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SOU SÓ

EUQUE…

P E D R O V I E I R A

50 TIPOS DE PORTUGUESES QUE NOS DÃO INSTINTOS ASSASSINOS

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SOU SÓ EU QUE…?

«Sou só eu que acho que… [acrescentar uma banalidade a gosto].» É muito provável que já nos tenhamos cruzado com este enunciado, nomeadamente nas redes sociais. Pior. É muito provável que já o tenhamos utilizado nalguma ocasião, mesmo que de forma distraída, bem‑intencionada ou apenas displicente. Acontece que há quem se tenha profissionalizado nesta forma de anunciar ao mundo — de pre‑ferência inteiro — aquilo que não interessa ao Menino Jesus, entidade que, aliás, tem bem mais em que pensar*. A atitude de quem usa e abusa do dito enunciado seria bem mais tolerável se estivesse implí‑cito algo como: «Sou só eu que tenho uns avós que sobreviveram ao Holodomor ucraniano, comendo solas de sapato à revelia do camarada e paizinho dos povos José Estaline?» Ou: «Sou só eu que acho que o Último Teorema de Fermat esteve tantos anos para ser deslindado porque temos uma relação difícil com variáveis elevadas à potência n?» Ou, vá: «Sou só eu que acho que o Surfer Rosa dos Pixies é muito superior ao Doolittle?» Controverso, mas defensável. O problema é que o profissional‑enunciador em análise nunca coloca questões com um mínimo de originalidade, sequer hipóteses que se assemelhem a uma tese. Podia contribuir com pontos de vista de fino recorte, como as pinceladas de um Michelangelo ou os passes em profundidade de um Andrea Pirlo, mas não. Limita‑se apenas e só a constatar o óbvio: «Sou só eu que não aprecio por aí além o Conan Osíris?» Não, felizmente a sanidade ainda não se esgotou cá no burgo. «Sou só eu que acho que o Game of Thrones se transformou numa telenovela com espadas?» Não, há muita gente a pensar isso, sobretudo a partir do momento em que ressuscitaram o galã, uma espécie de Reynaldo Gianecchini de Winterfell. Ou seja, trata‑se de um expediente retórico que se limita a espelhar uma necessidade sôfrega de reconhecimento no meio da avalanche de opiniões servida diariamente pelas timelines. Mas se o caldo cultural do momento nos obriga a sobressair à bruta, façamo‑lo com propriedade. A sério, sou só eu que acho isto?

* Nota do editor: O Menino Jesus salvou a Humanidade antes sequer de completar 34 anos.

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OS APANHADOS DO CLIMA

Muitas pessoas seguem as previsões do estado do tempo pela televi‑são, até porque a tecnologia evoluiu muito desde os tempos em que o mítico Anthímio de Azevedo deslocava nuvenzinhas negras nos ecrãs da RTP, canal único e a preto e branco. Desde então, novas gerações de balões meteorológicos, algoritmos de última geração e satélites mais afinadinhos e bem lançados para o espaço permitem programar um piquenique ou uma ida à praia com maiores certezas. Há também alguns maduros que ainda compram o Borda d’Água, juntando à previ‑são de sol e chuva a melhor informação sobre santos, romarias e épocas mais favoráveis para o plantio de aipos, cebolas e pepinos. No entanto, ninguém está verdadeiramente ao nível do guru dos ossos (foi a melhor designação que consegui desencantar, até porque estou aqui a sentir uma pontada…). Falo, naturalmente, daquele tipo de pessoa que adivi‑nha bátegas e ventanias com um simples chiar da rótula, um modesto espasmo do cotovelo, um assomo gelado na cervical. Trata‑se de gente com uma qualidade inegável — a capacidade inata de adivinhar altas e baixas pressões — e uma indisfarçável soberba. É que, no entender dessas luminárias, os seus corpos estão mais ligados ao cosmos e às manhas do El Niño do que qualquer tecnologia que o Homem com H grande tenha criado ou venha um dia a criar. Mais: fazem gala de puxar dos seus galões de profetas ortopédicos, mesmo que não haja grandes evidências no que toca a fiabilidade ou rigor. E, porém, a espé‑cie prospera, reproduz‑se e não se extingue, continuando a atenazar gerações. Isto porque os cépticos de hoje (normalmente jovens) acabam por se tornar nos profetas de amanhã, apesar de todas as juras e pro‑messas em sentido contrário. Resultado: este tipo de prosápia regressa uma e outra vez, como as estações do ano, as tempestades ou o Pedro Santana Lopes. Haja paciência (e tempo seco, para estender a roupa).

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O REVOLUCIONÁRIO DE PACOTILHA

Começamos por ouvi‑lo num tom, digamos, melífluo, meio desinte‑ressado até, como quem não tem nada para dizer, muito menos citar. Aos poucos, porém, lá vai desfazendo a meada, puxando pelo seu fio do heroísmo e da resistência. Estamos na presença do conhecido revo‑lucionário‑de‑peito‑feito que, mais cedo ou mais tarde, vai garantir, durante a conversa, que foi íntimo do Zeca. Foram todos, no fundo. Coitado do José Afonso que, com tanta gente a assegurar ter sido sua companheira de luta e tertúlias, nem deve ter tido tempo para compor as músicas que queria. Bom, deixemos o Zeca — ah, os quilómetros de estrada, os cantares ao desafio nas barbas da Pide, as sessões na Casa do Povo de Alguidares de Baixo e Cima — e concentremo‑nos no pretenso revolucionário. Além da intimidade com o músico nascido em Aveiro, esse português particular conta, ao pormenor, as artimanhas necessá‑rias a uma vida passada na clandestinidade, sabes o que é viver com um nome falso e manter a máscara, e revela com pormenor todo o cardápio ao dispor da polícia política, entre sevícias com o cavalo‑marinho, tortura da estátua e do sono, sem esquecer chapadas e bofetões. Dedos pisados. Ameaças de morte à família. Cigarros apagados no lombo. Ó Rúben, mostra lá as marcas. É o mostras. São memórias muitos duras, nem sei para que é que estou a falar disto. Prefiro não mostrar. Quanto mais ufano, mais duvidoso. Quanto maiores os feitos, as sevícias supor‑tadas e as intimidades com o Zeca, não vais acreditar, mas ele adorava cuecas azuis, menor a probabilidade de nos cruzarmos com a verdade. Já para não falar da prova testemunhal dos episódios mais marcantes da chegada da liberdade. Tanto estava no Largo do Carmo, empoleirado aos ombros do Salgueira Maia, como dias depois estava a sair de Caxias, no momento da libertação dos presos políticos. Fui eu que arranjei um megafone ao Sousa Tavares, pá. Já em termos de habitat natural, este tipo de revolucionário sente‑se bem entre pequenos e graúdos, esgotando a paciência de todos. A sua sorte é só uma: no momento em que se esfuma a paciência dos ouvintes, já ninguém ter pachorra para lhe perguntar: Ó Rúben, mas como é que viveste isso tudo se só tens 36 anos?

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O BETO DE ESQUERDA

A sua origem exacta ainda está por determinar, a verdade é essa. Até porque acaba por fazer parte de uma espécie que, à primeira vista, escapa à lógica natural da evolução, a mesma em que os seus parentes mais próximos nem sequer acreditam, de resto. Estou a falar, natural‑mente, do beto de esquerda. De um lado, temos a genealogia natural do beto, com os seus usos e costumes: não acredita muito no Darwin por‑que Deus fica com ciúmes, não acredita na filosofia dos dois beijinhos, ou seja, em dar a outra face (ai, ai, esse cristianismo) e tão‑pouco na supremacia das botas Doc Martens sobre os sapatos de vela. Do outro, e em jeito de degeneração familiar, temos o beto de esquerda, que não deixa de ser beto, mas possui alguns laivos de exotismo, à imagem, sei lá, daquelas uvas sem grainhas. Se a origem é nebulosa, a proliferação consistente da espécie permite‑nos suspeitar de alguns motivos para a sua existência, como, por exemplo, a vontade mais ou menos genuína de abraçar o exotismo, como quem vai no passeio radical a Marrocos, em grupo e ao volante do seu 4 x 4, acabando por regressar com as mãos e os braços cheios de hena. Ou até o prazer sincero no acto de brincar aos pobrezinhos, não necessariamente na presença dos tios da Comporta. Ou, ainda, o desejo de torcer um pouco a tradição — provocando uns chiliques familiares pelo caminho — e trocar a cerimónia na Igreja do Campo Grande, com os caturras do grupo de jovens agarrados às violas, por um casamento maia supergiro, ao pôr‑do‑sol, numa praia cheia de pauzinhos de incenso. E quem diz praia, diz lagoa, ou baía, giríssima, prestando homenagem a esse povo fantástico, que tinha xamãs e mais não sei quê. Acresce ainda a oportunidade de, aqui e ali, mesmo entre amigos, na praia do Malhão ou num almoço na Foz, poder trazer à baila o assunto superinteressante da luta de classes sem que estejam necessariamente a referir‑se à Classe A e à Classe C da Mercedes (ambas óptimas, atenção. Adoráveis). O beto de esquerda é, com quase toda a certeza, o exemplo mais conseguido do chavão «o melhor dos dois mundos».