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Stélio Furlan José Carlos Siqueira Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Literatura Brasileira pela UFSC e graduado em História pela UFSC. Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portu- guesa pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Linguística pela USP. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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Stélio Furlan

José Carlos Siqueira

Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Literatura Brasileira pela UFSC e graduado em História pela UFSC.

Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portu-guesa pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Linguística pela USP.

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O Romantismo: poesiaJosé Carlos Siqueira

Do homem não vê na terra

Mais que a dúvida, a incerteza,

A forma que engana e erra

Almeida Garrett

A arte como mercadoria

Mim quer tocarMim gosta ganhar dinheiroMe wanna playMe love to get the money

Mim é brasileiroMim gosta bananaMas mim também quer votarMim também quer ser bacana

Mim quer tocarMim gosta ganhar dinheiroMe wanna play

Me love to get the money

Mim gosta tanto tocarMim é batuqueiroMas mim precisa ganharMim gosta ganhar dinheiro

Mim quer tocarMim gosta ganhar dinheiroMe wanna playMe love to get the money

(Ultraje a Rigor)

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120 | O Romantismo: poesia

A letra anterior é da música “Mim quer tocar”, do grupo de rock Ultraje a Rigor, criado nos anos 1980. O nome da banda já revela o teor satírico que esteve na base de sua concepção. De modo bastante debochado, a letra fala de um músico que pretende ganhar dinheiro com sua arte. Fala, portan-to, do mercado fonográfico e do quanto todos almejam enriquecer fazendo arte. Todavia, o fato do eu lírico falar um português fora do padrão (“mim quer” e não “eu quero”; “gosta banana” e não “gosto de banana”), ou mes-mo um inglês fora do padrão (“me love” e não “I love”), tudo isso rebaixa sua condição de “artista”, desqualificando seu trabalho. Ele é brasileiro, mas um excluído, pois quer votar, revelando a impossibilidade de exercer seu direito de cidadania, além de se ver, pelos olhos do estrangeiro, como um macaco batuqueiro e que gosta de bananas (o que é reforçado pelo modo de falar o português, como se fosse um estrangeiro). Enfim, poderíamos resumir o caráter desse eu lírico como um sujeito podre, excluído, estrangeirado, que se vê, no entanto, no direito de ficar rico no mercado fonográfico. Moral da história: qualquer um pode ficar rico no mercado fonográfico, mesmo que faça música da pior qualidade.

A crítica recai, portanto, mais sobre a má qualidade da música e dos músicos e menos sobre a pró-pria mercantilização da arte. Hoje, encaramos com certa tranquilidade o desejo dos artistas de enrique-cerem com seu trabalho, desde que esse trabalho seja de qualidade. Essa questão, no entanto, teve um debate mais acirrado em outra época, quando pela primeira vez a arte virava mercadoria de consumo em larga escala.

A sensibilidade romântica e a poesiaO romantismo inaugurou uma nova forma de ver e sentir o mundo. Tendo seus primórdios na se-

gunda metade do século XVIII e seu apogeu e desgaste no século XIX, foi o movimento literário que se caracterizou por instaurar uma literatura de gosto burguês, quer valorizando os princípios que gerem a vida burguesa, quer criticando-os.

Um aspecto que condicionou a sensibilidade romântica foi o processo de inserção da arte no mercado. Podemos tomar a Revolução Francesa e a Revolução Industrial da Inglaterra, cujos desdobra-mentos se prolongaram no século XIX, como dois marcos que propiciaram o desligamento da arte em relação ao gosto aristocrático e a sua adesão ao gosto burguês. A literatura, por exemplo, deixou de ser patrocinada por grandes nobres, ditos mecenas, de gosto neoclássico, e passou a ser vendida em jor-nais e na forma de livros. O crescimento da imprensa periódica e o barateamento dos custos de produ-ção do livro permitiram que muitos escritores passassem a viver apenas de sua arte. Isso caracterizou o processo de profissionalização do homem que lidava com a escrita, gerando a figura do escritor como o vemos hoje em dia.

No século XX, a obra Campbell’s Soup Cans, de Andy Warhol, ar-tista ligado à pop-art, questio-nou fortemente a relação entre arte e mercadoria.

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121|O Romantismo: poesia

A transformação da literatura em uma mercadoria de consumo marcou fortemente a sensibilida-de romântica, que passou a questionar a redução de todos os aspectos da vida à sua dimensão econô-mica e material. Para contestar o que entendia ser o excessivo valor que a burguesia dava ao dinheiro e ao trabalho, o romantismo transformou-se em um arguto crítico da mercantilização das relações hu-manas. Portanto, vem daí a grande valorização da espiritualidade, do cristianismo primitivo (o da igreja institucional estaria já corrompido e mercantilizado), da natureza (em oposição à civilização), do gênio (homem sensível, solitário e incompreendido).

Literatura e naturezaA natureza adquire significado bastante específico no mundo romântico e um dos que sinte-

tizou esse significado foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e escritor suíço, mas ligado ao Iluminismo francês. Considerado um precursor do pensamento romântico, em sua obra Rousseau faz uma contundente crítica à civilização e um sistemático elogio à natureza. Rousseau afirma que “a natu-reza fez o homem feliz e bom, mas a sociedade deprava-o e torna-o miserável” (apud SANTANA, 2008). Foi quem criou a figura do “bom selvagem” e, portanto, fez com que tudo que estivesse ligado à natu-reza ganhasse um sentido mais puro e mais verdadeiro do que de todas as coisas ligadas à urbanidade e à civilidade.

Vista da Amora (1852), do pintor romântico português Tomás d’Anunciação (1818-1879): homem e natureza integrados, idealizando-se a vida no campo.

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122 | O Romantismo: poesia

Desse modo, o homem romântico preferiria o convívio com a natureza à vida nos centros urba-nos, vistos como decadentes. Na oposição que aí se estabelece entre campo e cidade, o campo fica com todas as qualidades (paz, tranquilidade, verdade, pureza, essência, beleza etc.), enquanto à cidade são atribuídos todos os defeitos (tormento, falsidade, corrupção, aparência, feiúra etc.).

A natureza torna-se, assim, refúgio dos males da cidade, lugar de inspiração do escritor e do artis-ta, oásis de paz em meio à atribulada vida burguesa de trabalho e dinheiro. Aproximar-se da natureza seria, também, retornar ao estado original, primitivo e, portanto, mais puro e verdadeiro que o mundo de aparências e veleidades em que vivemos cotidianamente no meio urbano.

O belo horrívelMas, apesar de a natureza ocupar esse lugar

privilegiado, a decadência associada à cidade exer-cia um grande fascínio aos olhos dos românticos. O meio urbano era visto como espaço de experimen-tações, especialmente dos sentidos. Ali o sujeito po-deria provar os prazeres momentâneos, fugazes, consumistas, que não lhe trariam a felicidade, mas lhe dariam conhecimento e experiência.

Um outro elemento ligado a esse fascínio pelo decadente apresenta-se em algumas teorias român-ticas sintetizadas pelo escritor francês Vitor Hugo (1802-1885), no prefácio ao seu poema dramático Cromwell (1827). Nesse texto, Hugo teoriza sobre o drama romântico, postula a necessidade dos drama-turgos não mais imitarem os clássicos nem respeita-rem a divisão entre os gêneros comédia e tragédia, e introduz a ideia do “belo horrível”, que seria a junção entre o sublime e o grotesco. O grotesco ao lado do sublime transformaria em beleza a força terrível do primeiro e ressaltaria a beleza do segundo.

Em seu “Prefácio interessantíssimo”, ao livro Paulicéia Desvairada (1922), o modernista brasileiro Mário de Andrade assim fala do belo horrível romântico:

O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito de beleza. Mas feio = pecado... Atrai. (ANDRADE, 2003, p. 5)

Como bom modernista, Mário de Andrade contesta os românticos, mas acaba por nos explicar muito bem a noção formulada por Vitor Hugo e ainda desvela um elemento que está ali sem ser expli-citamente enunciado: a ideia de pecado. O grotesco associado ao pecado é certamente algo que fazia parte do gosto romântico. A ideia de pecado, como diz Mário de Andrade, atrai. Na ordem romântica, isso tudo faz sentido, pois é só por meio do pecado que se chega à redenção e ao entendimento do que é realmente verdadeiro. É por isso que os românticos gostam tanto de frequentar prostíbulos, bacanais, cemitérios e outros tantos espaços soturnos, recheados de também soturnos enredos e devaneios.

Charles Laughton como Quasímodo em O Corcunda de Notre Dame (1939), filme de William Dieterle baseado no romance Notre Dame de Paris (1831), de Vitor Hugo. Qua-símodo é a encarnação do belo horrível: seu corpo é gro-tesco e sua alma, sublime.

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123|O Romantismo: poesia

A noção de gênio literário No entanto, não era qualquer escritor que poderia apreender a verdade da natureza ou fazer a

viagem aos subterrâneos da devassidão dos meios urbanos. Somente o gênio poderia entender como isso tudo deveria ser transformado em arte. Mas, afinal, como definir o gênio literário? Isso já estava de-lineado em Immanuel Kant (1724–1804), filósofo alemão, que assim dizia:

Gênio é o talento (dom natural) que dá à arte a regra. Já que o talento, como faculdade produtiva inata do artista, per-tence, ele mesmo, à natureza, poderíamos também exprimir-nos assim: gênio é a disposição natural inata (ingenium), pela qual a natureza dá à arte a regra. [...] Vê-se, a partir disso, que o gênio – 1) é um talento, de produzir aquilo para o qual não se pode dar nenhuma regra determinada, [...] consequentemente, que originalidade tem de ser sua primeira propriedade. 2) Que, como também pode haver insensatez original, seus produtos têm de ser ao mesmo tempo mode-los, isto é, exemplares; portanto, eles mesmos não provindo de imitação, têm de servir, no entanto, a outros para isso, isto é, como justa-medida ou regra do julgamento. 3) Que ele mesmo não pode descrever ou indicar cientificamente como institui seu produto, mas que é como natureza que ele dá a regra; e, por isso, o criador de um produto, que ele deve a seu gênio, não sabe, ele mesmo, como se encontram nele as ideias para isso, e também não está em seu poder inventá-las à vontade ou conforme a um plano. [...] 4) Que a natureza, pelo gênio, prescreve, não à ciência, mas à arte a regra; e também isto somente na medida em que esta última deve ser bela-arte. (KANT, 1980, p. 246-247).

Veja como, a partir dessa definição, temos o gênio como o sujeito que define as regras da arte. É um eleito pela natureza, que já nasce com o talento para realizar tal tarefa. Ninguém escolhe ser gênio. É uma dádiva rara da natureza que lhe permite exercer livremente suas faculdades de conhecimento, modeladas de forma original. Portanto, a originalidade do gênio é o que definirá as regras da arte para todos os outros.

É fundamentado nessa concepção de genialidade que Almeida Garrett, o inaugurador do roman-tismo em Portugal, escreve o prefácio de Folhas Caídas, seu mais famoso livro de poemas:

Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes os-cilações do espírito, que, tendendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele, ora ri amargamente porque reconhece o seu engano, ora se desespera de raiva impotente por sua credu-lidade vã.

Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada dele.

Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois ma-téria.

E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será punida com a morte.

Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quase nada no poeta. (ALMEIDA GARRETT, 1955, p. 2)

O poeta genial é, portanto, esse eleito da natureza e só ele pode definir o que é o belo. As regras da tradição clássica greco- -romana já não têm mais validade aos olhos dos românticos, que es-peram identificar nos gênios as novas regras da arte. O “Ideal” bus-cado pelo gênio romântico é aquele que todos deverão imitar, que está em conexão direta com o universo e com a natureza e, portan-to, é muito superior aos preceitos da vida burguesa. O gênio não se submete à mercantilização da arte, mas estabelece as regras do

Retrato de Lord Byron, do pintor francês Theodore Gericault (1781-1824). Lord Byron (1788-1824), poeta inglês asso-ciado ao ultrarromantismo, aqui é re-presentado com expressão pensativa e atormentada, tal qual se concebia o gênio romântico.

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124 | O Romantismo: poesia

belo para os que o imitarão e servirão ao mercado. Nesse sentido, o idealismo romântico nega os valo-res materialistas presentes no cotidiano da burguesia, sem deixar, contudo, de retratar de forma minu-ciosa o modus vivendi dessa classe social, elegendo ali casos excepcionais e exemplares de valor ideal e espiritual. Daí sua relação com os valores burgueses ser caracterizada pela adesão e pela negação, con-comitantemente.

As ideias liberais, o ultrarromantismo e o nacionalismoAo lado de tais concepções filosóficas e estéticas, que propiciavam a evasão, o exercício da ima-

ginação e o devaneio, encontra-se também uma outra mais ligada à realidade imediata: a ideia de nacionalidade. O culto à identidade nacional provinha de um desdobramento da política econômica li-derada na Grã-Bretanha pelo filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) e dali irradiada para todos os pa-íses europeus e suas colônias. Segundo essa teoria, a riqueza das nações dependeria do trabalho livre, do interesse individual de cada um em enriquecer, sem qualquer intervenção do Estado. Essa teoria fun-damentada no indivíduo, que no limite geraria uma desagregação social geral, já que o sujeito só teria compromisso com o seu próprio enriquecimento, tem por contraponto a noção de identidade nacional, fundamentada na ideia do Estado-nação. O Estado-nação seria uma forma de manter unidos em torno de um objetivo comum classes sociais distintas. Desse modo, apesar de o liberalismo ser potencialmen-te um elemento de desagregação social, o nacionalismo cumpria o papel de manter os indivíduos uni-dos por um bem comum.

Nesse sentido, os românticos também cumpriram um papel muito importante, sedimentando toda uma simbologia nacional que remontava ao final da Idade Média, quando os Estados europeus tiveram origem em reação ao domínio da Igreja Católica. Daí o ro-mance histórico e as lendas e narrativas de um Alexandre Herculano (1810-1877) em Portugal, ou o grande mapeamento de contos popu-lares que fizeram os irmãos Grimm na Alemanha.

Almeida Garrett (1799-1854) Almeida Garrett, de família abastada, estava destinado à vida

eclesiástica. Por muitos anos, foi educado pelo tio, frei Alexandre da Sagrada Família, bispo de Malaca, mas não seguiu carreira. Foi estu-dar na Universidade de Coimbra e ali estreou nas letras escrevendo poemas e peças de teatro de gosto neoclássico. Um de seus livros de poemas neoclássicos, Retrato de Vênus (1821), ganhou fama, especialmente pelo alto grau de sensuali-dade que apresentava. Vale lembrar que Garrett foi um grande conquistador, tendo, no decorrer de sua vida, vários casos amorosos notórios no meio intelectual português.

Foi em Paris, em 1825, que publicou o longo poema narrativo intitulado Camões, atualmente con-siderado o marco inaugural do Romantismo português. O poema conta toda a trajetória daquele que é considerado o maior poeta português de todos os tempos, Luís Vaz de Camões (c. 1517-1580), autor de Os Lusíadas (1572).

Almeida Garrett soube valorizar o passado português e o sentimento da saudade.

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125|O Romantismo: poesia

O poema de Garrett inicia no momento em que Camões retorna a Portugal depois de ficar muitos anos em viagens pela costa da África e pelo Oriente. Traz consigo Os Lusíadas, que então pretendia pu-blicar. Esse é o mote para que Garrett retome toda a história das conquistas portuguesas a partir da fi-gura de Camões, aqui retratado como poeta injustiçado e que, apesar de ter conseguido publicar a sua obra, morreu na miséria e sem o reconhecimento nacional que mereceria.

Garrett faz de Camões, portanto, um “gênio romântico”, nos moldes descritos anteriormente. Mas o poema vale, sobretudo, por trazer à tona um sentimento que posteriormente irá fazer muito sucesso no meio intelectual e literário português – a saudade. É o sentimento saudosista que irá marcar todo o poema: saudade de Camões pela pátria e saudade dos portugueses oitocentistas pela glória que tive-ram no século XVI.

Esse sentimento gerará no início do século XX um movimento literário, filosófico e cultural cha-mado Saudosismo, que foi criado pelo poeta Teixeira de Pascoaes e inspirou, por exemplo, obras como Mensagem, de Fernando Pessoa. O fato é que Garrrett será visto como o poeta que colocou na pauta do século XIX o tema da saudade como elemento constitutivo do caráter português.

Nesse mesmo ano de 1825, e também em Paris, Garrett publica outro longo poema narrativo, D. Branca. Em meio a uma trama amorosa ao gosto romântico, narra a conquista do Algarve (sul de Portugal) durante o reinado de Afonso III, no século XIII, quando se definiu as fronteiras do território por-tuguês. Portanto, mais uma vez temos feitos heroicos em torno da constituição da identidade nacional.

Politicamente falando, Garrett era um liberal convicto e, quando D. João VI morreu e ocorreu a disputa pelo trono entre o absolutista D. Miguel e o nosso liberal D. Pedro I (para os portugueses é D. Pedro IV), Garrett lutou ao lado de D. Pedro, que acabou por vencer o irmão. Instituído o governo li-beral, como Garrett já se tornara uma referência literária no país e tinha alguma experiência em drama-turgia com a composição da tragédia neoclássica Catão (1821), foi encarregado de revitalizar o teatro nacional português. É quando escreve Um Auto de Gil Vicente (1838) e Frei Luís de Sousa (1844). Esta últi-ma peça tornou-se um paradigma para o teatro português.

Ao lado da poesia, escreve também em prosa, em 1846, o famoso texto Viagens na Minha Terra, que narra a infeliz história do amor entre Joaninha dos olhos verdes e Carlos, obra na qual Garrett criti-ca fortemente a falta de espírito nacional e o pragmatismo materialista que o liberalismo econômico vi-nha impingindo às consciências do país.

Voltando à sua produção poética, em 1845 Garrett publica um livro de poema intitulado Flores sem Frutos, que traz poemas de verve romântica, mas ainda marcados por referências e modelos neoclássicos. Sua dicção poética só vai ganhar um tom fortemente romântico no livro que publica um ano antes de sua morte, Folhas Caídas (1853), obra que se tornou referência obrigatória quando se fala em poesia românti-ca portuguesa. Um poema exemplar do Romantismo presente nesse livro está no poema a seguir.

Este inferno de amar

Este inferno de amar – como eu amo! –

Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi?

Esta chama que alenta e consome,

Que é a vida – e que a vida destrói –

Como é que se veio a atear,

Quando – ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,

A outra vida que dantes vivi

Era um sonho talvez... – foi um sonho –

Em que paz tão serena a dormi!

Oh!, que doce era aquele sonhar...

Quem me veio, ai de mim!, despertar?

Só me lembra que um dia formoso

Eu passei... dava o Sol tanta luz!

E os meus olhos, que vagos giravam,

Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela?, eu que fiz? – Não no sei;

Mas nessa hora a viver comecei...

(ALMEIDA GARRETT, 2008)Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,

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126 | O Romantismo: poesia

É fácil constatar que o eu lírico vê no amor sua aparente desgraça, já que antes de se apaixonar vi-via tranquilo, como se estivesse a dormir e a sonhar em “paz tão serena”. Todavia, é despertado desse so-nho e passa a amar com uma chama que “alenta e consome”, que “é a vida – e que a vida destrói”. O amor como sentimento que gera sentimentos antagônicos já se encontrava na estética clássica de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer.

(CAMÕES, 2008)

No poema de Garrett, entretanto, o amor não é visto somente como uma espécie de doença pela qual somos tomados, mas sim como o próprio sentido da vida. Quando, ao final do poema, o eu lírico diz que, após vê-la e se apaixonar, “nessa hora a viver comecei”, temos no sentimento amoroso o ver-dadeiro sentido da existência, coisa que não se apresentava na estética clássica. Os românticos veem o amor como uma forma de reação ao materialismo e ao pragmatismo que caracteriza a vida burguesa. Só se vive realmente caso se consiga fugir à mediocridade desse tipo de existência, e o amor é a forma a que todos temos acesso para realizar tal transcendência em nosso cotidiano.

Para dar credibilidade ao sentimento amoroso ali presente, o poeta romântico em geral mescla vida pessoal e literatura. Isso também aconteceu com Folhas Caídas, pois o livro apresenta sete poemas que tem a palavra rosa no título, “Perfume da Rosa”, “Rosa sem Espinhos”, “Rosa Pálida”, “Rosa e Lírio”, “The rose – a sigh”, “A Rosa – um Suspiro”, “As Duas Rosas”, além de muitos outros em que essa palavra aparece no corpo do texto. Se lembrarmos que, nesse momento, Garrett estava apaixonado por Rosa Montufar, Viscondessa da Luz, casada com um oficial do exército português, teremos no livro uma espécie de de-claração de amor quase explícita a essa paixão proibida, mas conhecida de toda a sociedade da época. A mescla entre vida e obra permite que o sentimento expresso pelo eu lírico do poema ganhe verossi-milhança em razão da vida do próprio poeta tornar-se o contexto de leitura do poema.

Com esse livro, Garrett fechou sua produção romântica de modo magistral, tornando-se refe-rência obrigatória para os poetas românticos. Entre suas obras, vale ainda lembrar os livros de poemas Adozinda (1828), Lírica de João Mínimo (1829), Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843-1851) e os textos em prosa O Arco de Santana (1845-1850) e o inconcluso Helena (1871).

Soares de Passos (1826-1860) António Augusto Soares de Passos ficou consagrado como o maior poe-

ta daquilo que se convencionou chamar de ultrarromantismo português, isto é, o romantismo que privilegiava um repertório de sentimentos exacerbados, mórbidos, doentios, de ambientação noturna e imaginação delirante.

Filho de um comerciante da cidade do Porto, Soares de Passos era um li-beral e, como tantos outros, cursou a Universidade de Coimbra, cidade em que fundou em 1851 a revista Novo Trovador. Já formado, colaborou em importan-tes periódicos de poesia como O Bardo (1852-1854) e A Grinalda (1855-1869). Na forma de livro, publicou seus poemas somente no volume Poesias, de 1856.

Seu mais famoso poema é

Soares de Passos: o exem-plo maior da poesia ultrar-romântica portuguesa.

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127|O Romantismo: poesia

O Noivado do Sepulcro

Vai alta a lua! na mansão da morte

Já meia-noite com vagar soou;

Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte

Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe

Funérea campa com fragor rangeu;

Branco fantasma semelhante a um monge,

D’entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste

Campeia a lua com sinistra luz;

O vento geme no feral cipreste,

O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto

Olhou em roda... não achou ninguém...

Por entre as campas, arrastando o manto,

Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,

Que entre ciprestes alvejava ao fim,

Parou, sentou-se e com a voz magoada

Os ecos tristes acordou assim:

“Mulher formosa, que adorei na vida,

“E que na tumba não cessei d’amar,

“Por que atraiçoas, desleal, mentida,

“O amor eterno que te ouvi jurar?

“Amor! engano que na campa finda,

“Que a morte despe da ilusão falaz:

“Quem d’entre os vivos se lembrara ainda

“Do pobre morto que na terra jaz?

“Abandonado neste chão repousa

“Há já três dias, e não vens aqui...

“Ai, quão pesada me tem sido a lousa

“Sobre este peito que bateu por ti!

“Ai, quão pesada me tem sido!” e em meio,

A fronte exausta lhe pendeu na mão,

E entre soluços arrancou do seio

Fundo suspiro de cruel paixão.

“Talvez que rindo dos protestos nossos,

“Gozes com outro d’infernal prazer;

“E o olvido cobrirá meus ossos

“Na fria terra sem vingança ter!

– “Oh nunca, nunca!” de saudade infinda

Responde um eco suspirando além...

– “Oh nunca, nunca!” repetiu ainda

Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,

Longas roupagens de nevada cor;

Singela c’roa de virgínias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

“Não, não perdeste meu amor jurado:

“Vês este peito? reina a morte aqui...

“É já sem forças, ai de mim, gelado,

“Mas inda pulsa com amor por ti.

“Feliz que pude acompanhar-te ao fundo

“Da sepultura, sucumbindo à dor:

“Deixei a vida... que importava o mundo,

“O mundo em trevas sem a luz do amor?

“Saudosa ao longe vês no céu a lua?

– “Oh vejo sim... recordação fatal!

– “Foi à luz dela que jurei ser tua

“Durante a vida, e na mansão final.

“Oh vem! se nunca te cingi ao peito,

“Hoje o sepulcro nos reúne enfim...

“Quero o repouso de teu frio leito,

“Quero-te unido para sempre a mim!”

E ao som dos pios do cantor funéreo,

E à luz da lua de sinistro alvor,

Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério

Foi celebrada, d’infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,

Já desse drama nada havia então,

Mais que uma tumba funeral vazia,

Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido

Das sepulturas o gelado pó,

Dois esqueletos, um ao outro unido,

Foram achados num sepulcro só.

(SOARES DE PASSOS, 2008)

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128 | O Romantismo: poesia

O poema tematiza o amor não concretizado em vida, mas que se realiza finalmente na sepultura. O amado, já morto, lamenta a não concretização de seu amor e se pergunta se sua amada ainda se lem-braria dele, considerando-a viva. Ela, no entanto, aparece, revelando-lhe que morrera de amor depois da morte dele. Então os dois se abraçam e concretizam o amor que nunca fora possível em vida, fazen-do com que dois esqueletos abraçados fossem encontrados em um sepulcro só.

O gosto pela imaginação exacerbada, pelo ambiente noturno e mórbido é o que dá força ao poe-ma. Segue-se, aqui, o princípio de composição do “belo horrível” a que nos referimos anteriormente. Os elementos grotescos associados à morte (cemitério, cadáver, esqueleto) se opõem ao aspecto sublime do amor, que a tudo transcende para se concretizar. Mais do que um elogio ao amor, há uma sexuali-dade mórbida entre cadáveres, uma variação da necrofilia, sendo este o elemento pecaminoso e, por-tanto, transgressor que permite a ruptura com a dimensão pragmática e materialista da vida combatida pelos românticos. Essa sexualidade pecaminosa é elevada pelo sentimento amoroso que a motiva e en-tão tudo se torna belo e sublime, como previsto por Vitor Hugo.

João de Deus (1830-1896)João de Deus de Nogueira Ramos ficou muito famoso em sua épo-

ca por ter escrito a Cartilha Maternal, uma das primeiras obras para o en-sino de leitura em língua portuguesa. Filho de modestos comerciantes, estudou em seminários e depois na Universidade de Coimbra.

Em 1855, publicou uma elegia, intitulada “Oração”, que lhe an-gariou grande fama. A partir daí, passou a estampar poemas em vários periódicos da época. Tornou-se redator de jornais e depois foi eleito de-putado. Em 1868, publicou a coletânea Flores do Campo e, no ano se-guinte, Ramo de Flores. Anos depois, deu a público Folhas Soltas (1876), além de outros trabalhos. Há um volume intitulado Campos de Flores (1893), que reúne grande parte de toda sua produção poética. Sua poe-sia ficou marcada inicialmente pelo lirismo ultrarromântico, mas acabou com uma dicção mais sóbria e próxima, por vezes, do lirismo de caráter social da terceira geração romântica. Uma vertente importante de seu trabalho foi a poesia satírica, que lhe angariou muito prestígio literário.

Na prosa, fez diversas traduções livres e adaptações de autores estrangeiros, gerando uma vasta obra ainda hoje pouco estudada. Amigo de Antero de Quental, ligou-se ao socialismo mais ou menos à mesma época em que publicou a referida Cartilha Maternal.

Uma de suas composições mais famosas é a poesia satírica intitulada “Grammatica Rudimentar”, mantendo-se a grafia original:

João de Deus começou como poeta ultrarromântico, mas acabou conce-bendo um estilo bastante peculiar.

Aquelle Manuel do Rego

É rapaz de tanto tino

Que em lirio põe sempre y grego,

E em lyra põe i latino !

E como a gente diz ceia

Escreve sempre ceiar;

Assim como de passeia

Tira o verbo passeiar!

Nunca diz senão peior

Não só por ser mais bonito,

Mas porque achou num auctor

Que deriva de sanskrito.

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129|O Romantismo: poesia

Escreve razão com s,

E escreve Brasil com z:

Assim elle nos quizesse

Dizer a razão porquê!

Também como diz – eu soube

Julga que eu poude é correcto:

Temo que a morte nos roube

Rapazinho tão discreto!

É um gramático o Rego!

É um purista o finorio...

Se Camões fallava grego,

E o Vieira latinorio! (JOÃO DE DEUS, 2008)

O poema todo ironiza o excesso de erudição na poesia. Apesar do eu lírico estar de acordo com o gosto romântico pela ortografia arcaica (o que pode ser deduzido do segundo verso da terceira estrofe: “Não só por ser mais bonito”), considera que o excesso de seu emprego e a valorização do conhecimen-to erudito podem levar a poesia à morte, metaforizada na morte do próprio Manuel do Rego. Há aqui, portanto, uma defesa de uma linguagem mais simples e clara para a poesia, o que de fato caracterizou a obra de João de Deus.

A originalidade e a autenticidade tornadas convenção Marcada pela entrada da arte no mercado de consumo, a literatura romântica foi a primeira li-

teratura de massas que formou o gosto burguês, ainda que criticasse a burguesia sistematicamente. Todavia, o idealismo romântico foi aos poucos perdendo força aos olhos dos leitores oitocentistas, que queriam ver retratado o dinâmico e positivo mundo que se transformava à sua volta, com um forte de-senvolvimento científico e tecnológico. A segunda metade do século XIX viu serem criadas as linhas de trem, a luz elétrica, o telefone, o telégrafo, o rádio, o fonógrafo, entre tantos outros aparelhos que trans-formaram a vida cotidiana burguesa. Foi também quando os operários do mundo todo começaram a se organizar em associações e em sindicatos.

Se até meados do século XIX o Romantismo teve muita força em Portugal, no início da década de 1870 se formou uma nova geração de escritores que começou, então, a produzir uma literatura que combatia o idealismo em que se baseava a sensibilida-de romântica. O Ideal buscado pelo gênio, que Garrett enaltecia no prefácio de Folhas Caídas e que tinha na natureza seu modelo e sua fonte maior de inspiração, passou a ser contestado pela estética realista. Esta não via transcendência alguma no mundo e acreditava que o trabalho do escritor era próximo ao de um cientista social, devendo simplesmente retratar, ainda que de forma ficcional, a realidade.

Tudo o que fora criado pelos românticos e to-mado como novo e original já começava a soar banal e convencional. A cartilha romântica se sedimentara e isso matava o que era mais caro ao poeta do Ideal: sua autenticidade. Tornava-se impossível ser autêntico em meio à infinidade de formas e figuras de linguagem

A Catedral de Salisbury Vista do Jardim do Bispo (1823), de John Constable (1776-1837), inspiração para muitos artistas, que difundiram à exaustão o clima singelo que caracteriza essa e outras telas do romantismo.

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usadas à exaustão. Mas, sobretudo, tais formas já não correspondiam a uma nova ordem social, que ti-nha no proletariado seu foco de interesse – ainda que em Portugal ele fosse exíguo. Morria, portanto, a pertinência histórica e a originalidade do idealismo romântico, e o sentido maior de todas as suas diver-sas e mesmo contraditórias manifestações. Mas ainda assim as formas românticas, já sem a força trans-formadora que as caracterizou, sobreviveram à margem das novas estéticas por muito tempo (se é que não sobrevivem ainda hoje), pois a revolta contra a dimensão materialista do mundo continuou a ser um luta travada cotidianamente no seio de nossa sociedade.

Dicas de estudo Site: <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/programas.htm>.::::

O site do Projeto Vercial apresenta informações seguras sobre escritores e obras da Literatura Portuguesa. Disponibiliza trechos de textos gratuitamente e vende vários deles na íntegra.

Filme: :::: Camille (1936). Direção de George Cukor.

Para entender o espírito do Romantismo, um bom filme é Camille (1936), de George Cukor, um clássico do cinema, com Greta Garbo e Robert Tylor. É uma adaptação do romance A Dama das Camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho (1824-1895), uma das referências obrigatórias do Romantismo francês.

Texto complementar

A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução(BENJAMIN, 1983, p. 5-8)

Preâmbulo

Na época em que Marx empreendeu a sua análise, o modo de produção capitalista ainda es-tava em seus primórdios. Marx soube orientar sua pesquisa de modo a lhe conferir um valor de prognóstico. Remontando às relações fundamentais, pôde prever o futuro do capitalismo. Chegou à conclusão de que, se a exploração do proletariado continuasse cada vez mais rigorosa, o capitalis-mo estaria preparando, ao mesmo tempo, as condições de sua própria supressão.

Como as superestruturas evoluem bem mais lentamente do que as infraestruturas, foi preci-so mais de meio século para que a mudança advinda nas condições de produção fizesse sentir seus efeitos em todas as áreas culturais. Verificamos hoje apenas as formas que elas poderiam ter toma-do. Dessas constatações, deve-se extrair determinados prognósticos, menos, no entanto, dos as-pectos da arte proletária, após a tomada do poder pela classe operária – a fortiori, na sociedade sem

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classes - do que a respeito das tendências evolutivas da arte dentro das condições atuais da produ-ção. A dialética dessas condições está também mais nítida na superestrutura do que na economia. Seria errôneo, em consequência, subestimar o valor combativo das teses que, aqui, apresentamos. Elas renunciam ao uso de um grande número de noções tradicionais – tais como poder criativo e ge-nialidade, valor de eternidade e mistério – cuja aplicação incontrolada (e, no momento, dificilmente controlável) na elaboração de dados concretos toma-se passível de justificar interpretações fascis-tas. O que distingue as concepções que empregamos aqui – e que são novidades na teoria da arte das noções em voga, é que elas não podem servir a qualquer projeto fascista. São, em contrapartida, utilizáveis no sentido de formular as exigências revolucionárias dentro da política da arte.

I

A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução. O que alguns homens fize-ram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tempos, a discípulos copiarem obras de arte, a título de exercício, os mestres reproduzirem-nas a fim de garantir a sua difusão e os falsários imitá-las com o fim de extrair proveito material. As técnicas de reprodução são, todavia, um fenôme-no novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da história, mediante saltos sucessivos, se-parados por longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rápido. Os gregos só conheciam dois processos técnicos de reprodução: a fundição e a cunhagem. Os bronzes, as terracotas e as moedas foram as únicas obras de arte que eles puderam reproduzir em série. As demais apenas comporta-vam um único exemplar e não serviam a nenhuma técnica de reprodução. Com a gravura na ma-deira, conseguiu-se, pela primeira vez, a reprodução do desenho, muito tempo antes de a imprensa permitir a multiplicação da escrita. Sabe-se das imensas transformações introduzidas na literatura devido à tipografia, pela reprodução técnica da escrita. Qualquer que seja a sua importância excep-cional, essa descoberta é somente um aspecto isolado do fenômeno geral que aqui encaramos ao nível da história mundial. A própria Idade Média viria aduzir, à madeira, o cobre e a água-forte e, o início do século XIX, a litografia.

Com a litografia, as técnicas de reprodução marcaram um progresso decisivo. Esse processo, muito mais fiel - que submete o desenho à pedra calcária, em vez de entalhá-lo na madeira ou de gravá-lo no metal - permite pela primeira vez às artes gráficas não apenas entregar-se ao comércio das reproduções em série, mas produzir, diariamente, obras novas. Assim, doravante, pôde o dese-nho ilustrar a atualidade cotidiana. E nisso ele tomou-se íntimo colaborador da imprensa. Porém, decorridas apenas algumas dezenas de anos após essa descoberta, a fotografia viria a suplantá-lo em tal papel. Com ela, pela primeira vez, no tocante à reprodução de imagens, a mão encontrou-se demitida das tarefas artísticas essenciais que, daí em diante, foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva. Como, todavia, o olho capta mais rapidamente do que a mão ao desenhar, a reprodução das imagens, a partir de então, pôde se concretizar num ritmo tão acelerado que chegou a seguir a própria cadência das palavras. O fotógrafo, graças aos aparelhos rotativos, fixa as imagens no estú-dio de modo tão veloz como o que o ator enuncia as palavras. A litografia abria perspectivas para o jornal ilustrado; a fotografia já continha o germe do cinema falado. No fim do século [XIX], atacava--se o problema colocado pela reprodução dos sons. Todos esses esforços convergentes facultavam prever uma situação assim caracterizada por Valéry: “Tal como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas, atender às nossas necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos, alimentados de imagens visuais e auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal”.

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Com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram tal nível que, em decorrên-cia, ficaram em condições não apenas de se dedicar a todas as obras de arte do passado e de modi-ficar de modo bem profundo os seus meios de influência, mas de elas próprias se imporem, como formas originais de arte. Com respeito a isso, nada é mais esclarecedor do que o critério pelo qual duas de suas manifestações diferentes – a reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica – re-agiram sobre as formas tradicionais de arte.

II

À mais perfeita reprodução falta sempre algo: o hic et nunc da obra de arte, a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra. É a essa presença, única no entanto, e só a ela que se acha vinculada toda a sua história. Falando de história, lembramo-nos também das alterações ma-teriais que a obra pode sofrer de acordo com a sucessão de seus possuidores. O vestígio das alte-rações materiais só fica desvendado em virtude das análises físico-químicas, impossíveis de serem feitas numa reprodução; a fim de determinar as sucessivas mãos pelas quais passou a obra, deve-se seguir toda uma tradição, a partir do próprio local onde foi criada.

O hic et nunc do original constitui aquilo que se chama de sua autenticidade. Para se estabele-cer a autenticidade de um bronze, torna-se, às vezes, necessário recorrer a análises químicas da sua pátina; para demonstrar a autenticidade de um manuscrito medieval é preciso, às vezes, determinar a sua real proveniência de um depósito de arquivos do século XV. A própria noção de autenticida-de não tem sentido para uma reprodução, seja técnica ou não. Mas, diante da reprodução feita pela mão do homem e, em princípio, considerada como uma falsificação, o original mantém a plena au-toridade; não ocorre o mesmo no que concerne à reprodução técnica. E isso por dois motivos. De um lado, a reprodução técnica está mais independente do original. No caso da fotografia, é capaz de ressaltar aspectos do original que escapam ao olho e são apenas passíveis de serem apreendi-dos por uma objetiva que se desloque livremente a fim de obter diversos ângulos de visão; graças a métodos como a ampliação ou a desaceleração, pode-se atingir a realidades ignoradas pela visão natural. Ao mesmo tempo, a técnica pode levar a reprodução de situações, onde o próprio original jamais seria encontrado. Sob a forma de fotografia ou de disco permite sobretudo a maior aproxi-mação da obra ao espectador ou ao ouvinte. A catedral abandona sua localização real a fim de se situar no estúdio de um amador; o musicômano pode escutar a domicílio o coro executado numa sala de concerto ou ao ar livre.

Pode ser que as novas condições assim criadas pelas técnicas de reprodução, em paralelo, dei-xem intacto o conteúdo da obra de arte; mas, de qualquer maneira, desvalorizam seu hic et nunc. Acontece o mesmo, sem dúvida, com outras coisas além da obra de arte, por exemplo, com a paisa-gem representada na película cinematográfica; porém, quando se trata da obra de arte, tal desvalo-rização atinge-a no ponto mais sensível, onde ela é vulnerável como não o são os objetos naturais: em sua autenticidade. O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como esse próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o pri-meiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho histórico da coisa – fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autori-dade da coisa.

Poder-se-ia resumir todas essas falhas, recorrendo-se à noção de aura, e dizer: na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a sua aura. Esse processo tem valor de

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sintoma, sua significação vai além do terreno da arte. Seria impossível dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução separaram o objeto reproduzido do âmbito da tradição. Multiplicando as cópias, elas transformam o evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas. Permitin-do ao objeto reproduzido oferecer-se à visão e à audição, em quaisquer circunstâncias, conferem- -lhe atualidade permanente. Esses dois processos conduzem a um abalo considerável da realidade transmitida – a um abalo da tradição, que se constitui na contrapartida da crise por que passa a hu-manidade e a sua renovação atual. Estão em estreita correlação com os movimentos de massa hoje produzidos. Seu agente mais eficaz é o cinema. Mesmo considerado sob forma mais positiva – e até precisamente sob essa forma – não se pode apreender a significação social do cinema, caso seja ne-gligenciado o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do elemento tradicional dentro da he-rança cultural. Tal fenômeno é peculiarmente sensível nos grandes filmes históricos e quando Abel Gance, em 1927, bradava com entusiasmo:

Shakespeare, Rembrandt, Beethoven farão cinema... Todas as legendas, toda a mitologia e todos os mitos, todos os fundadores de religiões e todas as próprias religiões... aguardam sua ressurreição luminosa e os heróis se empurram diante das nossas portas para entrar convidava-nos, sem saber, a uma liquidação geral.

Atividades1. Quando e por que a arte vira mercadoria?

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2. Comente alguns dos propósitos pelos quais Almeida Garrett escreveu poemas como Camões e D. Branca.

3. O poema “O Noivado do Sepulcro”, de Soares de Passos, tem por princípio de composição o “belo horrível”. Explique o que é essa noção proposta por Vitor Hugo.

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BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: _____. Walter Benjamin. São Paulo: Abril, 1983. p. 5-8. (coleção Os Pensadores).

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GARRETT, João B. S. L. de Almeida. Folhas Caídas. Disponível em: <http://www. dominiopublico. gov. br/download/texto/ua00013a. pdf>. Acesso em: 29 jul. 2012.

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MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Poesia Medieval no Brasil. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000.

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Gabarito1. A arte vira mercadoria após a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, isto é, quando a bur-

guesia sobe ao poder. Algo que acontece porque agora já não há mais o mecenas aristocrata para patrocinar o artista, que precisa ganhar a vida com a venda de seu trabalho. Desse modo, os artistas precisam se profissionalizar e passam a depender somente de seu público para sobre-viverem. Todavia, muitos resistem a esse processo de mercantilização de seu trabalho, por eles considerado como uma missão. O gênio romântico, que seria o verdadeiro artista, resiste a se submeter ao mercado.

2. Garrett escreveu esses dois poemas de temática nacional no intuito de enaltecer a identidade portuguesa, mas também com o intuito de criticar a apatia de seus contemporâneos em relação ao sentimento nacional e à vida intelectual portuguesa. Além disso, assim inaugurou o tema que mais tarde gerará o movimento saudosista, a ser proposto por Teixeira de Pascoaes no início do século XX.

3. O belo horrível é produzido quando se coloca o feio ao lado do belo, o grotesco ao lado do subli-me, no intuito de atribuir beleza ao que é grotesco e tornar sublime o que é belo. Ao colocar lado a lado o sentimento da morte e o sentimento do amor, Soares de Passos atribui beleza à morte e torna o amor sublime.

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