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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (PPGCOM – UFF) VALERIA VALENZUELA GÁLVEZ SUJEITO, NARRAÇÃO E MONTAGEM NOVOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO NITERÓI 2008 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (PPGCOM – UFF)

VALERIA VALENZUELA GÁLVEZ

SUJEITO, NARRAÇÃO E MONTAGEM

NOVOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO

NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO

NITERÓI

2008

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

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1

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (PPGCOM – UFF)

VALERIA VALENZUELA GÁLVEZ

SUJEITO, NARRAÇÃO E MONTAGEM

NOVOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grão de Mestre. Área de concentração: Análise da imagem e do som

Orientador: Prof. Dr. ANTÔNIO CARLOS AMÂNCIO DA SILVA

NITERÓI 2008

VALERIA VALENZUELA GÁLVEZ

2

SUJEITO, NARRAÇÃO E MONTAGEM

NOVOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO

NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grão de Mestre. Área de concentração: Análise da imagem e do som

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Professor Doutor Antônio Carlos Amancio da Silva – Orientador

Universidade Federal Fluminense

___________________________________________________ Professora Doutora Andréa Molfetta

Universidade de São Paulo

__________________________________________________ Professor Doutor João Luiz Viera Universidade Federal Fluminense

NITERÓI 2008

3

A la querida tía Silvia y al amigo y profesor

Guillermo Cifuentes, el Guille,

in memorian.

4

AGRADECIMIENTOS

A minha querida Maria Laura pela compreensão das minhas ausências;

A minha família Luiz, Grécia, Pepe, Mariana, Leonardo e Felipe pelo incentivo e apoio;

Á CAPES pelo financiamento;

A Tunico Amâncio pela orientação e pela generosidade com que me acolheu desde o

primeiro dia que manifestei o meu interesse pela pesquisa de cinema latino-americano.

Também lhe agradeço o enorme otimismo e criatividade com que coordena, no LIA,

grupos de pesquisa e um valioso acervo de cinema latino-americano, tendo sempre

novas idéias para estreitar os laços entre o Brasil e o resto dos pesquisadores e

realizadores cinematográficos do nosso continente;

Aos professores Ana Mauad e João Luiz Viera pelas suas valiosas sugestões na minha

banca de qualificação;

À professora Andréa Molfetta pela participação na banca examinadora e pelo grande

aporte que as suas reflexiones sobre documentário latino-americano significaram para o

desenvolvimento desta dissertação;

Aos companheiros e amigos do programa de pós-graduação da UFF, especialmente a

Celina Ibazeta com quem pude compartir minha paixão pelo documentário e pela

história da América Latina.

5

“Un país, una religión, una ciudad que no tiene cine documental, es como una familia

que carece de álbum de fotografías, es decir, una comunidad sin imagen, sin memoria”

Patricio Guzmán – La Importancia del Cine Documental – Madrid, 1997

6

RESUMO

Na busca por identificar na produção documentária latino-americana

contemporânea estruturas de caráter formal, a partir das quais seja possível reconhecer elementos comuns a todo o conjunto que, nas suas diversas combinações, revelem estruturas narrativas predominantes, foi construído um modelo de analise que permite identificar os elementos discursivos e as figuras de montagem que se destacam nas obras. Percebe-se no novo documentário de autor latino-americano um olhar interior, que observa o mundo histórico permeado por uma percepção subjetiva. O olhar do documentarista se faz evidente no filme através de um sujeito da enunciação que é parte do discurso, no seu papel de autor/personagem. Essa nova modalidade audiovisual contemporânea, cuja enunciação se manifesta como eu te digo que o mundo é assim, expressa um processo que junta elementos discursivos aparentemente antagônicos: o geral com o particular, o individual com o coletivo e o político com o pessoal.

Se os documentaristas latino-americanos do Nuevo Cine elaboraram obras de línea didática e panfletária; hoje, suas preocupações passam pela reflexividade, destacando-se filmes auto-referentes que tratam do próprio processo de produção da reflexão. Uma nova poética surge como prática de resistência substituindo o que fora a linguagem revolucionária: Uma “narrativa dos afetos”, que a partir do registro do encontro entre quem filma y quem é filmado, constituísse também, em quanto reflexão singular, num gesto político.

PALAVRAS - CHAVES

América Latina – Documentário – Autor – Subjetividade – Montagem

7

ABSTRACT

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SUMÁRIO

Introdução

I. O Olhar Documentarista na América Latina

1. A vontade de ensinar

2. A necessidade de aprender

II. Relato e Montagem no Documentário Latino-americano

1. A presença de marcas de autoria

2. O domínio da entrevista

3. A natureza do material e suas possibilidades

III. Giro Subjetivo: Eu te digo que o mundo é assim

1. Variações sobre o mesmo

O Autor-personagem no documentário.

2. A “experiência” representada por autores latino-americanos

Yo no sé que me han hecho tus ojos, Calle Santa Fe e Santiago

Conclusões

Obras citadas

Obras consultadas

Anexo

9

INTRODUÇÃO

A tradição documentária, ao longo da sua história, edificou suas bases com

maior ênfase nas preocupações morais e nos conteúdos do que nas formas de

representação – permitindo, assim, inúmeras possibilidades estéticas de realizar um

documentário. A grande diversidade, seja temática, estilística, técnica o metodológica,

dificulta enormemente a formulação de modelos e categorias.

Ao pensar, hoje em dia, a América Latina como um território homogêneo não

ressaltam, à primeira vista, escolas que agrupem documentaristas latino-americanos em

torno de um projeto formal de desenvolvimento de suas obras. Se por um lado, trata-se

de documentários com características que fazem referencia à sua origem, por outro,

estão cheios de particularidades que os tornam específicos.

A identificação de características comuns às produções latino-americanas é

difícil. Porém, ao rever obras de um determinado período histórico, constata-se nos

filmes uma espécie de espírito da época -Zeitgeist- impregnado não apenas nas

preocupações em termos de conteúdo, mas também na forma da expressão filmica. Este

espaço comum, no campo das representações, parece ter sua origem nos

condicionamentos procedentes de um processo histórico que reflete realidades diversas,

mas ao mesmo tempo com muitos pontos em comum.

As semelhanças em termos de estabilidade ou instabilidade econômica, assim

como as similitudes com respeito às problemáticas sociais, geraram nestes países uma

produção cultural semelhante no que diz respeito às suas preocupações e às suas

motivações. Na historia audiovisual da América Latina quando os movimentos sociais

se unificaram para lutar por interesses comuns, uma parte da produção cultural também

se unificou na intenção de contribuir com estes movimentos; porém sempre limitada

pelos interesses dominantes controladores da produção audiovisual de massa, assim

como pelas próprias carências econômicas.

Contudo, estas similitudes históricas não chegaram a ser determinantes para a

consolidação de uma produção cultural com uma identidade unificada. A formação da

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identidade latino-americana é um conceito construído, desde suas origens, de uma

forma artificial.

O termo “América Latina” diz respeito a um território delimitado geográfica e

econômicamente. A constituição das nações no continente implicou a assimilação de

modelos estáticos de representação, em que cada região era definida como possuindo

uma unidade homogênea, um conjunto de características que lhe conferiam uma

identidade mais o menos fixa, quando na realidade tratava-se de uma formação

continental mestiça.

Já o termo identidade é um conceito mais dinâmico cujas bases têm a ver com o

pertencimento à história. A idéia de “latinidade” surge nas lutas de independência

contra os europeus, e adquire maior popularidade a partir da revolução cubana, no

contexto das lutas contra as políticas de dominação dos Estados Unidos. No conjunto da

América Latina o conceito de identidade está fortemente vinculado a sua condição

histórica de dependência principalmente político-econômica. Neste sentido a latinidade

tem sido definida, ao longo da historia, pelas suas carências, caracterizando-se

fortemente pela sua condição de “colonizada”. E como a identidade se define em grande

parte a partir da sua relação com o “outro”, ou seja, por oposição a aquilo que “não

somos”, no caso da América Latina esta identidade se constitui pela relação com os

“outros que nos dominam”.

As estruturas políticas e econômicas formadas e deformadas pelo processo

colonial permitem falar da existência, na América Latina, de uma unidade que

“enquanto uma dada realidade sócio-espacial pode ser diversa e plural e a sua

diversidade e pluralidade mantenham-se numa unidade como corolário de um processo

histórico comum” (OLIVEIRA, 1998, p. 227).

Comum a todos os paises da América Latina é, antes de tudo, sua dependência

– econômica, política e cultural – Por isso, a cultura dominante nestes países, ainda

subdesenvolvidos, é entendida por alguns cientistas sociais como um Neo-Colonialismo

que continua se impondo desde fora. A exportação de mercadorias e de valores dá

prioridade às formas de vida ocidentais. As ideologias coloniais, historicamente

dominantes, universalizaram os conceitos políticos, sociais, culturais e artísticos. As

nações latino-americanas construíram suas identidades dentro de uma lógica

neocolonial em concordância com as universalizações do pensamento colonial,

influenciando assim, também, as suas formas de auto-representação. As representações

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audiovisuais da América Latina, que num primeiro momento pudessem ser consideradas

visões universais, são construídas, majoritariamente, a partir de normas eurocêntricas

(STAM, 2006).

A condição de dependência neocolonial pode produzir, também, sintomas de

carência de identidade, conseqüência da heterogeneidade de referências culturais

influenciadas há séculos por culturas externas. Para positivar esta condição, alguns

movimentos na América Latina fizeram uso da apropriação cultural, como forma de

indagar a natureza sincrética deste passado histórico e cultural para, assim, entender a

história da cultura latino-americana e produzir representações simbólicas mais

concordantes com este caráter sincrético da constituição destes países.

A idéia de identidade constituída na sua relação com os mundos culturais

exteriores e as identidades que esses mundos oferecem, quer dizer na interação entre o

“eu” e a sociedade, sofre atualmente uma crise de deslocamento do Sujeito do lugar que

ocupara no mundo social e cultural. Dita crise se desdobra da transformação da

sociedade moderna (projeto forjado no século XVIII), em o que alguns autores, como

Anthony Giddens e Zygmund Bauman, denominam modernidade tardia, ou outros

como Fredric Jameson preferem chamar de pós-modernidade. As reflexões sobre as

mudanças históricas que re-configuraram a atual geopolítica mundial tentam dar conta

das transformações que afetam a sociedade contemporânea.

Simplificando bastante estas teorias, elas postulam que a sociedade atual está

marcada por um tempo-espaço flexível, em mutação constante, onde o que prevalece é o

movimento, intimamente relacionado com a velocidade e com uma desterritorialização

que conduz ao apagamento das fronteiras.

O mundo é menor e as distancias são mais curtas; os eventos que acontecem

num lugar têm impacto sobre outras pessoas de outros lugares. Estas mudanças na

compreensão do tempo-espaço afetam diretamente a constituição das identidades,

localizadas num espaço e num tempo simbólico, já que a própria identidade está

envolvida num processo de representação, afirma Stuart Hall, autor de trabalhos

importantes no campo dos Estudos Culturais. Para Hall a identidade nacional é artificial

e se manifesta como uma comunidade imaginária. Porém “pensamos nela como se fosse

parte de nossa natureza essencial” (2006, p. 47). O autor argumenta que sendo as

identidades construídas no interior da representação, elas devem ser pensadas através da

cultura, e não fora dela.

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Como resultado do crescimento da homogeneização cultural as identidades

nacionais estão se desintegrando, diz Hall, e novas identidades de natureza distinta,

estão tomando seu lugar. Aparece então, o sujeito da modernidade tardia, carente de

uma identidade fixa ou permanente, sua identidade se transforma continuamente em

relação às formas pelas quais é representado ou interpelado nos sistemas culturais co-

existentes.

Na América Latina a questão da desterritorialização do sujeito leva a que as

nações percam seu lugar privilegiado de produtoras de sentido de identidade. Mas suas

razões principais não parecem corresponder a uma movimentação exógena, que se

desprenda de uma nova situação espaço-temporal dominante no mundo. Suas

motivações, muitas vazes se desprendem de contingências endógenas de caráter político

e/ou econômico. A crise que atravessam os modelos de representação das identidades

nacionais parecera estar ligada ao conceito de território desenvolvido por Milton Santos:

O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi (SANTOS, 2000, p.97).

Os desplazados na Colômbia, obrigados a abandonar suas terras de origem por

causa da guerra civil, os nordestinos que emigram às grandes cidades brasileiras por

razões econômicas, os Mapuches no Chile que despojados das suas terras trocam o

campo pela cidade, são exemplos de deslocamentos humanos dentro de uma mesma

nação que afeta a identidade sem entrar em conflito com o tema da unidade nacional,

mas questionando os laços de índole territorial.

Entretanto, isso não significa que questões de identidade ligadas diretamente ao

conceito de nação não façam parte do quadro latino-americano. O grande número de

expatriados, conseqüência da serie de ditaduras que, na década de 60 e 70, afetaram a

América Latina, no retorno aos seus paises de origem, enfrentaram muitos problemas

em torno da noção de identidade. Esta crise atravessa pelo menos três gerações, que

atualmente se vêem forçadas a conviver entre o que colheram nos paises dos seus

respectivos exílios e o que encontraram ao retornar aos seus países de origem,

idealizados muitas vezes durante a longa ausência. A discussão neste caso gira em torno

das questões da identidade nacional.

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A desterritorialização latino-americana, seja econômica ou política, parecera

mais uma conseqüência de problemáticas de índole interna, o que não significa a

inexistência de algumas influencias reflexo de articulações externas. Mas, sejam os

motivos de origem interna ou externa ao país, as movimentações migratórias continuam

sendo uma constante quando se faz referencia ao apagamento de fronteiras na América

Latina.

Impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento econômico e por colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos distúrbios políticos, pelo conflito regional e pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais, as pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na “mensagem” do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os “bens” e onde as chances de sobrevivência são maiores (HALL, 2006, p. 81).

Os deslocamentos territoriais na América Latina acontecem geralmente por via

terrestre devido aos escassos recursos financeiros da maioria da população. Em paises

de grande extensão territorial, como Brasil ou México, uma parte destes deslocamentos

não chegam a transpassar as fronteiras nacionais. Em paises menores como Uruguai ou

Bolívia são mais freqüentes as migrações ao estrangeiro. Nos paises maiores existe um

desenvolvimento grande de uma identidade em torno a simbolismos nacionais. Já nos

países menores, que mantêm uma troca mais significativa com os paises vizinhos, se

desenvolvem vínculos que apelam à construção de um sentido mais latino-americanista.

Esta variante modifica a identidade entre um sentido mais “global” ou mais “local”.

Território, nação e identidade: três temáticas que fazem parte da representação

do real no documentário latino-americano. Primeiro, durante o Nuevo Cine

Latinoamericano e o Cinema Novo, como uma forma de criar consciência de grupo e

identificação, tanto no conteúdo como na forma cinematográfica. Já na época atual, num

sentido inverso e mais sutil, tenta-se definir a própria individualidade, para desde este

novo posicionamento procurar outras individualidades similares que permitam dialogar

sobre as mesmas questões: território, nação e identidade.

Nesta nova reorganização da produção de sentido documentário, duas forças,

aparentemente contrarias, coexistem lado a lado: 1) a indústria audiovisual dominante e

as suas estruturas de comercialização (televisão, salas de cinema e festivais, crítica

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cinematográfica e literatura especializada) e 2) a identidade nacional, como força que

denuncia a dependência e rejeita a alienação, em concordância com as necessidades de

emancipação dos povos; linha desenvolvida intensamente pelo documentário político

dos anos 60 e 70.

No terreno da distribuição e exibição de documentários é possível encontrar

também algumas características comuns à América Latina. Na sua maioria, as

produções destes países fazem parte de um circuito restringido a espaços desenvolvidos

fora das regulamentações do mercado, fora dos grandes circuitos de exibição, fora dos

meios de comunicação dominantes. Um cinema, segundo Paulo Paranaguá (2003, p. 25)

“duplamente alternativo, em relação ao mainstream representado pela produção de

ficção e em relação ao grosso da produção de não-ficção representada pelos

noticiários”. Este espaço se articula como um campo de exploração, mas principalmente

de resistência ao grande domínio do discurso sobre o real elaborado pela indústria

televisiva, de tendência jornalística.

Neste espaço alternativo se desenvolve geralmente um trabalho de caráter

autoral, produzido em forma independente, ou seja, sem características industriais e sem

vinculação com as grandes empresas audiovisuais de massa (majors ou estúdios de

cinema).

O cinema de autor1 é aquele em que o olhar ou ponto de vista do realizador é

predominante para decidir o ponto de observação e de focalização da obra. O

documentarista analisa e interpreta as questões do mundo histórico, deixando na obra as

marcas de seu olhar.

A defesa de uma tese particular por parte do autor se estrutura como uma

interpretação metafórica do real, que representa uma nova realidade permeada de

subjetividade. Subjetividade que, segundo Amir Labaki é inerente ao processo de

documentar:

O documentarista procura ser fiel simultaneamente a sua verdade e a verdade dos personagens e das situações filmadas. Não se pretende um recorte pretensiosamente objetivo ou neutro

1 O termo “documentário de autor” surge na França, no seio de uma discussão entre produtores e realizadores independentes, no ano de 1986, na tentativa de diferenciar o documentário das reportagens e programas televisivos de comportamento. A indústria televisiva foi desenvolvendo um interesse maior por representações do real ligadas ao jornalismo, frente ao qual aparece a necessidade de estabelecer um discurso de oposição que diferencie as reportagens informativas do trabalho autoral caracterizado pela maturação do tema tratado, a reflexão complexa e o forte selo da personalidade do autor. Esta diferenciação continua sendo bastante utilizada entre os documentaristas.

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do mundo. O documentário nos oferece um mundo novo, moldado entre a realidade filmada e a realidade de um cineasta (LABAKI, 2001, p.18).

Mas, de que forma as marcas do olhar do autor estão presentes na obra, como se

reconhecem e o que modificam nos textos em que se manifestam?

Michel Foucault no seu texto “O que é um autor?” (2006, p. 264-298) faz uma

caracterização dos textos escritos providos da função “autor”, textos todos de caráter

discursivo: “A função autor é característica do modo de existência, de circulação e de

funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”.

Foucault define características fundamentais desta função na escrita. Algumas

delas se manifestam, também, nos textos audiovisuais:

1) O nome do autor. O nome próprio que relaciona um discurso com o individuo real e

exterior que o produziu. Trata-se de um nome próprio diferente dos outros, já que

manifesta o modo singular de ser de um discurso: “O nome do autor manifesta a

ocorrência de um certo conjunto de discurso, e refere-se ao status desse discurso no

interior de uma sociedade e de uma cultura” (ibid., p. 274). Na produção documentaria a

assinatura predetermina expectativas com respeito à obra que passam pelo terreno

ideológico, temático e formal. Dependendo do status dessa assinatura, o nome do autor

sobressai ao gênero cinematográfico na hora de caracterizar a obra.

2) A relação de apropriação. Os textos autorais são objetos de apropriação.

Originalmente esta apropriação surge dos discursos transgressores, ou seja, de textos

pelos quais o autor podia ser punido socialmente, a autoria fica destacada num sentido

negativo por não cumprir com as normas discursivas da época. Quando se instaurou um

regime de propriedade para os textos e criaram-se regras sobre os direitos de autor, estas

transgressões ocuparam um lugar mais institucionalizado e determinado. No campo

audiovisual a diferença entre um discurso autoral no documentário e um discurso

jornalístico no noticiário permite distinguir a relação de apropriação à que faz referência

Foucault. As reportagens de origem jornalística procuram a elaboração de textos que

sejam a expressão de um domínio público; são textos que buscam ser fieis a uma

aparente neutralidade, discursos que procuram a imparcialidade tentando se remeter só a

os fatos, como uma maneira de permanecer mais próximos à realidade. Já no caso do

documentário autoral, a ênfase do discurso está na análise feita a partir da realidade, na

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articulação dos elementos registrados do real para a elaboração de uma mensagem

especifica e individualizada.

Vale a pena mencionar aqui, a impossibilidade de atingir a objetividade absoluta

em qualquer texto audiovisual, já que sempre a realidade filmada estará influenciada

pela postura pessoal, hábitos e emoções do autor, pela sua maneira de ver o mundo a

partir da sua própria experiência de vida. Porém, “a função autor não é exercida de uma

maneira universal e constante em todos os discursos” (ibid., p. 276); A importância do

autor varia de um tipo de texto a outro, ao mesmo tempo em que esta valoração se

modifica através do tempo.

3) A relação de atribuição. O que faz de um individuo um autor não surge

espontaneamente pela atribuição de um discurso a um individuo. Na verdade, “o que

no individuo é designado como autor é apenas a projeção. Em termos sempre mais ou

menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos, das aproximações que se

operam, dos traços que se estabelecem como pertinentes, das continuidades que se

admitem ou das exclusões que se praticam” (ibid., p.277). No caso do documentário, não

basta a presença do realizador no filme, seja através da narração em off ou através da

sua aparição na imagem, para que a obra adquira uma função autoral. A atribuição

autoral não é espontânea, ela diz respeito a um processamento do real e a uma

elaboração particular conseqüência deste processamento; a narração na primeira pessoa

ou a presença física do autor na tela não são necessariamente determinantes na

caracterização do documentário autoral.

4) A posição do autor. O texto sempre contém em si mesmo signos que remetem ao

autor, tanto como locutor real ou como locutor fictício incerto na obra. A função autor

“não remete pura e simplesmente a um individuo real, ela pode dar lugar

simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de

indivíduos podem vir a ocupar” (ibid., p. 290). O documentarista tem também varias

maneiras de se fazer presente na obra, sendo que a sua função não está numa delas

especificamente. A função autor “é efetuada na própria cisão – nessa divisão e nessa

distância” (ibid., p.279). Nos documentários em que o autor é personagem da sua própria

obra, o “eu” está inserido na obra em diferentes níveis. Foucault fala de uma

“pluralidade de ego” presente em diferentes camadas da obra. Esta função será

aprofundada mais adiante, no capítulo três, dedicado ao autor/personagem no

documentário.

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Nesta pesquisa, se entende por documentário uma modalidade exclusivamente

discursiva, permeada pelo ponto de vista do autor, que estabelece uma relação

individual e única com o tema, e assume uma postura de responsabilidade moral frente à

realidade filmada e aos atores sociais2 que a constroem. O foco de interesse está nas

obras que elaboram uma tese e uma visão personalizada de realidade; uma forma que

está mais próxima da ficção narrativa que do jornalismo, em quanto à articulação do

representado.

Atualmente, a produção contemporânea de documentários passa por um

momento no qual o questionamento do próprio documentarista torna-se um forte

elemento da narrativa, tanto no que diz respeito às suas motivações, como à sua própria

interferência no objeto filmado. Esta nova prática apresenta-se como um formato em

crise, que mistura registro do mundo histórico com encenações ficcionais, autor com

personagem, além de elementos de diferentes estilos documentários, criando, assim,

uma nova categoria, denominada “híbrida”. Por hibridação entende-se: “Processos

socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existiam separadamente,

combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2000, p. 62).

Carmem Guarini, documentarista e co-fundadora da produtora Cine Ojo3, vê o

documentário contemporâneo da seguinte forma:

O documentário dos anos 90 dá uma nova virada, o alvo agora é o que acontece com o ator-personagem e não o que acontece com o espectador. Parece um jogo duplo que transforma a maneira de olhar e de fazer cinema, ficaram para trás os até então conhecidos termos de ator/ficção e personagem/realidade, para que nesta convulsão os homens possam encontrar sua razão de viver e o cinema, reencontrar-se com esta ambigüidade que está no seu início, construção ou engano, impressão de realidade (Informação verbal)4.

Não se trata apenas de um cinema subjetivo, mas de um cinema no qual o

próprio autor aparece representado. Não se trata da representação do real, e sim do real

da representação. O registro de uma busca, na qual o autor tem que realizar movimentos

2 Entende-se aqui por ator social ao indivíduo ou pessoa que se representa a sim mesmo frente a outros, sem sair do contexto histórico ao que pertence. 3 Fundada em 1986, é considerada atualmente a produtora mais importante na realização, produção e distribuição independente de documentários na Argentina. 4 Participação em Seminário da Revista Cinemais sobre Documentário Latino-americano, durante o Festival Cinesul 2005. Tradução ao português da autora (original em espanhol).

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para que os fatos ocorram; filmes nos quais o documentarista não pode determinar a

priori nem o resultado da pesquisa nem o caminho que terá de percorrer para realizá-la.

O rumo que a produção documentária independente vem tomando desde a

década de noventa, na América Latina, insere-se, segundo definição de Bill Nichols, no

movimento de documentários performativos, produções híbridas nas quais o filme é um

processo e não um meio para entender o mundo. Jean Claude Bernardet, na análise de

documentários brasileiros contemporâneos refere-se a este tipo de filmes como

documentários de busca, filmes onde o documentarista não pode antecipar nem o

resultado da sua pesquisa, nem o caminho que deverá percorrer na realização do filme,

sublinhando a própria obra como mediação do processo que está sendo documentado.

Carmen Guarini, para descrever este estilo, desenvolvido consequentemente nas

produções de Cine Ojo nos últimos anos, faz ênfase no “encontro” como dispositivo

fílmico:

Cine Ojo tem estado muito aberta para explorar estas linhas de trabalho acompanhando a muitos diretores que começaram a se motivar por relatos cada vez mais pessoais, onde tanto a voz, como a própria imagem do autor, aparecem como indicadores no só da consciência de outros modos possíveis de intervenção da realidade, senão da maneira em que ela é o resultado de encontros entre quem filma e o que se filma5 (GUARINI & CÉSPEDES, 2007, p. 12).

Um cinema do EU, na primeira pessoa, que permite falar do social e do político

a partir de historias pessoais. “É como buscar um outro espaço para a história. Uma

outra forma de ser contada” diz Guarini.

Nas suas investigações sobre documentário no Cone Sul, Andréa Molffeta6

observa nesta tendência estética contemporânea uma preocupação pela política que se

desenvolve nos mundos particulares, vale dizer, as micro-políticas: “O trabalho da

memória e da consciência histórica do sujeito-realizador encontram no processo fílmico

um modo de escritura ou Técnica de Si, mostrando seus processos e resultados”

(Informação verbal)7. Ao mostrar o micro-mundo do sujeito da enunciação no filme,

seus detalhes, desorientações e contradições, a narrativa se torna política “em quanto ato

5 Tradução ao português da autora (original em espanhol). 6 Professora e pesquisadora do Centro de Pesquisas em Cinema Documentário –UNICAMP - SP. Fundadora e atual presidenta da Sociedade Argentina de Estudos de Cinema e Audiovisual (SAECA). 7 MOLFETTA, Andréa. O Documentário Chileno da atual democracia. Comunicação apresentada no XI Encontro Internacional da SOCINE / PUC-RIO DE JANEIRO / 2007.

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de resistência do sujeito, devolvendo-lhe ao cinema, a partir da observação desta

prática, a densidade social da sua significação”, afirma Molffeta.

São muitos os realizadores latino-americanos que, a partir dos anos 90,

começaram a desenvolver este tipo de narrativas. Desde uma perspectiva pessoal os

documentaristas dialogam com a reconstrução da memória tanto individual como

histórica. Questões referentes a lugar de origem e identidade fazem parte, geralmente,

destes processos de exploração temática e formal. Filmes como os brasileiros: Um

passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2001) e 33 (Kiko Goifman, 2001), uma

porcentagem grande das produções de Cine Ojo na Argentina: La televisión y yo

(Andrés Di Tella, 2002), Los Rubios (Albertina Carri, 2003), Fotografias (Andrés Di

Tella, 2007), assim como também os documentários chilenos Chile-La memoria

obstinada (Patricio Guzmán, 1997) e En un Lugar del Cielo (Alejandra Carmona, 2003)

são só alguns dos exemplos destacados deste novo tipo de linguagem documentário.

Este trabalho de pesquisa lida com a questão do autor-personagem e o autor-

narrador neste tipo de filmes. Quando o autor se personifica no filme se estreitam os

laços diretos de identificação entre o autor e o espectador. Quando o autor se manifesta

como o narrador dos fatos apresentados, o vinculo com o espectador é mais distanciado,

através dos argumentos apresentados no filme. Neste desdobramento de identificação do

autor-personagem e ao mesmo tempo de distanciamento do autor-narrador, cabe se

perguntar: Qual é a função da montagem nestes filmes que misturam técnicas de

montagem de ficção narrativa com técnicas de documentário clássico?

Entende-se aqui a montagem como uma especificidade cinematográfica cuja

função é a construção de um discurso articulado com significação própria. Esta

concepção de montagem tem a sua origem no formalismo russo, período em que se

desenvolveram diversas teorias construtivistas de montagem.

A visão construtivista defende a especificidade de uma nova realidade fílmica.

Logo, a aproximação ao mundo histórico quando acontece em forma explícita através

do olhar subjetivo do autor, deixa em evidência a natureza discursiva do texto

documentário. O autor como construtor de cinema, traz o conceito de autor-montador

presente nos manifestos de Cine-Olho desenvolvidos pelo cineasta russo Dziga Vertov

(1896-1954), em defesa da especificidade da forma cinética.

Com tais questões como moldura teórica, nesta pesquisa, foram levantadas as

seguintes interrogantes: a) Existem figuras de montagem próprias dos documentários

20

em que o sujeito da enunciação é ao mesmo tempo sujeito do enunciado? b) De que

maneira o autor, enquanto narrador e personagem se faz presente, ativa ou

passivamente, na articulação dos planos? c) A montagem evidencia a construção

cinematográfica ou a oculta? d) Que lugar ocupa o espectador em relação a quem lhe

conta a história?

A dissertação por capítulos

No primeiro capítulo se faz uma observação do espaço cultural que ocupa o

documentarista latino-americano e as possibilidades de interpretação do mundo

histórico que este lugar, não só lhe oferece como também lhe permite. A partir da

análise do percurso histórico do autor latino-americano na produção documental e na

teoria cinematográfica, se analisa como este conjunto de condicionamentos interfere no

entendimento do mundo histórico, na intencionalidade do registro do real e finalmente

se traduz em escolhas de formas de representação. Interessa observar o processo que foi

modificando os parâmetros destas escolhas dos documentaristas como conseqüência de

uma mudança significativa na produção de sentido simbólico na passagem da sociedade

moderna à modernidade tardia, desde o apagamento do autor dos anos 60 até o giro

subjetivo dos 90.

O segundo capítulo organiza os elementos da narração comuns ao documentário

latino-americano contemporâneo, na intenção de observar as articulações da montagem.

Foram diferenciados três elementos: autor, entrevista e material de arquivo, como

fatores que, em suas diferentes combinações, exercem sua capacidade de enunciação

para produzir discursos. Entende-se aqui narração como uma forma discursiva, ou seja,

o fato e maneira de alguém contar uma história, diferenciando-se do “enunciado

narrativo” de Genette (1973, p. 255) “que assegura a relação de um acontecimento ou

uma serie de acontecimentos”. Um filme, antes de tudo mostra, e a narração no cinema

é essa “mostração”, ligada à natureza icônica do plano. A “mostração” de planos

corresponde a um primeiro nível narrativo, e a articulação de planos, quer dizer a

montagem, a um segundo nível (AUMONT, 1983).

No terceiro capítulo, são revisitadas as diferentes categorias de análise

desenvolvidas em torno às “narrativas do eu”, dominantes no documentário

21

contemporâneo. A partir dos estudos do texto documental de Bill Nichols e a

caracterização da modalidade performativa, se incorpora o conceito de “documentário

de busca”, de Jean-Claude Bernardet, e as especificações do documentário performativo

como “técnica de sí” caracterizadas por Andréa Molfetta. Bernardet e Molfetta

desenvolveram esses conceitos baseados na observação da produção documentaria na

América Latina.

O documentário latino-americano contemporâneo parece mais preocupado com

as questões da representação do que com a realidade. Nesse sentido, a montagem ocupa

um lugar fundamental na sua construção.

A interpretação subjetiva do mundo histórico, em termos de montagem valida

qualquer tipo de associação para a construção fílmica, como por exemplo, mistura de

suportes, recursos da narrativa ficcional ou saltos no eixo temporal e espacial.

O exercício da montagem enquanto forma de organização de produção de

sentido, reflete as particularidades de como o individuo percebe o mundo e se relaciona

com este, numa época determinada. Estas opções construtivas acontecem sempre no

presente, mas também fazem observações de épocas passadas, assim como deixam

entrever seus desejos e projeções futuras.

Três documentários latino-americanos contemporâneos, da década de 2000,

foram analisados para estudar de que maneira o autor, representado no filme como

personagem e narrador, determina a montagem, e que relação estabelece desde este

lugar com o espectador.

Acredito que, mediante a observação da estrutura de montagem de uma obra

filmica, seja possível entender como, numa conjuntura sociopolítica e cultural

determinada, são feitas opções estéticas que dizem respeito aos interesses no mundo das

representações. O espírito da época -Zeitgeist- se projeta no ponto de vista a partir do

qual se constroem as representações do real.

Entender a América Latina através do processo de indagar a própria história tem

se tornado uma estratégia recorrente dos documentários contemporâneos do continente.

O olhar do autor enfrentou a problemática documental na medida em que enfrentara as

problemáticas gerais do continente. O percurso do documentarista latino-americano

entre a sua compreensão da história e a forma com que esta percepção determina a

linguagem da sua expressão é o tema do capítulo a seguir.

22

“Chegou o cinema e fez explodir este mundo de prisões com a dinamite de décimo de segundo, de forma tal que agora viajamos calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados”. Walter Benjamin – A obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica – 1955.

I.

O OLHAR DOCUMENTARISTA NA AMÉRICA LATINA

23

Os cineastas latino-americanos de inícios do século XX viram no cinema a

possibilidade de ter acesso à modernidade. A fascinação pela técnica cinematográfica

que vinha dos países desenvolvidos, alem do desafio pelo seu domínio, representava

uma maneira de aproximação à civilização contemporânea. Durante os primeiros anos

se realizaram produções imitando os modelos das cinematografias norte-americanas e

européias, entendidas como formas “verdadeiras” da expressão cinematográfica. Esta

tendência ao mimetismo “não decorre sequer de uma imposição e sim da ilusão de

neutralidade, de transparência, de evidência, de mero reflexo da realidade, que o

cinematógrafo herdou da fotografia” (PARANAGUÁ, 1985, p. 29).

Um produto de importação foi introduzido no continente como um ideal de

forma cinematográfica, de estrutura fixa e estática. Outros eram os conteúdos filmados,

outras a origem e a realidade de seus realizadores, outro também o seu público – local

na maioria dos casos –, mas as estruturas, derivadas do que foi entendido na época por

“cinematografia ideal”, eram as mesmas. A superação no oficio, ligada ao domínio

tecnológico tornou-se o desafio de primeira linha, deixando em segundo lugar os

questionamentos surgidos das novas realidades filmadas, tão distantes, tão diversas.

Na escassa produção cinematografia dos primeiros tempos o documentário foi a

regra e a ficção a exceção. Muitos paises desenvolveram uma produção de noticiários

que se realizavam em forma continua com grande aceitação de um público

quantitativamente significativo.

As notas de imprensa adquiriram um papel importante frente aos grandes

acontecimentos sociais, como por exemplo, a Revolução Mexicana (1910-1922),

período em que se estimulou a produção e distribuição de documentários. Na época

eram comuns filmes que retratavam eventos políticos, culturais e folclóricos; mas a

conjuntura histórica exigiu que os documentaristas se adaptassem a um trabalho mais

social e politizado. Este foi o caso de Salvador Toscano, que começou sua carreira de

documentarista, no final do século XIX, fazendo filmes sobre a vida cotidiana do

México, suas riquezas e a sua diversidade cultural. Com a explosão da revolução,

Toscano se dedicou por completo ao registro destas lutas. Como simpatizante da causa

revolucionária, viajava nos trens do exército insurreto registrando as batalhas de

24

caudilhos como Villa, Zapata e Madero. Estes filmes de propaganda eram distribuídos

rapidamente, em formato de cinejornais, por todo o país. Em 1942, a filha de Toscano,

Carmen, iniciou a montagem do conjunto dos registros do já falecido pai, dando forma

ao filme documentário Memórias de um Mexicano (Salvador e Carmen Toscano,

México, 1950). Este filme, exclusivamente de montagem, revela uma enorme

manipulação do material alheio que se intensifica com a utilização de uma narração na

primeira pessoa na função de explicar os conflitos e contradições que se deram durante

a revolução tanto nas estruturas de poder como no seio da família mexicana.

Um outro documentário mexicano que utiliza o recurso de ficcionalizar uma

narração em voice-over na primeira pessoa é El Grito (Lombardo López, 1968). O filme

narra a historia do movimento estudantil, que culminou com o massacre na Praça das

Três Culturas, em Tlatelolco, no dia 2 de outubro de 1968, ano em que se celebraram os

jogos olímpicos no México. Sendo fruto de uma filmagem coletiva dos estudantes do

Centro Universitário de Estudos Cinematográficos (CUEC), resulta estranha a escolha

de personificar o narrador numa jornalista estrangeira que através do off dá um caráter

dramático à narração, em contraposição à rigidez do registro de estilo jornalístico dos

fatos. Este filme é um dos primeiros da escassa produção mexicana que expressa a

modalidade de protesto ou denúncia representada pelo Nuevo Cine Latinoamericano.

A experiência documental da revolução mexicana repete-se em 1952 com a

revolução boliviana e em 1959 com a revolução cubana. Em ambos os casos as

circunstâncias políticas estimularam a produção e exibição de documentários, no

formato de noticiários de propaganda durante o conflito armado, e posteriormente como

documentários institucionais que defendiam as reformas promovidas pela política

oficial.

O Governo Revolucionário Cubano, assim que conquistou o poder, no discurso

sobre a política cultural, anuncia direcionar os esforços para duas metas principais,

segundo os preceitos de Lênin: 1) Democratizar a herança cultural burguesa levando a

arte e a educação às massas e 2) Criar veículos e expressões que servissem à

propaganda ideológica. Com esses objetivos foi criado o Instituto Cubano de Arte e

Indústria Cinematográficos (ICAIC) , no dia 24 de março de 1959, 83 dias após o

triunfo da revolução. O Instituto direcionou seus primeiros recursos para a produção de

noticiários, documentários e curtas educativos, por serem formatos que atingiam as

25

necessidades mais urgentes na estabilização do poder revolucionário (MARTINS

VILLAÇA, 2006).

A continuidade de produção, principalmente dos noticiários semanais foi uma

escola para muitos profissionais e possibilitou a formação de importantes cineastas

como Julio García Espinosa e Tomás Gutiérrez Alea em Cuba, ou Jorge Sanjinés na

Bolívia.

Porém o documentário institucional, ligado geralmente ao aparato de Estado,

não tratou exclusivamente de questões de poder político. As culturas locais, a vida rural,

as comunidades indígenas e as belezas naturais foram temáticas recorrentes de

documentários interessados em ressaltar tanto as riquezas como as singularidades das

diferentes nações dispostas a inserir-se no projeto mundial da modernidade. Foram

muitos países da América Latina que, entre 1930 e 1940, desenvolveram projetos de

cinema educativo, através dos ministérios dos seus respectivos governos. Estes filmes

estavam destinados a um público nacional e, às vezes, local.

No Brasil se destaca especialmente o documentarista Humberto Mauro, que

como funcionário do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE) realizou, durante

quase 30 anos (1936 -1964), mais de 350 filmes documentais. O IMCE foi criado pelo

governo federal em 1936, inspirado em experiências semelhantes surgidas no mesmo

período em paises da Europa. O Instituto pretendia mostrar uma imagem positivista do

Brasil, com intenção de democratizar o conhecimento partindo das classes

intelectualizadas para as desfavorecidas. Sua produção se baseia em series de

documentários rurais, de fauna, de instituições e cerimônias oficiais, educativos e

científicos.

Apesar de Humberto Mauro ter se iniciado com sucesso, nos anos 20, na ficção

narrativa, 15 anos mais tarde, decide movimentar-se em forma definitiva ao campo do

documentário, gênero que defende com grande paixão, argumentando que se trata de

uma prática “mais autêntica” num sentido ontológico, que devolve à câmera o papel

protagonista do filme e leva o cinema a um estado “mais puro” (PARANAGUÁ, 2003).

Na reivindicação de um cinema sem atores, Dziga Vertov8 defende o documentário

como uma forma mais próxima do propriamente cinematográfico que a ficção narrativa,

por considerar esta última uma adaptação da linguagem desenvolvida originalmente na

8 Dziga Vertov (1896-1954) desde jovem proclamou-se futurista e começou a utilizar um pseudônimo para seus escritos e seus filmes. “Dziga”, derivado de um nome ucraniano, significa a roda que gira sem parar, o movimento perpetuo; “Vertov” deriva do nome russo Brevet, que remete a rodar, girar.

26

literatura e no teatro modificada para o novo formato. No seu manifesto, Vertov (1993,

p. 43)9 escreve: “O campo visual é a vida. A matéria de construção para a montagem é a

vida. Os cenários são a vida. Os artistas são a vida”. No conhecido filme O homem da

câmera (Vertov, URSS, 1928), o autor faz uso do cinema documentário como forma de

enxergar o real aproximando-se das possibilidades que o próprio suporte lhe oferece.

Um autor que se personifica no cinegrafista em cena, e desta maneira nos diz “eu vejo”

o mundo assim.

Na verdade, nesta época, na América Latina, não existiam espaços para

desenvolver um trabalho documental de características autorais, porém, apesar da

natureza oficial e didática do material produzido pelo INCE, Humberto Mauro

conseguiu imprimir uma estética pessoal à maioria de seus trabalhos.

De um modo geral, o percurso necessário para o crescimento de uma indústria

cinematográfica nos países latino-americanos teve que passar por um processo de

adaptação de modelos importados, de tradição norte-americana e européia; o

investimento nesta linha era visto como garantia de um suposto sucesso.

1. A VONTADE DE ENSINAR

A proposta, do Neo-realismo italiano, de uma “estética da pobreza” que utilizava

técnicas de documentário e equipamento leve para criar um cinema tecnicamente pobre,

mas imaginativamente rico causou um grande impacto nos cineastas latino-americanos.

Os filmes neo-realistas provocaram uma onda de otimismo com relação a novas

possibilidades para um cinema nacional e popular (STAM, 2003). Esse modelo, que

surge num país devastado pela Segunda Guerra, entusiasma aos cineastas latino-

americanos a mostrar na tela as carências sociais do próprio continente.

Na Argentina, o documentarista Fernado Birri, formado no Centro Experimental

de Cinematografia de Roma, volta ao seu país em 1956 e na cidade de Santa Fé funda e

dirige o Instituto de Cinematografia da Universidade do Litoral. Assim surge a Escola

Documental de Santa Fé (EDSF), onde aparecem as primeiras idéias sobre um novo

cinema para a América Latina. Entre 1956 e 58 se realiça a obra prima desta Escola,

9 VERTOV, Dziga. “La importancia del cine sin actores”. In: ROMAGUERA, Joaquim & ALSINA, Homero (Eds.) Textos y Manifiestos de Cine. Madrid: Cátedra, 1993.

27

Tire Dié, um documentário coletivo feito por Birri e seus alunos que num estilo

testemunhal denuncia as condições de vida de um bairro marginal nas imediações da

cidade. Tire Dié foi considerada a primeira “encuesta social filmada” na América

Latina. A Escola como espaço de debate e experimentação, segundo Birri, é

indispensável para a constituição de uma cinematografia necessariamente nacional:

Tire Dié é um filme-escola, é um filme feito para que essas quase cem pessoas que o fazem, aprendam a fazer cinema. Façam cinema pela primeira vez em sua vida. Por isso, ao lado de ser um filme-escola, é também um filme coletivo. E essa é outra das minhas idéias fixas, de minhas obsessões - o cinema como arte coletiva (MOURA, Entrevista a Birri, 2006).

A experiência de Santa Fé durou poucos anos para Birri. Em 1963, obrigado ao

exílio político, se muda para São Paulo. Junto a Vladimir Herzog, Maurice Capovilla,

Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares participa do movimento documentarista paulistano.

Nesta época conhece o produtor Thomaz Farkas, que possibilita a realização de um

projeto coletivo cujo resultado foi o longa-metragem Brasil Verdade (Brasil, 1968).

Os cubanos Tomás Gutiérrez Alea e Julio García Espinosa, também discípulos

da escola italiana do pós-guerra, junto a Alfredo Guevara, futuro diretor do ICAIC,

rodaram em 1955 El Mégano, um curta documental que denuncia as condições de

trabalho dos carvoeiros nas minas, durante a ditadura de Fulgencio Batista. O trabalho

dos jovens cineastas foi assessorado por Cesare Zavattini.

Segundo Geraldo Sarno, em termos estéticos, a “única questão que unifica o

cinema latino-americano é a influencia do Neo-realismo” (apud BURTON, CINEMAIS

34, p. 209), herança da corrente estética que começou a ser assimilada pelos cineastas

latino-americanos na década de cinqüenta. As duas cinematografias nasceram a partir de

uma grave crise social-histórica na urgência por denunciar situações políticas,

econômicas, sociais e culturais; a italiana, preocupada com a reconstrução da sociedade

num país destruído pela guerra; e a latino-americana, interessada nas lutas pela

construção de sociedades mais justas. Os cineastas latino-americanos não assimilaram

simplesmente o modelo neo-realista, mas bem o utilizaram para abrir uma nova via de

expressão própria, tanto na ficção narrativa como no campo do documentário.

No fim dos anos 50, como reflexo da explosão de movimentos políticos

populares que emergiram no continente, e principalmente depois do triunfo da

28

Revolução Cubana, surge a necessidade, por parte dos cineastas latino-americanos, de

se re-posicionar frente às cinematografias nacionais. Um forte movimento de cineclubes

contribuiu para a aparição de revistas especializadas que discutiam identidade,

compromisso social e militância política como questões fundamentais para a gestação

de novas cinematografias locais. Questionava-se o caráter “comercial” das produções

nacionais, a incorporação de valores externos e a imitação de estereótipos estrangeiros,

sob a argumentação de que tudo isto produzia filmes artificiais com os quais a

população não se identificava. Começou a se articular um discurso de rejeição a esta

visão colonizadora da realidade latino-americana, em prol de alternativas para integrar

ao cinema as próprias originalidades do continente. A valorização da perspectiva

autoral, dos temas regionais, autênticos e politicamente eficazes, bem como o

desenvolvimento de uma estética própria, conformavam a pauta de preocupações dos

cineastas que pretendiam inventar um cinema próprio, diferente do cinema europeu e do

norte-americano.

Os desejos de uma nova cinematografia ficaram plasmados em torno do

movimento do Nuevo Cine Latinoamericano, que entendia o cinema como um

instrumento ao serviço do processo revolucionário. Este movimento surgiu de projetos

estéticos e aspirações políticas de cineastas argentinos, brasileiros, bolivianos, cubanos,

uruguaios e chilenos, entre outros, que integravam também movimentos

cinematográficos nacionais como: Cinema Novo (Brasil), Grupo ICAIC (Cuba), Cine

Liberación e Cine de la Base (Argentina), Cinemateca de los Três Mundos (Uruguai) e

Comité de Cineastas de la Unidade Popular (Chile).

A 5ª edição do Festival de Viña del Mar (Chile-1967) é considerada como

“marco fundador” do Nuevo Cine Latinoamericano. Este festival se iniciou em 1963

como um festival de cinema amador, ligado ao movimento cineclubista liderado por

Aldo Francia10, quem se dedicara em corpo e alma à criação de um espaço para

produzir, discutir e difundir cinema. No festival de 1967 a programação foi

majoritariamente de documentários, apresentando-se os emblemáticos Revolución

(Jorge Sanjinés, Bolívia, 1963), Subterrâneos do Futebol (Maurice Capovilla, Brasil,

1966) Maioria absoluta (León Hirszman, Brasil, 1964), Viramundo (Geraldo Sarno,

10 Nascido no porto de Valparaíso e médico de profissão, Aldo Francia manifestou desde a infância seu amor pelo cinema. No final da década de 50 realizou seus primeiros curtas-metragem. Logo, dirigiu dois longas de ficção Valparaíso, mi amor (1969) e Ya no basta com rezar (1972), os dois de grande importância para a cinematografia nacional chilena.

29

Brasil, 1965) Now (Santiago Álvarez, Cuba, 1965), e contando com a participação de

importantes cineastas como Raymundo Gleyzer, Octavio Getino, Julio Bressane,

Humberto Mauro, Miguel Littin, Patrício Guzmán e Mario Handler, entre outros.

Durante o festival se realizou o I Encuentro de Cineastas Latino Americanos,

que discutiu em torno do tópico geral: “Imperialismo e Cultura”. Neste encontro se

chegou ao consenso da necessidade urgente de produzir um cinema antiimperialista que

abordasse os problemas comuns da América Latina e contribuísse para a

conscientização das massas. Os cineastas concluíram que era preciso evoluir do

“Cinema Testemunho” que se estava fazendo no continente, para o “Cinema Agressão”,

com o objetivo de gerar ação política através dos filmes (FRANCIA, 1990). A nova

proposta buscava, através da valorização do povo como protagonista da história,

provocar mudanças num espectador também popular, que era o destinatário por

excelência.

Neste encontro foi definido o Cine Nuevo como um cinema social que tem por

finalidade despertar a consciência do espectador em relação ao seu meio, os problemas

deste, a noção de idiossincrasia e a valorização do nacional. Em contraposição o Cine

Viejo foi enquadrado como um cinema individualista e estrangeirizante, guiado pelos

modelos do “conquistador”, cuja função era evadir o espectador da sua realidade.

Diversos movimentos de cineastas elaboraram uma ideologia do cinema focada

em retratar o homem latino-americano “como realmente ele é”. Tal ideologia

cristalizou-se numa série de ensaios militantes. Alguns dos textos mais difundidos deste

período são: Cine y sobdesarrollo (Argentina, 1962) de Fernando Birri, Estética da

fome (Brasil, 1965) de Glauber Rocha, Hacia un tercer cine (Argentina, 1969) de

Fernando Solanas y Octavio Getino, e Por un cine imperfecto (Cuba, 1969) de Julio

García Espinosa. Abundante também foi a produção de declarações e manifestos

elaborados durante os festivais de cinema latino-americano que incitavam à revolução,

tanto na política como na estética, da atividade cinematográfica.

Em concordância com os sonhos e desejos de construir um homem novo numa

sociedade mais justa e igualitária, os cineastas da época teorizaram em torno de

propostas estéticas adequadas para contribuir tanto no processo de mudança social como

na sua consolidação. Comum a estes textos é o seu olhar em direção ao futuro, suas

preocupações dizem respeito a um ideal de cinema ainda em fase de construção e o

debate gira em torno aos diferentes caminhos possíveis para alcançá-lo. Neles

30

encontramos perguntas como: “Que cinema precisam os povos subdesenvolvidos da

América Latina?” (Birri, Cine y Subsdesarrollo), sugestões como: “O cinema será um

instrumento para comunicar aos outros a nossa verdade” (Fernando Solanas y Octavio

Getino, Hacia un tercer cine), e expectativas como: “... um conjunto de filmes em

evolução dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência” (Rocha,

Estética da fome). Os novos cineastas não refletiam com base na experiência estética da

cinematografia produzida até esse momento na América Latina; a nova cinematografia

nasceu da idéia de descartar as experiências alienadas existentes, em busca das

originalidades do continente.

Dentro do movimento do Nuevo Cine Latinoamericano existia uma tendência

que buscava se vincular aos elementos mais “puros” de uma suposta identidade

originária, um resgate da arte popular em detrimento da arte das elites – influenciada

principalmente por uma cultura exógena. O foco do interesse centrou-se na criação de

um cinema popular sem pretensões técnicas, que podia ser feito em qualquer lugar e

com qualquer tipo de equipamento – profissional ou amador.

Aparece aqui o conceito de “cinema imperfeito”, elaborado por Julio García

Espinosa, que reivindica um cinema com um conceito diferente de qualidade, onde se

recusam as normas técnicas e de dramaturgia da grande indústria, na procura de uma

linguagem popular, que tenda a desenvolver o gosto pessoal e individual do povo. Isto

não significa que não exista preocupação com o rigor e o bom acabamento, trata-se

antes de assumir uma opção de qualidade em concordância com as carências das

sociedades latino-americanas.

Ao cinema imperfeito não lhe interessa mais a qualidade e a técnica. O cinema imperfeito mesmo pode ser feito com uma Mitchell ou com uma câmera de 8mm. Pode ser feito em estúdio ou mesmo na guerrilha no meio da selva. Ao cinema imperfeito não lhe interessa mais um gosto determinado e muito menos o bom gosto (GARCÍA ESPINOSA, 1988, p. 77)11.

A idéia de um cinema imperfeito foi desenvolvida por García Espinosa como um

conceito em transformação, e não como uma forma estática à qual os paises

11 GARCIA ESPINOSA, Julio. “El Cine Imperfecto” (1969). In: HOJAS DE CINE. Testimonios y documentos del Nuevo Cine latinoamericano. Volumen III. México: SEP, UAM, Fundación mexicana de cineastas. 1988. Tradução ao português da autora (original em espanhol).

31

subdesenvolvidos estivessem condenados. Se bem se trata da expressão de um cinema à

margem do sistema, seu interlocutor são aqueles que lutam pela transformação social e

dialogam com filmes que mostram o processo dos problemas que aparecem neste

caminho; o cinema imperfeito “é uma resposta, mais também uma pergunta que irá

encontrando suas respostas no próprio desenvolvimento” (GARCÍA ESPINOSA, 1988, p.

76)12. Uma nova poética cinematográfica “interessada”, ou seja, com objetivos

predeterminados, e por isso imperfeita, destinada a desaparecer quando alcance a

perfeição, quando a arte seja realmente feita pelo povo.

Os novos cineastas queriam uma dramaturgia liberta de clichês e estimuladora

de uma consciência crítica diante da experiência contemporânea, entendiam que a

dimensão política das novas poéticas exigia a construção de uma linguagem capaz de

“fazer pensar” (XAVIER, 2003). Surgiu uma contra-narração que procurava a produção

de um novo sentido, não alienado, e cujo resultado se materializou numa linguagem

aberta, aparentemente desarticulada. As práticas de resistência inscritas nestes filmes

variam de uma região a outra, se expressam em diversos gêneros cinematográficos e se

inspiram em estratégias estéticas variadas.

As preocupações destes novos cineastas centraram-se na unificação latino-

americana como forma de fortalecimento das suas próprias sociedades. Glauber Rocha

defendia um cinema “de fome” feito de “filmes feios e tristes”, por ser a fome a

originalidade de América Latina:

A noção de América Latina supera a noção de nacionalismos. Existe um problema comum: a miséria. Existe um objetivo comum: a libertação econômica, política e cultural de fazer um cinema latino. Um cinema empenhado, didático, épico, revolucionário. Um cinema sem fronteiras, de língua e problemas comuns (ROCHA, 2005, p. 179).

Existia na época um discurso que rejeitava a intromissão norte-americana nas

economias e na forma de entender os processos sociais, e que tentava redefinir este

outro espaço latino-americano baseado nas teorias da dependência. Neste contexto, os

documentaristas, que entendiam seu trabalho como político, se inspiraram em teóricos

como Gramsci, Marx, Sartre, Mariategui, Brecht e especialmente Franz Fanon. Em seu

livro Os Condenados da Terra, Fanon defende a “Violência Libertadora” como uma

12 idem.

32

necessidade para a revolução e para a construção do “homem novo”. Fanon destaca a

cultura como um espaço privilegiado onde se processa a tomada de consciência dos

indivíduos e se trata a luta política.

A instrumentalização do cinema, não apenas como elemento de reflexão, mas

também como possibilidade de intervir na realidade, levou ao exercício de uma

cinematografia de denúncia, que pretendia reescrever suas próprias histórias,

controlando suas próprias imagens e falando com suas próprias vozes. Esta luta se

manifestou em duas frentes: a política e a estética, combinando a revisão histórica com

as inovações formais.

O documentário argentino La hora de los hornos (Fernando Solanas y Octavio

Getino, 1968) expressa a convergência destas duas vanguardas. Construído como um

ensaio político em três partes, o documentário leva à prática a analogia da câmera como

uma arma, utilizando uma linguagem experimental concordante com a proposta política

de fazer do cinema um “ato para a libertação”. La hora de los hornos rejeita a

hegemonia dominante do “Primeiro Cinema”, cinematografia norte-americana destinada

ao entretenimento; assim como a política de autores do “Segundo Cinema”, produção

européia com aspirações artísticas; e propõe como alternativa um “Terceiro Cinema”, de

produção independente, de conteúdo ideológico e de linguagem inovadora, destinado a

fazer política. La hora de los hornos refere-se diretamente a questões de identidade

sublinhando o caráter neocolonial da cultura latino-americana; como contraproposta

oferece o que Roberto Schwarz denominou “nacional por subtração”: uma visão

bastante purista de resgate da identidade cultural original argentina, que afirma que a

expulsão do estrangeiro bastaria para recuperar o sentimento do nacional.

O Terceiro Cinema na Argentina sempre esteve vinculado às circunstâncias

históricas e políticas, caracterizadas na década de 60 “por um aumento dos níveis de

organização e mobilização populares, assim como pela crescente coerção entre os

setores médios e o movimento dos trabalhadores” 13 (GETINO, 1982, p. 62). A tentativa

de descolonização cultural mediante documentários de guerrilha militantes, se legitimou

no próprio contexto sociopolítico em que tinha sido gerada. A conjuntura política

possibilitou “inaugurar uma proposta distinta, de raiz nacional, e de vigência também

13 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

33

provavelmente em espaços e momentos em que possam ser vividas circunstancias

semelhantes” 14 (SOLANAS apud AVELLAR. 1995, p. 122).

No trabalho desenvolvido pelo boliviano Jorge Sanjinés e o grupo Ukamau as

questões da identidade indígena se apresentaram como outra variante do documentário

latino-americano. O coletivo se propunha fazer cinema indígena incorporando os

mecanismos de pensamento destas comunidades, diferente do pensamento ocidental. O

processo de seleção do mundo real – filmagem – , assim como também a ordem dada a

esta nova realidade – montagem – correspondem, neste caso, a princípios organizativos

que não estão influenciados por lógicas eurocêntricas. Para que isto aconteça, o autor,

educado sob a influencia da cultura ocidental, deve ser sumamente cuidadoso com o

lugar que ocupará no filme:

Um filme sobre o povo feito por um autor não é o mesmo que um filme feito pelo povo por intermédio de um autor; como intérprete e tradutor desse povo transforma-se em veículo do povo. Ao modificarem-se as relações de criação se produz uma mudança de conteúdo e paralelamente uma mudança formal15 (SANJINÉS, 1979, p. 61).

Sanjinés precisou revisar cuidadosamente seus próprios parâmetros narrativos

para poder posicionar-se culturalmente no território multiétnico e multicultural do

mundo andino. Algumas das modificações que surgiram no decorrer deste trabalho

foram: a substituição do protagonista individual pelo protagonista coletivo, o

desenvolvimento de um plano seqüência coerente com uma visão integradora e

coletivista da vida, e o entendimento da concepção circular e não linear do tempo. As

obras deste coletivo freqüentemente misturam uma narrativa documentária de denúncia

dos fatos, com encenações ficcionais representadas por atores indígenas.

No caso da cinematografia cubana de inicio dos anos 60, o objetivo era a

contribuição da produção documental à consolidação do novo estado socialista. A

necessidade de fazer do cinema um instrumento de agitação e propaganda ficou

representada pelo trabalho de Santiago Álvarez, diretor do Noticiário ICAIC e

realizador de mais de 600 documentários e cinejornais. Álvarez, que por sobre seu

trabalho de documentarista, sempre se autodefinia como um revolucionário, foi

14 Tradução ao português da autora (original em espanhol). 15 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

34

chamado pelo diretor do ICAIC, Alfredo Guevara, para coordenar o Noticiário pelo seu

mérito político, sem importar sua inexperiência na área cinematográfica. Neste sentido,

o próprio Álvarez sempre declarou abertamente a prioridade panfletária de seu trabalho,

para além de qualquer pretensão artística.

Porém, isto não significou em momento algum, uma contenção na enorme

criatividade do cineasta. Santiago Álvarez desenvolveu um novo estilo de cinema de

agitação e propaganda; sabendo transformar as carências materiais e técnicas –

agravadas pelo bloqueio econômico que padecia a Ilha – em soluções originais para

seus filmes, destacadas principalmente no trabalho de montagem. “A razão para tanta

inventividade é a necessidade”, reconhecia o próprio cineasta. A impossibilidade de

obter a exata imagem em movimento desejada jamais foi um empecilho, desenvolvendo

assim a utilização de colagens de materiais variados (fotos, quadros, manchetes de

jornais, panfletos, caricaturas, ilustrações), e fazendo uso de sobreposições, caracteres

com farta exploração de grafismos e trilha sonora que muitas vezes adquiria a função de

“guia dramático” (LABAKI, 1994).

Apesar de sua obra ter uma forte carga retórica e se organizar como uma

seqüência de provas que estruturam os argumentos propostos, ela carece quase por

completo de texto em voice-over, diferenciando-se do documentário canônico e

problematizando as bases mesmas do cinema documental “ao chocar-se de frente com a

escola “neutralista” que procura ocultar atrás da justificativa da “objetividade da

câmera” a ideologia inerente a qualquer discurso. O cinema de Santiago Alvarez não

apenas toma partido, como nasce dele” (LABAKI, 1994, p. 17).

A aparição de uma estética nascida das próprias carências é extensiva a varias

das produções do Nuevo Cine Latinoamericano; trata-se de opções que derivam muitas

vezes das suas limitações concretas de produção: baixos orçamentos, precariedade do

equipamento de filmagem e pouca disponibilidade de material. No caso específico do

documentário, o uso de foto fixa, recursos plásticos da cartazística, gráficos e

animações, também aparecem como alternativas para suprir carências.

Uma outra forma de documentário político, desenvolvida durante o período, está

representada no emblemático Batalha do Chile (Patrício Guzmán, Cuba, 1975-1979),

trilogia que relata o processo que desencadeou a crise do governo socialista de Salvador

Allende, como também o golpe de estado que o levou ao seu fim. Durante os anos da

ditadura, este documentário viajou pelo mundo denunciando a brutalidade do golpe

35

militar e chamando à solidariedade com o Chile. Foi visto em quase quarenta países,

transformando-se num estandarte para quem foi para o exílio e num mito para quem

permaneceu no país. Considerado um dos dez melhores filmes políticos da década, o

documentário consegue explorar a realidade prestando a mesma atenção ao que está

sendo filmado como as questões da linguagem cinematográfica: “Junto com a paixão

política, existe uma paixão pelo cinema” (RUFINELLI, 2001, p. 165).

A Batalha do Chile é um documentário analítico que prioriza o registro da

história na medida em que ela acontece, na intenção de proporcionar informações

essenciais que induzam à reflexão. Os realizadores combinam análise política (realizada

antes, durante e após da filmagem) com uma filmagem direta realizada no calor da luta.

Ou seja, se bem as técnicas de cinema direto se fazem presentes no registro, em sua

totalidade o filme é analítico, emite juízos e opiniões claras frente a os acontecimentos.

Patrício Gúzmán é defensor do documentário cujo registro de uma situação

determinada permita entender uma outra, não perceptível, num primeiro momento, na

observação espontânea da realidade. A Batalha do Chile foi pensada, desde seu roteiro,

tentando articular este principio. Durante os últimos meses de governo da Unidad

Popular eram muitos os acontecimentos políticos significativos, o que dificultava

decidir o que filmar. A equipe estabeleceu critérios de filmagem em função do principio

dialético da luta dos contrários, como o antes e o depois dos acontecimentos, as disputas

entre a esquerda e a direita, ou a concentração dos espaços de conflito (lugares físicos

por onde passavam os fatos). Esta dinâmica possibilitou que o filme mostrasse os “fatos

invisíveis” da crise: as tensões da luta de classe. Segundo Guzmán, é isto o mais

significativo de todo sentido documentário: “Aprender a ver os fatos invisíveis que a

realidade contém” (GUZMÁN apud RUFINELLI, 2001, p. 157). A Batalha de Chile é mais

do que a documentação sobre a luta de um povo, trata-se de uma analise argumentativa

feita a partir de fatos, mas que existe só enquanto organização na tela.

A articulação de fragmentos do real mediante a montagem é o que torna possível

o surgimento de argumentos do mundo do real não visíveis na observação direita deste.

Foi isto o que Dziga Vertov considerou como a possibilidade cinética de trazer um

mundo não visível à existência. Vertov foi parte das vanguardas formalistas dos anos

20, geradoras das primeiras atitudes direcionadas à montagem. Estes teóricos

pretendiam fundar a especificidade cinematográfica frente às outras artes a partir de

uma poética determinada na montagem. Ele acreditava na capacidade do cinema de

36

tornar visível o invisível, claro o obscuro, manifesto o oculto, evidente o dissimulado,

capaz de transformar a falsidade em verdade. No seu manifesto ABC dos Kinoks, Vertov

define o Cine-Olho como um cinema que explica um mundo visível, embora seja

invisível para o olho que observa diretamente e não através da câmera:

Ao mergulhar no caos aparente da vida, o cine-olho tenta encontrar na vida mesma a resposta ao tema tratado. Encontrar a resultante entre os milhões de fatos que apresentam uma relação com o tema. Montar e arrancar da câmera o que tem de mais característico, de mais útil, organizar os fragmentos filmados, arrancados da vida, numa ordem rítmica visual carregada de sentido, numa formula visual carregada de sentido, num estrato de “eu vejo”16 (In: ROMAGUERA&ALSINA (Org.), 1993, p. 34).

O Formalismo Russo buscava enfocar a arte como uma entidade substancial e

autônoma, capaz de explicar-se a si mesma. Daí seu constante interesse pela forma,

elementos com os quais o artista elabora sua obra. Para Vertov a construção de uma

nova realidade cinematográfica na tela contém a evidencia construtiva deste processo. O

filme A Batalha do Chile se observam marcas de seu processo de fatura, dando à obra

um caráter reflexivo. O enquadramento móvel, as mudanças de foco, as aparições em

quadro da equipe, da claquete e do microfone convidam ao espectador a adotar a

posição de observador participante. Ao vivenciar a intervenção da equipe gera-se uma

aproximação à veracidade dos fatos e automaticamente um maior compromisso por

parte do espectador.

Na Batalha do Chile não existem personagens que se destaquem no percurso

narrativo, que se tornem protagonistas ou fios condutores do filme. Os personagens,

sempre dentro do seu contexto cotidiano, desenvolvem identidades sociais grupais,

descartando a identificação emocional com realidades individuais. Esta idéia do

protagonista coletivo está presente não só na obra de Vertov, como também na de seu

contemporâneo Sergei Eisenstein (1898-1948), um dos principais teóricos da montagem

cinematográfica.

Entretanto a montagem da Batalha do Chile parecera, aparentemente, se afastar

das teorias construtivistas dos formalistas russos. A edição da Batalha se auto-apaga,

16 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

37

favorecendo as seqüências em tomada única. O recurso do plano seqüência dialoga com

as teorias bazanianas que buscam imitar o olho humano deixando ver diretamente os

acontecimentos representados na sua integridade espaço-temporal, relembrando a

montagem praticada pelos filmes neo-realistas que tanto influenciaram o cinema latino-

americano deste período. Por outro lado, a construção de sentido na Batalha do Chile é

a resultante da análise política de forças sociais em contradição: esquerda e direita,

trabalhadores e militares, as organizações de poder popular e as greves contra o

governo. As correlações entre estas forças opositoras se organizam na estrutura fílmica

como justaposições que articulam numa nova ordem especificamente cinematográfica.

Diferente dos neo-realistas, os construtivistas baseiam sua teoria no olhar da

mente - um olhar que monta -. Cineastas como Fernando Solanas, Jorge Sanjinés e

Glauber Rocha são exemplos da influência construtivista. Seus filmes aplicam conceitos

da construção fílmica desenvolvidos nas teorias de Eisenstein como o uso do

protagonista coletivo e a justaposição de planos com conteúdos diferentes durante a

montagem.

Em La hora de los hornos o cinema de histórias é substituído por um cinema de

investigação. Seu formato de ensaio ideológico estrutura um cinema de conceitos, de

pensamentos, de temas, com a capacidade de fazer visíveis na mente do espectador

idéias abstratas como, por exemplo, “oligarquia” ou “sociedade de classes”. O filme

parte do pressuposto de que os espectadores são capazes de alcançar o verdadeiro

significado da montagem de uma imagem ou som, revelando a influência de Eisenstein

e da vanguarda. O recurso a uma montagem dinâmica de planos curtos17 revela a

influência de técnicas do cinema publicitário utilizadas com fins de agitação e

propaganda.

La hora de los hornos não pretende explicar os problemas de América Latina, e

sim produzir indignação e conscientização no espectador. Não se trata de reproduzir o

visível, e sim de tornar visível para o despertar da consciência e a provocação de ação.

Isto se torna possível, segundo Vertov, pelas diferentes relações que imagens variadas

quando justapostas estabelecem entre sim:

O Cine-Olho utiliza todos os meios de montagem possíveis justapondo e ligando entre si qualquer ponto do universo em

17 A primeira parte do filme: Neocolonialismo e Violencia consta de aproximadamente 15000 tomadas. A media de um longa-metragem naquela época era de 700 a 800 tomadas.

38

qualquer ordem temporal, violando, se for preciso, todas as leis e hábitos que precedem à construção do filme (VERTOV, 1993, p. 34)18

Assim, a montagem não é apenas a junção de imagens, mas a sua relação com

todas as imagens que estão no filme, depois de montado. Vertov além de pensar a

relação de um plano com o subseqüente, está pensando nas relações de planos distantes

do filme na sua totalidade.

São as novas possibilidades de articulação do material extraído do mundo do

real que fazem possível a visão construtiva de um novo mundo e de um novo homem,

fundamental tanto para Vertov como para Solanas e Getino, os que, em diferentes

épocas, tiveram o desejo de repensar o mundo a partir de um modelo diferente de

sociedade. O contexto de efervescência revolucionária, presente tanto nos primeiros

anos do socialismo na URSS como na Argentina de fins dos 60, desperta nestes

realizadores o desejo de libertar-se de todas as limitações que o processo

cinematográfico tinha estabelecido como norma e padrões narrativos. A vanguarda

futurista dos anos 20 entendeu este processo como a: “decifração comunista da

realidade”, os peronistas argentinos do coletivo Cine Liberación como “o único cinema

de massa possível hoje, por ser o único circunstanciado com os interesses, aspirações e

perspectivas da imensa maioria da população” (GETINO & SOLANAS, 1988, p. 56)19 .

Na obra de Jorge Sanjinés a maior influência construtivista se encontra na

substituição do herói individual por um protagonista coletivo. A necessidade de

expressar uma historia coletiva através de um protagonista que se identifica pelo seu

lugar social (operário, fazendeiro, camponesa, mãe) está presente tanto em El coraje del

pueblo (Sanjinés, Bolívia, 1971) como em muitas obras soviéticas do período

construtivista, como por exemplo A Greve (URSS,1924) e O Encouraçado Potemkin

(URSS, 1925) de Eisenstein ou A Mãe (URSS, 1924) de Vsevolod Pudovkin.

Sanjinés conhecia a teoria de Eisenstein desde seus primeiros trabalhos. A falta

de recursos para fazer som direito levou-o a procurar uma linguagem observando as

18 VERTOV, Dziga. “Del Cine-Ojo al Radio-Ojo (Extracto del ABC de los kinoks)”. In: ROMAGUERA, Joaquim & ALSINA, Homero (Eds.) Textos y Manifiestos de Cine. Madrid: Cátedra, 1993. Tradução ao português da autora (original em espanhol). 19 GETINO, Octavio & SOLANAS, Fernando. “Hacia un tercer cine. Apuntes y experiencias para el desarrollo de un cine de liberación en el Tercer Mundo”. In: HOJAS DE CINE. Testimonios y documentos del Nuevo Cine latinoamericano. Volumen I. México: SEP, UAM, Fundación mexicana de cineastas. 1988. Tradução ao português da autora (original em espanhol).

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técnicas do cinema mudo e os princípios de montagem desenvolvidos por Eisenstein. A

ausência de voice-over como de depoimento testemunhal para sustentar as

argumentações teve que ser compensada com articulações de planos baseadas na própria

força das imagens. São as descobertas de Eisenstein sobre “o fenômeno da justaposição

de planos com conteúdos diferentes que dão nascimento a um novo conceito não

contido em nenhum deles isoladamente, é o que interessa mais ao cinema boliviano

comprometido” 20 (SANJINÉS, 1981, p. 22).

Contudo a intensa fragmentação da realidade na montagem de Eisenstein

convence a Sanjinés só num primeiro momento. Nas suas pesquisas em relação à

consolidação de uma estética em concordância com a cultura dos povos andinos, o

tratamento tanto da câmera como da montagem se modificam, encontrando no plano

seqüência integral uma técnica narrativa mais eficaz de realizar um cinema popular que

integrasse a cosmovisão própria das comunidades indígenas:

Para nós ficou claro que a câmara devia se mobilizar sem interrupção e motivada pela dinâmica interna da cena. Só assim podia-se alcançar sua imperceptibilidade e a integração espacial. A não fragmentação da seqüência em diversos planos permitia transmitir um ordenamento novo, um ordenamento próprio dos povos que concebem tudo como uma continuidade deles próprios. O ritmo estaria dado internamente pelos deslocamentos de pessoas e coisas que ao mesmo tempo motivam e geram os movimentos de câmera, as aproximações, os primeiros planos e os planos abertos integradores do grupo21 (SANJINÉS, 1989, p. 17).

Para o crítico de cinema José Carlos Avellar esta opção pelo plano seqüência

não afasta Sanjines de Eisenstein, já que o modo de pensar a montagem, seja na

colagem de planos de detalhe diferentes ou na fragmentação ao interior de um único

plano longo e sem cortes, prevalece. Avellar faz referencia ao ensaio A natureza não-

indiferente (1945) em que Eisenstein aponta para uma nova etapa do conceito de

montagem pós Segunda Guerra Mundial:

Em lugar do plano como fragmento de montagem, a montagem como fragmento do plano; uma montagem audiovisual orgânica, elaboração musical de nuances emocionais da ação

20 Tradução ao português da autora (original em espanhol). 21 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

40

capaz de ligar num todo homogêneo as diversas sensações recebidas de diferentes esferas e por diferentes órgãos dos sentidos. Eisenstein diz ainda que um único princípio de composição deve reger a estrutura de cada um dos elementos isolados que formam esta complexa polifonia; e que para garantir um canto em uníssono entre a ação e o plano que irá mostrar a ação será necessário que os mesmos elementos que vão estruturar a ação estruturem também o enquadramento, o espaço recortado pelo retângulo do quadro, a composição visual; do gesto do ator às dobras da roupa que ele veste, do movimento da câmera ao movimento da luz sobre a cena, tudo deve estar voltado para a ressonância de uma única emoção determinante, base desta composição de múltiplos planos dentro de um mesmo plano; o que se obtém assim, conclui, é como se todos os planos de uma cena estivessem montados dentro de um mesmo plano.(AVELLAR,1995, p.265)

É exatamente nesta época que surge o neo-realismo no cinema. Na intenção de

representar a realidade social e econômica de uma época em forma direta e sem rodeios,

a riqueza documental, no sentido de aproximação ao real, que o plano sequência pode

oferecer foi de grande importancia. Na Italia do pósguerra, além da postura ideológica

que buscava denunciar os destroços da guerra e as consequências do fascismo, existia a

necessidade de reconstruir um mundo completamente desestruturado, tanto no exterior

como no interior de cada indivíduo. A opção do plano sequência foi defendida por

André Bazin (1918-1958) como possibilidade de reproduzir o mundo real na sua

continuidade física e de acontecimentos.

Por outro lado, a fragmentação do real para a criação de um novo sentido no

cinema, parecera se mostrar mais vigorosa nos períodos de reconstrução ativa da vida,

quando numa sociedade os homens se empenham no desmantelamento e reestruturação

da realidade. Com a criação da URSS, no final de 1922, o cinema do novo Estado

explorou formas fílmicas que contribuíssem às aspirações revolucionárias do momento:

capazes de representar o “novo homem” da sociedade comunista; de construir uma

cultura distinta, livre da tradição burguesa; e de transcender velhas divisões de classe

nas cidades.

O documentário produzido nas décadas de 60 e 70 na América Latina se

alimentou, como já vimos anteriormente, destas duas vertentes. Se por um lado existia

na época a necessidade de denunciar a realidade social apagando a montagem para

alcançar um efeito do real numa nararativa unificadora; por outro, vigorava também um

forte desejo de transformar esta realidade, dando espaço para a inventiva e

41

experimentação estética. Mostrar o que somos e ao mesmo tempo rejeitar o que somos

oferecendo alternativas de transformação permitiu aos documentaristas daquele periodo

se nutrir tanto da negação da montagem baziniana como da fragmentação construtivista.

2. A NECESSIDADE DE APRENDER

Na busca de uma estética endógena, nascida de manifestações latino-americanas,

do subdesenvolvimento e da miséria, o real tornou-se fundamental para o Cinema Novo

e para o Nuevo Cine Latino-americano: “O que me interessa é que o cinema sirva para

algo e que este algo seja ajudar na construção da nossa realidade” dizia, no inicio dos

anos 60, o cineasta argentino Fernando Birri (apud AVELLAR, 1995, p. 45)22

A necessidade de um cinema realista, ávido em comunicar idéias, além de

assumir uma forte responsabilidade frente ao público, torna o espectador parte

fundamental do filme. Estabelece-se uma relação de intercâmbio, onde a obra modifica

o destinatário e o destinatário modifica a obra, aportando sua experiência humana e

social. Trata-se de um cinema cujo objetivo é transmitir um aprendizado. Um cinema

que pretende mudar a passividade do espectador na expectativa de um despertar

consciente.

Beatriz Sarlo (2006, p. 161) faz referencia a este dever pedagógico como uma

responsabilidade pertencente ao passado: “Deviam então libertar os outros das travas

que lhes impediam de pensar e agir; enquanto isso, enquanto essa nova consciência não

se impusesse a seus futuros portadores, falaram em nome deles”.

Na América Latina, os documentaristas dos anos 60 e 70 assumiram um

compromisso aberto com os setores mais desfavorecidos da sociedade. A idéia de um

“Cine-Acción”, defensor do povo, entendia-se como mais uma arma a serviço das lutas

contra a injustiça e pelas transformações da sociedade. Sendo parte de uma vanguarda

intelectual, estes cineastas se identificaram com o que Sartre chamou “voz universal que

22 Original: MOGNI, Franco. “Nuestro cine, asi, es uma herramienta útil”, Entrevista a Fernando Birri. In: Revista Che, Nº. 2, Buenos Aires, outubro 1960 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

42

toma partido”, onde o intelectual, conscientizado da sua contradição de classe, coloca-se

ao serviço da massa para contribuir à construção da tomada de consciência proletária.

A mediados da década de setenta eram muitos os paises da América Latina que

se encontravam baixo o controle de regimes ditatoriais. Os golpes militares

surpreenderam aos documentaristas no auge da discussão sobre as formas mais

adequadas para representar tanto as originalidades como as reivindicações libertadoras

de seus respectivos paises. O cinema “militante” e revolucionário foi totalmente

desarticulado e terminou emigrando para a terra de ninguém. As agrupações de

cineastas reunidos em torno a projetos ideológicos e manifestos se dispersaram.

Essa desarticulação afetou a paises como Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. A

produção de filmes tanto documentais como de ficção praticamente desapareceu. Os

órgãos do Estado ou ligados às universidades, responsáveis pela atividade filmica foram

fechados ou paralisados e um grande numero de realizadores e técnicos viram-se

forçados a continuar seu trabalho no exílio.

Os documentários feitos no exílio, principalmente os chilenos, giram em torno

ao golpe militar e suas seqüelas, sendo prisão, tortura, execução e vida no exílio as

temáticas mais recorrentes. Na Argentina, este tema foi abordado desde o exílio, mais

pelo cinema de ficção e geralmente de uma forma alegórica. Nos documentários do

exílio existe um claro interesse por reconstruir o passado como uma forma de manter a

memória viva, seja resgatando uma memória individual que relembra através do

testemunho, ou seja, apelando a uma memória coletiva fazendo reconstrução de fatos

históricos. A referencia a uma experiência individual aparece, nos documentários deste

período, sempre na sua relação direta com a experiência coletiva, ou seja, social,

deixando claro que o que preocupa aos realizadores da época é a denuncia como

possibilidade de modificar o presente, assim como a preservação de uma determinada

memória histórica. “No olvidar”, “Yo recuerdo también”, “Éramos una vez” ou “La

historia es nuestra y la hacen los pueblos” são alguns filmes, da abundante produção da

época, que já desde o título sublinham essa intenção.

Muitos destes cineastas são acolhidos em Cuba. Através do Instituto Cubano del

Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC) produzem filmes que denunciam a realidade

social e política dos seus respectivos paises. Neste mesmo período a cinematografia

cubana se vê afetada pela “sovietização”, alinhamento de Cuba ao bloco socialista, fase

43

na que a produção documentaria privilegia as temáticas históricas, “disfarçando a crítica

social e política vinculada ao momento presente” (MARTINS VILLAÇA, 2006, p.258).

Alguns dos cineastas exilados retornam aos seus paises nos 80, com a volta à

democracia. Outros regressam unicamente para filmar. Mais praticamente todos eles,

continuam fazendo um cinema de ligação temática com América Latina.

O inicio dos anos 80 pode ser considerado um período de recomposição. O auge

televisivo levou a uma demanda maior de publicidade. Uma grande parte dos

realizadores que permaneceram nos seus países, se estruturou em produtoras

audiovisuais privadas para atender o mercado publicitário, o que lhes permitiu a

produção esporádica de documentários feitos, inclusive, em forma clandestina.

No Brasil em plena ditadura se roda Iracema, uma Transa Amazônica (Jorge

Bodansky e Orlando Sena, 1974), difundida no país clandestinamente em exibições

privadas e em alguns Cineclubes, e lançada oficialmente em 1981. O filme, realizado

num momento fechado e repressivo da ditadura militar, denuncia o ilusionismo da

propaganda oficial e mostra uma realidade contraria ao discurso de um país que se

expande e moderniza com a construção da Transamazônica. Saindo dos cânones da

denuncia testemunhal, Iracema é uma experiência de hibridação entre os registros de

ficção e documentário, onde o que estava preparado para acontecer frente à câmera

(encenação) e o que no estava (registro do real) tem a mesma importância.

As grandes mobilizações de massa do final dos períodos ditatoriais foram

documentadas por realizadores mobilizados por produzir um cinema de denuncia e um

cinema testemunhal, que pode ser considerado como a continuação do cinema militante

dos anos 70.

No Chile, estas produções começaram a serem feitas por equipes jornalísticas.

Com o objetivo de informar à população dos conflitos do país, circulam por canais de

comunicação alternativos aos oficiais, criando espaços de resistência vinculados a

organizações comunitárias, culturais e algumas vezes eclesiásticas. Os Noticieros

Alternativos, realizados pelo grupo Proceso e o noticiário Teleanálisis, vinculado à

revista Análisis, constituem uma das principais fontes de documentação audiovisual

existentes no Chile sobre o período da ditadura (GETINO, 1996).

O grupo teatral ICTUS amplia o seu trabalho ao campo do audiovisual

produzindo nos anos 80 mais de trinta documentários. Tendo também como objetivo a

denuncia social, seus filmes apresentam um tenor mais analítico, onde o caráter e

44

urgência dos noticiários será trocado por uma análise mais autoral. Destacam-se aqui os

trabalhos de Tatina Gaviola, Pedro Chasquel, Pablo Salas, Patrícia Mora e Augusto

Góngora, entre outros. Desenvolve-se uma escrita mais observacional, onde o uso de

uma câmara na mão que participa dos acontecimentos e de uma montagem ao interior

do plano seqüência remete a escola deixada pelo cinegrafista de A batalha do Chile,

Jorge Muller, detido e desaparecido em 1975.

Na Argentina, documentaristas como Marcelo Céspedes, Alberto Giúdice,

Tristán Bauer e Silvia Chanvillard se organizaram no Grupo Cine Testemunho. O

coletivo trabalhava em duas diretrizes: a identidade dos povos originários de América e

a marginalidade urbana. A mediados dos 80 estes realizadores se unem a outros, como

David Braunstein, e começam a realizar filmes numa linha mais autoral.

Em 1986 surge, em Buenos Aires, a produtora Cine Ojo que unificará cineastas

que vinham de uma linha testemunhal com outros influenciados pelo Cinema Direto,

numa sorte de sintetizar o político utilizando técnicas do Direto. Os primeiros filmes de

Cine Ojo procuravam transmitir uma mensagem política, às vezes más explícita, às

vezes menos, mais trabalhando as marcas formais destas mensagens, em relação às

historias, aos personagens e a geografia dos lugares onde o filme acontecia.

Outro espaço importante para o desenvolvimento de um documentário de caráter

autoral nos anos 80, foi o Festival Franco-Chileno de Vídeo-Arte, que, mais tarde, se

transformou em Festival-Franco-Latino-Americano. Nos seus inícios o festival

concentrou a escassa produção ficcional, documentaria e de vídeo-experimental

independente da época, tornando-se um espaço alternativo à hegemonia do

documentário de denuncia da época. Já nos 90 incentivou o intercâmbio entre países

como Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Brasil e França.

A entrada no mercado do formato vídeo no inicio dos anos 80, traz uma

possibilidade mais acessível para a produção de vídeos documentais, o que gera uma

sorte de boom. No Brasil, com a volta à democracia, surge a Associação Brasileira de

Vídeo Popular (ABVP), entidade que consagra os produtores de todo o pais num

modelo que pretende conceber termos de produção, linguagem e participação popular.

O suporte vídeo democratiza o acesso à produção de imagens e a expressão da

diversidade nacional brasileira. Exemplo disso é a produção do Centro de Trabalho

Indigenista (CTI), consolidado no projeto Vídeo nas Aldeias, que desde 1987 coordena

a produção audiovisual de aldeias de todo o Brasil.

45

Já na área televisiva, a produção desenvolvida na primeira década do programa

Globo Repórter, da TV Globo, é uma escola importante para o documentário brasileiro.

Desvinculado do departamento de jornalismo, este espaço é preenchido por cineastas

que buscavam revelar um país desconhecido através de uma linguajem inovadora e

autoral. Dessa vasta produção em 16mm destacam-se O Último Dia de Lampião

(Maurice Capovilla, 1975), Caso Norte (João Batista de Andrade, 1977) e Teodorico, o

Imperador do Sertão (Eduardo Coutinho, 1978), entre outros. O Globo Repórter

manteve essa equipe de produção até 1983, quando o filme de 16mm é substituído pelo

vídeo e os cineastas são substituídos pelos repórteres.

Deste grupo de documentaristas, Eduardo Coutinho se destaca pela realização de

Cabra marcado para morrer (Brasil, 1964/84). O filme interrompido pelo governo

militar, só será concluído em 1981, quando Coutinho volta ao Nordeste, dando inicio a

uma nova forma do documentário brasileiro de caráter mais reflexivo e performativo

“trata-se fundamentalmente de uma realidade sendo produzida no contato com a

câmera, e de deixar claras as condições de produção do filme, o processo de filmagem”

(LINS, 2004, p.40).

Outro trabalho brasileiro significativo que começa a questionar o estatuto da

representação cinematográfica e da abordagem do real, refletindo sobre os encontros e

desencontros do documentário com a ficção é Ilha das Flores (Jorge Furtado, 1989).

Importante para toda produção documental da América Latina foi o inicio da

realização do Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano (FINCL) em

Havana, a partir de 1979, bem como a criação da Fundación del Nuevo Cine

Latinoamericano e da Escuela Internacional de Cine y Televisión de los Tres Mundos,

em 1986. Esta estrutura vai permitir a re-alimentação do pensamento do Nuevo Cine

latinoamericano, fundado em 1967, em Viña del Mar.

Fernando Birri, nos anos 60 afirmava: “Que nenhum espectador saia o mesmo

depois que termine de assistir um dos nossos filmes”. Já na década de 80, o mesmo Birri

declara: “Que nenhum cineasta latino-americano seja o mesmo que começou a fazer o

filme quando termine de fazê-lo”. E continua:

Houve um período no qual falávamos que a câmara era uma arma. Isto correspondia à projeção dos nossos sentimentos revolucionários, a nossa adesão a um processo. Só depois entendemos que isso não era a verdade, que a câmera não é uma arma. Que a câmara pode ser usada como uma arma. Isto é, que

46

a câmara pode ser usada como uma forma de acompanhar um processo, mas sem a ilusão idealista de que com essa câmera, e só com essa câmera, vamos transformar a realidade; e principalmente essa realidade objetiva, externa a nós. Outra coisa poderia ser falada do caminho de uma realidade interna, de uma realidade subjetiva ou se vocês preferem a palavra, da consciência. Ou seja, o cinema como transformação interior, como conscientizador, que depois obviamente se reproduz também no exterior23 (BIRRI, 1982, p. 37).

A década de 80 pode ser considerada um período de passagem, em que às

características textuais dos documentários produzidos até esse momento entram num

processo de transformação. Continua-se querendo contar o social e o político mais não

de uma forma testemunhal e direta, já que se reconhece a um público cansado com a

repetição das formulas de escritura, onde o único que mudava era o conteúdo. Começam

as experimentações na linguagem numa linha que usa a realidade como escusa para

fazer com ela um relato cinematográfico. Muitos dos realizadores que estavam fazendo

documentário testemunhal incorporam elementos reflexivos às obras, preparando o

terreno para o que seria o giro reflexivo e subjetivo dos anos 90.

Se nos 60 a valoração discursiva do documentário estava dada em grande

medida pela sua função mediatica, nos 90 esta mediação passa a ser parte do discurso,

tornando-se o próprio sistema de representação em questão, tema recorrente no

documentário das ultimas duas décadas.

Conseqüência disto, o lugar social do documentário também se viu modificado,

deixando de ser necessariamente representativo de uma ideologia, para ocupar espaços,

às vezes, alheios às questões políticas, tanto oficiais como contra-oficiais.

Na América Latina o político tem sido fundamental na hora de dimensionar

trajetórias culturais. A escassez de projetos grupais em torno a ideais políticos das

últimas décadas foi gerando uma produção cultural mais diversificada que atinge os

interesses, tanto ideológicos como estéticos, dos pequenos grupos representados na

fragmentada sociedade contemporânea.

Os tempos mudaram. O regime de historicidade que definia o papel histórico dos

intelectuais iluministas, das utopias transformadoras e do radicalismo estético, foi

substituído pela negação da articulação grupal e da autoconsciência coletiva. Não

existem mais os grandes objetivos nem as tarefas comuns a todos os indivíduos da

23 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

47

sociedade, colocando em risco a credibilidade na capacidade humana de produzir seu

futuro.

No terreno da produção simbólica isto traz algumas modificações significativas.

Os novos critérios de legitimação do autor têm pouco a ver com o intelectual tradicional

de saber integral e unificado, cuja missão é a de ser a consciência crítica de seu tempo e

a sua responsabilidade perante a sociedade, “dizer a verdade e denunciar a mentira”.

Atualmente, numa sociedade caracterizada pela sua fragmentação, se fortalece a figura

gramsciana do intelectual orgânico: líder intelectual de uma tendência, grupo ou facção,

da qual faz parte por outros méritos. Edward Said observa que o intelectual orgânico,

que lida com a esfera pública sendo em grande medida um componente dela, ao

contrario do tradicional, parecera existir com muita vida. A sua legitimação na

sociedade tem aumentado tanto que ele começa a cumprir também as funcoês do

intelectual tradicional.

No campo da produção audiovisual a fragmentação se manifesta numa

diversificação de produtos, aparentemente feitos para públicos especializados. O espaço

social destas obras fica determinado por uma valoração no campo das novas

tecnologias. Mas ao mesmo tempo, esta tecnologia aumenta a “probabilidade de atingir

públicos muito maiores do que poderíamos imaginar há uma década, embora as chances

de manter esse público sejam, pela mesma moeda, bastante incertas” (SAID, 2004, p. 36).

O discurso será então, opaco para um público e transparente para um outro; e o

destinatário será, para o realizador, um ser difuso. Torna-se assim mais difícil fixar

objetivos nas obras destinados a produzir efeitos específicos no espectador. E as

produções começam a focar seus interesses em outro tipo de preocupações.

Para Milton Santos, o valor que foi dado à técnica no mundo globalizado tem

produzido, também, um efeito de neutralidade na esfera social e política, permitindo a

consolidação de um pensamento único, que se autodefine como universal:

Como as técnicas hegemônicas atuais são, todas elas, filhas da ciência, e como sua utilização se dá ao serviço do mercado, esse amálgama produz um ideário da técnica e do mercado que é santificado pela ciência, considerada, ela própria, infalível. Essa, aliás, é uma das fontes do poder do pensamento único. Tudo o que é feito pela mão dos vetores fundamentais da globalização parte de idéias científicas, indispensáveis à produção, aliás, acelerada, de novas realidades, de tal modo que as ações assim criadas se impõem como soluções únicas. (SANTOS, 2000, p.53).

48

A produção audiovisual, em circunstâncias em que seis multinacionais dominam

90% do fornecimento mundial de imagens e notícias, estas agências controlam os

temas, as fotos, os debates que são difundidos, ou não, nos meios de comunicação. O

conceito de “efeito de opacidade”, de Santos (2004, P.127), em que a informação nem

sempre se propõe a informar, e sim convencer acerca das possibilidades e das vantagens

das mercadorias, produz “uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer,

confunde”. Os artifícios utilizados pela mídia contemporânea são evidenciados num

suporte que, pela sua natureza, tem a mesma possibilidade potencial de manipulação.

O espectador, neste contexto, se apresenta como um indivíduo na busca de

informações que lhe ajudem a entender as diferentes realidades que formam parte direta

e indireta de seu cotidiano. A informação, ou melhor, a interpretação dos fatos que se

lhe oferece, se apresenta camuflada e legitimada enquanto especialização técnica,

distante de qualquer tipo de opção ideológica. Surge uma nova figura, bastante

explorada pelo formato documental: os especialistas.

Os especialistas, como especialistas, tendem a demarcar os limites do possível, e sua opinião (que parece livre de qualquer ideologia, já que detém a autenticação da ciência e da técnica) define políticas de longo alcance. Num clima em que se comemora o fim das ideologias, os especialistas encarnam a figura da história: garantem o pragmatismo e fundam um novo tipo de realismo político. (SARLO, 2006, p. 167).

O culto à especialização parecera governar no mundo do discurso. Nos meios de

comunicação – programas de entrevista na televisão, programas de rádio, textos nos

jornais e revistas – se encontram, sem que se tenha real consciência disso, os

formadores de opinião da sociedade contemporânea.

A maioria da produção latino-americana contemporânea encontrou um lugar

dentro da programação televisiva. O documentário televisivo, feito geralmente por

encomenda, transformou-se num produto homogêneo adequado ao perfil dos canais. As

marcas de autoria do realizador desapareceram em beneficio de um “absolutismo de

mercado” que destaca a “marca” da mercadoria. O discurso, nestes casos, se legitima

através da voz do especialista, na sua suposta condição de independente e por tanto

49

capaz de emitir um juízo objetivo; o autor se auto-apaga e todas suas marcas se

desvanecem.

Neste novo cenário, o documentário autoral ocupou um espaço de circulação

mais restrita – festivais de cinema e cineclubes –, porém não por isso livre dos

condicionamentos dos “fluxos de mercado”. A legitimação das obras no âmbito cultural

está condicionada a um mercado cultural de bens simbólicos submetido ao gosto do

público.

As posições estéticas reduzem-se a relações de força dentro do campo

intelectual, situação, segundo Beatriz Sarlo, extensiva a todas as manifestações

artísticas:

As tomadas de posição no campo intelectual ficam restritas aos verdadeiros impulsos que as regem: a busca de consagração e legitimidade para as próprias obras, a competição entre artistas, suas estratégias de luta e aliança. Não é o campo sagrado da arte, e sim um espaço profano de conflito. (SARLO, 2006, p. 143).

O conceito de Relativismo Absoluto, de Sarlo, explica um novo cenário de

produção cultural, onde os particularismos impossibilitam uma legitimação estética que

possa se desdobrar numa luta pela legitimidade social, sem espaço no mundo atual:

Em matéria de arte, uma forte tomada de partido que faça possível a discussão de valores pode deixar em evidência para muitos a significação densa (a mais densa das significações na sociedade contemporânea) do fato estético: mesmo quando se reconheça que instituir valores para a eternidade é uma ilusão (SARLO, 2004, p. 158).

Neste sentido, tomar partido além do universo da própria experiência, não

encontra eco numa cultura que busca o consenso de vozes. Em prol da neutralidade e da

imparcialidade sugere-se às vezes um multiculturalismo simplificado.

Em contrapartida, os intelectuais independentes, separados uns de outros,

estabelecem ligações, de modo variado, com um grande número de comunidades de

ativistas que são evitadas pela mídia principal. Diversas experiências de comunicação,

alternativas ao monopólio, se expressam em torno da cultura popular ou de grupos de

minorias que se apropriam dos elementos da cultura de massa para a expressão da

50

cultura popular. O domínio da técnica se torna fundamental neste processo de

apropriação, já que o advento de novos canais de distribuição de material audiovisual e

a revolução midiática operada por intermédio da internet estabeleceram novos

parâmetros de difusão e consumo de produtos audiovisuais.

No terreno documentário latino-americano se encontram exemplos destas

práticas em obras com fortes marcas jornalísticas, nascidas no contexto social e cultural

de lutas reivindicativas. Geralmente agrupados em coletivos, encontramos na Argentina

um Cinema Piquetero, no México o Proyecto de Medios de Chiapas e Canalseisdejulio,

no Brasil a experiência audiovisual indígena Vídeo nas Aldeias, para mencionar só

alguns. A prática de um documentário partidário, assim como a retro-alimentação a

partir de valores próprios da cultura popular se desenvolvem como importantes

ferramentas de luta no debate ideológico contemporâneo. Porém se trata de uma

produção escassa e de menor amplitude.

O documentário latino-americano das ultimas décadas se apresenta com uma

grande diversidade de formas. Não encontramos características comuns que permitam o

seu agrupamento em movimentos ou escolas, similares às dos anos 60 e 70. Seus

autores raramente elaboram manifestos, mantendo vínculos com outros documentaristas

só em relação a atividades de grêmio. A identificação de uma linguagem comum a um

conjunto de obras acontece geralmente pelas marcas deixadas pelo trabalho autoral de

um mesmo realizador.

Se nos anos 60 o debate cultural, fundamentado numa análise estrutural da

sociedade, levou a pensar na idéia da morte do sujeito, na modernidade tardia um

ressurgimento do sujeito como identidade singular retoma seu lugar tornando-se uma

hegemonia simbólica, principalmente no território dos meios audiovisuais. Nas últimas

décadas a legitimação da historia oral e suas fontes testemunhais devolvem a confiança

a uma primeira pessoa que narra sua vida, seja privada, pública, afetiva ou política.

Encontra-se no novo documentário de autor latino-americano um olhar interior

de um documentarista que expressa, num estilo pessoal de reconstrução de realidades

individuais, um ponto de vista interno a partir do qual entende o mundo histórico. As

obras, majoritariamente reflexivas, fazem uso deste recurso de maneiras diversas.

Destacam-se os filmes auto-referentes que tratam do próprio processo de produção da

reflexão. Tal processo parte da experiência particular e única do autor, e representa uma

intenção de compreender a própria história para assim chegar ao entendimento da

51

memória histórica da sociedade. Trata-se de um processo de dentro para fora que une

elementos discursivos aparentemente antagônicos: o geral com o particular, o individual

com o coletivo e o político com o pessoal.

Voltando à idéia de Birri: o cineasta aprende através de seus filmes, durante o

processo de registro do real, momento em que se produz um encontro que modifica o

realizador. Uma espécie de transformação interior de um autor que não será o mesmo

depois de finalizar o filme.

Se os documentaristas do Nuevo Cine Latinoamericano se posicionaram como

mediadores entre os intelectuais e as massas marginalizadas, elaborando obras de linha

didática e panfletária, as preocupações dos documentaristas hoje passam pela análise

reflexiva de seu lugar em relação às pessoas que desejam representar. Direta ou

indiretamente, o cineasta discute o processo de criação dentro dos próprios filmes

questionando os métodos e crenças estabelecidas.

A tendência documental performativa, na América Latina, cuja enunciação se

manifesta como: eu te digo que o mundo é assim, parece buscar nos fatos representados

uma reflexão subjetiva que contribua à reconstrução da memória histórica de seus

respectivos países. O próprio questionamento do documentarista numa obra que

combina estruturas e práticas de origens diversas, livre de modelos preestabelecidos de

representação, produz um estranhamento no espectador capaz de contribuir na discussão

acerca da representação da fragmentada sociedade contemporânea.

Surge uma nova linguagem que se constitui como prática de resistência e que vai

substituir o que fosse a linguagem revolucionária:

Substantivos como “revolução” e “libertação” se transformaram em adjetivos de oposição: “contra-hegemônico”, “subversivo”, “oposicionista”. No lugar das narrativas-mestras da revolução, agora o foco recai em uma multiplicidade descentrada de esforços localizados. Embora a nação e as classes sociais não tenham desaparecido do horizonte, esses termos perderam sua posição privilegiada e foram complementados e desafiados por categorias como raça, gênero e sexualidade (STAM, 2006, p. 438).

Embora o documentarista latino-americano não se interesse mais pelas meta-

narrativas de libertação, isto não significa necessariamente que tenha abandonado a

noção de luta pela emancipação. Enquanto a representação de mundos particulares

52

possibilite chegar a um entendimento geral, esta “narrativa dos afetos”, que surge a

partir do registro do encontro entre quem filma e quem é filmado, pode alcançar uma

reflexão singular que se constituía também como um gesto político, fundamental numa

América Latina que continua sendo parte do mundo desde o lugar do oprimido.

E assim, no sentido de Benjamín, talvez seja possível que estas fotografias do

momento de um processo –– estes instantâneos do encontro ––, se tornem uma

possibilidade revolucionaria de lutar por um passado oprimido, ao procurar nas imagens

onde o passado se junta com o agora o imaginário social da nossa própria historia.

53

“Porém, não basta mostrar fragmentos da verdade na tela, partes separadas da verdade. Devem-se organizar essas partes tematicamente para que também o todo seja uma verdade” Dziga Vertov – ABC dos Kinoks – 1924

II.

RELATO E MONTAGEM NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO

A grande diversidade temática, estilística, técnica e metodológica presente no

documentário latino-americano dificulta a criação de modelos e categorias para a sua

analise aplicável ou conjunto das obras de um período determinado. No decorrer da

história, diferentes modalidades de representação se desenvolveram em torno de dois

critérios principais: 1) O entendimento sobre a função social da informação, e 2) O

desenvolvimento das técnicas de captação e pós-produção audiovisual.

Atualmente, diversas formas de representação não só coexistem paralelamente,

mas também se misturam no interior de uma mesma obra.

Na tentativa de definir o documentário pelas suas características textuais Bill

Nichols estabeleceu seis formas básicas de organizar textos e as denominou Modos de

Representação: patrões organizativos dominantes que dão conta da estrutura da maioria

dos textos documentais. Cada modo utiliza os recursos da narrativa e do realismo de

diversas maneiras, gerando assim textos diferentes elaborados a partir de elementos

comuns. Os Modos Poético, Expositivo, Observativo, Participativo, Reflexivo e

Performativo surgiram, de uma forma geral, nessa ordem cronológica na história do

documentário. Atualmente coexistem, lado a lado, nas produções contemporâneas.

O Modo Poético retira do mundo histórico24 sua matéria prima, mas transforma-

a em textos que enfatizam na fragmentação e na ambigüidade. Quer dizer, na maneira

pela qual a voz do cineasta dá a fragmentos do mundo histórico uma integridade formal

24 Nichols analisa o discurso documentário desde o ponto de vista do realizador, do texto e do espectador. Dentro deste contexto define o mundo histórico na sua relação de oposição ao mundo imaginário. O mundo histórico é a base da representação documental.

54

estética específica do filme, que reflete o estado de ânimo, o tom e o afeto. As

convenções da montagem em continuidade são sacrificadas para explorar associações

que envolvem ritmos temporais e justaposições espaciais.

O Modo Expositivo agrupa fragmentos do mundo histórico numa estrutura

argumentativa ou retórica. Dirige-se diretamente ao espectador através de uma lógica

informativa transmitida verbalmente, onde as imagens ilustram, esclarecem, evocam ou

se contrapõem ao que é dito. O comentário em voice-over sustenta o argumento do

filme. Este comentário provém de um lugar ignorado, mas associado à objetividade ou

onisciência, uma espécie de “voz de Deus”, onde o narrador se empenha na construção

de uma sensação de credibilidade usando características como distância, neutralidade,

indiferença e onisciência. A montagem pode sacrificar a continuidade espacial ou

temporal para manter a continuidade do argumento ou perspectiva verbal: “montagem

de evidencia”.

O Modo Observativo sublinha a observação espontânea da experiência vivida,

das coisas conforme elas acontecem, evitando a intervenção do realizador. Este tipo de

filmes cede ao “controle” dos acontecimentos que se desenvolvem frente à câmera e se

apóiam na montagem para aumentar a impressão de uma continuidade em “tempo

presente”. O isolamento do cineasta na posição de observador pede que o espectador

assuma um papel mais ativo na determinação de importância do que se diz e faz,

estabelecendo um marco de referência muito similar ao do cinema de ficção: sensação

de aceso sem travas e sem a mediação de um realizador. Este tipo de filmes levantou, na

década de sessenta, o debate sobre até que ponto qualquer realidade não muda a partir

do momento em que está frente a uma câmera.

No Modo Participativo se espera testemunhar o mundo histórico da maneira pela

qual ele é representado por alguém que nele se engaja ativamente; isto significa que os

documentaristas também fazem parte do filme, vivem entre os outros e falam de sua

experiência. O cineasta e os atores sociais25 negociam um relacionamento, ou seja, e as

formas de poder e controle que entram em jogo no “encontro” entre alguém que

controla uma câmera de filmar e alguém que não a controla. O encontro acontece

geralmente através de uma entrevista de estilo intervencionista. As respostas e os

25 Segundo Nichols, os atores sociais, ou seja, os “indivíduos” o “pessoas” observados num documentário pertencem ao mundo histórico. Eles se representam a si mesmos frente a outros, sem abandonar o contexto histórico ao que pertencem. Esta representação se manifesta em níveis diversos, chegando, às vezes, a ser considerada uma interpretação.

55

comentários dos atores sociais oferecem uma parte essencial da argumentação do filme:

o espectador espera ser testemunha do mundo histórico através da representação de uma

pessoa que mora nele, cuja autoridade textual é significativa.

No Modo Reflexivo a representação do mundo histórico se converte, em si

mesma, no tema de meditação cinematográfica. Os textos reflexivos são conscientes de

si próprios não só no que diz respeito à forma e estilo, mas também no que diz respeito

à estratégia, estrutura, convenções, expectativas e efeitos. São os processos de

negociação entre cineasta e espectador que se tornam o foco de atenção, priorizando a

relação realizador/espectador e não a realizador/sujeito. O reflexivo estimula no

espectador um estado de consciência intensificada a respeito de sua relação com o

documentário e aquilo que ele representa. A montagem incrementa a sensação de

consciência, porém uma consciência do mundo cinematográfico e menos do mundo

histórico.

O Modo Performativo sublinha a complexidade de nosso conhecimento do

mundo ao enfatizar suas dimensões subjetivas e afetivas. O documentarista e seus

questionamentos particulares são o centro de um filme narrado na primeira pessoa.

Dirige-se ao espectador de maneira emocional e significativa em vez de apontar para o

mundo objetivo que existe em comum. Os documentários performativos recentes tentam

representar uma subjetividade social que une o geral ao particular, o individual ao

coletivo e o político ao pessoal.

As características de cada modo funcionam como dominantes no documentário,

elas dão estrutura ao filme, mas não determinam todos os aspectos da sua organização.

Por isso é possível reconhecer num mesmo documentário mais de uma modalidade de

representação.

O documentário sempre se apresentou como um formato híbrido. Na América

Latina, a urgência por denunciar realidades adversas em condições de produção

desfavoráveis, levou à mistura de estilos e técnicas, na intenção de juntar formas

pertinentes à intencionalidade enunciativa. Ainda nos anos 60, período em que surge

uma contra-narração própria da cinematografia latino-americana, as práticas de

resistência inscritas nestes filmes variam de uma região a outra, se expressam em

diversos gêneros cinematográficos e se inspiram em estratégias estéticas variadas.

A influencia das teorias neo-realistas, interessadas em narrar a realidade social

dos setores mais populares, levou a que na ficção se utilizasse uma linguagem mais

56

própria da escritura documental, trocando sets e cenários por locaçoes naturais com ruas

e casas verdadeiras, filmadas por uma câmera na mão, com inclusão de atores não-

profissionais e som direto.

Um dos maiores exemplos desta tendência é a cinematografia cubana. A

importância moral que a revolução dava ao documentário levou a que na ficção sempre

existisse uma referência documentária – empenhada em conseguir na tela “a impressão

de verdade”, em vez da enganosa “ilusão de realidade” –. A incorporação, dentro de

uma ficção narrativa, de passagens documentais com depoimentos de atores sociais ao

serviço da reconstrução histórica são exemplos disto. No caso do documentário,

também se encontram estruturas mais próprias da ficção num grande número de obras

latino-americanas, fazendo do documental uma ficção, e vice-versa.

Desde a experiência de hibridação cubana do primeiro período da revolução,

com o trabalho de Sara Gómez e Tomás Gutierrez Alea; passando pelas experiências de

Sanjinés na Bolívia, de filmes brasileiros como Iracema: Uma transa amazônica (Jorge

Bodansky, Orlando Senna, 1974), mexicanos como Del olvido al no me acuerdo (Juan

Carlos Rulfo, 1999) ou argentinos como Los rubios (Albertina Carri, 2003); na América

Latina, desde sempre, a divisão entre documentário e ficção nunca fez muito sentido26.

A experiência cultural do colonialismo, vivenciada pelo conjunto da América

Latina, também contribuiu para o desenvolvimento de práticas artísticas definíveis

justamente pela incorporação e mistura de tendências diversas. Os artistas, na cultura

dominada, desenvolveram estratégias de produção baseadas no sincretismo e na

antropofagia cultural.

A influência de uma cultura dominante exógena produz uma cultura local

heterogênea, onde os conceitos com os que, embora de uma forma desigual, se convive

e se dialoga em forma intensa, transformaram-se através dos anos numa importante

26 As teorias estruturalistas consideram todo filme como ficcional, pois as imagens são sempre uma “ausentificação” do que mostram, ou seja, ontologicamente falsas. Neste sentido, a ficção oferece, através de processos narrativos, acesso a um mundo fictício e o documentário acesso a representações do mundo histórico. Para Nichols, documentário e ficção são homólogos em quanto à estrutura textual; a diferença entre eles se apresenta no regime discursivo e no tipo de engajamento a que convida. Em termos de tipo de discurso existe a adesão a códigos perceptíveis na superfície do filme, como a motivação de movimentos de câmera, de duração dos planos e da natureza dos cortes, códigos que variam segundo a época, contexto, estilo e modo de representação. As marcas na superfície do filme induzem a diferentes modos de ver, ouvir e pensar – diferentes formas de engajamento por parte do espectador-, seja um engajamento retórico ou um engajamento com o mundo histórico (Da-rin, 2004). As experiências de hibridação entre os registros de ficção e do documentário na América Latina descritos acima, dizem respeito ao regime discursivo dos filmes.

57

referência cultural. Esses elementos da cultura exógena podem ser assimilados como

rejeitados. Mais existe também a possibilidade da apropriação cultural, como uma

forma de indagar o passado cultural e a história da cultura para entender esta amálgama

y poder definir tanto o nacional como a identidade desde um ponto de vista político.

Como é impossível haver uma recuperação não-problemática das origens nacionais,

livres das impurezas das influências externas, devorar antropofagicamente diversos

estímulos culturais em toda a sua heterogeneidade, desde uma posição de autoconfiança

cultural, se tornou una estratégia artística na América Latina. Já que o continente se

alimenta de uma cultura dominante estrangeira, porque não, em vez de ignorar sua

presença, reciclar os materiais para fins nacionais, postulou o movimento tropicalista

brasileiro dos anos 60, trazendo consigo uma serie de produções ricas em sincretismos

cinematográficos, tanto de uma perspectiva temática quanto formal.

Hoje, antropofagia e sincretismo estão mais do que presentes no documentário

contemporâneo. O formato se apresenta híbrido, misturando o registro do mundo

histórico com representações ficcionais, autor com personagem, e subjetividade

interpretativa com objetividade factual.

Partindo, então, da premissa de que a produção documentária latino-americana

atual, num primeiro momento, não pode definir-se em termos de estilos, pretende-se

pesquisar a estrutura do relato, com a intenção de identificar as formas predominantes

na narrativa e na montagem das obras contemporâneas.

Montagem e Documentário

Ao falar em montagem nos referimos a um processo que se compõe de três

grandes operações: seleção, combinação e junção. Mediante um processo criativo de

articulação de material audiovisual cria-se um novo espaço-tempo idealizado e lógico

que representa uma continuidade aparente. (SANCHEZ, 1985).

Não somente ordenações temporais, mas também relações, associações

(emocionais ou intelectuais) que não eram visíveis nos planos soltos do material de

câmera, se tornarão presentes na montagem. A união de determinados planos produz

significados simbólicos, metafóricos, sentimentais.

58

Uma das funções da montagem é a ordenação rítmica. Entende-se por ritmo a

tensão produzida entre uma constante em relação com outra constante que surge no eixo

temporal. Qualquer repetição periódica faz nascer um ritmo; esta repetição pode ser

visual, sonora, temática ou narrativa. Ao produzir-se uma tensão dramática cujo

desenlace é seguido de uma nova tensão e assim sucessivamente, cria-se uma forma

rítmica. O ritmo acentua, dá compasso e tempo às seqüências. O ritmo é a respiração do

filme.

O tipo de leitura que o espectador faz de um filme depende, em grande parte do

ritmo, mas também da valoração dada às informações contidas no interior do plano. A

interrupção de uma cena antes de poder ser absorvida a informação da imagem,

surpreende; continuar observando um plano que, em princípio, já foi observado na sua

totalidade e “nada mais aporta”, também produz desconcerto. Ambas as situações

modificam o valor do plano, produzindo, assim, novas significações.

Na produção audiovisual contemporânea é possível reconhecer a presença de

duas teorias de montagem com funções antagônicas. Por um lado, a função narrativa da

montagem e, por outro, a função de articulação de sentido na montagem de Eisenstein.

Além delas, pouca é a discussão teórica que prevalece em torno de outras teorias de

montagem.

A teoria de André Bazin, sublinha a função narrativa na qual a montagem está a

serviço da produção de sentido num espaço-tempo. Em Bazin tem origem o conceito de

“transparência”, que estabelece que o filme tem como função essencial deixar ver os

acontecimentos representados e não se deixar ver a si mesmo Nas seqüências montadas

sob o princípio de transparência cada plano continua a ação do seu antecessor.

Fundamental para a criação artística será a seleção que se faz da realidade e não a sua

transformação. Trata-se de uma montagem que pretende representar fielmente a

realidade, e não se interessa pela articulação de um sentido próprio do suporte de

representação que a sustenta. As decisões de montagem têm a ver com a significação

dos fatos filmados, com a reprodução de nossa maneira de perceber os fatos reais. As

trocas de plano reproduzem nossa maneira de olhar, e são o método mais correto para

expressar a passagem de nossa atenção de uma imagem à outra. Bazin inclina-se por um

cinema realista e defende o uso da profundidade de campo (plano seqüência) como

estrutura ideal de montagem, já que será aí que o espectador terá liberdade de atenção,

59

da mesma forma como acontece na realidade empírica do seu cotidiano (DUDLEY,

1993).

Para Sergei Eisenstein, a montagem é um fim em si mesmo. Trata-se de uma

forma de articulação de sentido e não de um meio cuja finalidade é estruturar uma

narração que se identifique com o mundo real. Eisenstein vê o cinema como um

discurso articulado com significação própria. Para ele, o cinema tem a obrigação de

intervir na realidade, de refleti-la ao mesmo tempo em que emite um juízo ideológico

sobre ela. Considera o exercício da montagem um gerador de novas significações. A

continuidade narrativa é dada por uma série de choques entre fragmentos do filme, que

criam uma impressão nova na mente do espectador. Estes choques articulam novas

significações, e na totalidade do filme cria-se um novo discurso, exclusivo da estrutura

fílmica. Este novo significado se forma com a ajuda do espectador, já que é na sua

mente onde será feita a leitura do choque de planos; o público participa emocional e

intelectualmente do processo criativo. “A força da montagem reside no fato de que faz

participar às emoções e a razão do espectador. O espectador deve percorrer o caminho

da criação que o autor percorreu ao criar a imagem” (EISENSTEIN, 2001, p. 101)27.

Assim, a montagem torna-se o princípio de vida que dá sentido às tomadas primarias.

A montagem tem a função instrumental de incentivar a capacidade intelectual do

espectador, pela sua capacidade de abstração simbólica, podendo assim, transmitir

idéias e conceitos abstratos. A montagem entendida como o instrumento de uma forma

de pensamento do conflito, ou seja, da dialética, levou Eisenstein a desenvolver sua

teoria sobre montagem intelectual. O tratamento da imagem com o fim de fazê-la apta

para transmitir conceitos abstratos e a operação de choque que tem lugar entre os planos

permite a atração intelectual entre os componentes mínimos interiores al plano.

Segundo a definição de Bill Nichols, o documentário corresponde a um discurso

do real, que será estruturado com base numa argumentação que pertence ao mundo

histórico e não a um mundo imaginário. A ordem destas argumentações está dada por

uma montagem provatória, cuja intenção é convencer ao espectador da argumentação

apresentada. O mundo histórico, então, é a base da representação documental, e a

argumentação é “uma exposição de provas com o objetivo de transmitir um ponto de

vista particular e constitui a espinha dorsal organizativa do documentário” (NICHOLS,

27 EISENSTEIN,S.M. “Montaje 1938”. In:GLENNY, Michael & TAYLOR Richard (Org.). S.M. Eisenstein. Hacia una teoría del Montaje. Volumen II. Barcelona: Paidós, 2001.

60

1997, p. 169). A montagem provatória está em função da argumentação, permitindo a

justaposição de imagens e sons que salta no espaço-tempo de forma intermitente, a

continuidade se produz pela lógica dos argumentos “[...] os sons e as imagens se

sustentam como provas e são tratados como tais, em vez de como elementos da trama”

(NICHOLS, 1997, p. 50). Qualquer tipo de junção é válida desde que existam provas que

permitam que a coerência argumentativa seja mantida.

A montagem no documentário consiste na organização de idéias subordinadas ao

desenvolvimento de um pensamento específico. Ao realizar saltos espaciais e temporais

na montagem, que não correspondem ao desenrolar lógico dos acontecimentos, a

imagem que antecede adquire um valor e uma compreensão dada pela imagem

posterior; trata-se aqui de uma lógica de implicação.

As relações que se estabelecem entre os planos na montagem provatória,

característica no documentário, lembram o conceito de montagem intelectual,

desenvolvido por Eisenstein. Ele parte de uma série de imagens que não se

correspondem no mundo físico, para uni-las conforme uma concepção intelectual: “A

justaposição de dois planos unidos é uma criação, é mais do que a simples soma de um

plano e outro” (EISENSTEIN, 1986, p. 63).

A montagem intelectual no documentário ressalta a qualidade evidente ou

construída de uma argumentação, baseada em representações do mundo histórico. As

justaposições de imagens ocorrem em função da elaboração de argumentações assim

como na montagem provatória.

A montagem provatória organiza suas argumentações de acordo com uma

reconstrução fiel do mundo representado. A montagem intelectual constrói a

representação visual do mundo, provocando um transtorno ou desequilíbrio em relação

às normas, suposições ou expectativas que prevalecem no espectador. Trata-se de uma

reflexão formal, cujas associações não são reconhecíveis para o espectador, mas sim

desconcertantes. Uma montagem que consegue seu efeito através de justaposições

incomuns.

A montagem intelectual também pode ser provatória. Ambas baseiam-se na

justaposição de idéias. No caso da montagem provatória, os argumentos elaborados se

apresentam de forma implícita ou explícita na obra documentária. No caso da

montagem intelectual, os argumentos formam parte de um processo que acontece no

espectador, a partir da justaposição de planos que representam conceitos.

61

Na ficção narrativa clássica a lógica de reconstrução busca simular nossa

maneira de ver e mover-nos pelo mundo real. No documentário, esta lógica reproduz

uma forma de pensar, de fazer associações, de reunir provas e elaborar um argumento

para construir um discurso, em que “as técnicas narrativas clássicas sofrem uma

modificação significativa” (NICHOLS, 1997, p. 50). A montagem tenta acumular a maior

quantidade possível de provas que sirvam para sustentar a argumentação do realizador.

Quanto maior for o número de provas, maior será a validade da argumentação e maiores

também as possibilidades de que esta argumentação venha a se tornar convincente. As

argumentações que compõem sua estrutura são abstratas e para poder transmitir seu

significado, a maioria dos documentários, faz uso da banda sonora. Em especial, a

palavra falada é um recurso fundamental para a exposição de idéias. As cenas de um

documentário estão mais firmemente organizadas em torno ao princípio do som ou do

comentário falado, do que as cenas de ficção.

É através da palavra que surge, geralmente, o autor no filme. O recurso da voz

em off lhe permite expor idéias que escapam à mera observação das imagens; neste

espaço, o autor manifesta o seu ponto de vista em relação aos temas expostos. A relação

da voz off com o resto do texto fílmico pode ser contida, caso em que se entregam

indícios que complementam a imagem; como também pode subordinar à imagem,

unificando cenas ou simplesmente fazendo da imagem a ilustração da palavra falada.

A entrevista também é uma manifestação da palavra, neste caso da palavra

filmada. A entrevista no documentário tem a especificidade da presença visual. A

fisionomia, linguagem, gestos, emotividade, assim como o entorno da fala, expressam

dados do entrevistado, só visíveis para o espectador na entrevista como registro visual.

As diferentes maneiras de expressão aportam textura à palavra, sendo fundamentais para

a credibilidade retórica da fala.

A organização do material de arquivo na montagem, em muitas ocasiões, se vê

condicionado à palavra, seja do autor, no rol do narrador, ou de um dos entrevistados.

Aplicação de um modelo de análise

Mesmo que qualquer junção justifique uma argumentação é possível distinguir,

na montagem de um documentário, elementos discursivos que, nas suas diversas

62

combinações, constroem a narrativa. Atendendo às características destes elementos

comuns foi construído um modelo de análise que consta de três categorias:

AS MARCAS DE AUTORIA

As marcas de autoria correspondem aos aspectos que o realizador deixa passar

para a obra, ao reconhecimento da marca do autor a partir de diferentes perspectivas da

narração.

A entrevista é a voz do personagem; tem um lugar singular dentro da enunciação

diferenciando-se de outras vozes por seu caráter testemunhal. Sua função no

documentário é a de emitir uma opinião sobre o tema que não será entendida como a

opinião do realizador. O discurso testemunhal permite um aceso mais direto ao

entrevistado, rico em autenticidade e credibilidade pela falta aparente de mediação entre

o espectador e o entrevistado.

A informação recebida através de uma entrevista, terá para o espectador um

valor diferente do comentário em voz off. Para o espectador, a entrevista é uma fonte

direta de informação, que não está filtrada pelo olhar do realizador. As reconstruções

baseadas em fontes testemunhais asseguram um sentido e por isso sustentam a ação:

Trata-se de um sistema de certezas, mais que de hipóteses.

Uma outra forma da entrevista se encontra nos depoimentos dos especialistas,

cuja opinião se sustenta na autoridade que cria o conhecimento profissional. Eles que

contribuem para o relato com informações de uma perspectiva que não os compromete

emocionalmente.

A natureza do material se refere ao tipo de registro; se é um registro do mundo

histórico ou uma encenação, se são imagens atuais ou não.

A aplicação deste modelo permite reconhecer, no documentário, elementos

comuns a todo o conjunto, elementos estes, que, nas suas múltiplas combinações,

permitem identificar as figuras de montagem que articulam a construção fílmica.

A ENTREVISTA A NATUREZA DO MATERIAL

63

MODELO DE CATEGORIAS:

Uso de caracteres Animação Encenação

Registrado para a obra

Registrado para outros fins

Construído para registro

NATUREZA DO MATERIAL

De arquivo em movimento De arquivo em foto fixa

Centrada num único personagem

Vários personagens em torno de uma temática comum

Em ordem sucessiva Em ordem intercalada

Centrada em personagens secundários

A ENTREVISTA

História do personagem Tema conduzido pelo personagem

Olhar do autor

Intervenção do autor na narrativa

Lugar do autor na narração

MARCAS DE AUTORIA

Endógeno Exógeno

Manifesta Oculta

Presente Ausente

64

1. A PRESENÇA DE MARCAS DE AUTORIA

Nesta categoria destacam-se três aspectos:

a. O olhar do autor

b. A intervenção do autor na narrativa

c. O lugar do autor na narração

a. O olhar do autor

Refere-se à forma como o realizador está vinculado ao tema da sua obra, sob que

perspectiva ele observa a história que está sendo contada. O lugar desde o qual o autor

observa e trabalha determina características importantes da obra que elabora.

Este olhar pode ser endógeno, isto é, observa a realidade de dentro da situação,

participando dela, ou exógeno, referindo-se a uma observação distante, evidenciando

que se trata de uma realidade que lhe é desconhecida.

A distância existente entre o documentarista latino-americano e o tema da sua

obra é variável; porém, as temáticas originadas na realidade latino-americana são

praticamente uma constante. Os cineastas latino-americanos as vêem como parte de um

projeto nacional.

Geralmente, os autores trabalham temas que afetam a realidade dos seus países,

filmam e estruturam discursos sobre suas realidades culturais ou referentes à

idiossincrasia do país que habitam. Exemplo disto é Notícias de uma guerra particular

(João Moreira Salles / Kátia Lund, Brasil, 1999), que discute a violência urbana no Rio

de Janeiro a partir da necessidade dos autores de documentar acontecimentos que fazem

parte das preocupações da sociedade carioca. Moreira Salles (apud Avellar, 2003, p.248)28

refere-se a este documentário como “Um filme de urgência, onde duas pessoas, de uma

semana à outra perceberam que Rio de Janeiro se convertia numa cidade conflagrada e

quiseram de alguma maneira dar testemunho disto”. Os realizadores manifestam sua

28 AVELLAR, José Carlos. “João Moreira Salles”. In: PARANAGUÁ, Paulo (Org.). Cine documental en América Latina. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003.

65

necessidade de documentar os acontecimentos que comovem aos grupos a que

pertencem.

Muitos documentários latino-americanos abordam o tema de uma perspectiva

afetiva. A forma de aproximar-se e perceber a situação corresponde a um olhar

subjetivo. Ao assistir a esta interpretação subjetiva, o espectador obtém um

conhecimento de caráter marcadamente afetivo.

É o caso do documentário Aquí se

construye (Ignacio Agüero, Chile, 2000),

história sobre demolições de casas antigas para

a construção de prédios modernos em alguns

bairros de Santiago; o ponto de vista da

narração corresponde ao olhar da comunidade

afetada pelo problema. Por intermédio de um

personagem central, toma-se conhecimento da

maneira como a situação afeta o grupo

familiar; e por intermédio de seqüências de

demolições, generaliza-se o problema.

O espectador toma consciência do barulho ensurdecedor, da poeira, da força

destruidora das máquinas, assim como se sensibiliza com as mudanças forçadas dentro

do núcleo familiar. A montagem subordina-se ao olhar subjetivo, construindo

seqüências dramáticas que conseguem transmitir as sensações vividas pelos

personagens. A intencionalidade não se encontra na explicação do fenômeno na sua

totalidade, e sim, em como este afeta as pessoas em particular.

O olhar exógeno apresenta-se quando se filmam mundos alheios ao

documentarista, como no caso dos filmes etnográficos ou dos filmes de viagem. Uma

boa quantidade de filmes, sobre a América Latina, feitos por documentaristas de

“passagem” são representativos deste olhar exógeno, e correspondem a uma tradição

praticada já no cinema dos primeiros tempos.

No geral, estes filmes têm um tratamento temático que opera com um

distanciamento pedagógico, sem levar em conta o momento da aproximação entre o

autor e seu objeto. Busca-se uma suposta transmissão de informações imparciais, mas

que não consegue se libertar de um tipo de compreensão determinada pelo campo

66

cultural do forasteiro. Muitos destes filmes correspondem à modalidade expositiva, que

dependem de uma lógica transmitida verbalmente, à maneira de um comentário que

adota o lugar da “voz de Deus”.

Os autores latino-americanos, quando optam pelo tratamento exógeno,

pareceram se interessar pela elaboração de obras estandardizadas, que quando alinhadas

a um modelo de representação dominante, não apresentem dificuldades para uma

eventual distribuição no mercado mundial, principalmente televisivo e das novas

mídias.

O aumento e a rapidez do fluxo de imagens que as novas tecnologias

possibilitam trazem consigo a discussão sobre a equidade desta troca. No cinema, na

televisão, assim como nas novas mídias existe a tendência a um fluxo unilateral. Na

América Latina, o alto consumo de produtos audiovisuais norte-americanos ou

europeus, fazem que as imagens que os próprios latinos constroem de si mesmos, em

muitos casos, correspondam a padrões estabelecidos por este olhar alheio. Os limites do

olhar endógeno e do olhar exógeno se tornam aqui mais sutis e ligados a fatores

relacionados diretamente à dominação ideológica.

O filme brasileiro O prisioneiro da

grade de ferro (Paulo Sacramento, 2003),

documentário que revela a intimidade e a

rotina da vida no cárcere através do ponto de

vista dos detentos, desloca os parâmetros que

delimitam as fronteiras entre o exógeno e o

endógeno diferenciando entre grupos com

diversas realidades sociais. Como estratégia

para modificar seu olhar inevitavelmente

exógeno, o autor ensina aos detentos a utilizar

câmeras de vídeo para documentar o seu

cotidiano.

Este deslocamento do sujeito da enunciação resulta do reconhecimento por parte

do autor da distância que existe entre ele e a realidade a ser representada, até o ponto de

entregar o poder da câmera legitimando, assim, a autonomia narrativa dos personagens.

67

O filme procura um olhar que venha de um entendimento endógeno dessa realidade, a

partir do reconhecimento das limitações inerentes ao habitus do autor.

b. A intervenção do autor na narrativa

Geralmente, o autor documental interfere na realidade filmada no momento de

dar-lhe uma estrutura ao seu relato, ou seja, na hora de realizar a montagem.

A intenção a partir da qual o autor reconstrói a realidade pode ser classificada

em duas categorias: manifesta ou oculta.

A intervenção manifesta encontra-se em estruturas dramáticas que constroem

uma nova realidade fílmica, sem interessar-se pela representação fiel do mundo

histórico. As imagens se sucedem conforme as associações de um autor que reflete

sobre a realidade e explicita esta reflexão na sua obra. A presença do autor no texto é

uma forma de evidenciar o suporte fílmico, e estas marcas no filme caracterizam a

reflexividade na obra.

A intervenção oculta faz referência a estruturas que através da montagem

procuram representações similares às já existentes no mundo. O autor torna-se um

observador cuja intenção é revelar o observado, sem manipulações.

A intervenção manifesta aproxima-se da representação artística, porque

transforma a realidade deixando marcas de autoria. A intervenção oculta aproxima-se do

jornalismo “puro”, pela intenção de reproduzir a realidade evitando as interpretações

subjetivas.

Ainda que exista uma maioria de relatos nos que o autor opta pela intervenção

oculta, como os documentários de observação influenciados pelo Cinema Direto, muitas

das obras incluem seqüências que delatam o autor. A descontextualização de imagens, a

quebra das regras de raccord29 e a presença de jump cuts30 destroem a idéia de

29 A prática do raccord se refere a um tipo de montagem na qual as mudanças de planos são, tanto quanto possível, apagadas como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa visual. Noel Burch (1969, p. 29-30) o define como elemento de continuidade entre dois o mais planos, que contribui para tornar imperceptíveis as mudanças de plano com continuidade ou proximidade espacial. Existem raccords no eixo, sobre um movimento, sobre um gesto ou sobre um olhar. Quando uma mudança de plano escapa à lógica da transparência se fala de falso-raccord. 30 O Jump Cut é um falso-raccord que consiste em montar dois planos que são fragmentos da mesma tomada de cena, eliminando uma parte dessa tomada e conservando o que vem logo antes e logo depois.

68

transparência, de negação da montagem. Deixa-se, então, em evidência o corte, a

“manipulação” do material.

Noticias de uma guerra particular (João Moreira Salles / Kátia Lund, Brasil,

1999) é um exemplo de intervenção oculta, sustentada na intenção do autor de registrar

uma realidade para que o público se enfrente diretamente com ela; o documentarista

abre mão de vários elementos que lhe dão o poder de intervir na história em troca de

alcançar uma veracidade maior.

Um exemplo de intervenção manifesta é o documentário Señorita extraviada

(Lourdes Portillo. México, 2001), que narra o caso de centenas de mulheres jovens

seqüestradas e assassinadas em Ciudad Juárez. As seqüências são compostas

principalmente por imagens em primeiro plano, nas quais o contexto perde importância.

São imagens isoladas, unidades únicas,

cuja organização seqüencial sugere apenas os

fatos acontecidos.

Señorita extraviada apropria-se de

imagens que, na primeira cena, fazem parte do

conteúdo temático da história, convertendo-as

em símbolos das cenas seguintes. No início do

filme, uma mãe conta que a sua filha

desaparecida trabalhava numa sapataria, a

imagem mostra um primeiro plano de sapatos

na vitrine de uma loja. Numa outra cena que

também inclui sapatos, informa-se que os

corpos das vítimas são reconhecidos pela vestimenta. O conceito desta imagem repete-

se adotando diversas formas: sapatos velhos abandonados, pés femininos calçando-se,

novamente os sapatos da vitrine etc. O conceito vira um símbolo que se associa à idéia

de mulher desaparecida. O filme volta a utilizar o recurso com outra imagens, às que

também atribui um papel simbólico.

Este empalme produz uma espécie de salto dos objetos que estão na imagem. O Jump Cut foi introduzido pela Nouvelle Vague francesa na década de 60, e é também considerado um raccord.

69

c. O lugar do autor na narração

O autor pode se manifestar na narração de duas maneiras: ausente ou presente.

Fala-se de um autor presente quando este narra na primeira pessoa, evidenciando a sua

presença no lugar dos fatos e se convertendo em parte integrante do relato. Já o autor

ausente não se manifesta como participante na elaboração do discurso.

A apreciação subjetiva dos acontecimentos por parte do autor fica em evidência

quando este se faz presente na narração. O autor torna-se presente pela narração na

primeira pessoa, que apela à sua presença no lugar dos acontecimentos. Esta presença

pode ser referencial, quando expõe sua opinião através de um texto em off, colocando

ênfase na sua apreciação subjetiva com frases como: “Quando cheguei aqui pela

primeira vez...”, ou “Depois de dezoito meses filmando este documentário...”; por outro

lado, o autor pode se envolver de um modo auto-referencial, neste caso além de

narrador, ele passa a ser também personagem central do relato.

Esse é o caso de Papá Iván (María

Inés Roque, México/Argentina, 2000),

testemunho de vida da filha do guerrilheiro

montonero Iván Roque, morto em combate,

o Iván do título e pai da realizadora. O

filme expõe o difícil relacionamento de uma

filha com seu pai heróico e mitificado, ao mesmo tempo em que revela a reflexão, não

só de uma filha, mas de toda uma geração, sobre o que significou o abandono, a

ausência, a tragédia, o exílio, a morte. Através da leitura da carta que Iván deixou aos

seus filhos – fio condutor do filme – e por meio de entrevistas com aqueles que

conviveram com ele, a autora se introduz no passado e nos sentimentos contraditórios

que a história lhe produz.

O relato, similar à estrutura de uma pesquisa jornalística, leva a

autora/personagem de um lugar ao outro em busca de testemunhas que possibilitem a

reconstrução da personalidade de seu pai, assim como também dos acontecimentos que

o levaram à morte.

70

A autora, como personagem central, assume a

narração da história de uma perspectiva auto-

referencial, manifestando-se de diferentes modos. A

voz off das suas reflexões íntimas sobre imagens

subjetivas, quase abstratas, é a mais evidente. Trata-se

de um narrador que se emociona, que embarga a voz:

“Meu pai morreu no dia 29 de maio de 1977”, se

escuta no inicio do documentário. Papá Iván faz do

autor tanto seu tema como a perspectiva de onde é

feita a narração: a experiência de vida da própria

realizadora.

Documentários auto-referenciais têm ocupado cada vez mais o cenário

documental contemporâneo. Na América Latina muitos destes filmes utilizam esta

narração subjetiva para tratar questões de memória, muitas vezes ligadas à experiência

coletiva de ditaduras militares que atingiram um bom número destes países. O uso do

testemunho para denunciar arbitrariedades e a valoração da experiência individual

servem nestes casos para criar redes e pensar a memória em termos não só coletivos

como históricos.

Los Rubios (Albertina Carri, Argentina, 2003), cuja temática dialoga com Papá

Ivan, vai além da auto-referência. No filme, a autora não só faz parte da narrativa, ela

também está representada ficcionalmente por uma atriz, enfatizando a reflexividade ao

evidenciar tanto a representação da atriz, como o processo de produção da obra. A auto-

representação no filme é utilizada por Albertina Carri para questionar não só o sistema

de representações em que está baseado o documentário, também se questionam aqui a

veracidade de depoimentos baseados nas lembranças fragmentadas, assim como a

memória, que quando suas fontes são diversas pode se tornar também enormemente

ficcional.

Quando o autor está ausente na história narrada, o relato pode estruturar-se com

ou sem narrador off. A narração off, neste caso, procura uma posição neutra, informativa

e distanciada emocionalmente dos conteúdos expostos. A voz off como recurso

narrativo foi utilizada durante muitos anos de uma maneira excessiva, saturando as

imagens com textos explicativos que dificultam o aprofundamento na leitura

71

interpretativa do espectador. Este recurso superou, nas últimas décadas, o abuso e

maneirismo a que fosse submetido durante tanto tempo. Muitos documentários o

eliminam por completo, ou o utilizam de maneira discreta como complemento ou

contraponto em passagens especificas.

Na ausência de uma voz off narradora, este lugar é freqüentemente cedido à voz

dos personagens: os entrevistados. A utilização de entrevistas no documentário é um

traço distintivo das produções contemporâneas.

2. O DOMÍNIO DA ENTREVISTA

Com a aparição do som direto a entrevista começou a ser utilizada

frequentemente. A escola de Cinéma Vérité, comandada por Jean Rouch, a utilizou

exaustivamente, sustentando a narrativa através de verdadeiros diálogos entre

entrevistados y realizador. Atualmente parece quase impensável uma estrutura

documentária sem entrevistas.

Nesta categoria, observam-se três formas de articular a entrevista:

a. Centrada num único personagem

b. Vários personagens em torno de uma temática comum

c. Centrada em personagens secundários

a. Entrevista centrada num único personagem

Existem documentários em que um dos personagens entrevistados destaca-se dos

outros. A entrevista, neste caso, será intercalada desde o principio até o final do filme.

A opção de centrar a entrevista num único personagem tem duas funções. A

primeira acontece quando o tema do documentário é a própria história de vida do

72

entrevistado, como no caso das biografias. A segunda origem se manifesta quando o

filme desenvolve um tema através da vivência particular de um personagem; a estrutura

narrativa se sustenta num personagem central, que servirá de fio condutor do tema. A

particularização de uma problemática através de um personagem específico dá uma

identidade ao problema exposto, sensibilizando o espectador com o tema através da

identificação emocional com o personagem.

As entrevistas centradas num personagem único, geralmente se desenvolvem

dentro da seqüência e do contexto de uma atividade. Eventualmente são registradas

entrevistas em espaços neutros, as que serão utilizadas pela montagem para separar uma

seqüência de outra.

O filme Gabriel Orozco: Un proyecto fílmico documental (Juan Carlos Martin,

México, 2002), que trata da vida e obra do reconhecido artista plástico, centra a

entrevista num único personagem.

A entrevista aqui adquire diferentes

formas, para evitar a repetição e a monotonia.

Distinguimos as seguintes figuras:

1) Depoimento em on quando o artista fala da

sua vida, depoimento em off quando fala de sua

obra.

2) Seqüência de entrevista única, de longa

duração e com jogos de tensão ao interior do

plano – como a tensão entre um Gabriel Orozco

em on e uma equipe técnica perguntando,

comentando e rindo sempre em off –.

3) A terceira figura se estabelece com relação

aos personagens secundários que comentam a

obra do artista. Por efeito da montagem, a entrevista em estilo “ping pong”, faz dialogar

personagens secundários com o artista plástico.

73

b. Vários personagens em torno de uma temática comum

Aqui o interesse da obra centra-se num determinado tema, num acontecimento

ou num determinado lugar. Os personagens entrevistados são organizados na

montagem, conforme o tratamento temático do documentário.

A entrevista se articula de duas maneiras, dependendo se a prioridade temática

está num personagem ou num assunto determinado.

A primeira consiste em adotar uma ordem sucessiva, isto é, um personagem é

apresentado em forma completa numa única seqüência, que virá a ser sucedida por uma

próxima, apresentando já um novo personagem.

A segunda é em ordem intercalada, caso em que a entrevista é dividida pelo seu

conteúdo temático e reagrupada, construindo seqüências nas quais diferentes

entrevistados falam de um mesmo tema. Quando as entrevistas se montam de acordo

com o conteúdo temático, geralmente, trata-se de testemunhos agrupados em torno de

um fato passado ou presente, que será ilustrado através da observação dos sujeitos

entrevistados.

Nesta categoria, uma figura de montagem recorrente é o efeito “coral”, espécie

de conversação entre pessoas que foram entrevistadas em momentos e lugares

diferentes. Priorizar pelo conteúdo na organização das entrevistas no documentário,

construindo na montagem seqüências temáticas, é uma estrutura bastante usual não só

nas produções latino-americanas.

Nos documentários de entrevistas em ordem sucessiva, o foco de atenção está na

observação dos próprios personagens entrevistados, como no caso de Edifício Master

(Eduardo Coutinho. Brasil, 2001), documentário sobre o cotidiano dos moradores de um

prédio em Copacabana. O relato organiza-se num ordenamento sucessivo dos

personagens, sem que exista uma interação entre eles. A intencionalidade está no

resgate da experiência de vida, da opção testemunhal, mantendo a individualidade de

cada um dentro de seqüências fechadas.

Edifício Master é um documentário construído na base de entrevistas, uma

opção pela palavra filmada: “Filmar o que existe – é filmar o encontro, a palavra em ato,

o presente dos acontecimentos e a singularidade dos personagens, sem propor

74

explicações ou soluções” (LINS, 2003, p. 234)31. A entrevista é um ato que acontece no

momento do registro, e é isso o que interessa resgatar ao filme, o resultado da interação

entre a equipe de filmagem e a realidade observada. A narrativa se concentra no

presente da filmagem para extrair desse momento todo o possível, deixando de lado

narrações em voice-over, música incidental e imagens ilustrativas ou de cobertura.

Edifício Master se desenvolve num lugar fisicamente restringido, numa única

locação. Todas as imagens correspondem ao prédio e seus moradores, sendo

praticamente todos os planos interiores. A primeira imagem mostra, a traves do registro

de uma câmara de vigilância, a equipe de filmagem entrando pela porta principal; o

segundo plano deixa ver a mesma equipe no elevador; um terceiro plano seqüência de

um corredor interno inclui a única narração em off de todo o filme, na voz do próprio

Coutinho:

Um edifico em Copacabana, a um quarteirão da praia. Duzentos e setenta apartamentos. Uns quinhentos habitantes. Doze andares. Vinte e três apartamentos por andar. Durante um mês alugamos um apartamento. Com três equipes filmamos a vida por uma semana.

O quarto plano é a primeira entrevista do filme. A partir deste momento o relato

geral se estrutura de um modo bastante rigoroso, onde os personagens entrevistados são

mostrados em forma única e sucessiva, separados uns dos outros por curtas seqüências

do cotidiano dos lugares comuns do edifício.

O processo de montagem é essencial para manter a singularidade do

personagem; assim como também para a imparcialidade com que é tratado, refletido na

equidade das seqüências, que não dão lugar a generalizações ou classificações. Sem

existir interação entre os entrevistados, a intencionalidade está em resgatar sua

experiência de vida mantendo a sua individualidade dentro de uma única seqüência.

A entrevista se transforma na única forma de aproximação e conhecimento dos

personagens. O que é contado não se ilustra, nem com a introdução de cenas em outros

31 LINS, Consuelo. “Eduardo Coutinho”. In: PARANAGUÁ, Paulo (Org.). Cine documental en América Latina. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003.

75

lugares, nem com movimentos de câmera que acompanhem as descrições verbais.

Durante a entrevista sempre vemos ao entrevistado; as reconstruções visuais das

histórias contadas, por mínimas que sejam, ficam reservadas ao espectador.

Os personagens se constituem a partir do que eles contam sobre si mesmos, a

montagem esta em função da palavra, da entrevista em si, nela se encontra a história que

narra o documentário.

Assim, por exemplo, a seqüência de Henrique,

aposentado que comparte a sua solidão com as lembranças

de um duo que fez, anos atrás, junto a Frank Sinatra é um

retrato profundo e emotivo da vida de um dos habitantes

do Edifico Máster. Onze planos e oito perguntas são

suficientes para saber da sua biografia em geral, da sua

solidão, da saudade por tempos passados, além de

conhecer a anedota de quando junto a Sinatra cantou “My

way”.

As entrevistas delatam a presença do entrevistador,

cujas perguntas tornam-se um elemento importante na

condução narrativa. Percebe-se a intenção de mostrar que

o filme é o resultado de uma negociação entre o cineasta e os entrevistados, chegando a

ser incluída uma cena em que um entrevistado surpreende ao realizador com um pedido

de trabalho.

Eduardo Coutinho prioriza no filme pelo encontro que se produz entre

personagem e realizador no momento da filmagem. Neste sentido, prioriza a entrevista

mais que a iluminação, a posição de câmera ou os ruídos externos, fazendo da entrevista

o elemento central da estrutura da montagem.

c. Entrevista centrada em personagens secundários

Este caso se apresenta quando o protagonista da história é o autor. As entrevistas

aqui estão centradas nos personagens que o rodeiam, ajudando-o na construção da sua

história particular.

76

O autor, tanto protagonista quanto narrador auto-referencial, pode ser parte de

algumas cenas, estabelecendo diálogos com outros sujeitos, ou manifestando-se desde

uma narração em voice-over.

O relato geralmente toma a forma de uma investigação. Os entrevistados são

pessoas próximas, familiares ou amigos que acrescentam indícios não só reveladores da

história, como também inesperados para o próprio autor e condutor do relato. Este

caráter revelador faz os depoimentos determinantes para o seu ordenamento narrativo e

a maneira como estas revelações afetam o autor decidirá seus próximos movimentos.

As entrevistas são geralmente “situativas”, ou seja, aparentemente desenvolvidas

nos espaços naturais dos personagens, num ambiente espontâneo e coloquial. O

entrevistador se faz presente na tanto na imagem como com perguntas ou comentários

em voz off.

Encontramos aqui o documentário de busca definido por Jean Claude Bernardet.

Um certo tipo de projeto cinematográfico com um alvo bastante determinado mas

incerto:

Os cineastas não sabem se esse alvo será ou não atingido e não sabem de que forma será atingido. Portanto, a filmagem tende a se tornar a documentação do processo. Não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem), não há uma pesquisa previa; a pesquisa, que freqüentemente no documentário é anterior à filmagem, é a própria filmagem (BERNARDET, 2005, p.144)32 .

Os filmes 33 (Kiko Goifman. Brasil, 2004), projeto de um filho adotivo que se

propõe achar a sua mãe biológica, e Passaporte Húngaro (Sandra Kogut, Brasil, 2003),

projeto de uma brasileira descendente de húngaros que tenta obter a nacionalidade e o

passaporte húngaro, são dois documentários de busca em que as entrevistas estão

centradas nos personagens secundários.

Neste tipo de filmes todos os entrevistados têm a função em comum de

acrescentar informações que contribuam ao desenvolvimento da investigação. A

revelação das entrevistas pode mudar o rumo do filme, seja porque se entrega uma pista

completamente nova, ou seja, porque acontece justamente o contrário, se chega a uma

rua sem saída.

32 BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro”. In: LABAKI, Amir & MOURÃO, Maria Dora (Orgs.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac & Naif, 2005.

77

Tanto no Passaporte Húngaro como no 33 as entrevistas são encontros, que

geralmente não voltarão a acontecer no decorrer do filme. Quando os encontros se

tornam reiterativos, como no caso da Avó de Sandra Kogut ou da mãe adotiva de Kiko

Goifman, se apresentam como um retorno, ou seja, um reencontro que acontece numa

nova situação com novos antecedentes.

Nestes filmes os entrevistados sempre se mantêm num papel secundário na

narrativa, embora sejam determinantes para o desenrolar da historia. Não só pelas novas

informações que entregam, mas também pelo valor dramático que estas informações

podem acrescentar em termos narrativos.

3. A NATUREZA DO MATERIAL E SUAS POSSIBILIDADES

O material classifica-se segundo a sua natureza em três subcategorias:

a. Registrado para a obra

b. Registrado para outros fins

c. Construído para registro

a. Material registrado para a obra

Trata-se de material registrado da realidade, gerado com o propósito de ser

utilizado no mesmo documentário em que o encontramos.

Existem obras feitas só com este tipo de material. Muitos destes documentários

estruturam-se como uma reportagem, na qual realizador e espectador transitam juntos

descobrindo os acontecimentos. A ordem narrativa é cronológica e a montagem confere

ritmo à revelação dos fatos, respeitando a ordem especial. Qualquer tipo de mise-en-

scène é evitada já que o que se procura é transmitir uma visão o mais neutra possível do

mundo.

Os filmes latino-americanos influenciados pelo cinema direto correspondem a

este tipo de registro. Uma boa parte da produção chilena dos últimos anos, como Um

78

homem aparte (Perut e Osnovikoff, 2002), Trago dulce, trago amargo (Daniel Evans,

2003) Este año no hay cosecha (Vergara e Lavanderos, 2000), entre outros, fazem uso

de uma câmera leve que acompanha os personagens no seu cotidiano para realizar “um

cinema do presente dos indivíduos, vistos como personagens sociais” afirma Andréa

Molfetta, e continua “Para além da entrevista e sua interação, temos um incremento, o

seguimento observacional de horas. Os filmes se referem indiretamente ao formato

jornalístico do informe especial, ou reportagem em profundidade” (Informação verbal)33

Outro exemplo é Nema Problema (Foxley e Leighton, Chile, 2001),

documentário que acompanha a um grupo de refugiados da ex Iugoslávia na tentativa de

refazer suas vidas no Chile. A intenção dos autores é observar o processo de adaptação

desde seu inicio; sem emitir juízos relata os detalhes cotidianos do grupo, com o único

objetivo de reconstruir esse período das suas vidas.

No Brasil, algumas das produções do documentarista João Moreira Salles, como

Notícias de uma guerra particular (1999), Nelson Freire (2003) e Entreatos (2004)

também têm uma forte influência do direto.

As técnicas de “não intervenção” foram e continuam sendo bastante aplicadas

nas produções do continente, porém, existem casos em que o material é submetido a

processos de manipulação de imagem com uma intencionalidade conotativa. Observam-

se principalmente variações de velocidade das imagens, manipulação de textura e

modificação da cor.

b. Material registrado para outros fins

Um recurso muito utilizado nas produções documentais é a incorporação de

material de arquivo em movimento ou fixo. Sua procedência, geralmente, são

noticiários ou outras formas similares, como material jornalístico ou documento

histórico. Quando o material de arquivo corresponde a um conjunto de imagens

desconexas apresenta dificuldades de montagem, o que faz indispensável a presença de

um texto explicativo – seja a maneira de comentário falado ou de texto escrito na

33 MOLFETTA, Andréa. O Documentário Chileno da atual democracia. Comunicação apresentada no XI Encontro Internacional da SOCINE / PUC-RIO DE JANEIRO / 2007.

79

imagem – para o entendimento da cena. A incorporação de uma trilha sonora também

contribui à unificação de cenas feitas a partir de material de arquivo.

O material de arquivo que representa a realidade é utilizado como prova

testemunhal de um fato, enquanto que o material ficcional se introduz como uma

interpretação metafórica do autor.

A introdução de material de arquivo é uma constante no documentário latino-

americano. Existe a tradição de misturar diversos suportes, muitas vezes conseqüência

da falta de recursos que afeta os documentaristas. Isto gera, ao mesmo tempo, uma

enorme criatividade, já que tudo é válido: mistura de jornais, revistas, fotos, pinturas,

imagens em movimento de telejornais, documentários ou filmes de ficção.

No documentário latino-americano predominam duas figuras de montagem que

incluem material de arquivo. Ambas se estruturam em combinação com a entrevista. Na

primeira, a narração sustenta-se nas imagens de arquivo e as entrevistas são

testemunhos ou informações factuais que complementam as imagens; um exemplo desta

estrutura é o documentário A negação do Brasil (Joel Zito Araújo, Brasil, 2001) análise

sobre o papel do ator negro nas novelas brasileiras, que usa as cenas televisivas como

sustentação da análise e recorre às entrevistas como uma complementação de casos

específicos.

Na segunda figura de montagem, quem narra são os personagens entrevistados e

as imagens de arquivo fortalecem a informação do testemunho; Historias cotidianas

(Andrés Habegger, Argentina, 2000) narra a história de vida de seis filhos de pessoas

desaparecidas durante a última ditadura militar argentina; o relato destaca aqui o

testemunho dos personagens entrevistados e se apóia em imagens de arquivo para

documentar os detalhes da vida pessoal e os períodos históricos aos que faz referência.

Muita da produção latino-americana da década de 70 justificou nas suas

carências a mistura de suportes diversos em prol da construção de um discurso claro e

definido. La hora de los hornos, assim como uma boa parte da obra documental de

Santiago Alvarez – Now (1965), LBJ (1968), 79 primaveras (1969), El sueño del pongo

(1970), etc. – são exemplos de um minucioso trabalho de manipulação e

homogeneização de material de arquivo das mais variadas origens.

Nas últimas décadas, o documentarista brasileiro Silvio Tendler tem

desenvolvido sua obra de reconstrução histórica baseada na montagem de material de

arquivo. No só os premiados documentários Os anos JK, Uma Trajetória Política

80

(1980) e Jango (1984), também os contemporâneos Glauber O Filme, Labirinto do

Brasil (2004) e Milton Santos e o Mundo Global visto do lado de Cá (2006), fazem uso

de técnicas de montagem para estruturar o relato a partir de material registrado

originalmente para outros fins.

No Mundo Global Visto do Lado de Cá

intervenções gráficas, animações, comics,

publicidade televisiva, material de arquivo de

origens diversas, todos eles são recursos utilizados

como unidades de construção filmica e articulados

com o objetivo didático de transmitir conceitos

abstratos. Como, por exemplo, a desigualdade na

repartição das riquezas, se gráfica com um mapa que

mostra a distribuição de luz elétrica no mundo.

A diversidade na forma, dentro do mesmo filme, transforma-se numa opção

estética caracterizada justamente pela própria mistura.

O documentário de Tendler evidencia a escassez – como estética de resistência –

na própria narrativa, que se manifesta em duas frentes: Uma, política, sustentada na

denúncia do abismo existente entre o mundo do norte e o mundo do sul; e uma outra,

estética, que se apropria de material de arquivo das fontes mais diversas, rearticulando-o

numa nova leitura.. A utilização de material de arquivo fora de seu contexto original,

permite estabelecer novas relações, agora num novo contexto. Acontece um processo de

revalorização das representações impressas no material, onde a conotação da imagem se

modifica.

Esta operação de revalorização do material revela não apenas a influência de

Eisenstein e Vertov no entendimento da função da montagem, mas também da

linguagem publicitária, assim como da própria experiência cinematográfica latino-

americana:

As formas de composição que surgem na América Latina da relação entre as vontades das pessoas – pensar o cinema como modo de agir na realidade, agir no cinema como modo de pensar a realidade – e as quase inexistentes condições materiais propõem uma representação obtida através da montagem de

81

representações: reúnem numa imagem só o desejo de nos revelar através de um documento informado pela experiência neo-realista – as coisas estão ali, por que manipulá-las? – e o desejo de nos revelar através de uma ficção informada pela montagem – as coisas estão ali manipuladas, por que não desmontá-las? (AVELLAR, 1995, p. 34).

O documentário Imágenes de una dictadura

(Patricio Henríquez, Canadá / Chile, 1999), sobre os

conflitos sociais durante o período da ditadura militar no

Chile, foi montado só com material de arquivo. Sem

narração em off e sem destacar personagens, o

documentário estrutura-se em breves seqüências

temáticas identificadas por títulos de abertura, sempre

sintéticos e emblemáticos: “Plebiscito”, “El vals del no”,

“La tarde de la victoria”, “No toquen a mi ejército”,

“Aceptado”. As seqüências se sucedem em ordem

cronológica, destacando acontecimentos significativos do

período histórico.

A estrutura dramática é alcançada através da articulação

destas histórias em forma sucessiva. A montagem no

interior das seqüências procura organizar os planos em

cenas que dêem conta visualmente do relato sem precisar

do apoio de outros recursos. Em algumas seqüências, o

texto impresso sobre a imagem adquire uma função

informativa, assim como a musica incidental servem de

apoio para unificar a seqüência.

Plesbicito

El vals del no

La tarde de la victoria

No toquen a mi ejército

Aceptado

A recusa de uma narração em off, didático-explicativa, leva a resgatar do cinema

mudo o recurso dramático do intertítulo, quando comentários ou explicações se fazem

necessárias.

82

Ônibus 174 (José Padilha, Felipe Lacerda.

Brasil, 2002) sustenta sua história a partir do

material de arquivo de um seqüestro filmado e

televisionado ao vivo durante quatro horas pelas

emissoras locais. A reconstituição do episódio do seqüestro, a partir de material de

arquivo, funciona como espinha dorsal do filme, da qual se estendem ramificações que

mergulham no específico, intercalando cenas tanto da cobertura jornalística, como

também de um arquivo anterior ao seqüestro, entrevistas e documentos oficiais.

O fato de o seqüestro ter sido registrado por um número considerável de meios

de imprensa, possibilitou a acumulação de grandes quantidades de material de arquivo,

filmado simultaneamente de diferentes ângulos e com diversos enquadramentos. Isto

significa para a montagem um ponto de partida bastante incomum com respeito ao uso e

produção de sentido a partir de material de arquivo. A abundância desse tipo de material

permitiu reconstruir o fato com uma montagem dinâmica de grande variedade de

planos, semelhante às figuras encontradas em filmes de ficção. Estas cenas acentuam

sua dramaticidade ao incorporar recursos de manipulação de imagem, como câmara

lenta e repetições nos momentos mais críticos do seqüestro; assim como com a

incorporação de música incidental para aumentar a emotividade da cena.

O desenlace da última cena exemplifica o

exposto: O seqüestrador Sandro ao descer com uma

refém do ônibus, é atacado por um policial que

dispara nele; Sandro dispara na refém e ambos caem

ao chão; esta cena, numa câmera lenta, quase quadro

a quadro, é repetida varias vezes por planos tomados

desde diferentes ângulos; escutamos os tiros

intensificados e uma música no fundo, além de

curtos depoimentos que, em off,comentam os fatos.

Uma mudança de ritmo repentino retoma a

montagem de planos curtos que mostram policiais e

transeuntes se jogando em cima do seqüestrador; a

refém é resgatada morta e Sandro, ferido, arrastado

ao interior de um carro policial.

83

O resto dos reféns é libertado. Como último plano vemos uma longa imagem,

filmada do alto, em que o ônibus começa a se deslocar pela avenida onde permaneceu

detido durante quatro horas.

Ônibus 174 é um documentário que sustenta sua historia a partir de um material

que foi registrado para outros fins, material de arquivo que por meio da montagem

consegue articular uma nova história crítica acerca da tragédia social vivida nas ruas

brasileiras.

c. Material construído para o registro

Trata-se de material que não constitui um registro direto do mundo, mas uma

representação deste. Entre o material construído para o registro destaca-se o uso de

caracteres, encenações e animações.

Os caracteres são utilizados como elementos de pontuação, em forma de título,

comentário, informação factual ou citação. Também se sobrepõem textos ou palavras a

fotos fixas, variando tamanho, tempo e duração.

Alguns documentários fazem uso de animações, como uma maneira leve de

ilustrar acontecimentos passados. Em alguns casos, como parte integral da seqüência,

em outros, sucedendo uma opinião já exposta.

Caracteres e animações são também característicos do trabalho dos

documentaristas cubanos dos anos sessenta, que fizeram uso destes meios para

documentar situações que, devido ao bloqueio econômico e às dificuldades financeiras

pós-revolução, não podiam filmar diretamente. Tal recurso, depois transformado numa

opção estética, continua sendo usado por documentaristas da escola cubana, como Erik

Rocha em Rocha que Voa (Brasil, 2000).

As encenações fazem parte principalmente dos “docudramas” ou “docu-ficções”

e são utilizadas, geralmente, pela impossibilidade de captar a imagem no presente no

momento que acontece e a vontade de que o discurso a mostre como se a câmera à

tivesse captado no momento em que se produzia. As seqüências ficcionais podem

recriar lembranças do passado, ou ser utilizadas para introduzir o tema do filme, assim

84

como também ilustrar fatos históricos, misturando sempre cenas documentais como

provas do mundo histórico que dão validade às reconstruções ficcionais.

As encenações no documentário são de tendência evocativa, não buscam a

semelhança com a realidade, e sim com o seu significado. Seu caráter simbólico ou

alegórico permite que o espectador as reconheça como imitações, evitando que sejam

confundidas com representações do mundo histórico (VALLEJO, 2007).

Esta primeira análise permite concluir algumas questões.

Na busca por identificar na produção documentária latino-americana

contemporânea estruturas de caráter formal, a partir das quais seja possível estabelecer

padrões de produção de sentido aplicáveis a um corpo considerável de obras existentes,

pode-se concluir que as figuras de montagem encontradas são tão heterogêneas que não

é possível construir categorias capazes de sustentar uma análise comparativa.

As estruturas narrativas nascem geralmente da interação pessoal do autor com o

tema da obra. As opções realizadas pelo autor dependem de como este descobre, se

aproxima e reflete sobre a realidade. As figuras de montagem, produto deste exercício,

são originais, criadas do intercâmbio entre os interesses do autor, a história real a

representar e as possibilidades concretas de produção. O reconhecimento de elementos

estilísticos num conjunto de obras está sempre em relação com a marca que deixa seu

autor, desenvolvendo-se assim mais uma tendência ao trabalho autoral do que

organizado em movimentos ou escolas.

Encontra-se nos documentários latino-americanos contemporâneos um conjunto

de elementos comuns que, em suas combinações, dão forma à montagem. É notório um

predomínio de obras que buscam reconstruir a realidade a partir de um olhar interior,

subjetivo, no qual se vislumbra não só uma busca por criar um estilo próprio, ou seja,

uma intenção de realizar documentários de autor, mas também um interesse pelo

entendimento afetivo da realidade por parte do documentarista. Por outro lado, é clara a

tendência a suprimir o narrador em “off” alheio à historia; o ato narrativo é deslocado

aos personagens, adquirindo a entrevista testemunhal um grande peso. Observa-se nos

documentários a presença de materiais de origens diversas que se articulam, durante a

85

montagem, com o material registrado para a obra. O material de arquivo é o recurso

mais freqüente, usado como prova argumentativa. Por último, a manipulação de

imagens por meio de efeitos visuais, é utilizada com bastante cautela.

Em geral, o documentarista latino-americano se interessa por reconstruir a

realidade desde seu ponto de vista, elaborando obras reflexivas, de observação ou

performativas.

Existe una tendência a contar histórias cotidianas, a criar um espaço de reflexão

a partir da observação de situações comuns aos próprios realizadores, a um personagem

ou a um grupo específico. Trata-se de filmes que expõem problemas individuais que

formam parte da realidade específica de um grupo. Num contexto político mundial de

enorme insatisfação com os grandes modelos socioeconômicos vigentes, de falta de

espaços para o debate ideológico e de falta de força nas propostas que permitam intervir

nas estruturas maiores, estas pequenas reflexões locais sobre problemas de pequenos

grupos podem se constituir como atos políticos e representar um ponto de partida na

busca de perspectivas abrangentes e sistêmicas.

86

Agora eu, uma câmera, me aventuro ao longo do seu resultante caminho, manobrando no caos do movimento, registrando o movimento, iniciando com movimentos compostos das mais complexas combinações. Livre da regra das dizeseis, dezessete imagens por segundo, livre dos limites do tempo e do espaço, uno quaisquer pontos do universo, não importa onde os tenha registrado. Meu caminho conduz à criação de uma percepção do mundo. Decifro de uma nova maneira um mundo desconhecido para você. Dziga Vertov – Cine-Olho – 1924

III.

GIRO SUBJETIVO:

EU TE DIGO QUE O MUNDO É ASSIM

A dimensão subjetiva que o documentário tem desenvolvido desde a década de

1990, embora não seja dominante em termos quantitativos, traz consigo um

reposicionamento significativo em relação à linguagem, em que as relações autor -

representação do real - espectador se modificam.

A valoração da produção de significado simbólico subjetivo é uma tendência

mundial que, na área dos estudos culturais, se observa como resultado de mudanças que

têm atingido tanto às estruturas sociais como às instituições na sua relação com os

indivíduos.

Se observa um deslocamento das instancias que regulam o fornecimento de

fontes culturais na sociedade, do Estado para uma grande oferta – privada e semi-

privada – que circula num mercado de bens simbólicos em disputa por um espaço de

legitimação. A relação cidadão/Estado ao ficar debilitada, faz que os indivíduos se

identifiquem, em menor grão, como parte de uma estrutura social, ou seja, que se

definam como sujeitos sociológicos. A multiplicação dos sistemas de significação e

representação no âmbito da cultura, segundo Stuart Hall (2006, p. 13), leva a que o

sujeito da modernidade tardia não tenha mais “uma identidade fixa, essencial o

permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvil”: formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados

nos sistemas culturais que nos rodeiam”.

87

Esse sujeito, caracterizado pela sua fragmentação, assume identidades múltiplas,

muitas vezes contraditórias e vulneráveis a deslocamentos. O sujeito não se unifica ao

redor de um “eu” coerente e, em definitiva, o que será determinante para gerar o

sentimento de identidade unificada ao longo de uma vida é a percepção subjetiva da

própria historia pessoal.

Neste sentido, as “narrativas do eu” se multiplicam adquirindo um lugar

relevante no campo dos sistemas de significação ligados a regimes de verdade. Entre os

historiadores a narrativa subjetiva do passado adquiriu um lugar de destaque. Nas

ultimas décadas, o estudo da oralidade ultrapassou o campo específico da antropologia

tornando-se, também, objeto de estudo da corrente historiográfica denominada “historia

oral”. A historia interessou-se pela “oralidade” na medida em que ela permite preencher

certas lacunas do passado e fundamentar análises históricas com base na criação de

fontes inéditas ou novas.

Essas fontes, muitas vezes, fazem parte do cenário contemporâneo, como por

exemplo, os arquivos de filmes de família. O desenvolvimento tecnológico dos

equipamentos de filmagem – câmeras baratas e de fácil operação – trousse o aumento

dos registros familiares e a acumulação destes nos lares. Os historiadores descobriram

que nestes filmes podem ser encontradas marcas importantes para reconstruir a historia.

Porém a historia oral tem por natureza um caráter individual; não se fala em nome de

um grupo, mas em seu próprio nome. Para as disciplinas acadêmicas de escritura,

sujeitas a regulamentações metodológicas, é importante que a valoração do testemunho,

em quanto as suas qualidades como documento histórico, mantenha seu lugar de fonte

no espaço da memória, sem se transformar em argumentação.

Existe um certo receio por parte de alguns teóricos, que apelam a um transfundo

ideológico nessa tendência:

reconstruir a textura da vida e da verdade albergadas na rememoração da experiência. A revalorização da primeira pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva, que hoje se expande sobre os estudos do passado e os estudos culturais do presente não resultam surpreendentes. São passos de um programa que se faz explícito, porque á condições ideológicas que o sustentam. Contemporâneo a o que foi chamado nos anos setenta e oitenta de “giro lingüístico”, o acompanhando-lo muitas vezes como sua sombra, se há imposto o giro subjetivo34 (SARLO, 2005, p. 22).

34 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

88

Numa época de forte subjetividade, o discurso testemunhal cresse como forma

privilegiada ocupando espaços dos que em outras épocas se manteve ausente. A

memória se torna importante para falar de questões referentes à história recente; se

expandindo na esfera pública tanto no âmbito comunicacional como no político.

No território dos meios audiovisuais, especificamente das representações

documentais, a utilização do testemunho como recurso narrativo está presente desde que

se começou a filmar com som direto. Entretanto, a hegemonia da oralidade no mundo

das representações simbólicas reflete, no documentário, numa valoração maior de

historias narradas a través de personagens, ou seja, de uma experiência individual que se

expressa através da palavra falada. Se na modalidade expositiva, a voz do

documentário se manifesta no texto de um narrador onipresente, quando este narrador

desaparece a voz se desloca para os entrevistados, personagens do filme. O abandono,

por parte do autor, do lugar da “voz de deus”, modifica seu vinculo com a voz

testemunhal. Na modalidade expositiva os depoimentos complementam os argumentos

expostos no texto em voice-over; na sua ausência, a intervenção do autor como

“organizador” dos testemunhos, possibilita que se estreitem os laços entre espectador e

personagens, aumentando o poder narrativo dos últimos.

A subjetivação no documentário se manifesta com o retorno do autor ao filme,

mais desde um novo lugar; cativado pela narrativa através de personagens, o autor se

desloca também para o centro da narrativa, para falar, desde o lugar da experiência

testemunhal, tanto pessoal como filmica.

Por outro lado, no espectador contemporâneo ou “consumidor audiovisual”

encontramos um desejo por se alimentar de historias baseadas no mundo do real, que

fazem referencia ao privado incorporando uma narrativa a través da personificação das

questões tratadas. Esta contextualização temática por meio do testemunho dos

personagens oferece ao seu interlocutor uma identificação direta e rápida com as

problemáticas apresentadas. A subjetivação no relato permite incorporar aos filmes a

carga dramática necessária para que aconteça, também, uma identificação afetiva. Desta

maneira, o espectador, a través de um entendimento simples – sustentado na

exemplificação – e de uma aproximação emotiva, se sente parte da “experiência

fílmica” ao mesmo tempo em que se mostra satisfeito por poder incorporar o

conhecimento adquirido a sua própria experiência de vida.

89

O convite para “compartilhar a experiência” que as narrativas do “eu” fazem ao

espectador se entronca com o fato de que estes relatos também têm sua origem na

Erlebnis, ou seja, na intensidade da própria experiência do vivido. As narrações da

experiência são possíveis na medida em que existe um corpo que vivencia e uma voz

capaz de narrar à lembrança da vivencia. No documentário, estes relatos da experiência

apresentam o corpo físico das testemunhas no filme. As testemunhas viram personagens

que unificam a lembrança de uma experiência passada com a vivencia do depoimento

no momento do registro fílmico.

Segundo Benjamin, o contexto em que é desenvolvido um texto tem a mesma

importância que o texto em si. A visibilidade deste contexto se dá através dos

instantâneos: Imagens mentais que dizem respeito a índices históricos ou experiências

sociais; ou seja, mostram a época e só podem ser compreendidas (“tornam-se legíveis”)

nessa época determinada. Os instantâneos são fotografias do momento de um processo,

imagens onde o passado se junta com o agora. O objetivo da sua análise é o presente, o

agora do reconhecimento dos acontecimentos passados, contribuindo assim ao

entendimento do tempo presente. O processo pelo qual passado e presente geram uma

imagem é o que Benjamim denominou dialética da paralisação.

A dialética da paralisação trata da mediação entre o mundo do escritor e do

leitor, permitindo explicar o imaginário social de uma época. Benjamin pensou este

processo como forma de entender as marcas do real impressas nos relatos de ficção.

No caso do documentário as marcas do momento e as circunstancias do registro

são muito mais evidentes e muitas vezes explícitas. Contudo resulta interessante pensar

a idéia dos instantâneos como mediação entre a vivencia da experiência e o momento

do depoimento testemunhal. O sujeito, em quanto testemunha, se apresenta motivado

por direitos reprimidos que precisam se libertar; já o depoimento como parte de uma

estrutura textual se torna relevante pelos efeitos morais que possa ter o seu discurso, o

seja, o depoimento se torna no filme um instrumento de verdade. O discurso pessoal da

experiência de vida permite mediante este mecanismo de valoração criar uma ligação

com questões não apenas da memória coletiva como também com questões morais,

políticas e até de interpretação da história.

Observa-se no documentário atual um interesse pela forma do testemunho no

filme. A peculiar relação que se estabelece entre o entrevistado e o entrevistador afetam

sobremaneira a produção e o caráter do depoimento; a entrevista pode ser um meio de

90

estabelecer relações de maior qualidade e profundidade, assim como uma provocação de

situações que não existiam em forma previa. A relevância dos fatores em jogo em torno

ao depoimento faz que, tanto a situação da filmagem como os receptores no momento

do registro, quando evidenciados no filme, modifiquem a caracterização do testemunho.

Mas além da integração do contexto, se destaca a ação do autor, sublinhando o

momento do encontro entre quem filma e quem é filmado. O documentarista, como

interlocutor dos personagens no filme se coloca, junto a eles, no centro da narrativa,

adquirindo um lugar de relevância no desenrolar da historia. Fazendo uso do passado

como uma referencia da memória no presente do registro acontecem os fatos, tornando,

por um lado, a narrativa subjetiva, e por outro, o filme uma experiência.

Esses documentários manifestam uma preocupação pela escrita, pelas marcas

que a expressão da linguagem deixa impressas na obra. São filmes cujo distanciamento

reflexivo os afasta da disputa pelo espaço da verdade e os aproxima aos sistemas de

representações vinculados às artes. Neste sentido, quando o olhar para fora do

documentarista, que tradicionalmente observa os acontecimentos do mundo, começa a

olhar para dentro, mostrando uma preocupação pelas formas de representação, se afasta

do jornalismo e se aproxima, em termos da sua gramática, dos filmes de ficção:

Quando os documentaristas tentam se desprender dos códigos limitados do noticiário, desenvolvem a narrativa com recursos especificamente cinematográficos e se aproximam desta forma inevitavelmente à dramaturgia da ficção. No obstante, a contaminação recíproca e a hibridação usufruem de crescente fortuna, suscitando una autorreflexividade até então inédita nos próprios filmes. As fronteiras adquirem uma porosidade ou fluidez absoluta. (PARANAGUÁ, 2003, P.65)

Porém, a representação da experiência nestes novos documentários não se

apresenta para o espectador da mesma forma que nos filmes de ficção. Na ficção

narrativa, a experiência fica dentro do conjunto das reconstituições. No caso da

experiência no documentário, assistimos ao registro de um processo, que vem

acompanhado de uma ruptura reflexiva do imediato das percepções. À maneira do teatro

épico de Brecht acontece uma revelação do que permanece oculto, devido à própria

proximidade e familiaridade com que são tratados os conteúdos. Para Brecht o teatro

épico mais que reproduzir estados de coisas, ou seja, desenvolver ações deve representar

estados de coisas, para assim poder revelar a partir da percepção do cotidiano. Essa

91

revelação acontece na interrupção das seqüências de ações, que possibilitaram um novo

entendimento do curso da ação. O princípio de interrupção do teatro épico produz um

efeito de estranhamento presente também nos documentários que evidenciam na obra

seu processo de construção.

O documentário, em todas suas manifestações, tem como motivação principal

um imperativo ético. E estes novos filmes, que por um lado, se mostram céticos em

relação às metas-narrativas de libertação, por outro, não abandonam necessariamente a

noção de luta pela emancipação. No entanto, os mecanismos desta luta se constituem

em base a outros princípios. As “narrativas do eu” transitam pelo território do real nos

espaços domésticos e pessoais, estruturando discursos que não são vistos como

expressões de uma verdade única, mas como formas políticas e estéticas de construção

do coletivo.

Mais do que defender certezas, de fatos do passado ou promessas futuras, esses

filmes insistem na dúvida do tempo presente, do momento da realização filmica, sendo

expressão, muitas vezes, de momentos de crise; uma crise que faz parte do processo

criativo do autor, necessária para a gestação do filme. O dispositivo da crise se torna

parte da narrativa do documentário na personificação, na obra, de seu próprio autor.

1. VARIAÇÕES SOBRE O MESMO

O AUTOR-PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO

Essa nova tendência levou muitos teóricos do campo a discutir sobre a

subjetividade presente nas narrativas do documentário contemporâneo. Um dos

principais interlocutores é Michael Renov (2004). O autor parte do pressuposto de que

das mudanças da relação entre o pessoal e o social surge uma nova identidade, fluida e

múltipla; e da valoração do colocar-se subjetivamente como marca de autenticidade

surge no documentário uma atitude vinculada a uma nova subjetividade.

A new subjetivity vai ser definida por Renov como uma nova face da

autobiografia, uma forma de auto-representação bastante desenvolvida pelo formato

documental, na que existe uma intervenção transparente do diretor no filme, a qual vai

92

desde a sua presença assumida na instancia da negociação com os personagens e na

organização do argumento, à afirmação de si como o próprio argumento. O sujeito da

enunciação é objeto da enunciação ao mesmo tempo.

A nova subjetividade pode ser social – expressão de como a sociedade interfere

no individuo –definida em relação à luta política ou ao trauma histórico. Ou pode ser

uma subjetividade psicológica/psicoanalítica – expressão de como o individuo interfere

na sociedade – definida em relação ao inconsciente e a seus processos. Questões

tradicionalmente ligadas aos relatos de ficção como desejo, fascinação, terror e fantasia

começam a ser parte do mundo do documentário..

Numa linha similar à de Renov, Bill Nichols, na sua classificação de

modalidades de representação, descreve estes filmes a partir do vínculo

primordialmente afetivo que estabelecem com o mundo histórico. Destaca-se aqui a

qualidade subjetiva da representação do autor/personagem, categorizando estes filmes

como performáticos, para alguns autores, ou performativos, para outros.

Para a pesquisadora Andréa Molfetta o termo performativo mostra-se mais

preciso quando se faz referência à função que cumpre a performance no documentário.

A denominação “documentário performativo” refere-se à maneira como o filme foi

realizado, isto é, caracteriza o processo, o registro do ato da performance. Já

“documentário performático”, enfatiza o ato de realização de dita performance,

denotando uma característica qualificativa do filme em si. Será utilizado aqui o termo

“performativo” por considerá-lo mais próximo dos aspectos narrativos – do

documentário em primeira pessoa – que interessa ressaltar aqui.

Todo discurso documentário reflete o ponto de vista do autor, que estabelece

uma relação individual e única com o tema, ao mesmo tempo em que se responsabiliza

moralmente frente à realidade filmada. Mas nem todo documentário evidencia este

vínculo. O modo performativo, segundo Nichols, não propõe apenas que o realizador

participe da realidade, que a provoque, mas que vá além, impregnando de subjetividade

o discurso. Daí que sua forma enunciativa pode definir-se como eu te digo que o mundo

é assim. O realizador performativo observa o mundo histórico e o interpreta, tornando

singular a organização fílmica. A subjetividade da obra é intencional e evidente.

Os documentários performativos trazem o próprio documentarista e seus

questionamentos mais particulares para o centro do filme. O autor, personagem de seu

próprio filme, produz uma aproximação afetiva entre ele e seu objeto de filmagem. São

93

documentários permeados por uma experiência de vida, narrada necessariamente na

primeira pessoa. O documentário performativo define sua forma no resgate da

experiência da autonarração, destacando a qualidade referencial da reflexividade

presente no filme (NICHOLS, 2005).

O documentarista faz do método de conhecimento de seu objeto o tema do filme.

Estabelece-se assim um jogo e o espectador, consciente deste jogo, enxerga a sua

própria participação desde um lugar em que não sabe onde surge a atuação ou onde

termina a encenação. O autor-personagem, em seu rol de protagonista, por um lado

aumenta o seu poder de controle da cena, mas ao mesmo tempo fica à mercê do que

possa encontrar ou deixar de encontrar durante este processo filmado.

Estes filmes apresentam uma estrutura narrativa fragmentaria que articula

materiais de origens diversas a partir da interpretação particular do autor, similar a uma

estrutura poética. Registros do mundo histórico se combinam com reconstruções

ficcionais, material de arquivo, fotos e documentos. Misturam-se, também, diferentes

técnicas expressivas que dão textura e densidade à ficção (planos de pontos de vista,

recorrência à música, transmissão de estados de espírito subjetivos, flashbacks, freeze

frames, etc.).

O documentário performativo centra-se antes na emoção e expressividade, ou

seja, compromete-se pouco com os comandos retóricos ou imperativos para dar antes

destaque à vivência de um evento. Esta subjetividade pode juntar elementos discursivos

que, inicialmente, parecem ser antagônicos: o geral com o particular, o individual com o

coletivo e o político com o pessoal, ou seja, embora a dimensão expressiva assente em

indivíduos particulares, estende-se também a uma dimensão social que funciona

enquanto uma resposta subjetiva. Temáticas sociais e políticas serão tratadas desde uma

perspectiva privada e individual.

Os filmes performativos remetem à própria idéia do encontro; são

acontecimentos íntimos, discretos, que marcam um momento único, determinado pelo

encontro, num certo tempo e espaço, na vida de quem filma e de quem (ou o que) é

filmado. O documentário performativo é justamente o produto desse cruzamento de

contextos; uma forma de articulação do público e do privado na produção de sentido.

Cria-se entre o espectador e o filme uma dimensão afetiva inédita enquanto

lógica dominante da linguagem documentária. A subjetividade, segundo Nichols,

sempre esteve presente no documentário, mas nunca como lógica dominante. As

94

qualidades subjetivas da experiência e da memória que provêm do ato de contar um fato

são enfatizadas.

Os quatro modos prévios definidos por Nichols estão representados nos rasgos

estilísticos do documentário performativo. O uso da voz expositiva e de uma câmera

observacional, assim como as técnicas interativas e reflexivas se integram a este novo

modo desviadas da sua função originaria.

Nichols destaca as influências do cinema-verdade representado por Jean Rouch.

No cinema-verdade parte-se do princípio de que um documentário não é mais do que o

encontro entre aqueles que filmam e os que são filmados. O que um documentário

revela não é “a realidade” em si, mas a realidade de um tipo de jogo que se produz entre

as pessoas que estão à frente e atrás da câmera. A intenção dos documentaristas do

cinema-verdade era a produção de uma crise no momento da filmagem, na qual o

documentarista não só participa como também é provocador declarado da ação. Se bem,

ambos modos inscrevem o sujeito em seu percurso participativo, as diferenças dizem

respeito à interação do documentarista com o objeto filmado: ao contrário do que ocorre

nos filmes interativos, o ponto central no documentário performativo não é a relação

produzida no encontro. O encontro está subjugado à argumentação-base do

documentarista. As entrevistas aqui visam testemunhar (e às vezes reafirmar) o

conteúdo da fala do realizador, ou seja, se sublinha o aspecto afetivo da comunicação.

Para a autora Stella Bruzzi35, o tratamento da realidade das “narrativas do eu”,

no documentário, não determina uma nova forma da linguagem, como afirma Nichols.

Bruzzi identifica nestes filmes uma tensão que sublinha a negociação entre o real e a

representação – como uma necessidade de relativização frente às diversas formas em

que a imagem se faz presente no cotidiano –, e define este tratamento subjetivo como

um tratamento fictício da realidade.

O sentido da performance, segundo a autora, se vincula a um movimento de

incorporação do documentarista na situação filmada, e a sua auto-consciência da

artificialidade na construção de conceitos de verdade. Produz-se nestes filmes uma

relação inversa entre estilo e autenticidade: quanto mais amadores, mais credibilidade

eles adquirem enquanto registro pessoal.

O documentário descrito por Bruzzi se aproxima ao sentido de “performático”,

por estar mais em função do ato de realização, onde a performance se manifesta para

35 Professora de Filme e Televisão no Royal Holloway College, em Londres.

95

sublinhar a impossibilidade de uma representação autenticamente documental. Ligado a

uma concepção de registro do improviso, do momento, da ocasião; “o papel que a

performance adquire (...) se tornou, em inúmeras instâncias, não a morte do

documentário, mas uma forma crucial de estabelecer credibilidade” (BRUZZI, 2000, p.7).

Para Bruzzi, a questão da performance está diretamente relacionada à atuação do

documentarista frente à câmera – sua própria auto-representação enquanto personagem.

Assim, a auto-inscrição do autor substitui ao ato de reflexão; e os filmes, que

inexoravelmente são construídos a partir de uma teoria, revelam uma desconexão entre

forma e conteúdo.

A incorporação na imagem da identidade do realizador constitui, para Andréa

Molfetta, uma mediação. Os documentários não são performativos apenas por que

utilizam à primeira pessoa ou incorporam a auto-representação do autor. Essa identidade

é incorporada de maneira abstrata e paradoxal, “isto porque esses relatos não querem ser

verdadeiros nem falsos; atravessam esse eixo para direcionar sua experiência à captura

(falsa) do real” (MOLFETTA, 2002, p.75). O deslocamento do sujeito da enunciação para

o fílmico, mantendo sua significação em quanto autor do discurso, faz que a sua função

não só seja fluida, mas também dupla: “o realizador faz aquilo ao que se refere, supera a

simples subjetividade transcendental” (idem, 2003, p. 44). Quando, além das fronteiras

da autobiografia, se incorpora o autor no relato acontece uma experiência que deixa

marcas de reflexividade na obra. Porém, esta reflexividade não se manifesta numa

estética que questiona os sistemas de representação, e si numa estética “que destaca a

incompletude (e já não mais a impossibilidade) do sujeito e seus sentidos, ambos

constituídos na trama da comunicação, sentidos abertos que necessitam da

interpretação” (idem, 2006, p. 203). Enfatizar no ato comunicativo entre autor e obra,

entre realidade e representação no documentário performativo, não só sublinha a

interação como mediação, também faz referencia a um novo reposicionamento de

forças, significativo para o espectador: “a interação é usada para mostrar o aspecto

afetivo da comunicação, a autoridade textual se desloca ao espectador; a referência está

subordinada à enunciação subjetiva” (idem, 2003, p. 52). A autora entende “o sujeito

fílmico desta representação como um ser-aí (dasein), cuja estrutura de compreensão do

mundo se apóia no trabalho do filme e, especialmente, na sua performance, através da

qual observa, dedica-se e cuida do mundo do qual participa filmando” (idem, 2006, p.

202).

96

Andrea Molfetta utiliza conceitos da filosofia hermenêutica, desenvolvidos por

Heidegger e Gadamer, para estudar os processos de interpretação dos discursos

performativos. O ato da compreensão se apresenta na hermenêutica como uma

“estrutura circular” entre interpretação e compreensão. No documentário mediado pela

experiência de quem elabora o discurso “o mesmo trabalho de interpretar pode ser

compreendido progressivamente como auto-compreensão de quem interpreta”.

Jean-Claude Bernardet (2005)36, na análise de filmes brasileiros contemporâneos,

introduz o termo “documentários de busca” para falar, também, desta nova tendência.

Os filmes se definem por uma escrita que se manifesta como o registro de uma busca,

na qual o autor, em quanto personagem, realiza movimentos frente à câmera para que os

fatos aconteçam, tanto no terreno do real como no filme. Os filmes de busca se

caracterizam por não ter uma preparação previa, já que o processo de pesquisa é parte

do filme. A pesquisa, que tradicionalmente no documentário é anterior à filmagem,

acontece, neste caso, durante o próprio registro.

O AUTOR-PERSONAGEM É SUJEITO-CÂMERA E SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO

A incorporação do autor no relato o torna um personagem e quando o

personagem se torna narrador o filme adquire marcas auto-referenciais. A tendência de

uma escrita na primeira pessoa se manifesta – através do sujeito-câmera – como

estratégia para intervir no mundo que será relatado. Surge a idéia da “câmera/caneta”,

da câmera como um objeto do cotidiano do autor; uma câmera que está sempre presente

e que de tão pressente perde sua estranheza e se torna quase transparente. O autor,

geralmente, faz o próprio registro fílmico, à maneira de “quem faz anotações num bloco

de notas”; esta variante da escrita tornou-se mais freqüente devido ao desenvolvimento

tecnológico de novos equipamentos simples de operar, assim como de maiores

possibilidades de correção de imagem na pós-produção.

O autor-personagem na narrativa documentária lida com projetos

cinematográficos de auto-representação e auto-referência. São filmes que se planeiam

como um projeto pessoal do realizador. O projeto tem um objetivo determinado, mas

36 BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de Busca: 33 e Passaporte Húngaro”. In:LABAKI, Amir & MOURÃO, Maria Dora (Orgs.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac & Naif, 2005.

97

durante a filmagem o realizador não sabe se este objetivo será alcançado e de que

forma. Portanto a filmagem tende a se tornar a documentação do próprio processo de

pesquisa, como se a preparação do filme fosse o principal motivo de registro de uma

câmera atenta a sua própria função no ato do registro. Trabalha-se, então, durante o

registro, com a imprevisibilidade como fator narrativo, tornando o filme uma

experiência que vai se desenrolado na filmagem.

O sujeito realiza um percurso do pro-fílmico para o fílmico, do lugar da

extradiegese para o interior da diegese. A preocupação com o resgate do olhar subjetivo

do documentarista se evidencia no registro dos fatos que só existem a partir do

momento do encontro do documentarista – sujeito da enunciação – com o seu objeto. A

construção da realidade fílmica determinada pelos movimentos do personagem no filme

se caracteriza como registro único através de um discurso que descobre – na diegese – e

reage – na extradiegese – em quanto sujeito da enunciação. O autor-personagem é o

sujeito da experiência, e a transformação que esta experiência provoca, afeta a sua vez,

o desenrolar do filme: Um processo que vai e volta.

O registro do “desempenho” no ato fílmico ressalta o caráter performático deste

processo de representação. Quatro elementos básicos da performance fazem parte deste momento:

um determinado aqui, um agora, a presença do autor-personagem no registro e a relação entre ele e o

espectador. Esta relação, na qual o autor-personagem encontra o mundo, faz dele uma mediação

explícita a partir da qual o espectador toma conhecimento desse mundo.

O sujeito da enunciação, enquanto sujeito-câmera personificado num autor-personagem, se

movimenta entre o documentário e o ficcional, entre ser no momento e representar o personagem

fílmico. A encenação como dispositivo leva a uma espécie de espetacularização da vida pessoal.

Entretanto, a partir do momento em que os artifícios da representação são desmascarados, a evidencia

da câmera, do autor e da representação em si torna o conjunto desta “mise-en-scène” mais verdadeira.

Estamos aqui, então, frente a um discurso do mundo histórico subjetivo ou frente à evidencia de que

toda representação está inevitavelmente permeada pela interpretação de seu autor?

Sem duvida trata-se de um discurso feito a partir do entendimento afetivo da realidade, de uma

compreensão particular, mas a partir deste entendimento parece possível estabelecer nexos de maior

abrangência, referentes à uma expressão coletiva, num tempo e num lugar específico.

Este mecanismo de correspondências entre um discurso particular que fale do coletivo, abre

brechas para representações da memória social, política e inclusive histórica, se afastando assim, desta

forte marca vinculada só à subjetividade.

O AUTOR-PERSONAGEM É O SUJEITO-NARRADOR E O SUJEITO DO ENUNCIADO

98

O autor-personagem realiza um percurso do fílmico para o pro-fílmico, do

interior da diegese para o lugar da extra-diegese.

Quando termina o processo de filmagem a pesquisa se da por encerrada e, o que

aconteceria num documentário durante a pesquisa previa, ou seja, a seleção do que será

registrado, acontece nestes filmes, geralmente, no processo de montagem. Só nesta fase

que aparecerá o roteiro, ausente até então neste tipo de filmes. Grandes quantidades de

material rodado serão visionadas, para numa espécie de segunda pesquisa procurar uma

possível narrativa dentro do registro da experiência. A imprevisibilidade termina

quando termina o processo de filmagem.

A montagem se apresenta como a continuação do processo de produção de

sentido fílmico, que possibilita o entendimento de uma experiência, que acontece e se

estrutura assim pela primeira vez. A discussão sobre como representar o mundo

histórico é substituída pela intenção de construir uma visão particular deste. As teorias

cinematográficas dos formalistas russos separam o cinema da realidade e das outras

artes, conseguindo assim definir sua estrutura discursiva, seu regime associativo ou

seqüencial; concebem a montagem como o principio teórico que está na base de dita

capacidade discursiva, seja no sentido associativo, sucessivo ou narrativo. A montagem

é considerada a forma mais importante de transformação da dinâmica cinematográfica

que permite a desconstrução do mundo histórico em prol da criação de uma nova

realidade fílmica.

As regras de transparência da montagem desenvolvidas pelo cinema clássico não

são mais levadas em consideração; assim como também a teoria de André Bazin, de

grande influência tanto no documentário como em toda a cinematografia latino-

americana, sobre uma montagem subordinada à reprodução do mundo real na sua

continuidade física e de acontecimentos, não é dominante como figura de montagem

nestes filmes.

O interesse deste modo de representação não está em mostrar as verdades do

mundo do real, ou seja, a reprodução do mundo histórico. O apagamento da montagem

em favor de sublinhar a significação dos fatos no seu desenrolar natural no ato em que

são filmados, não apresenta um valor significativo. O interesse dos novos

documentaristas passa, nos filmes objeto deste estudo, pelo modo particular e único de

expressar o momento do olhar, um olhar pessoal, quase interior, que parece disposto à

experimentação de associações e justaposições fora dos cânones de montagem

99

estabelecidos. Com o autor como personagem no filme a função da montagem envolve a

representação de um processo interno que se materializa só no momento da realização

do filme. As associações que se estabelecem são completamente livres, correspondem a

relações poéticas, já que reconstroem experiências subjetivas.

Contudo, Bill Nichols reconhece na modalidade performativa, influências do

cinema soviético do início do século XX – um cinema-manifesto, cujo principal

objetivo era a criação de um estranhamento na percepção do cotidiano, ao mesmo tempo

em que demandava do espectador a manutenção de uma consciência histórica. As

construções do cinema de Eisenstein, as experiências de Dovzhenko e o Cine-Olho de

Vertov são as melhores e mais notórias referências.

Os formalistas russos consideravam a montagem como a forma mais importante

de transformação da dinâmica cinematográfica. O cinema soviético praticava a

desconstrução do mundo histórico para, através da montagem elaborar uma construção

meramente cinematográfica. O documentário performativo, pela sua parte, apela à

construção de uma realidade que se faz possível só no ato da intervenção da câmera.

O Cine-Olho pretendia a representação da vida “como ela é”, o que incluía a

evidencia do suporte, ou seja, da representação. Eles postulavam uma nova linguagem

capaz de atingir níveis de compreensão exclusivos do suporte, ou seja, onde a câmera

fragmenta a realidade – levando-nos ao inconsciente óptico – e a montagem articula

uma representação da realidade definida pela própria natureza fílmica. Fascinado pelas

possibilidades que a técnica oferecia para “revelar” o mundo, Vertov fez – no Homem

com a câmera – do cinegrafista o personagem e do processo de construção a narrativa

do próprio filme, criando o enunciado Eu vejo o mundo assim. O documentário

performativo motivado, também, em estreitar o vinculo entre autor e receptor afirma: Eu

te digo que o mundo é assim.

Vertov considerava que a verdadeira estrutura de um filme elabora-se a partir de

um longo processo de montagem que exclui qualquer possibilidade de estabelecer um

relato cronológico linear. Nesta etapa do trabalho estabelecem-se relações entre temas,

ações, personagens e objetos, sempre sob o prisma reflexivo da linguagem e da

tecnologia fílmica. Na teoria do Cine-Olho a montagem se realiza em três etapas:

1) Cine-eu vejo (eu vejo com a câmera). Concepção e planejamento do filme.

2) Cine-eu escrevo (eu gravo com a câmera sobre a película). Filmagem em si.

100

3) Cine-eu organizo (eu monto). Estrutura cinematográfica.

Todos os meios de montagem são permitidos, justapondo e ligando entre si

qualquer ponto do universo em qualquer ordem temporal. O Cine Olho era entendido

como instrumento para registrar a vida de improviso, mas também para organizar esses

registros na montagem. A verdadeira estrutura fílmica elabora-se, então, ao estabelecer

relações entre temas, ações, personagens e objetos sob o prisma reflexivo da linguagem

e da tecnologia cinematográfica. Alcançar a fórmula visual, na concentração e na

decomposição temporal que melhor expressa o tema essencial do filme é a tarefa

fundamental da montagem: “Minha missão consiste em criar uma nova percepção do

mundo. Decifro, assim, de uma maneira nova um mundo desconhecido para vocês.”

(VERTOV, 1973, p.75).

Neste sentido, a evidência do ponto de vista na tela, no documentário

performativo, pode significar em termos de montagem a possibilidade de alcançar uma

verdade fílmica objetiva, ou seja, o real da representação. Na objetividade da montagem

está o principio de que qualquer representação da realidade é subjetiva. Para o

documentarista Andés Di Tella37 a natureza da montagem é o que permite alcançar a

objetividade no documentário:

É certo que cada plano é um recorte da realidade, que sempre há um fora de quadro e um ponto de vista. Mas na combinação desses planos parciais e subjetivos, ou seja, na montagem, o documentário pode recuperar a sua objetividade. Multiplicando, justapondo e inclusive subtraindo os distintos planos filmados, a montagem torna relativo o ponto de vista parcial de cada plano. E ao mesmo tempo, o coloca em relação com todos os demais planos do documentário. Deste modo, a montagem faz retornar, de alguma forma, ao todo – ou seja, ao documentário como soma de todas as tomas da realidade - uma certa objetividade. Ou pelo menos uma representação de objetividade. A montagem não seria então o secreto vergonhoso do documentário, como às vezes se fala, mas justamente sua grande virtude. A montagem só é sinônimo de mentira quando se acredita que no plano está a verdade, a pegada objetiva da realidade, a “prova” e quando se acredita que reproduzir o real “tal qual é” é possível e suficiente (DI TELLA, 2004, on-line)38.

37 Documentarista argentino autor de El país del diablo (2008), Fotografias (2007), La televisión y yo (2002) y Montoneros, una historia (1994) entre outras. Também é diretor do Princeton Documentary Festival Festival-USA 38 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

101

Para o cineasta Jean-Louis Comolli (2004, p. 45-72)39 a busca da verdade

ontológica no interior do plano não faz mais parte da compreensão audiovisual

contemporânea. As amalgamas entre documentário e ficção, nas que fatos são recebidos

como relatos e relatos como fatos, exige à produção documentaria novas provas de

autenticidade. Com este objetivo se ressalta a presença do corpo do documentarista na

cena: o realizador em quanto “homem filmado” – em quadro como fora de quadro – se

torna um novo objeto de conhecimento e uma prova da essência documental no filme.

Comolli destaca os efeitos que isto provoca no espectador, deslocado do seu

lugar habitual de compartir a experiência cinematográfica. O filme já não é mais “o que

acontece com o espectador” em função dos artifícios do autor. Tanto autor como

personagem são afetados no transcurso da experiência filmada que acontece entre eles;

experiência que não se projeta no espectador, quem, desde um outro lugar, assume a

autoridade textual. O filme agora é “o que acontece como o ator”; a implicação do

autor-personagem na experiência da filmagem o afasta do espectador, quem se torna

testemunha de um documento, das “provas vividas pelos corpos filmados durante sua

filmagem” (idem, p. 67).

Nesta nova forma documentária, que Comolli denomina de “filmes mutantes”, o

espectador se enfrenta a um relato de fatos, que se consideram uma verdade

indiscutível: “Este é o papel da prosopopéia no cinema: desdobrar a cena, duplicar o

relato por aquilo que é da ordem do fato: o ato da enunciação” (idem, p. 59).

O espectador deslocado do seu lugar habitual e afastado do estímulo do autor se

vê obrigado a reorganizar o dispositivo do seu olhar:

Se me pede que aceite ser excluído da cena porque o ator-personagem está incluído mais do que nunca, e porque no sou ele, porque não posso ser ele, porque o filme não me dá os meios para ser-lo. Se me pede que enfrente a radical idade do outro filmado, sua exterioridade, sua alteridade não redutível através dos recursos habituais do cinema. No fundo, o que aqui está em jogo é a impossibilidade da projeção sobre um personagem (a impossibilidade da ficção) 40(idem, p. 72).

Esta reorganização vai originar no espectador um forte sentimento de estranheza,

um desconforto, que segundo Comolli, o cinema não produzia há muito tempo. 39 COMOLLI, Jean-Louis. “El anti-espectador, sobre cuatro filmes mutantes”.In: YOEL, Gerardo (Org.). Pensar el cine 2. Cuerpo(s), temporalidad y nuevas tecnologias. Buenos Aires: Manantial, 2004. 40 Tradução ao português da autora (original em espanhol).

102

Lembrando o efeito de estranhamento brechtiano que permite ver na ficção a

representação; esse efeito de estranhamento no caso do documentário permite ao

espectador enxergar o próprio ato da enunciação.

2. A “EXPERIÊNCIA” REPRESENTADA POR AUTORES LATINOAMERICANOS

Inicialmente o documentário performativo se esboça nos Estados Unidos e na

Europa, a partir de meados dos anos 70, e tem suas linhas básicas desenhadas durante os

anos 80 e 90. Seu surgimento está fortemente enraizado em trabalhos de vídeo de

grupos de minoria (homossexuais, portadores do HIV, negros, mulheres), nos quais o

crescimento da articulação de um senso de comunidade foi significativo no início da

década de 90, como resultado de uma política de identidade que afirmava a relativa

autonomia e a característica social distintiva de grupos marginalizados. Existe, também,

uma conexão com as autobiografias que surgem da experiência de emigrantes como o

lituano Jonas Mekas41.

Já na América Latina, mais especificamente no caso da América do Sul, “as

primeiras manifestações destes trabalhos coincidiram com um clima geral de aberturas

democráticas do nosso continente (Argentina, 1983; Chile, 1989; Brasil, 1984)” diz

Andrea Molfetta (2003, p.51), a autora acredita que “esse ambiente político também foi

um importante estímulo criativo”.

Em torno ao festival Franco-Latino-Americano de Vídeo-Arte, nos anos 90, se

desenvolveu um trabalho voltado à produção autoral. Os vencedores destas edições

realizaram “Diários de Viagem” na França, aparecendo uma produção de filmes auto-

reflexivos, narrados – em alguns casos – na primeira pessoa, que ressaltam o vinculo

afetivo, e se diferenciam de toda a produção que estava sendo feita nesses paises na

época.

41 Mekas emigrou a USA no final da Segunda Guerra Mundial, comprou uma câmara e começou a documentar sua vida e seu processo de adaptação, utilizando uma narração na primeira pessoa. Sua obra se incerta numa linha denominada documentário de diário (Diary Films).

103

A representação performativa do real cresceu no continente e “modificou

profundamente o modo de representar a história política e cultural do Conesul”

(MOLFETTA, 2007, CD-ROM). Em países que foram vitimas de períodos autoritários,

este cinema funciona como “mecanismo de re-apropriação das tradições culturais e

políticas”, onde se “restituem compromissos e laços fundamentais com a identidade”,

como estratégia para “se reapoderar do próprio país” (idem). Para que isso aconteça se

torna fundamental, não só interrogar o mundo, mas também participar dele.

Esses filmes, que frequentemente tratam temáticas vinculadas à memória, abrem

a discussão sobre o que deve ser preservado na memória coletiva, levando o discurso ao

terreno da disputa pela legitimação de uma memória especifica sobre uma época

determinante na história social contemporânea.

Andrea Molfetta identifica o documentário performativo produzido nas últimas

duas décadas no Cone Sul como uma técnica de si relacionada com o conceito de

micropolíticas desenvolvido por Foucault. A partir das críticas a um humanismo que

desenvolvera políticas normatizadoras dos indivíduos da sociedade, surge a estética da

existência de Foucault, que influencia a muitos dos realizadores destas obras, na sua

maioria com estudos de filosofia, antropologia e letras.

A estética do documentário performativo, em quanto estética da existência, da relação do Eu com o Outro, vive uma revitalização dentro do cinema por ser um modo de resistência frente a este contexto generalizado de individualização. Acredito que esse cinema responde com a herança filosófica do anti-humanismo dentro de um setor do Campo Intelectual marcado historicamente pelas políticas humanistas, e se colocándo assim no centro do debate, no meio de varias disputas. Á antes que nada, e como já fundamentamos, um objetivo político na constituição destas subjetividades no audiovisual do sul: produzir nossa diferencia (MOLFETTA, 2007, CD-ROM).

A modalidade performativa representa – em Argentina, Chile e Brasil – uma

tendência de realização independente de documentários que, apesar de no ser dominante

em termos de produção, é enormemente inovadora em matéria de linguagem.

Na Argentina, a produtora Cine-Ojo incentiva o documentário de autor e a

discussão sobre os diversos discursos do real, definindo nos últimos anos opções de

índole estética e ética que vinculam a pesquisa na forma com o compromisso temático.

Desde os anos noventa, cada vez mais suas produções destacam no relato o ponto de

vista do autor, tornando visível a subjetividade do discurso, o que não necessariamente

104

faz destes relatos, discursos menos sociais ou menos políticos: “Quando se assome o

discurso cinematográfico como um elemento que permite construir uma mensagem

sobre o mundo”, diz Carmen Guarini, co-diretora de Cine-Ojo, “a obra joga um rol

importante na luta incansável de sentidos que agita qualquer sociedade” (informação

verbal)42. Fotografias (Andrés Di Tella, 2007), Los Rubios (Albertina Carri, 2003) e Yo

no se que me han hecho tus ojos (Sergio Wolf e Lorena Muñoz, 2003) são só alguns dos

títulos de obras performativas produzidas por Cine-Ojo, cujas temáticas variadas, nem

sempre políticas, assomem o discurso cinematográfico como uma falta de verdade

absoluta, como uma mensagem relativa que obriga ao espectador, em certa medida, a

deixar seu lugar de observador para passar a ser alguém ativo dentro desse discurso.

No caso chileno, esta modalidade se preocupa com a memória histórica do país,

questão necessariamente vinculada à experiência de quase vinte anos de ditadura

militar. Tanto as gerações que vivenciaram estes anos – no país ou desde o exílio –

como as gerações que lhes sucederam, em muitos casos os filhos das vitimas da

ditadura, estão hoje revisando sua própria história. Chile-La memoria obstinada

(Patricio Guzmán, 1997), En un lugar del cielo (Alejandra Carmona, 2003), Calle Santa

Fe (Carmen Castillo, 2007) são três obras de recorte autobiográfico que formam parte

dessa nova tendência documental.

No Brasil, o documentário em primeira pessoa da última década se destaca, entre

outras, em obras como Un Pasaporte Húngaro (Sandra Kogut, 2001), 33 (Kiko

Goifman, 2001) e, Santiago (João Moreira Salles, 2007), todas elas auto-referentes.

Para Molfetta, esses filmes, preocupados em extremo com a forma da representação,

“trabalham dentro de uma visão subjetiva de nação, de povo e de cidade” em que a

representação da história, do povo e da nação brasileira “passam pelo coração da

subjetividade do autor” (MOLFETTA, 2007, CD-ROM).

TRÊS OBRAS CONTEMPORÂNEAS LATINO-AMERICANAS

Yo no sé que me han hecho tus ojos (Sergio Wolf e Lorena Muñoz, Argentina,

2003), Calle Santa Fe (Carmen Castillo, Chile, 2007), e Santiago (João Moreira Salles,

Brasil, 2007), são documentários ligados a questões de identidade nacional, tanto

cultural como social. Suas temáticas, de origem endógena, percorrem a historia privada

42 Entrevista a Carmen Guarini, Buenos Aires, Dezembro 2007

105

e coletiva de seus respectivos países, evidenciando as pugnas da memória e tocando

questões comuns à América Latina contemporânea como migrações e territorialidade.

Os filmes trafegam pelo espírito do tango encarnado no drama da vida de uma

cancionista argentina, pelo lugar que ocupa na memória dos chilenos o trauma da

ditadura militar, e pelas relações entre patrão e mordomo emigrante num Brasil de forte

tradição serviçal.

Esses documentários partem de uma interrogação e utilizam como estratégia

narrativa o processo em que o realizador, em quanto corpo presente no filme, se

comunica em forma afetiva com o mundo do real. Yo no se que me han hecho tus ojos

mergulha no desejo do autor por investigar o enigma do desaparecimento de Ada

Falcón, que com o passar do tempo ficou esquecido sem esclarecimento. Calle Santa Fe

parte da decisão de enfrentar o acontecimento mais doloroso da vida da autora na busca

por reconstruir a história que ficou na memória coletiva sobre um movimento político

silenciado e dispersado pelas forças repressivas da época. Santiago é o confronto do

autor com o material bruto do seu único filme inconcluso.

Os três documentários, narrados na primeira pessoa, fazem uso da vivencia do

autor-personagem como estratégia narrativa. A auto-representação dos autores, nos três

filmes, é ao mesmo tempo o método de conhecimento do objeto; porém o vínculo que

se estabelece entre autor e objeto está originado em motivações diferentes. No caso de

Yo no se que me han hecho tus ojos trata-se de um “autor-ator”, que à maneira de um

detetive de filme noir, procura esclarecer um assunto externo à sua história pessoal,

motivado pela fascinação que o tema desperta nele. Em Calle Santa Fe, a autora reflete

sobre a sua própria experiência de vida, fazendo do filme uma busca pela reconstrução

do passado nas lembranças do presente; a confrontação com sua memória e a dos

outros, procura atingir a memória coletiva de uma época determinante na história social

do Chile contemporâneo; a reconstrução de acontecimentos a partir das lembranças

pessoais do autor-personagem faz que este seja representado no filme como um “autor-

pessoa”. E por último, no documentário Santiago o vínculo entre autor e objeto se dá no

nível fílmico. O autor, ao mesmo tempo em que se questiona como documentarista,

reflete sobre questões do sistema de representações, tornando a própria reflexão parte

importante do argumento. Nesse sentido, o realizador assume um rol determinado pelo

seu próprio oficio, trata-se aqui de um “autor-diretor”.

106

Comum aos três filmes é a crise interna do realizador como impulso do

acontecer das ações. Existe uma decisão consciente por parte do autor-personagem de

enfrentar a catarse que as movimentações na diegese possam produzir. A crise se

manifesta, como desencadeador do processo fílmico, em direções diversas. Em Yo no se

que me han hecho tus ojos se internaliza uma problemática originalmente alheia à vida

do autor; a crise se produz na medida em que se apresentam obstáculos para alcançar o

objetivo de uma pesquisa que vai se tornando uma obsessão do realizador: o processo

fílmico gera a crise. Em Calle Santa Fé o processo é o inverso; existe no realizador a

necessidade de exteriorizar questões da sua vida particular, anteriores à existência do

filme; a crise, neste caso, é a que gera o processo fílmico. Já no caso de Santiago, como

o material fílmico é uma precondição ao processo, a crise se manifesta quando o autor

se enfrenta aos seus próprios arquivos; é uma crise que surge no dialogo entre o material

e a reflexão do autor.

O “ser no filme” do realizador, exposto a crises, produz um certo incomodo no

espectador, o como diz Comolli, um forte sentimento de estranheza; que aumenta na

medida em que aumentam os antecedentes autobiográficos dos autores, no caso de

Carmen Castillo e de João Moreira Salles. Nestes casos, a crise além de movimentar as

ações no interior do processo fílmico, é a motivação principal da sua gestação: os filmes

surgem da decisão do autor de enfrentar a crise.

Vê-se aqui uma linha na direção de ficar mais perto do real, já que busca o

registro no presente do momento da experiência, experiência que modifica o real que

vem a continuação. O “ser-aí” e o “estar-aí” como formas de conhecimento. Mesmo que

a expressão disso seja sempre uma aproximação, ela se diferencia da ficçionalização da

realidade, bastante presente nos meios atualmente.

As marcas de autoria, os usos da entrevista e a organização do material de

arquivo fazem parte das categorias de analise estudadas no segundo capítulo. A

observação nestes filmes da sua organização, assim como da função de uma categoria

em relação à outra, permite observar uma articulação da montagem que passa

necessariamente pelo paradigma de possibilidades de argumentação do autor, em quanto

autor-personagem do filme.

Os três documentários são filmes de busca, segundo a definição de Bernardet,

filmes que documentam o processo de pesquisa. Uma busca do realizador que em Yo no

se que me han hecho tus ojos e Calle Santa Fé se manifesta como um processo que

107

acontece durante a filmagem. No caso de Santiago, esta busca faz parte do processo de

montagem, já que o material do filme são os arquivos do próprio realizador, a pesquisa

acontece aqui na sala de edição.

Quando a pesquisa é feita através da filmagem e o roteiro se escreve durante a

montagem, em ambos os casos o processo de elaboração filmica fica mediado por um

sistema de aproximação ao real elaborado, originalmente, para acontecer em forma

separada, sucessivamente. Isso faz que, durante o processo de filmagem e de montagem

a representação como tal seja um fato mais consciente, sublinhando que se lida mais

perto dos sistemas de representações do que do mundo do real.

Os documentários, se diz, são geralmente feitos na sala de edição, onde o

montador, primeiro espectador do filme, pesquisa o material filmado na intenção de

descobrir o filme que tem dentro dele. Começar a estruturar o roteiro só a partir deste

ponto da produção, quando se acabou de filmar, não é exclusivo da modalidade

performativa. O que aqui muda está em relação com a função da montagem, que nem

atende a uma lógica narrativa interna das seqüências própria da ficção, como também

não se coloca ao serviço de construir um discurso sobre a realidade baseado em provas

argumentativas. O discurso nestes filmes se torna mais subjetivo, graças a uma

montagem que estabelece associações em função de uma construção de sentido mais

poética.

A partir de uma analise da estrutura narrativa nos três filmes poderá ser

observado como se constrói esse novo sentido fílmico através de um autor-personagem

e o que isso significa para o espectador.

YO NO SÉ QUE ME HAN HECHO TUS OJOS , O AUTOR-ATOR E SUAS INQUIETUDES

Filmes de busca partem de uma interrogação que, geralmente, a maneira de uma

introdução, se expõe no inicio do documentário. Numa narração na primeira pessoa o

cineasta explica a sua razão no filme e o impulso que o levou até esse lugar. As

motivações são internas e o percurso a recorrer não tem um destino definido.

Antes que apareça o titulo do filme Yo no se que me han hecho tus ojos, sobre

um fundo preto imitando a projeção de um filme antigo, o autor-personagem, Sergio

108

Wolf, reconstrói o momento em que a historia do filme começou a entrar na sua vida.

Desde uma narração em off ele conta:

Foi Aníbal Ford, um antigo sábio do tango que me abriu as portas para os distintos estilos das cancionistas. A emoção com que falou de Ada Falcón me contagiou (...) No final da noite me contou em forma breve a história de Ada: -Ela era uma diva. Uma mina que ganhou muita grana. Tinha uma Bugatti, um Mercedez Benz, ela tinha tudo (...) Ela sentia as letras, cantava as letras como si lhe houvessem passado a ela. Essa pista que Aníbal deixou cair como de passada foi o rastro. Tempo depois, num papelzinho que vinha num cd de Ada Falcón esse rastro desenho um percurso.

O impulso necessário para que o filme aconteça se manifesta no desenho de um

possível percurso, sendo a intriga o que movimenta a narrativa e não os fatos em si.

Sergio Wolf na imagem, sozinho, procurando, conta desde uma narração em off o

mistério de Ada, quem no inicio da década de 40, na cima da fama, abandona todo para

se dedicar à devoção católica: “Deixar tudo por uma convicção, isso é o que me

obsessiona. Ir ao contrario do que diz a época, é isso o que me une a Ada”, e continua,

“é a historia a que não me deixa, não sou eu quem no pode deixa-la”. O espectador

sabe agora que não assistira à história de uma cancionista contada por um

documentarista e sim através dele, que o filme não está aí para reconstituir os fatos e

sim para homenagear o mito.

O documentarista é o detetive do filme, o autor-personagem que mergulha numa

estrutura dramática que pouco se importa em misturar registro documental com

encenação ficcional. O primeiro plano do filme é em preto e branco, um plano

seqüência, subjetivo, que começa num PP de dois relógios na parede, desce e chega a

um PM de um grupo de homens, atrás de um vidro isolante, olhando em direção à

câmera: estamos dentro da cabine de uma emissora de radio; o foco muda e num PPP

aparece um microfone; mais em vez de escutar a voz da diva começando a cantar, se

escuta o autor desde o off iniciando sua narração. O plano seqüência pertence a um

filme antigo, um de aqueles que poderia ter protagonizado Ada Falcón. Wolf querendo

entrar no filme, fala pelo microfone, desde o lugar do olhar de Ada, deixando claro que

o que busca é falar através dela.

O corpo do autor se incorpora ao quadro registrando o percurso da sua pesquisa.

Sempre calado, com as mãos nos bolsos do sobretudo, o autor caminha pela cidade, no

109

dia e na noite, buscando. Ligações telefônicas e interrogatórios a testemunhas

completam a caracterização de investigador de um autor-personagem que raramente se

emociona frente à câmera. O lugar das emoções do autor está na narração em off, é aqui

onde confessa as suas paixões, suas decepções e temores em relação aos desafios da sua

empresa documental.

Com um texto intimista e emotivo o autor desperta no espectador não só o

interesse pelo mistério da diva, mas também o desejo de que o documentarista logre

concretizar o seu desafio. A procura, quase obsessiva, do autor por desenterrar a

história, por conseguir indícios, por avançar na investigação, cria no espectador o desejo

de acompanhar de perto tanto o mistério como a pessoa que o suscita, tanto a Ada como

a Sergio Wolf.

Os testemunhos no filme são parte das pistas. Trata-se de personagens

secundários chamados unicamente para entregar informações sobre a personagem

central do filme. Eles fazem parte dos diferentes lugares por onde passou a vida de Ada

e serão abandonados na medida em que esses momentos sejam narrados. A montagem

paralela de alguns destes depoimentos ressalta mais ainda sua valoração em quanto ao

fato da informação e menos pelo interes em relação a quem fala e à maneira em que se

comunica. Aparições curtas que como peças de um quebra-cabeça traçam o percurso do

filme e do autor.

Um grupo de pessoas, mais próximas ao mundo do tango da década de 1930 e

1940, é convocado para conversar sobre Ada Falcón. Sentadas em circulo discutem as

historias de vida e a personalidade da artista. Estão no estúdio de uma emissora de

radio, fundada em 1937, e a conversa acalorada se assemelha com um programa de

opinião da época. De pronto, os rostos dos entrevistados são substituídos por primeiros

planos em preto e branco de rádios antigas, extraídos de filmes antigos; a voz do

depoimento continua, destorcida, simulando sair dos aparelhos radio transistores. As

rádios se misturam com microfones, novos e antigos. O autor-personagem, sentado

junto a eles, faz comentários para o espectador desde o off: “Todos se apaixonam e

falam de Ada e Canaro como se sua história estivesse acontecendo agora, nesse mesmo

instante”.

Misturar duas épocas na montagem, fazendo uso da prática do raccord para

apagar a distancia que às separa, é uma constante no filme. Alguns deslocamentos do

autor pelas ruas de Buenos Aires utilizam este recurso criando um continuum de

110

imagens coloridas e P/B, de imagens atuais com imagens de sessenta anos atrás,

material filmado para a obra com material de arquivo, minuciosamente selecionado de

quase 30 filmes da época.

O tratamento de uma temática do passado é trazido pela montagem ao tempo

presente através do uso de uma estética realista, ao estilo dos filmes de ficção; a

narração entre essas duas temporalidades se faz mais fluida, reforçando o propósito da

busca do autor: encontrar no pressente os rastos do passado.

Mas existe também um outro uso do arquivo que em vez de aproxima-lo ao

espectador, pede para ser observado com um certo receio: sobre uma seqüência de

época de um teatro de revista, a voz off narra os inícios da carreira artística de Ada. A

imagem mostra uma dançarina cantando no palco, mas a voz em off num ato reflexivo

nos alerta: “Essa que vemos não é Ada Falcón, pero se houvessem imagens

documentais desse momento, seguramente se pareceriam a essas”.

Essa cena é seguida por uma seqüência que inclui um outro elemento da

representação: as reconstruções. Sejam evocativas, para representar estados de animo ou

anedóticas, para ilustrar algo acontecido, nas reconstruções toda a informação

audiovisual é lida em clave de ficção; centrando a atenção do espectador no universo do

pro-fílmico, e não de um referente do mundo histórico. Assim, as fronteiras entre o

documentário e a ficção, são constantemente apagadas.

A incorporação no filme de materiais de origens diversos, com texturas

diferentes, contribui à articulação de relações poéticas na linguagem. Fotos e imagens

em movimento da diva e da sua época se entrelaçam com registros do mundo atual e

com reconstruções ficcionais. O resultado é uma montagem onde presente, passado,

imaginário e realidade se misturam constituindo uma unidade continua.

O plano longo de uma estrada reta que atravessa um campo árido ao ritmo de um

tango é a linha divisória entre as duas etapas da vida de Ada Falcón. A estrada conduz a

Salsipuedes, cidade do interior de Córdoba onde Ada se muda, em 1942, para se dedicar

por completo à vida espiritual, abandonando sua vida de artista e praticamente toda sua

vida pública. Estamos exatamente na metade do filme. Em contraste com a primeira

parte do documentário, nesta segunda dominam planos mais abertos, imagens diurnas e

luz natural; sem reconstruções e quase sem material de arquivo, o único que fica de

aquela época são os tangos cantados por Ada, que colocados incidentalmente sobre

imagens triviais da cidade Salsipuedes, parecem a voz de um fantasma.

111

O filme se transforma. O autor-personagem é menos o detetive de um filme noir

e mais o repórter em ação. Os rastos do passado, representados na primeira parte do

filme por imagens de arquivo, tanto da própria Ada como de outros filmes da época, são

agora os personagens vivos que contam, na imagem, o momento em que Ada, na face da

sua reclusão, se lhes cruzou no caminho.

O último personagem que aparece no filme é a própria Ada. O autor, na busca

por estabelecer um diálogo, observa-a discreto, distanciado e com respeito. A presença

do autor na cena o delata como personagem admirado e apaixonado por um mito; é a

única cena do filme em que ele deixa ver a sua emoção. O vinculo que se cria entre

entrevistador e entrevistado, nesse encontro, que acontece – no filme – por vez primeira,

é de uma grande intimidade. A cena recria um clima familiar onde o autor-personagem

conhece tudo de Ada, como se ela fosse um ser da sua imaginação, uma personagem da

sua fantasias, que decidiu se materializar pela última vez para conceder-lhe um

momento de fortuna a quem um dia sonhou com ressuscitá-la.

Esse é o encontro mais importante do filme entre quem filma e quem é filmado.

Construído cuidadosamente na montagem, o encontro toma a forma da observação de

um no outro: é através de um plano subjetivo do olhar de Wolf que vemos a primeira

imagem de Ada na época atual. Os planos deste encontro são longos, a câmera observa

a Ada de perto, enquanto se escuta a letra de um tango que fala de amor, dor e perda. O

autor em quadro, também observa; suas intervenções desde o off são poucas. Ao

espectador se lhe da a oportunidade de observa-la mais de perto.

O momento em que Sergio Wolf encontra a Ada no corresponde aos últimos

dias de filmagem do filme. A equipe esteve com ela duas vezes, a primeira em 1998 e a

segunda no ano 2000. A frase “Dizem que Ada era especial por conta de seus olhos

verdes. Todos os registros que tenho dela são em preto e branco. Nunca poderei ver

esses olhos”, foi colocada no filme depois de finalizar a filmagem, ou seja, depois de

que Wolf encontrou a Ada. Por último, o filme inclui, no final, uma cena do cemitério

em que a cancionista está enterrada.

A lógica narrativa aqui não está preocupada por manter uma correspondência

com a ordem em que aconteceram os fatos no mundo histórico na hora de filmar.

Entretanto o relato é cronológico, porém trata-se de uma cronologia que não

corresponde à “pesquisa filmica” é sim a busca do autor-personagem. Uma lógica

interna ao filme, mais relacionada com as narrativas de ficção.

112

Na medida em que o discurso se torna mais subjetivo, o documentário adquire

procedimentos técnicos e estratégias narrativas próprias dos filmes de ficção. A

montagem em Yo no se que me han hecho tus ojos recria uma suposta sucessão de fatos

que aconteceram durante o processo de filmagem. Uma busca que chega a um final

quando acaba o registro e que deve ser recriada na hora de montar.

Assim se revela uma filmagem que busca a “construção do improviso”, para que

seja possível sua manipulação durante a montagem. Artifícios narrativos de

reconstrução de uma suposta improvisação no momento de filmar dão a aparência, na

tela, de que os acontecimentos simplesmente tivessem acontecido, quando, na verdade,

foram construídos para ter exatamente aquela aparência.

CALLE SANTA FÉ, O AUTOR-PESSOA E SEU PASSADO

O filme de corte autobiográfico, não está preocupado com representar a

realidade unicamente no seu tempo presente. Aqui, o que interessa é reconstituir o que

ficou na memória coletiva sobre acontecimentos passados, como uma forma de faze-

lhes um lugar no futuro. Uma narrativa alternativa sobre a historia, diferente daquelas

fornecidas pela memória oficial, que parece querer proteger o passado e impedir o seu

desaparecimento. Uma historia sóbria, que torna evidente a multiplicidade e a

complexidade da interpretação da história.

O filme parte de um fato: a morte em combate de Miguel Enriquez, dirigente

máximo do MIR, no dia 5 de outubro de 1974, numa casa da Rua Santa Fe, onde

morava clandestinamente com Carmen Castillo e as duas filhas do casal. Carmen é

ferida durante o enfrentamento e trasladada a um hospital, desde onde se negocia a sua

expulsão do país; foge com destino a França. Mais de trinta anos de exílio se passaram

antes que ela decida voltar à casa de Santa Fe, onde vivera os momentos mais plenos da

sua vida privada. Essas são algumas das informações incluídas na “introdução” do

documentário, compactadas numa seqüência que inclui textos explicativos na tela,

material de arquivo jornalístico, fotos de família, até chegar à decisão no presente da

autora de retornar os lugares de seu passado, a casa de Santa Fé: “terá algum sentido

isto para uma outra pessoa que não seja eu”, diz desde uma narração em off sobre um

plano subjetivo que se aproxima ao portão da casa. A interrogação como dispositivo

113

inicial é também uma dúvida íntima da autora que leva o filme a percorrer um caminho

de relações entre o pessoal e o coletivo.

Não é o passado como lugar de conflito entre a historia e a memória o que

movimenta o filme. É no terreno exclusivo da memória que estão os questionamentos

principais de um documentário que pretende contribuir à construção da memória

coletiva. Explorar fatos do passado numa realidade em que só ficam rastros, sempre

distintos em função da subjetividade da memória de cada individuo, faz do gênero

documentário um suporte privilegiado para abordar esses temas. Um espaço que permite

a partir de um engajamento emocional conectar as esferas privadas e públicas,

produzindo entre ambas uma fricção, que é onde se encontra a memória coletiva. Assim

como nos museus e nos monumentos, também no documentário podem ser encontrados

rastros de legitimação de uma determinada memória coletiva – como uma evidencia

visível de uma memória, que de outro modo seria efêmera.

A autora de Calle Santa Fe, enquanto autor-personagem, confronta sua memória

com a memória de outros, outros que como ela, foram vitimas ou testemunhas do golpe

militar e suas conseqüências. O filme transita pelo terreno de uma fina disputa pela

legitimação da memória de uma época determinante na história social do Chile

contemporâneo.

O corpo do autor na tela, neste filme, representa uma historia autobiográfica. A

história narrada é a autobiografia de quem filma, o que permite uma aproximação que,

apesar de estar mediada por uma câmera, não está mediada por toda uma equipe de

filmagem. Isso significa que quem está atrás da câmera forma parte de esse universo

que se mostra, desse mundo fílmico. O aceso a realidade parecera “mais direto”, quase

observacional, embora dispositivo do registro esteja sempre presente.

Varias linhas narrativas se entrelaçam em forma paralela, na montagem do filme.

No presente, os encontros – com familiares, camaradas e vizinhos de Santa Fé, são

tentativas por reconstruir o privado e o público da situação familiar, da luta política do

movimento e do acontecido no dia da morte de Miguel Enriquez. No passado, o

material de arquivo, poucas vezes comentado pela voz off da autora, contribui à

generalização dos depoimentos pessoais. Uma terceira linha narrativa de primeiros

planos subjetivos, imagens em câmera lenta, texturas manipuladas e musica incidental

expressa a reflexão mais intima da autora.

114

Utiliza-se aqui uma forma de introspecção que mistura intimamente “novela

familiar” e historia social. Seguindo essa linha, o filme desenvolve um relato em que

esses dois campos são colocados um do lado do outro, em cenas montadas

seqüencialmente fazendo referencia a assuntos da vida da autora e a assuntos da vida

dos outros. Desta maneira se estabelece um mecanismo de reciprocidade comparativa ao

longo do filme, em que o privado com o público se espelham: a autora e seus familiares

conversam sobre as fissuras que se produzem na família como conseqüência do golpe

de estado, a seqüência seguinte mostra imagens do bombardeio ao palácio presidencial;

Carmen Castillo lembra de como, ferida e pressa foi socorrida por anônimos sem os

quais não houvesse podido sair com vida do país, a cena seguinte mostra mulheres da

Organização de Familiares de Detidos Desaparecidos falando a câmera dos familiares

aos que buscam; a autora confessa que no exílio não teve força para assumir as suas

responsabilidades de madre tendo que renunciar à filha para que outros, em Cuba,

cuidassem dela, a seguir uma longa seqüência da conta sobre o conflito de mães e filhas

separadas pela prioridade que significava na época a vida de militante.

As fronteiras entre o pessoal e o coletivo são constantemente apagadas. A forma

do diário, o comentário em voice-over, o texto escrito em tom confessional, todos

oferecem evidencias de uma memória coletiva reprimida por uma experiência

traumática, também coletiva.

É através das entrevistas do filme que se resgata essa experiência. Os

testemunhos aqui são modos de reconstrução e de reflexão do passado, num terreno

onde outras fontes foram destruídas pelos responsáveis. É comum a documentários que

tratam de temas similares, resgatar a propriedade do testemunho de ser utilizado como

instrumento de condena ao terrorismo de estado. Principalmente na América Latina, os

atos da memória foram uma peça central dentro dos processos de transição democrática.

A função do testemunho de denunciar arbitrariedades é, em Calle Santa Fé,

quase uma obviedade. Embora em cada um dos entrevistados existam experiências a

serem denunciadas; o resgate da experiência passa no filme pela tentativa de esclarecer

o que significou, na vida de cada um, essa vivencia. O filme lida com um momento

dessa historia posterior à denuncia, um momento mais preocupado com a reflexão. O

discurso que se produz, carregado de subjetividade, precisará revelar suas condiciones,

tanto de produção, como culturais e políticas, para encontrar seus referentes no mundo

histórico.

115

As entrevistas em cena se materializam em forma de encontros, sempre na

presença em quadro do autor-personagem. Grupos de três, quatro ou mais pessoas

estabelecem trocas de detalhes que traçam o percurso da reflexão. Dados valiosos são

descobertos durante a filmagem, como a identidade do vizinho que pede uma

ambulância e acompanha a Carmen até o hospital no dia do enfrentamento; ele descreve

o tiroteio e detalhes sobre o comportamento de Miguel; Carmen afetada pede para se

retirar, a câmara a abandona e observa ao vizinho se afastando pela rua.

Esta contenção é constante no filme. Embora muitos depoimentos signifiquem

para quem fala momentos de grande dor, sempre que estamos a ponto de presenciar o

desmoronamento, a câmara faz um movimento ou a cena se corta. Ninguém chora no

filme. É como se o familiar do assunto para todos não desse lugar para manifestações

dramáticas. Uma contenção que faz o filme mais intimo ainda.

O questionamento da documentarista, no decorrer do filme, sobre o que é

importante lembrar ou esquecer gera um espaço para falar do social e do político: o

espaço dos mundos particulares, ou seja, das micro-políticas. Para o autor-personagem o

passado é um fato inevitável – além da vontade e da razão; contudo, no terreno da

memória, desorientações e contradições no discurso levam a pensar que ainda mais

importante do que relembrar é entender, embora, para entender seja preciso também

lembrar. Para o espectador, essa construção do discurso produz um efeito de

estranhamento capaz de contribuir na discussão acerca da representação da fragmentada

sociedade contemporânea.

O filme é construído como um processo moldado no presente que faz uso do

material de arquivo – noticiários, documentários e arquivo familiar – não em forma

ilustrativa ou provatoria, e sim para confrontar esse registro do passado com o agora de

estar no filme. Essa junção de planos constrói, através da montagem, um significado na

mente do espectador que só aparece na articulação destas duas temporalidades. Os fatos

invisíveis de Patrício Guzmán, assim como os instantâneos de Benjamin, se apresentam

aqui como possibilidades de entender o futuro posterior ao filme, ou seja, o presente, já

que o que está no filme sempre será passado. Esta estrutura de montagem tem um

grande apelo ao espectador, já que estamos frente a uma narrativa em função de disputar

um espaço no âmbito da memória coletiva.

A autora se mobiliza, durante o processo de filmagem, entre o presente da

experiência na que se embarca voluntariamente e a vontade de que essa experiência

116

interfira no seu futuro. Na medida em que procura uma história da qual só conhece uma

parte, procura extrair algo que lhe permita não só reconstituir a sua identidade presente,

senão também a identidade coletiva de um grupo e a memória histórica de um povo.

Calle Santa Fé não é o primeiro filme de Carmen Castillo na linha

autobiográfica. A autora desenvolve trabalhos performativos que envolvem tanto seu

mundo familiar, como no filme O país de mi padre (Chile/França, 2004), como o seu

passado político, como em La flaca Alejandra (Chile/França, 1994).

SANTIAGO, O AUTOR-DIRETOR E SEU MATERIAL FÍLMICO

O filme é um exercício reflexivo sobre o processo cinematográfico, no qual além

de evidenciar o suporte, questionam-se os caminhos possíveis da representação

envolvidos no processo de fazer um documentário.

A identidade do autor-personagem no filme é fragmentada. A primeira

representada pelo documentarista, a segunda representada pelo filho de uma família de

costumes aristocratas e a sua relação com o mordomo da casa.

O filme, por sua vez, também é fragmentado, representado em dois tempos. O

primeiro quando se filma um filme que nunca se concretiza. E o segundo quando se

monta um filme a partir dos arquivos do primeiro.

O autor-personagem está representado, na primeira parte, como o diretor do

filme no passado que, sem a consciência de que foi registrado pela câmera, se estrutura

num personagem representado no fora de campo. Na segunda parte, o mesmo diretor no

presente, desta vez consciente de seu rol como personagem, se materializa através de

um comentário em voice-over, na primeira pessoa.

Ao longo do filme deixam-se traspassar as fraquezas, as dúvidas, fazendo da

obra um processo introspectivo que circula num território de incertezas onde tudo é

suspeito, até o próprio sistema de representação.

O processo de busca neste filme não acontece no momento do registro. E os

encontros e experiências filmadas nas são registros do mundo histórico.

O processo aqui tem um dispositivo fílmico que acontece no mundo das

representações. É o processo da reflexão do autor ao se enfrentar ao material filmado o

que está sendo documentado.

117

João Moreira Salles explica este processo da seguinte maneira:

Esse filme preciso de 13 anos, para nascer, surgir.... O tempo de um filme. Muitas vezes não se sabe o que está filmado. Ou seja, você acha que é um filme e, quando olha no material bruto, esse filme é impossível com o material que você tem. Então, a primeira responsabilidade de um documentarista é entender a natureza do material bruto e aí você tem todas as preocupações que um filme deve ter.

Santiago é uma reincidência: retomar imagens filmadas num passado pelo

próprio autor para fazer um filme pessoal, familiar.

CONCLUINDO À ANALISE

O autor-personagem constrói uma representação do mundo histórico permeada

pelas suas motivações mais íntimas. Tanto a narração quanto a montagem estão

condicionadas às individualidades da lógica do sujeito da enunciação. A incorporação

do autor como personagem que participa no processo de fazer o filme, permite que o

paradigma das associações possíveis na montagem destes documentários corresponda a

argumentos próprios do desenrolar narrativo no interior do filme. No documentário

clássico os argumentos construídos funcionam como provas cuja referência faz parte do

mundo histórico. A dupla função do autor-personagem, no filme, permite que as

associações estabelecidas na montagem correspondam a argumentações tanto subjetivas

como objetivas. A função da montagem também se torna dupla atendendo, por um lado,

às associações de idéias de um documentarista que lida com fatos do mundo histórico, e

por outro, o raciocínio emocional de um personagem que se permite todo tipo de

associações poéticas.

A montagem está condicionada, também, pela narração em voice-over. Esse

comentário que se manifesta na extra-diegese, está presente nos três documentários

analisados, ocupando um lugar fundamental para o desenrolar narrativo.

Se bem estes filmes se aproximam ao mundo histórico no nível dos afetos, esta

afetividade se manifesta, geralmente, no texto em voice-over do autor-personagem.

118

Quando o corpo do autor-personagem se faz presente na imagem, seu comportamento é

distanciado, nunca se quebra o se emociona. Existe um distanciamento.

No documentário expositivo: ter um objetivo definido de discurso, uma opinião

clara a ser emitida, seja em forma direta ou através da “voz de deus”, faz que as

possibilidades de montagem aumentem, já que se tornam argumentativas. As regras da

montagem clássica não têm valor, em prol de manipular o material como forma de

construir argumentos sobre o mundo histórico.

Os documentários interessados pela não manipulação da realidade, se

apresentam cheios de regras de montagem, que não permitem certos tipos de tratamento

fílmico O olhar do documentarista se assemelha às possibilidades do olho humano. A

montagem esta em função de manter uma fidelidade com a realidade, ao mesmo tempo

em que assume uma lógica de montagem da ficção narrativa.

A montagem no documentário performativo é poética.

119

CONCLUSÕES

As imagens audiovisuais têm sido fundamentais na construção de imaginários e

identidades na América Latina, entendida aqui como um espaço de circulação constante

de idéias estéticas, políticas e culturais que não ficaram restringidas aos âmbitos

nacionais, senão que transcenderam fronteiras, barreiras culturais e políticas.

O documentário latino-americano se constituiu, ao longo da sua historia, como

um espaço para as contra-narrativas; para dar voz às vozes sociais que raramente são

representadas pelos discursos de outros meios de comunicação.

Esse documentário, influenciado pelo desenvolvimento tecnológico, os

acontecimentos históricos e o Zeitgeist dominante da época, tem modificado a forma da

sua escrita no transcurso do tempo. Assim o documentário latino-americano passou de

uma câmera-punho a uma câmera- espelho, para logo se transformar no que agora se

denomina uma câmera- caneta, ou seja, em termos mais precisos: um sujeito- câmera.

O cinema militante dos anos sessenta – de influencia construtivista, convívio nas

suas origens, com um documentário de linha testemunhal – de influencia neo-realista,

que continuou se produzindo por varias décadas. Atualmente, o documentário no

continente apresenta fortes marcas de reflexividade, presentes também na evidencia no

texto da subjetividade dos discursos que constrói. A representação de um aspecto do

mundo histórico se desenvolve como argumento e o documentário se reconhece mais

como um modo de representação e menos como um discurso da realidade.

O sujeito contemporâneo, frente aos desafios das ideologias totalizadoras e dos

discursos normalizadores, retoma a narrativa subjetiva do passado, e se interessa pelos

discursos da memória. O sujeito fragmentado, de identidades diversas, valoriza a

experiência, o dasein (ser-aí), como a forma mais legítima de produzir discursos. A

intervenção do autor no relato permite estruturar essas identidades distintas.

Na América Latina, assim como o cinema militante falou das revoluções que

estavam por vir, hoje é o documentário performativo que tenta revisar o que aconteceu

no continente nas últimas décadas, no social, no político e no cultural. A forma

performativa é apropriada para falar de memória porque permite revisar historias

pessoais. Com um estilo pessoal são tratados temas em torno a revisão e reconstrução da

memória, como um processo de busca de identidade. Estes questionamentos são

pertinentes ao momento sóciopolítico que estamos vivendo e a toda a historia de

120

América Latina. É isso que faz que este cinema continue sendo muito político, um

cinema que pelo lado temático é mais de exploração e pelo lado cinematográfico uma

busca, uma exploração que não há sido finalizada.

A produção cinematográfica, entendida como um processo de desconstrução

permite colocar a tecnologia ao serviço da política. A montagem oferece a possibilidade

de reformular o mundo e observa-lo desde um angulo divergente ao estabelecido pelos

modelos dominantes. O cine-olho contribuiu para a construção de uma nova sociedade

ao demonstrar como a matéria-prima da vida cotidiana, da forma como é captada pela

câmera podia ser, artificialmente, reconstruída em uma nova ordem.

A percepção social mudou a partir das possibilidades de interação social que

aparecem com o desenvolvimento técnico dos últimos 20 anos: “A grande novidade dos

nossos tempos é a possibilidade de, sem deixar de ser o que somos, tornar-nos

completamente universais”, diz Milton Santos.

A consciência de estar no mundo, num mundo misturado, com indivíduos

diferentes de interpretações variadas, permite que o cotidiano de cada um se enriqueça,

pela experiência própria e pela do vizinho, assim como pelas realizações atuais e pelas

perspectivas de futuro.

Neste contexto, segundo Santos, o “efeito de vizinhanza” pode levar ao

individuo à elaborações de visões abrangentes e sistêmicas, onde a busca da cidadania

apontará para a reforma das práticas e das instituições políticas (SANTOS, 2004).

Este “efeito de vizinhanza” no documentário é o que permite que a partir de algo

particular se fale de algo geral, que os fatos que se contam permitam entender outros

invisíveis, e quem sabe, construir um cinema que nos permita, alem de sustentar nossas

identidades, pensar o futuro.

Quem sabe, de aqui a vinte anos, poderemos juntar todos esses filmes e ver um

grande Fresco.

Espera-se, com este trabalho, ter poder alimentar a discussão formal e estética,

cuja presença é fundamental para a consolidação de um desenvolvimento reflexivo do

documentário latino-americano.

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Santiago (Brasil, 2007) dir.: João Moreira Salles. Señorita Extraviada (México, 2001) dir.: Lourdes Portillo. Yo no sé que me han hecho tus ojos (Argentina, 2003) dir.: Sergio Wolf e Lorena Muñoz.

SINOPSIS DOS FILMES ANALISADOS YO NO SÉ QUE ME HAN HECHO TUS OJOS FICHA TÉCNICA Argentina, 2003. 64m. Direção e Roteiro: Sergio Wolf y Lorena Muñoz Produção: Marcelo Céspedes y Carmen Guarini Montagem: Alejandra Almirón Fotografia: Segundo Cerrato, Federico Ransenberg, Marcelo Levintman Som: Alejandro Alonso, Cote Álvarez, Gaspar Scheuer, Diego Bernaud Participan: Ada Falcón, Aníbal Ford, Rolando Goyaud, José A. Martínez Suárez, Miguel Ciacci, Sergio Wolf Produtora e distribuidora: Cine Ojo

SINOPSE História de uma busca. A busca por Ada Falcón, cantora que na sua juventude brilhou como uma das maiores referências do tango. Ada interrompeu sua carreira para se tornar freira franciscana. Seis décadas depois, Sergio Wolf realiza um trabalho de detetive para encontrar pistas que possam esclarecer os mistérios dessa mulher. O autor, através de uma narração em off em primeira pessoa, revela suas paixões, decepções e medos em relação à Ada e aos desafios do seu empreendimento documentário.

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CALLE SANTA FÉ FICHA TÉCNICA Chile/França, 2007. 167 min. Direção e Roteiro: Carmen Castillo Echeverría Produção: Sergio Gándara,Serge Laliou, Sophie de Hijes (Francia), Christine Potreaux (Bélgica) Diretor de Produção: Eduardo Lobos Montagem: Eva Felgeles Almé Fotografia: Ned Burgess, Sebastián Moreno, Arnaldo Rodríguez Som direto: Jean Jaques Quinet, Boris Herrera Produtora e distribuidora Parox (Chile), Les Film D`Ici (Francia), Les Films de la Passarelle (Bélgica)

SINOPSE 5 de outubro de 1974, na rua Santa Fé, nos subúrbios de Santiago de Chile, Carmen Castillo é ferida e seu companheiro, Miguel Henríquez, líder do Movimento de Esquerda Revolucionaria, more em combate. Calle Santa Fé é a viagem desta mulher pela sua história, a história deste movimento e a história de seu país. Uma busca no presente, travessada pela obsessão de saber se valeram ou não a pena os atos de resistência dos seus companheiro do MIR, se teve sentido a morte de Miguel. SANTIAGO Ficha Técnica Brasil, 2006. 80 min. Direção e Roteiro: João Moreira Salles Produção: Mauricio Ramos e Raquel Zangrandi Montagem: Eduardo Escorel e Lívia Serpa Fotografia: Alberto Bellezia e Walter Carvalho Som: Jorge Saldanha Produtora e distribuidora: Vídeofilmes

SINOPSE Santiago Badariotti Merlo, ou apenas Santiago, foi durante anos o mordomo na mansão da família Moreira Salles em Rio de Janeiro. Em 1992, o diretor João Moreira Salles iniciou um documentário sobre a vida daquele homem especial - um argentino com grande conhecimento sobre famílias aristocratas e gosto pela música erudita - e suas lembranças. O autor filma durante cinco dias, mais não concretiza o projeto. Apenas em 2005, 13 anos mais tarde, retoma o filme, desta vez como uma reflexão autocrítica na que o próprio documentarista indaga sobre formas de representação e ética do documentário.

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