suÁrez, miguel Ángel pérez - a mobilização operária anticapitalista na revolução de 1974-75
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A Mobilização Operária Anticapitalista Na Revolução de 1974-75TRANSCRIPT
Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.3, n.2,
Dossiê: 40 anos da Revolução de abril de 1974, dez. 2013. ISSN: 2237-0579
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“HOJE TEMOS MAIS CONDIÇÕES PARA IMPOR OS NOSSOS DIREITOS!”
A MOBILIZAÇÃO OPERÁRIA ANTICAPITALISTA NA REVOLUÇÃO DE
1974-75
Miguel Angel Pérez Suárez1
Resumo: Na sequência do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, mas com a marca
do período precedente, verifica-se uma vaga grevista sem precedentes que coloca em
causa a autoridade patronal nas empresas. O aprofundamento da crise revolucionária e a
radicalização dos conflitos laborais nos meses seguintes colocam as estruturas surgidas
no calor desses combates perante a necessidade de desempenhar um papel de direção
das lutas nas empresas. Para além disso, vários projectos políticos consideram-nas
formas precárias de um novo poder em potência, fazendo delas o seu campo de batalha.
Com os acontecimentos de 25-11-1975, porém, esses órgãos de empresa tenderão a
converter-se em estruturas de representação dos trabalhadores equivalentes às existentes
na Europa Ocidental.
Palavras-chave: Revolução, classe trabalhadora, socialismo, conflito social, indústria,
sindicatos.
Abstract: After the 25th April 1974, but prolonging trends from the previous years, a
wide and unprecedented strike wave occurs, questioning the owner's power inside
workplaces. The deepening of the revolutionary crisis and the radicalization of the
industrial movement lead the Worker´s Committees to take on the role of direction of
the struggles inside companies. At the same time, many political projects interpret this
Committees as a new potential power, turning them into a political battle-ground. With
the 25th
November 1975 coup, these organizations will tend to be a common European
representation of wage-earners on the enterprises.
Key-words: Revolution, working class, socialism, social conflict, industry, unions.
Introdução
Para uma abordagem do papel histórico do movimento operário no processo
revolucionário português de 1974/75, parece-nos inevitável referir uma série de
fenómenos relevantes que enquadram o nosso objeto de estudo.
Em primeiro lugar, assinalamos as profundas mudanças estruturais que a
sociedade e a economia atravessam no decorrer dos 15 anos prévios ao 25 de Abril de
1 Miguel Angel Pérez Suárez é Investigador Integrado do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa (UNL).
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1974. Portugal transforma-se então num país muito mais industrializado e urbanizado
do que fora antes. Entre 1950 e 1970, a população ativa empregada na indústria
transformadora aumenta em 250 mil (33%) enquanto o total da população diminui em
termos absolutos (150 mil), devido à massiva emigração para países da Europa
Ocidental. O país assiste a um enorme surto industrial marcado pelo lançamento de
grandes indústrias de base (siderurgia, metalo-mecânica pesada) e por importantes
investimentos estrangeiros, por via da instalação de grandes multinacionais em setores
como o dos componentes eletrónicos. Enquanto se verifica uma grande sangria
migratória para a Europa, a população e o desenvolvimento concentram-se nas áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto, que crescem em termos absolutos e relativos. À volta
das duas grandes cidades do país nascem ou multiplicam-se cidades e vilas no calor do
auge produtivo. Em paralelo à industrialização, verifica-se um processo de terciarização
da economia e o aparecimento de novas camadas sociais médias que encontram o seu
lar nas novas metrópoles. O forte crescimento económico e as transformações sociais
estão no fulcro dos acontecimentos subsequentes.
Em segundo lugar prestamos atenção ao conflito bélico iniciado em 1961 nas
colónias africanas. Com frequência as lutas de libertação nacional nas chamadas
“províncias ultramarinas” ocupam um lugar secundário nas análises sobre o fim da
ditadura em Portugal. Na nossa opinião, porém, têm um papel muitíssimo relevante. É
conhecido como o quadro de “impasse” militar (poderia dizer-se “colapso virtual”)
levou à rápida politização dos capitães do MFA e ao golpe de 25 de Abril, mas
deveríamos refletir sobre o conjunto de consequências de um esforço bélico global, sem
fim à vista e para além das reais capacidades nacionais, numa tensão brutal que explica
a radicalidade a que se assistiu nos meses quentes de 1974-75. Assinalamos contudo,
tendo em mente certas imagens idílicas da revolução de 25 de Abril, o caráter brutal da
guerra em África, cujo início terá tido como elemento fundamental a repressão sobre o
movimento grevista da baixa do Cassanje, em Angola. No mesmo sentido, e numa linha
de análise ainda por explorar, questionamo-nos sobre os efeitos políticos e sociais de
um tal esforço sobre uma sociedade tradicionalmente atávica como a portuguesa.
O movimento operário e sindical português sofre em 1933 a corporativização
decretada com a promulgação do Estatuto do Trabalho Nacional, que marca o fim do
sindicalismo livre e da influência anarco-sindicalista sobre a classe. O fracasso da greve
geral revolucionária de Janeiro de 1934 é uma marca temporal evidente quando, no
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tempo da II Guerra Mundial, se assiste a uma nova vaga de greves, coordenadas e
dirigidas pelo Partido Comunista recém reorganizado. A hegemonia do PCP sobre o
movimento é indiscutível a partir dessa altura e até os nossos dias, construindo-se numa
análise política muito influenciada por premissas inspiradas na tradição estaliniana-
frentepopulista do VII Congresso da Komintern, que o partido assume e desenvolve.
Desde a década de 40 que o PCP traça uma estratégia entrista na estrutura dos
Sindicatos Nacionais do regime (sindicatos de ofício e de base distrital). Os resultados
são na altura significativos mas imediatamente esmagados pela repressão. Será com essa
estratégia, contudo, que o PCP e outros setores da oposição conquistarão posições-
chave nos sindicatos, no virar da década de 60.
Com efeito, a iniciativa das reuniões intersindicais desde Outubro de 1970
(origem da futura Intersindical- CGTP) responde a uma realidade em que diversos
sindicatos são conquistados por listas oposicionistas e em que se verifica uma atitude
nova por parte das autoridades à ação reivindicativa dos trabalhadores. A publicação em
1969 dos Decretos-Lei 49058 e 49212, relativos à homologação das direções sindicais e
obrigatoriedade da contratação coletiva, favorecem efetivamente uma ação sindical mais
aberta e representativa e inserem-se numa nova política em relação aos conflitos
laborais, que se afasta das opções de repressão mais clássicas da ditadura, num quadro
geral em que o regime, com Marcello Caetano no lugar de António de Oliveira Salazar,
tenta mostrar uma imagem mais moderna e tolerante, sem colocar em questão os
princípios do Estado Novo (Patriarca, 2004). Entre eles, o da pluricontinentalidade da
nação portuguesa e o esforço de guerra em África, que irão marcar os limites da
renovação possível do regime.
Assim, à tolerância relativa para com a contestação sindical segue-se uma
crescente repressão nos primeiros anos da década de 70, com suspensões de direções
sindicais oposicionistas e prisões de alguns líderes, como nos Bancários, Metalúrgicos e
Escritórios de Lisboa. O clima de crise política (com a guerra sem fim à vista em
África) e económica (com os primeiros efeitos do choque petrolífero) ajudam a explicar
o alastramento da conflitualidade nas empresas. Se em 1969 houve uma agitação
grevista de dimensões assinaláveis, com os efeitos já referidos a nível legal, nos meses
prévios ao 25 de Abril de 1974 verifica-se uma grande vaga de greves que afecta um
enorme número de empresas: na região de Lisboa o Metro, a Cometna, a Sorefame, a
Mague e a Timex (entre outras empresas do setor da eletrónica) vivem movimentos
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reivindicativos e paralisações que nalguns casos terão continuidade depois do golpe dos
capitães. É uma contestação de novo tipo, que atinge camadas sociais médias
(trabalhadores da saúde, arquitetos, professores), que está influenciada pelo clima de
fim-de-regime, com a contestação estudantil e a guerra como pano de fundo, e que
encontra novos referentes políticos numa extensa gama de grupos de extrema-esquerda
que rejeitam a política de alianças tradicionalmente propugnada pelo PCP. As
mobilizações laborais destes meses finais da ditadura são marcadas pelos
acontecimentos da TAP (Transportes Aéreos Portugueses), onde um prolongado
processo de negociação do contrato coletivo de trabalho culmina, em Julho de 1973,
num plenário no centro histórico de Lisboa (Voz do Operário) duramente reprimido
pelas forças policiais, com duríssimos confrontos que se prolongam no dia seguinte nas
instalações do aeroporto. Ali, no seu meio quotidiano e com armamento rudimentar, os
trabalhadores são capazes de fazer recuar a polícia de choque, que chega a usar fogo
real. Na TAP os trabalhadores souberam criar uma dinâmica democrática e combativa,
que terá continuidade nos acontecimentos posteriores ao 25 de Abril.
1. O 25 de Abril e as greves de Maio e Junho.
O golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 recolhe uma adesão popular unânime
logo que são anunciados os seus objetivos de pôr fim à guerra e construir um sistema
democrático. As manifestações populares de apoio aos capitães culminam na jornada do
1º de Maio, declarado feriado nacional pelas novas autoridades, quando centenas de
milhares de cidadãos saem às ruas de Norte a Sul do país em apoio à nova situação. Na
manifestação de Lisboa discursam líderes da oposição, como Álvaro Cunhal e Mário
Soares, bem como dirigentes sindicais, que traçam uma série de reivindicações que se
vão expandir nas semanas seguintes. Assim, e enquanto nos discursos dos líderes
partidários predomina a ideia de unidade das forças democráticas e de moderação, os
quatro oradores sindicais apontam objetivos como o desenvolvimento das políticas
sociais (saúde, previdência), a melhoria de salários e condições laborais, o ataque às
estruturas do regime deposto e o saneamento de elementos a ele ligados nas empresas,
alguns deles referindo explicitamente o objetivo de uma sociedade socialista. Nos dias
seguintes, uma enorme vaga de greves e processos reivindicativos percorre o país e
transforma a sociedade portuguesa. Significativamente, a 2 de Maio temos notícia da
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greve e retenção dos administradores dos TLP (telefones) em Lisboa, assim como das
primeiras ocupações de casas no bairro da Boavista em Lisboa, nos primeiros passos do
grande movimento de moradores urbanos que virá a desenvolver-se durante a revolução.
A primeiras paralisações acontecem nas grandes indústrias na margem Sul do
Tejo, na periferia da capital, em empresas como a Siderurgia Nacional, a Lisnave
(construção naval) e a CUF (química). Têm também início movimentos reivindicativos
nas grandes empresas de serviços do Estado, como os correios, o caminho-de-ferro, os
transportes aéreos, os telefones, sem recurso imediato à greve. Nas semanas seguintes as
mobilizações generalizam-se em toda a região metropolitana da capital, num
movimento que atinge por ondas todos os setores, sem chegar a ser uma greve geral
simultânea. As greves chegam rapidamente ao Porto, que conhece nesse mês uma greve
da indústria têxtil e mobilizações nos transportes coletivos e nas obras do grande
empreendimento petroquímico de Matosinhos, até alcançar a generalidade dos núcleos
industriais. As comunidades piscatórias vivem grandes paralisações nos meses de Verão
e, no Outono de 1974, é paralisada por uma greve geral a indústria conserveira do
Algarve, com a sua longa história de lutas. Cronologicamente, e segundo os dados
disponíveis, o movimento começa na primeira semana de Maio e atinge um pico no
final desse mês, prolongando-se durante o mês de Junho nalguns conflitos de grande
significado (Neves, 1978; Santos et al., 1976; Durán Muñoz, 2000). Incluímos em
anexo alguns desses levantamentos, referindo desde já algumas limitações em qualquer
tentativa de quantificar o movimento. Não se encontram disponíveis estatísticas oficiais
e apenas dispomos de contagens de greves feitas em diferentes contextos, a partir da
imprensa diária lisboeta, que iremos referindo neste trabalho. Representam apenas uma
ideia aproximativa e possível das dimensões do objeto de estudo, que não nos informa
acerca da duração dos conflitos nem do número dos seus participantes e que pensamos
sofrer de um problema difícil de aferir, que é o facto de as greves se terem tornado
“não-notícia”, num contexto de grande agitação social e crise política permanente
durante os meses do processo revolucionário.
Sobre os conteúdos reivindicativos desta vaga de conflitos, referimos os dados do
trabalho pioneiro do Gabinete de Investigações Sociais2, que estuda 158 conflitos entre
25 de Abril e 31 de Maio de 1974. Outros estudos, como o de R. Durán Muñoz (2000),
2 Estudo publicado originalmente em 1975 na Análise Social e reimpresso como introdução a uma
coletânea de documentos de diversas lutas (Lima Santos et al., 1977).
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apontam resultados semelhantes. Segundo o GIS predominam reivindicações de tipo
económico e político, em concreto o salário mínimo, que aparece em 45.9% dos
conflitos, o saneamento de patrões e pessoal de direção, em 43.3% e aumentos salariais,
em 42%. Em relação aos aumentos salariais, os autores desse estudo salientam o caráter
igualitário das reivindicações, com uma grande extensão da exigência de aumentos
uniformes e de igualdade salarial para as mulheres e os menores. Exige-se o
«saneamento» (afastamento de elementos vinculados ao regime deposto), reivindicação
que se estende com facilidade a pessoas acusadas de incompetência, corrupção ou mau
trato aos trabalhadores. O aparecimento do saneamento (que, segundo o mesmo estudo
do GIS, terá atingido cerca de 1000 empresários e administradores) em segunda posição
entre as reivindicações mais frequentes também é enormemente significativo. A
exigência do afastamento da empresa de elementos acusados de conivência com a
repressão e incompetência coloca o poder patronal em questão, anunciando outras
formas de transgressão dos limites que se poderiam considerar normais num conflito
laboral. Saneamento, ocupação, barragem de passagem a pessoas (proprietários,
administradores) e autogestão são formas de luta comuns desde os primeiros tempos do
«processo revolucionário em curso» (PREC) que agora se abre. É de assinalar o
sentimento criado nestes processos de luta, uma ideia de que chegou o momento de lutar
e de que a unidade é a força que abre caminho a uma vitória certa, já palpável. Como
afirmam os trabalhadores da Mabor, uma fábrica de pneus de Lousada (Porto):
Hoje temos condições mais favoráveis para impor os nossos direitos, cada
vez mais camaradas sabem que é pela luta que os direitos se conquistam, que
é sobretudo na luta que descobrimos quem são os nossos verdadeiros e falsos
amigos, cada vez entendemos melhor como nos exploram, porque o fazem e
como devemos lutar contra isso [...]. Hoje sabemos que a nossa luta faz parte
da luta que todos os operários travam contra todos os patrões onde quer que a
exploração destes sobre quem tudo produz e pouco recebe existe. Hoje
sabemos que só quando todos os explorados se unirem contra os exploradores
conseguiremos vencer total e definitivamente. Até lá lutaremos cada vez
mais, cada vez melhor, por uma vida digna de homens certos de que
caminhamos para uma vitória que ninguém nos conseguirá arrancar das
mãos. ABAIXO A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA - VIVA A CLASSE
OPERÁRIA - VIVA A JUSTA GREVE DOS OPERÁRIOS DA MABOR -
UNIDOS VENCEREMOS 3.
A empresa torna-se um espaço de luta entre os trabalhadores e os capitalistas
particulares, que sempre exerceram uma autoridade incontestada no interior das 3 Manifesto dos grevistas da Mabor, 29-6-1974. Reproduzido in Revolução, nº. 6, 5-7-1974
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empresas. Os trabalhadores consideram-se agora no direito de discutir as decisões do
empresário e de pô-las em causa, recorrendo a formas de luta radicais: a ocupação é a
segunda forma de luta mais frequente (35 em 158, sempre segundo os números do GIS)
e torna-se comum a aplicação unilateral na empresa da vontade dos trabalhadores em
questões de horários e saneamentos. As Comissões de Trabalhadores (CT´s) afirmam-se
como a estrutura essencial de organização dos trabalhadores nas empresas. Surgidas no
calor da luta, eleitas em processos de assembleias e apresentação de reivindicações,
aparecem como a forma natural de superar uma situação sindical muito fragmentada e
caracterizam-se pelo seu caráter autónomo face às instituições e partidos, numa fórmula
organizativa que acompanha as tendências que se verificam no movimento operário
internacional neste período. São variadíssimas as estruturas e as formas de eleição que
adotam as CT´s, assim como as próprias denominações que elas vão adotar. Voto
secreto ou de braço no ar, em assembleia-geral ou por secção, é-nos impossível traçar
um quadro global de uma realidade que escapa a programas estabelecidos previamente,
sendo sim uma expressão viva de um movimento social em explosão. “Comissão de
Trabalhadores” é o nome genérico desta realidade, adotando-se nomes diferentes
nalguns casos (Conselho de Trabalhadores na Setenave, Comissão de Delegados na
Lisnave) e sendo de assinalar que foi usada com frequência a denominação de
“comissão ad-hoc”, por comissões de caráter provisório que pressupunham a criação
ulterior de estruturas representativas mais definitivas.
Ao mesmo tempo que se desenvolve a conflituosidade e a organização nas
empresas, o movimento sindical começa uma profunda reorganização sob a hegemonia
incontestada do PCP (em contraste com o que acontece em muitas empresas). Dezenas
de sindicatos são tomados por grupos de trabalhadores durante o mês de Maio e a
Intersindical (que organiza as grandiosas manifestações de 1 de Maio) aparece
legalmente. Esta agrupa rapidamente a maioria dos antigos sindicatos nacionais e
começa a dotar-se de estruturas de coordenação regionais, enquanto se dão passos para a
criação de sindicatos em setores onde até então não eram permitidos (função pública,
professores, correios, pescadores).
2. O papel do PCP.
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O PCP, principal organização política no seio do movimento operário,
desenvolve uma linha de atuação marcadamente moderada, insistindo no reforço da
organização sindical e posicionando-se contra o recurso à greve em numerosas
empresas. Trata-se de uma orientação que segue a análise tradicional do PCP acerca das
tarefas democráticas da revolução - traçadas desde o I Congresso Ilegal de 1943 e
sintetizadas por Álvaro Cunhal em Rumo à Vitória4, de 1965. Mas é também uma
política controversa e que cria dificuldades à afirmação do partido em numerosas
empresas, como assinalam relevantes militantes do partido nas suas memórias5.
Desde o mês de Maio os novos poderes estabelecidos na sequência do 25 de
Abril (Junta de Salvação Nacional, Governo Provisório) desenvolvem uma grande
campanha mediática contra as greves, com o apoio do PCP e da Intersindical. A 1 de
Junho esta realiza uma manifestação de rua contra o abuso desse direito laboral e, no
final do mês, a ameaça de intervenção repressiva leva à suspensão da greve nos
correios. Mas se poderia supor- se a redução da conflituosidade durante os meses de
Verão, que nos dados estatísticos aparecem como de menor número de greves (ver
anexo 1), tal não vem efectivamente a acontecer. A partir de Agosto desenrolam-se
conflitos de empresa que colocam em apuros toda a linha de contenção esboçada pelo
PCP. No final de Agosto inicia-se a greve do Jornal do Comércio (que se estende
durante todo o mês de Setembro), onde os trabalhadores exigem o saneamento do
diretor do rotativo e editam um jornal da greve nas próprias oficinas, o que leva à
ocupação da empresa por forças militares e a uma greve geral da imprensa diária de
solidariedade, rejeitada pelo PCP. Na mesma altura na TAP desenrola-se um conflito
laboral intenso com a greve do pessoal operário da Divisão de Manutenção e
Engenharia da companhia, que leva à intervenção militar na empresa (com base em
legislação de 1943) e às muitas dezenas de despedimentos, num processo de luta que
vem do tempo da ditadura (com os acontecimentos de Julho de 1973 como pano de
fundo) e numa empresa que jogara nos últimos anos um papel de vanguarda do
movimento sindical: o sindicato dos metalúrgicos de Lisboa (STIMMDL) fora presidido
por dois trabalhadores da DME-TAP desde a sua conquista pela oposição democrática
em 1970.
4 CUNHAL, Álvaro Rumo à vitória. Porto: A Opinião, 1974 (1965)
5 Ver Américo Nunes (2010) Sindicalismo na Revolução de Abril, Lisboa: Edições Avante! e Carlos
Brito (2010) Álvaro Cunhal, sete fôlegos do combatente, Lisboa: Nelson de Matos.
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No plano político o apoio dado pelo PCP às medidas repressivas e a crítica feita a
estes coletivos de trabalhadores é fortemente criticado por outras organizações de
esquerda e pelos próprios coletivos em luta. Um posicionamento semelhante do partido
nos estaleiros da Lisnave leva a uma censura do PCP por parte da assembleia dos
trabalhadores daquela empresa fulcral. A Lisnave fizera greve em Maio de 1974
conquistando os trabalhadores grandes melhorias económicas, mas continuava em
aberto a questão das responsabilidades de quadros da empresa na repressão de uma
greve em 1969. A CT continua a insistir na questão do saneamento de vários
engenheiros e organiza uma manifestação a 12-9-1974, que é criticada pelo PCP mas
referendada novamente em plenário, apesar da sua ilegalização pelas autoridades. A sua
realização possui um significado histórico inegável por dois motivos. Em primeiro lugar
porque é realizada contra uma tentativa de a reprimir, dando à posteridade uma imagem
chave de fusão entre trabalhadores e forças armadas que se repetirá nos meses seguintes.
Em segundo porque com a sua realização os trabalhadores adotam uma posição
abertamente crítica com o PCP e a sua linha de unidade democrática e nacional,
assumindo posicionamentos políticos de classe inspirados por outras correntes
ideológicas do movimento operário, do qual reproduzimos um longo extrato. Lemos no
manifesto dos trabalhadores:
- (…) A NOSSA LUTA PELO SANEAMENTO NÃO É UMA LUTA
SECUNDÁRIA, é uma luta principal, porque a englobamos num combate
permanente e sempre vivo contra todas as tentativas e manifestações do
FASCISMO, que renasce constantemente da podridão do CAPITALISMO
MONOPOLISTA.- Que onde há iniciativa e luta organizada das classes
oprimidas a reacção recua. Onde há diminuição de vigilância por parte do
povo as forças contra-revolucionárias avançam tentando esmagar as
liberdades já conquistadas.- Que estamos com todas as leis e medidas do
Governo Provisório que forem ao encontro do alargamento das liberdades
dos trabalhadores e dos povos que o colonialismo português explora e
oprime.- Que não estamos com o Governo quando promulga leis anti-
operárias, restritivas à luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista.-
Que lutaremos activamente contra a “lei da greve” porque é um golpe
profundo nas liberdades dos trabalhadores. (…) - Que estaremos com as
Forças Armadas sempre que estas estejam com as classes oprimidas e
exploradas contra as classes opressoras e exploradores. OPERÁRIOS DA
LISNAVE SANEIAM FASCISTAS. MORTE À PIDE – MORTE AO
FASCISMO. DIREITO A GREVE, SIM! LOCK-OUT NÃO! AOS
CAMARADAS EM GREVE, APOIO! DEMOCRACIA AOS OPERÁRIOS
– REPRESSÃO AOS REACCIONÁRIOS VIVA A CLASSE OPERÁRIA6
6 “Dos operários da Lisnave à população”, Trabalhadores da Lisnave, 11-9-1974, in A. V. (1977) O 25 de
Abril e as lutas sociais nas empresas, Porto, E. Afrontamento, 2º vol., p. 110.
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3. A Interempresas.
É neste contexto, e numa realidade de conflitos laborais que começa a
transformar-se, que se vão organizar as primeiras experiências de coordenação de CT´s.
Fátima Patriarca, num excelente estudo sobre a citada manifestação dos operários da
Lisnave7, refere que nessa altura existe uma proposta de juntar os trabalhadores da TAP
numa manifestação ampla contra a Lei de Greve muito limitativa que o governo publica
na altura, e que é criticada pelos trabalhadores da Lisnave. Na mesma altura o conflito
da empresa têxtil Sogantal radicaliza-se com a tentativa de reocupação da empresa por
parte do patrão. A Sogantal fora abandonada pela entidade patronal em Maio, sendo
autogerida pelas suas trabalhadoras que recebem inúmeras mostras de solidariedade. O
conflito torna-se um caso nacional8 e são conhecidas iniciativas de apoio de outras
CT´s. A partir destas iniciativas configura-se uma coordenadora que adota o nome de
Interempresas.
É do apelo, em Janeiro de 1975, de um plenário de trabalhadores da Efacec-Inel
(uma importante empresa metalúrgica de Lisboa) que vai surgir a convocatória de
manifestação contra o desemprego que reúne dezenas de CT´s. A Efacec conhece uma
longa greve em Julho de 1974, com a ocupação da empresa e a edição de um jornal de
greve diário. É o primeiro movimento na Efacec (e outros se seguirão), cuja CT
(chamada Comissão de Direitos e Defesa dos Trabalhadores) vai jogar um papel chave
na conjunção de CT´s e militantes mais radicais de outras empresas ajudada pela própria
atividade, que realiza trabalhos de montagem e manutenção em outras empresas. Uma
outra estrutura que fornece um apoio material imprescindível é a Comissão Pró-
Sindicato dos CTT (correios) que estivera à frente da luta de Junho. Finalmente a
manifestação é marcada para 7 de Fevereiro, unindo ao protesto contra o desemprego a
rejeição das manobras da NATO a decorrer em Portugal nessa altura.
Apesar de ter recebido duras críticas da Intersindical e do PCP (o número dois do
partido, Octávio Pato, chega a compará-la à manifestação spinolista de 28 de Setembro
do ano anterior), e de ter sido proibida pelo Governo Civil de Lisboa, a manifestação
7 Fátima Patriarca ,“Operários portugueses na Revolução: a manifestação dos operários da Lisnave de 12
de Setembro de 1974” in Análise Social, vol. XIV (56), 1978-4º. 8 Sobre a Sogantal existe um excelente texto de Mª. Antónia Palla com o título “O caso Sogantal”,
recolhido no livro Só acontece aos outros (Palla, M. A. (1977) Só acontece aos outros, Amadora:
Bertrand,). Assinalamos também dois documentários fílmicos: o coevo O caso Sogantal (Cinequipa,
1975) e o mais recente de Nadejda Guilhou Nous ouvriéres de la Sogantal (2009).
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realiza-se sem nenhum incidente violento e reúne dezenas de milhares de trabalhadores
que recebem a solidariedade dos soldados do Regimento de Artilharia Ligeira nº 1 no
ponto de chegada da manifestação, no edifício do Ministério do Trabalho. Poucas
semanas depois decorre uma iniciativa semelhante na cidade do Porto, com milhares de
manifestantes. Porém esta iniciativa protagonizada por CT´s influenciadas por diversos
grupos da esquerda revolucionária como a UDP, o MES e o PRP-BR não vai ter
continuidade. Depois do 7 de Fevereiro não existirão novas iniciativas desse género,
predominando iniciativas partidárias que não terão o mesmo grau de sucesso.
4. 1975: O ano da brasa
Entretanto a dinâmica do processo revolucionário acelerara-se com a derrota das
tentativas bonapartistas do presidente Spínola. Em Julho de 1974 a proposta de umas
eleições presidenciais imediatas é recusada pelos capitães esquerdistas do Movimento
das Forças Armadas e em Setembro a convocação e subsequente proibição de uma
manifestação de apoio ao Presidente leva ao choque definitivo entre os jovens oficiais e
o general, que apresenta a sua renúncia. Nos meses seguintes é discutida uma lei
sindical que marca o fim do entendimento entre o Partido Socialista e o PCP. A
aprovação da Lei Sindical em Janeiro de 1975 é uma vitória política do PCP que,
dominando na Intersindical e na grande Maioria dos sindicatos, vê reconhecido o
princípio de unicidade sindical pela lei.
Ao mesmo tempo a realidade dentro das empresas transforma-se. As
dificuldades económicas e as crises políticas da revolução dificultam o clima de
negócios, tornando-se o desemprego - como a manifestação da Interempresas mostra -
um problema acutilante para muitas dezenas de milhares de trabalhadores. Face a esta
ameaça de desemprego, muitas vezes exemplificada na fuga dos patrões, o recurso à
ocupação das instalações das empresas para continuar a laborar é cada vez mais
frequente. É necessário, na nossa opinião, distinguir estes casos do recurso, frequente na
altura, à ocupação das instalações de trabalho com laboração como forma de luta radical
contra a organização patronal da empresa, como acontece na luta da Socel (Celulose,
Setúbal) já no verão de 1974, e na Siderurgia Nacional em Dezembro do mesmo ano.
Sobre as situações de autogestão, podemos referir como exemplo o caso já
referido da Sogantal já em Junho de 1974, agora multiplicado. Segundo uma contagem
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feita pela Confederação da Indústria Portuguesa9 ter-se-iam registado 24 ocupações de
empresas no último trimestre de 1974, e 83, 55 e 14 no 1º, 2º e 3º trimestres de 1975,
respetivamente. São números que merecem ser analisados com alguma precaução a
julgar pela própria fonte, mas falam-nos de uma realidade bem presente nesse período.
A 25 de Novembro de 1974 é publicado o DL 660/74 que permite a intervenção do
estado em empresas privadas, demitindo administrações e nomeando gestores. A norma
é aplicada inicialmente em grandes empresas privadas com dificuldades financeiras
como a Torralta e a Grão-Pará, mas rapidamente torna-se o expediente para muitas
empresas cujos trabalhadores se vêm ameaçados pelo encerramento. As empresas
intervencionadas (ao abrigo do DL 660/74 e outros posteriores) durante 1975 e 1976 são
mais de 350, afetando cerca de 200.000 trabalhadores e abrangendo toda uma série de
empresas de grande dimensão da indústria, comércio e construção civil. Um outro dado
estatístico relevante para aferir da dimensão deste fenómeno é a explosão do setor
cooperativo na indústria e nos serviços, que passa de 18 para 830 cooperativas entre
1974 e 197810
. Muitas dessas cooperativas terão nascido de experiências de empresas
intervencionadas não devolvidas aos proprietários.
É necessário esclarecer a diferença entre estes processos de intervenção do
Estado com as nacionalizações que se verificam em 1975, na conjuntura política do
golpe falhado de 11 de Março de 1975. O fracasso da tentativa de retorno ao poder de
Spínola despoleta uma situação de controle dos bancos pelos seus trabalhadores que
leva à nacionalização desse setor a 13-3-197511
, seguindo-se outros setores produtivos
(seguros, transportes, cimentos, celulose, siderurgia, cervejas) nas semanas seguintes. A
Reforma Agrária conhece um impulso considerável, sendo publicadas leis (406-A e
407-A/75) que estabelecem a expropriação das grandes propriedades, numa altura em
que já se tinham verificado as primeiras ocupações de terras. Não dispondo de
condições para referir a história da reforma agrária na revolução portuguesa, devemos
sim salientar o facto de na sua origem estar a organização e a luta sindical dos
trabalhadores assalariados no campo, num processo paralelo ao dos trabalhadores
urbanos, assim como o tema da sua defesa ao longo dos anos subsequentes, até meados
9 Boletim da CIP, 1974-1976.
10 “Ordem de trabalhos (indicativa) para os encontros regionais”, Centro “O Trabalho”, julho de 1979.
Arq. APSR, Doc. Centro “O Trabalho”, vol. 1. 11
Sobre a nacionalização da banca consultar o artigo de Ricardo Noronha neste dossier, bem como
Noronha (2011)
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da década de 80, ter sido uma reivindicação basilar do movimento sindical português. È
nesse mesmo período que se realizam as primeiras eleições livres, que dão uma
expressiva vitória ao PS (38% dos votos) e colocam ao PCP em terceiro lugar com
apenas 12.5%. As eleições, que contam com uma elevadíssima participação (mais de
90% dos eleitores), supóem o nascimento de uma legitimidade democrática que se irá
opor à dinâmica revolucionária em um prolongado confronto que só se encerra a 25 de
Novembro de 1975.
Neste quadro de radicalização do processo revolucionário e viragem à esquerda
do MFA, com a questão sindical resolvida e dezenas de ocupações de empresas a
direção do PCP começa uma correção de grande fôlego em relação à questão das CT´s,
em que a intervenção do próprio secretário-geral terá tido um importante papel. E
efetivamente assistimos durante o ano 1975 à formação de CT´s em empresas onde
estas tinham sido extintas previamente por iniciativa de militantes comunistas, como
por exemplo nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, e a iniciativas de coordenação
de trabalhadores por empresa. Nesse período assiste-se a uma importante crise na CT da
Lisnave, que era dominada desde 1974 por militantes da extrema-esquerda. Em Março e
Abril de 1975, numa sucessão de plenários, são demitidas algumas das subcomissões
mais radicais (como a de Redução do Leque Salarial) e alterada a sua estrutura: uma
comissão de 9 elementos substitui a reunião de cerca de 200 delegados de setor, que no
entanto continuam a ter um papel como voz dos diferentes setores. O significado
político do processo é a recuperação de espaço por parte do PCP.
Privada do seu apoio na Lisnave, a Interempresas não consegue dar continuidade
ao sucesso da manifestação de 7 de Fevereiro. Nos meses seguintes sucedem-se várias
iniciativas que vão estar muito marcadas pelos programas políticos dos partidos que as
promovem. São os chamados Conselhos Revolucionários de Trabalhadores, Soldados e
Marinheiros, promovidos por militantes do PRP-BR, que realiza dois congressos em
Abril e Julho de 1975, e a Inter-Comissões de Trabalhadores que junta as CT´s
influenciadas pelos maoistas do MRPP, como as da Tinturaria Cambournac, Timex e
TLP (Telefones). A Inter-Comissões está ativa ao longo do ano, e em Outubro de 1975
é realizado por sua iniciativa um Congresso Nacional das CT´s na cidade da Covilhã. A
atividade da Interempresas parece marcada pela evolução da União Democrática
Popular, que se vai tornando o Maior partido à esquerda do PCP, revela-se-nos mais
difícil de avaliar e inexplicavelmente apagada.
A mobilização operária anticapitalista na revolução de 1974-75
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A divisão e a falta de iniciativa política da Interempresas facilita o caminho para
que o PCP desenvolva uma coordenadora de CT´s da região de Lisboa, que se vai tornar
quase imediatamente o referente essencial ao nível das empresas. O Secretariado
Provisório das CT´s da Cintura Industrial de Lisboa (que fica conhecido como CIL)
reúne desde o seu início mais de uma centena de CT´s, e conta com o suporte de uma
parte da extrema-esquerda que em Agosto de 1975 conflui com o PCP na Frente de
Unidade Popular. Aparece publicamente pela primeira vez no início de Julho de 1975
organizando uma manifestação em Lisboa e está presente na vaga de manifestações de
massas acontecidas na capital portuguesa nos momentos quentes de Agosto, com a
publicação dos vários documentos militares sobre o futuro da revolução e a formação do
V Governo Provisório de Vasco Gonçalves. Nesse mesmo mês a CIL secunda a
paralisação geral contra os assaltos a sedes de sindicatos e partidos de esquerda no
Centro e Norte do país. Também encontramos a CIL em Setembro, organizando ela
própria uma manifestação em Lisboa e apoiando a manifestação dos Soldados Unidos
Vencerão, a 18 e 25 desse mês respetivamente. Nestes meses quentes do PREC, em que
tudo parece estar ao alcance das mãos, sucedem-se iniciativas múltiplas que nos dão
mostras do elevado grau de politização da classe trabalhadora. Assim, em Maio de
1975, num encontro mundial de estruturas representativas dos trabalhadores da IBM, os
trabalhadores portugueses dessa multinacional declaram pretender “colocar a atividade
da nossa empresa ao serviço da nossa revolução”, e “subordinar a atividade da empresa
aos interesses dos nossos povos”, num texto em que se critica a divisão do trabalho
manual e intelectual e a vulgarização deste último com a introdução da tecnologia12
.
Nesses meses centrais da revolução, no campo sindical reúne-se o congresso da
Intersindical, em Julho, onde discursa o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, e que
constitui uma manifestação de apoio aos militares esquerdistas, esboçando-se uma linha
sindical ligada aos posicionamentos moderados dos meses anteriores, apelando agora ao
esforço da classe trabalhadora no apoio à situação política e à “construção do
socialismo”. Durante o outono ainda mais quente assiste-se, porém, à derrota dessa
linha (defendida por “listas unitárias” com hegemonia do PCP) em sucessivas eleições
em sindicatos de serviços (banca, seguros, escritórios), onde passam a predominar
direções sindicais PS-MRPP. São os primeiros sinais de acontecimentos posteriores,
12
“Encontro Mundial de estruturas representativas dos trabalhadores da IBM”. ANTT, Fundo Conselho
da Revolução, GES-SVES, Caixa 119, Dos. 80.
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que não vamos aqui analisar: o processo de divisão do movimento sindical culminando
em 1979 com a criação da UGT.
5. Os caminhos do 25 de Novembro.
As semanas que antecedem o golpe militar de 25 de Novembro de 1975 ficam na
memória como momentos de agudização da crise política e da conflituosidade laboral.
Com efeito assiste-se a greves nacionais dos metalúrgicos (Outubro) e dos trabalhadores
da construção civil (Novembro). As duas greves têm enorme adesão e culminam com
manifestações maciças na capital. Os metalúrgicos marcham a 7 de Outubro até o
ministério de trabalho, e exercendo forte pressão conseguem importantes melhorias nas
suas condições de trabalho. A greve da construção civil culmina com uma das mais
simbólicas ações de massas: a concentração frente ao parlamento em São Bento e a
retenção dos deputados da Constituinte durante cerca de 36 horas. Ambos movimentos
levam a marca do momento cimeiro do processo revolucionário, exprimindo a vontade
de transformação social dos movimentos. Assim, num extraordinário documento sobre a
greve da construção civil13
, um velho operário diz estar a lutar “para os seus
descendentes possam viver num Portugal mais justo”. A mobilização consegue impor as
reivindicações operárias num momento chave do processo revolucionário, a caminho do
golpe de 25 de Novembro e a via de “normalização” democrática que esse
acontecimento iniciará.
Ainda em relação a estes importantes movimentos grevistas vale a pena assinalar
novamente as dificuldades e limitações que os dados quantitativos disponíveis
apresentam. Neste sentido ambas as greves gerais e de âmbito nacional (abrangendo
centenas de milhares de trabalhadores e largas centenas de empresas) contam tanto
como uma paralisação numa pequena ou média empresa. E também não poderíamos
deixar de referir outros dois conflitos que têm um papel de grande destaque no processo
revolucionário e movimentam largas massas de trabalhadores. Referimo-nos à ocupação
do jornal República e da emissora católica Radio Renascença. O República é ocupado
pelos trabalhadores em final de Junho, críticos com a linha pró-PS do jornal e saneiam o
seu diretor Raul Rego, o que leva à saída do PS e do Partido Popular Democrático do IV
Governo em Julho. O conflito laboral da Rádio Renascença culmina com a ocupação da
13
Greve na construção civil (Cinequanon, 1975).
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estação no mês de Julho, criando uma situação muito complicada entre as autoridades e
a hierarquia da Igreja, que se vê privada de um meio de comunicação de referência.
Com efeito, a RR “ocupada pelos trabalhadores” coloca-se “ao serviço da classe
operária dos camponeses e do povo trabalhador”, tal como os seus boletins noticiosos
passam a ser abertos. A crise será encerrada em Novembro com o rebentamento das
antenas emissoras por ordem das autoridades, após outras tentativas de acabar com a
ocupação, num processo de luta que é marcado por várias manifestações de massas. O
do República e da RR são processos de luta que criam contrapoderes mediáticos,
proporcionando uma referência política e fontes de informação própria aos movimentos
revolucionários. Pode ser difícil para nós, na era da internet, compreender o autêntico
valor de pôr ao serviço da mudança social uma estação radiofónica de referência nos
anos 70.
Nos acontecimentos prévios ao 25 de Novembro a CIL marca presença na
convocatória da grande manifestação de 16 de Novembro no Terreiro do Paço e na
paralisação geral na região de Lisboa de 24, que culmina com uma manifestação frente
à Presidência da República. No dia 25 de Novembro, numa malha de acontecimentos
ainda por desemaranhar, uma ação militar dos setores mais à direita das forças armadas
toma conta da situação político-militar ocupando os regimentos vermelhos da capital
(RALIS, Polícia Militar, EPAM e outros). O movimento aproveita a falta de comando
da esquerda e da situação criada com a insubordinação dos paraquedistas (que tinham
ocupado várias bases da Força Aérea), respondendo a um plano bem estruturado e a
uma base de apoio alargada. O papel jogado pelo PCP é objeto de controvérsia, estando
muita da sua base militante do lado dos militares revolucionários. As mobilizações dos
dias prévios ao golpe e a posição assumida por vários sindicatos e CT´s, e militantes a
título individual permitem afirmar a existência de uma pulsão nesse sentido, que a
direção do partido terá conseguido conter. Os acontecimentos de 25-11-1975 marcam
uma alteração da correlação de forças na política e na sociedade portuguesas que é
percebida pelos atores rapidamente. O tempo das ilusões terminara.
Uns dias antes do 25 de Novembro, a 8 desse mês, a CIL realizara um encontro
de CT´s nas instalações da SN no Seixal, em que participam cerca de 300 CT´s. São
discutidas questões como o controle operário, o desemprego, política reivindicativa,
nacionalizações, reforma agrária, e organização e coordenação das CT´s. Nesse ponto, o
encontro manifesta que “a estrutura sindical é a organização fundamental dos
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trabalhadores”, salientando a necessidade de se coordenar com ela e evitar que surja
uma estrutura paralela à sindical14
. Encontramos aqui enunciada pela primeira vez uma
característica essencial do movimento operário na democracia: o funcionamento
paralelo de uma estrutura sindical (Intersindical, CGTP-IN) e uma estrutura das CT´s
(CIL, CI de Setúbal, do Porto), com a parte sindical em clara hegemonia. A fórmula
Intersindical-CIL inaugura-se a 17 de Janeiro de 1976 numa enorme manifestação no
Estádio 1º de Maio em Lisboa contra o aumento do custo de vida, num quadro de
mudança qualitativa na correlação de forças. Na véspera, uma convocatória semelhante
feita pelo secretariado dos Órgãos da Vontade Popular (ligado à esquerda
revolucionária) mobilizara alguns milhares. No dia 1 a Guarda Nacional Republicana
fizera quatro mortos e dezenas de feridos na repressão sobre manifestações de apoio aos
militares detidos no 25 de Novembro. Assim, desde o início de 1976, esboça-se um
quadro em que os trabalhadores portugueses vão lutar massivamente em defesa das
conquistas obtidas na revolução, sofrendo a repressão do Estado (por vezes violenta, e
mesmo sangrenta) e sob a hegemonia política do PCP.
Anexo1
Fuente: Boletim, CIP, 1974-76.
14
CIL, Secretariado provisório das CT´s da Cintura Industrial de Lisboa, 1º grande encontro das CT´s da
CIL- SN, Paio Pires, 8-11-1975, Lisboa, s. d.
Greves em Portugal 1974/76
0
5
10
15
20
25
30
35
Out
-74
Dez
Fev-7
5Abr
Jun
Ago O
utDez
Fev-7
6Abr
Jun
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