jogo e sem a repetição, ela,

todavia,determinava em si, como negativo, este “terrível vestígio”.

Em nossa visão, entretanto,tomaro jogo e a repetição como simplesmente uma força

disciplinadora que realiza “o tabu sobre a expressão no ritual da imitação”, é ignorar que é

concernente à própria dinâmica do jogo nãosomente “o domínio de uma coletividade cega34”

mas, também, uma atitude que põe em jogo o próprio real instituído. Esse movimento

pendular, que ora é sério, ora é jocoso, põe em xeque o universo da crença nas instituições,

doqual o imaginário é constituído e constituinte, sendo, inclusive, responsável pela

manutenção de valores que as sustentam.Também elas, as instituições, são calcadas em

uma rede simbólica, socialmente sancionada, na qual se combinam em proporções e em

relações variáveis, um componente funcional e um componente variável.O imaginário está

na raiz tanto da alienação como da criação na história.35Logo, uma acepção do jogo

relegando seu potencial crítico de ironizar a realidade para em seguida desestabilizá-la

permanece em uma chave dialética que remete a uma síntese, como se a arte fosse um

32 Ruby Cohn, em seu livro Samuel Beckett: the comic gamut, faz uma alusão à numerosa incidência de jogos na estrutura de Waiting for Godot e Endgame, citando Huizinga e uma de suas definições acerca do jogo para ilustrar seu comentário. Outros críticos fizeram o mesmo, mas não sabemos de nenhum trabalho que tenha se dedicado à questão do jogo de forma pormenorizada, como tentamos nesta tese.Cf. COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutger University Press, 1962, p.226. 33ADORNO, W.Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 482. 34 Ibidem, p.483. 35CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.161.

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negativo do real36.A arte até gostaria de “lançar forar” esse peso mítico corporificado pelo

instinto lúdico.Se não o faz, é porque há uma tensão dialética permanente, concernente à

própria ludicidade: ela não é só opressão, mas também resistência, persistência e

promessa.Muitas vezes, a exposição desse impulso lúdico, no cantar que tematiza a própria

dor da repetição, ou mesmo nas conversações que oferecem um alívio apenas temporário, é

transmudamento do sofrimento em canto e narrativa,numa tentativa, ainda que muitas vezes

frustrada, de fuga do sofrimento, de compreensão da natureza da aflição,em uma

expectativa de exorcizá-los pela repetição.

Portanto, enfocado em sua dimensão própria, o lúdico, na situação limite em que se

encontram os personagens de Esperando Godot, prenuncia-se como último recurso para

ludibriar o tédio. E mesmo que os fracassos sejam sucessivos, o exercício intermitente do

jogo não deixa de despertar nos jogadores, que são os espectros beckettianos, a esperança

de ser bem sucedido na próxima tentativa, exatamente onde acabaram de falhar.

Em nossa visão, a obra de Beckett não destrói “o conceito de poético” como quer

Adorno, pois a tessitura da obra de arte norteada pelo princípio poético de composição

nunca se prendeu ou se deixou aprisionarpor conceitos. A trama da linguagem, na qual se

inscreve o discurso poético, abarca o pensamento sem se deixar domar pelas amarras do

conceito; as imagens que seu discurso produzdiferem decisivamente do discurso conceitual,

que se fecha em uma proposição finalista.

Trabalharemos aqui com a proposta de imagem dialética, em suas duas funções

essenciais: crítica e criadora. Na esteira de Walter Benjamin37 e Didi-Huberman38,

36 Segundo Castoriadis, a criação pressupõe, tanto quanto a alienação, a capacidade de dar-se àquilo que não é (o que não é dado na percepção ou o que não é dado nos encadeamentos simbólicos do pensamento racional já constituído). E não podemos distinguir o imaginário que está atuando na criação do imaginário “puro e simples”, dizendo que o primeiro antecipa uma realidade ainda não dada, mas “se verifica” em seguida. O essencial da criação não é a descoberta, mas a constituição do novo; a arte não descobre, mas constitui; e a relação do que ela constitui com o real, relação seguramente muito complexa, não é uma relação de verificação. Idem, ibidem, p.162. 37BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

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pensaremos Beckett como inventor de uma forma poética que, exatamente enquanto

imagem dialética – imagem de memória e crítica ao mesmo tempo, “propõe com seu modo

de fazer poético, imagens de uma novidade radical que reinventa o originário”39.Tentaremos

mostrar que sua poética, fundamentada no jogo, transforma e inquieta de forma duradoura

os campos discursivos conhecidos, trazendo consigo, nessa construção, efeitos teóricos que

subvertem radicalmente “as velhas perguntas e as velhas respostas40”, como afirma Clov,

em Fim de Partida.Capaz de provocar uma inquietude nas formulações cristalizadas das

maisantigas questões da humanidade, o jogo poético ou a poética do jogo que a obra

beckettiana instaura conduz ao movimento perpétuo ou ao aparente repouso do silêncio.

Nesse jogo, as imagens permanecem abertas e inquietas em sua proposital

incompletude. E o silêncio, a mudez, tão cara e tão presente em sua produção artística, não

aparece apenas no sentido de limite; mas abarca também a multiplicidade, a potência

plurissignificativa, que só no silêncio é capaz vigorar. O silêncio não é só solidão, mas

ausência que convoca presença, ausência que convoca e provoca o outro. Se a escrita

beckettiana é atravessada por silêncios e pausas, essas interrupções nem sempre estão ali

somente para enfatizar os limites da linguagem. Ao contrário, sinalizam tambéma

instauração da identidade do silêncio na diferença do corte41. Sua poética fala mais quando

se cala, já que o silêncio não é espaço vazio a ser “preenchido”, mas o máximo de

concentraçãoda fala a ser auscultado pelo leitor em sua complexidade, que pulsa nas 38 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,1998. 39 Originário aqui nada tem a ver com gênese. Como definiu o próprio Benjamin, o conceito de origem ao qual ele reporta-se não se refere ao devir de algo que nasce, mas antes a algo que emerge do processo de devir e esgotamento. “A origem está no rio do devir e o seu ritmo arrasta para a torrente os materiais da gênese. O que vem de uma origem nunca se dá a conhecer no inventário nu e óbvio do fatual, e o seu ritmo abre-se apenas a uma dupla perspectiva. Esta pede, por um lado, para ser reconhecida como restauração, enquanto reconstituição, e por outro lado, nesse contexto, como algo que é imperfeito e inacabado.” BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.257. 40BECKETT, Samuel. Fim de Partida. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.42. 41Como nos fala o professor Eduardo Portella: “O silêncio é a força da experiência confrontada com a fraqueza da expressão.” PORTELLA, Eduardo. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.16.

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entrelinhas, resistente às artimanhas do discurso. Invocar afeto não é convocar sentido, mas

pode ser um convite ao vitalismo, ainda que a apreensão imediata do mundo só ofereça

escombros.

A perspectiva aqui adotada é a de que a estrutura da obra Esperando Godot, de

Samuel Beckett, por meio de sua forma baseada em repetições e silêncios, instaura um jogo

ininterrupto, dramatizando de maneira tragicômica a existência, mas, ao contrário do que se

professa, não nos mostra apenas caracteres que agonizam em virtude do vazio e da

ausência de sentido, no qual o lúdico foi reduzido à simples negatividade. Em nossa

perspectiva, há, em Esperando Godot,uma encenação do luto, que, pela via do jogo,por um

ladopõe em curso o espanto e o terror das fantasmagorias que habitam o homem moderno

e,por outro, é capaz de trazer à cena uma possibilidade de experiência cujas

imagens,fulgurais e anacrônicas, ensejam novas possibilidades de alcance do real. Assim,

luto e ludo se imiscuem, numa interação na qual o gozo e o sofrimentoencontram-se

irremediavelmenteenredados.

O enredo, a história contada de uma forma linear que contém uma moral ou

mensagem em seu desfecho, sempre saciou a fome dos leitores que buscavam uma ficção

útil, capaz de dar uma significação à jornada humana em suas grandes e pequenas

mazelas. As narrativas com início, meio e fim não são mero entretenimento; são um

instrumento de alienação e dominação que conduzem a uma zona de conforto, na qual

respostas prontas e acabadas são fornecidas ao leitor, banindo de seu horizonte quaisquer

indagações que perturbem a falsa ordenação de sua existência. Beckett, porém,em sua

obra teatral, substitui a noção de enredo pela ideia de jogo; a poética de sua cena constrói-

se justamente a partir da impossibilidade e da insuficiência. Despida dasprerrogativas

aristotélicas que caracterizavam a ação teatral,Esperando Godot, essa peça de dois atos

que parecem se repetir de forma idêntica, antecipa aquilo que no pós-dramático

convencionou-se: “fazer do próprio corpo e do processo de sua observação um objeto

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estético-teatral” 42. É menos como significante do que como provocação que o corpo-objeto

vem à tona. Assim, o que se apresenta em cena não é apenas o agôn, uma luta entre o eu,

o outro e o mundo dos objetos que os circundam, mas a ausência provocada por um sujeito

que desfalece subsumido em profunda agonia, atravessado por imagens que se oferecem

embaçadas e imprecisas, a partir de sua interação com os restos e resíduos que, como ele,

estão em franco processo de decomposição.

Fiados em uma crença em que a ciência e a razão se mostravam mais confiáveis

que atualmente, nossa espécie recebeu a designação de homo sapiens. Porém, com o

passar dos séculos, acabamos por compreender que, afinal de contas, não somos tão

racionais quanto o ingênuo culto à razão nos fez supor; passou então a ser moda designar

nossa espécie como homo faber, por sua capacidade de forjar objetos, que ao longo da

demanda, suprem as necessidades do homem. Ainda assim, subsistiu uma lacuna, e é aí,

nesse hiato, que Huizinga43 nos sugere uma terceira via de interpretação, que se verifica

tanto na vida humana como na animal, e é tão importante quanto o raciocínio e o fabrico de

objetos: o jogo.Huizingafoi o primeiro a pensar o jogo como um elemento intrínseco da

cultura. Sugerindo que, depois do Homo faber, e, talvez, no mesmo nível do Homo sapiens,

a expressão Homo ludens mereça um lugar em nossa nomenclatura, Huizinga associa ao

jogo e pelo jogo todo o processo de configuração daquilo que hoje chamamos

civilização.Encarandoo fenômeno da ludicidade como inerente ao processo de formação

humana, tendo suas manifestações de plenitude no jogo,Huizinga, entretanto, confere uma

realidade autônoma ao jogo, que não o limita àesfera humana.

42LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Do agôn à agonia. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac &Naify, p. 335. 43 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 3.

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“A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica

do jogo.” 44 Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que

simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque

somos mais do que simples seres racionais, pois há no jogo um forte componente irracional

que esmaece os limites entre a razão e o instinto.

Huizinga conduziu sua investigação sobre o jogo no âmbito das descrições culturais,

acentuando o caráter lúdico da cultura e surpreendendo no jogo a fonte e o impulso do

avanço civilizatório. A autonomia dada à noção de jogo por seus estudos, conferindo-lhe o

status de um macromodelo para análise dos fenômenos, fez com que extensão sugerida na

aplicabilidade do conceito fosse, por vezes, questionada. “Em que pese essa perigosa

expansão conceitual, o seu obstinado esforço teórico guarda o mérito de haver contribuído

decisivamente para recuperar a positividade, a seriedade do jogo.45”

Segundo Iser,46 a variedade de jogos (games) estimulou na teoria dos jogos um

intenso esforço para categorizá-los, uma vez que o jogo pode ser melhor entendido através

de suas estruturas. Desde o final dos anos 40 do século XX, essas classificações só

aumentam, às vezes desenvolvidas em oposição direta a Huizinga, que globalizara a

competição de tal forma que nela só via o jogo por excelência, considerando-o até mesmo

como fato anterior à cultura,47 até chegar a Roger Caillois, que, apesar de toda sua

admiração por Huizinga, afirmava que o autor deixava de lado toda descrição e classificação

dos jogos, como se eles correspondessem sem exceção às mesmas necessidades ou

expressassem, sem distinção, a mesma atitude psíquica. Para Caillois, “a obra de Huizinga

44HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 6. 45 PORTELLA, Eduardo.No jogo da Verdade a Crítica é Criação.Fundamentos da crítica literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, p.137. 46 ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, p. 314. 47 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura.São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 33.

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não apresentava ainda uma análise dos jogos, mas sim uma indagação sobre os efeitos

fecundos do princípio do jogo no campo da cultura, ou, mais exatamente, da mente que guia

um determinado tipo de jogo, a saber, as competições reguladas48”.

Assim, enquanto Huizinga destaca função e características do jogo, Caillois ressalta

o tipo de experiência que o jogo proporciona. Para o primeiro, o jogo deve ser definido como

uma atividade livre e voluntária, fonte de alegria e divertimento. Obrigatório, o jogo perderia

uma de suas características fundamentais, o fato do jogador se entregar a ele

espontaneamente, de livre vontade e de livre prazer, tendo a cada instante a possibilidade

de optar pelo recolhimento, silêncio,solidão ociosa ou por uma atividade mais produtiva.

Caillois, no entanto, vê a necessidade de um desdobramento da categoria do jogo para

melhor entendimento de suas faculdades.

Mas o que dizer da existência? Pode a vida investir-se desse caráter de livre-

escolha que fundamenta jogo? Em Esperando Godot, os personagens Estragon e Vladimir

não podem fazê-lo. Impedidos de abandonarem o palco, por mais que tentem, estão presos

à Godot e devem esperá-lo. Essa personagem, a quem aguardam ansiosamente, não lhes

dá a menor garantia de sua chegada: apenas um menino aparece a certa altura para pedir-

lhes que continuem a aguardar pelo seu senhor. Há mesmo uma tentativa de suicídio que

não se efetiva:resistemem dar cabo às suas vidas desafortunadas.Infausta e patética, a

existência não lhes oferece nenhum significado. Para John Fletcher49, Godot seria uma

espécie de emblema para expressar a nulidade do mundo. “O nascimento é uma

calamidade, porque nos lança em um caminho unidimensional do qual só nos liberaremos

com a morte50”. Esperando Godot seria, portanto, um retrato desse comportamento

disparatado da humanidade, uma vez que Vladimir e Estragon tentam distrair-se até que

48CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.26. 49 FLETCHER, John. A Faber Critical Guides: Samuel Beckett. London: Faber and Faber Limited, 2000, p.51. 50FLETCHER, John. A Faber Critical Guides: Samuel Beckett. London: Faber and Faber Limited, 2000, p.51.

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Godot venha. Nessa perspectiva, o enigmático personagem seria apenas a morte, “que não

é encarada, sentida e vivida como tal, porque nós nos alienamos em esperanças

infundadas” 51.A espera, a expectativa gerada nesse encontro sempre adiado nos daria uma

chance de suportar essa espera pelo fim. Ou, como Estragon coloca, "Nós sempre

encontramos um jeito, não é Didi, para nos dar a impressão de que existimos?" A existência,

desse ponto de vista, seria apenas um jogo enganador, cujas regras nos são alheadas,

sendo finalizada com a morte. À coleção de perdas que se apresenta, à atmosfera de

catástrofe na qual só se enxerga ruínas e destruição, resta o jogo.

Adorno interpretou Fim de Partida como um agôn entre a consciência e a

morte.52Em nossa análise, contudo, tentaremos verificar não só a presença desseâgon,mas

também de outras três categorias do jogo sugeridas por Caillois53(alea, mímica e ilnix),na

peça que fez de Beckett um autor conhecido mundialmente: Esperando Godot.

Catapultados pelo teor lúdico, nossa proposta é de que,nessa investida teatral,

Beckett esfumaça a categoria doeu totalizado, trazendo à cena vozes que se apresentam

comopersonas difusas, que desmentem a categoria de indivíduo adulto e realizado da

modernidade. Seus jogos promovem uma poética da banalidade, que, com seus parcos

recursos, encobre uma cadeia de possibilidades cujodevir nos coloca em contato com uma

pré-linguagem, que, como na infância,é catalizadora de sentidos vários.

Nossa hipótese, portanto, é de que seria um equívocoafirmar peremptoriamente que

nada acontece em Esperando Godot. O texto, apesar de apresentar estruturas idênticas,

repete-se num processo de ressignificação no qual os personagens, Estragon e Vladimir,

parecem, continuamente, em sua aparente insignificância, driblar o vazio e o tédio por meio

de diálogos que desconstroem os enunciados que se sobrepõem por todo o tempo. O jogo,

51 Idem. 52BLOOM, Harold. O canône ocidental: Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 485. 53 CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990.

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o devaneio e a imaginação fazem dos clowns de Beckett personagens cujas existências se

justificam por meio de passatempos com a linguagem.

Porém, os jogos de linguagem promovidos por Beckett, se, por um lado,invalidam a

ordem da experiência, por outro,não a abandonampor completo. O jogador que aposta suas

fichas sabe que a sorte pode levá-lo ao sucesso ou ao fracasso, e é com a imprevisibilidade

que conta para que saia da partida como vencedor. Essavertigem do desconhecido,

concernente ao momento do lance de dados ou do giro da roleta,carrega consigo uma dose

expressiva de leviandade: vulgariza a ordem natural dos eventos e do cálculo eé, antes de

tudo,uma forma de emprestar aos acontecimentos um caráter de choque, de subtraí-los do

contexto da experiência para conduzi-los a uma experiência outra, desprotegida e

dessacralizada.

Em Esperando Godot a necessidade de busca de um sentido para existência é

colocada em xeque continuamente, assim como a validade presente nessa busca, baseada

na concepção de destino, tão cara aos personagens gregos, haja vista o drama de Édipo. A

máxima de Sartre: “Estamos condenados à liberdade54” ganha nova acepção na espera dos

dois vagabundos, conforme se tentará demonstrar ao longo dessa tese.

2.2 Duelos entre jogos:agôn, alea, mimicry e ilinx.

Em Esperando Godot o que se ausenta ganha presença. As ações, que jamais se

realizam, vivem do que rechaçam. Os jogos, que se mostram ao público na peça são

produto de uma encenação incompleta, um sempiterno ensaio, que os detém em um círculo

vicioso, de impossível superação. No fim das contas, os homens estão sós; à sua espreita

está a sepultura, que lhes servirá de última morada. Nesse desolador cenário, a indesejada

das gentes,trazida na celeridade do tempo, encontrará apenas o homem e suas dores, após

uma tediosa espera, sem recompensa nem glórias. Na espera de Godot,os personagens

54SARTRE. Jean- Paul. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução: Paulo Perdigão. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 782.

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são compelidos a uma existência injustificada. A obstinação que depositam em uma

personagem que desconhecem, fazendo-a emblema de sua vigília, torna-se, a cada fala,

menos justificável para o espectador. Enquanto isso, aos expectantes, nenhum significado

aparente justifica a sua espera, além do óbvio sofrimento que resultaria desse quadro

trágico. Então, nessa terra livre de metafísica, como auscultar um sentido? Segundo

EugenneWebb,55 Esperando Godot“é uma peça que traduz essa perspectiva do mundo e

traz em si arquétipos que simbolizam a humanidade e seu comportamento quando

confrontado com essa questão.”Estragon-Vladimir, Lucky-Pozzo apresentam-se como pares

dissonantes, cujos papéis complementam-se e refutam-se continuamente.Os dois primeiros

são clochards que, ao que parece, passaram a maior parte de sua existência juntos. Apesar

das disputas incessantes, eles não podempassar um sem o outro.O parPozzo- Lucky seria a

encarnação do mestre-escravo e da unidade dos opostos, e,ao contrário de Vladimir e

Estragon, que não possuem os papéis alterados ao longo da peça, Pozzo e Lucky são

golpeados por uma perda no segundo ato: Pozzo fica cego e Lucky, mudo.

Entretanto, Vladimir-Estragon, Pozzo-Lucky não são personagens no sentido

tradicional do termo, capazes de traçarem referenciais precisos para suas personas: não

possuem morada, família,nenhum traço biográfico que possa confirmar especulações

acerca de experiências passadas ou futuras. Eles têm apenas um nome, nem mesmo um

sobrenome. São nômades, andarilhos em um espaço rigidamente circunscrito, a

mendigarem, com suas narrativas e jogos, algum resquício de singularidade.

Vladimir é o mais filósofo dos dois, está sempre com os olhos pregadosem um

horizonte remoto. Nele, parece buscar réplicas para suas meditações, já que entre ele e

Estragon nunca vigora um diálogo em que as perspectivas coincidam, ou que lhe dê uma

resposta satisfatória para suas inquietações existenciais.

55WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 32.

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“A condição de ser, na perspectiva de Aristóteles, faz do homem uma criatura com o

desejo inato deconhecer; o homem não pode suportar por muito tempo a ausência de

significado. E significado, em seu sentido mais básico, é o modelo, o padrão” 56. Na

ausência de padrões que deem significação a seu mundo, o homem tentará,por todos os

meios à sua disposição, criá-los, ou pelo menos imaginá-los. “Se um frasco não está

disponível, um toco,uma latinha servirão”.57Diante da certeza da morte e do tempo que se

esvai; de um Deus morto ou indiferente, envolto em uma incompreensível nuvem de

silêncio, o único mistério entre os mistérios restantes ao homem são as dores que lhe infligir

o tempo, e fica difícil prosseguir a partir de tal constatação.

Como o nome do personagem, o principal motivo da peça, a espera de Godot,

também é uma incógnita: algo indistinto e inalcançável, do qual se vê enlaçado de forma

indissolúvel Vladimir, e de certa forma também Estragon, em virtude de sua incapacidade de

separar-se de seu companheiro, nessa longa espera. Uma espera que se estabelece não

como um substantivo, mas como um verbo, na descrição de um único gesto que se coloca

como padrão entre os personagens: a ininterrupta espera manifesta-se na resoluta atitude

de Estragon e Vladimir, mesmo em face da total ausência de evidências de que

Godotcomparecerá ao encontro. O que vemos no palco são dois seres agonizantes, presos

a um lugar, a uma espera, em um purgatório repetitivo no qual o tempo imóvel acentua

ainda mais o sofrimento da dupla. O que desejam de Godot? Na primeira cena, nos

inteiramos de que Estragon recebeu uma surra durante a noite e o deixaram em uma vala.

Quem o fez? Estragon o ignora; “foram os mesmos de sempre”, diz. Situação que se

repetirá no Ato II, quando Estragon aparece dizendo que foi novamente espancado, como

se já estivesse acostumado àquela rotina: “Mais um longo dia se foi58”. Estragon parece

mais conformado com o sofrimento, enquanto Vladimir ainda insiste em conjecturas que

nunca atingem seu ideal de sublimação. No início da peça, debate-se para livrar-se de suas

56WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 32. 57 Ibidem. 58 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.112.

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botas, que lhe fazem doer os pés. Enquanto Estragon geme em função da dor que lhe

causa o calçado, comentando o fato como a mais trivial das ações cotidianas, Vladimir vê,

no episódio das botas e nas observações do companheiro, um subterfúgio para

abstraçõesacerca das dores da vida: melancólico, manipula seu chapéu instado pela

evocação de seu companheiro “de um último momento”, a morte. Ambos lidam mal com os

objetos que dispõem, não sabem o que fazer deles.

Vladimir: Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés. (Tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, bate nele, sopra no interior para vesti-lo) Alarmante, isto está ficando alarmante. (Silêncio. Estragon mexe o pé, separando os dedos para que respirem melhor) Um dos ladrões foi salvo. É uma estatística razoável. (Pausa)Gogô? (BECKETT, 2006, p.21)

Estragon sofre dos pés, o pé marca sua adesão à terra, ao mundo material.

Inspeciona seus sapatos, sente dores, e é ali, naquela circunstância física imediata,que

reside seu mal. A rubrica indica que Vladimir deve desempenhar um gesto análogo com o

seu chapéu. Seu mal é pensar em demasia, buscando a compreensão em uma atitude

tipicamente melancólica, de distanciamento do aqui, agora. Como no quadro de Dürer,

Melancolia, em que uma mulher encontra-se cercada de objetos desconexos e não há

qualquer perspectiva de harmonia entre a personagem do quadro e a realidade circundante,

Vladimir e Estragon encontram-se exauridos diante de um mundo caótico.

Entretanto, não olham passivamente para a desordem que os cerca. Todas as

personagens de Beckett guardam na manga uma arma comum contra a dor: o jogo. Para

ignorarem o silêncio divino, interpretam à laCommediadell'arte, e as regras com as quais se

defrontam, estabelecidas por uma autoridade sobre a qual nada se sabe, duelam com a

incessante vontade das personagens, que, valendo-se da improvisação contínua, buscam

saídas, por meio do jogo e da encenação.

Buscar saídas não quer dizer encontrá-las. No entanto, o labirinto e seus enigmas

podem ser um dispositivo eficaz para a distração dos expectantes. Beckett não nos diz

quem é Godot, entretanto, chega um mensageiro, um menino, que fala em seu nome e põe

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a peça em marcha, justamente quando Vladimir, o mais crédulo, ameaçava abandonar o

jogo. O que significa o menino? Não sabemos. Da perspectiva do jogo, a vida de todo ser

humano é totalmente dependente do acaso, e, por extensão, o tempo não tem sentido,

sendo então o destino dependente do nebuloso, de forças externas que o jogador não

domina.

Caillois59, em sua obra “Os jogos e os homens”, distingue quatro categorias de jogos:

agôn, alea, mimicry e ilinix, definindo-as da seguinte maneira: agôn,60como competição,

retoma aquela característica que Huizinga atribuíra a esse jogo básico, isto é, “uma luta em

que se cria artificialmente uma igualdade e oportunidades para que os adversários possam

se confrontar sob condições ideais, sob condições que permitam atribuir um valor preciso e

incontestável ao triunfo do vencedor”.

Aleaé definidocomo um tipo de jogo “que, muito ao contrário dos jogos do agôn, se

baseia em uma decisão que não depende do jogador e sobre a qual ele não tem o menor

controle; por conseguinte, trata-se aqui menos de vencer um adversário do que domar o

destino. Dito com mais precisão, a vitória se deve ao destino, e, se existe rivalidade, a vitória

significa meramente que o vencedor foi mais favorecido pelo destino que o perdedor61”.

Já a mimicry62incorpora como jogo “a pressuposição temporária - se não de uma

ilusão (embora essa palavra signifique nada menos do que ingressar no jogo: in-lusio), ao

menos de um universo fechado, convencional e, de certa maneira, fictício”. O jogo não

consiste aqui em desenvolver uma atividade ou submeter-se, em um ambiente imaginário, 59 CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia,

1990.

60 Ibidem. p.39.

61 Ibidem. p.36.

62CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia,

1990.

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ao destino, mas em tornar-se uma figura ilusória e comportar-se de uma forma

correspondente. O jogador confronta-se nesse caso com uma série de manifestações

diferentes, cujo traço comum é jogar com o que o próprio jogador acredita, ou fazer com que

os outros acreditem: que ele é alguém outro. O homem despe-se parcialmente de sua

memória pessoal, fantasia-se, e, temporariamente,tenta destituir-sede sua personalidade,

para simular outra.

Ilinx63, por fim, definida como uma última categoria, inclui aqueles jogos que se

baseiam no desejo do êxtase e cujo estímulo consiste em perturbar por um instante a

estabilidade da percepção e injetar na consciência um tipo de pânico voluptuoso. Trata-se

de colocar o jogador na condição de atordoamento e transe que nega a realidade com

ousada superioridade.

Ao fazer uso dessas categorias, Caillois pretende descrever os jogos como

elementos da cultura, expandindo suas classificações, uma vez que, em seu juízo, o

trabalho de Huizinga não compreende todas as especificidades dos jogos em suas diversas

manifestações sociais. Em Beckett, acreditamos contar com as quatro categorias,

conjugadas de formas diferentes a partir de determinadas circunstâncias ficcionais. Em

nossa análise, contudo, essas categorias ganharão uma distorção; aqui a abordagem

desviar-se-á de um suposto sentido literal ou da ansiedade classificatória, próprios de uma

análise que busca verificar a aplicabilidade de conceitos na realidade empírica. Levando em

consideração o nosso objeto,o caminho que escolhemos passa pelo estudo do texto

ficcional como jogo. Nesse sentido, consideramos a questão da “mimese como não imitatio”,

porque, se supusemos e desejamos aceitar os textos teatrais como jogo, devemos, antes de

tudo, estar cientes da possibilidade que surge, com a narrativa moderna, de pôr em cheque

63 Ibidem. p. 46.

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toda a estética tradicional da representação. A mimese, ao contrário de sua falsa tradução,

imitatio, não é produção de semelhança, mas produção de diferença.64

É no jogo ficcional, que o fictício e o imaginário ganham manifestações que

transcendem suas funções pragmáticas nos mundos do discurso. Como observa Iser,65

apesar do fictício oferecer uma orientação cognitiva para o imaginário, ele libera com isso o

imaginário e também a indomabilidade. Se tal indomabilidade não existisse, não poderia

acontecer um jogo que se realiza com a mudança do que está em jogo. Tornar presente o

que é ausente faz surgir um objeto imaginário que, apesar de não existir objetivamente,

mobiliza a percepção do próprio real, colocando-o em jogo. Por isso, para Iser, essa

oposição entre ficção e realidade deveria ser substituída por uma relação tríplice: como o

texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na descrição desse real, “então

o componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto

fingido,a preparação para um imaginário”66.

O termo “jogo” aponta não somente para a atividade específica que nomeia, “mas

também a totalidade de imagens, símbolos ou instrumentos necessários a essa mesma

atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo67”. Para jogarmos cartas ou xadrez

é necessário um conjunto de peças no qual a ausência de alguma delas implicará na

impossibilidade da partida. Todavia, essa noção de totalidade fechada, completa e imutável

que caracteriza as condições ideais do jogo não se efetiva em Beckett. O que há são 64“O conceito proposto na Antiguidade por Platão e retomado por Aristóteles tem sido interpretado, ao longo do tempo, como condição que tem a arte de reproduzir o real, funcionando como uma espécie de cópia dele. Para muitos, esta noção advém de um erro de interpretação do conceito, não desenvolvido por Aristóteles em sua Poética.” LIMA, Luis Costa. Mimesis e modernidade. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 361. 65ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, p.14. 66Idem.

67HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva,

2010, p. 6.

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despojos e ruínas, resquícios de civilização, e é com esses recursos que o jogo deve

prosseguir.

Na Origem do drama trágico alemão68, Benjamin desenvolve sua teoria da alegoria

contra a teoria dos símbolos, que vem de Platão até Goethe. Ao reler as reflexões filológicas

filiadas a essa tradição, Benjamin reelabora a teoria para uma apreensão alegórica do

mundo, destruidora e distensa, na qual não há possibilidades de harmonia nem qualquer

vislumbre de totalidade, como almejava a apreensão simbólica. Benjamin encontra no

drama trágico uma subversão da unidade característica do símbolo:

E ainda é óbvio que, ao privilegiar a coisa face à pessoa, o fragmentário frente à totalidade, a alegoria é o contraponto do símbolo, mas por isso mesmo igual a ele em força. A personificação alegórica sempre nos iludiu nesse ponto: a sua função não é a de personificar o mundo das coisas, vestindo-as de personagens. (BENJAMIN, 2011, p.199)

A interpretação que Benjamin faz neste livro do luto e da percepção do mundo dos

personagens do drama trágico relaciona-se com a perspectiva que adota nas Teses sobre o

conceito de história. Inspirado pelo quadro de Paul Klee, Angelusnovus, Benjamin imagina

um anjo da história que olha para o passado enquanto é soprado para o futuro por um

vendaval, e vê o progresso como ruína, morte e destruição. O herói melancólico e alegórico

do drama trágico vê o mundo da mesma forma que o anjo da História: como um monte de

ruínas, assim como as criaturas beckettianas, elas mesmas ruínas de realidade, como

observou Paulo Leminski, em prefácio para sua tradução de Malone Morre69.

2.3 Mimicry (...) E máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo eu de súbito entrava em contato indispensável com meu

68BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001.

69BECKETT, Samuel. Malone Morre.Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p.158.

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mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério70. (Clarice Lispector)

A Mimicryconsiste em qualquer jogo que pressuponha a aceitação temporária ou de

uma ilusão (ainda que a palavra signifique apenas uma ilusão temporária:in-lusio), ou, pelo

menos, de um universo fechado, convencional e, sob alguns aspectos, imaginário.

Encontramo-nos, então, perante uma variada série de manifestações que têm como

característica comum a de se basearem no fato de o sujeito jogar a crer, fazer a si próprio a

crer ou fazer aos outros creremque se é outra pessoa e a ação que desempenha é

verossímil. Retirada do inglês,mimicry, designa o mimetismo, nomeadamente dos insetos,

com o propósito de sublinhar a natureza fundamental e radical, quase orgânica, do impulso

que o suscita: “o instinto de sobrevivência” 71. Nesse sentido, mimicryé a primeira categoria

que tentaremos perscrutar no universo beckettiano, permeado de fissuras e silêncios. No

decurso de sua espera, na aparente imobilidade em que se encontram, Estragon e Vladimir

entregam-se ao como se: nesse movimento, tentam esquecer-se, despojam-se

temporariamente da imediaticidade catastrófica que se lhes apresenta. Na tentativa de

driblarem o vazio, intensificam-no, dilatando ainda mais a atmosfera de sofrimento da qual

escapam, em saltos esporádicos, por meio das gags e gestos provenientes do repertório

cômico (musical hall e comedia dell’arte), que permeiam toda a peça.

Vladimir: Eles mudaram bastante.

Estragon: Quem?

Vladimir: Aqueles dois.

Estragon: É isso! Vamos praticar conversação. (BECKETT, 2006, p.95)

70 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p. 81. 71Cf. CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990, p.40.

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Beckett concebe a existência como um jogo, um jogo feito para perder. Nele o

jogador vive o impasse de se debater com regras, as quais não compreende e não

consegue assimilar; ou criar suas próprias regras, como crianças, que, muitas vezes,

constroem as regras livremente, de acordo com a demanda, ao longo do desenvolvimento

de sua “brincadeiras.” Segundo Caillois, “um desfecho conhecido a priori, sem possibilidade

de erro ou surpresa, conduzindo claramente a um resultado inelutável, é incompatível com a

natureza do jogo72”. O jogo consiste na necessidade de encontrar, de inventar

imediatamente uma resposta que é livre dentro do limite das regras. O que fazem Vladimir e

Estragon? O único imperativo ao qual obedecem é aespera por Godot. Afora isso, nada

mais compreendem. Não conseguem resgatar o passado, declinam quando lhes aventa a

possibilidade de uma saída trágica com o suícidio- negam-se, enfim, terminantemente, à

ação. Para “passarem o tempo”, a liberdade de ação que se concedem é a de inventarem

diálogos, evocarem anedotas, canções e narrativas.Asreminiscências desvanecidas de que

dispõem, porém,ecoam como repetições, apresentando um incomôdo deja vú quando

enunciadas. Além disso, manipulam em cena, sem a menor destreza, uma série de objetos

depauperados, tais como os sapatos e chapéus velhos dos personagens:

Vladimir:(Estragon luta com a bota): O que você está fazendo?

Estragon: Tirando a bota. Nunca aconteceu com você?

Vladimir: Sapatos a gente tira todos os dias, cansei de explicar. Por que você não me ouve?

Estragon: (cansado) Me ajude!

Vladimir: Dói?

Estragon: Dói! Ele quer saber se dói!

Vladimir: (colérico) Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se você estivesse no meu lugar, o que você diria.

Estragon: Doeu?

Vladimir: Doeu! Ele quer saber se doeu! (BECKETT, 2006, p.20)

72CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990, p.27.

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Nos jogos em que não existem regras, pelo menos em termos fixos e rígidos, supõe-

se uma livre improvisação. Nos jogos de Estragon e Vladimir o principal atrativo advém do

gozo de desempenharem um papel, de se comportarem como se. Nesses jogos, assim

como todos os jogos sem regras, o como se substitui a regra e desempenha exatamente a

mesma função. Em si mesma essa ausência de regras que propicia o como se

éaplasmadorada ficção.É esse dispositivo que permite à mimicry comportar-se não apenas

na dimensão simbólica do jogo, no qual os instrumentos (palavras e gestos) possuem uma

função determinada, mas em sua dimensão poética; no corpo-a-corpo com a linguagem que

acolhe regressivamente, na forma de alegoria, os entulhos de realidade e os põe em

movimento, em jogo,mesmo que emuma partida fadada ao fracasso. Somente a impressão

de que existem, que não se caracteriza em nenhuma certeza, já acena uma possibilidade de

êxito para os dois clowns de Beckett. Porém, o silêncio que os ausculta, a ausência de

respostas e muitas vezes algumas intervenções do próprio Estragon, o mais terra-a-terra da

dupla, privam o jogo da ilusão – palavra cheia de sentido que significa literalmente “em jogo”

(de inlusio, illudere ou inludere), denunciando, que a conduta mantida é,em parte,

simulação, um mimo inútil,incapaz de lhes conferir alguma certeza ou sensação de uma

existência plena. Comportando-se como atores teatrais na busca de construção de um

outroeu a partir de um processo de despersonalização, escorregam na construção de seus

personagens por não disponibilizarem de diversidade qualitativa da atuação histórico-social

dos homens. Todavia, é essa mesma impossibilidade de fixação da máscara que os faz

atores cuja mobilidade perpétua desfalece a categoria da personagemtradicional fundada no

eu absoluto. Mimesis nada tem a ver com imitatio. Mimesthai,a que se reporta amimesis,

significa comportar-se como ator de um mimo.73 O ator não é, senão enquanto devém na

mimesis de um outro eu.

Vladimir: E se você experimentasse?

Estragon: Já tentei de tudo. 73SORBON, G. Mimesis and Art. Studies in the Origin and Early Development of an Aesthetic Vocabulary.Estocolmo: 1966. Apud: SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis.Rio de Janeiro: Eduerj, 2006, p. 17.

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Vladimir: As botas, quero dizer.

Estragon: Acha que devo?

Vladimir: Ajuda a passar o tempo. Garanto que será uma grande diversão.

Estragon: Um desenfado.

Vladimir: Uma distração.

Estragon: Um desenfado.

Vladimir: Experimente.(...)

Estragon:Até que a gente se vira, não é Didi, os doisjuntos?(...) Estamos sempre achando alguma coisa, não é, Didi, para dar a impressão que existimos? (BECKETT, 2006, p.138)

Distração, desenfado. Tal impulso lúdico não é desprovido de ironia: a repetição de

cada enunciado (procedimento análogo às brincadeiras de criança) não se dá como no

universo infantil, no qual a repetição do refrão aparece, na maioria das vezes,como um

acalanto, um aspecto que traz harmonia à estrutura do jogo: a repetição se institui

tambémcomodiferença, demonstrando o caráter desarmônico e falível da repetição como

elemento constitutivo do real, assim como a falência completa na empresa de uma possível

restituição de umaunidade perdida. Seria o homem no mundo, à parte de toda sua

prepotência e sua confiança na razão, um meropalhaço melancólico que o destinofaz de

fantoche?

A faculdade de tornar-se outro e o mistério do jogo manifesta-se de forma acentuada

no gesto de levar à face uma máscara. O indivíduo disfarçado ou mascarado desempenha

um papel como se fosse outra pessoa, ou melhor, torna-se outro, à medida que busca para

si uma imagem palpável, como aquela que se reflete ao espelho. No caso de Esperando

Godoté a plateia que reflete a solidão e a miséria a qual estão abandonados os clochards de

Beckett. Os dois personagens travam uma luta incansável para serem alguma coisa ou

representarem alguma coisa. Esses dois ímpetos que os atravessam eos mobilizam; essas

duas funções que se interpõem e confundem-se de tal modo ao longo da peça, mobilizam o

jogo entre fala e escuta, no qual plateia/leitordeveriamcomparecer como cúmplices

indispensáveis para que o jogo de cena se efetive.

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Estragon:Lugar encantador. (Dá a volta, caminha em direção à boca de cena, junto à plateia) Esplêndido espetáculo. (Volta-se para Vladimir) Vamos embora. (BECKETT, 2006, p.27)

Esse est percipi (ser é ser percebido), disse o filósofo Berkeley, ideia que agradava

particularmente a Beckett a ponto de aparecer em outras de suas obras.Vladimir, a certa

altura, parece ter assimilado alguma sabedoria, chegando a duvidar da realidade dos

eventos de sua vida.Ao revelar um distanciamento até então inaudito, inicia um pequeno

solilóquio no qual parece constatar a inutilidade do espetáculo do mundo e a mediocridade

de seus passatempos; além da gratuidade de suas interações com os poucos sobreviventes

de uma realidade mórbida, habitada por farrapos humanos. Nesse momento, ensaia um

abandono a uma das premissas da mimicry, o como se, denunciando o caráter absurdo da

ausência de leis e regras daquele jogo com o qual compactua. Ele parece não mais querer

jogar, recusa-se.Nesse fragmento, compartilha da visão de mundo de Segismundo,

personagem de Calderón de La Barca, em A vida é sonho, de que tudo que se passa em

vigília é sonho, pura e vã ilusão:

Vladimir: Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi dessa jornada? Que esperei Godot com Estragon, meu amigo, neste lugar até o cair da noite? Que Pozzo passoupor aqui com o seu guia, e falou conosco? Sem dúvida. Mas quanta verdade haverá nisso tudo? (Tendo pelejado em vão com as botas, Estragon volta a se encolher. Vladimir o observa) Ele não saberá de nada. Falará dos golpes que sofreu e lhe darei uma cenoura. (Pausa) Do útero para o túmulo e um parto difícil. (...) Para mim também, alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. (Pausa) Não posso continuar. (Pausa) O que foi que eu disse? (BECKETT, 2006, p.186)

Como sobreviver ao confronto direto da consciência com o real e todo o seu caráter

artificioso? Quando o hábito é relativizado, lançando luzes à espera como algo inútil,

Vladimir ameaça, com uma clarividência até então inédita, abandonar definitivamente o

palco. Estragon continua o duelo com as botas, todavia a rubrica aponta que se encolhe,

desistindo da luta, num gesto análogo ao do companheiro de jornada. O insight é

atravessado por uma indicação de silêncio, parecem perdidas todas as

esperanças.Entretanto, a memória deficiente de Vladimir é uma cúmplice vigorosa para que

o jogo prossiga: mal acaba de enunciar aquelas palavras e ela já não sabe mais precisar o

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que disse; a síntese lhe foge, e eis que surge o menino, um mensageiro, com um aviso de

Godot, lançando-os novamente em um território em que, se a ilusão não é reconstituída

plenamente, ao menos os enreda novamente na dinâmica da mimicry, cujo caráter reflexivo

joga com a dialética da crença e não crença, própria da brincadeira infantil:

Menino: Senhor... (Vladimir se vira) Senhor Albert...

Vladimir: Aí vamos nós de novo. (Pausa. Ao menino) Não está me reconhecendo?

Menino: Não senhor.

Vladimir: Não foi você que veio ontem?

Menino: Não senhor.

Vladimir: É a primeira vez?

Menino: Sim, senhor.

Silêncio. (BECKETT, 2006, p.186)

A ilusão da mimicry, no limite do como se das brincadeiras infantis, percebe-se,

sabe-se, como uma ilusão fraturada, que joga com o real e o imaginário. Vladimir e Estragon

só jogam se quiserem, quando quiserem e o tempo que quiserem. Aliás, a não coincidência

de perspectivas, que gera a maioria de mal-entendidos entre eles, é justamente um dos

mecanismos que dá curso à peça. A fala de Vladimir “Aí vamos nós de novo” revela que sua

nova adesão ao jogo é, em certa medida, cônscia de sua ineficácia, de seu caráter

repetitivo. Entretanto, “no nível mais radical, em circunstâncias em que a realidade se

revela insuportável, só se pode retratar a experiência subjetiva sob o disfarce da ficção74”.A

circularidade de palavras, gestos e situações é percebida parcialmente pelos personagens,

que, contudo, não conseguem (e parecem mesmo não desejar) escapar das malhas da

repetição. E a incomunicabilidade mediatizada pelas lacunas, pausas e silênciosindicadas

pelas rubricas, que impõem tropeços ao ritmo da encenação, insinua que o jogo se instala

como um jogo que não visaêxito, ou, ainda, seu êxito consiste em fracassar, em jamais

entregar-se ao logro de um resultado satisfatório. Uma ficção inútil, na qual Vladimir e

74ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 49.

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Estragon são brincantes. Brincantes, porque capazes de se desligarem de uma ação que

visasse a uma utilidade imediata, para atingirem a liberdade que a mimicry solicita75.

Vladimir: Um ossário, um ossário.

Estragon: Basta não olhar.

Vladimir: Mas atrai a visão.

Estragon:É verdade.(...)

Estragon: Devíamos ter mergulhado profundamente na

Natureza.

Vladimir: Tentamos.

Estragon: É verdade.

Vladimir: Ah, com certeza, não é o pior.

Estragon: Pior, o quê?

Vladimir: Ter pensado.

Estragon: De fato.

Vladimir: O que você queria?

Estragon: Eu sei, eu sei.

Silêncio.

Estragon: Não foi tão mal como contracena.

Estragon: É verdade. (BECKETT, 2006, p.127)

Se nos basearmos no fato de que o jogo se funda na manipulação de certas

imagens, numa certa “imaginação da realidade” (ou seja,na transformação desta em

imagens), nossa preocupação fundamental seria, nessa tese, captar o valor e significado

dessas imagens e dessa “imaginação”. Porém, um complicador já se anuncia: Beckett não

75Em capítulo posterior (capítulo V), faremos uma discussão mais aprofundada acerca da questão da liberdade nos personagens de Beckett. Por hora, diremos que não pensamos a liberdade simplesmente como o oposto de necessidade causal determinística, mas também como um modo específico de causalidade, a autodeterminação do agente, fundada na subjetividade. Apesar da ausência absoluta de um horizonte que possa alimentar esperanças de Estragon e Vladimir, a capacidade de escolher/determinar de modo retroativo quais causas irão lhes determinar naquele universo fechado, optando pelo jogo e pela repetição, torna-se também um gesto que parece nos insinuar uma ética outra. Nesse caso, o “Nada a fazer”, refrão adotado pelos personagens de Beckett reincidentemente, nos aparece como um gesto análogo ao “Prefiriria não” de Bartleby;mas como dissemos, discutiremos o tema com mais propriedade em capítulo posterior. .

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trabalha com recortes precisos da realidade. Se EsperandoGodottraz em sua atmosfera um

quadro pós-apocalíptico, mostra-o sem jamais apresentar-nos símbolos ou metáforas

precisas de um evento histórico específico. Nele, o século XX, o século de duas guerras, de

duas repetições que envergonharam os princípios humanistas e seus ideais de civilização,

se revela por signos dinamitados, estilhaçados pela violência absurda e falta de senso que

marcaram seu tempo.Desse modo, na esteira de Didi-Huberman76, que nos convida a

pensar a imagem artística como encenação de uma ausência - ou uma ausência em

processo -, tentaremos nesse trabalho, a partir da categoria do jogo, pensar as imagens que

se nos oferecem na obra de Beckett. No entanto, nessa reflexão, não tomaremos essas

imagens nem como pura sensorialidade, nem como pura rememoração; mas como tensão

dialética constante entre essas duas instâncias, em que o anacronismo da história e sua

contemporaneidade é capaz de produzir diferença, alteridade. Isso porque as obras de

Beckett inventam formas novas, que dialogam com a tradição tanto dramática quanto

romanesca de maneira revolucionária, pois se movem no elemento do responso, da

pergunta devolvida, e não da tomada de posse, promovendo uma simples paródia. Ela

modifica e estremece as regras de sua própria tradição.77

E para minartoda e qualquer experiência reveladora que a representação, via

mimese,pudesse trazer aos personagens, intercala-se o cômico, criando-se um

distanciamento que instala, na poética cênica de Esperando Godot, uma dialética entre riso

e melancolia, na qual as rasuras do grotesco disputam comcargas de intensa tonalidade

76DIDI–HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha.Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2005, p.179. 77 Aqui, de novo, nos reportamos ao conceito de imagem dialética proposta por Benjamin em consonância com as reflexões de Didi-Huberman: “Seja como for, Benjamin nos deu a compreender a noção de imagem dialética como forma de transformação, de um lado, como conhecimento e crítica de outro’. Ela é, portanto, - segundo um motivo um tanto nietzscheano – comum ao artista e ao filósofo.” Não é mais uma coisa somente “mental”, assim como não deveria ser considerada como uma imagem simplesmente “reificada” seja num poema ou num quadro, seja em uma peça de teatro ou em um romance, ela mostra justamente o motor dialético da criação como conhecimento e do conhecimento como criação. Cf.DIDI- HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 2005, p.179.

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trágica, sem que se possam definir os contornos de um ou de outro, como gênero

dominante na cenabeckettiana.

Vladimir: O certo é que o tempo custa a passar, nestas circunstâncias, e nos força a preenchê-lo com maquinações que, como dizer, que podem, à primeira vista, parecer razoáveis, mas às quais estamos habituados. Você dirá: talvez seja para impedir que o nosso entendimento sucumba. Tem toda razão. Mas já não estaria ele perdido na noite eterna e sombria dos abismos sem fim? Está acompanhando o raciocínio?

Estragon: Nascemos loucos. Alguns continuam.

Pozzo: Socorro, eu pago bem!

Estragon: Quanto?

Pozzo: Cem francos.(BECKETT, 2006, p.161)

Em Skakespeare78, “os clowns podem expressar-se quando os heróis trágicos fazem

uma pausa; em Beckett, os clowns tornaram-se os heróis trágicos”. Os grandes atos

heroicos de poder, de arte, da metafísica, estão irremediavelmente ligados, e são

representados pelas personagens como partes cômicas de um triste programa de

variedades. Ainda que se deixem abandonar a esses jogos, que os divertem em suas falas,

quando aparece a dor, são calados pelas pausas e silêncios, para logo em seguida

retomarem o jogo, imbuindo-se novamente de seus “papéis”:

Estragon: E se você cantasse?

Vladimir: Ah, não. (Pensa) Só temos que recomeçar.

Estragon:É, não parece muito complicado.

Vladimir: O primeiro passo é o mais difícil.

Estragon: Podemos começar de qualquer parte.

(...) Estragon: Já sei! Vamos nos contradizer.

Vladimir: Impossível.

Estragon: Você acha?

Vladimir: Não corremos mais o risco de pensar. [...]

Estragon: E então? O que você acha de repassarmos nossas bênçãos?

78HENSEL, George. Samuel Beckett.México: Breviarios Del Fondo Del Cultura Económica 224,1968, p.31.

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Vladimir: O terrível é já ter pensado um dia.

Estragon:Mas será o nosso caso?

Vladimir:De onde vêm esses cadáveres? (BECKETT, 2006, p.126)

Nesse fragmento da peça, o jogo encena o luto, a perda, o horror frente àquilo que é

impossível de ser pensado, verbalizado, diante do trauma que encerra. As pausas e os

silêncios das rubricas que entrecortam as falas dos personagens corporificam o trágico, que

no caso em questão, parece nos apontar para os limites do discurso conceitual e o que

silencia esse discurso. Para duelarem com a atmosfera de temor e terror,Mimicry e Alea

interpõem-seemcena:Estragon e Vladimir estão em um mundo desordenado, onde, como

jogadores, se veem constantemente impelidos a improvisar, entregando-se a uma fantasia

que resvala na agudez e na aspereza do deserto em que habitam.

Sob a sombra da morte que os espreita,luto e jogopõem em tensão, via alegoria, a

dialética imanente ao Trauer-spiel. Por certo, os jogos dos clowns de Beckett estão

impregnados de melancolia, possuídos pela perda de uma regra perene, queos desloca à

condição de seres de exceção, na qual uma máscara definitiva jamais poderá ser colada à

face. A perda de uma identidade fixa torna-os, contudo, portadores de uma máscara, cujo

núcleo esvaziado os faz polimorfos. Tal esvaziamento, portanto, não impede que uma

produtividade abundante nasça desta perda da identidade e do reconhecimento desta

perda.

Há muitos jogos que não envolvem regras. Deste modo, não existem regras, pelo

menos em termos fixos e rígidos, para se brincar de bonecas, soldados, polícia e ladrão ou

fazer imitações de coisas, pessoas ou personalidades.“Apesar do caráter paradoxal da

afirmação, é possível afirmar que, na mimicry, o sentimento de como se substitui a regra e

desempenha a mesma função79”. Em si mesma a regra cria uma ficção. Tais jogos supõem

uma livre improvisação, cujo principal atrativo advém do gozo de desempenharmos um

papel, de nos comportarmos como se fôssemos outra coisa que não nós mesmos.

79CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.41.

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Estragon: Qual o nosso papel nisso tudo?

Vladimir: Papel?

Estragon: Não se apresse.

Vladimir: Qual o nosso papel? O de suplicantes.

Estragon: É tão ruim assim?

Vladimir: O senhor tem mais alguma exigência

a fazer?(BECKETT, 2006, p.40)

Em Seis personagens à procura de um autor, uma nova forma dramática se

anuncia.O enredo consiste na busca de seis personagens concebidos pela imaginação de

um autor e recusados por ele em seguida, que ganham vida própria eadentram no lugar em

que se desenvolve a cena à revelia de seu criador.Reivindicama recuperação de suas

narrativas para edificação de suas personas. Nessa peça de Pirandello, vê-se nascer uma

nova forma dramática: ometateatro ou metadrama 80,um teatro palimpsesto, um drama

sobre outro drama.É com essa dramaturgia, que “desarticula e desconstrói o papel

tradicional da relação criador e criatura, que a crise da mimese instala-se no âmago da

escrita dramática81”.Operando uma desestabilização das construções que até então haviam

regido a mimese teatral, a nova escrita pirandellianase detém muito particularmente à

estrutura do personagem, que é submetida a uma crítica radical. Tal empresa,contudo,

longe de tornar o “teatro impossível”, constitui, a partir desse momento, sua força motriz. O

humor, fundamentado pelo tropo da ironia, expõe a fragilidade da linguagem para comportar

a complexidade do real, empenhando-se em mostrar que o próprio real é ilusório, e que, em

virtude disso, nenhuma fórmula artística seria capaz de abarcá-lo. Há, na prática teatral

beckettiana, um incessante jogo dramático que se filia a essa tradição inaugurada por

Pirandello, porém detentora de novos artifícios que ampliam a desestabilização por ele

iniciada. Nele, o criador não é mais a figura central da qual dependem suas criaturas. O

teatro de Beckett se compraz naexposição deliberada da insuficiência de todos os meios

80SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.106. 81 Idem.

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disponíveis de expressão do real via arte dramática, mas, paradoxalmente, se retroalimenta

dessa própria impossibilidade para forjar sua encenação.

Beckett introduz em suas peças questões da humanidade com as quais os seres

humanos vêm se debatendo ao longo dos séculos. Impasses que remontam aos pré-

socráticos e passam por toda a história da filosofia ocidental sem alcançaremrespostas

satisfatórias. E, por desconhecer, assumidamente, as respostas para tais perguntas, ele as

apresenta na forma dojogo da mimicry.Como a criança que brinca de ser um artista de

cinema ou um extraterrestre, os personagens atuam, inventam para si papéis, no intuito de

ludibriarem a deserção que os rodeia. Um exemplo desse procedimento pode ser verificado

no II Ato, deEsperando Godot, quando, depois de uma longa pantomima com os chapéus,

tem-se o seguinte diálogo:

Vladimir: Ficou bom?

Estragon: Não sei.

[...]

Vladimir: Então vou ficar com ele. O meu incomodava.

(Pausa)Como explicar. (Pausa). Arranhava.

Estragon: Vou embora.

Vladimir: Não quer representar?

Estragon: Representar o quê?

Vladimir: Podíamos fazer de Pozzo e Lucky.

(BECKETT, p.144-145)

A repetição das cenas e situações possui um fundo trágico, já que jamais consegue

trazer à tona as memórias perdidas, a situação essencial que evocam. São como ensaios

sucessivos, nos quais os atores veem progressivamente seus conteúdos de verdade se

dissolverem,a cada tentativa de encenação. Contudo, em Beckett, essa repetição é também

irônica, cujo humor, às vezes cáustico e cruel, às vezes melancólico e nostálgico, vem

acompanhado de uma crítica aguda ao hábito; aos seres humanos que se entretêm com

miudezas, brincando de entender o mundo, sob o disfarce do pensamento metafísico

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ocidental, que,a despeito de suas aspirações totalizantes, não lhes oferece nenhuma

explicação plausível para a realidade.A tensão do trágico converge com a elasticidade do

riso, duas forças complementares entre si, que a vida põe em jogo. Uma das leis

fundamentais da vida seria jamais repetir-se. “Quando um mecanismo funciona

automaticamente já não é a vida, é o automatismo instalado na vida, imitando a vida. Nisso

consiste a comicidade de algumas situações.82” Estragon e Vladimir adotam uma disposição

usual, simples, infantil: esperar Godot. O gesto é enfático: não há uma explicação ou motivo

que os mobilize, agem como autômatos, programados para a tarefa que aparece como um

mecanismo de repetição calcado em uma ideia fixa83, que os faz parecer tolos. A espera de

Estragon e Vladimir é cômica porque é inútil e é simultaneamente trágica, pelo mesmo

motivo.

Em Beckett, joga-se para afastar o tédio. Tempo e espaço são abolidos, em favor de

um instante-já que celebra a vertigem de seus personagens. E com isso temos ilinx.

Enquanto Estragon e Vladimir filosofam e se distraem a partir de uma conversação

de frases curtas desencadeada pelo ato de comer uma cenoura (Ato I), aparecem no palco

Pozzo e Lucky. Lucky tem o dorso acentuadamente curvado sob o peso demuitos objetos:

carrega consigo uma mala pesada, uma banqueta dobrável, uma cesta de provisões e um

casaco. Tem fixado ao pescoço uma cordasegurada em sua outra extremidade por Pozzo,

que traz na outra mão um chicote. Em princípio, confundem-no com Godot, mas,após uma

pequena confusão, as expectativas são logo frustradas.Pozzo então passa a uma exibição

na qual assume o papel de domador e Lucky de uma atração de circo. Pozzo demonstra

contentamento em ter para si uma plateia que possa se deleitar com seu número.

82BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da Comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 36. 83 “Fazer tanto caminho para voltar, sem saber, ao ponto de partida, é despender grande esforço por um resultado nulo. Poderíamos ser tentados a definir a comicidade desta última maneira. Essa parece a ideia de Herbert Spencer: o riso seria o indício de um esforço que de repente cai no vazio. Kant já dizia: “O riso provém de uma expectativa que se resolve subitamente em nada.” Ibidem. p.63.

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Pozzo:Vejam vocês, caríssimos, não posso passar tanto tempo sem a companhia de meus semelhantes (observa seus semelhantes), mesmo quando a semelhança é tão imperfeita. (A Lucky) Banqueta! (Lucky põe a mala e a cesta no chão, avança, desloca a banqueta) Mais perto! (Lucky põe a mala e a cesta no chão, avança, desloca a banqueta, recua, torna a pegar a mala e a cesta.Pozzo senta-se, encosta o cabo do chicote contra o peito de Lucky e o empurra) Para trás. (Lucky recua mais um pouco) Alto! (Lucky para. A Vladimir e Estragon:) É por isso que, com a sua permissão, vou-me deixar ficar mais um pouco em sua companhia, antes de aventurar-me adiante. [...] O ar livre me abre o apetite. (BECKETT, 2006, p.51)

Pozzo e Lucky, de forma semelhante a Vladimir e Estragon, podem também ser

considerados figuras arquetípicas, que representam certos aspectos do homem. Muito já se

falou na relação entre mestre-escravo concernente a esses dois personagens, mas não

podemos reduzi-la somente a esse propósito em face às múltiplas leituras que a situação

nos oferece.84A exposição de Lucky promovida por Pozzo é cruel. O alça à condição de

animal, enquanto arroga para si o papel de senhor do mundo, daquelas terras, de Lucky, do

espetáculo. Pozzo quer dominar a cena. A ironia do nome de Lucky - em inglês

“lucky”,sorte-,reside no fato de o personagem nada desejar, segundo Pozzo, gozando da

bênção dos alienados, daqueles que tudo ignoram e por isso mesmo são capazes da

felicidade.Lucky, na condição de servo, é aquele que não coloca sua existência em jogo,

que busca conservá-la a partir de um estado de alienação. Pozzo expõe deliberadamente

Lucky ao ridículo; ele se compraz em exibir a dependência de sua vítima. Mas também ele

padece ao vislumbrar um rompimento com Lucky. Depois de Vladimir lhe perguntar, nada

menos que sete vezes, “O senhor quer se livrar dele?” e Pozzo tergiversar, ele, finalmente,

diz que poderialibertá-lo, se quissesse, mas fará de outro modo:

Pozzo: De fato. Mas em vez de expulsá-lo, coisa ao meu alcance, quero dizer, em vez de simplesmente colocá-lo no olho da rua, dar-lhe um pé na bunda, vou levá-lopor bondade minha ao mercado de São Salvador, onde espero embolsar alguma coisa. A bem da verdade, expulsar criaturas assim não é mesmo possível. Para fazer direito, seria possível matá-las. (BECKETT, 2006, p.64)

84Como afirma Eugene Webb, “é evidente que Pozzo é um latifundiário escravagista e que Lucky é seu escravo, mas seria reducionista demais tomá-los como simples símbolos de uma relação econômica, como queria Bertolt Brecht: estão em jogo outros tipos de exploração, igualmente significativas. Pozzo, por exemplo, pode ser interpretado como símbolo da plateia de massas que controla e vilipendia as artes (já que Lucky é dançarino), ou como um mundo não intelectual que usa o pensamento como brinquedo (já que Lucky é filósofo e teólogo). E não se deve esquecer de que Lucky está tão apegado à relação quanto Pozzo, já que nas palavras desse último, Lucky quer impressioná-lo com seu número”. WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 33.

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Lucky chora, confirmando as colocações de Pozzo. Se Vladimir e Estragon

aguardam o seu senhor na figura de Godot, o senhor de Luckyjá está bem ali, à sua frente.

O cachimbo e a pomposidade com a qual fuma, lhe dão ares de um aristocrata. A utilização

do vaporizador,que constantemente leva à boca ao proferir suas falas para limpar a voz,

pode ser considerada como uma ironia à tirania dos discursos totalitários, que, sob o

invólucro da clareza eda polidez estética, instituem-se como portadores de uma suposta

verdade.

Em seu ato, Pozzo, muitas vezes, entra em ligeiro desespero quando, por alguns

instantes, Vladimir e Estragon trocam palavras entre si. Teme que seu protagonismo seja

perdido.

Pozzo: Ótimo. Todos a postos? Todos olhando para mim? (Olha para Lucky, puxa a corda, Lucky levanta a cabeça) Olhe para mim, porco! (Lucky olha para ele) Ótimo. (Coloca o cachimbo no bolso, retira um pequeno vaporizador, vaporiza a garganta, recoloca o vaporizador no bolso, pigarreia, cospe, pega novamente o vaporizador no bolso, volta a vaporizar a garganta, recoloca-o no bolso) Estou pronto. Estão todos me escutando? (Olha para Lucky, puxa a corda) Adiante! (Lucky avança) Aí! (Lucky para) Todos prontos?[...] Não gosto de falar no vazio. Bem. Vejamos. (Pensa) (BECKETT, 2006, p.61)

No objetivo de manter Vladimir e Estragoncomo expectadores,impedindo que se

entediem,Pozzo lança mão de sua atração sem o menor escrúpulo: ordena-lhe que dance,

insulta-o, coloca-o na posição de fera amestrada, rebaixa-o em sua já premente

animalidade, chamando-o deporco, cão. Porém, quando Pozzo dá a Lucky a instrução de

que pense, este, que ficara mudo até então, executa um desconcertante monólogo no qual a

mimicrydá lugar gradativamente a ilinix, até implodi-la, quando a rubrica aponta: “Grande

silêncio”. A essa altura, nenhum dos personagensé capaz de deter o pensamento de Lucky.

Quando Pozzo lhe ordena “Pense,” ele já não pode pará-lo em seu delírio. A fala de Lucky

dilui o mundo em uma espécie de apocalipse. O erro seria aquele que Beckett menciona em

Textos para nada: "O erro que eu tinha era ter tentado pensar"85. “Ser e pensamento estão

85“Le tort que j’ai eu, c’est de vouloir penser”. BECKETT, Samuel. Nouvelles et Textes pour rien. Édition de Minuit, p. 59.

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em diferentes níveis86.” O modo de existência do homem e o modo de pensá-lasão coisas

radicalmente distintas.Até então o jogo deslizava sob a premissa de que, como ator, Pozzo

deveria fascinar o espectador, evitando que um erro o conduzisse à recusa da ilusão;

apesar de por vezes se entediarem, Vladimir e Estragon se deixam levar, principalmente

quando Pozzo torna o número mais abjeto, quando expõe Lucky de forma indecorosa.

Porém, quando Lucky toma posse de sua voz, uma suspensão se efetiva, e mesmo Pozzo,

até então ator/dramaturgo do ato, vê seus domínios dissolvidos. É aí que supomos ser

possível pensar como o modelo produtivista, que engloba até mesmo a produção intelectual,

pode estar insinuado. “Pense porco!”, ordena Pozzo a Lucky. O pensamento pode ser um

jogo, uma brincadeira na qual a ordem de Pozzo ecoa, não sem propósito, em um ser

cindido em conflito, cuja cabeça (razão) encontra-se dissociada do corpo, e, nessa cisão,

derrama em sua plateia toda a confusão que tal disjunção apresenta. Agora, não há

contracena: Lucky é o Corifeu infeso em fúria, que, nesse momento da peça, descola-se

dos outros personagens para descortinar algumas camadas de realidade, para

desagravá-la.

A lógica capitalista à qual está ligada até mesmo a produção filosófica e acadêmica,

com seus prazos e senhores que a ditam,ignora que o pensamento possui temporalidade

própria e esta, obviamente, não coincide com a do capital. O século XXI não desmente o

tom imperativo de Pozzo, quando a tecnocracia com seus tentáculos, já tomou,há

muito,posse do conhecimento, na tentativa de controlá-lo e destituí-lo de sua carga

subversiva, domesticando-o com suas ampulhetas, relógios e calendários.

A aliança do jogo da mimicrye dailinx, porém, permite fúria inexpiável, total, que em

suas formas mais claras, aparece como uma força compressora do jogo; é quando a vozse

levanta contra uma cena justaposta e, sob a forma de transe, suspende totalmente outras

possibilidades de contracena, impondo-se de forma furiosa contra quaisquer demarcações

86JANVIER, Ludovic. Beckett. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988, p.132.

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prévias. O monólogo de Lucky pode ser visto a partir desse binômio. Depois de ser

apresentado por Pozzo como uma atração circense, após uma longa exposição na qual

Estragon e Vladimir se comprazem em contemplá-lo como um animal encoleirado, a voz de

Lucky dá curso a uma profusão de vozes, ruídos, em uma atitude performativa que renuncia

completamente ao discurso consciente. Portanto, ilinx, esse jogo vertiginoso no qual a

loucuraapresenta-se como porta-voz de uma perspectiva de mundo inusitada, promove com

o monólogo de Lucky, que se dá bem no centro da peça, entre os atos I e II, um interstício

no qual há uma erupção entre a melancolia e a visão irônica do mundo. Momento no qual a

voz repreendida de Lucky, mais assertiva do que nunca, se levanta dabílis negra e desfere,

contra os interlocutores (plateia e personagens que o observam), um discurso corrosivo no

qual o caos do mundo ganha forma.

2.4 O monólogo de Lucky: no reino da ilinix A morte da terra é tornar-se água,

a morte da água é tornar-se ar,

a morte do ar é tornar-se fogo

e vice-versa.

(Heráclito)

Ilinx87foi o termo encontrado por Caillois para associação de um tipo de jogo que

busca a vertigem, que consiste na tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da

percepção, atingindo uma espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que

desvanece a realidade com uma imensa brusquidão.Ilinix,“um nome grego para o turbilhão

das águas, e de que deriva precisamente, na mesma língua, o designativo de vertigem

(ilingos)”,é o momento em que a pulsão de morte se revela de forma estonteante, cujo

delírio, fascínio e gozosão simultaneamente sua própria potência, que advém do paroxismo

87CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p. 45.

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de temer a morte e desafiá-la. O arrebatamento, a exaustão provocada em Lucky por seu

senhor, deflagra uma cena de profundo assombro, na qual sua fala ininterrupta

condensa,por meio de fragmentos, aparentemente aleatórios, um dos eixos fundamentais da

peça: o engodo dos discursos calcados na razão instrumental, incutidos na ânsia humana

em dominar o mundo via pensamento racional-científico, que mobilizou desde sempre o

mundo Ocidental.

A realidade é caótica e quaisquer discursos que se apresentem como capazes de

demonstrá-la por meio de uma síntese são passíveis de serem satirizados em virtude de sua

pretensão inútil de totalizar algo que é inapreensível. O regime simbólico das

correspondências analógicas tenta impor uma ordenação a partir do postulado mimético da

coincidência entre realidade e ficção. Mas tal sistema não consegue deter, nem apresentar,

a dinâmica do real que se dá continuamente, jamais se confinando em uma realização

plena.

A alegoria, ao contrário, é capaz de mobilizar a dialética do dito e do não-dito, para

indicar, ao mesmo tempo, que as imagens não cessam de ser outras, sempre inacabadas,

apresentando fendas e cesuras que não as imobilizam em um sentido fechado, absoluto,

finalista. A função da ironia no discurso de Lucky consiste em denunciar a ingenuidade

periclitante ou a mistificação ideológica de todo o discurso pretensamente verdadeiro. Dizer

o outro, decompondo as estruturas de seu discurso a partir de uma poética alegórica, traz à

cena uma perspectiva irônica da realidade, transformando-a, nesse processo de

pulverização, numa parábase permanente88. Armado pela visão da ironia e da alegoria, o

88A parábase é um elemento da estrutura da antiga comédia ática, utilizada notadamente por Aristofánes em suas peças. É parte integrante da comédia grega, geralmente situada no meio da peça, quando consiste essencialmente no discurso do Corifeu. A parábasedivide-se em duas partes: na primeira, o poeta dirige-se ao público, apresenta-lhe suas queixas e reclamações. Nesse tipo de digressão, o autor explicita aos expectadores suas intenções, suas opiniões pessoais. Na segunda, composta de uma estrofe e de uma antístrofe, o coro fala ainda em nome do poeta, mas não como autor, e sim como cidadão: à crítica literária substitui-se a sátira política. No momento em que a parábase é pronunciada pelo coro, os coreutas, sozinhos em cena, arrancam todos os disfarces cômicos (manto e máscaras) e voltam-se para os expectadores para refletirem a respeito da ilusão concernente às ações desempenhadas pelos personagens no palco. BRANDÃO, Junito. Teatro grego: origem e evolução. São Paulo: Ars Poetica, 1992, p. 70-71.

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discurso de Lucky libera o homem, o mundo e os seres da tutela ontoteológica, para levá-los

à heterogeneidade radical de tudo que existe.

Na primeira parte de sua exposição89, que, conforme a rubrica, deve se iniciar de

forma monótona, Lucky cita, ironicamente, dois nomes de supostos pesquisadores para

referendar seu monólogo:Poiçon e Wattman90, que trouxeram a público trabalhos sobre um

Deus que, do alto de “sua divina apatia, sua divina athambia, sua divina afasia, nos ama,

não se sabe por quê.”Em todo seu discurso não há pontuação; a fala, dita num jorro,

comporta várias modalidades discursivas nas quais são escamoteados o discurso científico,

o religioso, o senso comum que se esconde na tradição carcomida dos provérbios; enfim, as

instituições de modo geral, que se inscrevem em espaços de poder e se apresentam como

detentoras de supostas verdades e certezas. Tudo acompanhado do intermitente refrão:

“não se sabe por que[...]”. O princípio de causalidade que rege o pensamento científico é

apresentado como refugo da ignorância, apontando o quão falível foi esse pensamento ao

longo do decurso de nossa cultura. Ao terminar seu discurso, Pozzo sapateia sobre o

chapéu de Lucky, dizendo: “Assim ele nunca mais vai pensar91”. Pozzo representa o

indivíduo que se fia nos discursos de manutenção de poder, e seus corolários, “ordem”,

“civilização” e“progresso”. Vendo-se ameaçado, vislumbra o quão frágeis são os alicerces

que o sustentam e os refuta com violência física. Assim como no Elogio à Loucura, de

Erasmo de Rotterdã, no qual a Loucura se levanta contra as instituições mostrando a

precariedade dos valores que as legitimam, a fala de Lucky vem apontar os desmandos da 89 O próprio Beckett explicou aos atores do Teatro Schiller o tema deste monólogo: "encolher sobre uma terra impossível e sob um céu indiferente." Ele divide-se, dessa maneira, em três partes: Parte I: Indiferença (apatia, athambia, afasia) de Deus, o criador de uma humanidade sofredora. Sua iniqüidade, “ele nos ama com algumas exceções”. Parte II: Encolhimento do homem, sob a ação do tempo letal. Constatamos no segundo ato a repetição circular e regressiva do ato anterior; no esgotamento dos recursos (a cenoura, por exemplo) e da vida em geral. Parte III: Reunião dos quatro elementos primordiais, exprimindo a impossibilidade de viver a condição humana sobre uma terra feita mais de pedras que de homens. THIBAULT, Rémy. En attendant Godot.Fin de Partie. France:Éditions Nathan, 1991, p. 55. 90Whattman: em inglês, condutor de bonde. Algumas leituras também sugerem “What man?” 91BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 87.

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razão em um mundo que, regido por esse princípio, encontra-se desfigurado, ao contrário da

falsa ordenação quecertas ideologias vinculadas ao poder insistem em sustentar.

Lucky: Dada a existência tal como se depreende dos recentes trabalhos públicos de Poiçon e Wattmann de um Deus pessoal quaquaquaqua de barba branca quaqua fora do tempo e do espaço que do alto de sua divina apatia sua divina athambia sua divina afasia nos ama a todos com poucas exceções, não se sabe por quê... (BECKETT, p.85, 2006)

A total indiferença de um Deus(apatia) que observa do alto, em silêncio(afasia),

enquanto a terra mais se assemelha a um purgatório infinito, seria resultado do desconcerto

de um ser “divino”, cuja humanidade foi plasmada à sua imagem e semelhança? A lógica

que beneficia seus eleitos não obedece a nenhum critério plausível, e, como na parábola

dos ladrões,permanece incompreensível, impossível de enredar-se na cadeia dos “fatos”.

... não se sabe por quê mas o tempo dirá atormentados atirados ao fogo às flamas às labaredas que por menos que isto perdure ainda e quem duvida acabarão incendiando o firmamento a saber levarão o inferno às nuvens tão azuis às vezes e ainda hoje calmas de uma calma que nem por ser intermitente é menos desejada mas não nos precipitemos [...](BECKETT, p.85, 2006)

O fragmento parodia o Apocalipse bíblico, numa sobreposição de sentenças que

imitam o seu tom ameaçador, a partir da exposição de uma atmosfera de vingança, acerto

de contas. No monólogo de Lucky vigora uma mescla de gêneros, na qual, a despeito da

intensa carga satírica, inscreve-se até mesmo um tom lírico, pingos de melancolia em meio

à sua –quase indomável92vociferação. Intercalando onomatopeias seguidas de pressupostos

que parecem imitar a estruturação do discurso científico,cuja gagueira,ao serem

enunciados,torna-os incapazes de alçar uma conclusão em virtude de sua dicção titubeante;

Beckett parece satirizar a ideologia sobre a qual se edificou, a partir do elogio à técnica eao

progresso, o que se revelou como a catástrofe e a ruína da sociedade ocidental. De fato, a

repetição, presente na fala torrencial de Lucky, trabalha com signos e grupos de termos-

chave, tais como: homem (quatro vezes), cabeça (seis vezes), Deus (quatro vezes) e

principalmente a sentença “não se sabe por que”, que aparece nada menos que dez vezes

no monólogo. Se o discurso não possui uma linearidade, por outro lado, a escolha aleatória 92Durante sua fala, luta com todos, até ceder, exausto.(BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 85-86.)

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dos signos e suas combinatórias, juntamente ao ritmo impresso à fala de Lucky, nos leva a

crer que Beckett, ao compor esse discurso, tinha claras intenções derrisórias a respeito da

criatura humana e suas pretensões metafísicas.

O quaquaqua que corta as setenças, se, por um lado, pode ser a emissão de uma

atitude de escárnio frente aos enunciados que são apresentados, por outro, pode remontar

também à tradição teriomórfica dos antigos dramas de Aristofánes, que traziam ruídos de

animais para as cenas, a fim de demonstrar a animalidade humana, seu viés irracional93. O

curioso é que essa onomatopéia, agora, aparece em um contexto no qual até mesmo a

natureza investiu-se de um caráter mecânico, isto é: a própria Physisdesapareceu em

virtude da incapacidade do pensamento ocidental de apreendê-la a partir de sua dinâmica

essencial.

Para os pré-socráticos94, unidade e multiplicidade são formas de ser, e o ser é a

physis, a natureza. “A physis, estendendo-se ao todo do real, permite compreender unidade

e multiplicidade, pois ambas são interiores à natureza.”A physis está presente em tudo o

que é, se manifesta no real nas mais diversas maneiras. “E o modo de ser da multiplicidade,

na medida em que se afirma como tal e não reconhece a sua unidade no ser, faz com que

se troque o ser pela aparência de ser.95”No fragmento 112, Heráclito diz que a sabedoria

consiste em “agir conforme a natureza, ouvindo sua voz96”. A recusa em escutar a voz da

93A comédia ática deriva do kommos licencioso das festividades dionisíacas. Foi só numa fase posterior que ela se transformou em um exercício conscientemente literário, e mesmo nessa fase, na época de Aristofánes, Eurípedes, Ésquilo e Sófocles, conservou inúmeros aspectos de suas origens dionisíacas. O vestuário fálico dos atores assim como as máscaras animais com que os elementos do coro se disfarçam são vestígios da remota antiguidade. Não é apenas por capricho que Aristóteles usa as vespas, os pássaros e as rãs como tema de suas comédias; o fundamento dessa escolha é toda tradição teriomórfica. (...) Do mesmo modo, também a tragédia não é em sua origem uma reproduçãovoluntariamente literária do destino humano. Originalmente era uma coisa muito distante da literatura destinada ao palco, era um jogo sagrado ou um ritual lúdico. Mas, com a passagem do tempo, a “representação” dos temas míticos tornou-se uma interpretação teatral, com mímica e diálogos, de uma série de acontecimentos que constituem uma história com enredo. (HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.160) 94SOUZA. José Cavalcante de (Org.) Os Pré-Socráticos. Fragmentos. Doxografia e Comentários. São Paulo: Nova Cultural/Pensadores, 1985, p. 99. 95 Idem. 96SOUZA. José Cavalcante de (Org.) Os Pré-Socráticos. Fragmentos. Doxografia e Comentários. São Paulo: Nova Cultural/Pensadores, 1985, p. 99.

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physis e a atitude de independência do homem diante dela, se diferenciando pelo uso da

razão instrumental, pode ter sido o principal delito da humanidade, na visão beckettiana. A

compreensão da sabedoria como um saber escutar a voz do ser é patrimônio comum da

filosofia pré-socrática, mas aparece ter sido esquecida pelas vozes mortas que deixaram

como sobreviventes apenas os pares Didi-Gogô e Lucky-Pozzo, que, ali, naquele deserto,

“são a humanidade inteira97.”

Uma das possíveis leituras, que podemos depreender, seria a de existência de uma

sátira ao indivíduo adulto, realizado, da modernidade, que, em seu aparente modo de vida

saudável e ideal, nada mais faz que reproduzir padrões de comportamento burgueses cuja

idealidade beira o ridículo, sendo justamente o anverso de uma existência singular e

invejável. Talvez, profetizando a filosofia dobusiness friendlydos yuppies, a citação do tênis,

esporte comum entre as classes abastadas amantes do status quo,apareceria comoa

derrocada da subjetividade, substituindo o traço lúdico que há no esporte, por uma

funcionalidade estúpida, que nada mais faz a não seracentuar o servilismo humano, escravo

do capital até mesmo ao travar suas relações intersubjetivas.

As superações perseguidas pelos atletas, os prazeres e a alienação que tomam as

massas na assistência das grandes exibições esportivas; as grandes invenções: tudo isso é

satirizado nesse fluxo aparentemente irascível, não sem uma dose de escatologia, que

mostra o quanto o princípio da racionalidade humana não se descolou de seus instintos

mais ferozes: a razão, alcoviteira da vontade98, é reduzida a cafetina legitimadora dos

anseios de poder e status de uma cultura adoecida:

[...] não obstante os avanços na educação física na prática de esportes tais quais quaisquais o tênis o futebol a corrida o ciclismo a natação a equitação

97BECKETT. Samuel. Esperando Godot.Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.160.

98SHEAKESPEARE, William. Hamlet. Ato III, Cena IV. Trad. Millôr Fernades. Porto Alegre: L&PM, 1991, p.87.

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a aviação a conação o tênis o a camogia a patinação no gelo e no asfalto o tênis a aviação os esportes os esportes de inverno verão e outono de outono o tênis na grama no saibro na terra batida a aviação o tênis o hockey na terra no mar no ar a penicilina e seus sucedâneos numa palavra recomeço ao mesmo tempo paralelamente de novo não se sabe por quê [...] (BECKETT, 2006, p.86)

Lucky, ao desferir seu monólogo, de forma irascível e eloquenteaos personagens e à

plateia,abandona a situação de servo/escravo daquele que prudencia, para encarar a morte

de frente. A colocação em jogo da vida, do sentido da vida, que Lucky executa com radical

virulência, expõe e ridiculariza valores que embasam a lógica, status quo, e a legitimidade

das hierarquias de senhores do mundo, nas quais se fiou o Ocidente ao longo dos séculos.

A performance de Lucky subtrai ao horizonte do sentido pressupostos que se ofereceram

desde sempre como princípios reguladores da civilização: o esclarecimento, o saber; a

razão e a ciência.

... numa palavra enfim tanto faz fatos são fatos e considerando por outro lado o que é ainda mais grave aquilo que se evidencia o que é ainda mais grave à luz de à luz das experiências em curso de Steinweg e Petermann o que se evidencia ainda mais grave à luz de à luz das experiências em curso de Steinweg e Petermann que nas planícies na montanha no litoral junto aos rios de água corrente fogo corrente o ar é o mesmo a terra a saber o ar e a terra na grande glaciação o ar e a terra feitos de pedras na grande glaciação ai de mim no sétimo ano de sua era o éter a terra o mar feitos de pedras na grande escuridão na grande glaciação sobre o mar sobre a terra e pelos ares que pena recomeço não se sabe por quê não obstante o tênis fatos são fatos não se sabe por quê (BECKETT, 2006, p.86)

Nesse processo cíclico, os chavões do discurso científico (“à luz das experiências

de”, “que se evidencia”, “fatos são fatos”) são incorporados de forma irônica ao caótico

monólogo de Lucky, embaralhando-se e amontoando-se como registros

irreconhecíveis;redemoinhos, a partir dos quais o sujeito (“ai de mim”) não consegue

desvendar ou encontrar nenhum axioma científico ou máximaque corroborem sua

compreensão do mundo. Antes, como na cantiga do cachorro ou na parábola dos dois

ladrões, deságua na perplexidade, a partir do uso recorrente do refrão “não se sabe por

quê”:

(...) não se sabe recomeço adiante numa palavra enfim ai de mim adiante feitos de pedras quem poria em dúvida recomeço mas não nos pricipitemos recomeço adiante numa palavra enfim ai de mim adiante feitos de pedras quem poria em dúvida recomeço mas não nos precipitemos recomeço a

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cabeça ao mesmo tempo paralelamente não se sabe por quê (BECKETT, 2006, p.86)

O pragmatismo, a veracidade do discurso científico, carece sempre de uma prova

que o referende. Em seu percurso, os pressupostos científicos evoluem progressivamente,

visando à superação das antigas formulações de forma ascendente. Entretanto, o que

vemos no discurso de Lucky, é uma fala titubeante, que tartamudeia e gagueja, expondo

toda sua fragilidade e impotência na investida de abraçar a totalidade dos fenômenos.

Segundo Bergson99, ordinariamente, é no ritmo impresso à fala que reside a

singularidade física destinada a completar o ridículo de determinada profissão no cômico.

“Rimos sempre que uma pessoa nos dá a impressão de coisa.” O cômico, muitas vezes,

advém do mecânico ou automático insistindo em se sobrepor ao vivo. A gagueira de Lucky e

seu ritmo desenfreado podem ser considerados procedimentos cômicos que engendram

uma sátira à cristalização da vida, subjugada pela razão. À imobilização do espírito, em

certas formas, corresponde o enrijecimento do corpo segundo certos defeitos.No caso em

questão,há uma sátira ao vernizde superioridade dos “homens da ciência”, que, em sua

pose de detentores da verdade,acabam por calcificar seu discurso, tornando-o mecânico e

automatizado, a preço de preservarem seu apego às metodologias e sistemas

comprometidos com o utilitarismo como teleologia, como finalidade em si. A conclusão se

perde em meio ao caos, não há síntese possível.“Voltaire, como representante do século

das luzes e do esclarecimento, está morto100.”Há mesmo o uso de escatologias101, que

servem para satirizar e infantilizar a academia, que é reduzidaà caca, popo102·:

... Acacademia de Antropopopometria de Berna-sobre-Bresse de Testu e Conard ficou estabelecido sem a menor margem de erro tirante a intrínseca a todo e qualquer cálculo humano éhumano que considerando os resultados da investigação interrompida interrompida de Testu e Cunard ficou evidente dente dente o seguinte guinte guinte (BECKETT, 2006, p.86)

99 “Quando o juiz Brid’oison entra em cena gaguejando, não estará preparando, com sua gagueira, para compreender o fenômeno de cristalização intelectual cujo espetáculo nos oferecerá? Que secreto parentesco físico vinculará esse defeito físico àquela debilidade moral?” BERGSON, Henri.O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 41. 100 THIBAULT, Rémy. En attendant Godot.Fin de partie.France: Éditions Nathan, 1991, p. 54-55. 101Escatologias: Testu: (testículos), Conard, Fartov e Belcher: (em inglês, fart =peido, belch= arroto). 102Caca e popo são palavras que as crianças usam para excrementos e penico.

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O discurso de Lucky, contudo, possui forma propositalmente circular: as repetições

aqui funcionam como um recurso estilístico capaz de satirizar o formato dos discursos

calcados na lógica tradicional, insinuando o quanto são tautológicas suas prescrições e o

quão presunçoso e risível éo seu alcance na apreensãode um sentido definitivo para as

coisas e os seres.

(...) o tênis adiante a barba as labaredas as lágrimas as pedras tão azuis tão calmas ai de mim a cabeça a cabeça a cabeça a cabeça na Normandia não obstante o tênis adiante a barba as labaredas as lágrimas as pedras tão azuis tão calmas ai de mim a cabeça a cabeça a cabeça na Normandia não obstante o tênis os esforços interrompidos e inacabados mais grave as pedras numa palavra o recomeço ai de mim ai de mim interrompidos a cabeça a cabeça na Normandia não obstante o tênis a cabeça ai de mim as pedras Conard Conard... (...) Tênis!... As pedras!... Tão calmas!... Conard! ...Inacabadas! (BECKETT, 2006, p.87)

A palavra cabeça103, repetida de forma recalcitrante no monólogo, a ponto de gerar

uma cacofonia incômoda, entrecorta o discurso como uma bola que repica e oblitera a

relação de sentido entre os enunciados, caso se tomasse consciência de toda a inutilidade

concernente aos elementos reguladores da civilização: tênis, barba (indivíduoadulto e

realizado ou menção metonímica à crença no deus cristão?),labaredas (apocalipse, inferno,

sofrimento calcado no medo do juízo final?)...A instabilidade semântica, própria da

modernidade, enfileira os signos de forma regressiva; são apenas significantes cujo sentido

foi vilipendiado por uma lógica inacabada, que, no entanto, toma-se como absoluta.

Esta desautomatização do sentido,presente na ambiguidade progressiva das

palavras na fala de Lucky,encena,no plano da linguagem, a instabilidade e o

enfraquecimento das relações entre os seres e o mundo.Homens e coisas encontram-se

apartados na realidade. A cabeça aparece como metonímia, como parte residual, um

fragmento que se descolou no corpo e que se encontra perdida, em outro lugar, em outro

tempo; enquanto o homem, em sua ingênua pretensão de totalidade na apreensão do real,

103Beckett manifestou, desde os tempos de sua École Normale, profundo interesse pelo pensamento de alguns filósofos. Em destaque, os pré-socráticos (e, mais particularmente, Demócrito). Além de Malebranche e Ocassionalistas, como o belga Arnold Geulincx. Os dois últimos, inclusive, haviam se detido no problema da tensão, da bipartição entre mente e corpo, que, segundo suas formulações, só poderiam ser reunidos por Deus. In: KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett.New York: Grove Press, 1996, p.206.

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segue como um imbecil (Connard, em francês, significa beócio, imbecil),incapaz de se

defrontar com sua própria pequenez e finitude.O que se vê na sobreposição de palavras ao

conjunto dos quatro elementos primordiais (ar, água, fogo e terra104) são fragmentos de todo

o repertório inútil que serviu de recurso para a distração do homem frente à natureza

incompreensível, ao inumano, a tudo que lhe fugia à razão sacralizada e que o levou,

paradoxalmente, a um “mar de pedras", de obscuridade.

Poderíamos dizer que, no discurso de Lucky, a implosão do verbo como constituinte

do real, aponta para a deteriorização da palavra tanto na função tradicional que essa

desempenhava no teatro clássico como em sua função sistematizadora, mediadora da

realidade. Como observa Derrida105, sabe-se o valor que Artaud dava àquilo que se

denomina onomatopeia.Lucky, em sua perfomance,incorpora aquilo aque Artaud chamou de

glossopoiese, que não é nem uma linguagem imitativa nem uma criação de nomes;

reconduz-nos à beira do momento em que a palavra ainda não nasceu, em que a

articulação não mais é grito, mas ainda não é discurso, em que a repetição precisa é quase

impossível, e com ela a língua em geral: “a separação do conceito e do som, do significado

e do significante, do pneumático e do gramático, a liberdade da tradução e da tradição, a

diferença entra a alma e corpo, o senhor e o escravo, Deus e homem, ator e autor"106

A relação senhor-escravo, tal como desenhada por Hegel (“A verdade do senhor está

no escravo e transformado em senhor, o escravo, permanece um escravo recalcado”),então,

é transcendida por Lucky, via delírio, no discurso enunciado sem o compromisso com os

sistemas elaborados a partir de padrões de percepção, comprometidos com as instituições,

com aquilo a que denominam realidade. A ausência de sentido pode significar a morte. O

104Como observa Eugene Webb, do estudo do homem, Lucky passa à natureza e às filosofias que a explicaram. Os quatro elementos de Empédocles, de um lado,são dissolvidos heracliteanamente em “rios que correm como água que correm como fogo” e de outro, congelaram na entropia da morte: “e então a terra a saber o ar e a terra na grande glaciação(...)”. WEBB, Eugene. The plays of SamuelBeckett. Washington: Library of Congress Cataloging in Publication, 1972, p. 40. 105DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 350. 106 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 350.

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fim de referências, o abismo. É ilinx, esse momento de vertigem, que no monólogo de Lucky

rompe as instâncias de poder de forma assustadora e violenta.

Aqui, a vertigem anula todas as outras possibilidades de jogo: é evidente que a

vertigem não poderia nunca associar-se a uma rivalidade sujeita a regras, sem que logo a

adulterasse. A paralisia que ela origina frente à realidade que desnuda, bem como o furor

cego em que se dá sua performance, constituem a estrita negação de um esforço

controlado. No discurso de Lucky, âgon,a categoria de jogo que se apresenta como recurso

eficaz à destreza, à força, ao cálculo,ao autodomínio,ao respeito pela regra,ao desejo de

medir forças em condição de igualdade é destruído. Nada subsiste, pois regra e vertigem

são decididamente incompatíveis. A simulação (mimicry) e a sorte (alea)são também

temporariamente anuladas. E antes que Pozzo retome a cena, ao amassar o chapéu de

Lucky107, o grande silêncio sugerido pela rubrica parece apontar isso: a suspensão

temporária de todas as referências, o assombro diante do olhar, que, petrificado, enxerga de

perto a morte - Medusa personificada. O silêncio, que Beckett introduz de forma intermitente

ao longo da peça de forma breve, alarga-se, e, ao de ser compreendido aqui como a

diferença, com mais eloquência que nunca, exibe o chão sem fundo da linguagem, em uma

terra arruinada, na qual só subsistem escombros.

É óbvio que odiscurso deLucky, em seu ludismo, oscilando entre a ironia e a sátira, é

polissêmico e não se prende apenas às observações aqui sugeridas. Esperando Godot é

um texto escrito para ser encenado, e, apesar das minuciosas indicações presentes nas

rubricas, é possível vislumbrar infinitas outras possibilidades de interpretação para a obra,

quando executada no palco. A forma caótica de sua estrutura, os ruídos, as onomatopeias,

parecem corresponder a alguns dos propósitos do Teatro da Crueldade de Artaud, que

107 “Lucky não pode pensar sem o chapéu - é cômico, porque acabamos de ver que os outros três

não podem pensar com seus chapéus. “Na verdade o pensamento de Lucky é abruptamente encerrado em pela remoção de seu chapéu, quase como se ele tivesse o plugue puxado para ele. Tal é o prestígio do chapéu de Lucky que Vladimir irá adotá-lo como seu dali por diante. O “ato de pensar” e seus significados possíveis têm gerado muitas especulações críticas. Cf. FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/ Krapp’s Last Tape. Lodon: Faber and Faber, 2000, p.92.

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desafia o teatro como representação da realidade, afirmando-se, antes, como uma

manifestação da vida. Ou sobrevida, no caso de Beckett, quando nos deparamos com a

agonizante situação em que se encontram seus personagens frente a um mundo

desordenado,não se sabe por quê...

3.ACASO E REPETIÇÃO: O JOGO COMO RESISTÊNCIA

3.1 – À espera do imprevisto: Alea

Se não se espera, não se encontra o inesperado.

(Heráclito)

Com efeito, se um tema recorrente em Esperando Godot éa crise da razão, do saber

e do poder; que parecem sintetizados na fala de Lucky, o motivo da existência, na peça, não

deixa de ser problematizado a partir, justamente, da faculdade de pensar. A capacidade de

refletir sobre a própria condição conferiu ao homem, ao longo dos séculos,uma nítida

sensação de superioridade, mesmo quando confrontado ( na própria consciência) com o

caráter miserável da existência. A gravidade daformulação, que se baseia na afirmação de

Pascal (“O homem é mero grão de pó insignificante no universo infinito, mas sabede sua

nulidade, e isso faz toda a diferença”108)engendra essa noção de grandeza, não só como

oposta à miserabilidade, mas como “miserablidade com consciência de si109”.

Diversas interpretações da peça, como já se observou nesse trabalho, têm sido

sugeridas desde a sua estreia, há 60 anos, até os dias atuais. Aliás, uma das primeiras

108 Pascal, Blaise. Pensamentos.Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S.A., 1973 XVI. 109 Segundo Zizek, “essa noção de grandeza, não só como miserabilidade, mas como miserabilidade com consciência de si, é paradigmaticamente moderna.” Cf. ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 221.

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interpretações, que se seguiram às suas primeiras apresentações, admitiu essa perspectiva

pascalina. Nisso, J. Anouilh parece ter sido a principal autoridade. À primeira vista, a visão

parece justa: “ As Pensées de Pascal num esquete de music-hall encenadas pelos palhaços

Fratellini”.110Beckett não deixa de observar, com o humor que lhe é característico, o

conteúdo narcísico da formulação que acompanhou “os avanços” do conhecimento que se

converte em poder: Vladimir, o mais reflexivo e melancólico dos dois, diz a certa altura:

Estragon: Devíamos ter mergulhado profundamente na Natureza.

Vladimir: Tentamos.

Estragon: É verdade.

Vladimir: Ah, com certeza não é o pior.

Estragon: Pior, o quê?

Vladimir: Ter pensado. (BECKETT, 2006 p.127)

Entretanto, não há mais natureza. Seu resquício está no cenário, na forma de uma

árvore delgada que reaparece no segundo ato, agora com algumas folhas. Ao longo de toda

a peça, a atitude reflexiva aparece como leitmotiv em Vladimir, atitude diametralmente

inversa em Estragon, que possui uma visão mais concreta das coisas e do mundo. Vladimir

é o Dom Quixote do século XX, que ao sugerir ao seu Sancho Pança uma cumplicidade em

seu estado de desencantamento do mundo, encontra uma interlocução um tanto mais

indiferente, -mas igualmente dependente, comparável à do personagem de Cervantes. A

dupla, cavaleiro e escudeiro, com seus respectivos pangaré e mula, necessitavam um do

outro para prosseguirem em sua saga. Um era magro, alto, com a cabeça nas nuvens. O

outro era gordo, baixo, com os pés bem fincados no chão. Quixote, o desvairado, e Pança, o

pragmático, são opostos complementares que não podem prescindir um do outro.Estragon

assemelha-se mais à Sancho, ao aderir à causa do amigo sem que saiba exatamente

110 BECKETT. Samuel. Esperando Godot.Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Apud: Apêndices: Sobre Esperando Godot. Jean Anouilh.

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porquê.O único momento em que alcançam alguma concordância ocorre quando

pronunciam o mágico refrão:

Vladimir: Você também, deve estar contente lá

no fundo,confesse.

Estragon: Contente por quê?

Vladimir: De me reencontrar.

Estragon: Você acha?

Vladimir: Diga, mesmo que não seja verdade.

Estragon: O que quer que eu diga?

Vladimir: Diga: estou contente.

Estragon:Estou contente.

Vladimir: Eu também.

Estragon: Eu também.

Vladimir: Estamos contentes.

Estragon: Estamos contentes. (Silêncio) O que vamos fazer agora que estamos contentes?

Vladimir: Esperar Godot.

Estragon: É mesmo.

Silêncio. (BECKETT, 2006 p.114)

O engenhoso fidalgo de La Mancha possui um comportamento análogo ao de

Vladimir: ambos são personagens que seguem uma ideia e voltam a ela sempre, entregam-

se a ela com “a precisão do sonâmbulo”, nada os demove. Vladimir e Estragon pertenceriam

à categoria de personagem cômico que se aferra a uma ilusão obstinadamente e operam

uma inversão: “ao invés de regrarem seu pensamento pela realidade imediata das coisas,

submetem todas as coisas à sua ideia.111”Vladimir constantemente argumenta com seu

companheiro sobre a necessidade de esperarem por Godot.Sem Sancho Pança, Dom

Quixote não seria ninguém, e o mesmo acontece com a dupla de clochards de Beckett: um

não pode prescindir do outro. Segundo Raymond Willians, a convenção da ilusão absoluta e 111BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 138.

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da inabilidade do homem em se comunicar, que poderia parecer, então, simplesmente, o

mais recente e mais burguês dos lugares-comuns, é transcendido por Beckett:

O método de Esperando Godot é mais antigo. A peça é construída em torno de um conjunto incomum e explícito de contrastes: entre os vagabundos, Vladimir e Estragon, e os viajantes Pozzo e Lucky; e os contrastes adicionais no inteiro de cada par. Essa oposição polar de personagens foi usada na fase inicial do expressionismo para mostrar os conflitos de uma única mente. Mas agora o método foi desenvolvido para mostrar os conflitos no interior de uma condição humana absoluta. (WILLIAMS, 2002,p.201)

Para Willians112 (2002), o fato de Estragon e Vladimir permanecerem juntos, sem

nada buscar nem nada esperar, senão a frustração, retoma um ritmo trágico antigo e

profundo. A possibilidade de reconhecimento humano e de amor, aliado à condição de

absoluta falta de perspectivas, faz com que, estranhamente, ‘essa vida que responde, num

ponto além do reconhecimento da aporia, seja convincente e tocante’.

Estragon: Há quanto tempo estamos juntos o tempo todo? Vladimir: Não sei. Uns cinquenta anos, eu acho. Estragon: Lembra do dia em que me atirei no Reno? Vladimir: Na colheita das uvas. Estragon: Você me pescou de volta. Vladimir: Tudo isso está morto e enterrado. Estragon: Minhas roupas secaram ao sol. Vladimir: Deixa isso para lá, sim? Vamos. (Como antes) Estragon: Espere. Vladimir: Estou com frio. Estragon: Fico me perguntando se não devíamos ter ficado sozinhos, cada um por si. (Pausa) Não fomos feitos para a mesma estrada. Vladimir:(sem se zangar): Não dá pra ter certeza. Estragon: Não, não se tem certeza de nada. Vladimir: Ainda podemos nos separar, se você achar melhor. Estragon: Agora não vale mais a pena. (…) Estragon: Então, vamos embora? Vladimir: Vamos lá. Não se mexem. (BECKETT, 2006, p.106-107)

Entretanto, permeia toda a peça uma sensação de ironia à resistência humanista

intermitente, quando o homem se nega a conceber-se como mero produto do acaso. Um

112WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna.Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 201.

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acaso rísivel, completamente despropositado, cujo propósito, se algum houver, é de

absoluta ignorância dos compêndios, das enciclopédias, do conjunto de saberes do qual o

homem dispõe. Beckett parece frustrar, em Godot, esse fundamento da humanidade; essa

ânsia, esse caráter sublime e pseudohumanista que compõe seus pressupostos,

principalmente quando o objeto de reflexão é ela mesma.

Na visão pascalina,“O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza,

mas é um caniço pensante”113. Pascal defende o pensamento como essência humana, o

diferencial com relação à natureza e a qualidade primeira que dignifica a espécie humana. É

essa mesma faculdade de pensar que torna o ser humano “tão especial”, distinguindo-o da

Phisys-esse lugar indiferenciado, inabitado pelos deuses, anterior à linguagem, que, com

sua grandeza e seus “silêncios infinitos”, tanto apavora os seres racionais.

Os personagens de Beckett, ao contrário, aceitam o acaso e se entregam a ele.

Claro, não o fazem passivamente: imersos em horizonte incerto, para não serem tragados

pela nulidade que se lhes apresenta, subsistem pelo ato de contar histórias, anedotas,

entoar canções e praticarem a conversação. Para resistirem ao deserto que se lhes impõe,

usam o refrão “Nada a fazer” apenas como intervalo para logo em seguida retomarem “os

seus trabalhos”. Alea e mimicry, assim conjugadas, nos fazem pensar que o acaso, uma vez

aceito como viés inevitável da aventura humana, nos evoca a temática do amor fati de

Nietzsche- gozo possível, mesmo em uma atmosfera ameaçada pelo terror e pela

catástrofe. Aliás, é mesmo essa atmosfera ameaçadora que potencializa o gozo e a fruição

do instante. Em face da morte que se anuncia inevitável, com as perdas e as mortes já

experienciadas, resta-lhes converter as perdas em imagens, imagens que jamais

substituirão o objeto perdido, mas que, de alguma forma, figuram como possiblidade de

encenação dessa perda e elaboração de um interstício,ainda que matizado pelo

luto/melancolia. Imagens que convidam, que carecem do olhar do espectador/leitor para

113 Pascal, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S.A., 1973 XVI.

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colocá-las em movimento. Isso não consiste, no entanto, em “preencher as lacunas”, mas

em incorporá-las no processo de leitura do mundo.

E para isso, abdicam involuntariamente da memória. Como no caso Dora, de Freud,

os personagens apenas atuam. O ato de narrar não se constitui em uma ação de tomada de

consciência ou desvelamentoque os levará a uma espécie de cura, como na psicanálise:

não é a cura pela fala, mas a sobrevivência na linguagem, pela linguagem, ainda que essa

se ofereça como ruína, subsídio de um sujeito fraturado, que, apesar de tudo, teima em

sepresentificar, emboratal empresa seja sempre, dialeticamente, acompanhada por uma

ausência. 114

Espectros, fantasmas: mesmo que a identidade seja um horizonte inalcansável, e

toda e qualquer tentativa de afirmação nunca logre êxito, o duelo com o tempo continua.

Depois do número de Lucky, Pozzo, não sem antes hesitar bastante, deixa o palco. Vladimir

e Estragon estão novamente a sós:

Vladimir: Ajudou a passar o tempo.

Estragon: Teria passado igual.

Vladimir: É. Mas menos depressa.

Pausa.

Estragon:O que a gentefaz agora?

Vladimir: Não sei.

Estragon: Vamos embora.

Vladimir: A gente não pode.

Estragon: Por quê?

114Talvez seja possível entender melhor o que Walter Benjamin queria dizer ao escrever que “somente as imagens dialéticas são imagens autênticas”, e porque, nesse sentido, “uma imagem autêntica deveria se apresentar como imagem crítica”: uma imagem em crise, uma imagem que questiona a si mesma. Como observa Didi-Huberman, uma imagem que assim se manifesta em uma obra de arte é “capaz de um efeito, de uma eficácia teórica-, pois é uma imagem que se apresenta, criticando nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente. E nos obriga a escrever esse olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituí-lo.” DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 171.Acrescentaríamos a essa observação, o fato de que a imagem dialética só pode ser considerada “autêntica” a partir de sua incompletude, de sua estrutura lacunar, que impede que se estabeleça uma síntese nessa dialética em processo.

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Vladimir: Estamos esperando Godot.

Estragon: É mesmo.

Pausa.

Vladimir: Eles mudaram bastante.

Estragon: Quem?

Vladimir: Aqueles dois.

Estragon: É isso! Vamos praticar a conversação.

(BECKETT, 2006, p.94)

Se a açãodesloca-se do sentido tradicional atribuído na tríade aristótelica – ação,

tempo eespaço,como elementos fundamentais para a composição da cena, - aqui o gesto

de nada fazer corresponde a uma atitude de grande carga subversiva, que é justamente

reagir, subsistir e não aderir à ordem. O palco que acolhe uma estrada, espaço perdido no

qual encontram-se esses personagens, é também espaço catalizador para essa

heterotopia115,que funda a possibilidade de um devir lugar/lugares de uma existência outra.

Não se trata mais de uma visão egocentrada ou locuscentrada: a redução dos personagens

a ruínas e a diluição do espaço sugerem grande mudança para o paradigma do herói, que,

no caso em questão, desliza entre o trágico e cômico, sem poder ser identificado

plenamente como pertencente a nenhum gênero específico.

Lembremos que, para Pascal, a imaginação personificava-se como “senhora de erro

e falsidade”.“Ela é uma espécie de distorção do entendimento porque não cumpre a mesma

115As utopias, segundo Foucault “são espaços sem lugar real.” São lugares que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta e oposta. É a própria sociedade idealizada ou o seu contrário, mas, de qualquer forma, essas utopias formam espaços que não existem e que são, fundamentalmente, irreais, idealizados. Em contraponto a esses espaços inalcançáveis, existem aqueles lugares reais, efetivos; lugares que estão inscritos exatamente na instituição da sociedade, e que são, um tipo de contra-espaços, um tipo de utopias efetivamente realizadas. Esses espaços reais, representados, contestados e invertidos se tornam um tipo de lugar que está fora de todos os lugares, ainda que sejam efetivamente localizáveis: “Esses lugares, porque são absolutamente diversos de todos os espaços que refletem e sobre os quais falam, eu os chamarei, por oposição às utopias, de heterotopias.” www.uesb.br/eventos/pensarcomfoucault/leituras/outros-espacos.pdf. Acesso: 10/10/2013.

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função que este executa.116” Porém, no caso de Godot, é justamente essa faculdade de criar

imagens, que fará com que os personagens consigam prosseguir.

Desde a antiguidade, a potência desestabilizadora das imagens suscita

controvérsias. Eugen Fink, em sua obra Le Jeu Comme Symbole Du Monde117, afirma que a

posição da filosofia metafísica de Platão para o jogo é, antes de tudo, de uma ambiguidade

surpreendente. Ora, por um lado, o pensamento platônico se movimenta no elemento lúdico.

Ele é um jogo de ideias que se apresenta com rigor e seriedade, análoga à atenção que as

crianças depositam em uma brincadeira séria. Isso porque, ao penetrar, através da ironia

socrática, nos esconderijos profundos da dialética, ela, a ironia, sabe a atração exercida

pela máscara e gosta do que faz. O que é diversão neste pensamento é mais do que

elemento artístico, estilístico. Por outro lado, no entanto, Platão combate apaixonadamente

a interpretação do mundo através do jogo, “a sabedoria do mistério e tragédia, a pretensão

dos poetas em dizerem a verdade sob a inspiração das Musas e de Apolo.” Não seria

paradoxal que um usuário do jogo em seus diálogos se voltasse contra ele? Esse combate

não é simplesmente negar, negar a possibilidade de entusiasmo divino, na apreensãodo

homem. “Platão não se opõe à existência de um princípio racional na embriaguez poética,

mas sim a uma razão que é extática, uma razão em êxtase. Esta é a sophie para Platão118”.

O conhecimento é um reconhecimento, visto que seria impossível atingir a ideia pura,

partindo de coisas que deixam de ser a todo instante; o conhecimento é, em última análise,

o reconhecimento de um conceito contemplado em estado puro. O mundo dos “entes” nada

mais é do que o pálido reflexo do “ser belo” em estado puro. Daí a conclusão de Platão de

que “a arte (a tragédia...) sendo mímesis, imitação, é técnica imperfeita” 119. A arte,

alimentando-se da imitação, vive nos domínios da aparência e afasta os espíritos do

alethes, da verdade, sendo, por isso mesmo, intrinsecamente condenável. O conceito de

116Pascal, Blaise. Pensamentos, Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S.A., 1973 XVI. 117 FINK, Eugen. Le Jeu comme symbole du monde.Paris: Les Éditions Minuit, 1960, p.89. 118Ibidem. p. 90. 119FINK, Eugen. Le Jeu comme symbole du monde.Paris: Les Éditions Minuit, 1960, p. 90.

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arte em Platão está em que os significantes não encerram o verdadeiro significado da obra.

Assim a arte seria a corrupção da ideia pela imagem.

Entretanto, o que fazer quando a realidade se oferece em franco processo de

destruição? A cada nova imagem de Esperando Godot, espraiam-se matizes lúdicos que

formam um caleidoscópio em fagulhas, produto de um real estilhaçado.Segundo

Benjamin120,a estrutura e o pormenor têm sempre, afinal, uma carga histórica. Sua função é

transformar em conteúdos de verdade filosóficos os conteúdos históricos objetivos, que

estão na base de toda obra de arte significativa. “O valor dos fragmentos é tanto mais

decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor

depende o fulgor da representação, na mesma medida em que do mosaicodepende a

qualidade da pasta121.” A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um

ponto de vista plástico e mental, demonstra que às vezes o verdadeiro (e não a verdade) se

deixa apreender somente através da mais exata descida ao nível dos pormenores do

mundo material. Em um século devastado por guerras, o substrato da poética de Esperando

Godotsão escombros, restos, ruínas de realidade. É a partir desse material deteriorado,

que o verbo, enfraquecido,enuncia o lamento lutuoso em sua encenação.

3.2 Alea e Mimicry: Diferença e repetição

“Alea jacta est" (“A sorte está lançada”) é uma expressão utilizada na linguagem

popular, quando todos os aspectos de uma situação já foram determinados e realizados,

restando apenas revelá-los ou descobri-los. Corrobora uma concepção de destino, na qual

condições predeterminadas irão decidir, a despeito da ação ou vontade do indivíduo, qual

será sua sorte.

120BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011,

p. 259-260.

121 Ibidem. p.17.

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Alea, em latim, é o nome para o jogo de dados. Sinônima de sorte, risco e acaso, a

palavra "alea" servia para nomear não só o dado, o objeto, mas também o ato de participar

num jogo de azar. O poeta romano Juvenal, conhecido pelas suas máximas, comenta o fato

de a maioria dos cidadãos comuns apenas se interessarem por "pão e circo" ("panem et

circenses"), em vez de lutarem pela sua liberdade -, condenando assim o fascínio, o jogo

convertido em vício,como responsável pelo processo de alienação crescente entre os

cidadãos. Entretanto, nem sempre se viu o jogo a partir de sua natureza alienantizante.

Sabe-se que, em 1897,Stéphane Mallarmé escreve o poema tipográfico "Um lance

de dados jamais abolirá o acaso". No texto oitocentista, o autor francês afirma a potência

criativa contida no imprevisto. Mallarmé, em seu poema, evoca a força criadora do acaso, a

positividade da ausência, que atribuiàtrajetória do poema um movimento infinito, sempre se

construindo e reconstruindo cada vez que se depara com um novo leitor.

No caso da teoria dos jogos desenvolvida por Caillois122, em clara oposição à âgon

(competição), alea não dispõe de uma decisão, de uma determinação que depende do

jogador, do sujeito. Aqui se trata mais de vencer o destino que um adversário propriamente

dito. Em verdade, nessa categoria, o destino seria o único artífice da vitória ou do fracasso,

e, em caso de triunfo, significaria apenas que o vencedor foi mais bafejado pela sorte que o

vencido. Alea assinala a fortuna ou o infortúnio que advém de contingências que fogem ao

controle do jogador. O jogador, face a ela, pode ser inteiramente passivo, limitando-se a

aguardar, expectante e receoso, resignando-se; ou optar por elevar-se contra ela,

constituindo-se, assim, como figura trágica.

As personagens de Esperando Godot, contudo, conseguem guardar-se, em

parte,desse fatalismo. Poderíamos pensar, em princípio, que Estragon e Vladimir se rendem

aos caprichos de alea: a demissão da vontade a favor de uma espera ansiosa e passiva do

curso da sorte (alea) parece representar, em primeira instância, uma franca e antecipada

aceitação da derrota. Mas, talvez, seja justamente aí, nessa voluntária atitude de ataraxia, 122CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.36.

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na deliberada imobilidade em que se encontram os personagens, que resida um dos

principais artifícios de Estragon e Vladimir. Dante descreveu seu inferno como sendo um

local cujo portal, sem portas ou cadeados, teria a seguinte inscrição: “Renunciai às

esperanças, vós que entrais123”. Já houve quem comentasse que essa inscrição seria pior

do que qualquer inferno em si. Mas o sentido da inscrição não é apreendido naquele

instante pelo poeta, que, incentivado por Virgílio a encarar com coragem a experiência que

irá vivenciar, parte para sua viagem inaudita. Quem desacredita dos seus próprios recursos,

é levado a entregar-se ao destino. No caso de Dante, há um ritual de passagem, marcado

por uma escolha, o abandono de um território para incursão emoutro, cujas leis específicas

devem ser obedecidas pela personagem que nele penetra.Embora ele ignore essas regras,

dado o caráter da argumentação do poeta mentor, que o incentiva à ação, há a

recomendação que o chama à ciência de que ele não será amparado por antigos

referenciais. Já a dupla beckettiana encontra-se presa àquele espaço, uma beira de

estrada,que parece ser um percurso interrompido que os andarilhos não podem abandonar.

Devem, antes, se fixar ali, já que,por desígnios e sinais que não são revelados aos

espectadores e aos leitores, estão quase certos de que junto àquela árvore, estariam

fadados a se encontrar com Godot.

Há um imperativo desconhecido que os impede de se afastarem daquele pedaço de

terra, daquela árvore: como a personagem de Kafka, de O Processo, que aguarda junto a

uma porta sem consciência do que fazer, velam, em uma desabrigada espera, por uma

presença sem saber sequer o que desejam dessa misteriosa figura:

Vladimir: Então, que fazemos?

Estragon: Nada. É o mais prudente.

Vladimir: Esperar para ver o que ele nos diz.

Estragon: Quem?

Vladimir: Godot.

Estragon: Isso!

123 ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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Vladimir: Vamos esperar até estarmos completamente seguros.

Estragon: Por outro lado, talvez fosse melhor malhar o ferro

antes que esfrie.

Vladimir: O que era mesmo que queríamos dele?

Estragon: Você não estava junto?

Estragon: Não prestei muita atenção.

Vladimir: Ah, nada de muito específico.

Estragon: Um tipo de prece.

Vladimir: Isso!

Estragon: Uma vaga súplica.

Vladimir: Exatamente.

Estragon: E o que ele respondeu?

Vladimir: Que ia ver. (BECKETT, 2006, p.38)

Porém, Vladimir e Estragon não se deixam arrastar pacificamente pela realidade

catastrófica que os cerca.Se o personagem de Kafka não sabe o que fazer, os de Beckett

sabem que não querem fazer nada. Optam por existir, se fazerem existir, não raro

tragicamente, à parte da angústia e do desespero, via mimicry.A espera, portanto, no caso,

pode ser mais produtiva que o encontro nesse sentido, porque acumula todos os encontros

possíveis, encetando uma pluralidade de perspectivas. O encontro com Godot, sempre

adiado, se, por um lado, significa o acúmulo de energia, a ansiedade provocada pelo ato

contínuo do que parece ser uma espera inútil em um inferno em que nada acontece, por

outra via, pode acarretar também a solicitação da mimicry como aliada no perigo de que o

jogo seja extinto. A espera então se revela como condição de possibilidade para a

encenação. E é assim, que a aliança entre Alea/Mimicry se inscreve em Esperando Godot:

via repetição.

Segundo o crítico John Fletcher124, em qualquer produção desta peça, um ponto

fundamental é alcançar uma certa solidez. “Ainda que sua encenação não tenha sido

124 In: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Apêndices. Sobre Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 209.

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construída segundo linhas tradicionais de base aristotélica, com exposição,

desenvolvimento, peripécia e desenlace, ela apresenta uma estrutura firme, de outra

natureza.”O texto apresenta uma estrutura baseada na repetição, noretorno intermitentede

leimotifs e “no equilíbrio exato de elementos variáveis.”

Tal aspecto também é observado por Harold Bloom. Para o crítico, embora os

protagonistas de Beckett manifestem surpreendente variedade, quase todos partilham de

uma característica básica: a repetição. Condenados a contar e encenar umas histórias

repetidas vezes, “seguem na esteira do Judeu Errante, do Velho Marinheiro de Coleridge, do

Holandês Voador de Wagner, do Caçador Gracchus de Kafka125”.

De fato, a repetição se dá tanto na forma quanto no conteúdo.126Em artigo, Célia

Berretini, partindo da dramaturgia da peça, elaborou uma lista na qual verifica quantas vezes

certos vocábulos ou expressões se repetem ao longo do espetáculo. Eis alguns números: O

termo * Nada é usado no total de cinquenta vezes. Sendo o termo que abre a peça, na fala

de Estragon, quando este faz menção ao sapato que o incomoda, aparece sempremarcado

pelo negativismo, embora acompanhado, frequentemente, com o refrão *Estamos

Esperando Godot. As frases* A gente espera Godot”(oito vezes),Esperar Godot (quatro

vezes),*Esperamos que Godot venha (uma vez) , pela sua incidência, torna-se autêntico

refrão a atravessar toda a obra, seguidas do inevitável *É verdade” (dez vezes). A

repetição dessa contrução reforça o argumento de que “o esperar Godot” é uma realidade

(ou a única realidade dentro da peça), sobre a qual não pairam dúvidas, quem ou o que quer

que ele seja. Além disso, o verbo *esperar é usado 37 vezes, com exclusão dos casos em

que aparece como substantivo *espera(duas vezes). O nome * Godot é repetido trinta e

seis vezes, sem computar os casos citados e o emprego dos “ele”, além das constantes

125 BLOOM, Harold. O cânone Ocidental. Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.475 126 Apud: (BARRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 87-88)

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sugestões. O emprego dos verbos *dizer (115 vezes), *falar (23 vezes), * tagarelar (duas

vezes), *conversar (duas vezes), *contar (quatro vezes), com seu elevado total

(146vezes),expressivo como evidência da combinação entre os jogos mimicry e aleapara

preencherem o longo tempo de espera de Godot, é verdadeiramente já que, uma vez

entregues à própria sorte, optam por improvisar.

Cabe aqui uma breve revisão sobre o tema da repetição na filosofia, antes de

retomarmos sua estrutura em Esperando Godot. Repetir (do latim repetere) significa “tornar

a dizer ou escrever”, isto é, algo que diz respeito à linguagem ou, num sentido mais amplo,

aos atos humanos e não aos fenômenos naturais.Tema antigo nas investigações filosóficas,

a repetição aparece nas obras de alguns dos mais diversos filósofos, psicanalistas e

escritores, tais como Kierkegaard, Nietzsche, Freud, e, mais contemporaneamente, Deleuze

e Derrida. “Ainda na antiguidade, a repetição era uma questão central para o homem. Desde

o mito, passando pelo eterno retorno de Heráclito até Nietzsche, o tema da repetição

atravessa a história do pensamento ocidental.127” Para Garcia-Roza (1986), quando ele

ressurge na obra de Freud – no início timidamente, até transformar-se em tema central de

Além do Princípio de prazer –, o faz com o peso dessa história, e o Édipo é a sua marca

registrada. Dentre os autores que tratam a questão da repetição, e que fazem parte do

mesmo solo do saber no interior do qual a psicanálise fez sua emergência, Hegel,

Kiekegaard e Nietzsche transformaram-se em referenciais privilegiados pelos comentadores

de Freud.

Em A Repetição128 – um ensaio de psicologia experimental por Constantin

Constantius, Kierkgaard adotará o pseudônimo de Constantin Constantius para pensar a

questão da escolha pelo singular viés do cotidiano repetitivo da existência.A visão

kierkegaardiana da repetição não admite totalização, é uma crítica à visão anterior do

assunto, a de Hegel, que via o presente como resultado retroativo de situações pretéritas. 127GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 34 128KIERKEGAARD, Soren. A Repetição.Lisboa: Relógio D’água, 2009.

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“Para Kierkegaard, entretanto, a noção de repetição vai distinguir-se daquilo que ele chama

de repetição numérica (pura reprodução de algo) da repetição propriamente dita.129”

Segundo o filósofo dinamarquês130, enquanto a primeira é a repetição que encontramos na

natureza, uma forma de manutenção do mesmo, a segunda é produtora de diferenças;

enquanto a primeira se expressa em forma de lei e diz respeito ao semelhante, à

generalidade, a segunda é contrária à lei. “É nesse sentido que Kierkegaard afirma que é

preciso entender a repetição “no sentido grego”, isto é, como algo que diz respeito a uma

singularidade, singularidade esta que afirma a eternidade, mas não a permanência. Não se

trata de afirmar uma eterna repetição do “mesmo”, mas de mostrar que o eterno retorno, de

que falam os gregos, aponta para o que podemos chamar de repetição diferencial131”. Os

acontecimentos, quando repetidos, já não são os mesmos.A própria repetição de uma

palavra não traz com ela a repetição do sentido.

É movido por esse sentimento de que o tempo impõe ao eterno retorno uma marca

renovadora que Constantin/Kierkgaard empreende a tentativa de reviver todo o encanto de

uma noite de estreia num teatro de Berlim, e a experiência fracassa. O fracasso ocorre

porque o personagem de Constantin Constantinus empreende sua tentativa de forma

excessivamente objetiva. Não se trata, evidentemente, de proceder auma reprodução pura e

simples da experiência anterior (a hipótese é mesmo colocada como impossível) nem de

retomá-la desde fora, da exterioridade; ao contrário, trata-se de um exercício de liberdade.“A

repetição como liberdade,como potência de interioridade, como subjetividade132.”

Também Nietzsche deteve-se na temática da repetição diferencial, o que, de alguma

maneira, tornou-o o filósofo trágico por excelência.“Trágico no sentidoda afirmação do

acaso, que é puro devir.133” A crítica de Nietzsche, segundo Herbert Marcuse134, distingue-se

129GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. 2ªedição: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 31. 130 Idem. 131 Idem. 132GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. 2ªedição: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 31. 133 Idem.

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de toda a Psicologia social acadêmica pela posição a partir da qual a empreende: Nietzsche

fala a partir de um princípio de realidade fundamentalmente antagônica a da razão ocidental.

A forma tradicional da razão é rejeitada na base da experiência do ser como um – fim – em-

si – como gozo e fruição.

A questão, para Nietzsche, está inextricavelmente ligada à maneira como se

experimenta o tempo na apreensão metafísica do mundo. A luta contra o tempo

desencadeia-se a partir dessa posição: a tirania do devir sobre o ser deve ser quebrada, se

o homem quiser tornar-se ele mesmo num mundo que seja seu. “Enquanto existir o

incompreendido e inconquistado fluxo do tempo – uma perda sem sentido, o doloroso “era”

que nunca mais voltará a ser – o ser conterá a semente de destruição que perverte o bem

em mal e vice versa135”. O homem só se torna ele mesmo quando a transcedência for

conquistada – quando a eternidade se tornar presente no aqui e agora. Não há trágico

naquele que é absolutamente novo, para Nietzsche, o trágico implica a repetição. Para

Marcuse, a concepção de Nietzsche termina com a visão do círculo fechado – não

progresso, mas “eterno retorno”:

O anel, o círculo fechado, já nos apareceu antes: em Aristóteles e Hegel, como o símbolo do ser-como-fim-em-si-mesmo. Mas, enquanto Aristóteles o reservava para o nous theos e Hegel o identificava com a idéia absoluta, Nietzsche considera-o o eterno retorno do finito exatamente como é em sua plena concretização e finitude. Isso é a afirmação total dos instintos vitais, repelindo toda a evasão e negação. O eterno retorno é a vontade e visão de uma atitude erótica em relação ao ser, na qual a necessidade e a realização coincidem. (MARCUSE, 2010, p.117)

No entanto, o eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe,

ao contrário, um mundo em que todas as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. E,

Derrida, em sua leitura do eterno retorno,no rastro de Nietzsche, afirma:

(...) o que retorna não é o Todo, o Mesmo ou a identidade prévia em geral. Não é nem mesmo o pequeno ou o grande como partes do todo ou elementos do mesmo. Só as formas extremas retornam – aquelas que, pequenas ou grandes, se desenvolvem no limite e vão até o extremo da

134MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: LTC, 2010, p.116. 135Idem.

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potência, transformando-se e passando umas nas outras. Só retorna o que é extremo, excessivo, que passa no outro e se torna idêntico. (...) A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição. (DERRIDA, 2006, p.73)

Como em Kierkegaard, Nietzsche e Derrida, a repetição em Esperando Godot não

substitui a recordação, nem visa a uma superação ou progresso. Como sabemos, a tentativa

de trazerà cena fatos passados nunca logra êxito, já que o repertório de que dispõem os

personagens está por demais embaçado e embaralhado, são fragmentos de suas memórias

falhadas; quebra-cabeças nos quais sempre faltarão peças decisivas para a formação de

seus quadros.

Assim, o ato de contar histórias, tão incidente entre os personagens de Beckett, não

se constitui num relato propriamente dito ou na comunicação de uma experiência, mas na

própria impossibilidade de fazê-lo. Se, no entanto,pode-setomar a repetição como

negatividade, à medida que operacomo resistência ao ambiente inóspito no qual se

encontram os personagens,é possível, por conseguinte,considerá-la como fundamento da

transferência do desejo de prosseguirem ou sobreviverem, via mimicry, como produtora de

novidade.Impulsionada pelo desejo de preencher o vazio na agonizante espera, a repetição

é trágica no sentido em que se torna uma necessidade naquelas circunstâncias adversas,

mas é também cômica, à medida que faz uso de um repertórioda tradição cômica (“comedia

dell’ arte e music hall).A repetição de gestos e cacoetes são artifícios usuais da comédia. A

repetição periódica de uma palavra ou uma cena, a inversão simétrica dos papéis, o

desenvolvimento geométrico dos quiproquós e muitos outros jogos extraem força cômica

dessa fonte. Para Bergson136, “consiste talvez nesse expediente a arte do autor de

136 “Pois uma das leis fundamentais da vida seria jamais repetir-se. Mas eis que um movimento de braço ou meneio volta esporadicamente. Por quê? Porque tenho agora diante de mim um mecanismo que funciona automaticamente. Já não é a vida, é o automatismo instalado na vida, imitando a vida. É a comicidade. (...) é que a vida bem viva não deveria repetir-se. Quando há repetição, similitude completa, suspeitamos do mecanismo a funcionar por trás do que está vivo. (...) Essa inflexão da vida na direção da mecânica é a verdadeira causa do riso. BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24-25.

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vaudeville, ao nos apresentar uma articulação visivelmente mecânica dos acontecimentos

humanos ao mesmo tempo em que conserva seu aspecto exterior de verossimilhança”.

As repetições do texto beckettiano escapam à estrutura interna de sua ficção. Além

da relação intertextual com outros autores, Beckett estabelece, com vertiginosa frequência,

uma permanente atitude intratextual.Bruno Clément137 comenta que um dos princípios

articuladores fundamentais do texto de Beckett é dizer o que ele já disse em outros textos,

repetir perguntas que ele já fez, mencionar citações já evocadas em outras obras (a

parábola dos dois ladrões, por exemplo, de Esperando Godot, aparece também em Malone

e o lulu da pomerânea,mencionado porMolloy, estará também emPrimeiro amor eFim de

Partida).

Algumas repetições buscam situações idênticas. O retorno periódico do Purgatório

de Dante e a atitude de inação e apatia de Belacqua138 em sua espera, por exemplo, não

são diferentes em sua função.

É frequente o retorno de objetos, personagens, perguntas, citações, posturas.Para

um leitor contumaz e advertido, o universo beckettiano se apresenta, se não com

familiaridade, dado a estranheza que suas atmosferas instalam, ao menoscom ar de

reencontro com seu universo estranhado. Isso porque, obra após obra, seus textos instalam

os mesmos quadros, os mesmos nomes de personagens (que vestem as mesmas roupas e

137 CLÉMENT, Bruno. L’ouevre sans qualités. Rhétorique de Samuel Beckett. Reprises. Paris: Éditions du Seuil, 1994, p. 382. 138Belacqua, emMorePricksthan Kicks, é um estudante emDublinnos anos vinte, vivendo suas aventuras,encontros eamores, que, através deseu estilo originale comentárioirônico diante da realidade,consegue transformarincidentesdo cotidiano emum grande dramaenos permite ver as ruas e avida universitáriaatravés dasagacidade do olhar atento ecáusticodo autor.Publicado pela primeira vezem 1934, este primeiro personagem de Beckett estará presente em Murphy, da mesma maneira que Murphy reaparecerá em Watt;Malone e Molloy, por sua vez, serão citados em “OInominável”. “O retorno dos personagens, que foi rapidamente concebido e realizado de forma sistemática, é apenas um dos fatores, entre muitos outros, que contribuem para que a obra como um todo constitua uma memória particular; a repetição de caracteres, situações, temas e objetos é uma das marcas da produção beckettiana.” CLÉMENT, Bruno. L’ouevre sans qualités. Rhétorique de Samuel Beckett.Reprises. Paris: Éditions du Seuil, 1994, p. 382.

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aos quais ele atribui os mesmos movimentos ea mesma imobilidade),as mesmas falas, que

se repetem eacabam se tornando para oleitor tão familiaresquanto os objetos e os temas de

sua obra.

A condição anônima de Vladimir e Estragon ultrapassa a ausência de um contexto

que possa identificá-los firmemente. A imprecisão de seus retratos, enquanto caracteres, os

aproxima do anonimato das máscaras da farsa e da commédia dell’arte.Como Geneviève

Serreau observou: “No circo, os palhaços, tradicionalmente, possuem uma função paródica,

desmistificadora” 139.Há ainda o parentesco comChaplin, Buster Keaton, Laurel e Hardy e Os

Irmãos Marx, que dará às duplas Estragon-Vladimir e Pozzo-Lucky, alguns traços

concernentes ao repertório cômico do cinema do século XX, no qual o riso e a melancolia,

não raro, encontram-seentretecidos.

Na obra Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text, Steven Connor recupera a

interpretação crítica de Robbe-Grillet na ocasião de estreia de Esperando Godot,

repensando se realmente o teatro de Beckett encarna a noção heideggeriana do Dasein, do

primordial ser-aí: Segundo a leitura de Robbe-Grillet, a condição humana, preconizada por

Heidegger, é estar láe, provavelmente no teatro, mais do que qualquer outro modo de

realidade, que se representa e reproduz esta situação o mais naturalmente. O fato do

evento dramático dar-se no palco é a sua principal qualidade: Robbe-Grillet encontra na

espera deGodot uma afirmação de liberdade tal como antevista em Sartre na construção

existencialista: o homem em situação140. A própria ausência de programa ou princípios a

priori é o que garante essa liberdade. "Eles estão lá; eles devem se explicar, mas eles não

parecem ter um texto preparado de antemão que escrupulosamente aprenderam de cor,

para apoiá-los. Eles devem inventar. Eles são livres141.” Porém, Connor discorda dessa

139IN: LAVIELLE, Emile. En Attendant Godot. Paris: Librairie Hachette, 1972, p.71. 140CONNOR, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text. Colorado: the Davies Group, Publihers Aurora, 2007, p.129. 141Ibidem. p.130.

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presentificação initerrupta proposta por Grillet. Para ele, a repetição está inestrincavelmente

ligada à maneira com a qual os personagens experimentam o tempo em Esperando Godot.

“Ela, a repetição, é variável, e não obedece a uma estrutura que pode ser facilmente

rastreada. Quanto mais tempo eles passam no palco, progressivamente, para eles e para o

público, o imediatismo simples do presente torna-se atraído para a complexa rede de

relacionamento e repetição, que reúne variados matizes da experiência.142” Na acepção de

Connor, parece haver dois procedimentos essenciais de repetição em Esperando Godot. “O

primeiro é circular, e sugere a impossibilidade de qualquer presente estável, pois o passado

e o futuro estão alinhados de maneira inextrincavelmente ambígua.”143Como exemplo, tem-

se a música circular que Vladimir entoa no início do ato dois e fornece o modelo para este

tipo de repetição.

Vladimir:

Um cão foi à cozinha

Roubar pão e chouriço.

O chefe e um colherão

Deram-lhe fim e sumiço

Outros cães, tudo assistindo,

O companheiro enterraram...

(Para, breve ensimesmamento, depois continua)

Outros cães tudo assistindo,

O companheiro enterraram,

Sob uma cruz que dizia

Aos demais que ali passavam:

Um cão foi à cozinha... (BECKETT, 2006, p.112)

142 Ibidem. p.132-135. 143 Ibidem. p.135.

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A estrutura da canção repete-se, com algumas pausas e inflexões de estranhamento

por parte de Vladimir ao entoá-la. Seu desconcerto insinua que a prioridade e a progressão

encontram-se anuladas, uma vez que cada elemento da canção é, antes e depois,a

repetição de todos os outros elementos que retornam, sempre inapreensíveis.A música que

aparece entre os dois atos é como um redemoinho, em círculos que se superpõem e

retornam. O fim retorna ao início, não há desenvolvimento ou progressão, mas um eterno

refazer em que a morte não perfaz um caminho que leva ao céu ou ao inferno. O símbolo

ambivalente da cruz, cujo significado em nossa cultura remete ao sofrimento e à esperança,

é fraturado e profanado, destituído de sua qualidade redentora. O outro modelo de

repetição, segundo Connor, é linear. “Algumas das repetições em Esperando Godot

parecem indicar reduplicações não infinitas, mas um declive entrópico.”144 (CONNOR, 2007,

p.135) De fato, o dialógo que abre o ato II parece denunciar tal expediente:

Vladimir: Quem espancou você?

Estagon: Mais um longo dia que se foi.

Vladimir: Não ainda.

Estragon: Para mim, já acabou, aconteça o que

acontecer. (Silêncio)

Agora há pouco, você estava cantando, eu ouvi.

(BECKETT, 2006, p.110)

Os personagens parecem ter uma vaga consciência de que tudo se repete, como se

reconhecessem ecos do passado que retornam incompletos, como na ocasião em que se

processaram anteriormente. A sensação parece insinuar uma experiência temporal cujo

144Connor lembra, neste capítulo, que Beckett insistirá cada vez mais nesse tipo de repetição com decréscimo em obras posteriores. Como em Dias Felizes, no processo gradual de soterramento de Winnie, o abrandamento do ritmo da fala em Play ou no enfraquecimento da voz da mulher em Rockaby (Cadeira de Balanço), a repetição-retração é uma constante. CONNOR, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text. Colorado: The Davies Group, Publihers Aurora, 2007, p.135.

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núcleo ou passado originário se perdeu, tornando-se cada ato de repetição um suplício,

dada a perplexidade que se amplia a cada novo ato de enunciação, em que os sentidos em

fuga os desnorteiam continuamente. Entretanto, a casualidade (alea) é também uma aliada

decisiva para que o jogo prossiga. A ausência de memória permite que os personagens

anulem por instantes a sensação de pavor que o eterno retorno do mesmo pudesse lhes

causar:

Vladimir: As coisas mudaram por aqui, de ontem para hoje.

Estragon: E se ele não vier?

Vladimir:(depois de um momento de espanto) Aí a gente

decide.(Pausa) Estava dizendo queas coisas mudaram

por aqui, de ontem para hoje.

Estragon: Tudo escoa.

Vladimir:Repare bem a árvore.

Estragon: Nunca se desce duas vezes pelo mesmo

pus. (BECKETT, 2006, p.110)

Em um de seus aforismos, Heráclito de Éfeso enfatiza o caráter mutável da

realidade, repetindo uma tese que já surgira nos mitos arcaicos e, com dimensão filosófica,

desde os milesianos. Em Heráclito, a noção de fluxo universal torna-se um mote

insistentemente glosado: “Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas

águas correm sempre sobre ti”. O fragmento trata da mutabilidade das coisas do mundo, em

que tudo segue um fluxo infinito de transformações e nada permanece o mesmo. A alusão

ao fragmento heraclitianodenuncia, no entanto, a imutabilidade da atmosfera de dor e

sofrimento em que se encontram Vladimir e Estragon.A imagem de um rio que flui, com

águas que se renovam, dá lugar a um fluxo de pus, derivado de feridas quenão cicatrizam e

estão ali, como força motriz da sociedade ocidental. Se o rio é a metáfora do fluir do tempo,

em Beckett, sua imagem aparece como uma história que se se desenrola a custo da

violência e sofrimento de muitos. De novo, enxergamos aqui uma crítica à noção de tempo

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linear, no qual o discorrer dos dias nos levaria a um ponto de progresso. O tempo se revela

imóvel, entrópico e, repetidamente, incompreensível.

Estragon: E você disse que foi ontem, a coisa toda?

Vladimir: Sem dúvida.

Estragon: Aqui mesmo?

Vladimir: Mas é claro, que ideia! Não está reconhecendo?

Estragon:(repentinamente furioso)

Reconhecendo? Reconhecendo o quê? Passei minha

vida de merda rastejando nesta lama e você vem me fa-

lar de nuances! (Olha ao redor) Repare bem nessa

imundície! Nunca pus os pés fora daqui!

(...)

Vladimir: E no entanto estivemos juntos em Macon, ponho

minha mão no fogo. Colhemos uvas, isso, no vinhedo de...

(estala os dedos) está na ponta da língua... numa cidade-

zinha chamada...esqueci o nomedo lugar, não lembra?

Estragon:(mais calmo) Pode ser. Não notei nada de especial.

(BECKETT, 2006, p.118-119.)

De fato, o sentimento de melancolia que transversaliza toda a peça não permite que

se instaure, em nenhum momento, a sensação de segurança, de apreensão absoluta do

tempo, ou a sensação de pertencimento ao espaço. Logo a identificação plena, ou qualquer

príncipio que possa insinuar o sentimento absoluto de presença, não podem mesmo estar

presentes no teatro de Beckett. Nesse sentido, a mimicry desempenha o papel de não

fixação das máscaras, num trânsito incessante, no qual,se a memória é incapaz de

reproduzir com exatidão a experiência, é hábil, contudo, em encená-la, trazendo à cena sua

imprecisão:

Vladimir: Diga alguma coisa.

Estragon: Estou tentando.

Longo silêncio.

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Vladimir: (angustiado): Diga qualquer coisa!

Estragon:O que vamos fazer agora?

Vladimir:Estamos esperando Godot.

Silêncio.

Vladimir:Como é difícil!

Estragon: E se você cantasse?

(BECKETT, 2006, p. 122.)

Mimicry e Alea, via imaginação,conduzem a ação de jogar à possibilidade de

ressignificação do real, promovendo uma reativação do olhar infantil, o olhar

inexperimentado das coisas do mundo. Combinadas, alea e mimicry evidenciam algo que se

aproxima de uma atitude que reabilita a percepção automatizada do olhar, devolvendo sua

capacidade de recolher a poesia do entorno.

“Trata-se da capacidade de produzir analogias e correspondências extrassensíveis

entre as coisas e o mundo, resgatando uma espécie de experiência polifônica do universo

que preconiza um outro saber e um outro modo de estar na linguagem145.”

Assim, ao dirimir a vontade em favor de uma espera ansiosa e passiva do curso da

sorte (Alea), alia-se ao gosto de revestir uma nova perspectiva ao real (mimicry).É inerente

ao melancólico, de uma ou outra maneira, o sentimento de desejo de fuga da realidade

imediata. Seja retornando ao passado ou a outro topos, o aqui, agora sempre lhe é

insatisfatório.

Vladimir: E, na sua opinião, onde estávamos ontem à tarde?

Estragon: Não sei. Em outro lugar. Noutro compartimento.

Vazio éque não falta.

Vladimir:(seguro de si): Tudo bem. Não estávamos aqui ontem à tarde?

Estragon: O que nós fizemos?

145BINES, Rosana Kohl. Infância, palavra de risco. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; GINZBURG, Jaime; FOOT HARDMAN, Francisco (Orgs.). Escritas da violência. Vol.1: o testemunho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 212

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Vladimir: Tente se lembrar.

Estragon: Bom...acho que jogamos conversa fora.

Vladimir:(se controlando): Sobre o quê?

Estragon: Ah...isto e aquilo...sobre botas. (Com certeza) Isso, me lembrei, ontem à tarde ficamos falando de botas. A mesma conversa, há cinquenta anos.

Vladimir: Não se lembra de nada que aconteceu, nenhuma circunstância?

Estragon:(cansado) Chega de me torturar, Didi.

Vladimir: E do Sol? Da Lua? Não lembra?

Estragon: Deviam estar por perto, como sempre.

(BECKETT, 2006, p.130)

Logo, parecepertinente a leitura de Connor, que nega uma presentificaçãoabsoluta

na cena beckettiana. Desde Aristóteles sabemos que os melancólicos são seres de

exceção. “O melancólico é essencialmente polimorfo (...) isso quer dizer que o melancólico

tem como possíveis todos os caracteres de todos os homens” 146.SeEstragon e Vladimir

evadem-se temporariamenteda realidade imediata que se lhes apresenta, redimensionando-

a, éporque uma tomada de consciência que reconhecesse plenamente o terror que os

rodeia, os levaria a uma apreensão do absurdo do mundo e, fatalmente,a uma decisão

trágica frente à realidade, como o suicídio, por exemplo. Não é o caso, contudo, dos

personagens de Beckett: a razão, a tomada de consciência absoluta não se aplica ao

universo de seus exauridos caracteres. É justamente nessa falha, nessa ausência, nesse

lapso de consciência, que seplasma a mascarada beckettiana. Mimicry e Alea são

cúmplices nesse jogo de ressignificação das máscaras.

Estragon: Estou cansado. (Pausa) Vamos embora.

Vladimir: A gente não pode.

Estragon: Por quê?

Vladimir: Estamos esperando Godot.

Estragon: É mesmo. (Pausa) O que vamos fazer então? 146 Aristóteles. O Homem de Gênio e a Melancolia. Problema XXX, 1. Rio de Janeiro: Editora: Lacerda, 1998, p. 99.

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Vladimir: Não há nada a fazer.

(...)

Vladimir: E se você experimentasse?

Estragon: Já tentei de tudo.

Vladimir: As botas, quero dizer.

Estragon: Acha que devo?

Vladimir: Ajuda a passar o tempo. (Estragon hesita)

Garanto que será uma diversão. (BECKETT, 2006, p. 137.)

Alea associa-se ao universo infantil por excelência. Assim como na brincadeira

infantil, em que um pedaço de bambu pode tornar-se uma espada; um pedaço de pau uma

boneca, e, com o auxílio de um graveto, esse mesmo pedaço amorfo de madeira pode

transformar-se em violino, as personagens de Beckett lidam com os restos e resíduos,

transformando-os em objetos, na tentativa de mimetizar a existência do que lhe é alheio,

habitando os objetos imaginariamente, abrindo a possibilidade de diálogo com o entorno,

que se lhes apresenta de forma tão estranha.

Estragon: Estamos sempre achando alguma coisa, não é Didi, para dar a impressão que existimos?

Vladimir: É, é mesmo, somos mágicos. Mas não vamos nos desviar. (Pega uma bota) Venha, me dê o pé. (Estragon aproxima-se, levanta o pé) O outro, porco!(...) E então, serviu?

Estragon: Serviu.

Vladimir: Vamos amarrar.

Estragon:(com veemência): Nada disso, nada de laços, nada de laços!

Vladimir: Vai se arrepender. Agora o outro. (Como antes) E então? (...)

Estragon: São grandes demais. (BECKETT, 2006, p. 137.)

Não há encaixe. Nada se assenta perfeitamente em uma realidade desconexa, onde

não mais é possível uma descrição objetiva dos eventos. A apreensão do mundo na infância

perfaz uma trajetóriaem que “a experiência não parte de uma subjetividade soberana e

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solipsista, encapsulada e apartada no universo das coisas147”. Estragon e Vladimir lidam

com as botas na tentativa de experimentarem o momento presente.Como crianças, se

entregamao mundo sensorialmente, desafiando as demarcações que separam sujeito e

objeto e as temporalidades instituídas. É nessa interação renovadora pela via da experiência

sensível que lida com resquícios, queGogô e Didi serão capazes de adiar o encontro com

espectro da morte que os espreita. A presença do âgon se daria na atitude deliberada dos

personagens em assumirem intimamente a essência de algo condenado à morte. O desejo

incansável de prosseguiremfaz com queâgon,incorporada na agonia que osmobiliza, se

converta em cúmplice da alea e da mimicry, para o prosseguimento do jogo.

A repetição dos jogos, aqui, nos impede de ver a primeira vez como

necessariamente a primeira, e, a última, como final. Ambas são repetições, e como observa

Connor, repetições “nas quais estamos privados de sentido de prioridade ou finalidade”

148.Há uma dobra no interior de cada cena, que faz com que as estruturas repetitivas imitem

o jogo infantil no sentido de encenação de uma perda, de uma ausência. É esse núcleo

ausente, esse vácuo, que permite o equilíbrio, mesmo que a passos trôpegos, dos

personagens de Beckett.Com efeito, a instabilidade temporal da peça, correlativa com sua

estrutura no que tange à repetição, dramatiza a memória como um conteúdo que

permanece parcialmente oculto e incompleto. Cada cena soa como umdejavú, no qual ecoa

uma estranha premonição em que presente, passado e futuro aparecem como uma

estrutura unitáriamal suturada, pressentindo-se que pouco, ou quase nada, resta de

“memorável”.

A repetição que mescla o trágico e o cômico, cujo humor apresenta uma similaridade

com a atitude das crianças, que, abandonadas em seus jogos, se entretêm com miudezas,

147 BINES, Rosana Kohl. Infância, palavra de risco. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; GINZBURG, Jaime; FOOT HARDMAN, Francisco (Orgs.). Escritas da violência. Vol.1: o testemunho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 212. 148CONNOR, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text.Colorado: The Davies Group, Publishers, 2007, p.135.

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enquanto se distraem à exaustão com seus diálogos. E mesmo os diálogos em Beckett

obedecem à estrutura de composição baseada na repetição, pois se caracteriza pelo

empobrecimento, pelo depauperamento, pela presença de falas curtas em que subsistem

alguns resquícios do diálogo dos clássicos. Como apontou Célia Berretini149, são

encontrados na repetição expedientes que remontam aos grandes dramaturgos gregos e

latinos da Antiguidade. “Há um sem-número de exemplos que poderiam ser transcritos e

que revelam a presença da oposição, concisa e rápida, nos diálogos de Godot.”Trata-se em

sua visão de uma oposição inovadora,que remete à esticomitia do teatro greco-romano,

sugerindo a paródia ou a caricatura do teatro tradicional e da própria vida.

Berrettini também chama a atenção para o jogo de palavras, simultâneos aos

jogoscom os objetos, que circulam nas mãos de Estragon e Vladimir, “ritmicamente, com

regularidade calculada150”, enquanto o diálogo duela com o marasmo. Aesticomitia, que

também apresenta um caráter lúdico,adquire, no entanto, um novo aspecto, graças à elipse

da parte inicial e ao desencontro das falas. Aliás, poderíamosdizer que há bem mais do

quiproquó do vaudeville que da esticomitia grega. Isso porque, se, na esticomitia, há um

propósito de que haja um vencedor na discussão, sendo, por isso, um diálogo agonístico por

excelência, em Beckett, o âgoné justamente o jogo que se apresenta com menos força no

embate entre os jogos. O autor geralmente evita o desenvolvimento de suas tiradas de

pensamento ou a conclusãode seus monólogos. Os diálogos tropeçam na palavra final do

discurso de Lucky: são inacabados.Aparentemente, cada ideia, em sua formulação, é

extremamente simples, a tal ponto que podem parecer, em primeira instância, como uma

brincadeira trivial em que os vocábulos se tornaram palavras-objetos, palavras-brinquedo,

como num jogo de montagem e desmontagem.

Assim, se Beckett utilizaessa forma tradicional, ele o faz justamente minando os

dispositivos dessa retórica, numa construção que boicota propositalmente o bom

149BERRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.85. 150Idem.

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acabamento das falas e fragmenta o diálogo,impedindo que a comunicação se efetive entre

os interlocutores:

Estragon:Enquanto esperamos, vamos tratar de

conversarcom calma, já que calados não conseguimos

ficar..

Vladimir: É verdade, somos inesgotáveis.

Estragon: Para não pensar.

Vladimir: Temos as nossas desculpas.

Estragon: Para não ouvir.

Vladimir: Temos as nossas razões.

Estragon: Todas as vozes mortas.

Vladimir: Um rumor de asas.

Estragon: De folhas.

Vladimir: De areia.

Estragon: De folhas.

Silêncio. (BECKETT, 2005, p.120-121)

É só aparente, portanto, em nossa visão, a presença da esticomitia tradicional.Isso

porque, além da introdução da elipse, há um descompromisso total entre os jogadores de

duelarem entre si. O verdadeiro adversário, aqui, é o tempo, e os passatempos com a

linguagem nada mais são que tentativas de driblá-lo. Valendo-se desse procedimento,

pulveriza-se o caráter de aforismo ou de uma verdade absoluta que qualquer fala pudesse

reivindicar. Para além da paródia, uma maneira de escapar a uma possível sugestão de

coincidência do real com a linguagem, revelando, antes de tudo, a tensão entre esses dois

elementos. Segundo Huizinga151, “uma das qualidades fundamentais do jogo reside na

capacidade de repetição, que não se aplica apenas ao jogo em geral, mas também à sua

estrutura interna”. Em quase todas as formas mais elevadas de jogo, os elementos de

151 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.13.

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repetição e alternância (como no refrain) constituem como que o fio de tessitura do objeto.

A repetição, essa figura retórica, de tão caro emprego não apenas pelos clássicos, é

também usada por Beckett, que procede de duas maneiras: ora, numa única fala, a

personagem repete várias vezes o mesmo termo; ora reiterando o termo ou uma frase,

espaçadamente, tal como um tema musical ou leitmotiv, assim sublinhando ou evocando

umritornelo. Desse modo, a linguagem aparece recortada, em chavões repetidos de forma

recalcitrante sem fluidez ou elegância, como que em um retorno de um tema musical que,

sempre que se insinua, é interrompido ao longo da peça.

A repetição, com seus estribilhos e clichês,de incidência simultânea em diversos

níveis de Esperando Godotencena o tédio da vida, o interminável eterno retorno do

mesmo.Assim, calcada na repetição,é tecida, em diversas camadas, a dramaturgia da peça:

os silêncios, gestos, vocábulos e expressões se reiteram continuamente. A reapropriação do

passado pelos personagens, no entanto, não logra êxito. As reminiscências surgem como

lampejos, clarões que cegam a cada investida de resgate. É a falência da história, do ato de

narrar como transmissão da experiência. A mimicry aqui não serve a um propósito de

reconstituição dos acontecimentos. Ela é fundadora de uma nova forma de apreensão do

real, quando já se veem desgastados os dispositivos que, em outras circunstâncias, eram

válidos. Se por um lado a mimicry é um passatempo, e ludibria personagens e público, por

outro, ela cria condições para que o jogo prossiga com a suspensão do espaço e do tempo

delimitados.Conjugada àmimicry,alea, leva às últimas consequências o princípio da

imobilidade que rege o comportamento dos personagens, o “Nada a fazer”. Nesse conluio, o

jogo livre triunfa sobre o jogo instrumental, alea e mimicrycomprimem agôn, o jogo que

visava obter um resultado diante de uma situação em que os oponentes se encontram em

condições equânimes em uma disputa.A instabilidade semântica gerada pela primeira, ao

decompor as redes de relações semânticas constituídas por mundos referenciais, e

adesestabilização das máscaras promovida pela segunda, impedem que a peça se

encaminhe para um desfecho catártico, abandonando, em sua estrutura, a concepção

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rigorosa de evolução, tão cara ao modelo aristotélico. O tempo é ora espiral, ora circular. O

plano de escapar quando a noite cair não é factível;não há sono ou descanso possível:

enquanto demandar a temporada, a peça, como um ensaio ininterrupto, repetirá,

exaustivamente, seus dois atos incompletos.

3.3.Agôn: o jogo em falso

Além da intervenção direta dos deuses em suas peripécias, Ulisses, o herói grego da

Odisseia, tinha como principal aliado para sua sobrevivência a astúcia (métis),representação

prototípica da “razãoinstrumental”152. Na modernidade, diferentemente do herói homérico,

ospersonagens de Beckett não se fiam na razão para “subsistirem”.Antes, aguardam as

imposições da sorte, alea. Estão sós, não há sombra divina que lhes dê guarida. A regra de

ouro, neste caso, para Vladimir e Estragon, é, como personagens que representam um

papel, fascinarem os espectadores, evitando que o erro ou tédio os conduza à recusa da

ilusão. Contudo, como cada investida para entretê-los vem acompanhada de seu fracasso,

mimicry e alea não estão sozinhas em Esperando Godot. Deixamos por último, em nossa

análise, uma das primeiras categorias do jogo verificadas pela crítica especializada nas

peças de Samuel Beckett: agôn.

A parábola dos dois ladrões153, evocada nos dois atos por Vladimir, parece traduzir

esse combate entre agôn e alea no interior da peça. “Sim, um dos ladrões foi salvo, é uma

boa porcentagem”, afirma Vladimir a certa altura. Seria por mera sorte (leia-se oportunismo)

que o ladrão fora salvo? Duas versões do episódio indicariam que as chances de salvação

152ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 153 Segundo Esslin, quando se indagava de Beckett qual seria o tema de Esperando Godot, ele por vezes fazia referência a uma das passagens dos escritos de Santo Agostinho: “Há uma frase maravilhosa em Santo Agostinho. Pena eu não me lembrar em latim. (...) Não se desespere: um dos ladrões foi salvo. Não seja presunçoso: um dos ladrões foi condenado.” E, às vezes, acrescentava: “A conformação das ideias me interessa mesmo quando não acredito nelas... A forma dessa frase é maravilhosa. E o que importa é a forma.” In: ESSLIN, Martin. O Teatro do absurdo. Samuel Beckett: a busca do eu.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 47.

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são equivalentes?Claro, há alta dose de ironia nas duas formulações e o paradoxo da

situação não se resolve ao longo da peça.

Agôn e Alea traduzem atitudes opostas e de certa forma simétricas, mas obedecem

à mesma lei: “a criação artificial entre jogadores das condições de igualdade absoluta que a

realidade recusa aos homens154.”Agôn é o jogo sob forma de competição, ou seja, como um

combate em que a igualdade de oportunidades é criada artificialmente para que os

adversários se defrontem em condições ideais, suscetíveis de dar valor preciso e

incontestável ao triunfo do vencedor. Trata-se sempre de uma rivalidade que se baseia

numa única qualidade (rapidez, resistência, vigor, memória, habilidade, engenho, etc.) “No

caso do agôn, o jogador conta apenas consigo, e assim se esforça e se aplica com todo seu

ardor155”.Alea, por sua vez, despreza o trabalho, a paciência, a habilidade e aqualificação.

Elimina, de uma só vez, o valor profissional, o domínio da técnica, a regularidade para dar

lugar à demissão da vontade e à sorte. Seu princípio fundamental é abolir com os

resultados acumulados. “É a desgraça total ou a graça absoluta.156” Se alea significa uma

entrega ao destino, agôn reivindica a responsabilidade individual.

Vladimir e Estragon estão no palco, e, se por um lado, são jogadores porque

resistem ali a partir da arte de improvisar (mimicry), portanto, abdicam de, como jogadores,

lançarem mão dos recursos de agôn. Didi e Gogô negam-se ao trabalho, esquivam-se do

uso de estratagemas ligados a habilidades tais como força ou inteligência, para resistirem à

catástrofe que se lhes impõe.

Antes, a atitude dos personagens insurge como uma insolente e soberana zombaria

ao mérito. Nenhum deles se dispõe a uma vida de trabalho, disciplina e fadiga. São

clochards, vagabundos, que nada esperam de si mesmos, sendoa única exigência que

154 CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.37. 155 Ibidem. p. 66. 156CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.37.

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impõem a si,a proibição de queo espetáculo seja interrompido, mesmo que com os mínimos

recursos disponíveis. Esperar Godot é a única tarefa a cumprir, além de matar o tempo.

Benjamin,157 em “O narrador” descreve o desaparecimento gradual da arte de narrar.

A insurgência do mundo moderno é verificada na ruptura da tradição, pela fragmentação dos

discursos e pela separação entre apreensão subjetiva do real e mundo desencantado. “É

como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a

faculdade de intercambiar experiências158.”“Nesse contexto, a correlação entre vida e

palavra aos poucos se desfaz; a experiência comunicável é colocada em crise; a sabedoria

épica e a possibilidade de conselho (Rat) e da transmissão da narrativa já não se oferecem

espontaneamente num mundo comum159.”Beckett, contudo, transforma, paradoxalmente,

em experiência narrável a experiência de dissolução da palavra narrativa; seus clowns não

pretendem vencer o jogo, apenas não admitem serem vencidos por ele. São seresrotos,

párias, nômades, que só têm a anunciar fragmentos, relatos de um roteiro no qual faltam

muitas páginas. “O interesse do jogo é, para aqueles que competem, o desejo de ver

reconhecida a sua excelência num determinado domínio” 160.Agôn, portanto, consistiria uma

atenção persistente, um treino apropriado, esforços assíduos e vontade de vencer. Não é,

definitivamente, esse o propósito dos personagens de Beckett, tampouco dos modos de

fazer revelados pela carpintaria de sua escrita.

Suas narrativas se colocam assim, inacabadas, e não há mesmo uma preocupação dos

personagens em arrematá-las com sucesso. O jogo é um jogo feito para perder e a ironia, o

humor, é o recurso do qual se valem os personagens para se afastarem da ortodoxia do

157 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198. 158 Idem.

159OLIVEIRA, Luís Inácio. Do canto e do silêncio das sereias. Um ensaio à luz da teoria da

narração de Walter Benjamin. São Paulo: EDUC, 2008, p. 311.

160CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.37.

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pensamento que se fia em axiomas, cuja verdade se insinua como universal. Outro aspecto

da dissolução da sabedoria épica em Beckett é a inconstância dos personagens que não

pretendem dar às suas reflexões um desenvolvimento lógico de fundo cartesiano. Homo

ludus e homo ridens: o jogo e o riso unem-se para desacatar o sujeito cheio de certezas da

modernidade. Nietzsche afirmava que quanto mais o espírito está seguro, mais o homem

desaprende a gargalhada, necessária para sair da crença na razão e na positividade de

existência. O riso relaciona-se assim com a tragicidade da vida, mas também com a

capacidade de distanciamento. Em geral visto como manifestação de alegria, o riso pode

revelar o sofrimento em toda a sua crueza. Porque há também o riso nervoso do grotesco,

queremete ao mesmo riso de alguém, que, como num surto, tem vontade de rir numa Igreja,

num velório,mas é obrigado a conter o riso, dadas as circunstâncias. Nesse caso, o riso

seria decorrente de uma atitude histérica do sujeito, que deseja negar a objetividade do

evento que se dá diante de seus olhos; o riso se dá como vertigem, que confere uma

suposta superioridade àquele que ri, naquela situação limite, na qual o cadáver exposto lhe

dá dimensão de sua própria finitude161.

Mas não se trata disso em Godot, ou, pelo menos, não é o que acontece

comumente. Aqui o riso é contido, talvez levemente esboçado numa ironia nervosana qual a

gargalhada que extravasa a tensão não tem vez. A pergunta acerca do riso no grotesco em

Beckett tropeça no mais difícil complexo parcial de todo o fenômeno; com efeito, nele não

encontramos como motivo estranhador, o riso involuntário abridor de abismos, mas o riso

interrompido, que se contém, na figura de estilo da ironia, antes de qualquer explosão. Nos

diálogos entre Estragon e Vladimir, em várias ocasiões em que uma reflexão com fundo

tragicizante vem à tona, temos uma ruptura abrupta em que o princípio irônico de

composição implode os clichês de uma suposta superioridade humana, capaz de dar

sentido à existência:

161“Donald Hayword sugeriu uma interessante teoria de que a principal função da gargalhada seria avisar aos outros que não há perigo, e que agora podem relaxar, comer ou brincar. Demonstramos nossas emoções para os outros e as tomamos de volta.” Apud: SCHILDER, Paul. A imagem do corpo: as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes, 1981, p.90.

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Vladimir:Não percamos tempo com palavras vazias.(Pausa. Com veemência) Façamos alguma coisa, enquanto há chance! Não é todo dia que precisam de nós. Ainda que, a bem da verdade, não seja exatamente de nós. Outros dariam melhor conta do recado. O apelo que ouvimos se dirige a toda humanidade. Mas neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. (...) Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Sim, dentro desta imensa confusão, apenas uma coisa está clara: estamos esperando que Godot venha.

Estragon: É mesmo.

Vladimir: Ou que a noite caia. (Pausa) Estamos no lugar e hora marcados e ponto final. Não somos santos, mas estamos no lugar e hora marcados. Quantos podem dizer o mesmo.

Estragon: Multidões.

Vladimir: Você acha?

Estragon: Não sei.

Vladimir: É possível. (BECKETT, 2006, p. 161.)

Agôn sagra-se em uma disputa na qual a rivalidade se baseia em atributos tais como

rapidez, resistência, vigor, memória, habilidade e engenho. Ora, se, por um lado, não

reconhecemos essas características nos personagens de Beckett, por outro, um resquício

de permanecer em jogo se evidencia no impulso à repetição. Esse expediente não deixa de

ser também o despertar do desejo de ser bem sucedido na próxima tentativa, exatamente

onde se acaba de falhar.Nesse contexto, o agôn dá vez, gradativamente, na exposição dos

jogos daqueles caracteres fraturados que são as criaturas beckettianas a seres cuja ação

não corresponde a uma competição, mas a uma agonizante situação concreta, na qual

personagens e plateia buscam a todo custo a manutenção da ilusão dramática perdida. Ou

seja, o jogo, sob suspeição, já não evidencia seu vigor enquanto agôn, é necessário

travestir-se em mimicry e alea para prosseguir. No caso de Beckett, os personagens se

apresentam como figuras tragicômicas, que desejam apenas a repetição das tentativas, sem

que, ao final, lhes aguarde a vitória ou algum prêmio. É um jogo, mas um jogo em falso, no

qual a resistência em permanecer no palco e encarar os silêncios como réplicase faz mais

premente que o logro de qualquer resultado positivo.Entretanto, em Beckett, os

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personagens jamais se rendem. “Falhar, falhar de novo, falhar melhor.162”A máxima que visa

ao mínimo estará presente até a prosa tardia do escritor.Assim, para todos os seus

personagens, o jogo não possui uma meta, mas é um fim em si mesmo: um rodízio de

apresentações de fracassos que impedem, contudo, que o jogo termine.Para Michel

Maffesoli163, a modernidade se fundou, progressivamente, sobre uma concepção muito

mecânica de tempo:

Um tempo útil, um tempo estritamente linear, um tempo projetivo.É o tempo da história individual, da história social. O tempo hegemônico, com um princípio e um fim “parece ter feito tábula rasa de qualquer outro tipo de temporalidade, em sua visão. (MAFFESOLI, 2003, p. 64)

Porém, com Beckett, estamos longe das certezas que dominaram a modernidade: há

intranquilidade no ar. Os personagens que esperam Godot encarnam uma percepção

temporal outra, num processo de eterno retorno que,se por lado se perfaz ecoando

fragmentos de um passado incompreendido, por outro, nas incessantes tentativas, insinuam

a possibilidade de um devir, de um vir a ser. Agem como tolos, como crianças,e, em suas

incansáveis tentativas, não visam a recompensas ou troféus. Não há catarse e ao final da

peça sabemos que “o jogo” continua, eles permanecerão ali, à espera de Godot.

O indivíduo moderno, átomo indivisível de um mecanismo do qual não é mais que

um elemento, é obrigado a desempenhar uma função precisa no mundo social, de uma

maneira unívoca, ao longo de toda existência. Essa função requer uma “máscara” que é

puramente funcional. “À imagem do tempo “homogêneo e vazio, do relógio de ponto de

fábrica, a máscara funcional, e o indivíduo que lhe serve de suporte, diz e repete

sempiternamente a monotonia da existência.164” A pessoa, em contrapartida, não é senão

uma máscara (persona); pontual, representa seu papel em uma comunidade, do qual jamais

162 “Tudo de outrora. Nada mais nunca. Nunca tentado. Nunca falhado. Não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor.” Pra frente pior. In: BECKETT, Samuel. Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Editora Globo, 2012, p. 65. 163MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003, p. 64. 164 Idem.

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poderá, amanhã, escapar para expressar e assumir outra figura. Vladimir e Estragon,

contudo,nos fazem auscultar uma possibilidade de existência na qual também somos

convidados à mimicry, ao cultivo de nossas personas, numa sociedade em que papéis pré-

determinados não mais terão lugar.

O mito de Sísifo165, escrito por Camus em 1942, evocou ao mencionar este

episódio mitológico, a absurda condição do homem na sociedade moderna. Sísifo fora

condenado a carregar, por toda eternidade, uma pedra ao alto de uma montanha somente

para vê-la cair e ter de repetir a operação. Julgaram os deuses, à época, ser esse o mais

terrível dos castigos: “o trabalho inútil e sem esperança” A repetição exaustiva à qual se via

aprisionado Sísifo causava espanto e terror.Assim seria o homem moderno, cuja vida é

absurda, porque destituída de um sentido final, já que apesar do laborioso esforço que lhe é

dispensado, não conduz a nada.

O absurdo nasce do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do

mundo. O mito de Sísifo só é trágico porque seu herói é consciente de sua miséria. No caso

de Beckett, contudo, não há tomada de consciência absoluta: salvo um átimo de

clarividência de Vladimir a certa altura da peça, o que fazem os personagens de Beckett?

Esperam. Aguardam por Godot entretidos por passatempos e narrativas, brincam apenas. À

parte de toda sua prepotência e sua confiança na razão, seria o ser humano um pobre títere

nas mãos do acaso? Beckett nos apresenta seres em paulatina decomposição, que,

fadados à morte desde o dia do nascimento, se apresentam em sua obra como um uma

nova versão de Sísifo, poisguardam consigo uma espécie de infância intocada em seus

processos de apreensão do mundo.Clowns, mas também crianças– prosseguem

persistentemente com seus pequenos gestos, suas brincadeiras e encenações.

Sísifo realizava seu penoso labor nos Infernos – labor que constitui, para Camus, a

grandeza desafiadora do homem diante da inutilidade de seus esforços, visto que a rocha

165 CAMUS, Albert. O mito de sísifo.Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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não permanece na montanha, sempre deslizando novamente para o sopé. O homem, na

visão beckettiana, contudo, não traz em si uma centelha sequer de grandeza, quiçá de

sabedoria. A rocha de Vladimir e Estragon torna-se um adereço de um número de comédia

no qual há uma completa dissolução do ego. Não há espanto, pois o espanto é o

escândalo da razão frente a um mundo absurdo. Seus personagens, no entanto, se movem

na ignorância, na esfera do não-saber.Gogô e Didi parecem reencarnar um novo Sísifo em

sua espera, parecido com o de Camus, mas com um novo matiz: não há assombro na

repetição contínua, mas humor, ironia. É esse estratagema elaborado por Beckett que os faz

habitar, simutaneamente, topografias em que o trágico e o cômico não mais se distinguem.

A solidão, o desespero e a incomunicabilidade entre os seres e o mundo de total imobilismo

que a peça apresenta são atravessados poruma dinâmica trágico-lúdica, na qual o riso,

ainda que cerrado, opera um dizer sim à vida, ao agasalhar, mesmo que de modo um tanto

desconfortável, a possibilidade de ironizar a condição humana via humor. Assim, a

imobilidade, em Beckett, não se trata simplesmente de uma espera contemplativa e passiva,

mas de uma atitude criativa que, por meio dos jogos irônicos presentes em sua linguagem,

produzem, a despeito da atmosfera de ataraxia que envolve os personagens, um incansável

desejo de afirmação, de liberdade.

Essas características combinadas na dimensão irônica da linguagem nos dão o

paradoxo básico na apreensão da subjetividade moderna, que Esperando Godot encena na

sua dimensão trágica e cômica: o dístico da humilhação do homem empírico e o

rebaixamento do sujeito transcedental. Descartes166, que afirmou o cogito como ponto de

partida da filosofia, reduziu ao mesmo tempo toda a realidade, inclusive a vida, a res

extensa, campo da matéria que obedece a leis mecânicas. O autor do Discurso sobre o

Método foi a expressão máxima do racionalismo de sua época. Mas, ao contrário de seus

contemporâneos, Descartes privilegiou a dúvida em detrimento da certeza para dar curso à

166 DESCARTES, DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Col. Pensadores, vol. XV, p. 248.

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sua filosofia. Sua dúvida era tida por metódica, pois colocava em xeque todas as supostas

certezas, tanto do conhecimento sensível, quanto do intelectual, sendo o principal

pressuposto para o método cartesiano de investigação científica.A proposição de Decartes,

“Cogito, ergo sum”, na qual o pensamento consiste na prova da existência do homem,

pressupõe um ajuste perfeito entre o ser e o que ele pensa, diz e fala. Essa relação de

equivalência, no entanto, não se efetiva no universo de Beckett. Seus personagens são

andarilhos, não possuem consciência de nada; são párias, que não aspiram a nenhuma

forma de conhecimento ou mediação da realidade que o ato de pensar pudesse

proporcionar.

Beckett pode ser definido, sem entremeios, como um escritor cuja escrita encerra

uma série de ataques vigorosos e céticos a Descartes e à filosofia fundada pelo autor das

Meditações. “Em sua desconfiança da axiomática cartesiana, Beckett alinha-se a Nietzsche

e Heidegger, e a seu contemporâneo mais jovem, Jacques Derrida167”. A atitude satírica em

relação ao cogito cartesiano (estou pensando, logo devo existir) aproxima-se da decisão de

Derrida de revelar as premissas metafísicas por trás do pensamento ocidental:“não

podemos deixar de mencionar, senão uma influência direta de Beckett sobre Derrida, no

mínimo um caso notável de vibração em sintonia168”.Se o raciocínio está correto,

poderíamos pensar em Beckett como um precursor do desconstrucionismo:

“Parece que falo, não sou eu, de mim, não é de mim169.” Essa frase de O Inominável, como tantas outras de Beckett, ataca as fundações da longa tradição humanista da ficção autobiográfica e da autobiografia ficcional que surge com Robison Crusoé, passa por Grandes Esperanças e chega até Em busca do tempo perdido, como uma promessa consoladora de autoconhecimento. Nesse sentido, antecipa a noção elaborada por Derrida sobre a différance inevitável do discurso verbal: “o eu que fala é sempre diferente do eu de quem se fala, e assim o ajuste preciso entre a linguagem e a realidade vê-se eternamente postergado. (LODGE, 2009, p. 226)

167COETZEE, J.M.Mecanismos internos: ensaios sobre literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 213. 168 Idem. 169BECKETT, Samuel. O Inominável. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009, p. 29.

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Desse modo, a idéia de subjetividade moderna que a peça traz não é um

humanismo, mas um anti-humanismo. Como observa Zizek170, “o humanismo caracteriza o

pensamento do Renascimento, que louvava o homem como pináculo da criação, o termo

mais elevado de seres criados.”Em contrapartida, a modernidade propriamente dita só

ocorre quando o homem perde seu lugar privilegiado e é reduzido somente a mais um

elemento da realidade- perdendo sua substancialidade, que em Beckett é acentuadamente

escancarada nas peripécias inúteis de seus heróis fracassados.

3.4 O jogo como profanação: a falência da empresa Ocidental

            B: Por que você não se deixa morrer171? A: Eu tenho pensado nisso.               B:(irritado): Mas você não faz isso! A: Eu não sou infeliz o suficiente. (Pausa.) Esta sempre foi minha infelicidade; infeliz, mas não o suficiente. Samuel Beckett, "Teatro I" (em Fins e Odds, 1976).

Martin Esslin foi um dos primeiros críticos a investir em uma sistematização da obra

de Beckett e de todo um conjunto de obras, às quais, incluindo Beckett, Adamov, Ionesco e

Arrabal num mesmo arrolamento, chamou de Teatro do Absurdo. Esse equívoco rendeu-lhe

alguma desconsideração por parte da crítica, mas é importante assinalar que sua leituraé

basilar para a compreensão das transformações do drama a partir daquele contexto e,

principalmente, para um entendimento de como se configurou a recepção da forma

dramática revolucionária apresentada pelo escritor irlandês. É na reinvenção crítica e 170ZIZEK, Slavoj.A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 222. 171B: Why don't you let yourself die?

A: I have thought of it.

B:(irritated): But you don't do it!

A:I'm not unhappy enough. (Pause) That was always my unhap, unhappy, but not unhappy enough.

BECKETT, Samuel. "Theatre I" (in: Ends and Odds, 1976).

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renovadora dos elementos fundamentais que compunham a estrutura do teatro

tradicionalque se funda a dramaturgia trágica e cômica de Samuel Beckett.

Roger Blin, diretor responsável pela primeira encenação de Esperando Godot no teatro

Babylone, em 1953, disse certa vez: “Beckett é único em sua capacidade em misturar

escárnio, humor e comédia com a tragédia: suas palavras são simultaneamente, trágicas e

cômicas172”. Visto desta maneira, não haveria conflito entre o repertório de circo, vaudeville

e musical hall presente em diversas passagens da peça (queda das calças, quiproquós, jogo

com os chapéus e botas) e a intensa atmosfera trágica que atravessa esses eventos.

Enquanto velam pela presença de Godot, para se alhearem da paisagem desoladora

que os cerca, Vladimir e Estragon usam os recursos de que dispõem, inventando pequenas

distrações, na forma de disputas verbais e pantomimas. Gaiatices de toda sorte se

sobrepõem, nesse duelo com o tempo: jogos com botas e chapéus, anedotas; pequenas

narrativas inacabadas, canções; conversações exaustivas, incluindo reflexões acerca da

existência a partir de uma cenoura: esses são apenas alguns dos ardis encontrados por

esses dois vagabundos incansáveis, ao travarem um malogrado duelo com silêncio e vazio.

Nesses jogos, há traços explícitos do repertório cômico; são numerosas as gags com

base na comédia: calças que caem, tombos, cordas que arrebentam em malfadadas

tentativas de suicídio. Aspectos que remetem ao circo, vaudeville, music hall, comedia

dell’arte, além de números alusivos aos famosos comediantes americanos da época,

Charles Chaplin, Buster Keaton, Os Irmãos Marx eLaurel and Hardy 173.Se, por um lado, é

possível perceber indiscutíveis elementos do universo cômico, por outro não há, contudo, o

mesmo efeito que ele proporciona em circunstâncias usuais. Em Esperando Godot, o humor

surge estranhamente conjugado a um retesamento, que não permite o riso franco, a

gargalhada ostensiva, nem o alívio da tensão, que tradicionalmente acompanha o gênero. 172 FLETCHER, John. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot./Endgame/ Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.79. 173Beckett admirava o cinema mudo e a tradição do music-hall presente nesses filmes. A troca de chapéus frenética em uma das cenas memoráveis da peça, por exemplo, tem seus malabarismos inspirados em um filme dos Irmãos Marx, Duck Soup, aludindo também a “gags” de Laurel and Hardy, aqui no Brasil conhecidos como “O Gordo e o Magro”.

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A peça,como reconhecem os críticos, pega seus modelos no vaudeville, na mímica, no

circo, no teatro e revista, na comédia do cinema mudo, e em última análise nas origens

desses gêneros: a farsa, medieval e posterior. Alain Badiou174 vai mais longe: para ele, os

caracteres cômicos presentes na peça partem de Aristófanes, Plauto, passando por Molière

para chegarem, finalmente, a Chaplin. Segundo Blin175, é muito provável que, ao escrever

Godot, Beckett tenha se inspirado, em alguma medida, em quatro personagens

interpretados por aqueles que foram os grandes comediantes americanos da época. O

primeiro diretor de Godot afirma que até ele próprio, enquanto pensava na concepção da

peça, estava verdadeiramente obcecado por eles e, um dia, teve uma visão súbita dos

personagens tais como os concebia: “eram, na forma ideal, Charlie Chaplin, como Vladimir,

Buster Keaton, como Estragon e Charles Laughton como Pozzo”. Vislumbrar a encenação

com tais atores não deixa de ser um interessante exercício de imaginação: Buster Keaton, o

melancólico, como registra seu epíteto, “palhaço que não ri”, de fato, encarnaria um bom

Estragon. Já Chaplin, no papel do segundo,daria a Vladimir contornos de Carlitos, o

vagabundo que despertava o riso e o pranto, em suainabilidade de lidar com as

transformações da vida moderna.Entretanto, não foi assim que as coisas se deram. Ele

mesmo,Blin,foi intérprete de Pozzo e, mais tarde, de Estragon, o que não impediu que a

peça alcançasse sucesso retumbante, embora não imediatamente à ocasião de sua estreia.

Em Esperando Godot interpõem-se, enredam-se e duelam tons do trágico e do

cômico.Apesar de Beckett tê-la definido na tradução para o inglês como “uma tragicomédia

em dois atos”, há uma ampla discussão acerca da presença ou não do trágico na obra de

Beckett. A crítica americana Ruby Cohn176, por exemplo, cunhou o termo comitragédia para

a peça,já que esta não oferecia a mesma estrutura da tragicomédia tradicional. De fato, a

tragicomédia clássica consiste em um drama no qual são combinadas as qualidades da

174BADIOU, Alain. L'increvable désir. Paris: Hachette Littératures, 1995. 175 Cf. Blin, Roger. Apêndices. Apud: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. e prefácio: Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 204. 176 COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutgers University Press, 1962.

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tragédia e da comédia, em geral sendo um espetáculo principalmente de caráter trágico, que

se encaminha para um final feliz, o que não acontece na estrutura circular de Esperando

Godot. No desfecho da peça,as calças de Estragon caídas até os calcanhares, em mais

uma tentativa de suicídio fracassada, fazem com que os personagens retomem o mote da

espera.

Dada a natureza repetitiva em que se estrutura, insinua-se que a encenação não

terminou: quando se fecham as cortinas, nos despedimos dos dois clochards imóveis, numa

atmosfera que sugere que tudo recomeçará novamente. Privado de uma catarse,restaao

espectador desorientado, o confronto com a patética condição dos personagens,matizada

pelo desalento da espera sempre adiada, que permanece em suspensão.

Em nossa perspectiva, a experiência trágica e cômica da peçaacontece em sua

materialidade, na trama da sua linguagem, sendo bem menos producente buscá-la a partir

de um suposto eixo temático. É na própria forma, a partir de um método teatral cuja partitura

consiste no entrechoque deelementos heterôgeneos de linguagem, que se dá uma cadeia

de ebulições que torna indistinta a fronteira entre os gêneros.Isso porque os tons do trágico,

na peça,são indissociáveis de seus elementos cômicos, que se evidenciam, não só por meio

dos diálogos, mas também pelo manejo em cena dos objetos, pelo gestual dos

personagens,sua movimentação no palco e silêncios.

O traço inovador de Esperando Godot, no que tange a uma poética de gêneros, reside

na indeterminação entre as fronteiras entre o trágico e o cômico. Tal discernimento não

opera apenas no curso de sua estrutura, que desconstrói a ordem tradicional da

tragicomédia clássica, mas na construção de cada enunciado cujo caráter ambivalente se

impõe de forma intermitente, sendo-nos impossível pinçar situações exclusivamente

cômicas ou absolutamente trágicas. São, portanto, da ordem do grotesco, dado que seja

impossível a dissociação dos gêneros, amalgamados que estão na escrita beckettiana.

Ogrotesco aparece diante de nós como o lugar, o advento de uma impossibilidade. Mas

esta impossibilidade passa a ser também, talvez, a primeira palavra que é responsável pela

expressão. Isto resulta em ditos paradoxais, palavras e gestos que podem ser qualificados

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como estranhos porque se desviam de quadros realistas que poderiam ser justificados pela

razão. Porém é essa impossibilidade fundadora, originária, em que se inscreve a própria

linguagem e suas limitações, que a palavra grotesca torce e retorna o emprego contra seu

natural significante, contra a sua lógica de produção de sentido: ela se utiliza para dar uma

visibilidade às formas. Aí reside a tentativa de Beckett em extrapolar a potência da língua

em uma sub-linguagem, que, no desconcerto de seus jogos, é capaz de impor diretamente

suas formas com o alcance de seus lampejos, redimensionando leitores e espectadores

para a realidade fundada em seu mundo ficcional.

De fato,as leituras que tentaram identificar a natureza do cômico em Esperando

Godotforam muitas. Geneviève Serreau177, em um artigo intitulado “Beckett’s Clowns”,

chamava atenção para os elementos presentes na peça que pertencem ao universo

“clownesco”.A indicação de que todos devem usar chapéu-coco, a entrada espetacular de

Pozzo e Lucky, a menção de número de circo, quando Pozzo acossa Lucky com seu

chicote,além da pantomima dos chapéus, são aspectos que, em sua opinião, aproximam a

peça dessa tradição circense. Serreau compara os diálogos aos diálogos dos clowns

profissionais, que, alimentados pela diferença de temperamento dos personagens, dão

curso à cena com seus duelos verbais. Uma tradição que remonta a Zanni da Comédia

Italiana, petulante e ativo, confrontando com o segundo Zanni, lesado e pacífico. Faz

alusões também à oposição tradicional entre Clown Blanc e Auguste (François et Albert

Fratellini). Serreau, no mesmo artigo, assinala a importância do jogo na peça. Tudo seria

jogo em Esperando Godot,“é esse jogo que separa os protagonistas do nada, a única arma

que eles ainda têm para lutar contra o vazio, para suportar o insuportável da espera”.

Segundo ela, essa “atividade incessante, de intensa vitalidade”, que sustentaria a presença

dos personagens em cena, poderia ser comparada aos movimentos de “uma afogado que

se debate entre as ondas para manter a respiração e salvar sua pele178.”

177 Cf. SERREAU, Geneviève. Beckett’s Clowns. In: COHN, Ruby. In: Casebook on Waiting for Godot.New York: Grove Press, 1967, p.171-175. 178Cf. SERREAU, Geneviève. Beckett’s Clowns. In: COHN, Ruby. In: Casebook on Waiting for Godot.New York: Grove Press, 1967, p.171-175.

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Decerto, uma imagem tão desesperadora, como a de um afogamento em processo,

não pode comportar apenas subsídios cômicos. A visada de Serreau é bem conivente com

a interpretação existencialista da época, que, em coro com Sartre, se debruçava na luta

entre o Ser e o Nada. Tal combate seria a tentativa do homem condenado à liberdade em

edificar sua máscara social, que, diante de inúmeras possibilidades, plasmava sua

identidade a partir de suas escolhas, a partir de sua inteira responsabilidade. A diferença

fundamental, contudo, entre os personagens de Beckett e a doutrina de Sartre, no que tange

a esse processo de tomada de consciência, é que, nos caracteres exaustos do primeiro, não

se observa nenhum senso de responsabilidade em suas ações, que não seja a irredutível

atitude de espera por Godot.

Tanto a tragédia como a comédia tiveram origem no jogo179, em um ritual público em

que se imiscuíam o lúdico e o religioso, no qual toda a comunidade estava envolvida. A

comédia ática nasce do kommos licencioso das festividades dionisíacas. Somente numa

fase posterior ela se transformou em um exercício conscientemente literário, e, mesmo

nessa fase, na época de Aristofánes, Eurípedes, Ésquilo e Sófocles, conservou inúmeros

aspectos de suas origens dionisíacas.

“No decorrer do cotejo do coro, chamado parabasena comédia, o coro dividia-se em filas

e movimentava-se para trás e para frente, voltando-se para o público e apontando as

vítimas, com frases de escárnio.180” O vestuário fálico dos atores assim como as máscaras

animais com que os elementos do coro se disfarçam são vestígios da remota antiguidade.

“Não é apenas por capricho que Aristófanes usa as vespas, os pássaros e as rãs como

tema de suas comédias; o fundamento dessa escolha é toda tradição teriomórfica.181” Do

mesmo modo, também a tragédia não é, em sua origem, uma reprodução voluntariamente

literária do destino humano. Originalmente era uma coisa muito distante da literatura

179 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura.São Paulo: Perspectiva, 2010, p.160. 180 Idem. 181Idem.

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destinada ao palco, era um jogo sagrado ou um ritual. Com a passagem do tempo, contudo,

a “representação” dos temas míticos tornou-se uma interpretação teatral, com mímica e

diálogos, de uma série de acontecimentos que constituem uma história com enredo.

Bem mais tarde, “os artistas românticos e pós-românticos ainda concebiam a arte com

algum conteúdo soteriológico” 182. A arte possuía um compromisso com a salvação, era uma

espécie de curadora espiritual. Aos líderes do “estilo-moderno” coube moderar as ambições

da criação estética. “A arte-magia se converte, com eles, em arte-jogo.” 183O

ascetismoestético cede o passo a um ludismo irônico, a uma seriedade ambivalente,

“imbuída do senso de máscara, convicta de que todo gesto artístico é transfiguração

semiconsciente, imitação necessária, “mentira” indispensável ao vislumbre da realidade”.

O romantismo supervalorizava a subjetividade em detrimento do saber racional; o

pensamento de Schopenhauer, cultuado pelos pós-românticos, atribuía à música o dom de

alcançar a verdade, dirimindo as ilusões da percepção ordinária; mas a estilística praticada

pelos modernos parece ter adotado antes a estética apregoada por Nietzsche184, “que

colocando a arte novamente sob o signo de Diônisos, o deus máscara, nela reconheceu

uma positiva vontade de enganar”.

Assim o estilo moderno abandonou a impostação soteriológica do processo artístico por

uma adesão à arte- jogo – e isso, tanto no plano do conteúdo quanto da forma.Jogo quanto

ao conteúdo185,no tratamento parodístico dos sentimentos e situações. “A lírica moderna

instala uma flutuação no seu próprio phatos, não se contentando com o simples exílio

patético temático. De Rimbaud a Joyce, enorme parte da literatura moderna consiste em

criptoparódias, sátira dissimulada.”186 Toda a arte moderna tende a brincar com seus temas,

mesmo quando os leva terrivelmente a sério.

182 CUNHA, Helena Parente. Portella, Eduardo. Castro, Manuel Antonio de. Pandolfo, Maria do Carmo. Sodré, Muniz. Silva, Anazildo Vasconcelos. Teoria Literária. Gêneros e narrativas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 42, 1975, p. 84-88. 183 Ibidem. p. 84. 184 Idem. 185 Ibidem. p. 85. 186CUNHA, Helena Parente. Portella, Eduardo. Castro, Manuel Antonio de. Pandolfo, Maria do Carmo. Sodré, Muniz. Silva, Anazildo Vasconcelos. Teoria Literária.Gêneros e narrativas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 42, 1975 p. 85.

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Em estreita conexão com a rejeição à sátira pura e simples está o recuo da visão

unicamente tragicizante e sua aglutinação com a ótica grotesca. “Do declínio da visão

tragicizante unívoca resultou a morte do “herói” e o aparecimento de anti-heróis como

Gregor Samsa, Joseph K. (A Metamorfose, O Processo), Leopold Blomm (Ulisses), ou Ulrich

de O Homem sem Qualidades, de Musil187.”

Mas a arte moderna também é jogo quanto à forma, porque é resolutamente

experimentalista. O pleno experimentalismo é uma conduta reservada ao ânimo lúdico dos

modernos. Só com o advento da arte moderna ocorre a dessacralização da forma que

possibilita o jogo das linguagens experimentais. “O fundamento dessa dessacralização é

conhecido: “é o fim da obra-fetiche. A produção artística transfere as virtudes da “obra” – os

valores do “bem feito”, do bom “acabamento”, da forma “cinzelada”, etc. para o domínio das

ideologias em eclipse.

Poucos como Beckett incorporaram à sua obra esse jogo de dessacralização. O

“horizonte laico” percorrido por seu teatro e prosa aposta, sem concessões, em uma atitude

regressiva188tanto no plano da forma quanto no do conteúdo, que leva às últimas

consequênciasuma estética da banalidade, na qual o sublime,se não é definitivamente

banido, passa por um radical processo de reelaboração. No plano formal, fugindo do

espectro de Joyce189, a quem considerava uma espécie de pai literário, Beckett optou por

uma estética do menos, por uma escrita depauperada que investia cada vez mais em um

empobrecimento da linguagem em contraponto à exuberância da escrita joyceana. Essa

admiração ao conterrâneo determinou em certa medida a escolha em escrever parte de sua

obra em francês: para Beckett, em um idioma estrangeiro, ele poderia alcançar seu objetivo

187 Idem. 188 O Work in regress, como ele mesmo chamou, em contraponto ao work in progress de Joyce. 189 Em entrevista, Beckett afirmou certa vez: “Quanto a Joyce, a diferença é que ele é supremo manipulador do material – talvez o maior. Fazia as palavras trabalharem ao máximo. Não há uma sílaba que seja supérflua. Numa obra como a minha, não sou senhor do meu material. Quanto mais Joyce sabia, mais podia. Ele tendia para a onisciência e a onipotência como artista. Eu lido com a impotência, com a ignorância. (...)” Apud: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: osilênciopossível. São Paulo: Ateliê Editorial, p.187. Algumas Entrevistas. Uma entrevista com Beckett – Israel Shenker no New York Times (5.5.56, 11,1,3)

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de “escrever mal".A língua francesaemprestaria à sua literatura uma forma mais despojada,

tornando-a menos susceptível aosvícios de estilo de que estariaimpregnada a língua

materna.Ao mesmo tempo, tornaria o princípio de composição de sua escrita, pautado na

vulnerabilidade, mais evidente. “É mais fácil escrever sem estilo em francês190”, disse

Beckett, certa vez.

No que diz respeito ao conteúdo, Beckett operou uma dessacralização dos temas, que

transcende à paródia, pois não se restringe à mera sátira, à simplificadora oposição

deliberada aos temas. Agamben191 nos fala sobre esse tipo de deslocamento:“Profanar

significa abrir possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação,

ou melhor, faz dela um uso particular”. A passagem do sagrado ao profano pode acontecer

também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente com o

sagrado. Trata-se do jogo.

Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim a “profanação” do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumados a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos. É comum, tanto nesses casos de profanação do sagrado, a passagem de uma religio, que já é percebida como falsa ou opressora, para a negligência como vera religio. E essa não significa descuido (nenhuma atenção resiste ao confronto com a da criança que brinca), mas uma nova dimensão do uso que crianças e filósofos conferem à humanidade. (AGAMBEN, 2007, p.07).

A poética da cena de Beckett brinca prontamente com toda a tradição judaico-cristã. A

todo o momento são mencionados elementos que fazem parte dessa herança, porém

Beckett o faz de forma completamente descomprometida com o contexto em que foram

190 Cf. SOUZA, Ana Helena. A tradução como outro original. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p.121. 191AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: 2007, p.06.

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enunciados em primeira instância. Em uma ocasião192 o autor fora perguntado a respeito do

uso reincidente de elementos do cristianismo em sua obra: "Cristianismo" - disse a alguém

que o inquirira a respeito"é uma mitologia que conheço, então, naturalmente, irei usá-la193".

Em outras palavras, eleestá interessado em mitologias para uso próprio no sentido de

apropriação. De maneira que os elementos dos quais dispõe serão redimensionados em um

novo jogo,que promoverá deslocamentos e distorções de matrizes e sistemas. Como ele

disse para outro entrevistador: "Eu não estou interessado em nenhum sistema. Eu não

posso ver qualquer traço de sistema em nenhum lugar."194

Por seu turno, Ruby Cohn195, crítica literária americana, é enfática nanecessidade de

uma contextualização cultural para um completo entendimento do drama beckettiano.Porém,

a base de sua leitura é de que a obra de Beckett é a“última vala teatral” contra o colapso

dos valores da civilização ocidental. O processo de demolição para alcançar tal efeito se dá

na implosão da forma teatral em que se baseava a tríade aristótelica – ação, tempo,

espaço,considerada fundamental para a composição da cena até então.

Jacques Ranciére196, em sua obra A partilha do sensível, chama-nos a atenção com uma

interessante assertiva: “O real precisa ser ficcionalizado para ser pensado”. Em sua

perspectiva, “escrever a história e escrever histórias pertencem ao mesmo regime de

verdade”. O que comunica a frágil experiência dos personagens de Beckett?O tom é trágico,

o cenário, assustador, e poderíamos chamar de otimista a insistência das personagens em

persistirem naquele espaço. Vladimir e Estragon não estão propriamente regozijantes;

Pozzo e Lucky também estão descontentes por estarem ali; estes quatro seres vão e

retornam neste espaço aprisionado, pois eles falam e esquecem-se do que acabaram de

dizer, falam e suportam, fazendo gestos para sentirem-se vivos, e insinuam, de alguma 192 FLETCHER, John. A Faber Critical Guide: Samuel Beckett. London:Faber and Faber Limited, 2000, p. 49. 193 Idem. 194 Idem. 195 BOXALL, Peter. Samuel Beckett: Waiting for Godot/Endgame. A reader’s guide to essencial criticism. New York: Palgrave Macmillan, 2013, p.83. 196 RANCIÈRE, Jacques.A partilha do sensível. Ed.34, 2005, p. 58.

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maneira, que tudo é inútil. Mas eles não estão tristes. Como observou Ludovic Janvier197 “A

espera de Godot não é o inferno, é um lugar neutro, e há até mesmo certa felicidade no

mais negro de seu abandono, no que deveria ser sentido como escuro, mas que é apenas a

totalidade da condição humana”.

Freud, em O Mal Estar na Civilização, ao analisar a sociedade ocidental,chegou à

conclusão de que o programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é

inexequível em virtude das renúncias que somos obrigados a fazer para a manutenção dos

principais elementos reguladores daquilo a que chamam de civilização.Nesse sentido, a

felicidade deve estar subordinada à disciplina, ao sistema estabelecido da lei e da ordem. O

sacrifício metódico da libido, a sua sujeição rigidamente imposta às atividades e expressões

sociais úteis são os pilares da cultura moderna.Em sua teoria, o princípio de realidade

sacrifica o princípio do prazer, em prol do que se chamou de progresso, na civilização

ocidental.

A questão da finalidade da vida humana já foi posta inúmeras vezes. Jamais encontrou resposta satisfatória, e talvez não a tenha sequer. Muitos dos que a puseram acrescentaram: se a vida não tiver finalidade, perderá qualquer valor. Mas esta ameaça nada altera. Parece, isto sim, que temos o direito de rejeitar a questão. (...) Novamente, apenas a religião sabe responder à questão sobre a finalidade da vida. Dificilmente erramos, ao concluir que a ideia de uma finalidade na vida existe em função do sistema religioso. (FREUD, 2010, p.29)

De fato, a obra Esperando Godot pode ser lida como testemunha de um momento

histórico em que agoniza, frente às instituições, a ideia de sujeito. As duplas Estragon-

Vladimir, Pozzo-Lucky são retratos fiéis dessa decadência, pois é claro, a qualquer um que

leia a peça ou a assista, que os clowns de Beckett abdicaram de um dos principais preceitos

da civilização: serem felizes. Antes, são caracteres para os quais a vida não possui qualquer

finalidade específica, além de esperar Godot. A crise da ação é sintomática; ela reverbera a

crise do sujeito, nas fissuras do eu e de sua capacidade de desejar. Sem funcionar como

bengala metafísica, os temas pertencentes ao imaginário religioso198 aparecem reduzidos a

197JANVIER, Ludovic. Cyclical Dramarturgy. Apud: COHN, Ruby. (Org.)Casebook on Waiting for Godot. New York: Grove Press, 1967, p.170. 198Para Freud, a religião estorva esse jogo de escolha e adaptação, ao impor igualmente a todos o seu caminho para conseguir a felicidade e guardar-se do sofrimento. Sua técnica consiste em

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simples substrato material para a manutenção da conversação entre os personagens. Em

seus jogos verbais, ao se reportarem à mitologia judaico-cristã,rechaçam quaisquer

possibilidades de compreensibilidade do mundoque parta de seus compêndios.

Em uma de suas obras mais influentes, Samuel Beckett: The Comic Gamut199, Cohn

realiza uma análise rigorosamente detalhada e esclarecedora da maneira em que os

dispositivos cômicos foram empregados por Beckett em todo o conjunto de sua obra. O

tema dominante desta leitura é que o humor de Beckett reflete criticamente sobre a morte de

uma civilização que, no entanto, continua a informar criativamente a imaginação

contemporânea. A obra de Beckett representa, acima de tudo, um mundo que tem sido

desertado pelos valores éticos, morais e culturais que são utilizados para sustentá-lo -"a

ação dramática apresenta a morte do estoque de adereços da civilização ocidental - coesão

familiar, devoção filial, amor parental e conjugal, fé em Deus, conhecimento empírico e

criação artística.”Sua leiturademonstra até que ponto o drama beckettiano é absolutamente

cheio de referências a uma empresa degradada e empobrecida, que é tradição clássica

ocidental. Para Cohn, Esperando Godot, apresenta os ecos bíblicos como ecos

zombeteiros, “provavelmente porque o cristianismo (tal qual o amor, outro grande alvo de

Beckett) parecia prometer tanto para o homem”200.

No teatro de Beckett, este comentário irônico sobre o colapso de nossas bases de apoio

se estende ao trabalho artístico, pois, como dizia Aristóteles, na Poética, a comédia

apresenta caracteres pouco nobres, que não são dignos de admiração. Assim, até mesmo

rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a imagem do mundo real, o que tem por pressuposto a intimidação da inteligência. “A este preço, pela veemente fixação do infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa, a religião consegue poupar a muitos homens a neurose individual. Mas pouco mais que isso. Quando o crente se vê obrigado a falar “dos inescrutáveis desígnos” do Senhor, está admitindo que restou, como última possibilidade de consolo e fonte de prazer no sofrimento, apenas a submissão incondicional. E, se está disposto a isso, provavelmente poderia ter poupado o rodeio.” FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferâncias introdutórias à psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.42. 199 COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut.New Jersey: Rutgers University Press, 1962. 200 Cf. Ruby Cohn in: BOXALL, Peter. Samuel Beckett: Waiting for Godot/Endgame. A reader’s guide to essencial criticism.New York: Palgrave Macmillan, 2013, p.83.

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os atores, ao interpretarem os farrapos humanos, que são as criaturas beckettianas, são

convidados a se retirarem de sua zona de conforto; as ações elevadas, próprias dos

personagens trágicos, são substituídas por gestos cômicos, destituídos de qualquer

nobreza.Além de um abalo sistemático, digamos assim, nos mecanismos de sublimação e

de proteção do ego - que, para um ator que se proponha a fazer uma personagem

beckettiana, podem se mostrar, ao longo do processo, sensivelmente fragilizados. Suas

peças, segundo Cohn, anunciam oréquiemda lógica e da literatura. “Evocativa de ambos os

afetos, compaixão e derrisão, os vagabundos de Beckett nos apresentam uma imagem de

nós mesmos.201”

Cohn demonstra que as alusões bíblicas que aparecem com reincidência em Esperando

Godot encontram-se completamente distorcidas do contexto em que foram enunciadas. A

parábola dos dois ladrões, por exemplo, extraída do Evangelho de São Lucas, aparece mais

como um paradoxo que intensifica a perplexidade diante da existência do queuma narrativa

da qual se possa retirar algum sentido elucidativo da vida humana. O episódio da peça

sugere que a existência é baseada em um senso de oportunidade,e, por extensão, a vida

humana é baseada em mero acaso. Vladimir pergunta a Estragon se ele já lera a Bíblia.

Estragon: A Bíblia...? (Pensa) Devo ter passado os olhos.

Vladimir: Lembra dos Evangelhos? Estragon: Lembro dos mapas da Terra Santa. Coloridos. Bem bonitos. O mar Morto de um azul bem claro. Dava sede só de olhar... (...)

Vladimir: Onde é que eu estava? E seu pé, que tal? Estragon: Inchado. Vladimir: Ah, é, os dois ladrões. Você lembra da história? Estragon: Não. Vladimir: Quer que eu conte? Estragon: Não.

Vladimir: Ajuda a passar o tempo. (Pausa) Dois ladrões,crucificados lado a lado com o nosso Salvador. Um deles... Estragon: Nosso o quê?(BECKETT, 2006, p.24.)

Vladimir tenta entender a parábola e solicita que Estragon atenda às suas réplicas para

que o assunto prossiga. Estragon, contudo, lhe dá somente respostas evasivas. Resgata

reminiscências de um suposto passado amoroso, fala dos pés que lhe doem, age com 201 Idem.

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alheamento às referências bíblicas e às menções de elementos do imaginário cristão.

Vladimir,no entanto, não se faz de rogado: cita os quatro evangelistas, e busca entender o

por quê de só dois terem mencionado o episódio dos ladrões, sendo que apenas um deles,

São Lucas, garante que um dos ladrões fora salvo. A salvação seria determinada pelo acaso

também? De acordo com o Evangelho, os discípulos de Jesus estavam presentes durante a

sua crucificação e assistiram um, dos dois ladrões que foram crucificados ao lado de Jesus,

ser salvo. Todos os quatro discípulos estavam presentes, mas apenas dois deles afirmam

que algo fora do comum aconteceu,sendo que,somente um delesdará a versão de que de

fato houve a absolvição.

Com efeito, é realmente difícil imaginar como, em uma situação limite como aaquela na

qual se encontravam Cristo e os ladrões, fosse possível agir de maneira diferente àquela do

larápio, que resolvera arrepender-se dos pecados ali mesmo e fora absolvido por isso. Por

outro lado, o desespero do ladrão que não foi salvo, também é compreensível: como

regatear estando pregado numa cruz?

Vladimir: Como é possível que, dos quatro evangelistas, só um fale em ladrão salvo? Todos quatro estavam lá – ou por perto – e apenas um fala em ladrão salvo. (Pausa),Vamos lá, Gogô, minha deixa, uma vez em mil. (BECKETT, 2006, p.24.)

Além das relações intertextuais mais explícitas, há também evocações mais veladas à

questões concernentes ao universo religioso. Vivian Mercier202faz uma analogia à espera de

Estragon e Vladimir ao Purgatório. Para ele, esse é um outro conceito teológico queem

Beckett tornou-se extremamente útil para fins estruturais.O crítico afirma que, embora o

assunto não fizesse parte da tradição protestante na qual ele cresceu, é bem possível que a

atmosfera lhe tenha tomado a imaginação a partir da leitura de Dante, por quem o autor

tinha grande admiração. E não deixa de ser alusiva a espera de Estragon e Vladimir à

espera de Jó, com a não insignificante diferença de que Jó, apesar de todos os sofrimentos

que lhe foram infrigidos, gozava da interlocução divina, enquanto aos dois clochards de

Beckett resta apenas o silêncio do absoluto.

202MERCIER, Vivian. Beckett/Beckett. New York: Oxford University Press, 1977, p.136.

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Mas há outras referências mais diretas. Em outra ocasião, em mais um exercício de

conversação para “passar o tempo”, tem-se,mais uma vez, uma atitude derrisória em

relação ao imaginário judaico-cristão.Ao criar um deussem faltas, onipresente e onisciente,

cujas feições foram forjadas à imagem e semelhança dos seres humanos, a teologia

ocidental revelou sua inaptidão para a modéstia:

Vladimir: Mas você não pode andar descalço. Estragon: Jesus andava. Vladimir: Jesus! Olha só o que você está dizendo! Não vai querer se comparar a ele? Estragon: A vida toda me comparei. Vladimir: Mas por lá fazia calor! Não chovia! Estragon: É. E crucificaram rápido.Silêncio. (BECKETT, 2006, p.24.)

O sofrimento que se arrasta e desconhece sua causa é mais intenso que o sofrimento

que é rapidamente extirpado.No Ato I, quando Pozzo e Lucky entram em cena e Estragon o

toma por Godot. Após alguma confusão, em que Vladimir e Estragon distraem-se com jogos

verbais sobre a origem do desconhecido, Pozzo, que julga-se poderoso e dono daquelas

terras, ameaça Vladimir e Estragon, por esses relutarem em reconhecê-lo e legimarem de

pronto sua autoridade, irritando-o, com suas réplicas e contra-réplicas.

Estragon: Não somos daqui, meu senhor.

Pozzo(estacando): Mas ainda assim, são seres humanos. (Coloca os óculos)Até onde se vê, pelo menos. (Tira os óculos) Da mesma espécie que eu. (Explode num riso aberto) Da mesma imagem que Pozzo. Feitos à imagem de Deus. (BECKETT, 2006, p.24.)

Esse primeiro gesto de identificação, no qual Pozzo equipara-se a Deus para, em

seguida, comparar-se a Vladimir e Estragon, estabelece, já em princípio, uma hierarquia na

sua intenção de aproximação com o modelo divino. Porém, depois de conseguir a adesão

de Didi e Gogô como interlocutores, Pozzo diminui ainda mais a importância dos dois em

contraponto à sua própria figura: Pozzo:“Vejam vocês, caríssimos, não posso passar tanto

tempo sem a companhia de meus semelhantes (observa seus semelhantes), mesmo

quando a semelhança é um tanto imperfeita.” Quando, porém, Vladimir ameça ir embora,

Pozzo tenta alcançar-lhe a atenção, anunciando um número de circo. Ao pedir que Lucky

pegue a banqueta, Pozzo blefa mais alto : “Ele não consegue suportar a minha presença.

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Talvez eu não seja particularmente humano, mas isso é lá motivo?” Argumenta para que

fiquem, falando sobre os perigos da noite, valendo-se da possibilidade da chegada de

Godot... Quando finalmente consegue por um átimo que o escutem, dada a curiosidade

despertada em relação à figura de Lucky, Pozzo se volta a sua plateia recém formada com

uma série de clichês, apesar do alheamento de ambos às suas falas:

Estragon:Por que ele não põe a bagagem no chão? Vladimir:Também eu ficaria feliz em conhcê-lo. Também eu ficaria feliz em conhecê-lo.Quanto mais gente conheço, mais feliz eu fico. Até da maishumilde dascriaturasnós nos despedimos mais sábios, mais ricos, mais seguros de nossas bençãos. Até vocês...(encara-os atentamente, primeiro um, depois o outro, a fim de que ambos se percebam visados) até vocês, quem sabe, me acrescentarão alguma coisa. Estagon: Por que ele não põe a bagagem no chão?(BECKETT, 2006, p.24.)

Quando, no ato II, Pozzo novamente irrompe a cena, recomeça o jogo sobre seu nome,

pois Estragon não consegue reconhecê-lo. Nesse episódio é Valdimir que mostra-se

entediado em relação à retomada do mesmo mote, insinuando que a discussão em torno de

Pozzo e suas inclinações metafísicas acerca de seu lugar no mundo já não interessam

mais.

Vladimir: Estou dizendo que se chama Pozzo. Estragon:É o que veremos. Deixa eu ver. (Pensa) Abel! Abel! Pozzo: Aqui. Vladimir: Estou ficando cheio desse tema. Estragon: Talvez o outro se chame Caim. (Chama) Caim! Caim! Pozzo: Aqui. Estragon: A humanidade inteira!(Silêncio)Olhe aquela nuvenzinha. (BECKETT, 2006, p.169-170.)

Para Esslin203, o episódio em que são citados Caim e Abel também aparece como

ensejo para ironizar a lógica divina na elaboração de seus juízos. “Também ali graça do

Senhor caiu sobre um e não sobre o outro sem qualquer explicação racional”. De fato,

Beckett parece insinuar, que a “humanidade inteira” estaria a mercê de um julgamento

aleatório, caso os preceitos cristãos fossem realmente válidos. Com efeito, não é apenas a

vontade divina que padece da ausência de parâmetros: “O próprioGodot é imprevisível na

outorga de bondade ou de punição”. O menino, por exemplo, que aparece como seu

203ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, p.40.

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mensageiro, é pastor de cabras, e Godot trata-o bem. Mas o irmão dele, que é pastor de

ovelhas, é espancado por Godot.

Cohn204citavários outros exemplos nos quais a tradição clássica é espicaçada pela

mordaz ironia de Beckett. O panteão grego não é poupado. Pozzo se refere ao Atlas e Pan.

Estragon, cansado de suportar Pozzo, informa ao tirano cego que ele e seu amigo não são

cariátides, colunas gregas com forma de estátuas de mulheres que sustentavam grande

peso.

Assim, fiel ao hábito, Beckett zomba de toda a tradição clássico-cristã na peça. Quando

Pozzo retorna cego, Vladimir parece fazer uma alusão velada a Tirésias: “Pozzo: Pare de

me interrogar. Os cegos não têm noção do tempo. (Pausa) As coisas do tempo eles não

veem. Vladimir: Veja só! Jurava que fosse o contrário.” Temos, nessa passagem, a

demolição de mais um mito.

No mundo grego, Tirésias205era aquele que, com seus dons divinatórios, seria capaz de

dominar o tempo e ser portador de uma verdade cósmica.Também Édipo, ao final da sua

jornada em Colono, alcançará a sabedoria e a paz quando já não vê mais com os olhos dos

homens. Na terra de Beckett, porém, os mitos antigos caíram por terra.

4. TRAGICÓMEDIA, COMITRAGÉDIA

Nada é mais engraçado que a infelicidade.

(Nell, em Fim de Partida206)

14.1 Esperando Godot: Gêneros em Jogo

204COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutgers University Press, 1962, p. 219. 205 O mais significativo profeta do mito grego, possivelmente é o profeta Tirésias. De acordo com Junito Brandão, “porque era cego, possuía o dom da mantéia, da adivinhação. Era um vates, um profeta, dotado do vaticinium, do poder da predição”. IN: BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega, vol.I. Vozes: Petrópolis, 1994, p.175. 206BECKETT, Samuel.Fim de Partida. Trad. Fábio de Souza Andrade. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2001, p. 62.

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O aspecto grotesco do teatro de Beckett, desde cedo chamará atenção da crítica.A

peça, que já foi chamada de farsa metafísica, estabelece uma oscilação permanente entre o

trágico e o burlesco, o físico e o espiritual.É certo que as peças de Beckettnão se ocupavam

de temas pertencentes ao tradicional repertório do teatro de costumes ou do drama

convencional. Ao contrário – nos diz Jan Kott,“elas engendram, em seu bojo, temas

concernentes aos problemas, conflitos e temas da tragédia”. O grotesco é a antiga tragédia

com novos matizes, já que sua forma deve incorporar também o ridículo e o patético da

condição humana.

Entretanto, se, em sua forma, o conteúdo trágico da cena beckettiana não repete a

forma da tragédia em sua realização, veremos reelaborada,por meio de procedimentos de

linguagem e reestruturação, diversos temas comuns ao gênero.

A situação trágica transforma-se em grotesca quando as duas alternativas contraditórias,

em que uma decisão é necessária, são absurdas, inadequadas ou comprometedoras. “O

herói deve jogar, mesmo se não existe jogo207”. Qualquer solução é prejudicial, mas ele não

pode desistir do jogo, pois isso poderia se configurar em uma solução, mas não seria uma

solução satisfatória. A partir dessa premissa, segundo Kott,“certamente seria possível

apresentar a tragédia de Édipo como um problema da teoria dos jogos”.

Decerto poderíamos concordar com isso no caso do príncipede Tebas, pois,em princípio,

o jogo é justo, pertence à categoria do agôn,já que, no início da partida, o jogador possui as

mesmas chances de ganhar e perder,não conta com a intervenção dos deuses e pode jogar

a partir de regras pré-estabelecidas. Porém, no desenrolar dos eventos, o jogo modifica-se

e,aofim,é o destino que se revelacomo o verdadeiro adversário de Édipo.

Édipo fora advertido pelos deuses sobre sua sina de assassinar o pai e desposar a mãe.

O herói possui livre-arbítrio, logo, os deuses não intervêm, apenas observam. “Édipo

épunido pelos deuses de forma justa, já que cometeu um crime; queria, mas não escapou

207 KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.132.

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do fatum, não havia como escapar.” 208 Se Édipo se entregasse à imprevisibilidade de alea,

se se esquivasse à ação, provavelmente não encontraria tantos infortúnios.

Mas Édipo é o herói trágico por excelência e precisa perder a visão do mundo para, em

sua trajetória, encontrar o terceiro olho, a sabedoria na cegueira, na ignorância. Na

escuridão, ele deixa quealea o tome, quando então já não se considera senhor de nada;

liberta-se de agôn para deixar o destino guiá-lo. Arrancar os olhos é um ato de negação do

saber e de se deixar tomar pela escuridão, que, no caso de Édipo, o levará à sabedoria.

A jornada do filho de Laio começa promissora. Ele conquista Tebas, tem a mão da

rainha, decifra o enigma da esfinge. Até aí é agôn, pautando o caminho do jogador, que

utiliza sua destreza, cálculo e habilidades para tornar-se senhor do mundo. Entretanto,

sobrevém o golpe: é este mesmo conhecimento adquirido, que garantira sua felicidade

durável e forte, que o levará, em sua busca, a encontrar-se com o responsável pela

desonra, desgraça e peste de seu povo. Édipo vivia pleno de fé em si mesmo, e podia se

considerar afortunado. Possuía a confiança de seus concidadãos para orientá-los, tinha

filhos, que perpetuariam sua linhagem. E eis que uma praga devasta a cidade, como um

sinal da ira dos deuses; cidadãos aterrorizados e as profecias não oferecem nenhum alento,

ao contrário, as coisas iriam ficar piores. Este sentimento de angústia incentivará Édipo por

uma busca radical pela verdade. E, aos poucos, peça por peça, desponta,terrível, a

verdade.

Édipo encontra em si mesmo o assassino do rei, é sua própria pessoa que se revela

como profanador da mãe. Tornando-se cego, atormentado pela morte de sua mãe-esposa,

abandonado por seu filho, liberto do poder e fora da cidade, segue a estrada amarga e longa

que leva a Colono para, lá, depois de ter expiado suas faltas, serremovido pelos deuses. “O

destino de Édipo que traça o destino da paixão que o homem tem pela verdade, é de uma

grandeza e de uma simplicidade monumental.” 209

208KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.132. 209 FINK, Eugen. Le jeu comme symbole du monde.Paris: Les Editions Minuit, 1960, p. 21.

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Antes de arrancar os olhos, Édipo acreditava em suas habilidades e artifícios,

colecionava triunfos de seu trabalho e inteligência. Não tomava a physis como algo

inapreensível, de enigmasindevassáveis: ele confiava plenamente em seus recursos, em

sua retidão e seu senso de justiça. Mas tal conhecimento é o suficiente para as coisas do

mundo?

A tragédia de Édipo é uma metáfora simbólica da vontade humana pela (por uma)

verdade. O verdadeiro adversário de Édipo era o destino, alea, aquilo que não se pode

prever. “É um desafio para o pensamento filosófico: a verdade joga, confunde com o jogo

total do mundo, é saber extático, carregada de sentidos matizados, nem sempre ordenáveis

por um princípio racional210.”

Tal princípio é análogo ao pensamento de Heráclito, que viu no logos o princípio e o fim

de tudo. Esse pressuposto foi o primeiro passo dialético consciente do pensamento do

ocidente, justamente por abarcar o caráter supralógico da dinâmica do real. O logos é uma

dinâmica de jogo; livre, sem leis nem regras fixas. A temporalidade do logos é o seu jogo.

Heráclito assim falou num Fragmento famoso, de nº 52 –“a temporalidade do logos é uma

criança deslocando pedrinhas para lá e para cá: a vida da criança. O jogo é a própria

dinâmica de estruturação da temporalidade.211”

Ao contrário de Édipo, Estragon e Vladimir se deixam levar pelos caprichos de alea. A

espera é um imperativo que nega aos personagens o poder de ação. Não podem ser como

o príncipe de Tebas; sequer se concebem como capazes de qualquer ato heróico e negam,

peremptoriamente, qualquer possibilidade de agirem, quaisquerque sejam as

circunstâncias.Talesgarçamento do personagem é ao mesmo tempo causa e conseqüência

da crise do drama. Antes vetor da ação, condutor da identificação e garantia da mimese, o

personagem, que se achava incumbido de funções múltiplas no drama clássico, torna-se

agora obscenamente exposto em sua fragilidade, que revela a fragilidade da própria cena

210Ibidem.p. 28. 211 PORTELLA, Eduardo. Fundamento da Investigação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, p.140.

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em plasmar o real.Num mundo desprovido de sentido, em que a realidade se oferece imersa

na mais completadesordem, o teatro vai voltar-se exatamente para sua representabilidade,

para sua teatralidade, denunciando-se como forma estética, como convenção artística.

Se a arte não pretende mais reproduzir o real, mas dar conta de sua caótica baderna,

resta-lhe pôr em questão as novas formas de relacionamento entre ficção e realidade. A

crise da mimese instala-se no cerne da escrita dramática, na qual opera uma

desestabilização, que induz a novas formas, particularmente, uma peça dentro da peça. “No

século XX,é de primeira ordem para os dramaturgos tornar o objeto artístico alvo de reflexão

crítica no momento mesmo de sua elaboração, procedimento ao qual se dá o nome

de metateatro212”.

No retorno de Pozzo e Lucky, no segundo ato, Pozzo torna-se cego e Lucky, mudo.

Pozzo não sabe como aconteceu, “um dia acordou cego como o destino213”A visão trágica e

a visão grotesca do mundo são compostasde elementos similares. Quer este mundo seja

trágico ou grotesco, a situação do homem nomundoparece ser imposta, compulsória,

necessária. A liberdade de escolha e de decisão é condicionada por esses fatores. Numa tal

situação imposta, “tanto o ator trágico quanto o ator grotesco são perdedores no combate

com o absoluto214”. A derrocada do herói trágico é a vitória do absoluto; o fracasso do ator

grotesco é a profanação e a ridicularização do absoluto, sua transformação num mecanismo

cego, uma espécie de autômato. “Em última instância, a tragédia é um julgamento sobre a

condição humana, uma medida do absoluto; o grotesco é a crítica do absoluto em nome de

uma experiência frágil215”. Por isso a tragédia conduz à catarse, enquanto o grotesco não

oferece nenhum remédio aos espectadores.

212 SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.106. 213 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.176. 214KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.131. 215KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.131.

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Beckett deliberadamente enfatizou a duração da espera, em detrimento da ação. A crise

da ação situa-se, por natureza, no cerne da crise do drama, uma vez que este “é

representação (...) de ação,216”logo, os fundamentos da mimese também encontram-se

abalados, uma vez que a relação arte e real se vê redimensionada a partir desse teatro que

se funda no imobilismo.

Para Aristóteles217, em conformidade com seus princípios filósoficos e, particularmente,

com sua teoria da mimese, o autor trágico é acima de tudo um “artífice da fábula”. Isso

significa que a sua preocupação principal é ocupar-se das ações que compõem a peça.

“Agenciá-las” de maneira a que essa fábula tenha um começo, um meio e um fim; de

maneira que ela comporte trama e desenlance - através da peripécia e (eventualmente)

reconhecimento – do conflito e assim permita a catarse.

Entretanto, como observou Gunter Anders218, Esperando Godot não corresponde à

forma ideal de fábula clássica. E a impossibilidade de que a peça se apresente sob a

fórmula da fábula tradicional é a sua própria fraqueza, seu próprio fracasso, que acaba

resultando em sua força. “Isso porque, se, por um lado, a peça sofre pela ausência de

coesão, é nessa mesma falta de coesão que irá manifestar-se sua matéria constitutiva.”

Assim, a temática de incomunicabilidade e deserção do mundo, comum aos escritores

seus contemporâneos, não seria o suficiente para tornar Beckett um autor do que se

chamou teatro do absurdo. Quanto à questão de gêneros, o mesmo acontece: o hibridismo

presente em Esperando Godot confereà peça um caráter heterogêneo, que lhe permite

vasculhar a complexidade da existência humana.Oscila, sem distinção, entre o patético e o

trágico, o sério e o jocoso, como nos antigos Dramas Satíricos da Antiguidade, quando

Dioniso, em sua pluralidade de máscaras, era partícipe da cena grega. Mas os dramas

satíricos possuíam um final feliz, como a tragicomédia,que é sua sucessora direta na história 216 SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do Drama Moderno Contemporâneo. São Paulo, Cosac Naify: 2012, p. 37. 217 Idem. 218ANDERS, Gunter. Being without time: On Beckett’s Play Waiting For Godot. In: ESSLIN, Martin.(org.)Samuel Beckett: A Collection Critical Essays.New Jersey: A Spectrum Book, 1965, 140-151.

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de uma poética da cena. Assim, para analisarmos com profundidade de que maneira se

opera a transgressão beckettiana dentro do quadro evolutivo do drama, teríamos de

repensar também o conceito de catarse.

4.2A suspensão da catarse: o drama sob suspeição

A catarse219 significa, na linguagem médica grega, purgação, purificação. Afirma

Aristóteles que a tragédia, pela compaixão e terror, provoca uma catarse restrita a tais

emoções. Desse modo, nãosão todas as paixões concernentes à alma humana que se

manifestam no ápice de uma apresentação teatral na visão do autor da Poética. O teatro

dramático de origem grega caracterizava-se por apoiar-se na identificação que se

estabelece entre público espectador e o problema apresentado na ação encenada. No teatro

grego ou aristotélico, o espectador, por empatia, sofre a tensão, chegando ao desfecho.

Quando a tensão se desfaz, o público alcança a catarse e libera as emoções.

A tragédia se apresenta como a primeira manifestação estruturada do teatro, tendo seu

apogeu no período ático, ao século V a.C. A tragédia grega encontrou na Arte Poética, de

Aristóteles, seu primeiro grande registro formal, que, a partir de então, parece ter sido

compreendido como uma espécie de “manual da tragédia220”.

Eis a definição aristotélica: “É, pois, a tragédia a imitação de uma ação séria e completa,

dotada de extensão, em linguagem condimentada para cada uma das partes, imitação que

se efetua por meio de atores e não mediante narrativa e que opera, graças ao terror e à

piedade, a purificação de tais emoções.”Ou seja: quando Aristóteles, na Poética, confere à

tragédia um estatuto de superioridade com relação à comédia, por exemplo,

desenvolveformas de normatividade segundo as quais as imitaçõespodem ser reconhecidas

como pertencendo propriamente a uma arte e apreciadas a partir de um conjunto de

pressupostos reconhecidos por seu método de comparação. Vinca características inerentes

219BRANDÃO, Junito. Teatro Grego: Origem e evolução. Ars Poética.São Paulo, 1992, 41.

220 Idem.

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para cada um dos gêneros,estabelecendo parâmetros de bom e ruim, preescrevendo

hierarquias e criando exigências para as diversas modalidades da arte.

Esperando Godotengendra, simultaneamente, elementos do trágico e do cômico, que

aparecem de forma paradoxal: procedimentos concernentes à forma das duas categorias

sãonegados no tema, mas afirmados na forma e vive-versa. Ardilosamente, torna-se uma

tarefa quase impossível encaixar a peça em uma categoria fixa, ou fixar algum recorte em

um único gênero. O próprio dramaturgo classificaria Esperando Godotcomo “uma

tragicomédia em dois atos.”

No que seria seguido, dentre outros, por Valerie Topsfield, que fala da existência vista como tragicomédia, da mistura do riso e tragédia em Beckett; por Helen Regueiro Elam, que fala também de uma sopreposição de máscaras da tragédia e da comédia, em tragédia feita de cenas cômicas, por Régis Salado, ao sublinhar sua inesgotável tragicomédia da descoincidência e da aproximação; por Ruby Cohn, que, invertendo os termos, trata da “comitragédia beckettiana, e da predominância, em sua obra, de um movimento que iria do risível, do irrisório, ao desastre, e não da desolução à salvação (como nas tragicomédias). (SÜSSEKIND, 2010, p.110).

Mas o desentendimento por parte dos estudiosos em torno do tema é de considerável

magnitude. Basta dizer que Adorno221, “por exemplo, desconsidera categoricamente a

classificação de tragicomédia em se tratando de Beckett. Para ele, as obras do dramaturgo

irlandês não poderiam passar nem por trágicas nem por cômicas”, pois a radicalidade das

peças de Beckett residiria justamente em “colocar em xeque tanto o gênero dramático como

forma de apresentação teatral quanto a possibilidade mesma de sobrevivência da

filosofia222.”

Süssekindaponta ainda, em seu ensaio “Beckett e o coro”, que Wolfgang

Iser,223“desconsideraa classificação de categorias mistas. Para Iser, nestas peças, tanto o

trágico como o cômico são anulados e não há estratégias estilísticas ou temáticas que

renovem aspectos de cada um dos gêneros.”

Sabe-se que Beckett exigia profunda fidelidade de seus atores à rubrica, tanto no que

dizia respeito à movimentação em cena, quanto à inflexão apontada nas falas. O ritmo

221SÜSSEKIND, Flora. Beckett e o coro. Folhetim 12. Teatro Pequeno Gesto, 2002, p.110. 222Idem. 223 Ibidem. p.111.

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emprestado às cenas, a coreografia minunciosa no jogo com os objetos trariam à cena uma

reconfiguração tanto do coro trágico quanto do cômico. Neste capítulo, tentaremos apontar

alguns procedimentos adotados na dramaturgia de Esperando Godot, que parecem

atualizar, no mundo moderno, certos elementos da tragédia e da comédiada antiguidade,

conferindo-lhes, nessa fusão, as formas distorcidas e pictórias do grotesco.

O monólogo de Lucky em Esperando Godot, os silêncios indicados pelas pausas,

renovam aspectos concernentes ao trágico e ao cômico no que tange a sua forma. Isso

porque também se inscrevem na dramaturgia de Beckett elementos da comédia ática.

Em Aristófanes, a parábase ocorria quando o coro momentaneamente se desligava das

açõese, sozinho em cena, transmitia ao público o apelo do dramaturgo, funcionando como

contraponto crítico da representação teatral. A recusa da ilusão dramática quese reveza à

compulsão de narrar histórias dos personagensconcilia aspectosdo coro das peças trágicas

e cômicas ao ímpeto de sobrevivência dos personagens por meio do jogo.

Walter Benjamin salienta que o sofrimento do herói é reverenciado pela comunidade,

que agradece por seu sacrifício em nome da harmonia geral. Daí a purgação de sentimentos

dolorosos, um dos conceitos fundamentais da teoria aristotélica, a catarse, para o efetivo

cumprimento do prazer trágico. Encenando as desgraças da aristocracia, a tragédia grega

apresenta seus heróis como homens melhores que as pessoas comuns. Distanciando o

espectador da condição do herói, além de afirmar o status quo, mantém uma relação de

respeito, para que o homem comum busque um modelo de comportamento.

O herói da tragédia ática traz consigo valores essenciais de uma civilização grega

em consolidação, configurando-se como um bode expiatório da pólis. Portanto, sua inscrição

não se dá a partir de um percurso individual, mas sim através de um compromisso com as

ordens divina e/ou coletiva. A trajetória deste herói trágico geralmente tem início na

eudaimonia (glória), que avança em direção à daimonia (desgraça), ou vice-versa.

Paradigmática, como vimos aqui,é a figura do rei tebano Édipo, em Édipo-Rei, de Sófocles,

que, do alto de sua realeza, sucumbe à desgraça, que não é necessariamente a morte, mas

o exílio proferido por um decreto de seu próprio punho, algo que se apresenta como ainda

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mais terrível que a morte.

Tal inversão na condição do herói, da eudaimonia à daimonia, ou seu contrário, no

caso de Édipo, pode ter origem em uma falha estrutural, e não ética ou moral, que lança ao

infortúnio um homem de boa reputação. E o próprio Aristóteles demonstra os limites ao

distinguir caráter e ação: “(...)a tragédia é uma representação, não de homens, mas de ação

e vida, de felicidade e infortúnio - e a felicidade e o infortúnio estão relacionados com a

ação.

“A finalidade da vida é um objeto que não é uma espécie de atividade, e sim de

qualidade; é, na realidade, o caráter que faz dos homens o que são, mas é em virtude de

suas ações que eles se tornam felizes ou infortunados.” Nesta perspectiva, a forma trágica

aristotélica coloca em foco o homem em conflito com o mundo em que se insere. Através de

suas ações, o herói incorre na falha estrutural, a hamartía, que não traz consigo nenhum

juízo de valor. Entretanto, leva a uma desmedida (hybris), que faz pender o fiel da balança

para a catástrofe, o que afeta as ordens divina e política, que, em conjunto com a individual,

compõem o universo estrutural do mundo grego.

A partir de sua hamartía, então, o herói ultrapassa seu métron (a medida de cada um).

Junito Brandão define hybris como o orgulho desmedido e a insolência excessiva. Nisso

Édipo, personagem de Sófocles, é o exemplo mais clássico. Seu orgulho já o levara a

cumprir os desígnios do oráculo: lutar com uma comitiva e assassinar a quase todos os seus

componentes, inclusive seu pai; decifrar o enigma da Esfinge e, consequentemente,

desposar Jocasta, a rainha de Tebas, sua mãe.

Quando a tragédia tem início, Édipo, ainda por orgulho de ser o filho da fortuna, quer

descobrir o assassino de Laio. Nenhum argumento o demove, nem mesmo a acusação de

Tirésias, representante da verdade oracular. O orgulho de Édipo, sua hybris, o levará à

condição de juiz e réu ao mesmo tempo, quando sua cegueira existencial será clareada

através da cegueira física.

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Segundo Lesky224, a palavra “trágico,” na modernidade, sem dúvida alguma,

desligou-se da forma artística com que a vemos vinculada no classicismo helênico e

converteu-se num adjetivo que serve para designar desatinos fatídicos de caráter bem

definido e, acima de tudo, com uma bem determinada dimensão de profundidade, sobre a

qual se cumpre indagar aqui. Mais ainda, com o adjetivo “trágico” designamos uma maneira

muito definida de ver o mundo, como, por exemplo, a de Soren Kierkegaard, para a qual

“nosso mundo está separado de Deus por um abismo intransponível225.”

Em Esperando Godot interpõem-se, enredam-se e duelam tons do trágico e cômico.

Beckett definiu-a como “uma tragicomédia em dois atos”, na tradução para o inglês.

Classificação contestada na crítica de Ruby Cohn, que cunhou o termo comitragédia para a

peça, já que, em sua concepção, esta não oferecia a mesma estrutura da tragicomédia

tradicional. De fato, a tragicomédia consiste em uma peça em que são combinadas as

qualidades da tragédia e da comédia, em geral sendo um espetáculo principalmente de

caráter trágico, que se encaminha para um final feliz.

Isso não acontece na estrutura circular de Esperando Godot: no desfecho da peça,

Estragon, com as calças caídas até os calcanhares, após nova tentativa de suicídio

frustrada, retoma, junto a seu companheiro de jornada, o mote da espera. Agora, é Vladimir

que diz: “Então, vamos embora226”. Mas permanecem, como estátuas vivas, à espera de

Godot.

Dada a natureza repetitiva em que se estrutura, insinua-se que a encenação não

terminou: quando se fecham as cortinas, nos despedimos dos dois clochards imóveis, numa

atmosfera que sugere que tudo recomeçará novamente. Privados de uma catarse, resta ao

espectador desorientado, o confronto com a patética condição dos personagens que se

estende a si próprio,matizada pelo desalento da espera sempre adiada, que permanece em 224LESKY, Albin. A tragédia grega.São Paulo: Perspectiva S.A, 2003, p. 37. 225BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, p.195. 226Ao final do primeiro ato, Estragon diz a mesma fala e os dois, conforme indica a rubrica em ambas as situações, agem da mesma maneira: “Não se mexem”. (BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução: Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, p.107.)

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suspensão.

À ampla discussão acerca da presença do trágico e do cômico no teatro Samuel

Beckett,sucede o desencontro de perspectivas de como essas categorias se evidenciam e

interagem no bojo de sua obra. Em nossa perspectiva, como já mencionamos nesse

trabalho, adotaremos posição similar à de Flora Süssekind, para quem a experiência se dá

“menos no assunto do que na forma227”, “realizando-se na própria forma, de uma

dramaturgiaconstruída a partir da tensão material do antigo drama, no confronto de

mecanismos distintos da linguagem, que ocorrem simultaneamente228”.

A oposição proposital torna indistinta a fronteira entre os gêneros, tanto o trágico como o

cômico comparecem em cena, não só por meio dos diálogos, mas também pelo manejo de

certos objetos, pelo gestual dos personagens e sua movimentação no palco, além do

cenário e iluminação229. Tal discernimento não opera apenas no curso de sua estrutura, que

desconstrói a ordem tradicional da tragicomédia clássica, mas na construção de cada

enunciado cujo caráter ambivalente, paradoxal, se impõe de forma intermitente, sendo-nos

quase impossível pinçar situações exclusivamente cômicas ou absolutamente trágicas.

Aqui, os jogos dos personagens encenam o luto, no qual o riso e a melancolia se

enredam indistintamente. As nuances são muitas, nesse encontro inusitado da bufonaria

rabelaisiana com o desalento melancólico de Burton230. E, para intensificar ainda mais a

perplexidade diante dessa disputa de humores, temos ainda uma escrita que abdica dos

excessos e de procedimentos retóricos usuais, primando pela economia, pelo uso

227 SÜSSEKIND, Flora. Beckett e o coro. Folhetim 12. Teatro Pequeno Gesto, 2002, p.121.

228 Idem. 229 Idem. 230 A biografia escrita por James Knowson, “Damned to Fame”, menciona que, já à época da escrita de Murphy, Beckett era leitor de Rabelais. Há, inclusive, alguns jogos de palavras em Murphy, que lembram, em muito, a escrita de Pantagruel. Robert Burton, com sua Anatomia da melancolia, também está entre os escritores lidos por Beckett no período que antecede a escrita de Godot, além de Rosseau, Thomas Mann, Balzac (por quem o autor irlandês não nutria grande simpatia), dentre outros. Beckett também freqüentava os filósofos: seu grande interesse pela filosofia pré-socrática, por Malebranche e pelos Ocasionalistas, tais como Arnould Geulincx, também é revelado pelo biógrafo. KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett. New York: Grove Press, 1996, p.206.

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concentrado de mínimos recursos, que joga também com as pausas e os silêncios das

cenas, inseridos nas rubricas.

As elaborações de Kierkegaard a respeito da crise da tragédia, nesse sentido, possuem

bastante atualidade,se nós a relacionarmos com a dificuldade que enfrentamos a respeito

de uma classificação de gêneros em Beckett. Kierkegaard231 enfatiza que o subjetivismo

moderno intensifica a deteriorização do sentido de uma ordem objetiva, metafisicamente

estável. “Nossa época”, diz Kierkegaard, “perdeu toda definição substancial da família, do

Estado, da geração; ela é forçada a abandonar inteiramente à sua sorte cada indivíduo, que

se torna, assim, no sentido mais exato da palavra, o seu próprio criador232.”

Dessa forma, o subjetivismo moderno torna a possibilidade do trágico extremamente

problemática, pois, ainda consoante com Kierkegaard, o indivíduo reduzido a si mesmo

resulta ridículo, objeto de riso. E acrescentemos ridículo e absurdo. Se o cômico e o trágico

habitavam diapasões distintos, agora eles passam a disputar um sítio comum. Mais do que

inspirar a sensação da grandeza humana ou da dimensão cósmica ou telúrica à qual

pertence o homem, essa nova percepção do real passa a sublinhar a ausência de sentido

da existência, ao mesmo tempo em que zomba do narcisismo que orienta essa busca.

Destarte, diante da variedade das formas que se confundem e se deformam, somos

conduzidos atomá-las como grotescas, dado que seja difícil uma dissociação dos gêneros,

amalgamados que estão na escrita beckettiana.

Vladimir: Tem razão. (Pausa) Vamos fazer a árvore, ajuda no equilíbrio. Vladimir faz a árvore, tremendo. Vladimir:(parando) Sua vez. Estragon faz a árvore, tremendo. Estragon:Você acha que Deus está vendo? Vladimir: Quem sabe fechando os olhos. Estragon fecha os olhos, tremendo mais forte. Estragon: (parando, a plenos pulmões) Deus tenha piedade de mim! Vladimir:(vexado) E de mim? Estragon:(como antes) De mim! De mim! Piedade! De mim! (BECKETT, 2006, p.154)

231BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.87-88. 232 Idem.

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Para Jan Kott233,“O grotesco é a antiga tragédia reescrita, em outro tom.” O paradoxo de

Maurice Regnault: "A ausência de tragédia em um mundo trágico dá à luz ao cômico" de

fato parece contemplar a ambiguidade da situação na qual se encontram Vladimir e

Estragon.Esperando Godot não pode ser caracterizada como tragédia, já que, em sua

estrutura, os heróis não obedecem à trajetória do herói trágico tradicional. Não há a clássica

passagem de um estado de eudamonia(glória) para daimonia(desgraça).

De fato, Estragon e Vladimir mencionam que já foram diferentes em outro tempo, “talvez

em 1900”:quando então eram “respeitáveis, isto é, dignos de consideração social. Mas não

há nenhum vestígio que dê indicações de suas identidades nesse suposto passado. Com

efeito, gestos trágicos não cabem mais no desempenho de seus papéis. “De mãos dadas,

pular do alto da torre Eiffel, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo.

Agora é tarde demais.Não nos deixariam nem subir.” Não háhybris,(orgulho),visto que os

personagens são vagabundos, distantes de qualquer princípio ético ou moral

correspondente ao conjunto de valores que regem a realidade empírica. Tampouco há

medida ou limite a ser ultrapassado e a catarse é suspensa. Então, qual a falha estrutural, a

harmathía (erro) que faria Estragon e Vladimir pertencentes ao universo do trágico? O delito,

por assim dizer, do herói estaria quase sempre associado à ação. Todavia, o que fazer com

uma peça cujo imperativo é a imobilidade? “O pior erro é ter nascido”, diria Beckett em seu

ensaio sobre Proust, tomando emprestado um fragmento da fala de Segismundo, em A vida

é sonho, de Calderón de La Barca. O mote, recorrente no Barroco espanhol, também

encontraria ressonâncias na filosofia de Shopenhauer, de quem Beckett fora um leitor

contumaz.

O trágico da tragédia grega agasalha o absurdo, mas nela nos é possível reconhecer os

motivos que incorreram na culpa trágica: o filho que desposa a mãe e mata o pai, a mãe que

mata os filhos, o filho que não pode ser enterrado em sua terra de origem, porque guerreou

contra o próprio pai. A tragédia grega está recheada de absurdos, mas a base desses

absurdos encontra-se em ações que parecem ameaçar de destruição os princípios da

233KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo, Cosac Naify, 2003, 128-129.

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ordem moral de nosso mundo. “No caso do grotesco, contudo, não se trata de ações que,

como tais, estejam isoladas, nem da destruição da ordem moral do universo:

primordialmente a questão é do fracasso da própria ordem física do mundo.” 234

Em um mundo em que os deuses desertaram e não há mais instâncias reguladoras

de um sentido, ogrotesco aparece diante de nós como o lugar, o advento de uma

impossibilidade. Mas esta impossibilidade passa a ser também, talvez, a primeira palavra

responsável para a expressão do impasse. A circunstância desoladora na qual se veem

Estragon e Vladimir resulta em falas e situações paradoxais, cujas perspectivas, jamais

coincidentes, encenam uma humanidade apartada, nunca mais possuidora de uma

apreensão harmoniosa do mundo.

O elemento seminal que caracterizava a tragédia eram as ações elevadas dos

heróis. No entanto, em Esperando Godot, os personagens não cumprem o programa do

herói trágico, a quem era reservado um périplo que culminava com um aprendizado final.

Antes, caminham na esfera do não-saber, agem como fantoches de um destino cego, que

os faz parecidos com personagens de uma farsa. Uma farsa ontológica, na qual o “ser” não

goza de nenhuma grandeza.O tema do jogo de marionete é, para Kayser, outro aspecto

importante do grotesco subjetivo: "a ênfase é colocada sobre a marioneta como a vítima de

uma força desumana, estranha, que governa sobre os homens, transformando-os em

marionetes”.

Segundo Bergson235, incontáveis são as cenas de comédia em que uma personagem

acredita estar falando e agindo livremente, personagem que, por conseguinte, conserva o

essencial da vida, mas que, observada sob outra perspectiva, aparece como simples

joguete nas mãos de outra, que com isso se diverte.

Do fantoche que a criança manobra com um cordão a Géronte e a Argante, manipulados por Scapin, há um espaço fácil de transpor. Tanto por instinto

234 KAISER, Wolfgang. O Grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.160. 235BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.57-58.

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natural quanto porque todos preferem – em imaginação ao menos – enganar a ser enganados, é do lado dos espertos que o espectador se põe. (BERGSON, 2001, p. 57-52)

No caso de Beckett, contudo, o espectador sente-se o tempo todo como presa dos

cordões: a ele não é dada a sensação de liberdade diante da cena que se apresenta em sua

frente, pois lhe é vedado o riso franco e o alívio da catarse.

Assim, toda a seriedade da vida,que deveria advir de nossa liberdade, encontra-se

subtraída. Os sentimentos que maturamos, as paixões que nutrimos, as ações por nós

deliberadas, assentadas, executadas, enfim o que vem de nós e o que é só nosso e que

confere à vida seu aspecto às vezes dramático e geralmente grave, é colocado em

suspeição pela cena beckettiana. O que torna tudo isso propriamente engraçado? “É preciso

imaginar que a liberdade aparente encobre uma trama de cordões, e que somos, nesse

mundo, como diz o poeta, “...pobres marionetes/cujo fio está nas mãos da

Necessidade.236”Portanto, não há cena real, séria, dramática mesmo, que a fantasia não

possa transformar em cômica evocando apenas essa imagem. Não há brincadeira para a

qual se abra campo mais fecundo, principalmente quando esta imagem é transferida ao

espectador, quando esse é convocado para a construção de sentido da cena.

Mas Beckett parece dar um passo a mais quando se trata da problematização desse

grotesco subjetivo. No universo beckettiano não são os deuses que, do alto do Olimpo,

manipulam os homens como bonecos de barro a partir de seus caprichos. Mesmo o homem,

herdeiro da tradição judaico-cristã,dotado de livre-arbítrio, que supostamente possui a

faculdade de decidir entre o bem e o mal, já perdeu a bússula que lhe permitia se guiar por

esses referenciais.

Vladimir e Estragon comportam-se como autômatos; eles não possuem ética no sentido

lato do termo, pois, grosso modo, a ética pressupõe a existência de um sujeito racional,

livre, responsável, que é capaz de se autodeterminar para a ação.Porém, o que gera

estranhamento na conduta dos dois é justamente o automatismo presente nos gestos de 236BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 57-58.

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ambos, que parece não respondera nenhuma elaboração prévia ou possuir algum caráter

reflexivo. Tais aspectos também se verificamno par Pozzo-Lucky, como no Ato I:

Pozzo: (...) O que preferem? Que ele dance? Que ele cante? Que ele recite? Que ele pense? Que ele... Estragon: Quem? Pozzo: Quem! Vocês sabem pensar, os dois, ou estou enganado? Vladimir: Ele pensa? Pozzo: Perfeitamente. Em voz alta. Pensava que era uma beleza, antigamente, podia-se passar horas ouvindo. Agora... (Estremece) Enfim, azar. E então, querem que ele pense alguma coisa para nós? Estragon: Preferia que ele dançasse, seria mais divertido. Pozzo: Não necessariamente. Estragon: Você não acha, Didi, que seria mais divertido? Vladimir: Gostaria de ouvi-lo pensando. Estragon: E se ele dançasse e depois pensasse? Se não for pedir demais. (...)Pozzo: Mas com certeza, nada mais fácil. Além do mais, é a ordem natural. (Riso breve)(BECKETT, 2006, p.78-79)

Dançar e pensar se equivalem. As duas ações são executadas de forma mecânica por

Lucky, são números que pertencem a um repertório que desempenham mal, como artistas

amadores que não dominam a técnica, ou desdenham dela, ao executarem seus

números,sem altas doses de entusiasmo e calor. Lucky é um ser humano, mas é também

fera amestrada, tratado bestialmente por Pozzo.Ele chora, dança, pensa, mas age

maquinalmente. Com efeito, ele é um “singular universal”, um substituto da humanidade

quando encarna sua vitalidade subtraída por uma ordem de valores que parasita e extingue

a pulsão de Vida.

Ele encarna o excesso inumano daquele que contém aprisionada em si a animalidade

represada e nos permite intuir, sombriamente, no tom maquinal e sofrido de suas falas e

gestos, a monstruosidade encerrada em seu ser. Lucky exibe todos os traços do

humano.Embora seja humano, contudo, não se assemelha a um ser humano;aparece

claramente como inumano.Sem dúvida que o adjetivo inumano indica um estado de

estranheza para consigo próprio; mas o acento cai na falta de concordância entre o que é

interno e o que é externo.Oscilando entre a fera e o autômato, ele só se torna humano

quando não mais se parece com o homem comum, ao encarnar um personagem que

escapou da colonização simbólica e está ali, diante dos espectadores como um morto-

vivo.Em um mundo sem natureza(somente uma árvore apresenta-se como resquício

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naquele pedaço de estrada), a animalidade transborda, justamente lá, onde o automatismo

avança sobre o homem.

Na realidade, em consonância com a cultura popular, a função do grotesco é libertar o

homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as ideias dominantes

sobre omundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre o seu caráter relativo e

limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério,

incondicional e peremptório. Mas historicamente as ideias de necessidade são sempre

relativas e versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo237, que estão na base do

grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e

intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim

disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. “Daí que uma certa

“carnavalização” da consciência precede e prepara sempre grandes transformações, mesmo

no domínio específico238”.

Sendo assim, otema do teatro de marionetes é outro aspecto importante do grotesco

subjetivo: a ênfase é dada ao boneco como vítima de uma força alienígena, desumana, que

governa sobre os homens, transformando-os em marionetes. Mas no caso de Beckett, os

títeres não são manipulados somente por forças estranhas: são acossados pelas linhas de

força e controle das instituições. Elas (as instituições) desapareceram e junto delas,

carregaram consigo a possibilidade de uma experiência autêntica, que é tateada agora por

esses dois autômatos que são Vladimir e Estragon, através de seus jogos.

Contudo, se por um lado, os caracteres se nos apresentam como subjetividades que

foram massacradas por esses valores que sustentam os princípios de civilização, por outro,

não deixa de pulsar, violentamente, nesses personagens, uma energia vital, aquela força

que foi represada pela manipulação e castração de seus desejos.

Desta forma, o tema do jogo de marionetes possui outra acepção na ficção beckettiana.

Talvez,mais próximaà reflexão proposta por Kleist. Pois, assim como no universo do escritor

237 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de FrançoisRabelais.São Paulo: Hucitec, 2010, p. 43. 238 Idem.

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irlandês, o mistério acerca da disjunção corpo/espírito, presente em seu ensaioSobre o

teatro de marionetes,é intensificado e oferece fendas de compreensão para o aspecto desse

grotesco subjetivo, que Esperando Godot encena.

Sabe-se que Beckett239 fora muito impressionado com a leitura do ensaio de Heinrich

von Kleist Sobre o teatro de marionetes. Tal admiraçãoevidenciou-se quando, em 1975, ele

ensaiava a peça televisivaGhost Triopara a BBC de Londres.Nessa peça, segundo as

recomendações de Beckett, a figura masculina deveria atuar como se fosse um

fantoche.Knowlson e Pilling240 nos dizem que, durante os ensaios paraGhost Trio, ao tentar

descrevera forma como os movimentos da peça deveriam ser minimamente executados

pelo ator Ronald Pickup, o autor de Godot se reportouao escrito de Kleist, dando especial

atenção a alguns pormenores do texto e alguns aspectos que lhe eram especialmente

caros.

A admiração do jovem narrador sobre a marioneta, cuja afetação torna o personagem

que conta a história "particularmente impressionado" com o relato que ouvira, estendeu-se a

Beckett. Há, portanto, dizem eles, correspondências sugestivas entre os dois autores.Na

verdade,Knowlson e Pilling241vão mais longe e afirmam que o ensaio de Kleist expressa

algumas das aspirações estéticas mais profundas de Beckett.Eles argumentamque a obra

deBeckettindicaque o movimentomaterial, irrestrito, sem as interrupções da autoconsciência,

é potencialmentetranscendente.

Kleist imaginou a marionete como sublime, que transcende não apenas os limites e

imperfeições do corpo humano, mas o peso da autoconsciência, que o homem cultivou ao

longo dos séculos e que impediu que ele atingisse tal graciosidade. Em sua narrativa, a

autoconsciência é vista como uma espécie de afetação que destrói o encanto natural e o

239KNOWLSON, J. Damned to fame: The life of Samuel Beckett. London: Bloomsbury, 1996, p.584-633. 240 BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 100. 241 Knowlson, James. Beckett and Kleist’sEssay ‘On the Marionette Theatre. In: KNOWLSON, James & Pilling, John. Frecoes of the Skull: The Later Prose and Drama of Samuel Beckett.London: John Calder, 1979, p. 277.

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charme do homem. “O homem é, portanto, uma criatura de forma permanente de equilíbrio.

Ele não tem unidade, harmonia, simetria e graça que caracteriza o boneco.242”

O objetivo de Beckett, em suas peças, era conseguir uma musicalidade do gesto tão

impressionante como a de voz. Seu argumento era “que a precisão e a economia iriam

produzir o máximo de graça.” Foi nesse aspecto que o argumento de Kleist foi usado como

base de seu drama. “Por que não pode o homem viver em estado de graça, dessa graça

que é o próprio da infância? Por que é a inocência proibida ao homem243?”

Lembremos que essa narrativa de Kleist, do século XIX, não se trata de um conto

tradicional, com enredo e personagens, mas de um inusitado diálogo entre o narrador e um

bailarino. Nem personagens nem o lugar possuem nome, apenas suas iniciais são

apresentadas e não sabemos de fato se os eventos narrados são verídicos ou simples

invenção do narrador. No começo, o seu tema parece estar no interesse que as marionetes

despertam no bailarino, que expressa seu fascínio pela graça inefável que os bonecos

trazem em seus movimentos. A controversa opinião apresentada pelo narrador é que aquela

graça sublime dos bonecos não estaria ao alcance dos próprios profissionais do balé, e, por

isso, o boneco era capaz de superar o corpo humano quando o assunto é dança. Ora,

enquanto a marioneta não possuía outra possibilidade senão seguir as leis mecânicas,

movimentando-se sempre de acordo com seu centro de gravidade, o homem é sempre

desviado desse centro pela “afetação”, “por algo que aparece, como o senhor sabe, quando

a alma encontra-se em qualquer outro ponto que não seja o centro da gravidade do

movimento244.”

Há, emSobre o teatro de marionetes,outro episódio relatado pelo narrador, cujo tema já

discutimos aqui: a impossibilidade da repetição exata de um gesto, situação ou sentimento,

de que se dera conta Constantino Constantinus, de Kierkegaard.

242KLEIST, Heirich von. Sobre o teatro de marionetes. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, p. 23. 243 BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 97-100. 244 KLEIST, Heinrich von. Sobre o teatro de marionetes. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, p.27.

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Na narrativa de Kleist tem-se uma história dentro da história. É evocada pelo narrador

como um episódio que lhe causara estranhamento, análogo àquele que experimentava, ao

ouvir a tese de seu interlocutor sobre a marioneta. Trata-se de uma passagem, na qual um

jovem adolescente, cheio de encantos, em seus aproximados 16anos,ainda não se

apercebera, até certo incidente que será relatado, de seu magnetismo e beleza. Ele se

banhava junto ao narrador e suas feições exibiam um encanto maravilhoso. Pois, enquanto

se secavam, o rapaz, de forma impressionante, repete com grande precisão, naturalidade

egraça, um gesto que ambos haviam visto em uma estátua em Paris. Ambos percebem o

feito simultaneamente, mas, quando o rapaz tentarepetir o gesto, não logra êxito. A partir

desse momento, por uma força estranha que nem ele nem o narrador conseguem

compreender, ele passa por um processo de descaracterização, no qual o fracasso de não

conseguir vivenciar novamente a graciosidade daquele gesto fará com que, paulatinamente,

o jovem perca todos os seus encantos, até não lhe restar nenhum resquício de beleza.

É a consciência do atributo que impede o jovem adolescente de repetir novamente

gestos e trejeitos que manifestem a força e autenticidade do primeiro movimento; e isso é

aterrador para aquele personagem. O preço desta transformação é irresgatável: consiste no

sacrifício da inocência e da beleza; a felicidade, a graça, dão lugar ao grotesco, e o passado

irrepetível determina a melancolia. “O comportamento pré-reflexivo cedeu o seu lugar à

reflexividade245”.

As marionetes são o símbolo do encanto que o homem tenta atingir na dança, mas que

lhe é vetado desde que comeu da árvore do conhecimento. Para o homem reconquistar

aquele encanto de que são capazes os bonecos, seria preciso voltar, nos diz o narrador, a

um estado de inocência anterior à reflexão, a algo que foi perdido inexoravelmente, a partir

do momento em que o homem experimentou o fruto da árvore do conhecimento:

Agora, meu caro amigo, disse ele, o senhor está de posse de tudo o que é necessário para me compreender. Vemos que, no mundo orgânico, à medida que a reflexão se torna mais obscura e mais fraca, a graça apresenta-se mais brilhante e magnífica. (...) Desse modo, eu disse um

245 BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 98.

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pouco distraído, teríamos de comer de novo da árvore do conhecimento, para voltarmos ao estado de inocência? Certamente, respondeu, esse é o último capítulo da história do mundo. (KLEIST, 2013, p.39)

O interesssante da história de Kleist é sua natureza laica: ele propõe, ao final, a

necessidade de se “dar a volta ao mundo”, para ver se encontramos, do outro lado, uma

entrada para o paraíso; a inocência perdida de quando se experimentou o fruto da árvore do

conhecimento.

Discordamos, portanto, de Knowlson e Pilling quanto à experiência transcendente. O

adiamento do ato de pensar, que está em Kleist e aparece em certa medida em Beckett, nos

parece remeter a uma instância pré-reflexiva na qual o pensamento ainda não descansa nos

braços reconciliadores da metafísica. Como o texto aponta, é uma viagem circular, em torno

do planeta terra, que proporcionará a compreensão do enigma.Não será, dessa perspectiva,

uma experiência transcendente que levará a um Céu redentor.

Assim também interpretamos essa descoberta, que insistentemente nos prenunciam os

pares autômatos de Beckett, Vladimir-Estragon, Pozzo-Lucky. Confiná-los nesse “beco sem

saída” não seria uma maneira de sugerir ao homem que ele deve despojar-se de toda a

falsa capa e ornamentação que o pensamento metafísico supõe? A questão é controversa e

não pretendemos respondê-la de forma precipitada aqui.

É evidente, porém, que seus personagens encenam a angústia da separação, da ruptura

entre homem e mundo e compartilham de um sonho melancólico que se sabe impossível,

desde que o homem fundou o seu culto à razão. Isto porque a graça, a beleza só são

compatíveis com o estado de inocência, só são realizáveis através da integração plena do

homem à Physis,natureza da qual o homem se afastou, quando o comportamento pré-

reflexivo cedeu lugar à razão instrumental.

Desse modo, o grotesco subjetivo, evocado por Beckett, encena o preço desta

transformação irresgatável, porém parece insinuar que esse limbo, no qual habitam seus

personagens, pode ser o ensejo para a compreensão de novo lugar e uma nova forma de

estar no mundo.

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Nesse caso, em nossa leitura, a mimicry ganha lugar de destaque. O fato de encarnarem

sucessivos papéis, de jogarem continuamente a partir da premissa do como se, permite que

o grotesco se instale, tornando possível uma experiência paradoxal, que acena para uma

nova possibilidade de ser.

Na cultura popular246, a máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações,

a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da

coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das

metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a

máscara encarna o princípio do jogo da vida, está baseada em uma peculiar interrelação da

realidade e da imagem, características das formas mais antigas dos ritos e dos espetáculos.

É na máscara,como observa Bakhtin,“que se revela com clareza a essência profunda do

grotesco”.

Segundo o teórico russo,247a máscara, no grotesco romântico, perde quase

completamente seu caráter regenerador e adquire um tom lúgubre. No entanto, mesmo no

grotesco romântico, a máscara conserva traços da sua indestrutível natureza popular e

carnavalesca248. Na vida cotidiana contemporânea, a máscara cria uma atmofera especial,

como se pertencesse a outro mundo. No grotesco romântico alemão, as marionetes

desempenham um papel muito importante. Esse motivo não é alheio, evidentemente, ao

grotesco popular. Assim,o motivo do grotesco da marioneteincorpora também o trágico no

romantismo, sem, contudo, desvencilhar-se completamente de seu caráter regenerador e

fundador249.

246BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de FrançoisRabelais.São Paulo: Hucitec, 2010, p. 35. 247 Ibidem. p. 35. 248Grifo nosso. 249Victor Hugo colocou o problema do grotesco de forma interessante, característica também do romantismo francês. O aspecto essencial do grotesco é a deformidade. A estética do grotesco é em grande parte a estética do disforme. Mas, segundo Bakhtin, Hugo enfraquece o valor autônomo do grotesco, considerando-o como meio de contraste para exaltação do sublime. Na acepção de Bakhtino grotesco e o sublime completam-se mutuamente. No entanto, ele destaca dois aspectos positivos do grotesco, tanto no romantismo alemão quanto no francês: em primeiro lugar, os

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Os ecos desse Romantismo estarão presentes no grotesco de Beckett: sua predileção

pela noite, a mescla de elementos heterogêneos da realidade, a crítica à ordem e aos

regimes habituais do mundo, a livre excentricidade das imagens e a alternância do riso e da

melancolia revelam algumas afinidades com elementos do grotesco romântico, que, amiúde,

parecem nos apontar para uma característica bem peculiar do mundo contemporâneo: a

crise do sujeito, que se evidencia na crise do personagem. Ou seja, eles não possuem mais

máscaras definidas, sua imagem no espelho será sempre esfumaçada, embaçada,

distorcida na medida em que os traços do grotesco se deixam esboçar.

4.3Rearranjos coraisna modernidade

Mesmo sem ser atriz nem pertencido ao teatro grego - uso uma máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se faça mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível. É, pois, menos perigoso escolher sozinho ser uma pessoa. Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é. (Clarice Lispector250)

No drama moderno e contemporâneo, a relação de um personagem com o outro se

torna mais rarefeita, mais fluida e instável. Se outrora cada personagem, cada lugar de

românticos procuraram as raízes populares do grotesco; em segundo lugar; não se limitaram a atribuir ao grotesco funções exclusivamente satíricas. “É preciso reconhecer que o Romantismo fez um descobrimento positivo, de considerável importância: o descobrimento do indivíduo subjetivo, profundo, íntimo, complexo e inesgotável. (...) Para convencer-se disso, basta comparar as análises racionalistas e exaustivas dos sentimentos internos feitas pelos clássicos e as imagens da vida íntima em Sterne e os românticos. A força artística e heurística do método grotesco sobressai de forma gritante.” Cf. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 38-39. 250 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p. 81.

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palavra constituía o personagem a partir do ato de enunciação, agora sua fala não se dirigirá

mais àquele personagem com o qual divide a cena, mas ao espectador. Ludovic Janvier251,

por exemplo, designa o personagem beckettiano como um “lugar-dizer”, já que, nas peças

do autor irlandês, o personagem, mais que dar respostas e réplicas ao seu congênere,

dirige-se a esse outro,a priori invisível e inexistente, que é o espectador. “Como escreveu

Bernard Dort, é o espectador moderno que se acha “em diálogo”; não mais os

personagens252”. Mesmo os personagens estão cindidos em conflito consigo; em seus

monodiálogos,a cisão é evidente.

Diante disso, fica difícil caracterizar esse texto teatral, no qual longos monólogos,

momentos de coralidade egestos, além do manuseio de objetos cênicos, cenário e

iluminação, não obedecem mais ao regime dramático tradicional. Já houve quem dissesse

que Beckett fora o último moderno e, ao lado de Artaud, inaugurara uma nova era do teatro-

o teatro pós-dramático, no qual não haveria mais a interioridade do drama, em que o palco

seria primordial e o texto não passaria de um “elemento entre os outros253”.

Neste trabalho, porém, a voltar a ceder à dialética do antigo e do novo – ou da

vanguarda oposta à tradição -, preferimos tentar apreender mais de perto esse trabalho

dereelaboração dos procedimentos cênicos, acreditando que a poética da cena beckettiana

está em contante diálogo com a tradição, recriando-na, de forma crítica e inventiva.

Flora Süssekind254, em artigo recente, chamou atenção para a tendência de rearranjos

corais na produção artística contemporânea. Segundo a ensaísta, “a forma coral promove o

cruzamento de falas, ruídos e gêneros, conectando-se a uma linguagem desestabilizadora

na literatura e nas artes em geral”. No teatro grego, tanto a comédia como a tragédia

possuíam no coro a possibilidade de encenação da multiplicidade de vozes que compunha a

comunidade.

251SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.136. 252 Idem. 253 Idem. 254 SÜSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados: um ensaio de Flora Süssekind. Rio de Janeiro: Jornal O Globo. Prosa e Verso, 21/09/2013.

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Qual era, porém, o papel do coro dentro da ação trágica? Difícil precisar. Segundo Junito

Brandão255, muitas têm sido as funções atribuídas ao coro: testemunha, confidente,

espectador ideal, conselheiro, associado na dor, juiz, intérprete lírico do poeta, eco da

sabedoria popular, traço-de-união entre público e os atores... Não há dúvida de que “todas

as funções” estão plenamente de acordo com o papel do coro na tragédia, mas todas elas

são generalizantes. Em Ésquilo e Sófocles o coro, atuando como intérprete do público e

participando ativamente da ação, é um verdadeiro ator, como de resto afirma Aristóteles

acerca de Sófocles.

O coro,256na tragédia grega, segundo Aristóteles, “também deveria ser considerado

como um dos atores; fazer parte do todo e participar da ação; não à maneira de Eurípedes,

mas como Sófocles”.Eurípedes é o primeiro a inovar nesse sentido, ao estender a uma

personagem funções que, para outros tragediográfos, eram circunscritas apenas ao coro -

procedimento que desagradou sobremaneira o autor daPoética, mas o torna novamente o

mais moderno entre os antigos, ao ensejar aquilo que chamamos nessa tese de parábase

permanente ou ironia estrutural.

Em Eurípedes, o coro pode ser classificado como um frequente porta-voz do poeta e

intensificador das impressões do momento. Como a estrutura coral tradicional muitas vezes

se divorciava da ação, Eurípedes tratou de criar um personagem que fazia também funções

outrora exclusivamente atribuídas ao coro, amalgamando num só personagem as funções

do coro e do ator. A ama, na Medeia de Eurípedes, por exemplo, funciona, sobretudo, como

um verdadeiro ator-confidente e não raro, como o inconsciente da protagonista.257

O teatro de Beckett, contudo, promove uma reinvenção desse expediente teatral com a

dissolução do coro258. Os personagens de Beckett, como já foi mencionado, não carregam

consigo atributos que lhes dê a qualidade de personagens, ao menos no sentido tradicional 255BRANDÃO, Junito. Teatro grego: origem e evolução. São Paulo: Ars Poética, 1992, p.52. 256Idem. 257 Idem. 258Em capítulo posterior (Capítulo V) falaremos com mais detalhes sobre a dissolução do coro trágico na encenação do luto, a partir da encenação com objetos fraturados que compõem a cena beckettiana.

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do termo. Reduzido, em Esperando Godot, aos pares de sobreviventes, Estragon-Vladimir,

Pozzo-Lucky, dois trapos de gente, que são a “humanidade inteira”, veremos em suas vozes

a expressão do phatos que simboliza o próprio phatos dos espectadores.

Estragon: Para não ouvir. Vladimir: Temos nossas razões. Estragon: Todas as vozes mortas. Vladimir: Um rumor de asas. Estragon: De folhas. Vladimir: De areia. Estragon: De folhas. Silêncio (BECKETT, 2006, p.120)

O trecho é um longo diálogo, no qual, a despeito de seu caráter eminentemente poético

e musical, vemos encenada a solidão desses dois personagens. Tal como refletem as

teorizações de Schlegel ou Hegel259, o coro pode refletir seja um sujeito dividido em várias

realidades irredutíveis, seja uma realidade exterior ao sujeito, mas por ele percebida como

plural. Essa evolução restitui paradoxalmente ao coro uma importância mítica considerável:

Nietzsche vê nele a possibilidade formal de transmissão de uma narrativa mítica das origens

comunitárias, e, sem nomeá-lo, Artaud o evocará. Portanto, convocar a forma coral nos dias

de hoje é situar historicamente a obra. No caso em questão, o discurso fragmentado dos

personagens, que mais parecem recortes de uma conversação, mostram, poeticamente, a

impossibilidade de uma narrativa plena que traduza uma experiência comum. São

lampejos,que incorporam uma visão trans-histórica da realidade, na qual todos os tempos

estão em diálogo e as lacunas encontram-se intransponíveis, impedindo uma compreensão

global dos eventos. Aqui, os farrapos e resíduos260 se apresentam como o fracasso da

259SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Coro/Coralidade. In:Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.61-62. 260 Benjamin, nas Passagens, fala sobre um método de trabalho que consiste em “montagem literária”. Ele diz: “Não tenho nada a dizer. Somente mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos e os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os.” Na tentativa de escapar do materialismo histórico vulgar, Benjamin apresenta seu método, que se afastará da noção de continuum da história, no qual um tempo homogêneo e vazio funciona como referência, para dar lugar a um tempo saturado de agoras.Articular o passado não significa conhecê-lo como ele foi, mas apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja em momentos de perigo. Onde o historicismo vê uma cadeia de acontecimentos, Benjamin vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína. O diálogo de Vladimir e Estragon encena essa realidade arruinada e sua estrutura fragmentada, com suas elipses e silêncios, encena poeticamente o

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empresa ocidental, que culminou com a dissolução do sujeito e a impossibilidade de

comunicação:

Vladimir: Falam todas ao mesmo tempo. Estragon: Cada uma consigo própria. Silêncio. Vladimir: Melhor, cochilam. Estragon: Murmuram. Vladimir: Sussuram. Estragon: Sussuram.

Silêncio. (BECKETT, 2006, p.121)

Na tradição clássica cabia ao coro marcar o ritmo da ação e dar corpo às vozes da

coletividade. Em Esperando Godot caberá aos jogos inacabados com as palavras e ao

manuseio de objetos residuais, a marcação do ritmo da peça. As “vozes mortas” evocadas

pelos dois vagabundos são a humanidade que desapareceu, que foi silenciada e agora

encontra-se representada por aquelas figuras errantes que estão ali no palco, como mortos-

vivos, encenando, por meio de seus jogos de conversação, a sua incompreensão diante da

situação em que se encontram:

Vladimir: E falam do quê? Estragon: Da vida que viveram. Vladimir: Não foi o bastante terem vivido. Estragon: Precisam falar. Vladimir: Não lhes basta estarem mortas. Estragon: Não é o bastante. (BECKETT, 2006, p.121)

O grotesco se evidencia assim plasmado na ironia, que permeia a encenação em forma

de jogo permanente, entre o riso e a melancolia. Na comédia grega, a parábase ocorria

quando o coro momentaneamente se desligava do contexto das ações e, sozinho em cena,

transmitia ao público o apelo do dramaturgo como um contraponto crítico das questões

relativas à representação teatral.

Se o interlúdio coral, na antiguidade, articulava a cesura ou bipartição estrutural do

drama cômico em um intervalo, quando, só então, instituía dentro da peça a metalinguagem

como contraponto crítico às ações; na modernidade, o dispositivo, reformulado, irá permear

resultado dessa desintegração.BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. De Irene Aron. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 502.

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toda a estrutura ficcional e não se prenderá mesmo a um gênero específico261. Em

Esperando Godot, por exemplo, não há uma ação que se desenrola em um momento

especial, em que o plano da realidade é colocado em xeque. Toda a peça se desenvolve

sob a égide do paradoxo irônico e sua capacidade corrosiva, derrisória, desestabilizadora de

um sentido último. A ironia, em Beckett, não é uma questão retórica, mas sim estrutural. Ela

é capaz de manter a ambiguidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de

um sentido último, de uma verdade absoluta, comum à apreensão metafísica do mundo.

O sofrimento do homem, o desgosto por uma existência desprovida de significado não

acolhe somente o que poderia haver de sublime nessa condição, pois o sublime pode servir

a um comportamento narcísico, capaz de converter a dor em superioridade. Mas o espelho

do grotesco deforma e disfoca: acolhe registros obscenos e escatológicos, abundantes em

toda produção beckettiana e também presentes em Godot.

A história do inglês no bordel, resgatando uma velha piada francesa sobre a suposta

preferência do macho inglês por sodomia; a ereção vislumbrada por Vladimir, caso

conseguisse se enforcar, que faria brotar mandrágoras. Pozzo que lembra um glutão,

comendo frango e descartando os ossos com desdém. O mau hálito e o chulé da dupla de

clochards... Sem contar as inúmeras alusõesou até mesmo citações explícitas de palavras

de baixo calão no discurso de Lucky; são muitas as ocasiões em que é possível bordejar

uma aproximação de Beckett à tradição de Rabelais.

Aliás, a mistura de erudição e humor, tão presente em Esperando Godot, se evidencia

com bastante frequência: a evocação da filosofia dos pré-socráticos (“Nunca se desce no

mesmo pus), A lua "Pálida de cansaço262" a que se refere Estragon, citação de "To the

Moon", de Percy Bysshe Shelley; além da alusão a Shakespeare, no discurso de Lucky, em

que cita Miranda, personagem de “A Tempestade”; são apenas alguns exemplos dessa

261O uso da parábase, na forma de rearranjo coral, pode se estender aos romances de Beckett, que também fazem uso desse dispositivo no sentido de articular, via ironia, uma permanente desconstrução dos enunciados que se sobrepõem. Aliás, em Beckett, o recurso sucede em um desenvolvimento progressivo na primeira trilogia, que culmina com O Inominável. 262 O poema de Shelley aparece aludido apenas na versão em inglês.

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mescla de materiais que se dá sem hierarquias.

Como já mencionamos em capítulo anterior, temos aqui um arremedo de Sísifo.

Arocha de Vladimir e Estragon torna-se um adereço de um número de comédia, na qual se

encena a completa dissolução do sujeito. Não há espanto, talvez só o público o sinta com

maior intensidade, pois, se há vestígios de consciência por parte dos personagens, isso não

se dá com força suficiente que os faça abandonar o palco ou aderir a uma solução trágica.

Como já dissemos, Gogo e Didi reencarnam um nova versão de Sísifo em sua espera;

parecido com o de Camus, mas com um novo matiz: não há assombro na repetição

contínua, mas humor, quepermeabiliza, num jogo ininterrupto, o trágico. A formulação de

Camus “é preciso imaginar Sísifo feliz”, que serve de epígrafe à narrativa do escritor

argelino, pode ser comutada, no universo de Beckett, pelos seguintes dizeres: “sim, é

possível (e não preciso, nos dois sentidos do termo) imaginar o gozo de Sísifo”;caso

fôssemos comparar esses personagens esuas jornadas inconclusas. Jocosos, os

personagens jogam seus jogos. A alegria, que permite o gozo transitório, é diferente da

felicidade, sentimento pleno, que visa a um conforto absoluto. Victor Hugo, escritor

romântico, dizia que a melancolia é a felicidade de se ser triste. Talvez o termo mais

aproximado,no caso das criaturas beckettianas, seria a “alegria de ser triste”, dado que,

adespeito da felicidade, a alegria seja instável por excelência e, assim como aquele que

está afetado por ela, esteja condenada aos caprichos do tempo.

De qualquer forma,como já mencionamos, Esperando Godot não pode ser caracterizada

como tragédia, já que em sua estrutura os heróis não obedecem à trajetória do tradicional

herói trágico. Não há a clássica passagem de um estado de eudamonia(glória) para

daimonia(desgraça); em certa altura, Estragon e Vladimir mencionam que já foram

respeitáveis em algum tempo, talvez em 1900, mas não há quase nada que dê indicações

de suas identidades em um suposto passado. Com efeito, gestos trágicos não cabem mais

no desempenho de seus papéis. “De mãos dadas, pular do alto da torre Eiffel, os primeiros

da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam

nem subir.” Não háhybris,(orgulho) visto que os personagens são vagabundos, distantes de

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qualquer princípio ético ou moral correspondente ao conjunto de valores que regem a

realidade empírica. Tampouco há medida ou limite a ser ultrapassado.

Logo, os personagens não cumprem o programa do herói trágico a quem era reservado

um périplo que culminava com um aprendizado final. Antes, caminham na esfera do não-

saber, agem como fantoches e marionetes de um destino cego, que os faz parecidos com

personagens de uma farsa. Não há mesmo interlocução de deuses ou deus, a realidade

encontra-se fragmentada sem qualquer manifestação de vozes coletivas, passíveis de

serem percebidas em um mundo regido por um princípio de totalidade.

E é dessa forma que Beckett desconstrói a forma cômica e trágica: dissolvendo o coro

que antes abrigava a pluralidade de vozes de uma comunidade; reduzido, agora aos pares

de sobreviventes Estragon-Vladimir, Pozzo-Lucky, que, no deserto em que habitam, são a

“humanidade inteira”. Assumindo o papel do coro, serão esses personagens os porta-vozes

de uma realidade arruinada. Neles, veremos expresso o phatos que simboliza o próprio

phatos dos espectadores. Se o coro era a possibilidade formal de transmissão da voz

coletiva, ele é agora os ecos dessas vozes, que jazem com o fim da experiência

partilhadaem forma de farrapos humanos e, por isso mesmo, não chegam sequer a alcançar

o estatuto de personagem.

Se o interlúdio coral, na antiguidade, articulava a cesura ou bipartição estrutural do

drama cômico em um interlúdio, quando,só então, instituía, dentro da peça, a

metalinguagem como contraponto crítico às ações; na modernidade o dispositivo irá

permear toda a estrutura ficcional e não se prenderá mesmo a um gênero específico. Em

Esperando Godot, por exemplo, não há uma ação que se desenrola e um momento especial

em que o plano da realidade no qual se daria essa peripécia é colocado em xeque. Toda a

peça se desenvolve num permanente jogo dialético, no qual a poética da ironia converte

toda oposição antagônica em oposição parceira. Uma posição só existe porque co-existe

com a outra, que lhe é diametralmente oposta. Não se admite a separação lógica nem a

síntese dialética dos contrários.

A parábase permanentepossibilita o jogo da mimicry, na articulaçãode uma alternância

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de perspectivasque recusaa adoção primária de um personagem unívoco, que

representasse uma identidade. Sempre processual, jamais substancial, a realidade só pode

ser apreendida em sua dinâmica inacabada a partir da não-adesão a uma máscara

definitiva. Assim, os personagens de Beckett usam máscaras transitórias, sem nunca

afivelarem uma máscara última à face. Eles são e não são; por isso, talvez, não sejam tão

altivos e sofram tantas quedas.

Entretanto, a persistência dos personagens diante de uma realidade catastrófica, ao

mesmo tempo em que ignoram solenemente a gravidade da situação, mostra a

incapacidade de seremniilistas, mesmo em uma situação periclitante. Como observou o

crítico Günter Anders263, o que a obra de Beckett apresenta não é niilismo, mas a

incapacidade do homem em ser niilista mesmo em uma situação de desespero total. De

fato, muito da melancolia transmitida pela peça e empatia produzida nos espectadores pela

dupla vem do fato de ambos, em sua espera, mostrarem que não são capazes de lidar com

essa situação, portanto, que eles não são niilistas. Aliás, é esse “defeito” que os torna

irresistivelmente engraçados, pois nada é mais engraçado, segundo o crítico, “que a total

confiança totalmente injustificada”.

Anders estabelece uma analogia entre Estragon e Vladimir e o arquetípico personagem

do marido traído, que permanece incapaz de reconhecer os fatos que se colocam como

obviedade diante de seus olhos.Éuma espécie de automatismo presente nas condutas de

Estragon e Vladimir que desencadeia o cômico, um automatismo muito próximo da simples

distração. Para convencer-se, basta notar que uma personagem cômica geralmente é

cômica na exata medida que ela se ignora. Como observa Bergson264: “o cômico é

inconsciente. Como se usasse ao contrário o anel de Giges, torna-se invisível para si

ANDERS, Gunter. Being without time: On Beckett’s Play Waiting For Godot. ESSLIN, Martin. (Org.) Samuel Beckett: A Collection Critical Essays. New Jersey: A Spectrum Book, 1965, p.140 -151. 264 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.138.

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mesmo ao tornar-se visível para todos.265”

Tal esfacelamento entre as fronteiras dos gêneros é ao mesmo tempo, causa e

consequência da crise do drama266. Todos os elementos que asseguravam o seu status quo

estão agora em xeque. Até mesmo o personagem, antes responsável pela ação, condutor

da identificação e garantia da mimese, que se achava incumbido de funções múltiplas no

drama clássico, torna-se, no teatro de Beckett, obscenamente exposto em sua fragilidade e

ignorância, que revela a fragilidade da própria cena em plasmar o real. Num

mundo desprovido de sentido, em que a realidade se oferece imersa na mais completa

desordem, não há mais demarcações prévias, hierarquias, nem salvação possível, - a não

ser que Godot venha. Enquanto isso, a catarse permanece em suspensão e o drama, sob

suspeição cerrada.

4.4 Menino, mensageiro ou novo deus ex-machina?

Para Ludovic Janvier, o menino de Esperando Godot é “um mensageiro transparente e

dócil de um mundo que o ignora267”.Inocente, é portador de uma mensagem de um senhor

imprevisível, Godot, que age com ele a partir da mesma premissa de justiça aleatória com

que age em relação aos seus suplicantes, Vladimir e Estragon. No ato I, ele diz trabalhar

para o senhor Godot como cuidador de cabras e possuir um irmão, a quem são confiadas as

ovelhas. Dormem em um celeiro.

Vladimir: Ele é bom para você? Menino: É, senhor. Vladimir: Não bate? Menino: Em mim, não, senhor. Vladimir: Bate em quem então? Menino: No meu irmão.

265ANDERS, Gunter. Being without time: On Beckett’s Play Waiting For Godot. ESSLIN, Martin. (Org.) Samuel Beckett: A Collection Critical Essays. New Jersey: A Spectrum Book, 1965, p.140 - 151. 266 SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.111. 267 JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 95.

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(...) Vladimir: E por que ele não bate em você? Menino: Não sei, senhor. Vladimir: Deve gostar de você. Menino: Não sei, senhor. (BECKETT, 2006, p.102)

Aristóteles268 explicou, quando analisou o gênero trágico, que ação complexa é aquela

em que a mudança da fortuna para o infortúnio é resultado do uso de reconhecimento ou de

peripécia,ou de ambos os meios. A peripécia é, segundo o filósofo grego, uma reviravolta

completa das ações e o reconhecimento seria a passagem de um estágio de ignorância ao

de conhecimento. No caso de Édipo Rei, de Sófocles269, por exemplo, quando o mensageiro

aparece na figura de um ancião, sua função é desvelar de vez o mistério a respeito de

Édipo. Mas a peripécia começa a se desenrolar mesmo antes de sua chegada.“No momento

do reconhecimento, quando Édipo descobre que é ele o assassino de Laio e filho de

Jocasta, há uma reviravolta completa na ação, até chegar à catástrofe final: o suicídio de

Jocasta e a cegueira de Édipo270.” A peripécia, nesta peça de Sófocles, inicia-se durante um

diálogo entre Jocasta e seu ainda não reconhecido filho, quando este começa a se dar conta

de que o homem que havia matado podia ser Laio, o rei de Tebas.

No entanto, é mais adiante, no momento em que o Mensageiro chega para esclarecer

toda a história, que a peripécia se intensifica e acontece o que Aristóteles chama de “a mais

bela forma de todos os reconhecimentos, aquela que se dá justamente com a peripécia;”

forma esta que intensifica os sentimentos de terror e compaixão, sentimentos próprios desta

forma dramática que levarão à catarse.

Édipo: Temo que Febo se mostre verdadeiro. Mensageiro:Temes macular-te com mancha vinda dos que te geraram? Édipo:È isso, venerável, que sem trégua me atormenta.

Mensageiro: Sabes quete torturas sem motivo algum? Édipo:Sem motivo, se sou filho destes genitores? Mensageiro: Pólipo não tem nenhum parentesco contigo. Édipo: Que ouço? Não foi ele quem me gerou? Mensageiro:Nem ele nem este que te fala, nisso somos iguais. Édipo:Ousas igualar meu genitor a um joão-ninguém como tu? Mensageiro:Repito, não deves a vida nem a ele nem a mim.

268ARISTÓTELES.Poética.Ed. Eudoro de Sousa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1998, p.125. 269 BEDIN, Ciliane. Mímesis na ação em Édipo Rei e Esperando Godot. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. 270 Idem.

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Édipo: Por que, então, me chamava de filho? Mensageiro:Foste um presente, sabe, que ele recebeu de minhas mãos.

(SÓFOCLES, 2004, p.146)

Ao contrário de um ancião, é uma criança que virá trazer o recado de Godot. Em

Esperando Godot, porém, o Menino não revela nada nem promove nenhum

reconhecimento. Há interpretações que lhe atribuem o papel de prenunciar um desígno

sinistro, no qual a vinda de Godot se configuraria na morte, sempre adiada; mas

acreditamos que essa interpretação é apenas mais uma, dentre várias outras possibilidades

de se pensar significações encetadas por essa misteriosa figura.

Seria Godot um personagem divino? Há uma clara divisão entre Deus, que é citado

diversas vezes na peça, e Godot. No segundo ato II, o Menino diz que presume que ele

possua barbas brancas, mas nada disso evidencia que exista alguma característica que lhe

confira uma essência divina:

Vladimir: Como vai seu irmão? Menino: Doente, senhor. Vladimir: Talvez tenha sido ele que veio ontem. Menino: Não sei, senhor. Silêncio. Vladimir: Ele usa barba, o senhor Godot?

Menino: Sim, senhor. Vladimir: Loira ou...(hesita) ou morena? Menino(hesitante): Acho que branca, senhor. Silêncio.

Vladimir: Misericórdia. (BECKETT, 2006, p.102)

As intervenções dos deuses ocorrem, na literatura grega, em vários gêneros literários,

quer numa intervenção deus ex-machina, quer sob a forma mais generalizante da

manifestação direta dos deuses, a teofania. Recorrente nas narrativas homéricas, a teofania

funcionava como possibilidade de salvação do herói, quando o impasse se tornava

insuperável para os limites humanos, sendo o sobrenaturalum aliado indispensável nessas

situações.

O deus ex-machina271, em sentido restrito, ocorre na tragédia, quando a divindade, no

final da peça, se manifesta para resolver o desenlance da ação. Todavia a designação de

“deus ex-machina” é um conceito que,em alguns autores, denota uma acepção mais lata: os 271 ARISTÓTELES.Poética.Ed. Eudoro de Sousa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda: 1998, p.123.

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deusespodem utilizar o recurso sem que seja uma epifania no final da peça (por exemplo,

Artemis, emHipolito), mas um mecanismo que pode também ser utilizado por mortais, como

Medeia, de Eurípedes, e sua espetacular saída no carro de ouro.

É, pois, evidente que também os desenlances devem resultar da própria estrutura do mito, e não do deus ex machina, como acontece em Medeia ou naquela parte da Ilíada em que se trata do regresso das naves. Ao deus ex machina, pelo contrário, não se deve recorrer senão em acontecimentos que se passam fora do drama, ou nos do passado, anteriores aos que se desenrolam em cena, ou nos que ao homem é vedado conhecer, ou nos futuros, que necessitam ser preditos ou prenunciados – pois que aos deuses atribuímos nós o poder de tudo verem. (ARISTÓTELES, 1988, p.124)

Aristóteles constata três funções essenciais deste artifício. A primeira, mais conhecida e

praticada, consiste no desenlance da ação dramática através de uma intervenção exterior à

intriga. A segunda seria a representação do tempo extracênico, isto é, a ligação da ação

com o passado e o futuro, com os acontecimentos mitológicos que a precederam e se lhe

seguem. Há também uma terceira, obscura e mais misteriosa: acontecimentos que são

proibidos, que são ocultados ao conhecimento humano.

Segundo Aristóteles, a lei da unidade e coerência aplica-se obrigatoriamente à tragédia;

de acordo com sua teoria, deveria ser rejeitada toda a ação interventiva do deus ex-

machina, mas é, por outro lado, tolerada – e até mesmo incentivada – na marcação do

tempo cênico. A crítica de Aristóteles à má utilização do dispositivo dirige-se expressamente

contra Eurípedes.

Aristóteles valorizava o recurso na segunda acepção,como ligação da intriga com a ação

extracênica. Para ele, essa era uma função positiva para o recurso; não um mero remendo

para uma situação que o autor da trama não soube solucionar com os recursos que possuía

em seu universo ficcional.

O menino, que aparece no primeiro e no segundo ato com uma mensagem de Godot

parece encarnar, em princípio, o mensageiro trágico tradicional. No primeiro ato, ele surge

logo após Pozzo e Lucky deixarem a cena. Depois de, mais uma vez, ameaçarem deixar o

palco e se lembrarem de que não podem fazê-lo porque estão “esperando Godot”, Estragon

e Vladimir estão praticando a conversação para “passar o tempo”. É quando surge, da coxia,

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a voz de um Menino:

Voz dos bastidores: Senhor! Estragon pára. Os dois olham em direção da voz. Estragon: Lá vamos nós de novo! Vladimir: Venha cá, meu filho. Entra um menino, assustado. Pára.

Menino: Senhor Albert? (BECKETT, 2006, p.96)

No primeiro ato, quando aparece, Estragon parece querer “dirigir” o Menino, como um

encenador, dizendo a ele o que deve fazer em cena. Enquanto o garoto conversa com

Vladimir, ele parece apontar as marcações no palco: “Venha, estão mandando!” Ele

confunde o Menino e o questiona a respeito do tempo, como se ele estivesse atrasado em

sua entrada para o número. Todo o diálogo gira em torno da questão do tempo, apenas o

Menino parece desconhecer o conteúdo do assunto. Se Vladimir sempre cobrava que

Estragon respondesse às suas deixas, é agora Estragon que desempenha o papel com o

Menino:

Estragon: (...) Por que demorou tanto? Vladimir: Trouxe o recado do senhor Godot? Menino: Trouxe, senhor. Vladimir: Tudo bem, pode falar. Estragon: Por que demorou tanto? O menino olha de um lado para o outro sem saber responder. Vladimir(a Estragon): Não amole o menino. Estragon (a Vladimir): Não me amole você! (Aproximando-se, aomenino)

Sabe que horas são?(BECKETT, 2006, p.96)

O Menino é acossado insistentemente por Estragon. Ele se justifica, diz que não foi por

sua culpa que atrasara, e, cada vez mais oprimido com as questões de Gogo, vai

repondendo-as, a esmo, tomando para si,como resposta, desculpas que são enumeradas

por seu interlocutar, sem, no entanto, deixar transparecer se foram realmente aqueles

fatores que o fizeram atrasar. Estragon parece querer imitar Pozzo, quando este tripudia

com Lucky, já que os dois haviam acabado de deixar o palco.

Vladimir: Você é daqui? Menino: Sim, senhor. Estragon: Que mentirada! (Pega o menino pelo braço, sacode-o) Fale a verdade! Menino(trêmulo): Mas é verdade, senhor. Vladimir: Quer deixar o menino em paz. Qual é o seuproblema? (Estragon larga o menino, recua, leva as mãos aorosto. Vladimir e o menino olham para ele. Estragon descobre o rosto, transtornado)O que há com você?

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Estragon: Sou infeliz. Vladimir: Não brinque! Faz tempo? Estragon: Tinha esquecido. Vladimir: A memória faz das suas. (BECKETT, 2005, p.99)

Só quando Estragon desiste, retornando à sua rotina de lidar com as botas que lhe

apertam os pés,Vladimir consegue retomar o diálogo com o Menino. Vladimir parece mais

disposto afazer o jogo de cena com o garoto. Os dois se despedem depois de um longo

diálogo, não sem que Vladimir tente se assegurar, antes, de que o Menino o tenha visto272.

Aqui retorna o motivo do bispo irlandês Berkeley, tão recorrente na obra do escritor irlandês.

“Ser é ser percebido273” (esse est percepti). Ea pergunta do Menino é idêntica, nos atos I e

II: “O que eu digo ao senhor Godot, senhor274?”

Não poderíamos pensar o menino como deus ex-machina reinventado por Beckett? Para

isso, não nos reportamos à acepção ordinária do termo, a partir da qual uma intervenção

divina ou humana aparece do nada para resolver algum imbróglio, que os elementos

presentes no universo ficcional não foram capazes de solucionar.Esperando Godot não

possui uma intriga, que necessitaria desse expediente para sua resolução. Vamos

então à segunda acepção, aquela considerada válida para o autor da Poética: a marcação

do tempo cênico. Ora, o esquecimento compulsório dos personagens não permite uma

articulação entre tempo e memória. O tempo é circular e a função do Menino é ser um

arauto dessa circularidade, dessa repetição. Em uma situação tradicional, o menino

apareceria como possível regulador da ação,mas,se não o faz, é porque sua função é

justamente a de apontar que a repetição deve continuar e o espetáculo não pode ser

interrompido, mesmo que ele não apresente superação ou síntese para aquela situação de

272 VASCONCELLOS, Cláudia. Figuras Infernais no teatro de Samuel Beckett. Tese de doutorado defendida no curso de Teoria Literária e Literatura Comparada Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2012, p. 24. 273 DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. In: O maior filme irlandês. (Film de Beckett) São Paulo: Editora 34, p.36.

274BECKETT. Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.189.

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espera.

Mas ainda há a terceira acepção de Aristóteles: a de apresentar aquilo que é vedado ao

conhecimento humano. No entanto, o Menino aparece nas duas vezes em que os

personagens ameaçam abandonar o jogo; na primeira quando Estragon, como aponta a

rubrica,à maneira prática, que lhe é peculiar, dirige-se lentamente em direção àcortina, no

intuito de encerrar o espetáculo; na segunda, quando Vladimir, em seu solilóquio, parece se

aproximar de uma constação de que não é válido que continuem ali, naquela espera inútil.

Parece-me, desse modo, que sua presença se manifesta para manter velado o que deve

permanecer oculto, intensificar a tensão da espera,para permitir, assim, que a narrativa

prossigaem sua circularidade.

Mais uma vez, aqui, vemos Beckett subvertendo e reiventado os expedientes do teatro

tradicional. Pois, se Aristóteles exigia que existisse uma marcação temporal, dizendo que o

teatro, mas especificamente a tragédia, era a encenação de ações elevadas, Beckett brinca

com os expedientes: seu mensageiro encarna as funções do deus ex- machina, porém em

um contexto completamente diverso em que as determinações de Aristóteles para o drama

“ideal”estão completamente minadas, subvertidas. Aqui ele aparece não como um

mensageiro que irá revelar algo ou deus ex-machina em coluio com as forças divinas: o

personagem é completamente destituído de divindade, profanado, como, aliás, os demais

expedientes utilizados ao longo da peça, quando reportados à sua função no teatro

tradicional.

Assim, o mecanismo,quefora criticado pelo mais influente teórico da tragédia, Aristóteles,

quando esse insistia no “liame da necessidade e verosimilhança” como vetor essencial do

drama (Poética, p.116),exigindo uma causalidade sem falhas no desenrolar da intriga, é

também presa da sísifica circularidade beckettinana e seu teatro em que nada acontece.

Na primeira aparição do garoto, Estragon, já próximo da cortina,ao se dar conta de sua

presença, diz: “Lá vamos nós de novo!”. No segundo ato, quando o Menino novamente

irrompe a cena, é a vez de Vladimir: “Aí vamos nós de novo, não está me reconhecendo?” O

menino não é responsável pela ação, mas pela continuidade dos jogos, que, no caso em

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questão, substituem a ação e são a força motriz da peça.

O grande mal-entendido, bem à maneira do quiproquó do vaudeville, é que nem o

Menino, nem os personagens sabem o conteúdo da mensagem ou a função exata que

devem desempenhar em cena. O Menino surge apenas para dizer que eles devem

perseverar ali, pois, se Godot não vem hoje, amanhã, certamente, virá. Ou pelo menos é

essa a sua fala.

Se o número é trágico (e isso fica bem evidenciado no fato de que Estragon ficará

encenando sua melancolia, silenciosamente, com a rotina das botas, até o fim do diálogo), é

também cômico em virtude do desencontro e do ritmo impresso às falas, que frauda as

expectativas do espectador tradicional, não promovendo nenhuma descoberta ou

reconhecimento, nessa peça livre de peripécias e revelações.Assim “a mais bela forma de

todos os reconhecimentos, aquela que se dá justamente com a peripécia;” é banida do

universo beckettiano.

Nas duas aparições do Menino (às quais caberiam talvez que chamássemos de

atuações), se evidenciamduas categorias do jogo: alea e mimicry. Alea se manifesta na

disposição de jogar em que se colocam tanto Vladimir(Ato I) quanto Estragon (Ato II), a cada

vez que o Menino aparece em cena. Curiosamente, é justamente quando começam a dar os

primeiros passos para tomarem as rédeas da situação que o garoto aparece, e ambos,

conscientes de que tudo aquilo é uma repetição infinita, resolvem novamente aderir ao

jogo.É aí que se evidencia amimicry,já que ambos se põem a encenar, a jogar, como no

jargão dos atores teatrais, quando lançam as deixas entre si para o prosseguimento da

peça.

A atmosfera de melancolia se refaz. Quanto o menino sai de cena, nos dois atos, a lua

surge no palco. Assim indica a rubrica da primeira aparição: “A luz começa a diminuir

bruscamente. Faz-se noite num instante. A lua nasce, ao fundo, sobe ao céu, imobiliza-se,

banhando o palco de uma claridade prateada.”Os “pequenos homens lânguidos” olhando

para a lua é uma das imagens mais significativas da peça.

Esta configuração abre um padrão de referência visual e poética para a compreensão

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da tonalidade que Beckett pretende imprimir em sua cena. A concepção visual de sua peça

foi inspirada, segundo o próprio Beckett, por uma pintura de Caspar David Friedrich.

Esta fonte fica mais evidente na transição da atmosfera que ocorre na cena em que duas

sombras, de Estragon e Vladimir, junto à árvore, são mostradas em silhueta, enquanto os

dois observam a lua irromper no céu noturno. Mas pode ser ainda mais determinante.De

acordo com seu biográfo, James Knowlson275, a estudiosa de teatro americana Ruby Cohn,

amiga de Beckett, disse que, em 1975, na ocasião em que estivera em Berlim para os

ensaios de Esperando Godot, ela, juntamente com Beckett, foi ver as pinturas de Caspar

David Friedrich. Era a famosa coleção dos pintores Românticos Alemães.

Nessa ocasião, enquanto estavam olhando para a pintura de Friedrich Mann und Frau

den Mond betrachtend(Homem e Mulher Observando a Lua), de 1824, Beckett a

surpreendeu com um comentário, anunciando de forma inequívoca: "Esta foi a inspiração

paraEsperando Godot, você sabe."

Mann und Frau den Mond betrachtend(Homem e Mulher Observando a Lua)

Caspar David Friedrich. Fonte:https://www.kunstkopie.de/a/caspar_david_friedrich/mann-und-frau-den-mond-be.html

275KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett. New York: Grove Press,

1996, p.342.

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Há uma certa imprecisão a respeito dessa informação, porque Knowlson afirma que,

emoutras vezes, ele chamaraa atenção dos amigos para Zwei Manner betrachten den Mond

(Dois homens que contemplam a Lua), um quadro do mesmo autor, que pertencia a uma

coleção da cidade de Dresden.Nela, dois homens, vestidos com mantos e vistos por trás,

estão olhando para lua cheia emoldurada pelos ramos negros de uma grande árvore, sem

folhas. Embora ele não tinha visto esta telaao vivo, pois não constava nesse acervo visitado

por ele e Cohn,esta pintura era muito bem conhecida por meio de reproduções em livros

sobre Caspar David Friedrich. Em todo caso, a pintura de Berlim é tão semelhante em sua

composição de imagem de Dresden, que o que disse Beckett a Cohn, naquele passeio,

poderia aplicar-se igualmente a qualquer um dos quadros.

Zwei Manner betrachten den Mond (Dois homens que contemplam a Lua) Caspar David Friedrich.

Fonte:http://www.alzd.de/2011/05/06/einen-raschen-blick/

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De qualquer forma, essa luz lunar que se espraia sobre os dois clochards,irrompendo

com brusquidão na cena,acentua o tom melancólico e a ambiência soturna da peça. James

Knowlson276nos diz que, em uma das anotações de Beckett, encontrada nos notebooks da

produção alemã,277 lê-se: "A atmosfera da noite é mantida, anexando géis azuis às luzes,

dando, assim, ao conjunto cinza, um efeito incolor frio." Ele ainda escreve: "A peça surge do

escuro, é encenada em profundidade crepusculare termina em luar, desaparecendo depois,

de voltapara a escuridão”.

A anotação de Beckett é, talvez, mais uma evidência de que a chegada do Menino

funciona como um presságio de recomeço, de eterno retorno do mesmo, desse desgastado

repertório que se repete, mas, ao mesmo tempo, impede que o jogo seja extinto.

5.ALIBERDADE DE NADA SER

5.1Clausuras, jogo e liberdade

A montagem de Esperando Godot (Warten auf Godot) dirigida por Beckettno Schiller

Theater de Berlim, em 1975, trouxe, através de algumas anotações em seus notebooks,

informações interessantes no que diz respeito à sua visão da peça.Em relação à atuação,

por exemplo, o escritor irlandêstratou de enfatizar para os atores que eles não poderiam

falar e se mover ao mesmo tempo. Ele insistia que fala e movimento deveriam estar

276KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett. New York: Grove Press,

1996, p.342.

277Os famosos cadernos de anotação de Beckett, quando ele fora convidado para assumir a direção da peça. Warten auf Godot foi realizada pela primeira vez na Alemanha em setembro de 1953, como parte do Berliner Festwochen, apenas dois anos após a sua estreia em Paris. Entretanto, de todas essas produções, a produção de 1975, de Warten auf Godot, em Berlim, foi um marco, já que foi a primeira vez que Beckett dirigiu um trabalho seu. Detalhadas intenções de Beckett para essa produção estão registradas em dois cadernos vermelhos(Regiebucher), seus cadernos de direção à época, onde estão preservados comentários feitos ao seu assistente de direção, Walter Asmus. Cf.BARRY, Elisabeth. Beckett in Berlin. In: English and Comparative Literary Studies.Fonte: http://www2.warwick.ac.uk/fac/arts/english/people/barrydrliz/berlinlecture, data de consulta: 10/10/2013.

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desarticulados e as intenções poderiam ser enquadradas no discurso, mas não postas em

prática. Nesta disjunção mínima, uma questão fundamental sobre a existência humana se

abre:o quanto somos livres, temos livre-arbítrio? Será que estamos compelidos a agir, a

falar, por alguma autoridade externa ou por algum projeto pré-definido? Ou seríamos

absolutamente livres? Durante anos, a classificação mais frequentemente aplicada ao teatro

de Beckett foide teatro do absurdo, principalmente após o influente livro de Martin Esslin de

1961, sobre o tema.

Na obra278, Esslin enfatiza a ideia de teatro do absurdo, decorrente do pensamento

dos filósofos franceses Jean Paul Sartre e Albert Camus, a partir do qual, em um mundo

sem Deus, a humanidade estaria condenada a uma espécie de liberdade vertiginosa. Para

Esslin, Arrabal, Ionesco, Beckett (dentre outros) dão forma dramática às ideias

existencialistas.A partir dessa filosofia, somos nós queconstruímos o nosso próprio futuro, a

partir do improviso de nossa identidade, começando pela consciência de que a existência é

uma condição em que somos jogados no mundoe não pré-determinação ou essência divina,

uma alma que nos fora concedida por Deus.

Na quarta parte de O Ser e o Nada279, intitulada Ter, fazer e ser, Sartre estuda como

se desdobra e se efetiva nossa liberdade, segundo a estrutura fundamental da ação

humana. O para-si cria um conteúdo através dos atos: em face das possibilidades que se

abrem diante dele, é obrigado a escolher e agir. A ação é assim fundada, para Sartre, no

vazio do para-si e na capacidade de negação. Para agir, porém, o homem deve estabelecer

projetos e essa questão é decidida pelo poder de valoração da consciência. Ela confere

valor às coisas, tornando-as preferíveis umas às outras. Sartre afirma, por isso, que a

consciência reflexiva se identifica com a consciência moral: esta é necessariamente

278ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. 279 SARTRE, Jean- Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.

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implicada pela primeira. Ao refletir sobre o mundo eu imediatamente o julgo e avalio. O valor

é a criação específica do ser para-si: funda-se na liberdade280.

Ao contrário do res cogita de Descastes, o ser para-si sartreano é um vazio, uma falta

que deve ser completada. Por isso, visa, desliza para o em-si. Esse vazio é a liberdade

fundamental do para-si. Tal é o sentido do livro de Sartre O Ser e o Nada: o Ser (em si) e o

Nada (isto é, o para-si, consciência e liberdade). O vazio do para-si, ato de tentar completar-

se, faz com que apareça no mundo do em-si, o possível, o conhecimento, a ação, etc.

Segundo Sartre, o homem quis escapar dessa liberdade, pois ao sentir-se vazio, o

para-si experimenta uma angústia característica: a angústia da escolha, de ser obrigado a

optar por uma entre todas as possibilidades que se abrem diante de si. Mas, para fugir

dessa angústia, criou-se uma estrutura fundamental de comportamento que Sartre chama

de má-fé. A meditação ontológica de Sartre conduz, assim, necessariamente, a uma

mediação de ordem ética. O para-si não possui essência, é pura existência.

Para exemplificar a supremacia da liberdade no terreno da moral, Sartre281 recorrea

um episódio, vivenciado por um de seus alunos. O rapaz, durante a guerra, tivera o irmão

morto e vira seu pai transformar-se num colaboracionista. Sua mãe, diante de tais fatos,

mergulhara na mais profunda angústia. Só lhe restara o outro filho e era essencial que ele

permanecesse junto dela, caso ele quisesse dar ainda algum sentido para a vida da mãe.

Ocorre que o aluno de Sartre pensava em partir para a Inglaterra, juntar-se às Forças

Francesas Livres e combater os nazistas. Como escolher entre os dois caminhos? Sartre

então conclui que não deve haver moral geral: cada um deve inventar a sua. “Ele sabia – diz

280 Para Sartre só a existência de um Deus criador, no sentido de São Tomás de Aquino, por exemplo, justificaria que o homem tivesse uma essência que precede sua existência, isto é, uma natureza humana. Mas o homem é um encontrar-se já no mundo, um surgir espontâneo e contemporâneo ao mundo. Não há natureza humana a priori. Dado, como existência, o homem só adquire uma essência depois de existir, a posteriori, adquirida através de seus atos. Isso o torna, portanto, segundo sua filosofia, totalmente livre: nenhuma natureza original o determina para nada. O homem, diz Sartre na famosa conferência O Existencialismo é um humanismo, é apenas o que ele faz de si próprio. “O objetivo principal da conferência, entretanto, é extrair as consequências morais dessas verdades. Se sou totalmente livre, sou totalmente responsável. Não tenho desculpas para nenhum dos meus atos. Essa responsabilidade é tanto mais grave, porque, ao me escolher, escolho implicitamente todos os homens.” Cf. MACIEL, Luiz Carlos. Sartre: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 123-124. 281SARTRE. Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1987.

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Sartre – a resposta que eu iria lhe dar e eu só tinha uma: você é livre, escolha, quer dizer –

invente.”

Sartre nega que essa moral existencialista desemboque num quietismo: ao contrário,

“se sou apenas minha vida, se o gênio de Proust, por exemplo, se resume apenas aos livros

que escreveu, se sou bom e faço coisas boas, se tudo está em ato e nada em potência, sou

obrigado a agir. O existencialismo é, portanto, uma moral da ação.

Entretanto, sabemos que os personagens de Godot não possuem projetos, negam-se

terminantemente à ação e são destituídos de consciência, já quesofrem um progressivo

apagamento na memória a cada fala enunciada. Claro, não desqualificamos uma filosofia

que foi tão importante para a história do pensamento, tampouco negamos que existam

pontos de contato entre o tédio de Estragon e Vladimir e a náusea dos personagens de

Sartre. Contudo, acreditamos que o enquadramento de Beckett de forma tão exata aos

pressupostos da filosofia existencialista deturpa a maneira com a qual questões essenciais

foram colocadas por sua obra, além de escamotear diversas invenções e subversões que

ela propõe, revolucionárias para o drama no ocidente.

A situação do universo beckettiano prenuncia ou problematiza algo parecido com a

liberdade282, mas um dos grandes mistérios de sua obra é que seus personagens não a

experimentam como aconcebemos ordinariamente. Inércia e imobilidade são duas

condições de suas peças e essa situação amplia nosso conjunto de referências a respeito

282 Duas escritoras brasileiras escreveram algumas linhas sobre a questão que aqui tateamos: Clarice Lispector e Cecília Meireles. A primeira, em Perto do Coração Selvagem, nos diz: Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome. Já Cecília, no Romanceiro da Inconfidência, aduz: ...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda... Nos dois trechos, a liberdade caminha na esfera do não-saber, do não realizado, ainda não vivido, mas percebido como possível e almejado. Não se liga a ação, é potência, devir. Assim também trataremos do tema na acepção beckettiana. A hipótese é a de que Beckett encena poeticamente o desejo de uma possibilidade de existência outra, no qual o conceito de Liberdade ganhará nova acepção. LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência.Rio de Janeiro:Letras e Artes, 1965,p.70. .

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do tema, já que estamos acostumados a relacionar Liberdade e ação. Lembremos ainda,

que, para Hegel283, para que haja uma genuína ação trágica é essencial que o princípio de

liberdade e independência individual, ou ao menos o princípio da autodeterminação, a

vontade de encontrar no eu a livre causa e origem do ato pessoal e de suas consequências,

já tenha sido despertada.É isso que tornaria a existência trágica, mas, como vimos aqui, a

peça não se inscreve apenas no território do trágico, mas encontra-se na fronteira, com

indiscerníveis matizes do cômico, sendo,assim, inevitavelmente, grotesca.

No próximo capítulo, tentaremos auscultar essa não-liberdade, ou a nova acepção do

termo que sua ficcção prenuncia, a partir da análise de alguns de seus personagens e de

seus antecessores, quando o assunto é “Nada a fazer”. A tentativa é perscrutar alguns

aspectos concernentes a esse especial desejo de liberdade; ou a lacuna que mobiliza esse

desejo, como o fio condutor da espera atravessada por jogos de Beckett.

5.2Ginastas do imobilismo

Dioniso Eleutério, o libertador. “Beckett serve-se do epíteto de Dioniso para dar nome

a sua primeira peça teatral,Eleutheria, que tem como tema a incansável luta de um jovem

para se libertar de sua família e de todos os lugares sociais pré-estabelecidos284.” O amor e

o trabalho são negligenciados pelo protagonista. Nessa peça de três atos, o palco é dividido

em dois: à direita, o herói jaz na cama, apático e passivo; à esquerda, sua família e

conhecidos discutem, num frêmito, seu caso.Apesar do interesse de todos pela situação de

Victor Krap, eles jamais o consultam sobre nada. A discussão ocorre à sua revelia e é como

se sua opinião ali não importasse e o assunto debatido não lhe dissesse respeito.Aos

poucos, contudo, a ação vai migrando da esquerda para direita, e finalmente o herói

consegue reunir energia suficiente para libertar-se de seus grilhões e separar-se

283WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna.São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 55. 284RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot. E outras encenações imaginárias. São Paulo: Editora Hucitec, Fapesp, 1999, p. 55.

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completamente daquela ordem de coisas, daquele contexto. A peça, que a princípio fora

encarada como pertencente à tradição realista, filia-se, na verdade, à dramaturgia

inaugurada por Pirandello, em “Seis personagens à procura de um autor”. Aqui, não há

ainda a reinvenção promovida por Esperando Godot, embora, nela, o humor corrosivo não

tenha poupado uma longa série de peças ou tradições cênicas canônicas, que não

escaparam de seu crivo paródico. “Há alusões paródicas a Sófocles, Shakespeare, Molière,

Corneille, Zola, Yeats, Artaud, Jarry. E o simbolismo e o surrealismo, e até mesmo o

admirado Pirandello, não foram poupados de seu olhar crítico285”. São explícitas as

referências cênicas entre Victor e Hamlet, ou Victor e Édipo; um Victor que, “como no tempo

de Molière, se esconde sob a cama”.

Esse desejo de Beckett de se livrar das convenções teatraisé considerado,

contudo,(por parte da crítica), anterior à“Eleuthéria.Um dos primeiros ensaios para

composição de seuspersonagens foi uma paródia de Le Cid, de Corneille, chamada Le

Kid.Apresentada em 1931, quando Beckett era ainda assistente no Trinity College, deParis,

foi encenada por alunos e professores por ocasião de um encontro anual da Modern

Languages Society. Beckett atuou como Don Diègue, e, ao que parece, nessa montagem,

ao compor seu personagem, já começava a esboçar a indumentária e os apetrechos de

seus vaudevilles. Seu Don Diègue tem um guarda-chuva e um relógio, acessórios que irão

retornar em Mercier e Camier e Fim de Partida, respectivamente.

Eleuthéria, longe da dramaturgia parcimoniosa de Godot (a peça tem 17

personagens), já traz em sua dramaturgia algumas novidades.No Ato I, por exemplo, no

quarto do protagonista, a ação se dá em forma de gestos com uma mímica simples, de

movimentos vagos, mas ritmados, de modo a revelar a situação de Victor, sem que o

espectador tenha que olhá-lo diretamente.“Eleuthéria” significa em grego, como substantivo,

285BERRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.154.

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liberdade, mas num sentido concreto e ativo, liberdade contra uma situação anterior, alforria

de um escravo, sendo também um dos epítetos do deus Dioniso286.

Ambos os significados calham bem com os objetivos de Beckett na peça. Sem dúvida

o que está em jogo é a liberdade diante da necessidade de se providenciar uma síntese,

umacatarse que conferisse um sentidoàquela realidade distorcida e entorpecida em que

estão seus pares (e também os espectadores). Todavia,como Beckett mesmo aponta, essa

seria uma catarse falsa, consistiria em apenas uma ilusão de liberdade numa situação em

que a singularidade é sistematicamente cerceada. Assim, não há reconciliação possível,

Beckett nega-se em promovê-la e a imobilidade de Victor Krap vence, sem que haja para o

espectador uma explicação que lhe proporcione conforto ou consolo. Em termos formais,

não temos ainda a complexidade artística a que assistimos em Esperando Godot, mas a

temática já aparece.É o desejo de liberdade que faz o personagem central recusar-se a

assumir qualquer papel social ou artitístico já conhecidos.

Eleuthéria anuncia um tempo em que se pede liberdade de não ser, ou de ser simplesmente nada. Diante do herói aristótélico, no modelo de Édipo, Victor é um fracasso completo. Não comete “erro fatal”, nem desperta o menor sentimento de terror e piedade nos que o assistem. O máximo de reação que ele provoca no público é de profundairritação e tédio mortal. (RAMOS, 1999, p.56)

Essa situação de ataraxia no universo beckettiano, do “nada a fazer”, é na verdade

anterior a Eleuthéria e já aparece em Murphy, novela que Beckett escreveu em 1938.

Murphy é um personagem que, assim como Victor Krap, nega-se peremptoriamente à ação,

permanecendo a maior parte do tempo em seu quarto. “O sol brilhava, sem alternativa, sob

o nada de novo. Murphy, como se fosse livre, dele se escondia, sentado, num pombal de

West Brompton.287”Com a alusão a Eclesiastes, se inicia o romance do primeiro vagabundo

de Beckett, que demonstra também grande simpatia pela clausura.

286RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot. E outras encenações imaginárias. São Paulo:

Editora Hucitec, Fapesp, 1999, p.55. 287 BECKETT, Samuel. Murphy. Trad. Fábio Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 05.

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Esperando Godot traz essa reincidênciada expressão “Nada a fazer”, e a insistente

espera injustificada, que beira a perplexidade, dá continuidade, no teatro, à atitude de

imobilismo inaugurada por Victor Krap em Eleuthéria.Como observa Nuno Ramos288, “Se

Estragon e Vladimir parecem, a seu modo, filósofos pré-socráticos discutindo uma estranha

cosmogonia, é porque a espera por Godot os suspendeu e enclausurou ali, apagando a

energia metafórica ou remissiva de seus atos e falas.”O jogo que se dá na espera supõe,

em primeira instância, um intervalo que aguarda o evento significativo, mas em si mesmo o

jogo pode ser o evento em um espaço interditado.Energizando-se, emparedado, ele é capaz

de converter, em sua força centrípeda, a clausura e o sufocamento, tornando-se, ainda que

de forma contida e fragmentada, uma potência positiva de criação. A espera, nesse caso,

torna-se latência, dando ao presente múltiplas temporalidades, ao,artificiosamente, destituí-

lo de importância.

Segundo Ludovic Janvier289, a imobilidade é uma característica comum entre os

personagens de Beckett. Depois de alguma errância, a humanidade prefere prostrar-se em

um quarto escuro. Belacqua, de More pricks than kicks, inaugura essa galeria de

negligentes. Belacqua é "por natureza" indolente, ele parece mesmo personificar a

indolência em si. Seu nome deriva de um florentino preguiçoso e notório, que Dante e

Virgílio veem procrastinar no quarto Canto do Purgatório, da Divina Comédia. Ele está no

sopé da montanha, que os peregrinos se esforçam para subir.O Belacqua de Dante é

imóvel, e, em sua maneira tipicamente contundente, pergunta por que eles deveriam ir para

cima. Ele se contenta em esperar lá fora até que sua salvação chegue, sentado e segurando

seus joelhos, com a cabeça caída.

Também o Belacqua de Beckett compartilha deste “espírito preguiçoso”. No texto

“Dante e a lagosta” será esse mesmo personagem que irá pensar na arbitrariedade do

destino da Lagosta, que é levada a fervura, ainda viva. Narrado em terceira pessoa, com um

288 Cf. RAMOS, Nuno. In: Posfácio Para Murphy. BECKETT, Samuel. Murphy.São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 227. 289 JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 90.

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dose elevada de humor, o conto fala da perplexidade diante da desconcertante justiça

divina.

Mas éainda possível dizer que cada obra posterior resgata este Belacqua a qualquer

ensejo. “Um texto pequeno dos anos 30, ao se intitular Sedendo et quiescendo, retoma, do

próprio Dante, a célebre fórmula aristotélica do muito preguiçoso e histórico Belacqua,

“sedendo et quiescendo anima effecitur sapiens” (é permanecendo sentado em repouso que

se dá sabedoria à alma)290”.

Todos os expectantes de Beckett são preguiçosos e tomam, de forma literal, as palavras

de Aristóteles para si.“É sentado, nu, na cadeira de balanço”, que Murphy medita sobre “o

nada de novo debaixo do sol.” A errância e a imobilização progressiva, que se segue a ela,

parece ser o percurso natural das criaturas beckettianas. Watt, Mercier e Camier ainda são

andarilhos, embora tentados pela movimentação dos músculos ou ameaçados pela queda.

Em Novelas e Molloy é que o reencontro daquele que partiu se dará, em todos os sentidos

do termo, deitado, tendo finalmente se desapegado da condição humana. “Molloy, Moran,

Malone, Hamm, Winnie... todos caminham para um processo de decomposição que

culminará com o Inominável e o trio de cabeças de Comédia291.”

O narrador de Como é, escrita em francês em 1961, está em posição semelhante, com a

diferença de estar deitado;um Belacqua caído de lado, lembrando também a posição

fetal292.Ademais, toda a galeria de personagens de Beckett evita o trabalho.

Kostas Axelos293, dialogando criticamente com Marx e Heidegger propõe que nos

aventuremos a pensar o jogo do mundo do Nada-Ser na dimensão de superação do

niilismo, indicando o tempo da errância verdadeira como possibilidade inteiramente nova de

existir. Marx - diz Axelos - sustenta que o sistema capitalista impede o trabalhador de sentir

prazer no/do seu trabalho (necessidade) e de vê-lo como jogo (liberdade). Axelos usa o

conceito de jogo, tanto como categoria ontológica quanto como um ideal ético para uma

290JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 90 291 Idem. 292BECKETT, Samuel. Como é. Trad. Souza, Ana Helena. São Paulo: Iluminuras, 2002, p.181. 293 AXELOS, Kostas. Introdução ao pensamento do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 26-27.

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sociedade alienada. Ele argumenta, seguindo Marx, que essa oposição entre o trabalho

(necessidade) e jogar (liberdade) precisa ser abolida e, na esteira de Heidegger, que o jogo

é o significado do Ser que foi esquecido no mundo moderno (oesquecimento do Ser).

Criticando as contas excessivamente deterministas da globalização, por exemplo, Axelos

argumenta que a pergunta sobre o Seré um processo de formação do mundo, que é mais

aberto para a transformação do que os teóricos marxistas clássicos gostam de admitir. O

aspecto relacional de jogo é o que liga a atividade humana com a atividade do mundo, e os

diversos sistemas da vida humana (mágica, mito, religião, poesia, política, filosofia, ciência)

em conjunto e para o mundo.

Assim, o jogo não é de todo apenas uma vocação infantil, para Axelos.Segundo ele, “a

experiência da ausência é talvez a experiência fundamental por vir294”. Essa nova

possibilidade de clareira do Ser-nada, essa possibilidade de um novo ser-mundo aberto

seria possível a partir da compreensão do ser no jogo, que é e não é, não mais obedecendo

aos princípios transcedentes ou ideais, tais como: a verdade, o bem e o belo.

Entretanto, em Beckett, o contato do ser com a linguagem através da clareira, esse

espaço de emancipação e de iluminação, é sempre parcialmente realizado e parece adiar

alguma coisa por vir, algum novo saber, que deve permanecer, como seus personagens, à

espera.Sua escrita evita uma síntese apressada, providenciada pelo vício de uma

apreensão metafísica do mundo.Para isso,não abdica da escuridão, que avança, como

rápidas nuvens em uma tempestade, obliterando de forma intermitente cada enunciado que

queira clarificar algum sentido que ajuste o real ao ficcional:seus jogos deixam em

suspensão tanto a entrada quanto a saída, a fuga e o retorno, o dentro e o fora.

No teatro, a crise da ação assume múltiplas formas a partir do século XIX. Os dramas de

Tchekhov, por exemplo, promoverão uma progressiva descentralização que culminará com

a fragmentação de suas peças. Porém, é no teatro estático de Maeterlink que será

294AXELOS, Kostas. Introdução ao pensamento do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 26-27.

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concebido um teatro que se quer pura imobilidade295.

Bartleby296, o escriturário, de Herman Melville, é um personagem que possui uma

setença, uma frase, com a qual se esquiva, ao mesmo tempo em que põe em xeque esses

lugares pré-concebidos. O conhecemos através de uma narrativa em primeira pessoade um

advogado. A experiência que se dá, quando o segundo passa a conviver com o primeiro,

afeta o narradorpor toda sua vida. A própria iniciativa do advogado emnarrá-laacusa isso:

pretende compreender o que aconteceu naquele episódio; pretende, principalmente,

entender as atitudes, o modo de ser no mundo, o ethos, daquela inexprimível figura, que é

Bartleby.

O distinto personagem que nos conta a história guia-se por severos padrões de seu

tempo, convencido de que “a melhor maneira de se viver é de se encarar tudo com

tranquilidade”, ou ainda, de que “a forma mais fácil é a melhor”. Cercado de copistas em seu

escritório, o advogado renuncia progressivamente a todo o entorno para prestar atenção à

inaudita conduta do mais peculiar de todos, Bartleby.

Desde que começara seu ofício de copista no escritório, o escriturário se acomodara

junto a uma janela que nada descortinava, respondendo a cada solicitação, a cada ordem,

com a sentença: “Preferiria não”. (I would prefer not to). Isso obceda o narrador da história.

Qual seria o conteúdo enigmático, a charada concernente à simples sentença combinada a

uma atitude de recusa? O século XIX leu a novela e compartilhou do mesmoespanto de seu

narrador diantede Bartleby.

Deleuze, em Crítica e clínica 297, analisa que, ao parar de copiar, isto é, de reproduzir

palavras, o escrivão “cava uma zona de indeterminação”, fazendo com que as palavras já

295Todavia, será o “teatro estático,” de Maeterlinck, que marca uma das manifestações mais radicais no rompimento com a necessidade de uma ação dramática na concepção da cena. Um teatro de pura imobilidade, que substituirá a ação por movimentos de outra natureza: “os movimentos da alma”.Contudo, Beckett parece, nesse sentido, mais próximo de Tchekhov, o poeta da inércia,cujodrama, assim como os do autor irlandês, é uma ode ao tédio e à impossibilidade de fazer sentido, ainda que os personagens nunca se abstenham da tensão que tal situação ocasiona. Além disso, a escrita de ambos é marcada peloelemento cômico. SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo.São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 37. 296 MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. São Paulo: Cosac Naify, 2008. 297DELEUZE. Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011, p.94.

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não se distingam, produzindo, assim, “o vazio na linguagem”. Para o filósofo, Melville

inventa uma língua estrangeira no interior da língua, confrontando toda a linguagem com o

silêncio. Deleuze considera a atitude de Bartleby como uma espécie de “potência passiva.”

A repetição assertiva de Bartlebly da frase “Preferiria não” é paradoxal: uma negativa que

desmente a primeira impressão de negatividade, pois é uma opção, um gesto afirmativo.

Como afirma Deleuze em seu texto:

Eu preferiria nada a algo: não uma vontade de nada, mas o crescimento de um nada de vontade. Bartleby ganhou o direito de sobreviver, isto é, de permanecer imóvel e de pé diante de uma parede cega. Pura passividade paciente, como diria Blanchot. Ser enquanto ser, e nada mais. Mas se ele dissesse não (cotejar, sair...), se ele dissesse sim (copiar), seria rapidamente vencido, considerado inútil, não sobreviveria. Só pode sobreviver volteado num suspense que mantém o mundo à distância. (DELEUZE, 2011, p.94)

Bartlebly só pode sobreviver, acrescentaríamos, na terceira margem, ou habitando a

lacuna paraláctica298 da qual nos fala Zizek.Bartlebly, como Estragon e Vladimir, é o homem

sem referências, sem posses, sem propriedades, sem qualidades, sem particularidades.

Elesfogem à regra de uma existência que se fundamenta nos princípios da metafísica,

pautada unicamente no binômio do sim ou não. Antes, são e não são. O século XIX será

atravessado por essa busca do homem sem nome, regicida e parricida, em que o Ulisses

dos tempos modernos não se ajusta a uma realidade falsamente harmônica. É o prenúncio

do homem esmagado e mecanizado das grandes metrópoles, mas de onde se espera,

conforme o próprio Deleuze, que saia “o Homem do futuro ou de um mundo novo” 299.

Slavoj Zizek300, filósofo contemporâneo, afirma que o gesto de Bartleby, ao contrário

de algumas interpretações, não é puramente um gesto de resistência, do dizer Não!ao

universo existente da maquinaria social. Em seu modo político, o “Preferiria não” de Bartleby

não é sequero ponto de partida de uma “negação abstrata”, mas, antes, o gesto formal da

298Zizek chama de lacuna paraláctica a intransponibilidade entre duas sentenças opostas, igualmente válidas. O confronto de dois pontos de vista intimamente ligados entre os quais não é possível haver nenhum fundamento comum; em que a tensão dialética não é passível nem de mediação, nem de superação em uma síntese. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 94-95. 299 Idem. 300ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 498.

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recusa como tal. A repetição da sentença por Bartleby torna-se, nesse sentido, um

significante-transformado-em-objeto, um significante reduzido a uma mancha inerte que

representa o colapso da ordem simbólica. Se o gesto de Bartleby fosse uma recusa pura e

simples, ele poderia ser reconhecido como rebelde ou revoltado, e com este estigma,

desempenharia um papel social. Mas a articulação da sentença desarticula todo ato de fala,

ao mesmo tempo em que esfumaça sua máscara social, tornando-a um teste de Rorschard

indecifrável, com imagens nada simétricas.

É o que o advogado percebe com terror: todas as suas esperanças de trazer

Bartleby de volta à razão para fixá-lo em um papel social que ele identifique

desmoronam.Suas investidas para domar seu comportamento repousam sobre uma lógica

dos pressupostos, segundo a qual um padrão espera ser obedecido. Assim, o“amigo

benevolente” fracassa, ao passo que Bartleby inventa umalógicacomportamental que é

suficiente para minar os pressupostos da linguagem conhecidos.

A fórmula,I prefer not to, na acepção de Deleuze301, “desconecta” as palavras e as

coisas, as palavras e as ações, mas também os atos e as palavras: ela corta a linguagem de

qualquer referência em conformidade com a vocação absoluta de Bartleby ser um ser sem

referências, sem referência a si mesmo nem a outra coisa. A tensão presente na relação e a

perplexidade gerada nesse confronto de personalidades são diametralmente proporcionais à

estranheza provocada nos leitores. Deleuze propõe a questão? “No caso de Bartleby, será

que a relação com o advogado é igualmente misteriosa e indica por sua vez a possibilidade

de um devir, de um novo homem302?” A estranha presença de Bartleby, sua insistência em

não deixar aquele lugar, poderia desestabilizar as identidades fixas daqueles personagens?

Segundo Zizek, a “liberdade” não é simplesmente o oposto de necessidade causal

determinística: “como sabia Kant, ela significa um modo específico de causalidade, a

autodeterminação do agente. De fato, há um tipo de antinomia kantiana da liberdade. Se um

301DELEUZE. Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 97. 302Idem, p.117.

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ato é totalmente determinado pelas causas precedentes, é claro que ele não é livre; se,

contudo, depende da pura contingência que corta a cadeia causal completa, ele tampouco é

livre303.”

Como solucionar o paradoxo? A única maneira de resolver essa antinomia é

introduzir um segundo nível de causalidade reflexiva: sou determinado por causas (sejam

motivações, sejam causas naturais, brutas e diretas), e o espaço de liberdade não é uma

lacuna mágica nessa cadeia causal de primeiro nível e sim minha capacidade de

escolher/determinar de modo retroativo quais causas irão me determinar.Nos termos de

Kant, como vimos, sou determinado por causas, mas posso determinar retroativamente

quais causas irão me determinar; nós, sujeitos, somos afetados passivamente por

motivações e objetos patológicos; mas, de maneira reflexiva, nós temos o poder mínimo de

aceitar (ou rejeitar) sermos assim afetados, ou seja, nós determinamos retroativamente as

causas que podem nos determinar ou, ao menos, o modo dessa determinação linear. A

“liberdade”, portanto, é inerentemente retroativa: “em seu aspecto mais elementar, não é

simplesmente um ato livre que, vindo do nada, inicia um novo vínculo causal, mas sim um

ato retroativo no qual vínculo/sequência de necessidadesdeterminará o sujeito304”.

Para Zizek, quando Heidegger enfatiza que o Dasein autêntico decide livremente,

que representa a liberdade autêntica, em contraste com os que apenas seguem o “um”, sua

noção de liberdade envolve a mesma sopreposição paradoxal de escolha/livre decisão e de

assunção de uma necessidade predestinada, que encontramos desde a teologia protestante

até Niestzche e Wagner (a liberdade mais elevada é assumir e decretar livremente o próprio

destino, aquilo que tem que acontecer inexoravelmente: o que de fato é libertado numa

decisão autêntica não é Daseincomo tal, mas, antes, o próprio destino- “o poder do destino

se torna livre”. Em resumo, o que torna livre a minha decisão não é, em primeiro lugar, que

eu mesmo escolha livremente, mas que minha decisão liberte o poder do próprio Destino. O

303ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 274. 304 Idem.

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amor fati, de que nos fala Nietzsche. Mas para Zizek,“a questão da liberdade, em nível mais

radical, é a questão de como se pode romper esse círculo fechado do destino305.”

Aqui, Zizek sugere a adição de uma torção hegeliana a Spinoza: a liberdade não é

simplesmente “necessidade reconhecida/conhecida”, mas necessidade

reconhecida/assumida, a necessidade constituída/realizada por meio desse

reconhecimento. Portanto, esse excesso do efeito sobre suas causas também significa que

o efeito é, retroativamente, a causa de sua causa; esse circuito temporal é a estrutura

mínima da vida. Segundo sua perspectiva, seria esse o “loop” ético que habita Bartleby. No

nível da realidade, há apenas corpos que interagem, a “vida propriamente dita” surge no

nível minimamente “ideal”, como evento material que constitui a forma de unidade de um

corpo vivo como “mesmo” no mudar incessante de seus componentes imateriais.

Portanto, a conclusão a tirar, segundo Zizek, é que a única maneira de explicar o

surgimento da distinção entre “dentro” e “fora” que constitui um organismo vivo é postular

um tipo de reversão autorreflexiva por meio da qual, falando nos termos de Hegel, “o Um de

um organismo como um Todo “postula” retroativamente, como seu resultado, como aquilo

que ele domina e regula, o conjunto de suas próprias causas.

Essas “conciliações”, promovidas por Zizek, entre Hegel e filósofos que negaram

peremptoriamente suas formulações, talvez sejam contestáveis. Deixaremos por conta e

risco do autor de “A visão em paralaxe”, algumas idiossincrassias em sua tentativa de

reabilitar o materialismo dialético a todo custo, mesmo que a filosofia hegeliana, convertida

em sua teoria daparalaxe, tenha, após essa torção, digamos assim, muito pouco a ver com

o pensamento do autor da Fenomenologia do Espírito. O que nos interessa aqui, e talvez

seja mais apropriado assim, é realçarmos o caráter autorreflexivo da liberdade, esse nível

mínimo de escolha e decisão fundada na subjetividade, que, talvez, em nossa modesta

opinião, dispense todos essas curvas e distorções no pensamento, promovidas por Zizek.

Este gesto vazio de Bartebly não possui teleologia. Aqui, a liberdade cerceada

potencializa o jogo que não possui utilidade; é um fim em si mesmo, que irá tornar possível

305ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 274.

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uma existência outra. Também os personagens de Beckett optam por esse tipo de liberdade

quando se negam à ação. A angústia surge quando somos compelidos a confrontar a nossa

própria liberdade, mas, por outro lado, o jogo ilude essa vigilância trágica, despistando o

jogador e afastando-o de suas aspirações de grandeza.

No mundo contemporâneo, precisamente quandoparecemos expressar nossos

desejos mais íntimos e autênticos, “o que eu quero” já me foi imposto pela ordem patriarcal

que me diz o que devo desejar, de modo que a primeira condição de minha libertação seria

o rompimento com o círculo vicioso de meu desejo alienado,numa aprendizagem na qual

consiga formular meus desejos de maneira autônoma.“Ou seja, já que as nossas tentativas

de afirmar a liberdade e escapar do destino são elas mesmas instrumentos do destino, o

único modo real de escapar do destino é renunciar a essas tentativas, é aceitar o destino

como inexorável306”. É, por exemplo, o caso do destino de Édipo: o assassinato do pai e o

casamento com a mãe só realizaram-se a partir da própria tentativa de seus pais de evitá-lo.

Foi mesmo a tentativa de evitar o destino que posibilitou que ele se concretizasse.

Mas os desvalidos de Beckett já se libertaram do compromisso de serem falsamente

livres.A culpa, em Estragon e Vladimir, não é subjetiva, pois eles não têm consciência de

qual seria o erro, o delito que cometeram. Eles se debatem na ambiguidade culpado-

inocente no exame da parábola dos dois ladrões, mas é apenas mais um jogo entre os

jogos, para passar o tempo. Não chegam a nenhuma conclusão a respeito disso, e nem

atribuem a si nenhuma responsabilidade direta em relação ao contexto em que se

encontram.

É claro que aqui reside, de modo um tanto enigmático e impreciso, uma nova forma

de estar no mundo. A maneira de pensar, existir e ser desses personagens talvez se

inscreva como umdevir;o homem do futuro de quem falou Deleuze e Axelos;ou a criança

que joga com as pedras e brinca com o tempo, de Heráclito. Não nos absteremos do

assunto. Ele retornará no último capítulo. Por hora, nos deteremos um pouco mais no motivo

da liberdade, em um diálogo de Esperando Godotcom a peça “A vida é sonho”, de Calderón

306ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 274.

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de La Barca.

5.3O delito de ter nascido: o motivo da liberdade em Calderón e Beckett

Entardecer307. À luz crepuscular, junto a uma única árvore, uma estrada. Nela, Vladimir e

Estragon aguardam, resolutamente, Godot, um personagem cujas origens não sabemos. Há

dois encontros fortuitos com outro par inusitado, Pozzo e Lucky, que, como os dois

primeiros, são opostos complementares e vagam ao léu por aquele espaço, também

tentando driblar, à sua maneira, a total ausência de referências. “Nada acontece, ninguém

vem, ninguém vai, é terrível308”, diz Estragon, a certa altura. Não há nada que possa ser feito

para modificar esse aterrador cenário, a não ser esperar; esperar por Godot.

Hora típica dos melancólicos, que sempre se veem absorvidos pela instabilidade do

tempo em fuga, o crepúsculomantém, com a aurora, essa característica comum de caráter

transitório, sendo o primeiro, no entanto, mais soturno que a segunda, que pode acalentar

alguma esperança, promessa ou realização. Poderíamos até mesmo dizer, sem desejarmos

ser por demais categóricos, que, enquanto a aurora anuncia o futuro desconhecido, mas

promissor, o crepúsculo evoca o passado, um passado que ainda permanece encoberto e

inapreensível, soma de temporalidades pretéritas, que insistem em revisitar o presente,

ansiando por uma significação. Instalada a noite, “com seus sortilégios”, toda a angústia

poderia ser revertida em volúpia, já que, muitas vezes, sua atmosfera é palco para a

animalidade recalcada durante a experiência diurna.

Pozzo: Já anoiteceu? Silêncio. Vladimir e Estragon observam o poente. Estragon: Está amanhecendo, diria. Vladimir: Não é possível. Estragon: E se for a aurora? Vladimir:Quanta bobagem! Daquele lado fica o oeste. Estragon: E o que você entende disso? Pozzo (angustiado): Já caiu a noite? Vladimir: Estou dizendo que está amanhecendo. Pozzo: Por que não me respondem?

307Rubrica da peça.307 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Nayfi, 2006, p.17. 308 Idem.

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Estragon: Para não dizer qualquer tolice.(BECKETT, 2006, p.175)

Como cantou Baudelaire, “é a noite que alivia/ as almas que uma dor selvagem

suplicia309.” A grande tortura, no entanto, a que se submetem os personagens de Beckett, é

que a eles é furtada a experiência noturna, com a qual, quem sabe, poderiam libertar seus

monstros e fantasmagorias. Condenados ao crepúsculo eterno, são forçados a uma vigília

cuja atmosfera se apresenta rarefeita, tal como no universo onírico, gerando uma sensação

de estranhamento,ao mesmo tempo em que aquela realidade arruinada lhes parece soartão

familiarmente. Isso porque, conquanto a ordem dos eventos pareça difusa, não é ela por

completo desprovida de familiaridade, dada a incômodasensação de identificação coma

rotina, com o hábito, que em sua repetição exaustiva, é o grande protagonista da cena.

Vladimir(garantindo): Está anoitecendo, senhor, estamos chegando à noite. Meu amigo estava tentando me confundir e admito que cheguei a duvidar, por um segundo. Mas não foi à toa que atravessei esta longa jornada e asseguro que ela está quase esgotando seu repertório.

Embora não seja uma característica exclusiva do Barroco, a melancolia é uma

disposição que vez por outra aparece na produção artística desse período. É certo que o

Barroco é mais efusivo, quer ignorar a crise e, na maioria das vezes, quando a encena, o faz

de maneira espetacular. Porém, é curioso quando se atribui exclusivamente à modernidade

essa sensação de impotência do homem diante da morte e de sua inabilidade no mundo. O

homem barroco também padecia desse mal, dessa sensação trágica, de não conseguir

compreender com precisão a lógica divina- e, apesar de crer com mais ênfase na existência

de um Céu redentor após a morte, não lhe abandonava em nenhum instante a angústia por

não apreender, já àquela época, o desconcerto do mundo.

Mesmo nesse período, a despeito da onipotente autoridade dos desígnios sagrados e

suas “tortuosas razões”, o teatro cristão também soube questionar seu Deus. O que

queremos dizer aqui, portanto, é que a melancolia não é uma sensação exclusiva dos

modernos: ela encontra ecos expressivos na arte Barroca e, embora não goze de um

309BAUDELAIRE, Charles. Le crépuscule du soir. In:As Flores do Mal.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985,p. 348 - 349.

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protagonismo nesse contexto, em virtude de sua força dissidente, não pode, por causa

disso, ser ignorada.

É claro: o conjunto de referências que possuía o homem barroco era bem mais

desenhado, embora suas linhas, não raro, se convertessem em linhas de força que o

sufocavam, tornando-se, às vezes,tão insuportáveis quanto indefinidas, nesse confronto

entre a subjetividade e as prescrições das instituições que denegavam a singularidade. “A

configuração do Barroco é associada à ideia de poder. Em todas as partes, Espanha ou

França, houve esse conluio entre Estado e arte310”.

No entanto, a pressão do poder não inabilitou a criação do Barroco. Através da

confluência e fusão num mesmo incitamento criador da vontade de arte e do impulso lúdico,

o barroco veio a ser, em toda a riqueza e diversidade de suas manifestações, a

concretização do que poderíamos denominar “uma grande e vital vontade estética de

jogo311”.Se a subjetividade do homem barroco é rechaçada, em seu projeto de

exteriorização pelas forças coercitivas do seu tempo, ela não se deixa, contudo, domesticar-

se facilmente. Nesse processo de alta-tensão,“em que a descarga de energia poderia

ocasionar uma autodestruição, ela, contudo,reflui sobre si mesma, e, na tentativa de

encontrar qualquer modo de plenitude, ainda que numa dimensão de interioridade, acelera

sua inteira disponibilidade de imaginação, liberando-se, afinal, em formas criativas

impregnadas de jogo e fantasia312”.Para o artista barroco, o jogo não é simplesmente uma

forma de alhear-se à realidade; ele é, antes, um instrumento de subversão, de rebelião

perante uma realidade que quer sufocar, pela pressão histórica, a sua singularidade.

Nesse sentido, assumindo-se como uma aspiração à liberdade individual frente às forças

objetivas do contexto, o modo de fazer do Barroco lida com um material em convulsãoe

pode ser estimado como um prenúncio da obra de arte aberta, na medida em que esta,

fazendo somar a solução de pesquisa formal aelementos aleatórios e mesmo arbitrários,

310 MARAVALL, José Antonio. La cultura Del Barroco. Barcelona: Ariel, 1985. 311ÁVILA, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971, p.51. 312 Idem.

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inclina-se de modo especial para a esfera da criação estética.

O artista barroco não olvida sua condição de homem acossado em sua própria

interioridade, frente ao duelo entre a fé e a razão. Sua alma, agoniada pelas coerções do

mundo e pela paixão reprimida dos sentidos, logra em um expressivo manejo do jogo, no

qual converterá a propensão lúdica em instrumento de afirmação criadora e liberdade

subjetiva.

No gran teatro calderonianodel mundo não resta outra alternativa que assumir os papéis

em uma encenação.Esta, embora imbuída de alto grau de fantasia e artíficios, escapará da

correalidade representativa da arte para constituir-se na própria pungência de realidade,

justamente em virtude de seus dispositivos lúdicos. A vida barroca se exprimirá, assim,

simultaneamente, em êxtase festivo e sofrimento existencial, insistindo em formas

eminentemente artísticas, em cuja tessitura o jogo será tanto o móvel das virtualidades

criativas, quanto o veículo libertador de potencialidades sociais reprimidas.

Segundo Walter Benjamin313, é em Calderón que podemos estudar o drama trágico do

Barroco na sua forma mais acabada. A sua aptidão em por em coluio palavra eobjeto –

resulta, entre outros fatores, da precisão com que se harmonizam a dimensão do “luto”

(Trauer) e do “jogo”. “A ideia da própria vida como jogo e, assim, a fortiori, da própria obra

de arte como jogo,também apareceria no Romantismo alemão, embora tenha sido estranha

ao Classicismo.”

As principais linhas temáticas que predominam na literatura barroca – o sentimento

do fluir inexorável do tempo, o pessimismo, o desengano, a vanidade, a solidão, a

teatralidade do mundo, descendem do dilema da alma barroca e procuram sua expressão

num teatro de feitio alegórico, que, mais do que paródia cervantina, salta aos olhos como

exemplo de alegorização do pesadelo barroco, por encenar o absurdo existencial do

indivíduo que habitava aquela época.

No teatro de Calderón, que tinha por objetivo tanto divertir, quanto elevar

313 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: AutênticaEditora, 2011, p.79.

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pela imagem edificante e religiosa, a linguagem haveria de falar concomitantemente à inteligência e aos sentidos do espectador, transmitindo-lhe não só a mensagem cênica, mas predispondo-o para isso através de formas carregadas de impressionismo formal e plástico. O revestimento lúdico do teatro calderoniano,inseparável de sua estrutura, começa então no próprio artifício da personificação dramática de entidades abstratas ou figuras concretas inominadas, para tornar-se mesmo um mecanismo de impactação visual na montagem cenográfica ou de encantamento sensorial num verso que às vezes se aproxima da plasticidade sonora e metafórica de Góngora. (ÁVILA, Afonso, 1971, p.57)

Tanto em A vida é sonho, quando em Esperando Godot, o início da peça se dá no lusco-

fusco do dia. Claro, em Godot, não temos ação, mas o importante a salientar, aqui, é,

justamente, o turno escolhido para o início da ambientação: o crepúsculo, um horário

intermediário, em que o cromatismo difuso da atmosfera anuncia que não é mais dia,

contudo, ainda não é noite. Segismundo vê-se envolto no véu vespertino enquanto agoniza

na prisão. Seu lamento, que abre a peça juntamente com a chegada de Rosaura e Clarim,

tem como primeiro verso umaevocação muito parecida com a litania repetida por Lucky em

seu monólogo:

Segismundo: Ai, mísero de mim, mísero de mim! Ai, infeliz! Descobrir, oh Deus, pretendo, já que me tratas assim que delito cometi fatal contra ti nascendo. Mas eu nasci e compreendo que o crime foi cometido pois o delito maior do homem é ter nascido. (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.36)

Lucky, também, em seu discurso, volta-se para Deus questionando o silêncio, a apatia e

o seu total desprezo diante dos sofrimentos dos mortais.Utilizando-se de uma construção,

na qual os signos se enfileiram aleatoriamente, o assunto lá tratado também clama por um

sentido para um mundo desordenado: “o tênis adiante a barba as labaredas as lágrimas as

pedras tão azuis tão calmas ai de mim...314”Esta realidade, que não mais se deixa apreender

em sua totalidade, é ficcionalizada em uma série de metonímias, que dão notícias de uma

314 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. Cosac Naify: São Paulo, 2006, p.87.

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realidade caótica, de impossível ordenação315. A pergunta fundamental, nos dois casos,

estaria circunscrita à tentativa de compreensão, de qual seria o motivo, o delito, que faria

com que o homem, ao longo de sua existência, padecesse de tantos infortúnios, para ao

final, inevitavelmente, encontrar-se com a morte.

Se Esperando Godotse divide em dois atos, sabemos, entretanto, que Vladimir e

Estragon não se lançam apenas em duas jornadas. Todas as falas insinuam que a

circularidade, que ali vemos, vem ocorrendo ad infinitum, sem que seja possível determinar

seu começo e seu fim. Sim, os maltrapilhos de Beckett estão presos àquela estrada, àquela

árvore, mas acima de tudo é a espera de Godot que torna, paradoxalmente, a jornada

suportável em sua inconclusividade: é a ela que estão amarrados, embora o texto insinue

que até poderiam ir embora, caso desejassem, como acontece no Ato II:

Estragon: Vamos embora. Vladimir: A gente não pode. Estragon: Por quê? Vladimir: Estamos esperando Godot. Estragon: É mesmo. (Vladimir retoma o seu vaivém) Não dá para você ficar parado? Vladimir: Estou com frio. Estragon: Chegamos cedo demais. Vladimir: É sempre ao cair da noite. Estragon: Mas a noite não vem. Vladimir: Vai cair de uma vez só, como ontem. Estragon: E então será noite. Vladimir: E poderemos ir embora. Estragon: E então será dia mais uma vez. (Pausa) O que fazer, o que fazer? (...) Vou embora. (BECKETT, 2006, p.142.)

Todavia, nesse episódio, é de novo um “inutensílio” que os fará perseverar ali. Estragon

se despede, com um categórico “Adeus”, mas Vladimir encontra o chapéu de Lucky. É

nessa passagem que se dá a longa pantomima com os chapéus, já mencionada, que em

muito se assemelha a um jogo dos Irmãos Marx, em “Duck Soup”. Após a pantomima, os

incansáveis heróis de Beckett, a convite de Vladimir, sedispõem a jogar um novo jogo: os

dois representarão Pozzo e Lucky. Enclausurados, encaixotados, a única escolha que

possuem é a liberdade de jogar, pois, se por um lado, estão enlaçados à espera de Godot, a

315No capítulo I, fizemos uma análise mais detalhada do monólogo de Lucky e de sua estrutura metonímica, alegórica em contraposição a uma representação metafórica, totalizadora do real. “O monólogo de Lucky: no reino da ilinx.”

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situação em que se encontram os coloca em plena disponibilidade para suas brincadeiras,

em contraponto à tenebrosa impressão da eterna repetição do mesmo.

Já a trajetória de Segismundo é linear. Eleaprende, ao longo de suas três jornadas, “que

a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são”. Tema caro ao Barroco, a vanidade das coisas do

mundo é apreendida pelo príncipe da Polônia, após suas incursões por um universo

supostamente onírico, no qual seus limites serão testados e sua idoneidade moral posta à

prova.Estragon e Vladimir não contam com esse artifício, que os devolveria, ao final de sua

insólita experiência, a uma realidade ordenada. A imprecisão da atmosfera onírica em que

se encontram, que em muito se assemelha a um sonho ruim, não lhes fornece epifanias que

recobrarão a estabilidade de um mundo em desalinho.Devem aguardar de prontidão Godot

e não podem, em hipótese alguma, interromper a vigília.

Se o Barroco foi tido, contudo, como um instrumento de dominação ideológica, que

antecipa de alguma maneira a sociedade de massas e os aparelhos de controle do Estado,

há, entretanto, no interior de A vida é sonho, jogos através dos quais a ironia lutuosa irá

questionar, zombar e decompor esses mecanismos de coerção e coesão social.

Clarim, por exemplo, criado de Rosaura, em duas ocasiões parece salientar que percebe

a situação de alienação em que vivem seus pares, afirmando, em atitude irônica, saber fazer

o jogo que lhe permite sobreviver em sua época:

Segismundo: Acho que estás contra mim, porque me replicas. Clarim: Diz o príncipe muito bem, e tu fizeste muito mal. 2º Criado: Quem te deu licença para intervir? Clarim: Eu próprio a tomei. Segismundo: Quem és? Clarim: Um intrometido; e nesse ofício sou chefe, sou o maior mequetrefe que terá sido parido! Segismundo: Só tu, nestes novos mundos me agradaste! Clarim: Eu, senhor, sou um grande agradador de todos os Segismundos. (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.59)

Segundo Benjamin316, o drama trágico não alcança a perfeição nos casosem que é mais

canônico, mas naqueles em que as imagens jocosas deixam ouvir o timbre da comédia.

316BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: AutênticaEditora,

2011, p. 131.

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Quando a comédia migra para o drama trágico, a figura do bobo demoníaco, que comparece

também com Iago e Polônio em Shakespeare317, enriquece sobremaneira o drama. É por

essa mescla de gêneros, que, ainda consoante com Benjamin, Calderón e Shakespeare,

conseguiram criar dramas trágicos mais importantes que os do século XVII alemão, que

nunca foram além da tipificação rígida da forma. Cita Novalis: “Pois o drama cômico e o

trágico ganham muito e tornam-se verdadeiramente poéticos apenas quando entram numa

delicada ligação simbólica.318” Esse personagem,cuja origem provém da cultura popular,

encarna a figura cômica do raisonneur, que, em sua reflexão, transforma, a si e seus pares,

em marionetas de um jogo.

Clarim é o intriguista cômico, responsável pelo tom burlesco da peça. Ele percebe a

dinâmica, o modo com o qual se dão as interações sociais em seu tempo. Mais que criado,

é um bufão que sabe que representa um papel sociale que esse papel é, em grande

medida, atribuído pelo olhar de opinião do outro. Clarim sabe-se numa “peça”, “El gran

theatro del mundo”; ele observa e percebe-se observado. Seus apartes cumprem o papel do

coro na comédia ática, buscando uma interrupção cômica em que são expostos os atos

humanos consensualmente considerados racionais e razoáveis em seu aspecto irrisório. É

ridiculamente formidável a forma com que zomba daqueles que o tomaram como o príncipe

Segismundo e o aclamaram como futuro rei:

Soldados: Viva o nosso grande príncipe! Clarim(aparte): Por Deus, parece sério. Será costume neste país prenderem uma pessoa num dia, consagrá-la como príncipe no outro e despachá-la no terceiro outra vez para a prisão? Sim, é, porque estou vendo. Preciso desempenhar meu papel. Soldados: Dá-nos os pés, senhor! Clarim: Não posso, porque preciso deles para mim. Além do que, seria feio um príncipe perneta.(CALDERÓN DE LA BARCA,2009, p.59)

317Como sabemos, Shakespeare e Calderón estão entre os eleitos que irão habitar “o panteão” dos românticos alemães. Sob a influência de ambos, o Sturm and Drang fez emergir o núcleo cômico no drama, provocando com isso a interação entre contrários, que na tradição clássica eram excludentes. Assim, a harmonia e a dissonância, o feio e o belo, o real e o imaginário estarão em conluio, graças a este diálogo.

318Cf. Novalis. Apud: BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.131.

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A ironia de Clarim se impõe como máscara social, que permite que, se comportando

como bobo, distancie-se da realidade em que se encontra, para questioná-la em seus

pressupostos. Ela se dá como uma manifestação de liberdade, pois ultrapassa a ordem de

valores na qual se vê inscrito Clarim e seus contemporâneos. Não raro, a ironia se torna

uma forma eficaz de contestação; Clarim não se leva a sério, sequer leva toda aquela ordem

de coisas a sério. Ele, o tolo, é capaz de perceber o quanto as pessoas são facilmente

manipuláveis:

Todos: Viva! Clarim: Segismundo? Para vocês todos os príncipes à força são Segismundos? Segismundo(aparecendo): Quem chama aqui por Segismundo? Clarim: Pronto. Sou um príncipe gorado. 1º Soldado: Quem é Segismundo? Segismundo: Eu. 2º Soldado: Tolo atrevido! Querias fazer-te passar por Segismundo? Clarim: Eu, Segismundo? Nego isso. Vocês que me segismundaram!(CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.59)

Em duas passagens, Clarim distorce o nome próprio Segismundo, para a relativização

de alguns conceitos e lugares sociais via ironia. No primeiro caso, quando se diz um grande

agradador de “segismundos”, torna o nome um substantivo comum. Desta forma, Clarim

denuncia todos os homens que ocupam espaços de poder e aceitam de bom grado a

bajulação, para manutenção da legitimidade de sua posição elevada. É interessante que

naquele contexto, na qual a rigidez da ordem estamentária era notadamente inflexível e a

possibilidade de ascensão social fosse quase inexistente, que um criado ousasse perceber

tais coisas. O segundo momento é quando torna o nome um verbo. “Vocês é que me

segismundaram”, ou seja: vocês, em sua ânsia de súditos desamparados, que desejam, de

qualquer jeito, se curvarem a um rei,que me tomaram e me “reconheceram” como alguém

de sangue azul. Nessa passagem, vê-se claramente que Clarim põe em xeque os valores

que ratificam o status quo da classe dominante.

Também Estragon e Vladimir sabem-se observados, embora não saibam dizer por

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quem. Sentem-se expostos, em um “platô”319, como se o palco fosse uma bandeja e eles, os

personagens, uma refeição para os comensais, que no caso em questão são os

espectadores. Mas é precisamente uma interferência em particular que irá revelar

incorporações de materiais e aspectos característicos do coro, que afetam diretamente o

trabalho de formalização da obra de Samuel Beckett. É que em Beckett não sabemos o que

é monólogo ou coral, não há distinção aparente. É como se Téspis, sozinho, tivesse de

representar não o papel de uma individualidade, como o primeiro ator, mas de toda uma

humanidade apartada. Um dos diálogos que evidencia um colocar em xeque da

representação dramática é aquele em que Vladimir e Estragon agem como coro para

comentar a própria atuação:

Vladimir: Tarde maravilhosa. Estragon: Inesquecível. Vladimir: E ainda nem acabou. Estragon: Parece que não. Vladimir: Mal começou. Estragon: É sofrível. Vladimir: Pior que um espetáculo. Estragon: Decirco. Vladimir: No music hall. Estragon: De circo. (BECKETT, 2006, p.69)

Se a função de Godot parece ser a de manter inconscientes os que dependem dele, a

interrupção da espera por um despertar, recolocaria os personagens diante de um mundo

em que as coisas se apresentariam como são, livres do véu da aparência. A eles, nesse

caso, seria apresentado o núcleo mais duro da realidade, que inabilitaria a possibilidade dos

jogos. À vista disso, a atmosfera rarefeita e indefinida é um ambiente que favorece o hábito

da espera. Eles preferem habitar uma espécie de realidade opaca, na qual os conceitos são

abandonados, as palavras se tornam simples instrumentos para os seus jogos, destituídas

de sua significação original, em perpétuo estado de construção e corrosão. Por um breve

instante Vladimir fica plenamente consciente de todo o horror da condição humana. “O ar

está cheio de nossos gritos... Mas o hábito é um grande amortecedor.” Ele olha para

Estragon que está dormindo e reflete: “Alguém também está me olhando, de mim também

319VASCONCELLOS, Claudia. Teatro Inferno: Samuel Beckett. São Paulo, 2012.

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alguém está dizendo, ele está dormindo, ele não sabe de nada, deixa ele dormir... Não

posso mais!” A rotina de esperar Godot representa o hábito que os impede de alcançar a

consciência dolorosa, porém fértil, da plena realidade da existência. (ESSLIN, 1968, p.52)

Segismundo está preso na torre. A prisão do príncipe não é voluntária. É seu pai, o rei,

que o confina em função de um vaticínio que fora proferido na ocasião de seu nascimento.

Ao contrário de Segismundo, são os personagens de Beckett, em suas falas, que deliberam

que continuarão ali. Não há uma força institucional ou mítica que seja responsável pelo

enclausuramento dos dois. O dualismo, em Beckett, entre eu e não-eu, entre o tempo e a

ausência de tempo, entre a essência e a existência, pertence a uma já longa tradição e, em

particular, guarda afinidades com algumas formas de sensibilidade barroca. Mas aqui a

metáfora é pulverizada: os signos não obedecem mais a uma estruturação direta,

correlativa, representacional. É o espaço da metonímia, da incompletude; da imagem

fraturada, alegórica, no sentido benjaminiano do termo.

A fala inicial de Segismundo, já mencionada aqui, continua no sentido de auscultar o

sentido da palavra liberdade e entender em que medida o homem é livre:

Só queria saber se em algo mais te ofendi para me castigares mais. Não nasceram os demais? Então se os outros nasceram Que privilégio tiveram que eu não tive jamais? Nasce o pássaro dourado, Joia de tanta beleza e é flor de pluma e riqueza (...) Do ninho que deixa com calma: E por que, tendo mais alma, tenho menos liberdade? (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p. 36-37)

Pássaros, fera, peixe, regatos; de todas as coisas e seres da natureza, só a

Segismundo, e, por extensão, aos homens que ele representa em sua litania, é negada a

liberdade. É o refrão de sua fala que acompanha a constatação original de que o “maior

delito é ter nascido”, que repete a sua perplexidade diante dessa questão. Segismundo

reivindica, a partir da valorização de sua consciência, certa superioridade em relação a

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esses elementos naturais.

Por que eu, tendo mais vida, Tenho menos liberdade? Em chegando a esta paixão, Num vulcão todo transfeito, Quisera arrancar do peito Pedaços do coração; Que lei, justiça ou razão Recusar aos homens sabe Privilégio tão suave, Licença tão essencial Dada por Deus ao cristal, aum peixe, a um bruto e uma ave? (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.60)

A rigor, quase não há sonhos em A vida é sonho. O que há, sobretudo, é uma simulação

de uma experiência onírica. Um estratagema elaborado pelo pai de Segismundo para que

não pairem dúvidas a respeito da maldição do filho, renegado por ele em virtude de

profecias assombrosas, que fizeram com que o rei, temeroso, o trancafiasse em uma prisão

para assim afastar seu reino da ruína, caso um dia seu filho intempestivo viesse a ocupar o

trono.

Também em Godot não há sonhos. Há, sim, a suposição de que Estragon tenha dormido

na noite anterior em uma vala, mas, quando os doisse reencontram ali, tanto no primeiro

quanto no segundo ato, isso já aconteceu. Não sabemos se o sonho de Estragon é factual

ou é somente mero motivo para um diálogo, um número que já estão cansados de

apresentar, e, até mesmo para eles, já se apresenta como entediante a repetição. Ele tenta

contar seu sonho a Vladimir, que não quer escutá-lo.Desde a primeira tentativa, insinua-se

que aquela narrativa já fora dita e redita.

Vladimir: Estava me sentindo só. Estragon: Tive um sonho. Vladimir: Não me conte! Estragon: Sonhei que... Vladimir: Não me conte! Estragon:(gesto indicando o universo) Isso basta para você? (Silêncio) Nada gentil,Didi. Para quem você quer que eu conte meus pesadelos particulares, se não for para você? Vladimir: Que eles continuem particulares. Você sabe muito bem que não suporto isso. (BECKETT, 2006, p.32)

O motivo do sonho aparece como repetição em Esperando Godot. O fato de Vladimir

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irritar-se com a insistência de Estragon em contá-lo é um indício disso. Estragon, como

aponta a rubrica, chama a atenção do companheiro sobre a necessidade daquela fabulação:

apontando para a amplitude do vazio que os cerca, pergunta: “Isso basta para você?”.

Estragon parece querer mostrar que é mister que façam seus jogos para “matar o tempo”.

Isso os ajudará, sobretudo, na empresa de ignorar aquele espaço que ameaça devorá-los,

caso se entreguem, definitivamente, à dimensão trágica da realidade que paira sobre eles.

Vladimir questiona: “Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora?”

Mas nada o desperta desse estado, que parece um intermezzo entre a vigília e o sono.

Como já dissemos em capítulo anterior, o retorno do Mensageiro de Godot, do Menino, é

apenas mais um artifício para a sua nova adesão aos jogos que se repetem insistentemente.

Já na tragicomédia de Calderón os sonhos são fingidos, e, ainda que sejam o estopim

da principal da trama e do conflito da peça, os únicos sonhos em estado de sono, os únicos

sonhos “reais” estão fora da ação narrada no reino da Polônia320: os da rainha Clorinda,

mulher do rei Basílio e mãe do príncipe Segismundo, que, durante o parto, “entre ideias e

delírios sonhou” que daria à luz um “monstro em forma de homem”; visão que seria

confirmada por uma profecia a respeito de Segismundo. Esse monstro é o monstro da

segunda jornada: sua condição grotesca reside na crueldade com que mata um soldado

sem quaisquer motivos aparentes, apenas para demonstrar poder; na maneira cafajestecom

que corteja Rosaura, ferindo-lhe a honra; na forma desonrosa com a qual se dirige a

Clotaldo, ancião que o criara. É um lugar, na hierarquia social de seu tempo, que lhe confere

a animalidade, a ferocidade deformadora daquele que experimenta o poder sem limites.

Mas, esse lugar é um lugar definido, em uma divisão social fixa e passível de ser

contestada, naquela ordem de coisas,somente pela máscara da bufonaria.

Enquanto o tempo evolui na jornada de Segismundo, em Godot vemos que nada parece

sair do lugar. “O absurdo da morte, a arte concebida como pensum (obrigação desprovida

320 VALLE, Ricardo. Lima, Luís Filipe. Introdução.DE LA BARCA, Calderón. A vida é sonho.São Paulo: Hedra, 2009, p.15.

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de significado), a vida como um longo exílio321”obedecem a uma estrutura calcada na

repetição que não inspira nenhuma chance de remissão ou superação. Como observou

Ross Chambers322, “a luz característica desse purgatório é o crepúsculo, é a penumbra

cinzenta do crepúsculo interminável do norte da Europa, quando o dia está terminado, mas

ainda não foi substituído pela noite, que continua morrendo lentamente, como a promessa

constante de um cair da noite que retire os personagens dessa zona intermediária.”

O grotesco desse “mundo estranhado” aparece como absurdo, essencialmente trágico,

mas difere-se da tragédia grega, pois apesar de o trágico da tragédia também agasalhar o

absurdo, aqui o trágico apresenta-se em uma dimensão profunda e desnorteada; não há

referências, causas, que lhesfaça compreender a sua condição. O mundo se nos apresenta

como alheado.

Mas de que espécie é esta perspectiva? Em que perspectiva o mundo se coloca como

alheado? O mundo estranhado, segundo Kayser323, “surge ante o olhar do sonhador, quer

no sonho desperto, quer na visão crepuscular da transição”. É esse olhar do sonhador em

vigíliaque destitui o realde sua ordenação ilusória, para mostrar, com uma nova ilusão, que a

vida apresenta-se como um jogo de títeres. A partir desse expediente, a poética da cena

beckettiana mescla o grotesco fantasmático do mundo onírico com o grotesco irônico, sendo

amimicry,comseu amontoado de máscaras, a condição de possibilidade para o jogo cênico

prosseguir.

A presença do riso irônico, do ridículo, émais do que um elemento da cena que serve à

espera deGodot. Aqui a função cognitiva da ironia consiste em denunciar a vocação

totalitária do discurso, legado da tradição metafísica, que não permite nem nunca permitiu

uma síntese aberta, justamente por pressentir seu poder desestabilizador e estranhador. A

forma com que Beckett contém o riso, interrompendo seu curso com cortes que ensejam a

dimensão trágica dos eventos, potencializa o mal-estar e comoção dos espectadores. Esse

321CHAMBERS, Ross. Beckett, homme des situations limites. In:NORES, Dominique. (Org.)Les critiques de notre temps et Beckett. Paris:Éditions Garnier, 1971, p.92-93. 322 Idem. 323KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 160.

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riso grotesco, contudo, não escapa da perplexidade concernente a essa categoria. A

pergunta acerca do riso no grotesco tropeça no mais difícil complexo parcial de todo este

fenômeno. Não é possível oferecer uma resposta unívoca.Todavia, talvez haja ainda outro

aspecto no riso contido do grotesco em Esperando Godot.Elesdeixaram-se levar pelo jogo

de palavras; mas, em seguida, foi como se a linguagem mesma se tornasse viva,

arrastando-os consigo no seu redemoinho.O torvelinho que atrai Estragon e Vladimir, esse

redemoinho cujo olho não deveria despertar nenhum sinal promissor, é a espera

hipnotizadora que os impede de se afastarem dali. Sua estrutura circular e repetitiva propõe

um jogo que em si trazjá algo suspeito: se ele pode ser encetado com júbilo e quase

liberdade, pode, simultaneamente,arrastar consigo o jogador e roubar-lhe a liberdade. Se

Godot chegasse, quem sabe poderiam deixar de lado os passatempos, mas, já que isso não

acontece, os jogos devem se repetir, incessantemente.Entretanto, apesar de todo

desconcerto e horror inspirados por este limbo lusco-fusco, a plasmação do grotesco atua

ao mesmo tempo como uma liberdade secreta. O obscuro foi encarado, o sinistro encenado

e mesmo o silêncio materializado em cena passa a ser uma forma de dizer do trágico.

Em Beckett, fala mais aquilo que é silenciado nas entrelinhas. É o que antecipa a fala de

Rosaura, ironicamente,quando ela diz para Segismundo, após este tê-la ofendido, ao

cortejá-la de forma acintosa:“Agradeço a tua gentileza. Que meu silêncio, mais eloquente

que as palavras, te responda. Quando a razão é vagarosa, fala melhor, senhor, quem mais

cala324.”

É que, se o silêncio é abordado em A vida é sonho de forma explícita, como tema, em

Godot, eletorna-se responsável pela própria estruturação da narrativa. Funciona como

cortes, que tornam trôpego o ritmo da cena, modulando a fala dos personagens e

acentuando a fragmentação do discurso. Nele, as tensões e falhas do humano não

encontram repouso ou síntese em nenhuma esfera transcendente.Em Beckett, a ironia

poética da linguagem obedece a um duplo movimento, incessantemente: consiste em

324DE LA BARCA, Calderón.A vida é sonho.São Paulo: Hedra, 2009, p.64.

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verbalizar o silêncio e, simultaneamente, silenciar a palavra.

A vida é sonho,em contrapartida, é uma tragicomédia tradicional, já que ela é composta

de uma estrutura na qual os conflitos e o conteúdo trágico apresentados em sua peripécia

encontram, no frigir dos ovos, um final feliz: Rosaura e Astolfo se casam e a dama tem

reparada sua honra. Rosaura, que não sabia de sua ascendência nobre, tem a paternidade

reconhecida por Clotaldo, desfazendo o desconforto que poderia haver para Astolfo em

enlaçar-se em matrimônio com uma plebeia (além de criar um mal precedente: a união não

feriria o código hierárquico da época).

São muitos os desenlances afortunados: há, ainda, depois de todos os contratempos, o

restabelecimento de relações cordiais entre pai e filho.Estrela, que iria se casar com Astolfo,

acaba por unir-se em bodas com Segismundo, futuro rei (desfecho mais que feliz para uma

donzela que,ao ser trocada, ocupará, com o novo consorte, uma posição hierárquica

superior, a de rainha). Somente o soldado que se rebelou contra o rei, e, em certa medida,

fora o responsável pela oportunidade de Segismundo em provar ao pai sua mudança de

atitude, terá um desfecho infeliz com sua punição.

Desse modo a moral é rigorosamente ratificada: não há espaço para rebeliões em um

estado cuja ordenação deve ser respeitada de forma estrita. Todo esse desenlace, em seus

mínimos detalhes, cumpre realizar de maneira pronta e acabada a tábua de valores

responsável pelo estabelecimento da ordem no Estado Monárquico. Segismundo é um

nome de origem germânica formado pela uniãode duas palavaras diferentes: sigus, "vitória,

triunfo, êxito", emund, “proteção divina”. É a proteção divina para o triunfo ou “aquele que

protege com a vitória”.

De fato, a farsa de Calderón não deixa de atender aos pressupostos reguladores do

Estado Tridentino. Ao afirmar a importância do governo e do autocontrole, a comédia

também ressalta a necessidade das boas escolhas e da importância da ação particular para

que se chegasse ao bem comum. Há nisso uma exaltação do livre-arbítrio frente ao destino

cego: Segismundo supera o prognóstico nefasto dos sonhos da mãe e dos astros. “O

desfecho feliz converge ainda para as determinações de Trento e a luta da Igreja Romana

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após as Reformas contra superstições populares e a heresia calvinista e

luterana325.”Estranhamente, a peça de Beckett parece se assemelhar mais ao universo

pictório do Barrocoque a peça de Calderón. Pois, se na peça de Cálderón há uma resolução

para o conflito, que a remete a um conjunto de valores do mundo esclarecido da

Renascença, em Beckett, a inseparabilidade do claro e do escuro, o apagamento do

contorno das máscaras dos personagens e a oposição ao pensamento cartesiano

encontram-se em constante tensão e não são passíveis de uma resolução ou síntese.

Nesse sentido,o estado de suspensão da oposição entre os contrários, presente em sua

obra, o mantém em íntimarelação com algumas diretrizesdo programa estético barroco,

principalmente se fôssemos estabelecer pontos de contato com sua escrita e as artes

plásticas no período.326

O contraponto principal entre a peça de Beckett e Calderón, no que tange à questão da

liberdade, é a vitória do livre-arbítrio, que opera, nos mínimos detalhes, a restituição dos

lugares e valores naquela sociedade. Segismundo, que, ao começo da peça, questionara a

impotência do homem diante do absoluto e do silêncio de Deus, obtém um desempenho

altamente satisfatório, no qual o jogo âgon lhe fornece todas as chances de provar suas

habilidades.

Suas trêsjornadas o transformarão, tornando-o, finalmente, um senhor justo e bom,

capaz de tomar o que é seu por direito. A repetição das jornadas, ao contrário das

repetições em Esperando Godot, levaa uma vitória sobre o phatos, que derrota horóscopos

e sonhos, para celebrar o livre-arbítrio, que triunfa, magistralmente.

325 Cf. prefácio de Luís Felipe Lima e Ricardo Valle. In: DE LA BARCA, Calderón.A vida é sonho. São Paulo: Hedra, 2009. 326Isabel Cavalcanti, em seu livro Eu que não estou aí onde estou: o teatro de Samuel Beckett estabeleceu uma relação entre a pintura de Caravaggio, (em especial, a tela “A Decapitação de São João Batista”) e a obra de Samuel Beckett. Seu estudo mostra que diferentemente da pintura renascentista, a clareza do objeto deixa de ser, no Barroco, um dos propósitos da representação, já não sendo necessário apresentar aos olhos a forma em sua totalidade. Com efeito, o Barroco evita sistematicamente suscitar a impressão de que o quadro tenha sido composto para ser visto e de que possa ser totalmente apreendido pela visão. “Assim, o uso da luz pelos artistas do século XVII tende a diluir a clareza absoluta das formas, confundindo-as com a obscuridade e apenas vagamente sugerindo-as.” CAVALCANTI, Isabel. Eu que não estou aí onde estou: o teatro de Samuel Beckett (o sujeito e a cena entre o traço e o apagamento)Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

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Decerto foram golpes de sorte que levaram Segismundo à vitória. Alea opera

soturnamente para que Segismundo chegue ao trono: a dúvida do pai diante das profecias é

a primeira e nada usual oportunidade dada ao herói Segismundo pelo progenitor.

(Lembremos da maneira nada condescendente de como Laio reage às profecias do Oráculo

em relação a Édipo.)

E mesmo o ardil elaborado pelo pai de Segismundo, quese assemelha ao dispositivo de

Hamlet para saber se o tio e a mãe eram responsáveis pela morte do pai, são ocasiões que

delineiam oportunidades que favorecem o quase anti-herói de Calderón. Ao organizar uma

peça dentro da peça, cujo enredo dramatizava uma situação similar à possível traição de

que teria sido vítima o rei, Hamlet visava, com esse estratagema, observar seus

espectadores para descobrir se eles eram realmente culpados. É o teatro, amimicry, um

jogo inserido dentro do jogo, que é capaz de fazer com que aspectos

relevantes,concernentes à moral dos personagens sejam revelados. Estragon e Vladimir

também tentam fazer uso do estratagema de Hamlet;aliás, usam e abusam do jogo da

mimicry, mas nesse caso a investida de se comportar como se já se configura como a busca

em si mesma. A recomendação de Hamlet: “ajuste a palavra à ação e a ação à palavra”, não

faz o menor sentido para os dois maltrapilhos, já que o que buscam é justamente a

imobilidade, e mantendo-se ocupados com passatempos que não visam a nenhum

propósito. Segismundo, contudo, tem propósitos mais elevados. Em sua primeira

jornada, Segismundo abusara do poder que lhe é conferido. Caso a peça não tivesse tons

de farsa, o ardil não seria possível.Já em sua segunda jornada, quando é novamente

devolvido ao cárcere e julga que toda a glória que vivera fora apenas um sonho, profere o

famoso monólogo que se encerra com os versos:

Que é a vida? Um frenesi Que é a vida? Uma ilusão, Uma sombra, uma ficção; O maior bem é tristonho, Porque toda a vida é sonho E os sonhos, sonhos são. (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.75)

A vida é sonho, percebe Segismundo aprisionado. Ele havia experimentado, em seus

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sonhos simulados, os resultados da liberdade sem limites, o fascínio pelo poder. O suposto

sonho havia sido tão maravilhoso e discrepante da realidade vivida por ele naquela torre,

que o fez capaz de compreender que as ações, paixões e estados humanos são perecíveis,

fenecendo e voltando ao pó, na efemeridade do tempo absoluto. Olha para a vontade

humana e suas paixões com resignação: tudo é sonho, ilusão, farsa:

Sonha o rei que é rei, e segue com esse engano mandando, resolvendo e governando. E os aplausos que recebe, Vazios, no vento escreve; E em cinzas a sua sorte A morte talha de um corte. E há quem queira reinar Vendo que há de despertar No negro sonho da morte?

(CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.75)

É agora um Segismundo melancólico que toma a cena. Comporta-se como um espectro

que vaga em um sonho, não mais como uma personagem que impõe sua ética de forma

radical, mas como alguém que recua em face de uma realidade na qual não domina os

acontecimentos. Assim, a técnica dramática de Calderón submete o personagem a uma

experiência em que sua sensibilidade será modulada a partir de umestranhamentoque conta

com a imprevisibilidade característica dos sonhos. Sua nova viagemé acompanhada dessa

atitude de reflexão, dessa desfamiliarização: tudo que toca ou vê, todos com quem fala ou

interage, são tomados a partir dessa perspectiva cautelosa diante de um universo

desconhecido e pleno de possibilidades, que ele, como jogador, não domina: toda a

existência se tornou estranha diante da amplitude que ganha seu olhar, quando então é

capaz de contemplar o mundo, os seres e as coisas, em sua instabilidade essencial.

Essa atitude meditativa de quem se toma como espectro o faz enxergar a realidade com

os olhos da morte. Seu sono é o sono da morte327. Sua perspectiva expande-se; é sob o

327“No negro sonho da morte se vê finalmente e de modo definitivo o destino para o qual corre a vida fugaz no mundo temporal: a própria morte e o julgamento do Eterno, e não as imagens fingidas (semelhantes ao sonho dormindo) que são as ações e vontades humanas, como querer governar. Evocam-se tópicas da tradição ciceroniana que postulavam que a morte é sono longo, e o sono, pequena morte. Mas se a vida é sonho, e se os sonhos , sonhos são, o sono da morte corresponde ao verdadeiro despertar, pois desenganam, isto é, descobrem as imagens fingidas pelos sentidos ou pela fantasia, figuras falsas que enganam a verdadeira natureza humana. Morrer seria despertar,

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paradigma irônico, em sua ambivalência paradoxal,que ele é capaz de conter-se e

reconhecer-se menor diante das ilusões mundanas.Como observa Kierkegaard:

O irônico apartou-se das fileiras de seu próprio tempo e tomou uma posição contra este. Aquilo que deve vir lhe é oculto, jaz atrás dele, às suas costas; mas a realidade a que se opõe como inimigo é aquilo que ele deve destruir; contra ela volta seu olhar devorador. (KIERKEGAARD, 2003, p. 226)

Na terceira jornada, ele olhará tudo com desconfiança e seus mecanismos de

autodefesa estarão afiados.

Para Benjamin, o meio de expressão artística empregado por Calderón aplica técnicas

do enquadramento e da miniaturização, que são intrinsecamente responsáveis por seu

núcleo reflexivo, ao potencial crítico que as peças irão adquirir a partir de seus modos de

fazer. O espaço do sonho é um território profano: é lá que Segismundo terá sua epifania,

sua iluminação. Ainda que seja um simulacro, ou por isso mesmo, o espaço onírico é

responsável por essa reflexão paradoxal entre jogo e aparência:

No drama de Calderón essa forma artística assume plenamente o papel que na arquitetura da época é atribuído à voluta: repete-se até o infinito, e miniaturiza até o imprevisível o círculo que circunscreve. Os dois lados da reflexão são igualmente essenciais: a miniaturização lúdica do real e a introdução de uma infinitude reflexiva do pensamento na finitude fechada de um espaço profano. (BENJAMIN, 2011, p.79)

É em virtude do carácter crítico da obra de arte, e mais precisamente do uso da ironia,

expedienteque encontrará expressiva ressonância na produção moderna do século XX, que

o romantismo alemão irá reabilitar Dante, Boccaccio, Shakespeare e Calderón.O critério dos

românticos de Jena não obedecerá a uma história progressiva e linear, mas à densidade e

ao grau de reflexibilidade contida nas formas das obras. Calderón, que fora traduzido por

August Schlegel, um dos irmãos Schlegel fundadores da revistaAthenaeum, será,nesse

sentido, um dos exemplos resgatados para expressar a concepção de obra de arte desse

movimento.

O espaço fantasmático, dual,do teatro de Calderón providencia um núcleo reflexivo

concernente à sua própria poética. Assim, não é o crítico que pronuncia um juízo sobre a

descobrir o véu de sombras, ficções, sonhos, que envolvia a vida”.Cf. prefácio de Luís Felipe Lima e Ricardo Valle. In: DE LA BARCA, Calderón.A vida é sonho.São Paulo: Hedra, 2009, p. 13.

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obra, mas a própria obra que evidenciará sua validade, na medida em que acusa ou rejeita

em si o medium da crítica.

Ao afirmar a primazia da inspiração, da paixão e da sensibilidade, o romantismo apagou

as fronteiras entre a arte e a vida: o poema foi uma experiência vital e a vida adquiriu a

intensidade da poesia. Em Calderón, a vida é um bem ilusório porque tem a duração e a

consistência dos sonhos; para os românticos, o que redime, o que redime a vida de sua

horrível monotonia é o fato de ser um sonho. Na visão de Octávio Paz328, “os românticos

fazem do sonho “uma segunda via” e, mais ainda, uma ponte para atingir a verdadeira vida,

a vida do tempo e do princípio.”

O ensaísta mexicano considera que foi um equívoco dos românticos, portanto,a

admiração por Calderón. Segundo ele, a leitura feita pelos jovens de Jena do dramaturgo

espanhol foi mais uma profissão de fé que uma verdadeira leitura. “Nele viram a negação de

Racine, mas não viram que no teatro de Calderón desenvolve-se uma razão não menor,

porém mais rigorosa, que no poeta francês.” Em sua visão, o teatro de Racine é estético e

psicológico, procurando mostrar a complexidade das paixões humanas.Já a obra do

dramaturgo espanholé teológica, preocupando-se ostensivamente com o pecado original e a

liberdade humana. Em sua acepção, a leitura romântica de Calderón confundiu poesia

barroca e neoescolástica com anticlassicismo poético e anti-racionalismo filosófico. (PAZ,

1984, p.85)

Talvez, não tenha observado o crítico mexicano que as principais determinantes

temáticas que predominavam na literatura romântica – o sentimento de fluir inexorável do

tempo, o pessimismo, o desengano, a vanidad, a soledad, o ensueño, a teatralidade do

mundo – descendem do núcleo dilemático da alma barroca e procuram sua expressão ora

numa prosa ou num teatro de feitio alegórico, ora numa poesia que hesita entre a magia da

metáfora e a engenhosidade do conceito.Nesse sentido, ideologia e fantasia, modo de ser e

modo de fazer resultam em noções indissociáveis na fenomenologia da criação literária

328PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.85-86.

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tanto romântica quanto barroca, numa estrutura combinatória de ampliação semântica e

ludicidade da língua, que não se restringea uma abordagem que se prenda somente

aoassunto abordado. Isso porque todos esses temas, cada qual à sua maneira, convergiram

para um ponto nodal único, que foi a necessidade histórica e anímica de fantasia, de

jogo.Nesse sentido, a teoria da ironia romântica, criada por Friedrich Schelgel,329

representará uma revolução à parte, pois dela decorre a compreensão do mundo como

paradoxo, do mundo como aglomerado de contradições e incoerências. Isso significa a

coexistência do ímpeto criativo com apreciação crítica em uma realidade turbulenta,

aspectos que certamente encontram-se inscritos na tragicomédiaA vida é sonho, apesar de

seu desfecho conciliatório com a ordem vigente.

Beckett, não gozava de um contexto mais satisfatório queCalderón e os românticos. A

impossibilidade de narrar que se evidencia de forma contundente no século XX, da qual

Beckett era consciente, junto à obrigação de se expressar, fará com que o autor de Godot,

mesmo quando expõe a infelicidade de seu tempo, se junte aos seus pares na

contemplação de uma realidade em ruínas. É certo que o conteúdo trágico da espera de

Estragon e Vladimir é mais tenebroso que a prisão de Segismundo, em A vida é sonho.

Embora todos estejam confinados, Estragon e Vladimir estão “amarrados a Godot”, não

conseguem se desenredar desse compromisso, mas é justamente esse travamento no

mecanismo da ação que permite que seus jogos possam se desenvolver livremente.

E, embora o ludismo de Beckett se diferencie notadamente do ludismo barroco, dado o

empobrecimento e o minimalismo que conferiu à sua produção artística, o escritor irlandês

não hesita em se apropriar das “palavras que lhe deram” para levar à cena a bagunça e o

caos de seu tempo. Ludovic Janvier, em seu livro sobre Beckett, fala a respeito de sua

relação com as palavras e a questão da liberdade: “Quando Maurice Merleau-Ponty, a

propósito da liberdade, escreveu: Nascer é ao mesmo tempo nascer do mundo e nascer no

329 Friedrich Schlegel não foi o único romântico alemão a criar uma teoria sobre a ironia romântica; Novalis, August Schlegel, Schelling, e ainda outros, procuraram expor suas ideias a respeito. Cf. BENJAMIN, Walter. O conceito de critica de arte no Romantismo alemão. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.

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mundo, ele indicou o binômio fatalidade-liberdade que é a contradição vivida cegamente na

linguagem330.” Falar é falar segundo o mundo, mas também é falar o mundo, obedecer à

palavra do mundo, e também fazer avançar a palavra do mundo. E quando ele acrescenta:

“O mundo já está organizado, mas também jamais completamente organizado”, é o estatuto

da palavra beckettiana que se encontra aqui indicada. (JANVIER, 1969, p.131)

O uso da alegoria, em Beckett, mostra como um alto coeficiente de indeterminação

provoca claramente significações que tendem à singularidade. Talvez, o que exigem os

textos de Beckett,seja, como assinalou Wolfgang Iser331,“um compromisso determinado do

leitor”. Sua escritura mobiliza a nossa imagem completa do cosmos, não para descansar

sobre os sentidos que nos são dados, mas sim para transmitir a impressão de que o

significado só se revela em sua natureza quando nossa visão de mundo é excedida.

Os textos de Beckett exigem que se coloquem em jogo todas as representações

conhecidas, uma vez que só assim serãocapazes, em comparação com a estrutura de seus

textos, de disponibilizar uma nova disposição de leitura do mundo. Seus signos, fraturados,

abandonam sua significação usual para que se possa experimentara inovação de sua

literatura. Porque, se, a princípio, sua linguagem parece indevassável, ela pode, não

obstante, ensejar sua capacidade de comunicação, na medida em que permitimos que ela

opere uma desestabilização em nossas ideias e em nossos sistemas de referência.

É pelo abalo de nosso sistema de compreensão e percepção, operadopela linguagem

beckettiana, que essa mesma linguagemconsegue atingir sua eficácia a partir de sua própria

falibilidade, pois ela é, em si mesma, a encenação da crise de comunicação entre os

indivíduos na modernidade. Daí a importância decisiva do fragmento. Na apreensão do

mundo alegórica, as imagens, quebradas, são runas que oferecem frestas à intuição e à

liberdade do leitor na construção de sentido do texto. A beleza simbólica é diluída, porque se

330 JANVIER, Ludovic. Beckett. Paris: Éditions du Seuil, 1969, p.131.

331 ISER, Wolfgang. “El proceso de lectura: enfoque fenomenológico”, In: MAYORAL, José A. (org.)Estética de la recepción.Madrid: Arco, 1987, p.146.

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abdica da razão instrumental divinizada. Extingue-se a falsa aparência de totalidade para

dar vez a uma poética de detritos, que se apresenta na forma de resíduos e ruínas de uma

realidade em decomposição, que clama por significar alguma coisa.

Mesmo que as palavras se considerem impotentes para organizar o que seja, o fato

mesmo de apresentar sua impotência, de encená-la, com a força e a novidade a que

Beckett lhes imprimiu, torna sua dicção de não-organização, uma dicção incontestável,

mediante a maneira com que a forjou.

Surda à liberdade inalienável que faz falar de maneira nova a tradição, a palavra

proferida por sua obra está no mundo, nos possibilita estar no mundo, experimentando a

dinâmica do real com suas fissuras, cesuras e silêncios. É essaliberdade que, segundo

Janvier, dá à palavra beckettiana “sua condição paradoxal de serva e livre332”. Condição que

parece também acometer seus personagens, que, apesar do enclausuramento em que se

encontram, continuam dando curso a seus jogos, enquanto Godot não vem.

6. ENTRE BRINQUEDOS E RUÍNAS: JOGO E LUTO NA CENA BECKETTIANA

Mas quando um poeta moderno diz que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma caixa de brinquedos333?

6.1. Revolvendoentulhos Em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain334, de Jean-Pierre Jeunet, Amélie, uma

332JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p.131. 333BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2002, p.102.

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anônima garçonete, vive em Paris e trabalha em um café.

Sua vida, sem nenhum matiz extraordinário, transforma-se radicalmente no dia em que

encontra, em seu pequeno apartamento, uma antiga caixa de brinquedos.Ela está em casa

assistindoao noticiário sobre a morte da Princesa Diana, quando, casualmente, acaba

descobrindo, em uma portinhola de seu apartamento, uma caixa com brinquedos em

miniaturas e figurinhas, que pertenceram a umgarotinho que vivera ali na década de 60.

Tal descoberta fará com que Amélie seja tomada pelo desejo de encontrar a todo

custo o dono daquela preciosidade, na qual repousam pequenas miniaturas. Amélie segue

obstinada a descobrir qual seria a reação do senhor Dominique Bretodeau ao se deparar

com seus pertences.Residiria ainda algum encanto naqueles objetos infantis que um dia

ganharam vida na imaginação de um menino? Presumivelmente, seria ele, no presente, um

homem de meia-idade.

A fábula encantou o mundo, colecionando inúmeros prêmios no ano de 2002, a

despeito daqueles que a taxaram de “apenas uma película para agradar às mulheres” ou

denunciaram certa artificialidade no filme. Contudo, agrada-me, especialmente, que a

jornada em busca de si mesma, a qual se vê impelida Amélie, seja desencadeada a partir de

uma epifania provocada pelo reencontro de um adulto e os pequenos objetos de sua

infância perdida.

Um oceano de distância separa a narrativa fílmica de Jean-Pierre Jeunet da literatura

de Samuel Beckett. Além de pertenceram a campos distintos da linguagem, há de se notar

que a investida do dramaturgo irlandês revoluciona o fazer literário no século XX. Nada,

portanto, de uma fabulação destinada a um final feliz, com direito à transmissibilidade de

uma mensagem de esperança, ou de um desfecho apoteótico.

Beckett, com sua escrita da impotência, em que o ato artístico apresenta-se como a

expressão da impossibilidade de dizer o real, trouxe à cena uma representação do fracasso,

ou uma apresentação de fracassos, melhor dizendo. Sua fidelidade ao fracasso é uma

334O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Direção: Jean-Pierre Jeunet. Produção: Claudie Ossard. UGC. França: 2001, DVD.

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marca dessa arte do impedimento, que possibilitou ao autor de Godot uma verdadeira

reinvenção da literatura. Uma estética do menos, em que a luta com as “velhas palavras” ou

com “o velho estilo” revela uma profunda desconfiança da linguagem verbal, a dúvida em

relação ao seu poder de captar a realidade, de comunicar, desencadeando uma atitude de

derrisão sistemática na obra do escritor irlandês. A atitude de zombaria em face da

linguagem verbal estende-seà condição humana.

Como agem, em sua maioria, as criaturas beckettianas? Todas se encontram em um

espaço fechado, circunscrito, e, mesmo os pares, parecem experenciar uma profunda

solidão, já que nem a sintonia de perspectivas nem a concordância de ideias se efetiva entre

eles. Aliás,a temática da solidão é uma constante. Estragon e Vladimir, Hamm e Clov,

Winnie e Willie, para só citar alguns, estão juntos, mas em instâncias paralelas, pois o

diálogo não evolui para uma síntese de ideias;ao contrário, desenvolve-se a partir de sua

própria dissonância.

Como escreveu Beckett em seu ensaio sobre Proust335, a incomunicablidade e a

não-coincidência dos afetos humanos são traços inexoráveis da existência, aliás; o homem

não coincide sequer consigo mesmo. Édo autor de Em Busca do Tempo Perdido uma

sentença que resume admiravelmente o contexto do pensamento artístico que vigora na

experiência de tempo de Samuel Beckett. “Um minuto livre da ordem do tempo recriou em

nós, para o podermos sentir, o homem livre da ordem do tempo336” Estas palavras são

encontradas no final do livro: são palavras que supostamente apontam em nossa existência

um ser essencial fora do tempo, que para Proust é o nosso verdadeiro eu e não pode ser

experimentado na libertação da dimensão temporal. “Parece que Beckett, se não

intelectualmente, concorda ao menos afetivamente com essa hipótese, embora haja

diferenças muito importantes entre ele e Proust337.” Segundo Ross Chambers, se, para

335BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 336 PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 1987. 337 CHAMBERS, Ross. Destruction des categories du temps.In:NORES, Dominique. Les critiques de notre temps et Beckett. Paris: Éditions Garnier Frères, 1971, p. 91.

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Proust, na recordação, a ordem temporal é possível, possibilitada a partir da memória e, o

passado pode ser alcançado com mais perfeição através da criação artística, o recurso não

é possível para Beckett. “Beckett não só estaria livre a partir da dimensão temporal como da

espacial. Para ele, nem a memória nem a arte são uma forma de obter a salvação338.”

A impotência da memória, em face da força de desintegração do tempo, é, por exemplo,

um dos temas de A última gravação de Krapp, ao passo que a arte aparece frequentemente

em sua obra como uma espécie de “assédio moral”, absurdo inevitável, "uma obrigação”,

“pensum339". Nele, a ideia de produzir a arte não é mais a alegre certeza que teve Proust,

mas uma espécie de sonho impossível. Portanto, os temas de Beckett são mais

antiproustianos que proustianos, mas o primeiro impulso em cada caso é o mesmo: o

sentido da vida como a exclusão de alguma essência eterna, e a tentativa de usara arte

como uma forma de escapar do tempo e se juntar à espécie.

O dualismo em Beckett entre eu e não-eu, entre o tempo e a ausência de tempo, entre a

essência e a existência, pertence a uma já longa tradição e guarda, como tentamos mostrar

em capítulo anterior, algumas afinidades com formas de sensibilidade barroca. Talvez, a

frase do ensaio sobre Proust, de Calderón de La Barca, apareça ali mais como um eco

shopenhauriano que uma alusão à poética feérica do autor de A vida é sonho;mas, de toda

forma, a questão é seminal para Beckett: Qual é o delito do homem? Qual a culpa, que faz

com que o homem seja presa de tantos sofrimentos e angústias na existência? Os

personagens não respondem aessas questões, antes, ampliam-nas.

Para Beckett, as leis da memória estão submetidas às leis mais gerais do hábito. O

hábito é um compromisso efetuado entre o indíviduo e seu meio ou entre o indíviduo e suas

próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma zona de conforto, que, ainda que

maçante, funciona como uma espécie de“pára-raios de sua existência”. “O hábito é o lastro

que prende o cão ao seu vômito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito340”.

338 Idem. 339Idem. 340BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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De fato, as criaturas beckettianas são teimosas e sua obstinação, muitas vezes,

encontra-se inextricavelmente ligada ao hábito e à compulsão pela repetição. Há sempre

uma persistência injustificada em suas condutas. O tipo de teimosia que os caracteres

beckettianos apresentam é análogo àquele que aparece na filosofia de Shopenhauer,

quando o filosófo disserta sobre a “presunçosa vontade de viver” humana.Essa conduta

obstinada, citada por Beckett, em seujá mencionado ensaio sobre o autor de Em Busca do

Tempo Perdido, também se encontra presente nos jogos infantis, nos quais o ato de repetir

é tão caro às crianças.

No ensaio sobre Proust, além da famosa madelaine, Beckett dá ênfase a outro caso

de memória involuntária na obra do autor,que, em sua opinião, é ainda mais impressionante

que o evocado no clássico episódio dos biscoitinhos molhados no chá de tília. O texto faz

referência ao momento em que o narradorretorna pela segunda vez a Balbec e hospeda-se

no mesmo hotel de sua viagem anterior àquele local.Ele está exausto, sobe para o quarto

para retirar suas botas. Enquanto descalça os sapatos,experimenta, pela primeira vez, a

sensação realda perda de sua avó,falecida no ano anterior.

O episódioda obra de Proust, que chama atenção de Beckett,lhe deixará marcas. A

situação do personagem em relação à morte da avó lembra, em muito, ojogo das botas de

Estragon em Esperando Godot, que, como tentamos mostrar, é sempre jogado em silêncio,

quando o personagem transfere, para a sua lida com o objeto, a angústia que o toma.

Nessas poucas páginas de Proust a que Beckett faz referência, o autor francês procura

exprimir algo inefável: a relação que os vivos mantêm com a memória dos mortos.“Isso

porque oNarrador sabia, racionalmente, da morte da avó. Sabia, mas não o sabia realmente.

Somente naquela hora, naquele hotel, repetindo um gesto com as botas que o remetia à

situação na qual a avó o auxiliara anteriormente, é que percebe, de verdade, a realidade

inexorável, definitiva da morte.341” O fato de que nunca mais verá a avó se revela

341ORICCHIO, Zanin Luiz. Para ler Proust aos olhos de Beckett. O Estado de São Paulo. Caderno 2, em 08/06/2003.

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subitamente ao narrador. Sua presença é resgatada através da memória, mas ele constata

que jamais será possível vê-la novamente.Essa dialética da morte, jogada entre presença e

ausência, é percebida neste instante mínimo, no momento em que realiza a mais trivial das

ações.

Beckett fica impressionado com a dimensão comquese apresentam esses pequenos

acontecimentos quando desencadeiam-se a partir da memória involuntária.

Nesse sentido, parece mostrar certa concordância com a concepção trágica de Proust em

relação ao ser humano. A redenção pela recuperação da memória é apenas parcial: o único

paraíso verdadeiro é aquele que já perdemos. Portanto,“o Narrador só se dá conta da

importância fundamental da avó em sua vida quando ela já não está mais342”.

Beckett também elogia a maneira como Proust constrói seus personagens, camada a

camada, detalhe sobre detalhe, desinteressado em chegar a qualquer síntese definitiva. Vê,

nesse ponto, um paralelo entre Proust e Dostoievski, que também expõe seus personagens

sem explicá-los. Pode parecer um paradoxo, porque, se Proust explica seus personagens à

exaustão é para que eles apareçam como são - inexplicáveis. "Ele os inexplica343", conclui

Beckett.

Também os personagens/espectros do irlandês Samuel Beckett,com sua progressiva

degradação, se detêm constantemente em pequenos objetos como passatempo. Os

chapéus e guarda-chuvas de Mercier e Camier;o chicote e o vaporizador de Pozzo; a areia e

o chapéu de Lucky; as cenouras e botas de Gogo e Didi, em Godot; o cãozinho de pelúcia e

o lenço de Hamm, em Fim de Partida; as quinquilharias que Winnie carrega em sua bolsa,

em Dias Felizes;as pedrinhas de Molloy; o lápis, ocaderno e o bastão de Malonesão apenas

alguns exemplos da múltipla variedade de inutensílios e despojos que se inscrevem na

produção beckettiana e são constantemente manuseados pelos personagens, enquanto

342ORICCHIO, Zanin Luiz. Para ler Proust aos olhos de Beckett. O Estado de São Paulo. Caderno2, em 08/06/2003. 343BECKETT, Samuel. Proust. Tradução: Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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“esperam” ou “matam” o tempo que os espreita.

Em Rua de mão única, Walter Benjamin chama-nos a atenção à maneira com a qual

as crianças, ao brincarem, são especialmente atraídas pelos detritos que se originam da

construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro.

“Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta

exatamente para elas, e somente para elas344”. Quando se détem neles, estão menos

empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer, entre os mais

diferentes materiais, suas brincadeiras, criando uma relação nova com o realem um espaço

que lhes pertence. Um mundo em miniatura, que não deixa de estarem fricção com o

grande. É essa especial disposição anímica diante doreal, deque nos fala Benjamin, que

vamos encontrar nos personagens beckettianos. Antes da percepção padronizada do adulto,

a criança experimenta, em seus jogos com objetos inanimados, a sensação de assenhorar-

se de si mesma e da situação, através do ritmo impresso em suas brincadeiras, em seus

ritos solitários. Esse assenhorar-se, contudo, não está ligado a um sentimento de

dominação ou manipulação, mas a uma forma especial de experienciar o tempo e suas

memórias:

A criança age segundo esta pequena sentença de Goethe: “Tudo à perfeição talvez se aplainasse/ Se uma segunda chance nos restasse.” Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para assenhorear-se de terríveis experiências primordiais mediante o embotamento, conjuro malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e de forma mais intensa, os triunfos e as vitórias. (BENJAMIN, 2011, p.101)

Entretanto, sabemos que nem só de triunfos e vitórias sobrevivem os jogos infantis.

Mesmo na infância, os jogos podem encenar fracassos, perdas e situações hostis que

atormentam a criança. Decerto, a repetição continua a ter um papel decisivo nessa

empreitada. Para a criança, ela é a alma do jogo; nada a torna mais feliz do que “o mais

uma vez”. A obscura compulsão por repetição não é, no jogo infantil, menos poderosa do

344BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras Escolhidas Volume II. São Paulo: Editora e Livraria Brasiliense, 2011, p.18-19.

____________________Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, p.102.

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que o impulso sexual no amor. Benjamin observou que345·, “não foi por acaso que Freud

acreditou ter descoberto um “além do princípio do prazer” nessa compulsão”. E, de fato,

toda e qualquer experiência profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas,

a tentativa de repetição e retorno; o restabelecimento da situção primeira da qual ela tomou

impulso inicial.

Entregue ao devaneio de seus jogos, a criança habita uma temporalidade própria.

Agamben346, em seu livro Infância e história: destruição da experiência e origem da história,

evocando um dos episódios do romance de Collodi,As aventuras de Pinóquio, nos fala a

respeito desse tipo de apreensão temporal. Após uma noite de viagem na garupa do

burrinho falante, Pinóquio chega feliz, com o despertar da aurora, ao “país dos brinquedos.”

Na descrição desta utópica república infantil, Collodi deixou-nos a imagem de um universo

no qual tudo era jogo.

O País dos Brinquedos, a Brincolândia, não se parecia com nenhum outro lugar: lá

só haviagarotos, que brincavam o tempo todo. Os meninos jogavam bolinhas de gude,

outros bola; atiravam pedrinhas;alguns estavam sobre velocípedes, em cavalinhos de pau;

outros ainda brincando de cabra-cega, de pique; em todas as praças viam-se teatrinhos de

lona... Era uma infinidade de brincadeiras. Agamben diz a respeito desse país da infância:

Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma mudança e uma aceleração do tempo: “Em meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as semanas, passavam num lampejo”. Como era previsível, a aceleração do tempo não deixa inalterado o calendário. Este – que é essencialmente ritmo, alternância, repetição – imobiliza-se agora no desmensurado dilatar-se de um único dia festivo.(AGAMBEN, 2005, p.82)

Lá, cada semana era composta de seis sextas-feiras e um domingo. As férias de

outono começavam no primeiro dia de janeiro e terminavam no último de dezembro. É

assim, segundo Lucignolo,amigo de Pinóquio, que corre a folhinha na Brincolândia. “Se

devemos acreditar nas palavras de Lucignolo, então o “pandemônio”, a “algazarra” e a

345BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2002, p.102. 346AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2005, p.82.

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“baderna endiabrada” do país dos brinquedos têm como efeito uma paralisação e destruição

do calendário.347” Brincando, o homem desliga-se do tempo sagrado, convencional e

comum, ligando-se à outra temporalidade. O mundo do jogo, apesar de esquecer-se do

tempo humano, continua, ainda, inextricavelmente, ligado ao tempo. Mesmo que o que

agora pertence ao jogo tenha em outras épocas pertencido à esfera do sagrado, ou à esfera

do prático econômico, isso não exaure a esfera do jogo como possibilidade de perceber o

real em uma temporalidade outra.

Um olhar sobre o mundo dos brinquedos mostra que as crianças, estes belchiores da humanidade, brincam com qualquer velharia que lhes cai nas mãos, e que o jogo conserva assim objetos e comportamentos profanos que não existem mais. Tudo aquilo que é velho, independentemente de sua origem religiosa, econômica, tecnológica ou doméstica, é suscetível de virar brinquedo.(AGAMBEN, 2005, p.87)

Para Agamben, a própria apropriação e transformação em jogo (a própria ilusão,

poderíamos dizer, restituindo à palavra o seu significado etimológico, de in-ludere) podem

ser efetuadas – por exemplo, através da miniaturização – até mesmo no tocante a objetos

que ainda pertencem à esfera do uso: um automóvel, uma pistola, um forno elétrico

transformam-se, de súbito, graças à miniaturização, em brinquedo. Assim, Agambem sugere

que o caráter essencial do brinquedo – o único, se refletirmos bem, que o pode distinguir

dos outros objetos – é algo singular, que pode ser captado apenas na distinção temporal de

“uma vez” e de um “agora não mais”. O brinquedo é aquilo que pertenceu – uma vez, agora

não mais–a outras esferas (sagrada, econômica, etc),e agora, na instância do jogo, capta

uma temporalidade da história no seu puro valor diferencial equalitativo: não em um

monumento, que conserva no tempo seu caráter prático e monumental (o seu teor coisal,

diria Benjamin), objeto de pesquisa arqueológica e erudita; não em um objeto de antiquário,

cujo valor é função de antiguidade quantitativa; não em documento de arquivo, que extrai

seu valor do fato de ser inserido, em uma cronologia, em uma relação de contiguidade e de

legalidade com o evento passado. No que se refere a todos esses objetos, o brinquedo

representa algo mais, algo mais diverso.

347AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2005, p.82.

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O brinquedo é uma materialização da historicidade contida nos objetos, que ele

consegue extrair por meio de uma manipulação particular. Enquanto, na verdade, o valor e o

significado do objeto antigo ou do documento é função da sua antiguidade, “ou seja, do seu

presentificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brinquedo,

desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente” – jogando, pois,

tanto com a diacronia quanto com a sincronia –, presentifica e torna tangível a

temporalidade humana em si, o puro resíduo diferencial entre o “uma vez” e o “agora não

mais348”. Dessa forma, o sentido da miniaturização como marca distintiva do brinquedo na

instância do jogo revela-se como cifra da história349.

Se, como quer Agamben, aquilo com que brincam as crianças é a história, e se o

jogo é o relacionamento com os objetos e os comportamentos humanos que capta nestes o

puro caráter histórico-temporal, então não parecerá irrelevante que, em um fragmento de

Heráclito, Aion, o tempo em seu caráter originário, figure como a criança que joga com os

dados, e que a dimensão aberta do jogo seja definida como reino da criança. “Os

etimologistas remetem a palavra aion a uma raiz *ai-w, que significa força vital, e tal - dizem

– seria o significado de aionnas suas mais antigas ocorrências em textos homéricos, antes

de assumir o de medula espinhal e, finalmente, com uma transição não facilmente

explicável, o de duração e de eternidade350”.

Aionestaria em contraponto a um outro vocábulo da língua grega, o termo chrónos,

que indica uma duração objetiva, uma quantidade mensurável e contínua de tempo.

Chronos, o deus do tempo cronológico, não nos deixa esquecer dos prazos de entrega;

Aiôn, a eterna presença (o jogo, a brincadeira) nos faz ter a sensação de que,no curso dos

jogos, é possível paralisar o tempo e viver o “tempo em suspenso”.Há ainda oKairós, o deus

das encruzilhadas (das bifurcações que se abrem para diferentes futuros). É nesse tipo de

temporalidade, do kairós, que podem surgir novas possibilidades, que, como um raio, nos

348AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.82. 349Idem. 350 Ibidem.p.88.

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prenuncia algo inesperado que pode se apresentar tanto através de uma intuição quantoa

partir de escolhas e decisões. Acreditamos que, na instância do jogo doAion, possa vigorar,

também, o Kairós, como devir. Logo, a energia messiânica, que ficara represada nas

narrativas oficiais, é capaz de renascer nessa instância do jogo e apresentar-se como

potência.

Nesse último capítulo, falaremos desse tipo especial de temporalidade, concernente

aos jogos e brincadeiras. Ainda que de forma breve, tentaremos mostrar outras evidências

de que o motivo da infância aparece também em outras obras de Beckett, além de

Godot;especialmente em Fim de Partida, através do recurso da repetição. Buscaremos,

ainda, sinalizar comoalguns jogos encenama atmosfera de luto e catástrofe do século XX,

apresentando uma experiência temporal muito similiar à experimentada pelas crianças em

seus passatempos.

Talvez um tipo de disposição anímica para com o mundo seja um interessante

caminho para percebermos o caos de nosso tempo. O mesmo Agamben, quando se atém à

questão “o que é ser contemporâneo?”, parece nos dar pistas sobre essa disjunção

temporale esta faculdade de capturar o que foi olvidado pela história oficial. Esse ânimo

remonta à Antiguidade e chega aos nossos dias com o nome de Melancolia.

Para o filósofo italiano, pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente

contemporâneo “aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às

suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual351”; entretanto é precisamente por meio

desse deslocamento e desse anacronismo que ele é capaz, mais do que os outros, de

perceber e apreender o seu tempo. Não é uma nostalgia inocente que gostaria de voltar a

uma época em que se sinta em casa, como o personagem de Owen Wilson, de Midnight in

Paris352,quesonha em viver nos anos 20, poistoma o período como uma época dourada,que

se ajusta plenamente à sua personalidade e suas aspirações artísticas.

351AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro. Santa Catarina: Argos, 2009, p. 58. 352Midnight in Paris. Roteiro e direção: Woody Allen. Paris Filmes, 2011.

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Ao contrário, a galeria de melancólicos beckettianos estabelece uma relação singular

com o próprio tempo; uma relação de adesão e distanciamento, que é,

simultaneamente,uma relação de dissociação e anacronismo e, que, por isso mesmo, os faz

contemporâneos de sua época. “Aqueles que coincidem muito plenamente com a época,

que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,

exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter olhar fixo sobre ela.353”

Agamben, evocando Niestzsche, diz que, para auscultar o contemporâneo, é preciso ser

intempestivo.

Mas os personagens de Beckett estão e não estãono tempo e no espaço, e, de

posse de seus inutensílios, encenam uma especial disposição melancólica, que captura a

atmosfera de deteorização da cultura do ocidente, através dos passatempos mais inúteis.

Nesses jogos desses apostadores fracassados, já de antemão, o horror se nos apresenta a

partir de uma experiência sensorial muito parecida com a da infância, naqueles jogos em

que as fronteiras entre sujeito e objeto se diluem, dando curso, por meio da interação com

os objetos, a um tipo muito peculiar de encenação da subjetividade. Brincadeiras em que o

gesto, o silêncio e a palavra serão aliados no processo de construção poética da cena,

trazendo à tona a atmosfera melancólica de uma humanidade que

pereceu,concomitantemente, ao desenvolvimento desenfreadode seus próprios princípios

civilizatórios.

6.2 Luto e melancolia

Todo gozo é só mania Que é mais doce a melancolia.

Se a sós me sento, ensimesmado, Suspiro e choro, inconsolado,

Em negro bosque ou aposento, Com Fúrias e aborrecimento,

Milhões de misérias então Cuidam do grave coração.

Mas toda a dor vira alegria,

353AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro. Santa Catarina: Argos, 2009, p.59.

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Que amarga é a Melancolia.354

Albrecht Dürer, Melancolia I (detalhe) – 1514

Fonte:http://www.gutenberg.org/files/24408/24408-h/images/194.png

Ânimo do homem ensimesmado, que gosta de construir Castelos nos ares, a

melancolia de Burton, no século XVIII,traz à baila as alegrias fantasmais daquele que

gostaria de não ser escravo do tempo. O melancólico sabe que seu gozo é temporário e que

não há possibilidade de cura para suas dores, apenas o alívio provisório, que o levará

novamente à sua mania. “Todo meu gozo é só mania/mais divina é a melancolia./ Curo uma

dor, vem outro Inferno,/Não suporto tormento eterno!/ Desesperado, odeio a vida,/ (...) Mas

354 BURTON, Robert. A anatomia da melancolia: v.I. Demócrito Júnior ao leitor. Trad. Guilherme Gontijo Flores; prefácio Manuel Tosta Berlinck. Curitiba: Editora UFPR, 2011, p. 47.

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toda a dor vira alegria,/ Mais maldita é a melancolia355”.

Tomado por esse sentimento, o sujeito melancólico conhece a solidão que a

melancolia implica, mas isso não importa para ele: seu gozo só é possível nessa instância e,

mesmo que seja uma fixação, ele não troca essa vida pela de um Rei e prefere se distrair

com seus brinquedos. O tempo cronológico passa veloz demais para o melancólico; ele

precisa julgá-lo devagar, submetendo a realidade à temporalidade do jogo.“Arrebatado, eu

bem que sei:/ Não terei sorrisos mais ledos/ Que ao me entreter com meus brinquedos/Não

me atrapalhe – eu não consinto-,/ Doce graça que agora sinto/Todo meu gozo é só mania/

mais divina é a Melancolia356.”

O termo vem desde a Antiguidade Clássica. É com ele que Hipócrates procurou

explicar os distúrbios mentais como resultado de um desequilíbrio entre os quatro humores

básicos do corpo: o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile negra, a que correspondiam os

quatro temperamentos: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico. A bile negra se

acumula no baço, cujo nome inglês, spleen, alude ao estado melancólico.

Aristóteles357, em “O homem de gênio e a melancolia”, diz que o desequilíbrio

causado pela bílis negra torna o melancólico propenso a ser “quase no mesmo instante

muito quente e muito frio”. Contudo, é essa mesma condição, a que foi arremessado à sua

revelia, que tornará o melancólico capaz de habitar extremos e o tornará aberto à criação

poética. Ou seja: tornar-se outro, habitando o real a partir da premissa do como se, como no

jogo da mimicry,de que tanto falamos nessatese.

“Por que todo ser de exceção é melancólico358?” A pergunta de Aristóteles, no texto a

ele atribuído, ainda ressoa no mundo contemporâneo.O melancólico é, antes de tudo,

aquele que teria perdido seu laço social e sente necessidade de reiventar-se, no campo da

355BURTON, Robert. A anatomia da melancolia: v.I. Demócrito Júnior ao leitor. Trad. Guilherme Gontijo Flores; prefácio Manuel Tosta Berlinck. Curitiba: Editora UFPR, 2011, p. 47. 356 Idem. 357ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia. Problema XXX, I. Trad. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p.66. 358Idem.

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linguagem. Essa perda de lugar pode ocorrer quando o sujeito não se sente capaz de

adaptar-se às exigências de seus pares e à realidade imediata. Ele é, em geral, apátrida e

seu olhar, mesmo na terra natal, é um olhar estrangeiro.

Esse sentimento de desterritorialização, de não-pertencimentofaz nascer no

melancólico uma necessidade expecional de criar um lugar capaz de reinventar um mundo

ordenado no qual sua estranheza diantedo cosmosseja encenada, para que contemple e

reflita acerca de sua excentricidade.“A reflexão clássica sobre a melancolia é indissociável

de uma reflexão sobre a poiesis.” O espaço do jogo, torna-se, assim, um espaço privilegiado

para a encenação do melancólico. “A reflexão atribuída a Aristóteles sobre a melancolia é

menos uma teoria médica do que uma reflexão sobre o talento criador. O melancólico

aristotélico era dotado de um impulso forte, capaz de atirar longe para acertar o alvo359.”

Na Idade Média360, a teoria dos humores será associada à astrologia. A melancolia

foi associada a Saturno, planeta distante de movimentação morosa. Ele surgirá como o

astro que governa o melancólico, astro das contradições, da inteligência e da contemplação,

da apatia e do êxtase, da renúncia e do sacrifício, representantedas experiências de

separação desde o corte com o cordão umbilical até o supremo despojamento do velho. A

disposição daquele que nasceu sob o signo de Saturno é de afastamento e contaminação. A

melancolia é crítica, pois carrega consigo um afastamento irônico diante do mundo, mas é

também arrebatadora, pois subtrai daquele que a sente a percepção do tempo comum. A

experiência do melancólico com o tempo é substituída por uma temporalidade excêntrica,

solitária, destituída de uma percepção total do ambiente e de comincação com o outro. Ela é

atravessada por lacunas e silêncios que geram estranheza.

O Renascimento361 levou a cabo, com um radicalismo nunca atingido pelos Antigos,

359 Cf. KEHL, Maria Rita. Melancolia e criação. In: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 31. 360360BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 151. 361BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 157-158.

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a reinterpretação da melancolia saturnina no sentido da doutrina do gênio ao destituí-la um

pouco do temor do Saturno medieval, liberando a melancolia sublime, a melencolia illa

heróica da melancolia comum e destruidora. O quadrado mágico que vemos desenhado

num quadro por cima da cabeça da “Melancolia”, de Dürer, é o selo planetário de Júpiter,

cuja influência se opõe às forças obscuras de Saturno362. A gravura de Dürer é emblemática

no registro do que foi esse afeto para a Renascença. Nela, a melancolia é representada

como uma mulher de asas, sentada na clássica posição dos melancólicos, com o rosto

apoiado em uma das mãos. A seu lado, um cão adormecido (o sono, irmão da morte, é um

conhecidocompanheiro da melancolia e da depressão). Em torno da mulher, espalhados de

forma caótica, estão objetos usados na vida doméstica, em vários ofícios e na ciência: uma

balança, uma ampulheta, uma sineta, uma tábua numérica, martelo, serrote e pregos. A

mulher parece alheada aos objetos; ensimesmada, ela não dirige o olhar para a realidade

circundante.

Na Inglaterra do século XVIII, Robert Burton, teólogo e bibliotecário de Oxford, tomou

como ponto de partida sua própria tendência ao isolamento e à autorreflexão para escrever

uma Anatomia da Melancolia. O pseudônimo adotado por Burton, Demócrito Junior, faz

homenagem a Demócrito, o melancólico celebrizado na Antiguidade em uma das

Cartasatribuídas a Hipocrátes, em que o médico descreveu “o comportamento daquele

homem excêntrico, retirado do convívio dos homens, que gostava de dissecar animais e

tinha por princípio não levar nada a sério363.”Riso e melancolia não são ânimos contrários: o

riso de Demócrito indicava sua descrença, seu desapego em relação a tudo que seus

semelhantes valorizavam.

Freud, em sua obra Luto e Melancolia, estabelece uma diferença entre os dois

362Segundo Benjamin, ao lado desse quadro está pendurada a balança, uma alusão ao signo astrológico de Júpiter. Sob a influência jupiteriana, as inspirações nefastas tornam-se benéficas, e Saturno torna-se protetor das mais sublimes pesquisas; a própria astrologia se lhe sumete. Isso permitiu a Dürer conceber o projeto de “exprimir também nos traços fisionômicos do saturnino a concentração espiritual divinatória. Cf. BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.158. 363BURTON, Robert. A anatomia da melancolia: V.I. Demócrito Júnior ao leitor. Trad. Guilherme Gontijo Flores; prefácio Manuel Tosta Berlinck. Curitiba: Editora UFPR, 2011, p. 47.

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estados. Segundo ele, “o luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou

de abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc. Já a melancolia se

caracterizaria por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo

mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e um

rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e

autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição. Se no luto a autoestima

permance quase inalterada, na melancolia ela é perturbada, e é esse aspecto que diferencia

os dois estados de ânimo. Enquanto o enlutado sabe exatamente por qual objeto pranteia, o

melancólico perdeu todas as referências e já não sabe mais precisar o que causa seu

desalento. “No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia é o próprio

ego364.”

Na obra freudiana, a retomada da ênfase sobre a questão do narcisismo amadurece

extamente em Luto e melancolia. A falha na constituição do narcisismo primário estabelece

uma distinção entre a “neurose narcísica” da melancolia e o sofrimento que caracteriza o

trabalho de luto. Em seu trabalho psíquico, o enlutado enfraquece o ego ao se tornar

inapetente para quaisquer outros investimentos libidinais, mas, ao mesmo tempo, esse

trabalho pode ser considerado um investimento na ordem de sua saúde psíquica. Mais

complicado é entender o que ocorre com os melancólicos, estes que desconhecem tanto a

natureza do objeto perdido como a origem de sua perda. “O melancólico nos mostra ainda

algo que falta no luto: um rebaixamento extraordinário de sua autoestima, um enorme

empoprecimento do ego365. No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia é

364 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 365O trecho que segue é uma instigante provocação de Freud a respeito do fato de a melancolia ser tratadacomo patologia (mesmo que ele mesmo a tenha tomado como tal). O comentário chega a soar como anedota, se pensarmos que, em nossos dias, a depressão se revela como uma espécie de mal-do-século. “Tanto do ponto de vista científico quanto terapêutico seria igualmente infrutífero contradizer o doente que faz tais acusações contra o seu ego. De algum modo ele certamente precisa ter razão e descrever algo que se comporta tal como lhe parece. E de fato, logo teremos que confirmar, sem restrições, algumas de suas afirmações. Ele é realmente tão carente de interesses, tão incapaz para o amor e o trabalho como afirma. Mas isso, como sabemos, é secundário, é a consequência desse trabalho interior, para nós desconhecido e comparável ao luto, que consome seu ego. Em outras de suas autoacusações, ele nos parece ter razão e capta a verdade apenas com mais agudeza do que outros, não melancólicos. Quando, em uma exacerbada autocrítica, ele se descreve

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o próprio ego366.”

A divisão entre luto e melancolia está completamente ausente do livro de Benjamin

sobre Trauerspiel(drama lutuoso),“Origem do drama trágico alemão367”. Nele, ele usa os

termos Trauer e Melancholie como sinônimos, não se rendendo à distinção entre

normalidade e patologia que a psicanálise tornou banal. Benjamin convocaa melancolia no

final da segunda parte do livro a fim de reforçar e enriquecer a sua discussão sobre o tipo

especial de tristeza e luto expressa no drama trágico. Neste, ele emprega a melancolia, a

fim de compreender o luto e não usa qualquer tipo de diferenciação entre eles. Segundo

Ferber368,“a posição adotada porBenjamin é um desafio à distinção excessivamente segura

de Freud, fornecendo uma alternativaentre as duas facetas da divisão freudiana”. Benjamin

não vê a melancolia como uma doença a ser superada ou curada, mas sim como um estado

de espírito ou uma disposição para com o mundo.

Na perspectiva benjaminiana, osentimento é transformado em humor, superando,

assim, a relação libidinal filosoficamente problemáticacom o objeto em Freud, traduzindo o

estado do melancólico como uma atitude em relação ao mundo, ao invés de uma patologia.

Benjamin transforma a abordagem psicanalítica e subjetiva de Freud em uma atitude

filosófica ou humorística.

Raramente, talvez mesmo nunca, a estética especulativa procurou encontrar explicação para o fato de a comicidade mais estrita confinar com o horror. Quem é que nunca viu crianças rirem em situações que colocam adultos de cabelo em pé? O que importa ler no intriguista é aquilo que faz o sádico oscilar entre a infantilidade que ri e a seriedade adulta que se horroriza. (BENJAMIN, 2011, p.130)

Benjamin não vê a melancolia como doença. Ele a considera uma posição diante

darealidade, que, dialeticamente, traz em si o gozo intempestivoconjugadoao como um homem mesquinho, egoísta, desonesto e dependente, que sempre só cuidou de ocultar as fraquezas de seu ser, talvez a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do autoconhecimento e nos perguntamos por que é preciso adoecer para chegar a uma verdade como essa.”FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 55. 366 Idem. 367 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.130. 368 FERBER, Ilit. Melancholy Philosophy: Freud and Benjamin.Revue électronique d’études sur Le monde anglophone. Fonte: erea. revues.org/413. Data da consulta: 12/10/2013.

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afastamentocrítico. Se a melancolia não se rende plenamente ao narcisismo puro e simples,

é porque ela não leva nada tão a sério; aegolatria é sua antítese, pois, se a útilma é

centralizada no eu, a primeira se sabe à margem; ela não conhece o centro de si mesma e,

talvez, ache mesmo que não haja nada de interessante em fazê-lo.

6.3A melancólica ludoteca beckettiana

(...) Claro que há a bolsa. (...) A bolsa. Será que eu conseguiria enumerar o conteúdo dela? Não. Será que eu conseguiria, se uma boa alma, de passagem, perguntasse, Winnie, e nessa bolsa enorme, o que você guarda? Saberia dar uma resposta exaustiva? (...) Não. (...) Especialmente nas profundezas, quem adivinharia os tesouros. (...) Os consolos. É, há a bolsa. Mas alguma coisa me diz: Não exagere com a bolsa, Winnie, aproveite-a para continuar... tocando, quando estiver sem saída, lógico, mas pense no futuro, Winnie, no dia que as palavras faltarem (...) – e não exagere com a bolsa. (...)

A sombrinha estará aqui amanhã de novo, sobre a terra, me ajudando a passar o dia. (...) Veja o espelho. Pego o espelhinho, quebro na pedra – (...) e estará aqui amanhã de novo, dentro da bolsa, sem um arranhão, me ajudando a passar o dia. Não, não há nada a fazer. (Winnie, em Dias Felizes369, p.44 e 48.)

Coisinhas insignificantes, nadas, que me voltarão mais tarde, vão fazer com que eu enxergue com mais clareza o que se passou, vão-me fazer dizer, ah, se eu tivesse sabido, agora é tarde demais.370

Talvez, outra investida cinematográfica exemplifique melhor o tema de que falamos

369BECKETT, Samuel. Dias Felizes. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 44 e 48. 370BECKETT, Samuel. Malone Morre.Trad. Paulo Leminski.São Paulo: Códex, 2004, p. 125.

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aqui.Jeux Interdits371, um filme de René Clément, de 1952, por exemplo, é um clássico do

cinema de guerra e um pioneiro em retratar os horrores da carnificina pelaperspectiva das

crianças. A história se passa em junho de 1940.

Com a invasão dos alemães as pessoas fogem de Paris. Dentre os inúmeros

refugiados, estão Paullete, uma menina de cinco anos de idade, seu cão e os pais da

menina. Todos, com exceção de Paullete, são mortos, via aérea, durante a fuga, por um

caça de guerra, diante dos olhos da garotinha. Paullete consegue manter consigo o corpo

do cão morto, mas esse é descartado por uma família que a socorre. Quando seus

socorristas decidem jogar o animal no rio, para livrarem-se do peso extra, Paullete rejeita a

ajuda e parte em busca do cadáver de seu bicho de estimação.

Nesse ínterim, a menina é " adotada" por um filho de uma família de camponeses,

Michel, que se liga a ela profundamente, tornando-se grande parceiro em seus “jogos

proibidos”.Perdida e sem ninguém para cuidar de si, a garota acaba encontrando abrigo

nacasa da famíliade Michel, que vive no interior da França.Lá, ela e Michel, o caçula da

família, estabelecem um estranho vínculo de amizade. O pequeno também fora marcado

pela morte, pois seu irmão recebera um duro ferimento de um cavalo em fuga e não resistiu.

Em face dessa experiência comum, as duas crianças inventam um jogo muito

particular: decidem criar um cemitério, no qual enterram todos os animais mortos que

encontram, começando pelo cachorro de Paulette. A repetição desse ritual fúnebre torna-se

uma obsessão para a menina, que contagia Michel, tomando-o como cúmplice e uma

espécie de colaborador nessa empreitada. Aparentemente, é como se a experiência da

infância, enquanto aquilo que está aberto para uma alegria do jogo do mundo e da inocência

do devir, fosse capturada pela morte.

No entanto, como observa Pierre Fédida, “o luto põe o mundo em movimento372”. A

narrativa fílmica nos mostra que Paulette, ainda que destituída de família, abrigo e cuidados,

371Jeux Interdits. Direção: René Clément. Roteiro: François Boyer. França: Cinemax, 1952, DVD. 372DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.85.

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foi capaz de encenar sua perda. As duas crianças, com sua vontade de velarem os corpos

mortos, encarnam com vivacidade a possibilidade de não se “mortificarem” somente, ou se

manterem passivas diante do evento. Antes, ao se mostrarem capazes de velar um corpo

morto, revelam uma aptidão para o jogo, que se compraz em encarar e encenar a dor como

mais uma brincadeira entre as outras, que já estão acostumadas. A aptidão para o luto de

Paulette e os cuidados com seu mausoléu são indícios dessa potência que seus jogos

proibidos encerram. Essa disposição melancólica, que toma a menina, faz com que sua

sobrevivência só se torne possível a partir do jogo, no qual ela pode encenar a morte dos

pais e do cão ininterruptamente, repetindo a perda como uma mania, típica dos

melancólicos, que, no entanto, passa a lhe despertar certo gozo.

“O jogo esclarece o luto”, escreve Pierre Fédida373, que lembra a referência freudiana

ao Trauerspiel e evoca o sentimento de uma pessoa diante de sua própria vida como um

esforço malogrado de um trabalho de morte: “Enquanto não se está morto, se finge sempre

morrer374.” Nessa perpectiva, o jogo da criança se transforma aos nossos olhos, se colore

estranhamente, se chumba: “Por ser jogo, a criança tanto morre quanto ri. Talvez, em sua

vida, quando riem, os humanos deixem transparecer de que serão mortos.” O riso é a

dissolução do ego; anverso do comportamento narcísico; é a aceitação da deteriorização do

eu liberando imagens que nos escapam e retornam, como fogos de artício, que se deixam

dominar por instante e se vão de novo, sempre se dispersando na queda.

Didi-Huberman375 nos reporta a seguinte situação para que tenhamos ideia desse

processo: quando uma criança pequena é deixada sozinha, considera diante dela os poucos

objetos que povoam sua solidão – por exemplo: uma boneca, um carretel, um cubo ou

simplesmente o lençol de sua cama-, o que ela vê exatamente, ou melhor, como ela vê? O

que ela faz?

Imagino-a, primeiramente, balançando-se ou batendo suavemente a cabeça contra a parede. Imagino-a ouvindo seu próprio coração batendo contra sua

373Pierre Fédida. L’ absence. Apud: DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,1998, p.85-86. 374 Idem. 375 Idem.

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têmpora, entre seu olho e sua orelha. Imagino-a vendo a seu redor, ainda muito distante de toda a certeza e de todo o cinismo, ainda muito distante de acreditar no quer que seja. Imagino-a na expectativa: ela vê o estupor da espera, sobre o fundo da ausência materna. Até um momento em que o que ela vê de repente se abrirá, atingido por algo que, no fundo – ou do fundo, isto é, desse mesmo fundo de ausência -, racha a criança ao meio ea olha. Algo, enfim, com que ela irá fazer uma imagem. A mais simples imagem, por certo: puro ataque, pura ferida visual.Pura moção ou deslocamento imaginário. Mas também objeto concreto – carretel ou boneca, cubo ou lençol da cama – exatamente exposto a seu olhar, exatamente transformado. Um objeto agido, em todo caso, ritmicamente agido. Assim com o carretel: a criança o vê, toma-o nas mãos e, ao tocá-lo, não quer mais vê-lo. Atira-o ao longe: o carretel desaparece atrás da cortina. Quando retorna, puxado pelo fio como peixe surgiria puxado pelo anzol, ela a olha. Abre na criança algo como uma cisão ritmicamente repetida. Torna-se por isso mesmo o necessário instrumento de sua capacidade de existir, entre a ausência e a presa, entre o impulso e a surpresa. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.79).

A cena descrita nos remete instantaneamente ao paradigmático episódio descrito por

Freud em “Além do Princípio e Prazer376” no qual Freud dá à brincadeira uma conotação

relevante. Observando seu netinho de um ano e meio brincar, percebe que a criança se

entretinha de maneira especial com um carretel amarrado a um barbante. Sua brincadeira,

que consistia em jogar um pequeno objeto atrás da poltrona e retomá-lo, possuía estágios

que aguçaram a curiosidade do autor de A Interpretação dos sonhos. Ora, quando ele

arremessava o carretel para detrás do móvel, esse gesto era acompanhado das

exclamações! Quando o trazia de volta, exclamava, “da”! Freud, observando mais

atentamente a cena verificou que na verdade a criança dizia “fort... da, fort...da.” Fort em

alemão significa “foi embora” e “da” significa “ali”.

Ao analisar a brincadeira, Freud concluiu que criança sempre o fazia na ausência da

mãe, quando ela eventualmente saía de casa. Com o carretel e o barbante, seu netinho

encenava uma brincadeira de ir embora e voltar. Era a maneira com a qual a criança, por

meio da repetição, tentava controlar a angústia da ausência da mãe. Didi-Huberman,

reapropriando-se do episódio narrado por Freud, sublinha de novo o quadro geral em que o

problema se coloca: quando o que vemos é suportado por obra de perda, e quanto disto

alguma coisa resta.

376 FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. In: Obras Psicológicas Completas: Edição: Standart Brasileira, 1962.

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No texto de Freud377, o jogo da criança é apresentado ao leitor sobre um fundo de

essencial crueldade: a guerra mundial, “a guerra terrível que acaba de terminar”, com seu

cortejo de perdas definitivas, de desgraças insistentes e operantes, com a questão colocada

de saída ao conceito de susto (Schreck), com a introdução metapsicológica da “neurose

traumática” cujo enunciado Freud subitamente abandona... para oferecer, sem transição, o

famoso paradigma infantil, que percebemos, com clareza, nada ter de inocente.

O jogo risonho talvez se mostre aqui como além do pavor, mas não deixa de ser lido,

ao mesmo tempo, e em sua exposição mesma, como um repor em jogo o pior. Ora, esse

repor em jogo é apresentado por Freud como constituinte do sujeito enquanto tal. Seja qual

for o ponto escolhido no quadro sutil, na ampla trama interpretativa proposta por Freud, na

qual a renúncia volta a cruzar o júbilo, na qual a passividade reproduzida se torna ato de

controle, na qual a vingança convoca uma estética- é a identidade imaginária da criança,

com efeito, que vemos aqui se instaurar378.

Mas, suportada pela oposição fonemática e significante do Fort-Da (Longe, “ausente” - “Aí, presente”), essa identificação imaginária revela ao mesmo tempo um ato de simbolização primordial que os comentários mais profundos da pequena fábula freudiana – emborasob inflexões diferentes e mesmo divergentes – trazem à luz: estaríamos lidando aqui, por antecipação mesma, com os poderes da fala. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.80).

Winnicott379afirmava que era no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou

o adulto fruem sua liberdade de criação, utilizando assim sua personalidade de “forma

integral”. Segundo ele, a busca do eu (self) está associada àquilo que é geralmente

chamado de criatividade. Ao introduzir o termo objetos transicionais380para designar a área

377DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:

Ed. 34,1998, p. 80. 378 Idem. 379WINNICOTT, D. W. O brincar & a realidade.Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre.

Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1975, p.13. 380Winnicott forjou a teoria dos “objetos transicionais” a partir da observação de que os bebês, assim

que nascem, tendem a usar o punho e os dedos polegares em estimulação da zona erógena oral, para satisfação de instintos dessa zona. Após alguns meses, os bebês de ambos os sexos passam a gostar de brincar com bonecas e a maioria das mães permite aos seus bebês algum objeto especial, esperando que eles se tornem, por assim dizer, apegados a tais objetos.

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intermediária de experiência, entre o polegar e um ursinho, uma boneca ou brinquedo em

um espaço, que chamou de espaço em potencial381,apontou essa importante característica

do brincar como desenvolvimento dos conceitos dos fenômenos transicionais.

Segundo Winnicott, a característica essencial daquilo que o sujeito deseja comunicar

refere-se ao brincar como uma experiência sempre criativa na continuidade do espaço-

tempo, uma forma básica de viver. O estado de quase alheamento em que se encontra a

criança e o adulto que brinca, aliada à concentração, não permite intrusões. A criança que

brinca habita uma área que não pode ser facilmente abandonada: essa área do brincar não

é a realidade psíquica interna. Está fora do indivíduo, mas não é o mundo externo. A criança

traz para dentro dessa área da brincadeira objetos ou fenômenos oriundos da realidade

externa, usando-os a serviço de alguma amostra da realidade interna pessoal. Sem alucinar,

a criança põe para fora uma amostra do potencial onírico e vive essa amostra num ambiente

escolhido de fragmentos oriundos da realidade externa.

Entretanto, adverte Winnicott: O brincar implica confiança e pertence ao espaço

potencial existente entre (o que era a princípio) bebê efigura materna, com o bebê num

estado de dependência quase absoluta e a função adaptativa da figura materna tida como

certa para o bebê. Winnicott afirma, ainda, que o brincar envolve o corpo, devido à

manipulação de objetos, porque certos tipos de objetos estão associados a certosaspectos

de excitação corporal.

A interrelação entre objetos materiais e personagens é um tema constante na obra

de Beckett. Alguns estudiosos exploram como objetos familiares exercem uma influência

significativa na rotina e percepção cotidiana dos personagens, evocando, na maneira com

que manejam esses objetos durante a encenação, alguns estados de ânimo que não são

381 O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço em potencial existente entre o

indivíduo e o meio ambiente (originalmente, o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar. Segundo Winnicott, a experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira. Para todo individuo o uso do espaço é determinado pelas experiências de vida que se efetuam nos primeiros estágios de sua existência.Cf. WINNICOTT, D. W. O brincar & a realidade.Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1975, p. 13.

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evidenciadas em suas falas.

De acordo com a análise deWashizuka382, por exemplo, menos obviamente que em

Murphy e em Whatt, o primeiro “herói” de Beckett, Belacqua, é uma das "things people for

whom", cujarelação com as coisas revela o estado de seus afetos e sua relação com o

ambiente.Em “Dante e a Lagosta”, primeira narrativa de More Priks than Kicks, o

protagonista desenvolve uma obsessiva relação com um pão no processo de elaboração de

um sanduíche para um almoço. Ele às vezes se comunica com este objeto diariamente pelo

tato e pela visão, tratando de observá-lo com atenção meticulosa.

A lagosta é um outro objeto fundamental na rotina de Belacqua. Durante a aula de

italiano, em que vê como quase impossível a tradução de um trecho de Dante, ele pensa

sobre o terrível destino da lagosta, que é fervida viva antes de ser servida como jantar.

Belacqua é "por natureza" pecaminosamente indolente, atolado na indolência e todas as

suas impressões sobre o mundo - “os miseráveis de fora”, como ele os chama em sua

misantropia - só podem ser percebidas a partir da maneira como ele interage com esses

objetos.Seu nome deriva de um fiorentino notoriamente preguiçosoque Dante e Virgílio

veem procrastinar no quarto canto do Purgatório. No sopé da montanha que os peregrinos

se esforçam para subir, o Belacqua do Dante prosta-se indiferente, e, em sua maneira

tipicamente contundente, pergunta por que eles deveriam ir “para cima”. Ele se contenta em

esperar lá fora até que sua salvação chegue, sentado e segurando seus joelhos, com a

cabeça caída.

“Esta posturaresignadaencapsulao "fatalismo confortável" deBelacqua.

Inaçãopassivae aceitaçãoincondicionalsão instintivosneste homemsubmisso.O que lhe faltaé

a forçade vontadee empenhoe energiadirecionada paranovo movimento383”. O Belacquade

Beckettcompartilha o mesmo"espírito preguiçoso". Em suapropensãopara

evitaroutrossofrendo, eleescolhe se abrigar emsegurança notédio, um estado de inércia que

382WASHIZUKA, Naho.Pity and objects: Samuel Beckett's 'Dante and the Lobster'.In: Journal of Irish Studies, XXIV, p. 75 - 83. 383WASHIZUKA, Naho.Pity and objects: Samuel Beckett's 'Dante and the Lobster'.In: Journal of Irish Studies, XXIV, p. 75-83.

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nãocrianenhumamudança significativanas vistasou noções. Ainda assim, Belacqua não

abandona seus objetos, seu olhar estará sempre voltado para eles.Hamm também acha

inútil estarem ali; porém dá continuidade ao jogo da mimicry:

Hamm: Meu cão está pronto? Clov: Falta uma pata. Hamm: Ele é macio? Clov: Uma espécie de Lulu. Hamm: Vá buscá-lo. Clov: Falta uma pata. Hamm:Vá buscá-lo. Sai Clov. Estamos progredindo. (BECKETT, 2001, p. 90)

A tirania de Paullete, quando ela se concentra na expansão de seu cemitério com

novas carcaças de animais e pressiona Michel para roubar mais cruzes para adorná-lo, é

similar à relação de Hamm e Clov em Fim de Partida, quando o primeiro não cessa de

solicitar que Clov lhe traga pequenos objetos, para auxiliá-lo, juntamente com suas histórias,

no enfrentamento com o tempo que se arrasta morosamente. O espaço circunscrito em que

se encontram os personagens, se, por um lado, nos transmite a ideia de um beco sem

saída, por outro, torna-se, nesse contexto, um espaço viável para manuseio de objetos,

ainda que esses se encontrem depauperados. “Estes lugares priveligiados da infância, dos

quais o adulto se lembra, não são, portanto, os lugares de uma felicidade imaculada; ao

contrário, preenchem a criança de uma certa apreensão, pois são plenos dos mortos do

passado.384”

Fim de Partida foi escrita em francês, e, quando Becketta traduziu para o inglês, fez

questão de chamá-la de um "jogo385". Em Godot, os vagabundos inventam jogos para jogar,

enquanto esperam a vinda de Godot. Em Fim de Partidanão há mais esperança de que

alguém irá chegar; os jogos e os instrumentos para jogá-los estão no fim,rareados ou

384Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.89. 385 Beckett disse sentir que seus títulos sofriam na tradução, em ambas as direções. Fin de Partie pode ser qualquer jogo. Endgame já remete com especificidade ao jogo de xadrez. O xadrez é importante para a peça, mas não é o único jogo sugerido por ela, segundo Beckett. GUSSOW, Mel. Conversations with and about Samuel Beckett. New York: Grove Press, 1996, p.34. Apud: CAVALCANTI, Isabel. Eu que não estou aí onde estou: teatro de Samuel Beckett. Rio de Janeiro, 7Letras, 2006, p.19.

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extintos. No entanto, como observa Ruby Cohn,“o show deve continuar386”.

Hamm: Minha... (bocejos) vez. (Pausa) De jogar. (Segura o lenço aberto à sua frente na ponta dos dedos) Trapo velho! (Tira os óculos, enxuga os olhos, o rosto, limpa os óculos, recoloca-os, dobra o lenço com cuidado e coloca-o com delicadeza no bolso do peito do roupão. Limpa a garganta, junta a ponta dos dedos). (...) Não, tudo é a...(boceja)...bsoluto, (com orgulho) quanto maior o homem, mais pleno. (Pausa. Melancólico) E mais vazio. (...) Chega, está na hora disso acabar (...) E mesmo assim eu hesito em... ter um fim...(Boceja) Meu Deus, que há comigo hoje, devia me deitar. (Apita. Entra Clov imediatamente. Pára ao lado da cadeira) (BECKETT, 2001, p.39)

Em Fim de Partida o palco possui umarealidade particular. Não é uma reprodução

deuma salade classe média, como em uma "comédia sala de visitas", mas um lugar em si

mesmo. Não há trégua: "Vamos parar de jogar!”Clovimplora; “Nunca!”respondeHamm.O

palco éum emblemada noção deprisãoque permeia ojogo, não há saída.A sensação de

enclausuramento torna-se, assim, paulatinamente, mais intensa a cada peça de Beckett.

Além disso, o cenário, em Fim de Partida, é mais sombrio que em Godot. Estragon e

Vladimir estão no meio de uma estrada, num espaço distante, no meio do nada, mas ainda

se vê uma àrvore que irá ganhar algumas folhas na mudança de ato; há a lua; o ambiente

não é fechado. Com Hamm e Clov estamos em umasala escura, com pé direito alto,no qual

duas janelas, só acessíveis por uma escada, estão de frente para a terra eomar, onde o

espectador é levado a imaginar que tudo é cinza e cheira a cadáveres.Só Clov pode se

movimentar, ainda que manco, e olhar para o exterior com sua luneta. Hamm está cego e

preso à cadeira de rodas; Nagg e Nell fenecem em seus latões de lixo. A luz do palco é

cinzenta.

A trama de Fim de Partida, como a de Godot, pode ser mais facilmente resumida que

a ficçãomais tardia de Samuel Beckett, ainda queas relações entre os personagens

sejamambíguas.NaggeNellsãoos pais deHamm;Clov, eventualmente,é chamado deseu

filho. Uma personagem, MãePegg, é algumas vezes evocada, mas nuncaé revelada comoa

mãe deninguém, e,como o resto domundo fora do palco, ela está

presumivelmentemortaquando a peçacomeça.

386COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutger University Press, 1962,p.226.

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Hamm e Clov, como Estragon e Vladimir, são pares complementares. Nagg e Nell,

pais de Hamm, vivem em latões de lixo, e vira e mexe irrompem a cena, para incomôdo e

desespero de Hamm, que não os suporta, mas, paradoxalmente, gosta de de tê-los como

plateia de sua interminável história. Hamm, cego, sentado bem ao centro da sala em sua

cadeira, tem ares de soberano sobre os demais. Ele abusa de seu poder: em relação a Clov,

ele se coloca como o pai acolhedor, sadicamente. Nada é mais importante para Hamm do

que ser o centro das atenções, o dono da cena. Ele reivindica esse papel forçosamente, ao

oferecer ou negar biscoitos e frutas confeitadas a Nagg e Nell, em troca de que prestem

atenção às suas narrativas, compareçam à cena ou mesmo a abandonem. O jogo da

mimicry também está presente aqui:

Hamm: O que há de errado com os seus pés? Clov: Meus pés? Hamm: Parecem um regimento de dragões. Clov: Devo ter colocado as botas. Hamm: As sapatilhas machucavam? Pausa. Clov: Vou deixá-lo. Hamm: Não! Clov: Pra que eu sirvo? Hamm: Para me dar as deixas. (Pausa) Avancei bastante a minha história. (Pausa) Está bem avançada a minha história. (Pausa) Pergunte até onde eu cheguei. Clov: Ah, falando nisso, e a sua história? Hamm(muito surpreso): Que história? Clov: Aquela que você conta sempre. Hamm: Ah, você quer dizer o meu romance? Clov: Isso. Pausa. Hamm: (com raiva) Continue, criatura, continue mais um pouco. (BECKETT, 2001, p.115)

As botas, que tanto martirizavam Estragon, também causam dissabores a Clov.

Diante desse quadro, o jogo da mimicry torna-se essencial nesse duelo com a ampulheta. É

o que lhes resta, afinal. Eles precisam jogar, comportarem-secomo se, devem tagarelar e

brincar com os restolhosque ainda subsistem.Já não há mais caramelos, calmantes e

bicicletas, embora Hamm os solicite repetidamente. Aliás, assetenças proferidas, mais que

buscarem alçar um significado, são apenas instrumentos para os jogos. São o falso agôn, o

jogo que não visa à vitória, que está ali apenas para dar curso à peça.Comodestroços em

uma tormenta, o verboserve apenas como paliativo, para sobreviverem ao naufrágio

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existencial em que se encontram. Alude-se, como em Godot, a Heráclito, mas de forma

derrisória. A realidade é sempre a mesma e não há como perceber as mudanças. O fluxo do

tempo não se dá de forma transformadora e renovadora: ele os devora.

Hamm: O que está acontecendo? Clov: Alguma coisa segue seu curso. Pausa. Hamm: Clov! Clov:(irritado) Que é? Hamm: Não estamos começando a...a...significar alguma coisa? Clov: Significar? Nós, significar! (Riso breve) Ah, essa é boa! (BECKETT, 2002, p.115)

Didi- Huberman387 propõe uma perspectiva diferenciada para o estudo da teoria da

arte: a busca pelo sentido da imagem, procurando romper com a sujeição do visível e do

legível e com a certeza da historiografia da arte. O autor defende o conceito de invisível,

aquilo que não é visível, mas, ao mesmo tempo, é perceptível ao olhar. Para o estudioso

francês, é a ausênciaque dá conteúdo ao objeto, e o invisível não deixa de ser perceptível

ou sensível como a aura.O que se oferece à visão sempre inquieta o olhar: ver é uma

operação subjetiva, “portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho

traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se

detentor388”.

A linguagem alegórica, que se apresenta em forma de fragmentos, mostra que

também as coisas olham o mundo através de sua estrutura alegórica. Essa estrutura pode

ser evidenciada pela retirada de um objeto de seu contexto original; ele, o objeto, se

distancia de sua significação primeira para ganhar nova significação. O cão morto de

Paulette, que depois passa a ser substituído em seu ritual por toda a sorte de cadáver de

bicho encontrado, e o cachorro de pelúcia de Hamm expressam bem essa transição do

símbolo para a alegoria. Nesse novo contexto, as coisas perdem sua inteireza, são objetos

fraturados, que não obedecem à ordem simbólica, porque agora, fendidos, fazem sempre

alusão a uma ausência quando se presentificam.

Hamm: Ele fica de pé?

387DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:

Ed. 34,1998. 388 Idem, p.77.

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Clov: Não sei. Hamm: Tente. (Entrega o cão a Clov, que o coloca no chão) E então? Clov: Espere. Agachado, tenta colocar o cão em pé sobre três patas, não consegue, desiste, o cão cai de lado.389 Clov: Espere. (...) Hamm:(a mão na cabeça do cão) Está olhando para mim? Clov: Está. Hamm: (orgulhoso) Pedindo para dar uma voltinha? Clov: Se assim lhe parece. Hamm:(ainda orgulhoso) Ou pedindo um osso. (Retira sua mão) Deixe-o aí como está, de pé, implorando por mim.

(BECKETT, 2002, p. 92-93.)

Hamm é obcecado por seu cão, o bicho de pelúcia que Clov parece cuidar para ele e

de que Hamm toma como se fosse um animal de verdade. Tanto Clov quanto o cão

possuem problemas na perna. Nos ensaios de Berlim, em que Beckett foi o diretor de Fim

de Partida, Beckett enfatizou a semelhança entre Clov e o cachorro, fazendo com que o

olhar de Clov para Hamm se assemelhasse com o de um poodle, de cócoras, ao lado da

poltrona. Embora Clov não pudesse colocar-se nessa posição, devido a sua deficiência, ele

possuía, segundo Beckett, outras formas de mobilidade que poderiam transmitir esse tipo de

relação.390

Hamm: Fim de folia391. (Tateando, procura o cão) O cão fugiu. Clov: Não é um cão de verdade, não pode ir embora. Hamm:(tateando): Não está aqui. Clov: Está deitado. Hamm: Me dê aqui. (Clov pega o cão, entrga-o a Hamm. Hamm segura-o nos braços. Pausa. Atira o cão longe) Animal imundo! (Clov começa a recolher os objetos no chão) Que está fazendo? (BECKETT, 2002, p.113)

Segudo Benjamin, uma das figuras emblemáticas392que acumulam no primeiro plano

do quadro “Melancolia I”, de Dürer, é o cão. “Não é por acaso que uma descrição do estado

de espírito do melancólico, feita por Aegidius Albertinus, menciona a raiva.”Reza a tradição

antiga393: o baço domina o organismo do cão. Este é um traço que ele tem em comum com

390. Cf. FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /

Endgame/ Krapp’s Last Tape.Faber and Faber, London, 2000, p.123. 391 Alusão a “A Tempestade”, de Shakespeare; há além desse trecho, outros diálogos com o bardo inglês, como quando Hamm, para referir-se à Nagg e Nell, diz: “Meu reino por um lixeiro” (Ricardo III). 392 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011,p.158-159. 393 Idem.

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o melancólico. Se este órgão, particularmente delicado, se corrompe, o cão perde a alegria

e fica raivoso. Deste ponto de vista, o cão simboliza o aspecto sombrio da complexão

melancólica. Por outro lado, o faro e a resistência do animal permitiriam construir dele a

imagem do incansável pesquisador e do pensador meditativo. “Pierre Valerianon diz

expressamente, no seu comentário a este hieróglifo, que o melhor cão a farejar e a correr é

aquele que faiem melancholicam prae se ferat(... apresenta face melancólica)394”.

Na gravura de Dürer, a ambivalência deste símbolo é reforçada pelo fato de o animal

estardormindo: se os maus sonhos vêm do baço, os divinatórios são privilégio do

melancólico.

Mas tais sonhos devem ainda ser entendidos como de um sono geomântico no templo da Criação, e não como inspiração sublime ou mesmo divina. Porque toda a sabedoria do melancólico obedece a uma lei das profundezas; a ela chega-se a partir do afundamento, na vida, das coisas criaturais, a voz da revelação é-lhe desconhecida (BENJAMIN, 2011, p.58-59)

Tudo que é de Saturno remete às forças subterrâneas nointerior da Terra, pois é aí

que se conserva a natureza do velho deus das sementeiras. Os olhos postos no chão

caracterizam o saturnino, que perfura a terra com os olhos. Mas no universo beckettiano não

há mais natureza, o cão está morto e eles não podem dormir:

Hamm: A natureza nos esqueceu. Clov: Não existe mais natureza. Hamm: Não existe mais! Que exagero! Clov: Nas redondezas. Hamm: Mas nós respiramos, mudamos! Perdemos os cabelos, os dentes! A juventude! Os ideais! Clov: Mas você disse que não existe natureza Clov(triste): Nunca ninguém pensou de modo tão tortuoso como nós. Hamm: A gente faz o que pode. Clov: Fazemos mal. Pausa. Hamm: Você se acha o tal,hein? Clov: O próprio. (BECKETT, 2001, p.115)

Para fugir à angústia,Hamm faz de seu relacionamento com Clov um exercício

contínuo de sadismo, no qual se compraz em humilhá-lo, aviltá-lo, para sentir-se um

“soberano”. Nagg e Nell, seus pais, “são seus pobres” ou “súditos” que, no jogo de cena,

são também frequentementehumilhados por Hamm. O homem cego na cadeira de rodas

394 Idem, p.159.

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não dá o braço a torcer e coloca-se sempre como superior e manipulador daquele universo

ficcional propositalmente mal concebido. Hamm, contudo, teme a partida de Clov, que o

ameaça a todo tempo com tal possibilidade. Clov, por sua vez, jamais consegue livrar-se de

seu algoz, embora sustente durante toda encenação que irá fazê-lo.

Ao pedir que Clov traga o cãozinho de pelúcia, “uma espécie de lulu”, (um lulu da

Pomerânia aparece também em Molloy395), Hamm parece estabelecer com esse objeto uma

relação análoga à que mantém com seus companheiros de confinamento. Quer que o cão

(que parece considerar uma animal de verdade) o contemple em seu patético trono e clame

por sua atenção.Parece reproduzir, em sua brincadeira com o objeto de pelúcia, as relações

que mantém com todos que estão à sua volta. Interessante apontar que, ao abandonar o

cão, Hamm pergunta a Clov sobre Mãe Pegg, personagem emblemática, que parece ser

uma prostituta com queHamm supostamente já tenha se relacionado (há uma interpretação

que aponta Clov como filho de Hamm):

Hamm: Tem luz acesa na casa de Mãe Pegg? Clov: Luz! Como você queria que houvesse luz acesa em algum lugar? Hamm: Então apagou. Clov: Claro que apagou! Se não está acesa, é porque apagou. Hamm: Não, não, quis dizer a Mãe Pegg. Clov: Mas é claro que apagou, o que você tem hoje? Hamm: Sigo meu curso. (Pausa) Foi enterrada? Clov: Enterrada! Quem você queria que a tivesse enterrado? Hamm: Você. Clov: Eu já tenho bastante o que fazer sem ter que enterrar gente.(...). Hamm: Ela era bonita, naquele tempo, como um coração. E carinhosa também, por uns trocados. Clov: Também éramos bonitos...Naquele tempo. É estranho que não se tenha sido bonito... Naquele tempo. Pausa.Hamm: Vá buscar o croque.(BECKETT, 2001, p.93-94)

É curioso notar que, após invocar uma reminiscência de Hamm e Clov, o texto, por

meio da rubrica, aponta uma Pausa para em seguidaretomar o diálogo em que Hamm

solicita a Clovnovo aparato (objeto) para jogar. Mais interessante ainda conjecturar qual

figuração se insinua na inserção de Mãe Pegg na narrativa (ela apagara, morrera). Clov tem

consciência disso, Hamm necessita ser lembrado por Clov sobre tal fato. Quando Clov

pergunta com impaciência o que há com ele, ele diz: “Sigo meu curso”. A impaciência de

395 BECKETT, Samuel. Molloy. Tradução: Rui Guedes da Silva. Lisboa: Editorial Presença, 1964, p.10.

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Clov revela que Hamm já era conhecedor de tal informação; a insistência de Hamm em

perpetuar, contudo, tal assunto, denota a necessidade de, por meio do diálogo, fazer com

que o jogo da mimicry prossiga.É nesse processo de miniaturização e reduplicação, que

Hamm, como um ator (ham) representa para um público imaginário396. Ele oferece a sua

"história" de uma forma teatral, parando de vez em quando para comentar sobre seu próprio

desempenho, do mesmo modo Nagg, com sua piada do alfaiate. Clov aponta seu telescópio

para o público e comenta ironicamente sobre a fruição delirante dessa plateia. Estamos em

um mundo onde tudo é ilusão e tudo que deveria ser desempenho, ação, é jogo.“Mais que

isso, estamos no teatro, mas um teatro que Shakespeare e Calderón teriam entendido:

theatrum mundi, ou: todo o mundo é um palco397”.

Clov: A coisa está esquentando. (Sobe na escada, dirige a luneta para o exterior, ela escapa-lhe das mãos, cai. Pausa) Fiz de propósito. (Desce, pega a luneta, examina-a, dirige-se para a plateia) Vejo uma multidão delirando de alegria. (Pausa) Isso é que eu chamo de lentes de aumento. (Abaixa a luneta, volta-se para Hamm) E então? A gente não ri?(BECKETT, 2002, p.76)

Não é uma narrativa através da qual se tenta relembrar os fatos e compreendê-los.

Aos personagens de Beckett, sempre falha a memória. Assim, seus relatos não trazem em

seu bojo nenhum sentido, pois, antes de qualquer conclusão, o processo é interrompido

para novamente se apropriarem denovos objetos.

Assim como em Godot,a estrutura de Fim de Partida é circular; nada é acidental398:

tudo é construído por analogia e repetição. A peça é estruturada a partir de um acúmulo de

leitmotivs, que são obssessivamente remoídos a cada cena. As incidências são numerosas:

os anúncios de Clov de que deixará Hamm,as idas e vindas de Clov à despensa;

asdescobertas de um novo item em exaustão:papa, calmantes, rodas de bicicleta e

caramelos, tudo acabou. Hamm e Clov repetem insistentementeque deveriam acabar com

aquilo, mas sempre decidem por continuar, ainda que sofregamente, pois alguma coisa está

396FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/

Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.111. 397 Idem. 398THIBAULT, Rémy. En attendant Godot. Fin de Partie. France: Éditions Nathan, 1991, p.85.

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em curso. Como bem observa Fletcher, “estes leitmovs possuem papel estrutural, são

pontos de articulação, que as vezes aparecem de forma seriada, numa repetição mecânica,

e em outras, são solapadas de algum conteúdo, como se retornassem danificadas,

diminuídas.”Os gestos são repetitivos e contam com uma organização espacial simétrica:

duas janelas; duas caixas; os pares dos óculos escuros de Hamm, que parecem compor

com as janelas um processo de reduplicação, de miniaturização (como se a peça se

passasse dentro do cérebro de Hamm). Além disso, a coreografia das cenas,nas inúmeras

idas e vindas entre a sala e cozinha de Clov, juntamente com a sua ensaiada maneira de

mover os objetos em cena, como a escada, por exemplo, apontam para uma partitura que

não se esquece em nenhum momento de um certo processo de reiteração.Seja acrescendo

ou de forma recessiva, a repetição está sempre ali.

“Unidades maiores de diálogo e pantomimas tecem a peça, enquanto uma rede de

ecos: há três explorações, acompanhando passeios de Clov com as fezes e luneta, duas

caminhadas, duas cenas em que Hamm pede por seu cachorro, etc399”.

Como em um ensaio, em que as cenas são repetidas e nunca logram êxito, os atores estão

ali, usando o jogo da mimicry para retardar a passagem do tempo, grão após grão e driblar,

com isso, o vazio da existência. É certo que falham: o ódio ea convivência entre Hamm e

Clov torna-se insuportável, a tensão dramática aumenta ao ponto de uma ruptura. Eles

precisar suportar uma ao outro para que o jogo continue e, assim é, porque a peça termina

em suspenso.

Clov, quesempre ameaçara deixar Hamm, parece tão inábil em fazê-lo quanto Hamm

em prescindir dele. Embora não compreenda sua submissão a Hamm, ele vem, segundo o

texto diz, “obedecendo-o a vida inteira”. Hamm, como Pozzo, carece de uma platéia cativa

para sua história, uma narração na qual afirma estar trabalhando há algum tempo. Não está

claro o quanto dela é ficção, nem o quanto se baseia na memória de fatos reais. De fato, a

história por ele narrada parece mostrar a relação dele com os demais. Trata-se de um relato

399FLETCHER, John. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/

Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.112.

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sobre um menino que um dia aparecera por acaso, cujo tema parece ser a maneira com que

conheceu Clov.

O enredo dessa história exaustivamente repetida, como as demais histórias, é dito

de maneira confusa, mal acabada: um dia, na véspera de Natal,aparece um homem,

suplicante, com um menino. Ele pede ajuda a um outro homem, que, pela descrição da

narrativa, parece ser Hamm. Ele, contudo, estava ocupado com os preparativos, com a

decoração de um pinheiro, e lida com impaciência com o forasteiro. Segundo Eugenne

Webb400, pelo contexto, o menino aparece como símbolo da fertilidade e da vitalidade. Ele

fora deixado em sono profundo, por três dias completos antes, recordando o período de

morte e ressureição de Cristo. Mas, para Hamm, não vale a pena que a vida se renove.

Na poética cênica de Fim de Partida o manuseio de certos objetos encena aquilo que

foi silenciado pelo discurso, quando o paradoxo toma a cena e o texto não é mais capaz de

encenar o luto. Traz, portanto, em si, como objeto concreto, aquele poder de alteridade tão

necessário ao processo mesmo da identificação imaginária. Hamm é cego. Porém o contato

táctil com esses objetos residuais juntamente os relatos fazem com que a natureza

manipulável das coisaspossibilite um poder de alteração que manifesta a ausência em um

mundo em ruínas.

No desfecho da peça, Hamm prepara-se para seu último monólogo, seu Fim de

Jogo. ApósClov avistar por algumas vezes um pequeno menino401 na praia,ele também se

compõe com chapéu e valise paradeixarHamm e aquele espaço.Omenino, no entanto, não

aparece emcena,eHamm,cobrindo o rosto como lençodoquadrode abertura,pareceresignado

com amorte: “Hamm: Minha vez. (Pausa) De jogar. (Pausa. Com cansaço) Velho fim de

partida, perdido, acabar de perder.” Clov está ao seu lado, de panamá, paletó, sobretudo

400WEBB, Eugene. The plays of Samuel Beckett. Washington: Library of Congress Cataloging in Publication, 1972, p.79. 401Lembremos que, em Godot, a aparição do menino anuncia a circularidade dos jogos, seu recomeço. Então, talvez, possamos inferir aqui, que, dado que a peça termina com os dois personagens imóveis (assim como em Godot), haverá novamente um recomeço do espetáculo, em que tudo se repetirá, no eterno retorno daqueles personagens e situações, sem que haja um final e, portanto, sem que exista uma catarse.

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sob o braço, guarda-chuva, mala. Perto da porta, impassível, com os olhos fixos em Hamm,

Clov ficará imóvel até o final.

Hamm: E para terminar? (Pausa) Eu jogo. (Joga o cão. Arranca o apito à sua frente. Pausa. Funga. Baixo) Clov! (Pausa longa) Não? Tudo bem. (Tira seu lenço) Já que é assim que se joga... (desdobra o lenço)...joguemos assim...(desdobra) e não falemos mais nisso...(termina de desdobrar)... não falemos mais. (Segura o lenço esticado à sua frente) Trapo velho! (Pausa) Você... fica. Pausa. Aproxima o lenço de seu rosto. (BECKETT,2001,p.148)

Na verdade, a peça é circular, o lenço que Hamm retira da boca no começo da

encenação é também a abertura de seu monólogo final. Hamm conclui seu solilóquio com

as palavras do início: "Eu jogo" e "o fim é o começo". Essa estrutura apresenta a simetria

sintática do paradoxo e cancela qualquer ideia de progresso. O lenço, nesse momento final,

ganha especial atenção desse ator, que é Hamm, em seu solilóquio. Hamm despe-se de

todos os objetos, mas o trapo velho fica. Ele é agora “a cortina, o pano que cai (stancher,

em inglês sugere também curativo, um pano que funcione como atadura e estanque o

ferimento que persiste, fica” 402”). O trapo velho ganha a plurisignificação da alegoria, na

qual o jogo de palavras torna-se também jogo de imagens. Esse retalho sujo de sangue

também é um resíduo, um objeto fraturado, que, laconicamente, põe em curso o luto de um

mundo pós-guerra, que traz consigo uma ferida que não cicatrizou. O teatro também é,

metonimicamente, representado nesse pedaço de pano: a encenação subsiste, apesar da

qualidade duvidosa do contexto histórico com a qual, invariavelmente, deve dialogar.

Quando a cortina cai, Clov ainda está no palco, supostamente pronto para deixá-lo

definitivamente, mas nada diz que estadecisão será levada a cabo, e que a história da

emancipação fechará o círculo de sua servidãoa Hamm.

Fim de Partida, assim com Esperando Godot, apresenta uma ruptura radical com

técnicas teatrais conhecidas. Seus enredos são parcimoniosos, quase não há intriga: se

Godot não veio, Hamm perde seu fim de jogo; o que parece acontecer ad infinitum.

402ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: O Silêncio Possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 91.

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Ficamos em dúvida se Clov, no fim, abandonará o homem que "era pai para ele".E Hamm?

Cansado de jogar o velho jogo lutuoso, morrerá depois que o pano cai? Ou é o mesmo

ritual, dito e redito, obedecendo à mesma estrutura de repetição, exatamente do mesmo

modo, todas as noites?

Estas questões não podem ser facilmente respondidas. O teatro de Beckett guarda

seus mistérios, os seus pontos de interrogação. Eles existem tanto para o autor, quanto para

nós mesmos. "A palavra-chave em minhas peças”, disse ele uma vez, “é talvez403”.

A suspeita de algo que falta ser visto, ouvido ou revelado e os esquecimentos dos

personagens que não cessam de entrecortar seus jogos e narrativas passam a exigir, no

exercício do olhar do espectador,nesta e nas demais peças de Beckett, uma atenção a uma

nova dimensão,na qual a ausência e o vazio são fundamentais parauma latência, que

contradiz mais uma vez a segurança tautológica do What youseeiswhatyousee,(usando a

expressão de Didi-Huberman). Essa nova maneira de olhar se opõe à segurança de se

achar diante de uma “coisa mesma”, da qual poderíamos refazer em pensamentoa “mesma

coisa404”.

Beckett,no já mencionado ensaio sobre Proust,falara de nossa “presunçosa vontade

de viver”, na esteira de Shopenhauer. Esta incompreensível atitude irracional, que nada tem

a ver com a razão, é o que sustenta as criaturas beckettianas em sua miséria.Seus

personagens são coxos, cegos, paralíticos,que não são metáforas de coisa alguma, mas

seres humanos, que, mesmo mutilados e impotentes, são impulsionados por aquilo que

falta, por um desejo inesgotável que os leva a brincar, a jogar com os restos que dispõem

em um mundo deteriorado.

O jogo do Fort-Da, como afirma Didi-Huberman (1998), em seu próprio ritmo, “era

403FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /

Endgame/Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.109. 404DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,1998, p.118-119.

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criador de uma espacialidade originária já dialética: a criança nele vigiavao pasmo aberto, a

espécie de antro do qual a mãe havia se ausentado, e desse lugar o carretel traçava a

impossível geometria. O jogo inventava um lugar para a ausência, precisamente para

permitir que a ausência tivesse lugar”. Mas enquanto é o próprio agir que engendra

espontaneamente o lugar no movimento de ida e volta do carretel, devemos reconhecer no

jogo uma capacidade diferentemente complexa de desvio.(Freud tentava apreender esse

movimento, tateando, através da palavra sublimação.)

Porém, nemem Esperando Godotnem nas demais obras,encontramos sublimação

alguma. Em Beckett seria inadequado falar em redenção de qualquer tipo. A espera de

Godot, como a dos demais personagens, está em suspenso: enquanto aguardamos, jogos

se anunciam, repetições se processam e os vazios se ampliam,

inaugurando,continuamente, a possibilidade de um lugar de resistência e promessa405 para

nossos desejos.

Temos aqui uma percepção análoga a de Rancière, quando este sugere um regime

estético406 das artes como categoria de análise dos produtos da arte, levando-se em conta o

modo de ser sensível próprio de seus objetos e sua temporalidade, que não obedece aos

preceitos de correntes ou periodizações literárias historicistas e redutoras.

Assim, a temática de incomunicabilidade e deserção do mundo não seria suficiente

para tornar Beckett comum a seus contemporâneos.Contudo, a maneira, a forma com a qual

forjou o modo de ser sensível de sua obra instaurou a sua singularidade ao mesmo tempo

em que a agrega a uma tradição à qual pertecem ao mesmo tempo Sófocles, Aristófanes,

Rabelais, Calderón, Shakespeare, Kleist, Melville e Kafka, dentre outros. Quanto à questão

de gêneros, o mesmo acontece: o hibridismo presente em Esperando Godot e Fim de

Partida confere a estas obras um caráter heterôgeneo que lhes permite vasculhar a

complexidade da existência humana, que oscila, sem distinção, entre o patético e o trágico,

405Para Jacques Rancière, a “literatura é resistência e promessa”. Tomamos emprestado o termo,

para falar do jogo em Beckett, no qual a ausência e os vazios produzidos são, em nossa leitura, reduto do desejo. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Ed. 34, 2009.

406 Idem.

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o sério e o jocoso, em consonância com Dioniso e sua pluralidade de máscaras.

Hamm e os demais personagens de Beckett sãotambém ficcionistas, atores-

dramaturgos, insatisfeitos com o que concebem, masresistentes, via mimicry. São incapazes

de abandonaro território da linguagem: agôn, mesmo enfraquecido, não os

permite.Brincando, ainda que com crueldade e ironia, com a ausência e a perda, o vaivém

contínuo dealeaoferece, ao inventar seu jogo rítmico, um lugar para inquietar -ou perturbar

(ilinx) - a visão; e, portanto, para operar todas as expectativas, todas as previsões, que o

desejo mobiliza em sua falta. Alea, ilinx, mimicry e agôn.Ludo, ledo, gaeteiro,vertiginoso

engano: um jogo, feito para perder, como nossa existência, repleta de vazios, que,

ampliados, vez ou outra, nos movem.

7. CONCLUSÃO

Viver e inventar. Eu tentei. Acho que tentei. Inventar. Não é bem essa palavra. Viver também não é. (...) Enquanto dentro de mim ia e vinha a besta feroz da seriedade, rugindo, rasgando, roendo. Eu fiz isso. E completamente sozinho, bem escondido, fiz o papel de palhaço, sozinho, hora após hora, imóvel, muitas vezes de pé, numa atitude de enfeitiçado, gemendo. Isso, gemendo. Não soube jogar. Eu girava até ficar tonto, batia as mãos, corria, gritava, me via ganhando, me via perdendo, exultando, lamentando. Depois, de repente, eu me atirava em cima dos instrumentos de jogar, se houvesse, para destruí-los, ou sobre um garoto, para transformar sua alegria em uivos de dor, ou fugia, ou corria para me esconder. (...) Eu já era vítima da seriedade. Foi minha grande doença. Nasci sério como tem gente que já nasce sifilítico. E foi com seriedade que tentei deixar de sê-lo, viver, inventar, eu sei o que estou dizendo407.

407BECKETT, Samuel. Malone Morre. Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p. 28 - 29.

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Se me fosse ordenado, em um jogo, que eu imaginasse os personagens de Beckett

como brinquedos, eu, imediatamente, os imaginaria como aqueles grandes bonecos cheios

de ar, que, aqui no Brasil, chamamos de João Bobo.

João Bobo é um objeto de base arrendondada, que por mais que seja inclinado,

tende a permanecer de pé. Há versões infláveis, que às vezesapresentam formas

humanas; às vezes apresentam formas de animais. O brinquedo diverte em demasia as

crianças; em especial, as de pouca idade. O vaivém do boneco costuma fazer com que os

pequenos permaneçam entretidos por um bom tempo e, não raro, são também objetos

estimados pelos pais, que veem nesse jogo hipnótico de repetição e resistência a

possibilidade de algum descanso. Na maioria dos casos, a face desses personagens possui

um sorriso bem desenhado, nada sutil, que torna a patetice da queda, que jamais se conclui,

ainda mais acentuada.

A explicação física para o objeto estar sempre de pé é o baixo centrode gravidade,

perto da base arrendondada. Assim, a forma abaulada e a distribuição da massa fazem com

que elese mantenha de pé, mesmo quando inclinado. O interessante, nesse processo, é que

o centro de gravidade sempre tende a ficar na posição de menor energia possível, que é a

mais próxima ao chão408.

Assim como o brinquedo, os personagens de Beckett, a despeito de todas as quedas

e linhas de força que incidem sobre eles, teimam em retornar. Perseveram em seus jogos e

brincadeiras e parecem ignorara catástrofe que os cerca, em sua eterna repetição. Albert

Camus dizia que era “preciso imaginar Sísifo feliz”. Mas os personagens de Beckett não são

felizes nem infelizes o suficiente; eles lutam para existirem ou apenas para terem essa

sensação... E existir, no caso em questão, só será possível se puderem contar, como

tentamos mostrar, com a possibilidade de jogo.

408ASSIS, André Koch Torres. Arquimedes, o Centro de Gravidade e a Lei da Alavanca. Montreal, Quebec: Apeiron Montreal, 2008, p. 109.

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Nesse sentido, as categorias do jogo sugeridas por Callois, mimicry, alea,agôn e

ilinx, nos serviram de suporte para espreitar as variadas possibilidades de compreensão de

nosso objeto. Acreditamos, nesse sentido, ter conseguido mostrar quea obra de Beckett,

em especial Esperando Godot,apresenta uma poética crítica e instauradora, que dialoga

com a tradição, reinventando-a.

O mistério que envolve esse salto de fé, a teimosia em persistir, até o apagamento quase

total de seus personagens, que, em geral, são cegos, coxos e de idade avançada, nos

lembra, em muito, aquilo que Shopenhauer chamou de “a presunçosa vontade de viver409.”

Uma pretensão inocente, livre do instinto de autopreservação, que tanto perturbava

Nietzsche, porque incapaz de livrar-se daquilo que o autor de Zaratrusta chamou de má-

consciência.

Entretanto, os heróis de Godot, Estragon e Vladimir, não possuem contrato com tal

ordem de valores. São vaudevillese assim se apresentam: chapéus coco, botas

desgastadas; paletós e calças surradas... É esse o traje para o solene encontro, que nunca

acontece. A estrada de campo é um lugar perdido no espaço e no tempo, e a única árvore,

na qual se vê, misteriosamente, tímidas folhas brotarem no decurso da peça, está ali, como

um fio minúsculo que ainda os une à phisys.

Eles sentem dores e padecem. A natureza corpórea de seus personagens, que traz à

cena a fragilidade, a vulnerabiliade de corpos em decomposição, é, em nossa visão, não

uma negação da vida, mas uma afirmação na negação, que traz em si um extraordinário

sentimento de amor pela humanidade, quando escolhe, justamente, esse estágio da

existência como tema. Um amor especial, amor fati, que não desdenha da dor da existência,

mas, antes, a celebra.

409BLOOM, Harold. O canône ocidental: Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.485.

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É claro que não prescidem do humor para fazê-lo. A dialética morte-vidatraz à cena a

dialéticavelho-criança, sem nos oferecer uma síntese de tal embate. Só nos sabemos vivos,

quando capazes do confronto com a morte. Mas Beckett nos mostrou que esse confronto

não precisa ser direto, com frases de efeito, aforismos trágicos ou, até mesmo, com a

concretização do suícidio. O chiste e o humor negrosão, no caso, também de natureza

paradoxal e nonsense.A tensão complementar vida-morte se dá com a exposição de corpos

que definham; corpos defeituosos, ou até mesmo mutilados, que pulsam, agonizam, mas

não sucumbem. A carne que definhaainda vibra, e é esse vitalismo, apresentado em seu

estado de impotência, que somos obrigados a enfrentar, quando estamos com Beckett.

Tudo isso, com a mais alta dose de autoironia, que, corrosiva, desintegra e destabiliza

também a linguagem, sem nunca, contudo, dissolvê-la completamente. Um corpo vivo

envelhece, deteriora-se; Beckett canta esse movimento da vida.

Estragon e Vladimir, o par de Esperando Godot, não são os únicos personagens de

Beckett a insinuarem essa atitude de resistência. No caminho que percorremos, tentamos

mostrar que essa não-ação,apresentada pelos personagens,não se reduz à simples

passividade. Buscamos, então, um diálogo com essa tradição da imobilidade. Tanto no

universo beckettiano como no de outros autores, sobre os quais nos detivemos, ainda que

de forma breve, é possível perceber que essa disposição para nada pode ser bastante

vigorosa em sua aparente improdutividade. Isso porque, em Beckett, vemos acontecer uma

outra estratégia, via jogo, em relação às pessoas e às coisas. Seus personagens não

seguem, unicamente, a via recta da razão, de inegável eficácia, mas um tanto redutora; eles

preferemtomar o caminho, mais complexo e tortuoso, daquela racionalidade extática tão

temida por Platão, que é o discurso poético.É nesse saber, que caminha ao lado de um não

saber,que se enseja um novo tipo de liberdade.

Também, de grande importância, em nossa visada, foram os pequenos rituais nos

quais se detêmos personagens beckettianos.Rituais profanados, nos quais os objetos

residuais, quando manuseados, tentam substituir o tempo cronológico pela temporalidade

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da criança de Heráclito, insinuando-se como uma nova forma de experimentar o real.

Talmanejo, que rompe os limites entre sujeito e objeto, guarda em si lampejos de uma

desaprendizagem que nãoabdica da vitalidade da dor, preferindo celebrá-la, naencenação

do luto e da melancolia, que, em nossa leitura, procuramos nunca dissociar do universo

infantil.

Por isso dissemos que apersistência desses heróis fracassados, verdadeiros

ginastas do imobilismo, em muito se assemelha à impertubável resistência do Boneco João

Bobo. Novos sísifos, que, em sua repetição lúdica e tragicômica, nos mostram um amor à

vida corrente; uma vida sem qualidades, que é, afinal, a única da qual dispomos.

Nessa intersecção entre o ordinário e o extraordinário, a qual só o jogo é capaz de

instaurar, nos vemos em companhia de caracteres exauridos, que, a despeito de todas as

circustâncias, resistem. Entre o chiste e o humor corrosivo, se perfaz uma travessia

incompleta, cuja imobilidade nos faz perscrutar, como espectadores melancólicos,

osimpasses existenciais mais antigos de nossa existência.

Sim, eles são perdedores, mas a insistência nessa ética outra, incômoda e

subversiva, os transforma em seres portadores de uma máscara disjuntiva e

desestabilizadora, capaz de assustar àqueles defensores do status quo e dos valores

cristalizados, que até hoje vigoram em nossa cultura.

Se o dizer sim à vida dessas vozes tão patéticas, ainda agasalha o trágico, o faz,

promovendo o apagamento do personagem tradicional, destituindo sua máscara de

qualquer traço em que prevaleça uma sublimação, e dando vazão ao grotesco de nossa

condição, no que há de mais abjeto, mas, também, regenerador, nesse processo de vida-

morte. Assim, torcemos para que a reflexão dos gêneros, que tentamos esboçar aqui,

também possa contribuir, de alguma maneira, para um maior entendimento da ausência de

fronteiras entre o trágico e o cômico na cena beckettiana.

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Nossas elaborações sobre o coro em Beckett bem como nossas reflexões sobre a

função do menino na peça são meras especulações. Ainda sim, julgamos relevante partilhar

de nossas dúvidas e elaborar uma proposta de entendimento para esses dispositivos que

fazem parte da composição poética da cena.Se não oferecemos respostas definitivas, é

porque não as temos. No entanto, pensamos ser importante friccionar conceitos e classes,

no sentido de repensar como tais dispositivos, na concepção da cena beckettiana, podem

suscitar novas perguntas a respeito da condição humana e do gênero dramático.

A questão da liberdade nos era a mais cara. Posso dizer que foi ela que mobilizou

todo esse trabalho. Desde Édipo, passando por Calderón, Kleist, Melville, Kafka e,

finalmente, Beckett, tentamos pensar um pouco sobre o enigma do livre-arbítrio em face das

artimanhas do acaso. A proposta era tratar a questão como um interlúdio entre as reflexões

acerca do jogo e da melancolia, que fechariam nossa modesta contribuição para a leitura de

Beckett.

A busca de um sentido para a existência, da verdade;uma breve mirada no jogo das

máscaras que nos desse um leve bafejo de quem somos: foram essas as frestas que

procuramos auscultar com essa discussão. E parece-me que foi possível vislumbrar um

viésdessa liberdade, que, se não é sem limites, pode, ainda assim, estar ensejada nesse

lugar abandonado e na disponibilidade desses corpos fraturados, que se deixam

ficar;quando jogam seus jogos, inaugurando esse espaço de exceção.

Nos últimos capítulos tentamos dar maior profundidade teórica à melancolia. Para

isso, buscamos outra peça de Beckett,Fim de Partida, na qual consideramos reincidente

algumas características de Godot,tanto na retomada de alguns temas, quanto nas

experimentações com a linguagem. Na verdade, ao finaldessetrabalho, podemos afirmar,

sem hesitação, que Beckett possuía um projeto para seus escritos, dada a repetição de

certos temas e situações, que irão acompanhá-loao longo de toda a sua obra.

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Niestzche, em Assim Falou Zaratrusta410, mencionavaas três metamorfoses do

espírito: “Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se transforma em

camelo, o camelo em leão, e o leão em criança, para acabar”. O camelo deveriadizer sim

aos fardos que a vida lhe impõe; aceitar o pensumda existência, sem, no entanto,

interromper sua jornada rumo ao deserto.

Lá, nessa solidão,ele se tornaria leão, para conquistar sua liberdade e o direito

sagrado de dizer não aos antigos valores e ao dever imposto.O espírito consegue, vence o

dragão, e descobre a ilusão e arbitrariedade do mundo. No entanto, a transformação ainda

estava inconclusa: eleencontra-se inapto para a criação de novos valores.

Epor isso, uma última metamorfose otornou criança, para conquistar algo ainda mais

auspicioso:“É que a criança é inocência e olvido, novo começar, fogo, roda que se move por

si própria, primeiro móvel, afirmação santa411.”

É assim que, para Niestzche, em um primeiro momento da história espiritual do

homem,ele não passa de um camelo, que, como o desgraçado animal, apenas ajoelha-se e

agradece quando lhe dão boa carga. Carrega pelo deserto as culpas por ter nascido. Na sua

humilde corcova, avolumam-se as penas do mundo, sobregarregado por regras morais e

pelas imposições que lhe fazem, quando lhe dizem“Tu deves!” Entretanto, no deserto,

solitário, dá-se a transformação. O camelo vira um leão. Espírito liberto, derrota o dragão e

já pode rugir e responder desafiante: “Eu quero!”. Mas o leão não pode criar novos valores,

ainda que possa lançar fora o fardo que afligia o desafortunado camelo. Então, dá-se a

derradeira transformação – o leão torna-se criança. Sim,porque a criança é esquecimento, é

o novo começo. O apelo por Godot não poderia significar o retorno de Dioniso Zagreu, esse

pequeno deus criança, na encenação desse mundo em ruínas?

410NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Pietro Nassetti.São Paulo: Editora Martin Claret, 1999. 411 Idem.

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No rastro de Zaratrusta, deixamos, em suspenso, esse diálogo entre o universo de

Beckett e a categoria do jogo, que é, por excelência, um lugar privilegiado da infância. Sei

que não esgotamos o tema, mas, de toda forma, seria pretensão demais tentar fazê-lo.

Ficamos por aqui, e, sim: continuamos a esperar por Godot.

Olhar o mundo com olhos livres, com olhos de criança, que admira o mundo pela

primeira vez. Caminho difícil, que passa por um longo processo de desaprendizagem...

Quem sabe essa espera nos ensine a rir um pouco mais de nossa miséria,trazendo-nos o

amor fatide que precisamos, para que, finalmente, possamos renascer para a novidade do

mundo.

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ORICCHIO, Zanin Luiz. Para ler Proust aos olhos de Beckett. O Estado de São Paulo. Caderno 02, em 08/06/2003. SÜSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados: um ensaio de Flora Süssekind. Rio de Janeiro: Jornal O Globo. Prosa e Verso, 21/09/2013. FILMES: JEUX INTERDITS. Direção: René Clément. Roteiro: François Boyer. França: Cinemax, 1951, DVD. MIDNIGHT IN PARIS. Roteiro e direção: Woody Allen. Paris Filmes, 2011. O FABULOSO DESTINODE AMÉLIE POULAIN. Direção: Jean-Pierre Jeunet. Produção: Claudie Ossard. UGC. França: 2001, DVD.

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9. ANEXOS

Cenas da primeira produção de Esperando Godot, Paris, 1953.

Fonte:http://www.telegraph.co.uk/culture/theatre/theatre-features/9780077/When-Beckett-wrote-Waiting-for-Godot-he-really-didnt-know-a-lot-about-theatre.html

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Fonte: http://www.bbc.com/news/education-20889073

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Programa da primeira apresentação de Godot, noTheatre de Babylone , emMontparnasse, Paris.

Fonte: http://www.bbc.com/news/education-20889073