sujeito de direito e interpelação ideológica

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49 Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 4970 Celso Naoto Kashiura Jr. DOI: 10.12957/dep.2015.12742| ISSN: 21798966 Sujeito de direito e interpelação ideológica: considerações sobre a ideologia jurídica a partir de Pachukanis e Althusser Legal Subject and Ideological Interpellation: considerations on legal ideology based on Pashukanis and Althusser Celso Naoto Kashiura Jr. Mestre e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Professor das Faculdades de Campinas (FACAMP). Membro do Grupo de Estudos Althusserianos do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX) da UNICAMP. Autor de “Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista” (Quartier Latin, 2009) e “Sujeito de direito e capitalismo” (Outras Expressões/Dobra, 2014). Email: [email protected] Artigo recebido em 09/09/2014 e aceito em 26/11/2014.

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Sujeito de Direito e Interpelação Ideológica

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    Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 49-70 Celso Naoto Kashiura Jr. DOI: 10.12957/dep.2015.12742| ISSN: 2179-8966

    Sujeito de direito e interpelao ideolgica: consideraes sobre a ideologia jurdica a partir de Pachukanis e Althusser Legal Subject and Ideological Interpellation: considerations on legal ideology based on Pashukanis and Althusser

    Celso Naoto Kashiura Jr.

    Mestre e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Professor das Faculdades de Campinas (FACAMP). Membro do Grupo de Estudos Althusserianos do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX) da UNICAMP. Autor de Crtica da igualdade jurdica: contribuio ao pensamento jurdico marxista (Quartier Latin, 2009) e Sujeito de direito e capitalismo (Outras Expresses/Dobra, 2014). E-mail: [email protected]

    Artigo recebido em 09/09/2014 e aceito em 26/11/2014.

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    Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 49-70 Celso Naoto Kashiura Jr. DOI: 10.12957/dep.2015.12742| ISSN: 2179-8966

    Resumo

    O mecanismo prprio de funcionamento da ideologia , segundo Louis

    Althusser, a interpelao do indivduo como sujeito. A forma sujeito de

    direito, objeto da crtica de Evgeni Pachukanis, constitutiva, na

    sociedade burguesa, dessa subjetividade engendrada pela interpelao.

    A aproximao entre Pachukanis e Althusser pode, assim, lanar alguma

    luz sobre o funcionamento da ideologia jurdica.

    Palavras-chave: Ideologia jurdica. Interpelao. Sujeito de direito.

    Abstract

    The interpellation of individuals as subjects is, according to Louis

    Althusser, the proper mechanism of ideology. The legal subject, target of

    Evgeni Pashukanis criticism, is constitutive, in bourgeois society, of the

    subjectivity engendered by the interpellation. Thus, the rapprochement

    between Pashukanis and Althusser would make possible to understand a

    little further about legal ideology.

    Keywords: Legal ideology. Interpellation. Legal subject.

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    Introduo

    Os indivduos constitudos (ou, noutras palavras, interpelados) como

    sujeitos pela ideologia andam por si mesmos, afirma Louis Althusser no texto

    de 1969 sobre os aparelhos ideolgicos de Estado. Andam por si mesmos,

    prossegue, porque o indivduo interpelado como sujeito (livre) para que se

    submeta livremente s ordens do Sujeito, isto , para que aceite (livremente) o

    seu assujeitamento, isto , para que realize por si mesmo os gestos e os atos

    de seu assujeitamento.1

    Esse movimento que implica simultaneamente subjetivao e

    assujeitamento, o movimento da interpelao, conceito central da teoria da

    ideologia de Althusser, guarda ntima conexo com a forma essencialmente

    burguesa do sujeito de direito:2 o indivduo , na sociedade burguesa,

    constitudo como sujeito de direito precisamente para que, por si mesmo, no

    pleno uso de sua autonomia da vontade, realize o seu assujeitamento. A

    iluso de sua liberdade, que ao mesmo tempo marca a sua condio de

    sujeito e permite a sua submisso ao capital, , antes de tudo, uma iluso

    jurdica.

    As linhas que seguem tm por escopo lanar alguma luz sobre essa

    iluso jurdica, mais especificamente com vistas a investigar, ainda que de

    modo parcial, o papel desempenhado pela forma sujeito de direito no

    movimento da interpelao ideolgica. Trata-se, noutras palavras, de mostrar

    algumas importantes conexes entre a subjetividade que se constitui pela

    interpelao e a subjetividade jurdica.

    Para tanto, faz-se necessrio enfrentar, em primeiro lugar, a prpria

    subjetividade jurdica e suas determinaes, especialmente a questo da sua

    1 ALTHUSSER, L. Idologie et appareils idologiques dtat. In: Positions. Paris: ditions Sociales, 1976, p. 121. (Traduzi.) 2 Althusser, no entanto, desconhece ainda o lugar preciso do sujeito de direito e da ideologia jurdica no movimento da interpelao em Ideologia e aparelhos ideolgicos de Estado (1969), passando a consider-lo claramente (e ainda assim com vacilaes) a partir de Resposta John Lewis (1973). A esse respeito, cf. os textos de Nicole-dith Thvenin (O itinerrio de Althusser e Ideologia jurdica e ideologia burguesa) reunidos em: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010.

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    especificidade histrica. A referncia essencial para uma tal investigao o

    pensamento de Evgeni Pachukanis, sobretudo aquele desenvolvido em A

    teoria geral do direito e o marxismo (1924), bem como os desenvolvimentos

    posteriores da crtica do direito no interior da teoria marxista. Ser assim

    possvel, a seguir, voltar a ateno, em especfico, para a teoria da ideologia de

    Althusser e buscar nela o lugar, ainda que implcito, a ser ocupado pelo sujeito

    de direito.

    1. Sujeito de direito e capitalismo

    Na contramo do pensamento jurdico tradicional, que concebe o sujeito

    de direito como condio natural do homem (por exemplo, no

    jusnaturalismo) ou como produto de uma determinao puramente

    normativa (por exemplo, num positivismo jurdico radical como aquele de

    Hans Kelsen), Pachukanis encontra a raiz do sujeito de direito no interior da

    estrutura social correspondente ao modo de produo capitalista. Longe,

    portanto, de uma suposta naturalidade alheia histria ou do carter

    secundrio de categoria decorrente de uma normatividade primria, o

    sujeito de direito concebido como forma histrica, intimamente vinculada ao

    advento de uma forma histrica de sociedade, e, mais ainda, como a forma

    fundamental do fenmeno jurdico como um todo, com relao qual a norma

    jurdica mesma no seno um momento derivado.3

    3 A respeito da primazia do sujeito de direito quanto norma jurdica, Pachukanis afirma: A dogmtica jurdica conclui, ento, que todos os elementos existentes na relao jurdica, inclusive o prprio sujeito, so criados pela norma. Na realidade, a existncia de uma economia mercantil e monetria naturalmente a condio fundamental sem a qual todas estas normas concretas no possuem qualquer significado. somente sob esta condio que o sujeito de direito possui um verdadeiro substrato material na pessoa do sujeito econmico egosta que a lei no cria, mas que encontra diante de si. Onde inexiste este substrato, a relao jurdica correspondente , a priori, inconcebvel. PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 63-64. Ainda a esse respeito, v.: NAVES, M.B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. So Paulo: Boitempo, 2000 (especialmente cap. 2). KASHIURA JR., C.N. Crtica da igualdade jurdica: contribuio ao pensamento jurdico marxista. So Paulo: Quartier Latin, 2009 (especialmente cap. 1.2).

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    Pachukanis prope, com slido fundamento em Marx, uma aproximao

    entre as categorias do direito e o processo de troca. O sujeito de direito se

    desvela, assim, como o outro lado da mercadoria: se a circulao mercantil

    exige, por um lado, que os objetos da troca nela figurem sob a forma social

    idntica de mercadoria, pura materializao de trabalho abstrato, suporte

    abstrato do valor, exige tambm, por outro lado, que os agentes da troca

    uma vez que as mercadorias no podem realizar a troca por si prprias, como

    lembra Marx4 nela se reconheam reciprocamente sob a forma social

    idntica de guardies de mercadorias, proprietrios abstratos, sujeitos de

    direito.

    A relao de troca se realiza, portanto, entre coisas sob a qualidade

    idntica de mercadorias, imediatamente mensurveis umas em relao s

    outras em termos de valor, e entre pessoas que se reconhecem como

    igualmente portadoras de mercadorias (ou seja, de valores), sob a qualidade

    idntica de sujeitos de direito. Noutras palavras, a relao de equivalncia

    (valor) entre mercadorias se realiza por intermdio da relao jurdica entre

    sujeitos de direito relao que aparece aqui como contratual, na qual os

    sujeitos de direito se reconhecem reciprocamente como iguais e livres,

    portadores de vontade autnoma que habita as mercadorias e que as pe

    em movimento na troca.

    O segredo da forma sujeito de direito se encontra, ento, na prpria

    materialidade do processo de troca de mercadorias:5 o sujeito de direito

    constitudo em funo da troca de mercadorias, a atribuio de uma vontade

    livre por meio da qual o sujeito de direito se coloca numa relao de igualdade

    4 V. MARX, K. O capital. Vol I. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 79 (livro I, cap. II). 5 A esse respeito, diz Pachukanis: As categorias mais caractersticas do direito burgus o sujeito de direito, a propriedade, o contrato etc. antes de mais nada e mais claramente do que tudo, revelam a sua base material no fenmeno da troca. A categoria do sujeito de direito corresponde categoria do valor-trabalho. Os atributos da mercadoria, impessoalidade, generalidade e mensurabilidade, so completados pelos atributos formais da igualdade e da liberdade, os quais os proprietrios das mercadorias conferem uns aos outros. PACHUKANIS, E.B. A teoria marxista do direito e a construo do socialismo. In: NAVES, M.B. (org.). O discreto charme do direito burgus: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: IFCH-Unicamp, 2009, p. 142-143.

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    perante outro sujeito de direito uma exigncia da troca de mercadorias. A

    vontade autnoma do sujeito de direito no determina a relao de

    equivalncia entre as mercadorias que o prprio sujeito conduz para a troca,

    mas , na realidade, determinada por ela. A vontade autnoma, o

    reconhecimento recproco, a igualdade e a liberdade jurdicas no provam,

    assim, qualquer qualidade superior intrnseca ao homem, qualquer

    disposio imanente para a moralidade, qualquer determinao espiritual

    que situaria a pessoa (como agente da troca, sujeito) acima da coisa (como

    objeto da troca, mercadoria): a subjetividade jurdica constituda para a troca

    mercantil, como condio para que o valor consubstanciado no corpo das

    mercadorias se realize na esfera da circulao em ltima instncia, para que

    o movimento de valorizao do valor, determinado desde a produo

    capitalista, que aparece e no aparece na circulao, tenha lugar.

    O vnculo social enraizado na produo [pode, ento, concluir

    Pachukanis] apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas, de um

    lado, como valor mercantil e, do outro, como capacidade do homem ser

    sujeito de direito.6 Essas duas formas absurdas, cujo espao privilegiado ,

    sem dvida, a circulao mercantil, exprimem, cada uma a seu modo, as

    exigncias e as determinaes e, assim tambm, as contradies

    historicamente especficas do modo de produo capitalista. O seu carter

    absurdo , em ltima anlise, reflexo do carter absurdo da produo

    capitalista mesma.

    A produo capitalista implica, como se sabe a partir de Marx, a relao

    de capital, relao entre classes sociais mediada pelos meios de produo,

    relao na qual o trabalho se subsume ao capital, na qual o trabalho

    explorado pelo capital. Mas essa relao de explorao, cuja realizao prtica

    se d no interior do processo de produo (curtume), exige antes o encontro

    entre trabalhador e capitalista na esfera na circulao (den dos direitos do

    homem), encontro que se expressa juridicamente como relao contratual

    6 PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 85.

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    entre sujeitos de direito.7 Se, nesse sentido, a qualidade de portador de

    mercadoria o que torna o homem sujeito de direito, essa relao contratual

    surpreende um dos seus sujeitos, o trabalhador, como portador de uma

    mercadoria muito peculiar: a fora de trabalho.

    A fora de trabalho a prpria capacidade de trabalho do trabalhador,

    ou seja, o que o trabalhador aliena ao capitalista no contrato de trabalho a

    utilizao de suas foras vitais, no processo de produo, durante um intervalo

    de tempo determinado. Trata-se, ento, de uma mercadoria peculiar porque,

    antes de tudo, a fora de trabalho , em certo sentido, o prprio trabalhador:

    ao alienar um tempo determinado de utilizao da sua fora de trabalho, o

    trabalhador aliena um tempo determinado de utilizao de suas prprias

    foras corpreas e intelectuais. Trata-se, mais ainda, de uma mercadoria

    peculiar porque a fora de trabalho contm em si a especificidade de, uma vez

    consumida, isto , uma vez posta em movimento no processo de produo

    propriamente dito, gerar uma quantidade de valor superior quela dispendida

    como seu equivalente a ttulo de salrio: essa diferena (mais-valor)

    apropriada pelo detentor dos meios de produo, o capitalista.

    O trabalhador , portanto, constitudo como sujeito de direito na

    medida em que figura como guardio da mercadoria fora de trabalho, o que

    significa dizer: na medida em que figura como guardio de si mesmo como

    mercadoria. O sujeito de direito que aliena a sua fora de trabalho se realiza

    duplamente nessa relao: como sujeito de direito (igual e livre perante outros

    sujeitos de direito) que aliena e, ao mesmo tempo, como objeto de direito

    (mercadoria equivalente perante outras mercadorias) que alienado.8 Pode-se

    ento afirmar que a elevao do trabalhador direto, expropriado dos meios de 7 Refiro-me aqui passagem de O capital em que Marx ope, com essa analogia ( den dos direitos humanos vs. curtume), o momento da celebrao do contrato entre trabalhador e capitalista na circulao e o momento da execuo do contrato no processo de produo. V.: MARX, K. O capital. Vol I. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 145 (livro I, cap. IV). 8 Edelman nomeia esse movimento aparentemente paradoxal de decomposio mercantil do homem em sujeito/atributos, por meio do qual o sujeito pode, no pleno uso de sua liberdade (isto , sem comprometer a sua condio de sujeito), alienar os prprios atributos. V.: EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976.

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    produo, condio de sujeito de direito decorre da sua reduo, na

    sociedade burguesa, condio de mercadoria.

    O escravo [diz Pachukanis] totalmente subordinado ao seu senhor e precisamente por esta razo que a relao de explorao no necessita de nenhuma elaborao jurdica particular. O trabalhador assalariado, ao contrrio, surge no mercado como livre vendedor de sua fora de trabalho e por isso que a relao de explorao capitalista se mediatiza sob a forma jurdica de contrato.9

    Trabalhador assalariado e capitalista celebram um contrato apenas por

    meio do pleno uso de suas liberdades: ambos so e se mantm, portanto,

    sujeitos de direito plenamente livres e iguais. O trabalhador elevado

    condio de sujeito de direito precisamente para que realize, de forma

    plenamente voluntria, numa relao jurdica de igualdade e liberdade, a sua

    prpria submisso ao capital, isto , a entrega voluntria de si prprio, das

    suas prprias foras, explorao pelo capital.

    , no fim das contas, a prpria dinmica do capital que exige a mediao

    das figuras do direito, mediao que se interpe precisamente entre o

    momento em que o capital aparece e o momento em que o capital no

    aparece na circulao mercantil. Assim, toda a explorao e todo o domnio

    de classe inerentes ao modo de produo capitalista so necessariamente

    mediados pela igualdade e pela liberdade jurdicas. Toda a desigualdade

    econmica e todo o despotismo do curtume em que se produz o mais-valor

    so mediados por uma relao voluntria entre sujeitos de direito que

    necessariamente antecede o consumo efetivo da fora de trabalho, uma

    relao jurdica contratual que reproduz em sua plenitude as representaes

    deste den jurdico que a circulao mercantil.

    Pode-se compreender, nesse sentido, que a aproximao promovida

    por Pachukanis entre as figuras do direito, sobretudo o sujeito de direito, e a

    9 PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 82.

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    circulao mercantil no negligencia a produo capitalista. Pelo contrrio, se a

    equivalncia mercantil e a igualdade e liberdade jurdicas se colocam

    plenamente na esfera da circulao, isto ocorre precisamente por

    determinao da produo capitalista. Nesse sentido, como prope Mrcio

    Bilharinho Naves, [] verdade que h, para Pachukanis, uma relao de

    determinao imediata entre a forma jurdica e a forma da mercadoria, como

    vimos, mas a determinao em Pachukanis , a rigor, uma

    sobredeterminao.10 Mais precisamente:

    O direito imediatamente determinado pelo processo de troca mercantil, mas, considerando que a esfera da circulao estruturada segundo as exigncias das relaes de produo capitalistas, o direito tambm experimenta essa mesma determinao, mas de modo mediado, em ltima instncia. Ou seja, a existncia da forma jurdica depende do surgimento de uma esfera de circulao que s o modo de produo capitalista pode constituir.11

    O prprio Mrcio Bilharinho Naves fornece, em obra posterior, a chave

    para a compreenso dessa determinao em ltima instncia ao fixar a gnese

    da forma sujeito de direito na subsuno real do trabalho ao capital. , de fato,

    com a subsuno real do trabalho ao capital que o trabalho abstrato se realiza

    na prtica12 isto , configura-se na prtica como dispndio de uma energia

    laborativa efetivamente indiferenciada, desprovida de qualquer contedo de

    habilidade especfica , o que, por outro lado, significa que o trabalhador se

    reduz na prtica a mero apndice da mquina, ou seja, inteiramente

    espoliado de todas as condies objetivas e tambm das condies subjetivas

    da produo. A realizao na prtica do trabalho abstrato implica, portanto,

    uma realizao na prtica da abstrao constitutiva do sujeito de direito:

    10 NAVES, M.B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. So Paulo: Boitempo, 2000, p. 72. Note-se que a posio de Mrcio Bilharinho Naves conduz a uma refutao cabal da crtica circulacionista frequentemente dirigida contra Pachukanis. 11 Ibid., p. 76-77. 12 V., a esse respeito: LA GRASSA, G. Valore e formazione sociale. Roma: Riuniti, 1975.

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    Podemos chamar a isso de uma equivalncia subjetiva real, justamente por ela se realizar concretamente, praticamente, inscrita materialmente na prtica de atos de troca que a capacidade volitiva autoriza ao homem realizar na condio de sujeito, ou seja, a igualdade se transforma em uma realidade objetiva, como observa Marx.13

    Isto permite concluir, de modo radical, que s h direito em uma

    relao de equivalncia na qual os homens esto reduzidos a uma mesma

    unidade comum de medida em decorrncia de sua subordinao real ao

    capital14 o que, por sua vez, significa que a subjetividade jurdica , em

    sentido rigoroso, uma forma historicamente especfica. Apenas no interior do

    modo de produo especificamente capitalista que esto dadas as suas

    condies de existncia. Apenas no interior do modo de produo

    especificamente capitalista a abstrao do sujeito de direito se impe com

    fora objetiva aos homens, com um sentido preciso: a constituio de uma

    subjetividade jurdica universal que permite uma submisso universal,

    inteiramente voluntria e igualitria (do estreito ponto de vista do direito),

    do trabalhador ao capital.

    2. Ideologia jurdica e interpelao como sujeito

    Em Por Marx, mais precisamente no texto sobre Marxismo e

    humanismo, Althusser define esquematicamente a ideologia como um

    sistema (que possui lgica e rigor prprios) de representaes (imagens, mitos,

    ideias ou conceitos, conforme o caso) dotados de uma existncia e de um

    papel histricos no interior de uma sociedade dada. Logo adiante, esclarece

    13 NAVES, M.B. A questo do direito em Marx. So Paulo: Outras Expresses/Dobra, 2014, p. 68-69. 14 Ibid., p. 87. A radical concluso de Mrcio Bilharinho Naves inviabiliza por completo uma linha de leitura da teoria marxista do direito e tambm uma linha de crtica a essa teoria que se apoia numa suposta evoluo meramente quantitativa, linear, da forma sujeito de direito na histria.

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    que a ideologia profundamente inconsciente e acrescenta que a ideologia

    trata de uma relao de segundo grau:

    Na ideologia, os homens exprimem, de fato, no suas relaes com suas condies de existncia, mas o modo como vivem sua relao com suas condies de existncia: o que supe, ao mesmo tempo, relao real e relao vivida, imaginria. [] Na ideologia, a relao real inevitavelmente investida pela relao imaginria [].15

    Esse conceito de ideologia posteriormente desenvolvido e, em parte,

    revisto por Althusser em textos como Ideologia e aparelhos ideolgicos de

    Estado (1969), Resposta a John Lewis (1973), Elementos de autocrtica

    (1974), entre outros num percurso certamente no isento de vacilaes e de

    contradies (a respeito do qual no faria sentido, contudo, aprofundar-se

    aqui). Assim, parece razovel, em vista dos limites aqui propostos para a

    investigao e com o objetivo de simplificar a exposio, seguir o sumrio

    preciso e claro das caractersticas centrais da teoria da ideologia de Althusser,

    tal como apresentado por Francisco Sampedro:16

    1) A ideologia possui uma dinmica inconsciente. (Althusser incorpora

    ao materialismo histrico, para a compreenso do mecanismo da ideologia, a

    descoberta do inconsciente por Freud, bem como os desenvolvimentos

    propostos por Lacan.)

    2) A ideologia possui uma funo matricial que responde

    necessidade de representao da totalidade social por parte do sujeito. Tal

    funo , no entanto, sobredeterminada nas sociedades de classes, de modo

    que a ideologia passa a responder preponderantemente necessidade de

    manter, com vistas reproduo das relaes de produo, o indivduo no

    preciso lugar a ele determinado na/pela estrutura social.

    3) A ideologia possui uma existncia material. No se trata, portanto, de um simples conjunto de ideias, mas, acima de tudo, de um conjunto de

    15 ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: La Dcouverte, 2005, p. 238-240. (Traduzi.) 16 SAMPEDRO, F. A teoria da ideologia de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 37 et seq.

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    prticas inscritas materialmente no processo social. Mais ainda, a ideologia se materializa em instituies, os aparelhos ideolgicos de Estado (que atuam em conjunto com o aparelho repressivo de Estado na reproduo das relaes de produo).

    As ideias [diz Althusser] desaparecem como tais (como dotadas de uma existncia ideal, espiritual), na exata medida em que fica claro que a sua existncia est inscrita nos atos das prticas reguladas pelos rituais definidos em ltima instncia por um aparelho ideolgico. Fica claro, ento, que o sujeito atua na medida em que atua sobre ele o seguinte sistema (enunciado na sua ordem de determinao real): ideologia existente num aparelho ideolgico material, que prescreve prticas materiais reguladas por um ritual material, prticas que existem em atos materiais de um sujeito que age em plena conscincia segundo a sua crena.17

    Surge, assim, aquela que Althusser apresenta como a noo ideolgica

    fundamental, a noo de sujeito. O sistema material da ideologia que atua

    sobre o indivduo de modo a prescrever as prticas que o indivduo deve

    desempenhar, as prticas correspondentes ao lugar designado para o

    indivduo na reproduo da estrutura social, atua de modo a impor uma

    evidncia primeira, a evidncia de que o indivduo sujeito (que todos os

    indivduos se reconheam como os sujeitos de seus atos). E Althusser assim

    conclui: a categoria sujeito constitutiva de toda ideologia, mas simultnea e

    imediatamente acrescento que a categoria sujeito no constitutiva de toda a

    ideologia seno na medida em que toda ideologia tem por funo (e isto o

    que a define) constituir os indivduos concretos como sujeitos.18

    O mecanismo preciso pelo qual a ideologia constitui os indivduos como

    sujeitos nomeado por Althusser como interpelao e esse mecanismo a

    prpria ideologia em seu funcionamento prtico. A ideologia, pode-se ento

    afirmar, interpela os indivduos como sujeitos e existe materialmente (como

    ideologia) precisamente no movimento dessa interpelao. Essa interpelao

    que constitui indivduos como sujeitos , ao mesmo tempo, uma imposio da

    17 ALTHUSSER, L. Idologie et appareils idologiques dtat. In: Positions. Paris: ditions Sociales, 1976, p. 109. (Traduzi.) 18 Ibid., p. 110. (Traduzi.)

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    estrutura social sobre o indivduo, imposio que designa ao indivduo qual o

    seu papel no processo social. A interpelao constitui sujeitos, portanto, em

    duplo sentido, explicitando a ambiguidade j encerrada no prprio termo

    sujeito: constitui o indivduo como sujeito de seus atos, como livre, capaz e

    responsvel por seus atos, e, ao mesmo tempo, constitui o indivduo como

    assujeitado, como submetido a uma estrutura social que se impe

    independentemente de sua escolha. Trata-se daqueles sujeitos que andam

    por si mesmos a que me referi na abertura deste escrito, dos sujeitos que

    promovem livremente (no pleno exerccio de sua condio de sujeitos) o seu

    prprio assujeitamento (as prticas fixadas pela ideologia). No h sujeitos

    [diz Althusser, com muita clareza] seno para e pelo seu assujeitamento. por

    isso que eles andam sozinhos.19

    Tendo isso em vista, pode-se acrescentar que esse sujeito livre promotor

    de seu assujeitamento , antes de tudo, um sujeito de direito. Como nota

    Sampedro, [a] categoria jurdica de sujeito constitui [para Althusser] a noo

    ideolgica nuclear.20 A interpelao ideolgica tem por eixo fundamental uma

    forma determinada de subjetividade, a subjetividade jurdica.

    digno de nota, porm, que o prprio Althusser vacila, ao longo do

    percurso de construo de sua teoria da ideologia, no que diz respeito

    concepo do preciso papel do sujeito de direito. Isto tem consequncias

    sobretudo no que tange historicidade da ideologia, em vista de uma

    compreenso aparentemente parcial da historicidade da prpria forma

    sujeito.21 Uma anlise mais detida de tais vacilaes, com todo o seu itinerrio

    19 Ibid., p. 121. (Traduzi.) 20 SAMPEDRO, F. A teoria da ideologia de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 50. Ainda nesse sentido, v.: THVENIN, N.-. Ideologia jurdica e ideologia burguesa (ideologia e prticas artsticas). In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010. EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976, p. 129 et seq. NAVES, M.B. A questo do direito em Marx. So Paulo: Outras Expresses/Dobra, 2014, p. 89 et seq. 21 Remeto, a respeito das mencionadas vacilaes de Althusser quanto subjetividade jurdica, s referncias j indicadas na nota n 2 acima. No que diz respeito s consequncias apontadas, de se notar que a especificidade histrica do sujeito de direito impede a proposta de uma interpelao ideolgica transistrica, inerente a qualquer forma de sociedade. Pode-se falar propriamente numa interpelao como sujeito (de direito) no interior da sociedade capitalista,

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    de avanos e retrocessos, fugiria, contudo, ao objeto de anlise aqui proposto.

    Basta, por ora, ter em conta que as indicaes j contidas em Althusser, ainda

    que o prprio Althusser no as tenha teorizado suficientemente, que

    franqueiam acesso a uma compreenso da subjetividade jurdica como eixo

    fundamental, na sociedade capitalista, da interpelao ideolgica.

    Posso responder ento [prope, nesse sentido, Edelman] questo aberta por Althusser: se verdade que toda ideologia interpela os indivduos como sujeitos, o contedo concreto/ideolgico da interpelao burguesa o seguinte: o indivduo interpelado como encarnao das determinaes do valor de troca. E posso acrescentar que o sujeito de direito constitui a forma privilegiada dessa interpelao, na exata medida em que o direito assegura e assume a eficcia da circulao.22

    Isto significa que a subjetividade jurdica constitutiva do mecanismo da

    ideologia, determinante daquela subjetividade constituda pela interpelao

    no interior da sociedade burguesa. Como consequncia, a ideologia jurdica

    deve ser compreendida no apenas como mais uma dentre as vrias ideologias

    mas no se pode supor, conforme proposto na seo I deste escrito, que esse mesmo mecanismo opere em sociedades pr ou ps-capitalistas. Em semelhante sentido, Nicole-dith Thvenin: Ora, se a ideologia no tem histria, na medida em que ideologia (efeito necessrio de iluso de um modo de produo), a categoria sujeito tem histria. Ela no existiu sempre enquanto tal. Ela nasce com a produo mercantil, e s se torna dominante, isto , ela s intervm como interpelao ideolgica privilegiada, com a produo capitalista, isto , com o nascimento e a reproduo do trabalhador livre. Se, portanto, estamos de acordo com a anlise althusseriana do funcionamento da ideologia, e de sua interpelao, o contedo histrico dessa interpelao precisa ser definido a cada vez. THVENIN, N.-. Ideologia jurdica e ideologia burguesa (ideologia e prticas artsticas). In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 71. Por outro lado, necessrio considerar a crtica de Donald Martel, dirigida a Edelman, segundo a qual no se pode negligenciar a distino entre ideologia regional (histrica) e ideologia em geral (sem histria), restando a categoria sujeito ligada, segundo o prprio Althusser, a esta ltima: [] o prprio Althusser mostra que, se a designao do indivduo como sujeito histrica (no mesmo sentido empregado por Edelman), tambm verdade que a categoria sujeito pode funcionar sob outras denominaes. Por isso, impossvel atribuir uma origem histrica ao sujeito. MARTEL, D. Lanthropologie dAlthusser. Ottawa: ditions de LUniversit dOttawa, 1984, p. 129. (Traduzi.) Em vista disso, importa destacar que as consideraes tecidas ao longo do presente texto dizem respeito ao funcionamento da ideologia jurdica como ideologia regional dominante da ideologia burguesa, ou seja, como forma historicamente especfica de ideologia. A questo relativa transistoricidade da ideologia em geral e sua relao com um sujeito (em geral) tambm supostamente transistrico exigiria desdobramentos crticos maiores que no poderiam ser desenvolvidos adequadamente nesse espao. 22 EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976, p. 135-136.

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    regionais que compem a ideologia burguesa, mas como a ideologia regional

    dominante, isto , como aquele setor da ideologia a partir do qual todo o

    complexo da ideologia burguesa se estrutura.

    Com efeito, a constituio de uma subjetividade pelo movimento da

    interpelao tem, como se viu, o preciso sentido de estabelecer sujeitos livres

    promotores de seu assujeitamento, isto , sujeitos que realizam

    autonomamente, de maneira voluntria, as prticas correspondentes s

    posies que objetivamente lhes so impostas pela estrutura social. Esse

    recrutamento dos indivduos como sujeitos, como prope Sampedro:

    [] se faz tambm sob o disfarce da autonomia, de maneira que o sujeito no percebe como imposta a funo-suporte. O sujeito, segundo Althusser, unicamente livre para submeter-se livremente ocupao do posto e do lugar que a diviso tcnico-social do trabalho (mscara da diviso em classes) lhe atribui na produo, assegurando o mecanismo de reproduo das relaes de produo.23

    , portanto, uma imposio da estrutura social que constitui os

    indivduos como sujeitos e isto precisamente para que os indivduos, como

    sujeitos livres, realizem autonomamente o papel a eles atribudo tambm

    por uma imposio da estrutura social. Essa autonomia constituda no sujeito

    para o seu assujeitamento essencialmente uma autonomia jurdica. A

    sociedade capitalista constitui, de fato, os indivduos como sujeitos de direito

    como sujeitos reciprocamente iguais e livres, capazes de realizar os atos

    voluntrios da troca de mercadorias, sobretudo o ato voluntrio de disposio

    da prpria fora de trabalho e isto, em ltima instncia, precisamente para

    que os indivduos, no pelo exerccio de sua igualdade e liberdade jurdicas,

    realizem voluntariamente esse papel essencial: a sua submisso, pela

    mediao de um ato jurdico contratual, ao capital.24

    23 SAMPEDRO, F. A teoria da ideologia de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 52. 24 O prprio Pachukanis antev, de certa maneira, essa inverso da ideologia jurdica pela qual o indivduo constitudo como sujeito de direito por uma imposio da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, presenteado com autonomia da vontade para promover livremente a sua

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    a forma sujeito de direito [afirma Mrcio Bilharinho Naves] que constitui o fundamental da ideologia, dessa representao da relao imaginria dos indivduos com as suas condies reais de existncia. Segundo a interpretao de Althusser, por meio do mecanismo da interpelao, os indivduos so constitudos enquanto sujeitos, ganham uma identidade, a de sujeitos-proprietrios dotados de capacidade jurdica para a prtica de atos de troca mercantil. Essa identidade jurdica que a interpelao ideolgica fornece vivenciada pelos indivduos como o exerccio da liberdade e da igualdade, elementos comuns a todos os outros sujeitos, o que ajuda a reforar continuamente a autoevidncia de sua condio subjetiva.25

    A forma sujeito de direito historicamente determinada, como se viu

    acima: a sua constituio se d, em ltima instncia, com a subsuno real do

    trabalho ao capital, na qual se estabelecem as condies para a realizao de

    uma equivalncia subjetiva real. O portador da fora de trabalho, liberto dos

    meios de produo e livre proprietrio de si mesmo, pode ento aparecer

    como fornecedor de uma capacidade de trabalho efetivamente indiferente

    trabalho abstrato realizado na prtica , como sujeito de direito plenamente

    capaz dos atos jurdicos caractersticos da esfera da circulao, como sujeito de

    direito equivalente perante outros sujeitos de direito. A realizao na prtica

    da abstrao constitutiva da subjetividade jurdica se d, portanto, por

    determinao de uma imposio objetiva do modo de produo

    especificamente capitalista, com a submisso cabal do trabalhador ao sistema

    de mquinas. Essa imposio constitui, ao mesmo tempo, o trabalhador como

    sujeito capaz de promover, por si mesmo, a sua submisso ao capital: como

    sujeito de direito que celebra um contrato e que, assim, cede to somente por

    submisso. o que se pode depreender, por exemplo, da seguinte passagem: Aps ter cado em uma dependncia do escravo face s relaes econmicas que nascem sua frente sob a forma da lei do valor, o sujeito econmico recebe, por assim dizer, em compensao, agora, enquanto sujeito jurdico, um presente singular: uma vontade juridicamente presumida que o torna totalmente livre e igual entre os proprietrios de mercadorias. PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 86-87. 25 NAVES, M.B. A questo do direito em Marx. So Paulo: Outras Expresses/Dobra, 2014, p. 89-90.

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    Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 49-70 Celso Naoto Kashiura Jr. DOI: 10.12957/dep.2015.12742| ISSN: 2179-8966

    livre e espontnea vontade, em troca do equivalente a ttulo de salrio, o uso

    por tempo determinado de sua fora de trabalho.

    A subjetividade jurdica assim determinada que constitui a evidncia

    primeira, a evidncia do sujeito, a partir da qual opera a interpelao. a

    subjetividade jurdica, antes de tudo, que constitui o indivduo como livre,

    capaz, responsvel para o seu prprio assujeitamento , portanto, a

    partir da forma sujeito de direito que a interpelao recruta os indivduos

    como sujeitos e lhes impe, na iluso (jurdica) da liberdade, o seu lugar no

    processo social. certo ento [prope Thvenin, na leitura de Althusser] que

    a forma-sujeito [] s pode ser compreendida sob a Forma sujeito de

    direito. Desse modo, todos os sujeitos em ao nas ideologias da ideologia

    dominante so apenas formas diversas de um mesmo sujeito, o sujeito

    jurdico.26

    Essa evidncia primeira engendrada a partir da subjetividade jurdica

    constitui, numa outra perspectiva, a representao de um sujeito livre criador

    de sua prpria histria, uma essncia original, irredutvel, constitutiva que se

    estabeleceria como ponto de partida necessrio de toda teoria e de toda

    filosofia. Da a ideia do homem como ponto de partida absoluto, perspectiva

    dominante do pensamento burgus. Aqui a teoria da ideologia de Althusser se

    encontra com a sua radical crtica do humanismo (que resulta, por exemplo, na

    categoria althusseriana de processo sem sujeito) e o seu ponto exato de

    interseco , no por acaso, a categoria sujeito de direito: todo o pensamento

    que parte do homem ou de um sujeito como essncia, que se desenvolve a

    partir da perspectiva do humanismo, s pode se desenvolver no interior da

    ideologia burguesa.27 O sujeito no pode ser um ponto de partida

    26 THVENIN, N.-. O itinerrio de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 26. 27 Foi com finalidades ideolgicas precisas que a filosofia burguesa tomou a noo jurdico-ideolgica de sujeito para fazer dela uma categoria filosfica, a sua categoria filosfica n 1, e para propor a questo do Sujeito do conhecimento (o ego cogito, o sujeito transcendental kantiano ou husserliano etc.), da moral etc., e do Sujeito da histria. Essa questo ilusria tem certamente um propsito, mas, em sua proposio e sua forma, ela no tem nenhum sentido para o materialismo dialtico. Este a rejeita pura e simplesmente, como rejeita (por exemplo) a

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    precisamente porque no a causa primeira: necessrio compreender,

    antes, a estrutura social que produz sujeitos, o mecanismo pelo qual os

    sujeitos so produzidos compreende-se muito precisamente, por esse ponto

    de vista, em que sentido o prprio Marx recusa o homem como ponto de

    partida terico e se refere, em O capital, aos indivduos como meros

    suportes (ou portadores) de relaes sociais.

    Concluses

    Os indivduos andam sozinhos, na sociedade burguesa, porque so

    interpelados, antes de tudo, como sujeitos de direito. A subjetividade jurdica

    , portanto, constitutiva daquela subjetividade para o assujeitamento que

    caracteriza o movimento da interpelao: o indivduo , antes de tudo,

    constitudo como sujeito de direito para que realize por conta prpria isto ,

    por meio da autonomia inerente subjetividade jurdica , atravs da

    circulao mercantil de si mesmo como mercadoria, a sua submisso ao

    capital.

    Assim, aquela representao da relao imaginria dos indivduos para

    com suas condies reais de existncia que, segundo Althusser, define a

    ideologia , na sociedade burguesa, uma representao essencialmente

    jurdica, porque essencialmente a iluso, determinada objetivamente, de

    uma autonomia para a prtica dos atos jurdicos que, em ltima instncia,

    constituem a mediao necessria das relaes de produo capitalistas. Esse

    carter constitutivo da subjetividade jurdica para a ideologia implica, por sua

    vez, que a ideologia jurdica atua como ideologia regional dominante no

    interior da sociedade capitalista.28

    questo da existncia de Deus. ALTHUSSER, L. Rponse a John Lewis. Paris: Maspero, 1973, p. 93-84. (Traduzi.) 28 A ideologia jurdica ocupa, portanto, o lugar ocupado anteriormente, na sociedade feudal, pela ideologia religiosa. Essa a concluso expressa j em: ENGELS, F.; KAUTSKY, K. O socialismo jurdico. So Paulo: Boitempo, 2012. Ainda nesse sentido: Se a ideologia religiosa assegurou a reproduo das relaes de produo feudais, o direito que, hoje, tendo conquistado pouco a

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    Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 49-70 Celso Naoto Kashiura Jr. DOI: 10.12957/dep.2015.12742| ISSN: 2179-8966

    O resultado prtico da atuao da ideologia jurdica como ideologia

    regional dominante a fixao das condies tpicas do terreno privilegiado

    sobre o qual se movimentam os sujeitos de direito, o terreno da circulao

    mercantil, como evidncias que os indivduos apenas reconhecem, como

    condies naturais, como realidade final, definitiva da sociedade burguesa.

    Ao apresentar a relao de capital apenas pela sua mediao, isto , pela

    relao jurdica entre sujeitos de direito por meio da qual se d a compra e

    venda da fora de trabalho, relao em que a equivalncia mercantil e a

    igualdade e a liberdade jurdicas se realizam em sua plenitude, a ideologia

    jurdica obstrui o acesso produo capitalista propriamente dita, como

    relao cuja lgica profundamente diferente daquela da circulao e como

    relao efetivamente determinante do papel social do indivduo que vende a

    sua fora de trabalho.

    Noutras palavras, ao tomar partido da circulao mercantil, ao fixar o

    ponto de vista da circulao mercantil como ponto de vista caracterstico

    do sujeito de direito , a ideologia jurdica esconde, sob a mscara do

    voluntarismo e da equivalncia, aquele outro terreno em que se realiza a

    explorao do trabalho, a desigualdade de classe entre o trabalhador e o

    detentor dos meios de produo, a produo do mais-valor o terreno

    oculto da produo. A representao imaginria aqui vivida pelo indivduo

    a representao jurdica da relao real (de produo) a relao de

    produo vivida como relao jurdica, o real investido pelo imaginrio

    das figuras do direito, pelo imaginrio da subjetividade jurdica livre no

    mbito da circulao mercantil.

    A ideologia jurdica obstrui, nesse sentido, para o indivduo, ao interpel-

    lo como sujeito de direito, a compreenso do seu preciso lugar na relao de

    pouco todo o espao econmico/social/poltico, porque o Estado se apoderou de todas as esferas da produo e da reproduo, regula o inconsciente e o consciente da produo mercantil capitalista, ou melhor, o direito que, regulando o processo do capital, regula o consciente e o inconsciente dos sujeitos desse grande Sujeito: o Capital. THVENIN, N.-. Ideologia jurdica e ideologia burguesa (ideologia e prticas artsticas). In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 71.

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    produo, a compreenso do seu papel na reproduo das relaes de

    produo, a compreenso da sua funo na estrutura social correspondente

    ao modo de produo capitalista. Ao indivduo como sujeito de direito resta,

    ento, a autonomia da vontade como, de fato, um presente singular:

    autonomia para vender a sua prpria fora de trabalho, para colocar-se

    voluntariamente disposio do capital, para inserir-se livremente no interior

    de um processo de produo do qual ele simplesmente no pode escapar. a

    ideologia jurdica, portanto, que pe o indivduo para andar sozinho como

    sujeito de direito para andar sozinho at o curtume, para realizar, na

    iluso de sua liberdade, essa prtica to necessria ao modo de produo

    capitalista: levar a prpria pele para o mercado.

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