solstício de inverno rosamunde pilcher

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Título: Solstício de Inverno.Autor: ROSAMUNDE PILCHER.Título original: Winter Solstice.Dados da Edição: Difel, Difusão Editorial, 2001.Género: romance.Digitalização e correcção: Dores Cunha.Estado da Obra: Corrigida.numeração de página: rodapé.

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente àleitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da leide direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído paraoutros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.ROSAMUNDE PILCHERSOLSTÍCIO DE INVERNOTradução de MARIA LUISA SANTOSHDIFELDifusão Editorial S ATítulo original Winter Solstice(c) 2000, Rosamunde PilcherLicença editorial por cortesia do Circulo de LeitoresTodos os direitos de publicação desta obra em língua portuguesa,excepto Brasil, reservados porDIFEL, Difusão Editorial SADIFEL Difusão Editorial, S.A. Avenida das Tulipas, 40-C- Miraflores1495-159 Algés - Portugal-Telefs 214123510 -Fax 214123519- E-mail difel@difel-sa ptCapa Clementina CabralRevisão Tipográfica Fernanda AlvesFotocomposição FotocompográficaImpressão e acabamento Tilgrafica - Sociedade Gráfica SÁDepósito legal n? 1699402001ISBN 972-29-0554-6Outubro 2001Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização doEditorAGRADECIMENTOSNo decorrer da escrita deste livro, houve alturas em que a minha faltade conhecimentos em determinadas áreas desencadeou em mim umbloqueamento sério. Daí que não possa deixar de agradecer a quantos meprodigalizaram o seu tempo e a sua sabedoria, ajudando-me a continuar.A Willie Thomson, que me pôs em contacto com James Sugden, da Johnstonde Elgin, dando origem, deste modo, a todo o processo.A James Sugden, por partilhar comigo os seus vastos conhecimentos eexperiência do mundo da indústria dos lanifícios.A David Tweedie, meu vizinho, pelo seu aconselhamento jurídico.A David Anstice, o dockman de Perthshire.Ao reverendo Dr. James Simpson, pelo seu interesse constante e sábia oientação.Por fim, a Robin, que pagou uma dívida, arrancando a mãe de um buracoliterário.ElfridaElfridaElfrida Phipps, antes de abandonar Londres para semPpre e ir viver parao campo, foi até ao canil de Batters sea e saiu de lá com uma companhiacanina. Foi preciso uma boa meia hora e o coração dilacerado para oencontrar, mas mal o viu, sentado muito perto das grades da sua box, aolhar para cima com os seus enternecedores olhos escuros, percebeu queteria de ser aquele. Não queria umanimal muito grande nem um cãozinho de regaço, irritadiço e nervoso.

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Aquele tinha, exactamente, o tamanho ideal. Tamanho de cão.Tinha o pêlo abundante e macio, parte do qual lhe caía sobre os olhos eas orelhas, que conseguia levantar e baixar, e uma cauda que era umapluma triunfante.A pelagem era às manchas irregulares de castanho e branco. As partescastanhas eram exactamente cor de café com leite. Quando quis inteirarsedos seus progenitores, a responsável do canil disse-lhe que achavaque descendia de um cruzamento de collie com várias outras raças.Elfrida não se importou com o facto. Adorava a expressão que via nofocinho meigo.Deixou um donativo para o canil de Battersea e depois meteu-se no seuvelho carro com o novo companheiro, que foi sentado no lugar dopassageiro a olhar pela janela com ar deliciado, como se nunca tivessefeito outra coisa na vida.No dia seguinte, levou-o a um salão de beleza para canídeos da suazona, onde o tosquiaram, banharam e secaram. Voltou para ela fofo,lavadinho e a cheirar agradavelmente a limão. A sua reacção a toda estaatenção privilegiada saldou-se numa profusa demonstração de fidelidade,gratidão e dedicação. Era um cão tímido, até mesmo acanhado, porém,corajoso. Se tocavam à campainha ou ele se dava conta de algum intruso,ladrava furiosamente por instantes, mas depois retirava-se para o seucesto ou para o colo de Elfrida.Elfrida precisou de algum tempo para se decidir pelo nome a dar-lhe;por fim baptizou-o de Horace.Elfrida, de cesto numa das mãos e a trela de Horace firmemente presa naoutra, saiu de casa, fechou a porta atrás de si e, depois de percorrero carreiro e passar o portão, seguiu pelo passeio, em direcção aosCorreios e ao Armazém Geral.Estava-se numa melancólica e cinzenta tarde de meados de Outubro, ondenada de importante parecia acontecer. As árvores largavam as suasúltimas folhas outonais; o vento era tão gélido que nem o jardineiromais abnegado se atrevia a cirandar por ali; a rua estava deserta e ascrianças ainda não tinham saído da escola. No alto, o céu mostrava-secarregado de nuvens baixas que passavam incessantemente sem, noentanto, o deixarem clarear. Caminhava com rapidez, com Horace a trotarrelutantemente junto aos seus calcanhares, ciente de que era o seuexercício do dia e que não lhe restava alternativa senão aproveitá-lo omelhor possível.Elfrida fora viver para aquela aldeia, chamada Dibton, que ficava emHampshire, dezoito meses antes, deixando Londres para sempre eorganizando ali a sua nova vida. No início sentira-se algo solitária,mas naquele momento não se imaginava capaz de viver noutro sítioqualquer. De vez em quando, velhas amizades dos seus tempos no teatrorealizavam a intrépida viagem da cidade até ali para passarem uns diascom ela, dormindo no divã cheio de protuberâncias do minúsculo quartodos fundos, onde tinha a sua máquina de costura e ganhava uns trocos afazer lindas e requintadas almofadas para uma loja de decoração deinteriores na Sloane Street.Quando esses amigos voltavam a partir, sentiam necessidade de secertificar de que ela ficava bem: «Ficas bem, não ficas, Elfrida?»,«Não te arrependeste? Não queres voltar para Londres? És feliz?», e elaconseguia tranquilizá-los respondendo-lhes: «Claro que estou. Este é omeu retiro geriátrico. Passarei aqui o crepúsculo dos meus anos.»De modo que, naquele momento, já se sentia completamente à vontade noseu novo ambiente. Sabia quem morava nesta casa ou naquela vivenda, aspessoas tratavam-na pelo seu nome. «Bons dias, Elfrida», ou «Lindo dia,Mistress Phipps.» Alguns dos habitantes eram famílias em que o dono dacasa trabalhava em Londres e partia para a cidade no primeiro comboiorápido da manhã, regressando depois ao fim da tarde para pegar no seucarro e percorrer a curta distância até casa. Outros tinham vivido alitoda a vida, em pequenas casas de pedra herdadas de pais e avós.Outros, ainda, eram completamente novos na terra, moravam nas aldeias

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do concelho, à volta da vila, e trabalhavam na fábrica de electrónicaque ficava na cidade vizinha. Era tudo muito trivial e atédescontraído, precisamente aquilo de que Elfrida necessitava.No caminho, passou em frente do pub, que fora remodelado e era agoraconhecido por Cocheira de Dibton. Tinha letreiros em ferro forjado e umamplo espaço para estacionamento de automóveis. Mais adiante, passoupela igreja com os seus teixos, o portão coberto à entrada e o quadrocheio de papéis esvoaçantes com notícias da paróquia: um10concerto de guitarra, um passeio para um grupo de mães e criançaspequenas. No pátio da igreja, um homem acendia uma fogueira, e no arpairava o cheiro adocicado das folhas a queimar. No alto, gralhascrocitavam. Num dos pilares do portão da igreja estava um gato sentado,mas, felizmente, Horace não deu por ele.A rua curvava na ponta, passando em frente da discreta vivenda do novopastor, e a seguir aparecia a loja da vila, com bandeiras esvoaçantes aanunciar gelados e mostruários de jornais encostados à parede. Àentrada estavam dois ou três jovens de bicicleta, e o carteiro, com asua carrinha vermelha, esvaziava o marco do correio.A montra do estabelecimento tinha grades que impediam os vândalos departir os vidros e de roubar as latas de biscoitos e os arranjos defeijões cozidos que Mrs. Jennings considerava uma decoração requintada.Elfrida pousou o seu cesto, amarrou a ponta da trela a uma das barrasde ferro e Horace sentou-se, resignado. Detestava que o deixassem narua, à mercê da rapaziada escarninha, mas Mrs. Jennings não gostava decães no seu estabelecimento. Dizia que alçavam a perna e faziamporcaria.O interior da loja, de tectos baixos, tinha muita luz e estava muitoquente. Frigoríficos e arcas congeladoras zuniam, a iluminação erafornecida por fiadas de lâmpadas fosforescentes e o conjunto deexpositores fora montado meses antes, um grande melhoramento que,segundo Mrs. Jennings, conferia à casa o estatuto de minimercado. Todasestas barreiras já não permitiam descortinar, à primeira vista, quem seencontrava na loja ou não, e só depois de Elfrida passar um expositor(Cafés e Chás Instantâneos) é que viu as costas conhecidas de alguém apagar a sua conta junto da caixa registadora.Tratava-se de Oscar Blundell. Elfrida já não tinha idade para ficar como coração aos pulos de emoção, mas gostava sempre muito de ver Oscar.Ele fora praticamente a primeira pessoa que conhecera quando fora viverpara Dibton, pois, certo domingo de manhã, ao ir à igreja, o pastorviera falar com ela à entrada, depois da missa, com o cabelo todo no ardevido à fresca brisa primaveril e a batina branca a adejar que nemroupa estendida numa corda. Dirigira-lhe palavras gentis deacolhimento, fizera algumas referências superficiais sobre o fabrico deflores e o Instituto Feminino e depois, misericordiosamente, a suaatenção fora desviada.E aqui está o nosso organista, Oscar Blundell. Não é o organistahabitual, sabe, mas uma esplêndida roda sobresselente em tempos denecessidade.Foi então que Elfrida se voltou e viu aproximar-se um homem que emergiuda obscuridade reinante no interior da igreja para o meio da luz doSol. Reparou no rosto brando e divertido, nos olhos encapuçados, nocabelo que em tempos devia ter sido louro, mas se tornara completamentebranco. Era tão alto como Elfrida, o que fugia ao habitual.11Esta era, normalmente, mais alta do que a maioria dos homens, com ummetro e oitenta, e esguia como um caniço, no entanto olhou Oscar nosolhos e gostou do que viu. Como era domingo, vestia um fato de tweedcom uma gravata a condizer, e ao trocarem um aperto de mão, o seu toquefoi firmemente agradável. Elfrida observou:Acho formidável. Refiro-me ao facto de saber tocar órgão. É o seupassatempo?

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Ele replicou, com ar muito sério:Não, trata-se do meu trabalho. Da minha vida. A seguir sorriu, o queretirou toda a pomposidade às suas palavras. Melhor dizendo, da minhaprofissão emendou.Um dia ou dois mais tarde, Elfrida recebeu um telefonema.Viva, daqui fala Gloria Blundell. Conheceu o meu marido neste últimodomingo, na igreja. O organista. Venha jantar connosco na terça-feira.Sabe onde moramos. Na Granja. A casa com torreões em tijoleira, aofundo da vila.É muita gentileza sua. Adoraria.Que tal vão as mudanças?Lentas.Esplêndido. Então, até terça. Por volta das sete e meia.Muito obrigada.Mas o auscultador na outra ponta da linha já fora pousado. Ao queparecia, Mrs. Blundell era uma mulher que não tinha tempo a perder.A Granja era a maior casa de Dibton, cuja entrada era feita através deuns portões enormes e pretensiosos que se erguiam ao cimo de umcaminho. Nada daquilo parecia condizer muito com Oscar Blundell, masseria interessante ir, conhecer a sua mulher e a sua casa. Nunca seconsegue saber exactamente como uma pessoa é sem a vermos no ambienteda sua própria casa, junto da sua mobília, dos seus livros e no seuestilo de vida.Terça-feira de manhã lavou o cabelo e aplicou-lhe a coloração mensal. Atonalidade tinha a designação oficial de louro-morango, embora às vezesficasse mais para o laranja do que para o morango. Daquela vez calharaassim, porém Elfrida tinha coisas mais importantes com que sepreocupar. As roupas levantavam algumas dificuldades. Acabou por optarpor uma saia às flores que lhe ia até aos tornozelos e um casaco demalha de lã verde-lima, tricotado à mão. O efeito combinado do cabelocom as flores da saia e o casaco era razoavelmente vistoso, mas uma dasmelhores maneiras de Elfrida aumentar bastante a sua autoconfiança eraparecer bizarra.Pôs-se a caminho, levando dez minutos a atravessar a vila, a entrarpelos portões pretensiosos e a subir o caminho que conduzia à casa.Daquela vez estava mesmo em cima da hora. Como nunca ali estivera, emvez de abrir a porta da frente, entrar pela casa dentro e chamar12"Hu-hu», como fazia normalmente, procurou a campainha e premiu-a.Ouviu-a soar ao fundo da casa. Aguardou, olhando para os relvados emvolta, tão impecavelmente cuidados que parecia que tinham acabado deser aparados. No ar pairava o odor a relva recém-cortada e a fragrânciahúmida do refrescante crepúsculo primaveril.Passos. A porta abriu-se. Apareceu uma senhora trajada de azul eavental branco, não se tratando, claramente, da dona da casa.Boas noites. É Mistress Phipps, não é verdade? Faça favor de entrar,Mistress Blundell não demorará, foi só lá acima compor o cabelo.Sou a primeira?Sim, mas fez muito bem em vir cedo. Os outros não tardarão a chegar.Quer que guarde o seu casaco?Não, por enquanto fico com ele, obrigada.Não vale a pena explicar que a blusa de seda azul, que levava debaixodo casaco de malha, tinha um buraquinho na parte inferior de uma dasmangas.A sala de estar... Entretanto, foram interrompidas.A senhora é que é Elfrida Phipps... Desculpe não ter ido recebê-la...Elfrida olhou para cima e viu a sua anfitriã descer umas escadas amplasque partiam de um patamar com balaustrada. Era uma mulher alta e bemconstituída; vestia calças de seda pretas e um casaco chinês bordado.Empunhava um copo de vidro semicheio do que parecia ser uísque e águagasosa.Atrasei-me um pouco e depois recebi um telefonema. Como está? estendeulhe

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a mão. Gloria Blundell. Muito gosto.Possuía um rosto aberto e corado, uns olhos muito azuis e um cabeloque, tal como o de Elfrida, parecia ter levado uma coloração, emboraapenas numa tonalidade de louro mais discreta.Foi muita gentileza sua convidar-me.Venha para junto da lareira. Obrigada, Mistress Muswell, conto que osoutros não batam à porta e entrem. Por aqui...Elfrida seguiu-a até uma ampla sala de estar, quase toda apainelada aoestilo dos anos trinta e com uma enorme lareira em tijoleira ondeardiam toros de madeira. Em frente desta havia um guarda-fogo forrado acabedal, material com que se encontravam estofadas todas as cadeiras esofás da sala. Os cortinados eram em veludo cor de ameixa, debruados adourado, e o chão apresentava-se alcatifado e com espessos tapetespersas, ricamente coloridos, espalhados em vários pontos. Nada pareciavelho, gasto ou debotado, tudo deixava transparecer um agradável ar deconforto masculino.Mora cá há muito tempo? perguntou Elfrida, tentando não parecerdemasiado inquiridora.13Cinco anos. A casa foi-me deixada por um velho tio. Sempre a adorei,costumava vir cá em criança. Pousou o copo em cima de uma mesinhapróxima e foi colocar mais um toro enorme na fogueira. Nem imagina oestado em que a encontrei, tudo no fio e comido pelas traças, o que meobrigou a remodelar praticamente de alto a baixo. Também fiz umacozinha nova e mais um par de casas de banho.Onde é que morava anteriormente?Oh, em Londres. Tínhamos uma casa em Elm Park Gardens. Pegou de novo noseu copo, tomou um bom gole e voltou a pousá-lo. Sorriu. É a minhabebida de aperitivo. Preciso sempre de um pequeno empurrão antes dasrefeições. Deseja beber alguma coisa? Um xerez? Gim com água tónica?Sim, era um óptimo sítio para viver, e a casa era maravilhosamenteespaçosa. Além disso, a igreja onde Oscar era organista, a de SaintBiddulph, ficava apenas a dez minutos de distância. Acho que teríamosficado lá para sempre, mas o meu velho tio solteirão foi levado, comoeles dizem, e a Granja ficou para mim. Temos uma filha, chama-seFrancesca, que tem agora onze anos. Sempre achei melhor criar umacriança no campo. Não sei o que Oscar anda a fazer, ficou de servir asbebidas. Provavelmente esqueceu-se do jantar e pôs-se a ler. Queremosapresentar-lhe outros convidados, os McGearey. Ele trabalha na City. Etambém Joan e Tommy Mills. Tommy é consultor no nosso hospital, emPedbury. Desculpe, disse xerez ou gim tónico?Elfrida pediu gin tónico e observou Gloria Blundell a preparar-lhe umnuma mesa bem fornecida ao fundo da sala. Aproveitou para voltar aencher o seu copo com uma boa porção de uísque.Ao voltar para junto de Elfrida, disse:Faça favor. Espero que esteja suficientemente forte. Deseja gelo? Agorasente-se, esteja à vontade e fale-me da sua casinha.Bem... é pequena. Gloria riu-se.Fica na Poulton's Row, não é? Essas casas foram construídas para opessoal dos caminhos-de-ferro. São tremendamente acanhadas, não são?Nem por isso. Não tenho muita mobília e Horace e eu ocupamos poucoespaço. Horace é o meu cão. Um rafeiro sem grande graça.Eu tenho dois pequineses, que são bonitos, mas mordem nos hóspedes, porisso estão fechados na cozinha com Mistress Muswell. Que foi que a fezvir para Dibton?Vi o anúncio da casa no The Sunday Times. Tinha fotografia e parecia umamor. E não era demasiado cara.Hei-de ir conhecê-la. Já não entro numa delas desde miúda, quandocostumava visitar a viúva de um antigo cabineiro de comboio. E em quese ocupa?Como?14

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Jardinagem? Golfe? Caridade?Elfrida retraiu-se ligeiramente. Sabia reconhecer uma mulher impetuosaquando alguma se lhe deparava.- Estou a tentar dar um jeito ao jardim, mas até agora tem sidopraticamente só tirar-lhe o lixo.Monta?Nunca na vida montei a cavalo.Bem, eu fi-lo quando os meus rapazes eram pequenos, mas isso já foi hámuito tempo. Francesca tem um pónei, mas acho que não tem muito jeito.Também tem rapazes?Oh, sim. Ambos crescidos e já casados.Mas...?Sabe, já fui casada antes. Oscar é o meu segundo marido.Desculpe, não fazia ideia.Não tem nada que pedir desculpa. O meu filho Giles trabalha em Bristole Crawford tem um emprego na City. Em computadores ou coisa do género,não percebo nada do assunto. Claro, conhecíamos Oscar há anos.Frequentávamos Saint Biddulph, na Raleigh Square; era a nossa igreja.Tocou divinalmente no funeral do meu marido. Quando nos casámos,deixámos todos estupefactos. «Um solteirão tão empedernido», diziam.«Faz ideia no que se vai meter?»Elfrida estava a achar tudo maravilhosamente interessante.Oscar foi sempre músico? perguntou.Sempre. Estudou no coro da Abadia de Westminster, depois foi dar aulasde música no Glastonbury College. Foi maestro de coro e organista ládurante muitos anos. Depois reformou-se do ensino, mudou-se paraLondres e arranjou trabalho em Saint Biddulph. Teria ficado por lá atéao fim dos seus dias, mas, entretanto, o meu tio morreu e quis odestino que as coisas mudassem.Elfrida sentiu uma certa pena de Oscar.Ele não se importou de dizer adeus a Londres?Foi um pouco como arrancar uma velha árvore pelas suas raízes. Masalinhou corajosamente, para bem de Francesca. No entanto, dispõe de umasala de música pessoal, onde tem os seus livros e partituras, e dá umasaulas para não perder a prática. A música é a sua vida. Sempre que háuma emergência e lhe pedem que toque na missa da manhã na igreja deDibton, adora. E como não podia deixar de ser, está sempre a escapulirseaté lá para praticar tranquilamente.Atrás de Gloria, a porta que deitava para o corredor abrira-sesilenciosamente. Como esta estava a falar, só deu por isso ao repararque a atenção de Elfrida se desviara, de modo que se virou para trás,na suapoltrona.Ora até que enfim, meu caro, estávamos precisamente a falar de ti.15Os outros convidados começaram a chegar na mesma altura e ao mesmotempo, entrando e enchendo a casa com o som das suas vozes. Os Blundellforam recebê-los e, por um momento, Elfrida ficou sozinha. Apeteceu-lhevoltar para casa naquele momento e passar um serão solitário areflectir sobre tudo o que ficara a saber, mas, claro, que tal nãoteria sido possível. Ainda não tivera tempo para pôr a triste ideia departe já os convidados entravam todos na sala de estar e o jantarseguia o seu curso.Foi uma noite formal, pródiga e tradicional, com uma comida excelente eum vinho esplêndido. Deleitaram-se com salmão fumado e uma coroa deborrego lindamente apresentada, a sobremesa era composta por trêspudins acompanhados de chantilly firme servido em taças e, parafinalizar, um magnífico stilton cremoso e raiado de azul. Quandopassaram o vinho do Porto de mão em mão, Elfrida reparou, algodivertida, que as senhoras não saíam da sala e ficavam, sim, junto doshomens, e embora ela já estivesse a água, da qual se servira de umjarro em vidro trabalhado, reparou que as outras mulheres se deliciavam

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com o seu vinho do Porto, sobretudo Gloria.Não se admiraria de que Gloria, sentada numa das cabeceiras da mesa eexcedendo-se ligeiramente na ingestão de álcool, quando chegasse aaltura de se levantar da mesa, caísse redonda no meio do chão. Noentanto, a sua anfitriã era de têmpera, pelo que, quando Mrs. Muswellenfiou a cabeça pela abertura da porta a anunciar que o café seencontrava servido na sala de estar, ela conduziu o grupo para fora dasala de jantar e pelo corredor em passada segura.Reuniram-se em frente da lareira, mas Elfrida, ao tirar a sua chávenade café do tabuleiro, reparou, através da janela sem cortinas, no céude um azul-safíra intenso. Embora o dia de Primavera tivesse estadoincerto, alternando aguaceiros com lampejos de sol, as nuvens haviamdispersado durante o jantar e no céu, por cima de uma faia em flordistante, brilhava uma estrela. A janela tinha um banco embutido porbaixo, de modo que Elfrida foi sentar-se nele, com o pires e a chávenanas mãos, a olhar para as estrelas.A certa altura, Oscar aproximou-se dela.Está confortável? perguntou-lhe.Elfrida virou-se e olhou para ele. Andara o jantar todo tão ocupado aservir o vinho, a levantar os pratos e a distribuir os deliciosospudins, que mal haviam falado.Sem dúvida. A noite está a ser muito agradável. E os seus narcisos nãotardam a florir.Aprecia jardinagem?Tenho pouca experiência, mas este jardim parece especialmenteconvidativo.Quer ir dar uma volta por ele, para o conhecer? Ainda não escureceucompletamente.16Elfrida olhou de relance para os outros que, instalados nas poltronasfundas em torno da lareira, se entretinham a conversar.Sim, gostaria muito, mas não será indelicado?De modo algum. Tirou-lhe a chávena da mão e foi colocá-lano tabuleiro.Elfrida e eu vamos dar uma volta pelo jardim.A esta hora? admirou-se Gloria. Está escuro e faz frio.Ainda não escureceu completamente. Daqui a dez minutos já cá estamos.Certo, mas vê se a pobre rapariga leva um casaco ... está muito frio ehúmido. Não deixe que ele a entretenha muito tempo, minha querida...Não deixarei.Os outros voltaram ao tema em debate, que era o preço proibitivo daeducação privada. Elfrida e Oscar saíram porta fora. Este, depois de afechar silenciosamente atrás de si, pegou num casacão de cabedalforrado a lã de borrego que estava sobre uma cadeira.É de Gloria... pode levá-lo.Colocou-o suavemente nos ombros de Elfrida. A seguir, abriu a porta deentrada e ambos saíram para a friagem límpida daquela noite primaveril.Arbustos e sebes vislumbravam-se no meio do lusco-fusco e, sob os pés,sentia-se a relva molhada de orvalho.Começaram a andar. Ao fundo do relvado erguia-se um muro em tijolo ondese abria uma arcada com um imponente portão em ferro forjado. Oscarabriu-o e viram-se no meio de um espaçoso jardim murado, impecavelmentedividido em formas geométricas por sebes de buxo. Um quarto do espaçoera preenchido por roseirais; os arbustos estavam podados e a terrafartamente adubada. Saltava à vista que, quando o Verão chegasse, avisão daquele espaço seria encantadora.Elfrida sentiu-se desajeitada diante de tanto profissionalismo.É tudo trabalho seu?Não. Eu planeio, mas tenho um jardineiro a trabalhar para mim.Não percebo muito de nomes de flores. Nunca tive um jardim a sério.A minha mãe também não tinha grande jeito para nomes. Se alguém lheperguntava o nome de uma flor, e ela não fazia ideia de qual era,

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respondia simplesmente, com grande autoridade, Inapoticum forgetanamia.Resultava quase sempre.Hei-de-me lembrar dessa.Lado a lado, percorreram o amplo piso coberto de cascalho. A certaaltura, Oscar disse:Espero que não se tenha sentido demasiado isolada ao jantar. Receio bemque não passemos de uma espécie de grupo paroquial.- De maneira nenhuma. Apreciei cada instante. Sou muito boa ouvinte.17A vida provinciana é assim. Fervilha de intriga.Sente saudades de Londres?De vez em quando. Dos concertos, das óperas. Da minha igreja, SaintBiddulph.É uma pessoa religiosa? perguntou Elfrida impulsivamente, arrependendosequase logo a seguir. Demasiado cedo para uma pergunta tão pessoal.Oscar, porém, manteve-se impassível.Não sei, mas passei a vida toda mergulhado na música sacra, liturgias emagnificats da Igreja Anglicana. Além disso, sentir-me-ia pouco àvontade a viver num mundo onde não houvesse ninguém a quem agradecer.Refere-se às bênçãos, não?Precisamente.Compreendo, mas mesmo assim não sou minimamente religiosa. Naqueledomingo só fui à igreja por me sentir um pouco isolada e precisar dacompanhia de outras pessoas. Não contava com tão linda música. E nuncaouvira aquele trecho do Te Deum.O órgão é novo, foi adquirido graças a inúmeras pequenas vendasparticulares.Caminharam em silêncio durante algum tempo. A certa altura, Elfridaperguntou:Considera isso uma bênção? Refiro-me ao órgão novo. Oscar riu-se.A Elfrida faz lembrar um cãozinho em volta de um osso. Sim, claro queconsidero.Que mais?Oscar não respondeu imediatamente. Elfrida pensou na mulher dele; nacasa muito confortável e luxuosa; na sala de música exclusiva; nos seusamigos; na segurança financeira evidente. Achou que seria interessantesaber como é que Oscar acabara por casar com Gloria. Teria ele, depoisde anos de vida de solteiro, de alunos, salários magros e salas deaulas poeirentas, visto assomar à sua frente o futuro vazio de umavelhice de homem só, enveredando então pelo caminho mais seguro, ouseja, a viúva rica e impetuosa, a anfitriã requintada, a boa amiga, amãe competente? Ou, quem sabe, fora ela a dar o primeiro passo e atomar a decisão? Talvez se tivessem, simplesmente, apaixonado um pelooutro. Fosse como fosse, parecia resultar.Fez-se silêncio entre ambos. Elfrida observou:Se preferir, não responda.Estava apenas a ver de que maneira poderia explicar. Casei tarde navida e Gloria já tinha dois rapazes do anterior casamento. Por algumarazão, nunca me ocorrera ter um filho meu. Quando Francesca nasceu,fiquei espantado não só por ela estar ali, aquele ser humano minúsculo,mas também por ser tão linda. E dizer-me algo. Como se a18conhecesse desde sempre. Um milagre. Agora, tem onze anos e eu continuoatónito com a minha boa sorte.Está aqui em casa?Não, estuda num colégio interno. Amanhã à noite vou buscá-la para vircá passar o fim de semana.Gostaria de a conhecer.Claro que sim. A perspectiva de a Elfrida vir a ficar encantada com elaagrada-me. Quando Gloria herdou este casarão, senti-me renitente emsair de Londres. Mas por Francesca deixei-me levar pela corrente eacabei por concordar. Aqui, dispõe de espaço e de liberdade. Árvores, o

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cheiro da erva. Espaço para crescer. Espaço para os coelhinhos, osporquinhos-da-índia e o pónei.Para mim disse Elfrida , o que mais me encanta é o canto das aves pelamanhã e a imensidão do céu.Creio que a Elfrida também fugiu de Londres, não foi?Sim. Era tempo.Custou?De certo modo. Passei lá toda a minha vida. Desde a saída da escola ede casa. Estava na RADA. Fiz teatro, sabe. Para grande desgosto dosmeus pais. Mas não me importava que discordassem; na verdade, issonunca me ralou.Actriz. Devia ter imaginado.E cantora, também. E dançarina. Revistas e grandes musicais americanos.Ficava sempre atrás no coro, por ser tremendamente alta. E depois, anosde representações quinzenais e alguns papéis na televisão. Nada demuito notório.Ainda trabalha?Nem pensar, já me deixei disso há anos. Casei com um actor, o pior erroque podia ter cometido por todas as razões do mundo. Depois, ele foipara a América e nunca mais deu notícias, de modo que eu conformei-me efui trabalhando no que aparecia. A certa altura, voltei a casar, mastambém não resultou. Acho que nunca soube escolher muito bem.O seu segundo marido também era actor? perguntou Oscar com vozdivertida, precisamente como Elfrida desejava que fosse. Raramentefalava dos ex-maridos, e a única maneira de tornar as desgraçassuportáveis era rir delas.Oh, não, esse era um homem de negócios. Vendia forros de chão em vinilterrivelmente caro. Qualquer um pensaria que eu estava maravilhosamentesegura e bem na vida, mas ele tinha aquela desagradável convicçãovitoriana segundo a qual, se um homem proporciona alimento e casa a umaesposa, e ainda lhe dá uma espécie de subsídio para cuidar do lar, jácumpriu a sua parte do contrato conjugal.Bem disse Oscar , e porque não? É uma tradição assente, com séculos deexistência Só que, antigamente chamava-se escravatura.19Ainda bem que compreende. Quando fiz sessenta anos foi o melhor dia daminha vida, porque passei a receber uma reforma e soube que podiaentrar no posto de correio mais próximo e receber dinheiro sem ser emtroca de trabalho. Nunca na vida me tinham dado algo de graça. Era comoum mundo completamente novo.Teve filhos?Não, filhos, nunca.Ainda não falou do motivo que a fez mudar-se precisamente para estaaldeia.Precisava de novos ares.Um grande passo.Já escurecera por completo. Elfrida voltou-se e, ao olhar de novo paraa casa, viu, através do arrendado do ferro forjado do portão, o brilhodas janelas da sala de estar. Alguém correra as cortinas.Ainda não falei sobre isso. Nunca o contei a ninguém observou.Não é obrigada a contar-me.Talvez já tenha falado de mais. Se calhar bebi demasiado vinho aojantar.Não creio.Havia um homem, muito especial, adorável, meigo, divertido e perfeito.Outro actor, embora dessa vez se tratasse de alguém com sucesso e fama,mas prefiro não dizer como se chamava. Vivemos juntos durante três anosna sua casinha em Barnes, até de repente lhe aparecer a doença deParkinson e, dois anos depois, morrer. A casa pertencia-lhe. Tinha deme ir embora. Uma semana depois do funeral, vi o anúncio da casa naPoulton's Row. No The Sunday Times. Na semana a seguir, comprei-a.Tenho pouco dinheiro, mas não foi demasiado cara. Trouxe o meu querido

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cão Horace comigo para me fazer companhia, tenho a minha pensão e ganhouns dinheiros extra a fazer almofadas para uma casa de decoração deinteriores muito requintada, em Londres. Sempre gostei de costurar e éagradável trabalhar com materiais bonitos e caros; cada projecto édiferente. Parecia tudo muito trivial. Não sei porque me deu para lhecontar tudo isto. Não tem grande interesse.Acho fascinante.Não vejo razão para tal. Mas é muita delicadeza sua. Estava demasiadoescuro para lhe poder ver o rosto ou ler-lhe a expressão dos olhos.Talvez seja melhor voltarmos para junto dos outros.Com certeza.Adoro o seu jardim. Obrigada. Um dia hei-de vê-lo à luz do dia. Eraterça-feira. Na manhã do domingo seguinte, a chuva caiu - não naqueleschuviscos de Primavera, mas sim em aguaceiro contínuo, tamborilandocontra os vidros das janelas da casa de Elfrida e escurecendo asdivisões minúsculas ao ao ponto de a obrigar a ligar as luzes todas.Depois de pôr Horace a fazer o seu chichi matinal no jardim, preparou20um chá e levou-o para a cama consigo, decidida a passar uma manhãquente, confortável e ociosa a ler os jornais da véspera e a esforçarsepor terminar as palavras-cruzadas.No entanto, pouco depois das onze, foi interrompida pelo toque dacampainha da frente, um dispositivo de som estridente que uma correntependurada accionava. O barulho que fazia parecia um alarme deemergência, a anunciar um incêndio, e pregou um susto enorme a Elfrida.Horace, deitado aos pés da cama, sentou-se e deixou escapar doislatidos. Era o máximo que estava preparado para fazer em defesa da suadona; a sua natureza cobarde não lhe permitia rosnar ou morder emintrusos.Atónita, mas não alarmada, Elfrida levantou-se da cama, vestiu o robe,apertou o cinto e desceu as escadas íngremes e estreitas. Estas iam darà sala de estar e à porta da entrada, que deitava directamente para ominijardim da frente. Deparou com uma menina, de jeans, sapatos deténis e com o anoraque gotejante. Como este não tinha capuz, a cabeçada criança estava molhada como a de um cão que tivesse acabado dedesfrutar de um belo mergulho. O cabelo, arruivado, estava preso emtranças, e o rosto sardento apresentava-se avermelhado devido ao frioque reinava no exterior.Mistress Phipps?Usava um aparelho nos dentes.Sim?Sou Francesca Blundell. A minha mãe disse que está um dia horrível, porisso não gostaria de lá ir almoçar? Temos uma quantidade enorme debifes e montes de...Mas eu só lá fui jantar!Ela disse que a senhora diria isso.É tremendamente gentil. Como podes ver, ainda não me vesti. Nem sequerainda tinha pensado no almoço.Ela tencionava telefonar, mas depois eu disse que vinha de bicicleta.Vieste de bicicleta?Deixei-a no passeio. Não faz mal.Escapou, por um triz, ao duche de água que tombou de uma goteiraexcessivamente cheia.Acho melhor entrares sugeriu Elfrida , senão ainda te afogas.Oh, obrigada agradeceu Francesca, aceitando prontamente o convite eentrando.Horace, tendo ouvido vozes e concluído que não havia perigo, desciadignamente as escadas. Elfrida fechou a porta.Este é Horace. O meu cão.É um amor. Olá. Os pequineses da minha mãe ladram durante horas sempreque há visitas. Posso despir o anoraque?Com certeza, acho uma óptima ideia.

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21Francesca assim fez, abrindo o fecho e pendurando o agasalho nasaliência ao fundo do corrimão, onde ficou a pingar para o chão. Depoisolhou em redor e disse:Sempre achei estas casinhas um amor, mas nunca entrara em nenhuma.Tinha os olhos grandes e acinzentados, sombreados por pestanas densas elouras. Quando a minha mãe me contou que estava a viver aqui, nãodescansei enquanto não vim ver como era. Por isso trouxe a bicicleta.Não se importa, pois não?Nem um pouco. Só receio é que esteja tudo um bocado desarrumado.Eu acho que está impecável.Claro que não estava. Estava, isso sim, atravancado e surrado, cheio deuma série de objectos pessoais que Elfrida trouxera consigo de Londres:o sofá torto, a pequena cadeira de braços vitoriana, o guarda-fogo demetal, a maltratada secretária, candeeiros de mesa, quadros sem valor edemasiados livros.Tencionava acender a lareira, pois está um dia muito cinzento, masainda não me dispus a isso. Queres uma chávena de chá, café ou qualqueroutra bebida?Não, obrigada, acabei de beber uma Cola. Para onde dá aquela porta?Para a cozinha. Eu mostro-te.Elfrida foi à frente, abriu a porta de madeira, que estava no trinco, eescancarou-a. A sua cozinha não era maior do que uma cabina de navio.Aí, um pequeno Rayburn ardia continuamente, mantendo toda a casaaquecida, um armário de madeira estava empilhado de loiça, por baixo dajanela havia um lava-louça de pedra e o espaço restante era preenchidopor uma mesa e duas cadeiras de madeira. A seguir à janela havia umaporta pequena que dava para o quintal. A metade superior da mesma eraformada por pequenos painéis de vidro que deixavam ver o pátio lajeadoe o canteiro estreito que, até ali, era tudo o que Elfrida conseguirafazer em termos de canteiros de flores. Fetos abriam caminho por entreas lajes e uma madressilva trepara pela parede vizinha.Não se torna muito convidativo num dia como o de hoje, mas sempre dápara uma pessoa se sentar numa cadeira de descanso ao entardecer.Oh, mas eu adoro exclamou Francesca, olhando à sua volta com ar de quempercebe de questões domésticas. Não tem frigorífico. Nem máquina delavar roupa. Nem arca congeladora.Não, não tenho arca congeladora, mas quanto ao frigorífico e à máquinade lavar roupa, tive de os deixar no barracão que fica ao fundo doquintal. E lavo a loiça toda no lava-louças, porque não há espaço parauma máquina.Acho que. se a minha mãe não tivesse máquina de lavar louça, morria.22Quando se vive sozinho, não custa muito.Adoro o seu serviço de louça. Azul e branco. É o meu preferido.Eu também gosto muito. As peças não condizem umas com as outras, mascompro-as à medida que as vou encontrando nas lojas de velharias. Agorasão tantas que mal tenho onde guardá-las.O que há lá em cima?O mesmo. Duas divisões e uma casa de banho minúscula. A banheira é detal maneira pequena que sou obrigada a ficar com as pernas penduradaspara fora. Numa das divisões fiz o meu quarto e na outra, a minha salade costura. Se recebo algum hóspede, tem de ficar a dormir ao pé damáquina da costura, dos bocados de tecido que por lá andam e dos livrosde encomendas.O meu pai disse-me que faz almofadões. Acho que é tudo o que fazexactamente falta a uma pessoa. E um cão, claro. Como uma casa debonecas.Tu tens alguma casa de bonecas?Sim, mas já não brincco com ela. Tenho animais. Um porquinho-da-índiachamado Happy, embora não esteja muito bem. Deve ter de ir aoveterinário. Está com peladas horríveis pelo corpo todo. E coelhos. E

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um pónei. Franziu o nariz. Chama-se Príncipe, mas baba-se um bocado.Agora é melhor ir. A minha mãe disse que tenho de o levar a passearantes de almoço e isso leva montes de tempo, principalmente quandochove. Obrigada por me deixar ver a sua casa.Foi um prazer. Obrigada por me teres vindo trazer tão amável convite.Podemos contar consigo, não é verdade?Claro.Vai a pé?Não, levarei o meu carro por causa da chuva. E se quiseres saber ondeele fica, já te vou adiantando: na rua.É aquele velho Ford Fiesta azul?Exactamente. E velho é a palavra adequada. Mas não me importo, desdeque as rodas andem e o motor pegue.Francesca sorriu ao ouvir a piada, mostrando, sem o menor embaraço, osdentes com o aparelho.Então, até logo disse.Pegou no seu anoraque, que ainda pingava, vestiu-o e tirou as trançaspara fora. Elfrida abriu-lhe a porta.A minha mãe pediu para lá estar à uma menos um quarto.Lá estarei, e muito obrigada.Hei-de voltar prometeu Francesca.Elfrida ficou a vê-la atravessar o carreiro chapinhando nas poças, eatravessar o portão. Pouco depois, partia na sua bicicleta e dizia-lheadeus com a mão, pedalando furiosamente pelo meio das poças de água,estrada fora, até desaparecer de vista.23Os melhores amigos de Elfrida eram Oscar, Gloria e Francesca. Atravésdeles, conheceu outras pessoas. Não apenas os McGearey e os Mill, mastambém os Foubister, que eram uma família antiga na terra,organizadores da festa anual de Verão da igreja no parque da suaincoerente casa georgiana. E também havia o comandante Burton-Jones,reformado, viúvo, imensamente diligente, que trabalhava no seu jardimimaculado, era presidente da Public Footpath Association e figuraprincipal no coro da igreja. O comandante Burton-Jones (a quem tratavampor Bobby) dava pequenas festas requintadas e chamava cabina ao seuquarto. Depois havia os Dunn, ele um homem imensamente rico quecomprara e reconvertera a velha reitoria numa maravilha de espaço econvivência, completada por uma sala de jogos e uma piscina coberta deágua quente.Outros, mais humildes, foram entrando na sua vida um a um, à medida queElfrida prosseguia as suas actividades diárias: Mrs. Jennings, quedirigia o minimercado e o Correio da vila; Mr. Hodgkins, que dava avolta pela vila uma vez por semana com a sua carrinha de venda decarnes, era uma fonte de confiança de novidades e mexericos, além deter pontos de vista políticos muito firmes; Albert Meddows, querespondera ao anúncio por ela colocado no vidro da montra dominimercado de Mrs. Jennings, a pedir um jardineiro e tratou, sozinho,da desgraça em que se encontrava o jardim das traseiras de Elfrida. Opastor e a esposa convidaram-na para um jantar, no decurso do qual lhesugeriram, mais uma vez, que se juntasse ao Instituto Feminino. Elfridadeclinara amavelmente o convite não apreciava viagens de camioneta enunca na vida fizera um frasco de compota , mas concordara em colaborarcom a escola primária e acabou a produzir a pantomima que apresentavamtodos os anos pelo Natal.Eram todos muito amáveis e acolhedores, porém Elfrida não os achava tãointeressantes nem estimulantes como os Blundell. A hospitalidade deGloria não tinha limites, e era raro decorrer uma semana sem queElfrida fosse convidada para passar algum tempo na Granja, uma refeiçãorequintada ou uma actividade fora de portas, como uma partida de ténis(Elfrida não jogava ténis mas adorava assistir), ou um piquenique.Também havia outras ocasiões em que se saía da terra: a corrida daPrimavera numa aldeia vizinha, uma visita ao jardim do National Trust,

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uma ida ao teatro a Chichester. Passara o Natal com eles, assim como apassagem do ano, e quando Elfrida deu a sua primeira festa para todosos novos amigos (depois de Albert Meddows ter ressuscitado o jardim,nivelado as lajes, podado a madressilva e pintado o barracão), foiOscar quem providenciou todos os «bebes» e Gloria todos os «comes», quevieram da sua espaçosa cozinha.Apesar de tudo, existiam limites e reservas. Nem poderia ser de outromodo; se Elfrida não quisesse ser absorvida e ficar subjugada pelosBlundell. Gloria afigurara-se-lhe imediatamente uma mulher dominadora24com um traço, talvez, de crueldade no seu carácter, tão determinadaestava em conseguir que as coisas corressem sempre ao seu jeito eElfrida tinha plena consciência dos perigos decorrentes de talsituação. Saíra de Londres para construir uma vida para si só e sabiaque seria facílimo uma mulher solteira, e de poucos proventos, deixarseir (e possivelmente afogar-se) no rasto agitado da energia social deGloria.Assim, Elfrida aprendera a, de vez em quando, recuar ligeiramente,preservar a sua independência, apresentar desculpas. Normalmente eraalgum excesso de trabalho, um compromisso já feito e ao qual não podia,de modo algum, fugir, com algum conhecimento que não fosse das relaçõesde Gloria. De vez em quando, escapava aos limites de Dibton, metiaHorace no banco de trás do seu carro e afastava-se o mais que podiacampo fora, até alguma outra aldeia onde não a conhecessem e onde ela eHorace pudessem subir uma colina, na qual pastassem ovelhas, ou seguirpelo carreiro ao longo de alguma corrente escura e revolta e encontrar,no fim desta, um pub cheio de desconhecidos onde pudesse comer umasanduíche e beber um café, e deleitar-se com a sua preciosa solidão.Era nessas ocasiões que, longe de Dibton e com a sua percepção afinadapor um sentido de perspectiva, se tornava possível analisar o seuenvolvimento com os Blundell e catalogar as suas conclusões de maneiraimpessoal e imparcial, como se fosse uma lista de compras.A primeira delas era a de que gostava imensamente de Oscar; talvezdemasiado. Já passara, há muito, da idade do amor romântico, mas já nãose poderia dizer o mesmo do companheirismo. Desde a primeira vez em quese tinham encontrado, em frente da igreja de Dibton, altura em quesimpatizara imediatamente com ele, que começara a apreciar, cada vezmais, a sua companhia. O tempo só viera confirmar essa impressão.Mas o gelo era fino. Elfrida não era hipócrita nem senhora de padrõesmorais exageradamente elevados; na verdade, o homem que amara, com quemvivera durante tanto tempo e que já morrera, era casado com outramulher. Elfrida, porém, nunca a conhecera e, quando se tinhamencontrado, o casamento já andava pelas ruas da amargura, daí que nuncase tivesse deixado consumir pelo remorso. Por outro lado, o cenário quese apresentava não era, de modo algum, tão inocente, e Elfrida já otestemunhara em mais de uma ocasião: o da mulher só, viúva, divorciadaou desoladamente solitária por qualquer outra razão, que passava a serprotegida por uma amiga com cujo marido acabava por se envolver. Umasituação condenável que desaprovava fortemente.No entanto, no caso de Elfrida, tal não viria a acontecer. Sabia queera na sua consciência do perigo e no seu próprio bom-senso queencontraria a sua maior força.Em segundo lugar, Francesca, com onze anos de idade, era a filha queElfrida, caso tivesse tido alguma, gostaria que fosse sua:imdependente,25sincera e totalmente franca, possuía, no entanto, um sentido doridículo capaz de pôr Elfrida a rir a bandeiras despregadas, e umaimaginação alimentada pela leitura voraz de livros. Francesca ficava detal maneira absorta nas suas leituras que bem podiam entrar no seuquarto, ligar a televisão ou manter uma discussão violenta que ela nemsequer levantava os olhos da página. Nas férias escolares, era

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frequente aparecer na Poulton's Row para brincar com Horace e verElfrida na sua máquina da costura, aproveitando para fazer perguntasincontáveis sobre o seu passado teatral, que achava francamentefascinante.O seu relacionamento com o pai era inusitadamente intenso e carinhoso.Ele tinha idade para ser seu avô, mas o prazer que encontravam nacompanhia um do outro ultrapassava, de longe, o da relação normal entrepai e filha. No lado de lá da porta fechada da sala de música ouvia-seos dois a tocar em dueto ao piano, apontando erros entre si quedesencadeavam não recriminações, mas sim muitas gargalhadas. Nos serõesde Inverno, ele lia-lhe em voz alta, os dois aninhados no enorme sofá,e o afecto que a filha lhe tinha manifestava-se em frequentes abraços,nos bracinhos à volta do pescoço dele e dos beijinhos dados em cima dafarta cabeleira branca.Quanto a Gloria, era uma mulher habituada a lidar com homens, maischegada aos dois filhos adultos e casados do que à filha tardiamenteconcebida. Elfrida já tivera oportunidade de conhecer os dois rapazes,Giles e Crawford Bellamy, assim como as respectivas esposas, bonitinhase bem vestidas. De vez em quando, apareciam na Granja para o fím-desemanaou vinham de carro de Londres para almoçar aos domingos. Emboranão fossem gémeos, eram estranhamente parecidos, convencionais econvencidos. Elfrida tinha a impressão de que nenhum deles a aprovava,mas como também não gostava particularmente de nenhum dos dois, poucose importava com o facto. Gloria mimava-os, o que era bem maisimportante, e quando chegava a altura de partirem, levavam os portabagagensdos carros caros a abarrotar de legumes frescos e fruta dahorta de Gloria, de onde esta ficava a acenar-lhes como qualquer mãesentimental. Saltava à vista que, aos seus olhos, nenhum dos filhospoderia proceder mal, e Elfrida tinha a certeza de que, se ela nãotivesse aprovado as respectivas esposas, tanto Daphne como Arabellateriam tido pouca duração.Francesca, no entanto, era de outra cepa. Profundamente ligada a Oscar,não se deixava influenciar, seguia os seus próprios interesses e achavaa leitura e a música muito mais atractivas do que as gincanas locais doPony Club. Ainda assim, nunca se rebelava nem amuava, cuidando do seupequeno pónei rabugento com carinho, exercitando-o regularmente,cavalgando pelo recinto fechado, que Gloria mandara improvisar paraactividades equestres, e dando grandes passeios com ele ao longo doscaminhos tranquilos à beira do pequeno rio. Oscar ia muitas vezes com afilha, montado numa velha bicicleta, relíquia dos seus tempos demestre-escola.26Gloria deixava-os estar, se calhar, pensava Elfrida, porque a filha nãoera assim tão importante para si. Pelo menos não tão absorvente ougratificante como o próprio estilo de vida agitado que levava, as suasfestas, o seu círculo de amizades. Igualmente valiosa era a sua posiçãocomo mentora social; havia alturas em que fazia lembrar um organizadorde caçadas, fazendo soar a sua trompa para chamar a atenção e açoitandoos seus cães.Elfrida caíra em desgraça apenas uma vez. Foi durante uma noite deconvívio em casa dos Foubister, um jantar de grande formalidade eestilo, à luz das velas, que fazia refulgir as pratas, e com um velhomordomo a servir à mesa. Terminada a refeição, passaram à sala de estar(deveras fria, pois a noite estava gélida) e Oscar pusera-se a tocarpara eles no piano de cauda; depois de um estudo de Chopin, sugerira aElfrida que cantasse.Elfrida ficou muito embaraçada e surpreendida. Não cantava há anos,protestou, a sua voz estava um horror...Mas o velho Sir Edwin Foubister também tentou persuadi-la.Por favor implorou , sempre gostei de uma voz bonita. Foi tãodesarmante que deixou Elfrida hesitante. Afinal de contas,que importava que a sua voz tivesse perdido o timbre juvenil, ela

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desafinasse nas notas mais altas e acabasse por fazer uma tristefigura? Foi então que reparou no rosto de Gloria, cuja expressãomostrava a maior reprovação e assombro. Percebeu logo que Gloria nãoqueria que ela cantasse. Não a queria ver-se destacar ao lado de Oscare entreter o pequeno grupo. Não gostava de que os outros brilhassem,atraíssem as atenções, desviassem a conversa para longe dela. Foi umapercepção de total clareza e algo chocante, como se tivesse apanhadoGloria despida. Em circunstâncias diferentes, Elfrida talvez tivessejogado pelo seguro, recusando delicadamente, apresentado desculpas. Masjantara bem e bebera um vinho delicioso, de modo que, assimfortalecida, sentiu acender-se dentro de si uma pequena chama dealtivez. Nunca antes se deixara intimidar e não era naquela altura dasua vida que iria permiti-lo. Portanto, sorriu perante o sobrolhofranzido e ameaçador de Gloria e, virando a cabeça para o seuanfitrião, disse:Se é esse o seu desejo, terei muito gosto...Esplêndido agradeceu Sir Edwin, batendo palmas como uma criança. Quemaravilha.Elfrida levantou-se então e foi até junto de Oscar, que a aguardava.Que vai cantar?Disse-lhe. Uma velha canção de Rodgers e Hart.Conhece?Claro.Um acorde ou dois para a introdução. Já lá ia muito tempo. Endireitouos ombros e encheu os pulmões . Bastou-me olhar-te uma vez,27Os anos haviam tornado a sua voz mais fina, mas ainda era capaz deaguentar as notas com segurança.Para que o meu coração parasse.Consumiu-a então imediatamente uma felicidade irracional que a fezsentir-se jovem de novo, ao lado de Oscar e, com ele, enchendo a salacom aquela música da sua juventude.Gloria mal lhe falou durante o resto da noite, mas ninguém se deu aotrabalho de tentar arrancá-la ao seu mau humor. Enquanto congratulavamElfrida pela sua actuação, Gloria bebia o seu brande. Quando chegou aaltura de se irem embora, Sir Edwin acompanhou-os até ao localimpecavelmente coberto de cascalho, onde o imponente carro de Gloriaestava estacionado. Elfrida deu-lhe as boas-noites e enfiou-se no bancode trás, mas foi Oscar quem se sentou ao volante, obrigando assimGloria a sentar-se no banco do passageiro do seu próprio automóvel.A caminho de casa, Oscar perguntou à mulher:Que tal achaste a noite? Gloria limitou-se a responder:Estou com dores de cabeça. E ficou novamente calada.Elfrida pensou, «não admira», mas absteve-se prudentemente de o dizerem voz alta. E essa era, talvez, a verdade mais preocupante e triste detodas: Gloria Blundell, mulher empedernida e de estômago forte, bebiade mais. Nunca ficava incapacitada, jamais tinha ressacas. Mas bebiademasiado. E Oscar sabia.Oscar. Naquele momento estava ali, na loja de Mrs. Jennings, numa tardecinzenta de Outubro, a comprar os seus jornais e uma lata de comidapara cão. Vestia umas calças de bombazina, uma camisola grossa queparecia feita de tweed, e botas grossas, o que parecia indicar queestaria a tratar do seu jardim quando se lembrara de que precisavadaquilo, tendo-se posto a caminho.Mrs. Jennings levantou a cabeça.Boas tardes, Mistress Phipps.Oscar, com as mãos cheias de trocos, virou-se e avistou-a.Boas tardes, Elfrida. Ela respondeu-lhe:Deve ter vindo a pé. Não vi o seu carro.Estacionei-o no outro lado da esquina. Acho que é tudo, MistressJennings.Oscar desviou-se para dar lugar a Elfrida, ali ficando sem,

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aparentemente, dar mostras de pressa.Já não a vemos há dias. Como vai?Oh, sobrevivendo. Um pouco farta deste tempo.Pavoroso, não acha? intrometeu-se Mrs. Jennings. Gelado e húmido aomesmo tempo. Que tem aí, Mistress Phipps?28Elfrida colocou o que trazia dentro do cesto em cima do balcão, paraque Mrs. Jennings pudesse verificar os preços e anotá-los na sua conta.Um pão, meia dúzia de ovos, um pouco de toucinho fumado e de manteiga,duas latas de comida para cão e uma revista chamada Lares Maravilhosos.Quer que ponha na sua conta?Se fizer favor, deixei a minha bolsa em casa.Oscar reparou na revista.Tenciona fazer alguns melhoramentos domésticos? perguntou.Provavelmente não, mas acho terapêutico ler sobre as outras pessoas. Secalhar, porque sei que não terei de ir atrás dos outros. É um poucocomo ouvir alguém a aparar a relva.Mrs. Jennings achou a ideia muito engraçada.O Jennings pôs o seu cortador de relva de parte já em Setembro. Detestaaparar a relva, lá isso detesta.Oscar ficou a ver Elfrida colocar as coisas dentro do seu cesto edepois propôs:Se quiser dou-lhe boleia até casa.Não me importo de andar a pé. Trouxe Horace comigo.Terei muito gosto em levá-lo também. Obrigado, Mistress Jennings,adeus.Adeusinho, Mister Blundell. Cumprimentos à esposa.Saíram juntos da loja. No exterior, via-se um grupo de jovensentretidos a conversar no passeio. Tinha-se-lhes juntado uma raparigade aspecto duvidoso, a fumar, de cabelos muito negros e uma saia decabedal que mal lhe chegava ao traseiro. A sua presença pareceragalvanizar os rapazes, que se tinham lançado numa pantomima deescárnios, insultos e gargalhadas sem sentido. Horace, apanhado no meiodaquele comportamento indecoroso, tinha um ar muito infeliz. Elfridadesprendeu a trela e ele abanou a cauda, aliviado. Os três deram avolta à esquina e percorreram a travessa onde Oscar deixara o carro.Elfrida sentou-se no banco do passageiro e Horace foi-se instalar entreas suas pernas, apoiando o focinho no seu colo. Quando Oscar se sentouao volante, depois de fechar a porta e ligar o motor, ela observou:Nunca conto encontrar ninguém na loja, à tarde. As manhãs é que sãodestinadas aos contactos sociais. É quando se apanham todos osmexericos.Eu sei. Mas Gloria foi a Londres e eu esqueci-me dos jornais. Deu avolta com o carro e enveredou pela rua principal. As aulas diárias játinham terminado, e os passeios mostravam-se apinhados de criançascansadas, sujas e de mochilas escolares às costas, a caminho de casa. Ohomem no pátio da igreja fizera nova fogueira para queimar as folhascaídas e o fumo subia no ar parado e húmido.Quando é que Gloria foi a Londres?Ontem. Tem não sei que reunião. Acho que se relaciona com o29movimento Salvem as Crianças. Foi de comboio. Tenho de a ir esperar aoque chega às seis e meia da tarde.Gostaria de ir tomar uma chávena de chá comigo? Ou prefere voltar à suajardinagem?Como é que sabe que tenho estado a tratar do jardim?Pistas deixadas. Intuição feminina. Lama nas suas botas. Oscar riu-se.Perfeitamente correcto, Mister Homes. Mas seria incapaz de recusar umachávena de chá. Nada como isso para animar um jardineiro.Passaram em frente do pub e, pouco depois, chegavam à estrada quedescia pelo declive e ia dar à linha de caminho-de-ferro e às pequenasvivendas que formavam a Poulton's Row. Oscar deteve o carro em frente

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do portão da casa de Elfrida e desceram. Horace, liberto da sua trela,correu alegremente pelo carreiro acima, seguido de Elfrida, com o seucesto das compras, e de Oscar. Elfrida abriu a porta.Nunca a fecha à chave? perguntou Oscar, atrás dela.Não para uma ida às compras à vila. Seja como for, não há nada pararoubar. Entre e feche a porta. Foi até à cozinha e pousou o cesto emcima da mesa. Se não se importa, acenda a lareira. Um dia como esterequer um pouco de consolo.Encheu a chaleira com água da torneira e colocou-a no fogão. Emseguida, despiu o casaco, que colocou nas costas de uma cadeira, e foibuscar umas peças de louça desirmanada.Canecas ou chávenas?Para os jardineiros, canecas.Tomamos o chá ao pé da lareira ou sentamo-nos aqui mesmo?Sinto-me muito mais feliz com os joelhos debaixo de uma mesa.Elfrida abriu então umas caixas de lata onde habitualmente guardavabolos, mas sem grande esperança. Duas estavam vazias, a terceiracontinha um pedaço de bolo de gengibre. Colocou-a em cima da mesa,juntamente com uma faca. Encontrou uma embalagem de leite nofrigorífico e despejou-o dentro de uma leiteira de cerâmica amarela.Descobriu o açucareiro. Ouviam-se já, vindos da sala ao lado, osestalidos dos ramos a crepitar na lareira. Elfrida foi até ao umbral daporta e encostou-se a este, ficando a observar Oscar, que colocava, comalguma cautela, dois pedaços de carvão no topo da sua pequena pira.Dando-se conta da presença de Elfrida, endireitou-se e voltou-se paraela, sorrindo-lhe.Está a arder que é uma beleza. Feita com todos os requintes, com muitosgravetos. Precisa de toros para o Inverno? Se quiser deixo-lhe umcarregamento deles.Onde é que os guardaria?Podíamos empilhá-los no jardim da frente, contra a parede.Seria uma maravilha, caso possa dispensar alguns.Temos mais do que o suficiente. Limpou o pó das mãos nas30calças e olhou em volta. Sabe, transformou isto num lugar encantador.Está uma confusão, eu sei. Falta de espaço. Os objectos que sepossuem são um dilema, se são! Tornam-se parte de nós, e tenhodificuldade em me desfazer das coisas. Tenho por aí uma série demiudezas que carrego comigo há uma data de anos, já desde os meusvertiginosos tempos no palco. Eu era como um caracol com a concha àscostas. Um xaile de seda ou umas bugigangas tornavam os desconfortáveisalojamentos da malta do teatro um pouco mais suportáveis.Gosto em especial dos seus cães de Staffordshire.Fizeram sempre parte da minha bagagem, embora não formem propriamenteum par.E também do pequeno relógio de viagem.Esse também viajou muito.Realmente tem um ar bem usado.Estafado seria mais verdadeiro. Tenho-o há anos, foi-me deixado por umvelho padrinho. Eu... eu tenho algo que talvez seja verdadeiramentevalioso, que é aquele pequeno quadro além.Onde é que o arranjou?Foi-me oferecido por um actor. Participávamos os dois numa readaptaçãode Hay Fever, em Chichester, e no fim da série de espectáculos, pediumeque eu ficasse com ele. Um presente de despedida. Descobrira-o numaloja de quinquilharias e não creio que lhe tivesse custado muitodinheiro, no entanto, estava entusiasmado porque tinha a certeza de quese tratava de um David Wilkie.Sir David Wilkie? admirou-se Oscar. Um bem precioso. Então porque foique lho ofereceu?Elfrida, porém, não se deixou desconcertar.Quem sabe se para me agradecer por lhe ter cozido as peúgas?

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Oscar voltou a fixar a sua atenção no quadro. Ocupava pouco espaço,pois tinha apenas cerca de vinte centímetros por quarenta, e retratavaum casal idoso, vestido à século dezoito, sentado a uma mesa em cujotampo se via uma enorme Bíblia forrada a cabedal. O fundo era sombrio,as roupas do homem escuras. A mulher, no entanto, usava um xaileamarelo-canário por cima de um vestido vermelho, e a touca brancaamarrada por baixo do queixo era cheia de rufos e fitinhas.Eu diria que ela vestiu-se para alguma celebração, não acha?Sem dúvida. Elfrida, talvez devesse começar a deixar a porta de entradafechada.É bem provável.Está no seguro?É o meu seguro. Para tempos de necessidade. Quando me vir pelas ruascom um par de sacos de plástico e Horace preso por um cordel, aí, e sóaí, é que pensarei em vendê-lo.Uma prevenção contra a desgraça. Oscar sorriu e tirou os31óculos. Seja o que for. A maneira como reúne os seus objectos é quecria este todo agradável. Tenho a certeza de que não tem nada que nãoconsidere belo ou saiba que é útil.William Morris.E, talvez, a noção de bom gosto.O Oscar diz coisas extremamente bonitas.Nessa altura, a chaleira que Elfrida pusera ao lume começou a assobiar,o que significava que a água já fervia. Foi tirá-la do fogão, seguidapor Oscar, que ficou a vê-la preparar o chá num bule castanho, quedepois colocou em cima da mesa.Se gosta do chá bem forte, é melhor esperar um pouco mais. E sepreferir limão em vez de leite, também há. Temos aqui um pedaço de bolode gengibre envelhecido.Um banquete. Oscar puxou de uma cadeira e sentou-se, como que aliviadopor descansar as pernas.Elfrida sentou-se igualmente à mesa, de frente para ele, atarefando-sea cortar o bolo de gengibre. Às tantas disse:Oscar, vou-me embora.Ele não respondeu mas ela, ao olhá-lo, reparou que a fitava com umaexpressão de espanto horrorizado.Para sempre? perguntou-lhe a medo.Claro que para sempre não. O alívio foi evidente.Graças a Deus. Que susto me pregou!Eu nunca deixaria Dibton para sempre. Já lho disse. Tenciono passar ocrepúsculo dos meus anos aqui. Mas é altura de tirar umas férias.Sente-se particularmente exausta?Não, mas o Outono costuma deprimir-me. É uma espécie de limbo entre oVerão e o Natal. Um tempo morto. Além disso, o meu próximo aniversáriovem aí. Sessenta e dois. O que ainda é mais deprimente. É altura,portanto, de uma mudança.Muito sensato. Far-lhe-á bem. Posso saber para onde vai?Para a ponta mais afastada da Cornualha. Se uma pessoa espirra, corre operigo de cair no Atlântico.Cornualha? Ficou atónito. Porquê a Cornualha?Porque tenho um primo a viver lá. Chama-se Jeffrey Sutton e temexactamente menos dois anos que eu. Fomos sempre amigos. É uma daquelaspessoas simpáticas a quem podemos telefonar de repente e perguntar,«Posso ir aí passar uns dias?», e ter a certeza de que a resposta serápositiva. E mais, ficará radiante. Portanto Horace e eu vamos até lá decarro.Oscar sacudiu a cabeça, algo desconcertado:Nunca a tinha ouvido falar em nenhum primo. Melhor dizendo, em nenhumparente.32Imaginava-me como fruto de uma imaculada concepção?

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Não tanto. Mas admito que fico surpreendido.-Não acho minimamente surpreendente. Não tenho o hábito de estar semprea falar da família. Elfrida resolveu então abrandar. Mas Jeffrey é umapessoa especial e mantivemos sempre contacto. Tem mulher?Na verdade, teve duas. A primeira era uma chata. Chamava-se podie.Creio que ele ficou encantado com a beleza dela e o ar indefesodescobrindo depois, pobre homem, que se ligara à mulher mais preocupadaconsigo mesma que se possa imaginar. Além disso, era ociosa ecompletamente avessa às lides domésticas, e a maior parte do saláriotão arduamente ganho por Jeffrey era para pagar a cozinheiras, mulheresda limpeza e pessoal do género, na esperança de conseguir criar as duasfilhas.Que aconteceu ao casamento? perguntou Oscar, claramente fascinado.Foi durando, até, finalmente, as duas meninas crescerem, completarem asua educação e começarem a ganhar, após o que ele afastou-se. Havia umarapariga chamada Serena, muito mais nova que Jeffrey e um amor depessoa. Era floricultora; tinha um pequeno negócio de arranjos floraispara festas e cuidava dos canteiros de janela das outras pessoas. Eleconhecia-a há anos. Quando terminou o seu casamento, terminou também oseu trabalho, sacudiu a poeira londrina dos sapatos e mudou-se, nacompanhia de Serena, para o mais longe de Londres que conseguiu.Terminado o divórcio, que foi deveras litigioso, casou com Serena quaselogo a seguir e iniciou nova família. Tiveram um rapaz e uma rapariga.Vivem quase sem capital, da criação de galinhas e da hospedagem aturistas de Verão.E viveram felizes para todo o sempre?Poderia dizer-se que assim foi.E quanto às filhas dele? Que foi que lhes aconteceu?Nunca mais soube nada delas. A mais velha chamava-se Nicola. Penso quecasou com um homem qualquer e teve uma filha. Era tremendamenteantipática, insatisfeita e sempre a queixar-se das injustiças da vida.Creio que tinha imensos ciúmes de Carrie.Que era a irmã.Precisamente. E uma querida. Herdou exactamente o feitio doce deJeffrey. Aqui há uns dez anos, tive de fazer uma operação que é comumàs mulheres, mas sobre a qual não me alargarei neste momento, Oscar, eela foi cuidar de mim. Ficou um mês e meio. Nessa altura, eu estavasozinha e vivia num andar muito acanhado em Putney, no entanto, elatomou conta de tudo e demo-nos às mil maravilhas. Elfrida ficoupensativa, fazendo contas de cabeça. Deve ter agora à volta de trintaanos. Como o tempo voa!Casou?33Não creio. Como disse, nunca mais soube delas. Na última vez que tivenotícias, estava a trabalhar na Áustria para uma grande empresa deviagens. Sabe como é, a acompanhar excursões de esqui para turistas e acertificar-se de que ficam instalados no hotel certo. Ela sempre adorouesquiar. Seja como for, tenho a certeza de que está feliz. Creio que oseu chá já deve estar suficientemente forte.Deitou o chá na caneca (estava razoavelmente escuro) e deu-lhe umafatia de bolo de gengibre a esfarelar-se.Portanto, como vê, tenho família, embora não especialmente chegada.Sorriu-lhe. E quanto a si? Tempo de confissão. Tem algum parente dequem se possa gabar?Oscar passou a mão pela cabeça.Não sei. Acho que tenho. Mas, tal como a Elfrida, não faço ideia poronde andarão ou o que farão.Conte.Bem. Deu uma dentada no bolo com ar pensativo. A minha mãe eraescocesa. Que tal, para começar?Nada mal.Tinha uma casa enorme em Sutherland, algumas terras e uma quinta.

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Senhora de posses.Eu costumava passar as férias de Verão com ela, mas morreu tinha eudezasseis anos, de modo que nunca mais lá voltei.Como se chamava a herdade?Corrydale. Era imensamente grande?Não. Apenas imensamente confortável. Refeições copiosas, botas deborracha e canas de pescar por tudo o que era sítio. Odores agradáveis,a flores, cera de abelha e a galinha cozinhada.Hum, delicioso. De fazer crescer água na boca. Tenho a certeza de queera uma bem-aventurada.Isso não sei. Só sei que era a simplicidade em pessoa eextraordinariamente talentosa.Em que aspecto?Acho que no talento de viver. E na música. Era uma pianista exímia. Deverdade. Penso que foi dela que herdei o pequeno dom que tenho, etambém foi ela quem me ajudou a escolher a minha carreira. Em Corrydalehavia sempre música. Fazia parte da minha vida.Que mais?Como?Que mais fazia?Mal me consigo lembrar. Caçava coelhos à tarde. Ia à pesca da truta.Jogava golfe. A minha avó adorava esse desporto e tentou fazer de mimum bom golfista, mas nunca lhe cheguei aos calcanhares. Depois.apareciam por lá umas pessoas e púnhamo-nos a jogar ténis e, seestivesse calor suficiente, o que era raro, ia de bicicleta até à34praia e atirava-me ao mar do Norte. Em Corrydale, fosse qual fosse aactividade, era sempre tudo muito relaxante. E divertido.Depois o que aconteceu?A minha avó morreu. Estava-se em guerra. O meu tio ficou coma propriedade e foi viver para lá.Deixou de o convidar para as férias de Verão?Esses tempos tinham chegado ao fim. Eu tinha dezasseis anos,andava metido na música, com exames. Outros interesses, outras pessoas.Uma vida diferente.Ele ainda lá vive? Refiro-me ao seu tio.Não, mudou-se para Londres. Agora vive numa mansão próximado Albert Hall.Como é que se chama?Hector McLellan.Oh, esplêndido. Aposto em como anda de kílt e tem a barba ruiva.Já não. É muito velho.E Corrydale?Passou-a para as mãos de Hughie, o filho. Meu primo. Um sujeitoimprestável, cujo único fito era viver à larga e em grande estilo.Encheu Corrydale de amigos degenerados que lhe beberam o uísque elevaram ao desespero os velhos e respeitáveis empregados quetrabalhavam na casa e na propriedade há muitos anos. Redundou tudo numgrande escândalo. Depois, Hughie achou que a vida a norte da fronteiranão era para si e vendeu tudo, indo viver para Barbados. Tanto quantosei ainda por lá anda, já vai na terceira mulher e leva a vida de umRei.Elfrida sentiu inveja.Oh, ele parece uma pessoa mesmo fascinante.Não, fascinante não. Entediantemente previsível. Costumávamos aturarnosum ao outro, mas nunca fomos amigos.Portanto, foi tudo vendido e o Oscar nunca mais lá voltará?É muito pouco provável que o faça. Recostou-se e cruzou os braços. Paradizer a verdade, até poderia lá voltar. Quando a minha avó morreu,deixou uma casa a meias a Hughie e a mim. Mas há anos que lá está umcasal a morar. Todos os trimestres chega uma pequena renda enviada peloescritório do feitor. Penso que Hughie recebe o mesmo, embora mal dê

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para pagar o salário de um par de plantadores.- É uma casa grande?Nem por isso. Fica no meio da pequena vila. Em tempos, era ocupadapelos serviços municipais, mas depois foi convertida em casa dehabitação.Que excitante. Quem me dera ter uma casa na Escócia.Metade de uma casa.- Metade de uma casa e melhor do que casa nenhuma. Podia levar 35Francesca a passar parte das férias lá.Para ser sincero, tal não me ocorreu sequer. Nunca me lembro daquelelugar. Imagino que, um dia, Hughie se ofereça para comprar a minhametade ou eu a dele. Não é algo com que me preocupe. E prefiro nãoprecipitar nenhuma situação. Quanto menos tiver a ver com HughieMcLellan, melhor.Acho que está a ser terrivelmente fraco.Apenas tento ser discreto. E então, quando é que parte?Na próxima quinta-feira.Ficará por lá durante quanto tempo?Um mês.Envia-nos um postal?Claro.E avisa-nos assim que chegar?Imediatamente.Sentiremos saudades suas confessou Oscar, o que a enterneceu.A casa chamava-se Emblo. A sua fachada de granito ficava voltada para ovento norte e o Atlântico. Nesse lado, as janelas eram pequenas, poucase fundas, com parapeitos suficientemente largos para albergar os vasosde gerânios, pedaços de madeira trazidos pelas ondas e conchas queSerena tanto adorava coleccionar. Em tempos, fizera parte da QuintaEmblo, uma próspera quinta dedicada à produção de leite, e servira dehabitação ao respectivo encarregado; porém, este acabara por sereformar, depois morrera, a mecanização assenhoreou-se das ordenhas, ossalários na agricultura subiram e o fazendeiro atenuara os prejuízosvendendo a pequena casa. Depois disso, pertencera a três donosdiferentes e, na última vez, fora posta à venda precisamente na alturaem que Jeffrey tomara a grande decisão de se afastar de Londres, deDodie e do seu emprego. Viu o anúncio no The Times, meteu-seimediatamente no seu carro e guiou a noite toda para poder ver a casaantes de alguém ter a oportunidade de apresentar uma oferta por ela.Deparara com um casebre húmido, parcamente mobilado, para não mais doque uma estadia no Verão, afundado no meio de um jardim deixado aoabandono, onde plátanos raquíticos se inclinavam ao sabor dos ventosprevalecentes. Mas tinha uma vista para os penhascos e o mar e, no ladovoltado para sul, uma faixa de relvado abrigada onde as glicíniastrepavam pela parede e ainda florescia uma cameleira.Telefonara ao gerente do seu banco, obtivera um empréstimo e comprara olugar. Quando ele e Serena se mudaram para lá, havia ninhos de aves nachaminé, o papel antigo pelava das paredes, e no ar pairava um cheirointenso a mofo e bolor. Mas nada disso teve importância. Acamparam emsacos-cama e abriram uma garrafa de champanhe. Estavam juntos e no seularIsso passara-se dez anos antes. Tinham sido precisos dois anos36para pôr a casa habitável, envolvendo muito esforço físico, sujidade,destruição, dificuldades e uma sucessão de canalizadores, empreiteirose pedreiros, que devassaram a casa com as suas botas de borrachaenlameadas, ferveram inúmeras canecas de chá e perderam-se emintermináveis conversas sobre o sentido da vida.De vez em quando, Jeffrey e Serena exasperavam-se com a lentidão e aincerteza dos homens, mas era impossível resistir àqueles filósofosamadores que pareciam não ter pressa para nada, cientes de que o diaseguinte seria mais um dia.

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Finalmente, ficou tudo pronto. Os operários partiram, deixando atrás desi uma casa de pedra pequena, bem posicionada e sólida, com cozinha esala de estar em baixo e uma escada rangente que conduzia ao pisosuperior. Ao fundo da cozinha ressaltava o que antes fora uma área delavagem de roupa, de piso lajeado e arejada, onde eram guardadas ascapas da chuva e as botas e onde Serena tinha a sua máquina de lavarroupa e a sua arca congeladora. Dispunha ainda de uma enorme pia debarro, que Jeffrey encontrara abandonada numa vala. Restaurada, tinhamuita utilidade para lavar ovos e cães cheios de lama, ou para oscestos de flores silvestres que Serena adorava colher para com elesfazer arranjos em vasos antigos. No andar de cima havia três quartospintados de branco e com tectos inclinados, assim como uma pequena casade banho, de cuja janela se tinha a melhor vista de toda a casa,deitando para sul sobre os campos da quinta, colina acima até àcharneca.Não estavam isolados. A casa da quinta, com os seus edifíciosexteriores em número considerável, erguia-se a não mais de umquilómetro de distância, portanto havia um movimento contínuo detráfego para baixo e para cima ao longo do caminho que passava emfrente do seu portão: tractores, camiões-cisterna de leite eautomóveis, além da criançada que o autocarro da escola deixava ficarao fundo da estrada, para depois seguirem a pé até suas casas. Ofazendeiro tinha uma família de quatro elementos, e os seus filhos eramos melhores amigos de Ben e Amy. Juntos, andavam de bicicleta, iam àsamoras e desciam os penhascos de mochila pendurada nos ombros frágeispara irem nadar e fazer piqueniques.Elfrida nunca visitara a casa nem eles, mas agora estava a chegar, eJeffrey sentira ressurgir em si um sentimento há muito esquecido queidentificou como entusiasmo.Elfrida. Ele tinha naquele momento cinquenta e oito anos e Elfrida...?Sessenta e um, sessenta e dois? Não importava. Em rapaz, sempre ativera em grande conta por a achar temerosa e divertida. Naadolescência, aprisionado nas disciplinas obscuras do colégio interno,ela fora como uma luz na sua vida: gloriosamente atraente,admiravelmente rebelde, combatera a oposição dos pais para, finalmente,subir ao Palco e tornar-se actriz. Tanta determinação, coragem e forçade 37vontade tinham enchido Jeffrey de admiração e inabalável dedicação.Numa ou duas ocasiões, ela chegara mesmo a ir buscá-lo ao enfadonhocolégio nas saídas de sábado ou domingo, e ele gabara-se um pouco deladiante dos seus amigos, fazendo-a esperar junto da espectral porta dafrente, pseudogótica, pois queria que os outros a vissem ali, sentadano seu pequeno descapotável vermelho, de óculos escuros, o cabelo corde ananás displicentemente preso com um lenço de chiffon.«Minha prima. Está a fazer uma peça de teatro. Em Londres», dizia elecom admirável indiferença, como se fosse algo que acontecesse aqualquer pessoa todos os dias. «Trouxeram-na de Nova Iorque.» Quando,por fim, saía ao seu encontro, pedia desculpa pelo atraso, subia para oassento minúsculo ao lado dela e arrancavam com um troar impressionantedo motor, no meio de uma chuva de gravilha. Logo que regressava aocolégio, não se continha de disfarçado orgulho: «Oh, fomos só até àRoadhouse, demos um mergulho na piscina e depois comemos.»Tinha um orgulho enorme nela e estava até um pouco apaixonado.Mas o tempo passou, eles cresceram, perderam o contacto e cada umseguiu a sua vida. Elfrida casou com um actor qualquer, a relação nãodeu certo e separaram-se, depois voltou a desposar um sujeito de maucarácter até, finalmente, acabar por se juntar ao seu bem-amado deeleição. Tudo parecia apontar para uma felicidade duradoura quando aunião foi atingida pela tragédia, pois o aparecimento da doença deParkinson no companheiro acabou por redundar na sua morte.Jeffrey vira Elfrida pela última vez em Londres, pouco depois da primater encontrado aquele homem excepcional, a quem tratava sempre por

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Jimbo.«Esse não é o seu nome verdadeiro, querido, mas aquele que eu lhe pus.Nunca pensei que pudesse ser assim. Nunca imaginei que fosse possívelser tão diferente de uma pessoa e, no entanto, estar-lhe tão próxima.Ele é tudo aquilo que eu nunca fui e, contudo, amo-o mais do quequalquer pessoa ou algo que já tenha conhecido.»E quanto à tua carreira?», perguntara-lhe Jeffrey.«Oh, a minha carreira que se dane», respondera-lhe Elfrida, deitando arir. Nunca a vira tão feliz, tão bonita, tão completamente realizada.O seu próprio casamento, a correr muito mal, começava a desfazer-se,porém Elfrida estava sempre ali, no outro lado da linha telefónica, aligar para ele, pronta a prodigalizar-lhe todo o tipo de conselhos, unsbons, outros maus, mas, o que importava acima de tudo, infinitamentesolidários. Certa vez, levara Serena a conhecê-la, e ela ligara-lhe namanhã seguinte a dizer: «Jeffrey, ela é um amor... Acaba com astristezas e concentra-te nela.»«E as minhas filhas?»«Já são crescidas e capazes de se manter a si próprias. Tens de pensarem ti. Põe os pés à parede. Não te deixes amedrontar. O tempo voa e sóhá uma vida.»38«E Dodie?»«Ela que se desenvencilhe. Há-de arrancar-te uma boa pensão. Nãoabandonará os seus confortos terrenos. Ela que fique com tudo, mas tuvai-te embora e sê feliz.»Vai-te embora e sê feliz. Ele assim fizera.Eram cinco horas de uma tarde de Outubro cinzenta. O vento estava alevantar-se. Ele tratara das galinhas, apanhara os ovos, fechara ascacarejantes criaturas nos seus pequenos galinheiros de madeiradomésticos. Começava a ficar escuro. Serena acendera as luzes dentro deEmblo e as pequenas janelas brilhavam no meio dos derradeiros fulgoresdo dia. Era quinta-feira, o dia em que o contentor do lixo sobre rodastinha de ser levado até junto do caminho, para que o carro do lixo, quevinha fazer a recolha semanal, o esvaziasse de manhã bem cedo. Do marcomeçara a soprar um vento que trazia um cheiro e um sabor a maresia. Asua força fazia abanar os aglomerados de tojo, sussurrando por entre afolhagem do topo. Jeffrey podia ouvir, sobrepondo-se àquele murmúrio, obarulho da água do riacho a correr colina abaixo e ao longo da beira docaminho. Como estava frio, foi a casa buscar um casaco. Serena mexia oconteúdo de algo que estava ao lume, enquanto as crianças se atarefavamcom os seus trabalhos de casa na mesa da cozinha.Ele disse:Vou levar o contentor do lixo.Ah, homem esperto em se ter lembrado.Volto daqui a cinco minutos.Fico à espera de Elfrida.Jeffrey levou o contentor pelo caminho cheio de sulcos abaixo eacomodou-o no seu sítio habitual. No outro lado da estrada havia outroportão de madeira, que deitava para o campo de um outro fazendeiro, eJeffrey foi encostar-se a ele como qualquer camponês idoso. Apalpou osbolsos à procura dos cigarros, puxou de um e acendeu-o com o seu velhoisqueiro de aço inoxidável. O dia ia morrendo. Viu o céu escurecer,enevoado. O mar estava cor de ardósia, salpicado de espuma. A noiteiria ser tempestuosa. Ao fundo dos penhascos a rebentação estrondeava,e ele sentia a humidade da névoa marinha no rosto.O meu quarto é uma cabina de vidro transparente, Toda a Cornualhatroveja à minha porta, E os barcos brancos de Inverno jazem, Nasestradas marítimas da charneca.Ficou até terminar o cigarro, depois deitou fora a beata, regressando acasa. Foi então que viu uns faróis aproximarem-se, vindos de leste,aparecendo e desaparecendo ao sabor das curvas da estrada. Encostou-seao portão e aguardou. Pouco depois surgiu um velho Fiesta azul,

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39fazendo cautelosamente a última curva antes de se voltar para Emblo.Soube, instintivamente, que se tratava de Elfrida. Colocou-se no meiodo caminho a acenar com os braços e o carro parou. Abriu a porta esentou-se ao lado da prima. Sentiu o perfume conhecido, a essência queesta sempre usara, que sempre lhe associara.Não podes estacionar aqui, é a estrada principal. Serias abalroada porum tractor ou por um autocarro com turistas alemães. Entra pelo terrenoavisou-a.Elfrida assim fez, voltando depois a parar. Cumprimentou-o:Olá.Conseguiste.Em cinco horas.Encontraste o caminho?Graças ao elucidativo mapa que me desenhaste.Quem vem ali atrás?Horace, o meu cão. Avisei-te que tinha de o trazer.Que bom é estares aqui. Estava sempre à espera de um telefonema teu adizeres que tinhas mudado de ideias.Jamais o faria respondeu-lhe Elfrida. Depois tornou-se prática:Aquele é que é o carreiro que leva até à frente da tua casa?É.Terrivelmente estreito, querido.Tem largura suficiente.Então, vamos a isso. Jeffrey riu-se.Em frente.Elfrida meteu a primeira e começaram a subir, sacolejando, a estreitapassagem que ia até à porta da casa.Que tal foi a viagem? quis saber Jeffrey.Excelente. Estava um bocado nervosa, há anos que não fazia um percursotão longo. Atrapalho-me um pouco com as auto-estradas desconhecidas eos camiões trovejantes. Este carro não é propriamente um Ferrari.Não precisas de mais.Ao aproximarem-se da casinha, a luz de fora acendeu-se. Iluminava umespaço aberto defronte de uma parede alta de granito. O caminhocontinuava até à quinta que ficava à distância, mas Jeffrey disse-lheque estacionasse e Elfrida assim fez. Apareceram imediatamente doiscães-pastor, vindos não sabia de onde, que se lançaram na direcçãodeles a ladrar desalmadamente.Não tenhas receio sossegou-a Jeffrey - são meus. Tarhnv e Findus, e nãomordem.40Nem mesmo a Horace!Muito menos a Horace.Saíram do carro e deixaram Horace à solta. Gerou-se a confusão que erade esperar, enquanto os três cães trocavam as habituais cheiradelas dereconhecimento entre si, até que, a certa altura, Horace desapareceu nomeio de um aglomerado de arbustos ali mesmo à mão e alçou da perna,aliviado.Jeffrey estava divertido.De que raça é Horace?Desconhecida. Mas é leal, sossegado e asseado. Pode dormir comigo.Trouxe o cesto dele.Jeffrey abriu o porta-bagagens e tirou de lá uma velha mala de viagem eum saco de papel grande e cheio.Trouxeste mantimentos?É a comida de Horace e a sua tralha.Foi buscar o cesto do cão e mais outro saco atravancado de objectos.Depois de fecharem as portas do carro, Jeffrey seguiu à frente por umcarreiro de lajes que conduzia às traseiras da casa. O vento quesoprava do lado do mar fustigava-os. Quadrados de luz provenientes dasjanelas e de uma meia-porta de vidro incidiam nas pedras arredondadas

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do pavimento. Jeffrey pousou a mala de Elfrida, abriu a porta e elaentrou na cozinha. As duas crianças levantaram os olhos da mesa eSerena, que estava ao fogão, virou-se e veio, de avental e braçosabertos, saudá-los.Jeffrey, vieste mesmo com ela! Que esperto, desceu com o contentor dolixo e voltou para cima contigo. Que noção impecável de tempo. A viagemfoi muito difícil? Queres uma chávena de chá ou algo para comer? Oh,mas ainda não conheces as crianças, pois não? Ben e Amy. Esta éElfrida, queridos.Nós sabemos disse o rapazinho. Há muito tempo que eles . falam de si.Era tão moreno quanto a irmã mais nova era loura. levantou-se da mesa eveio apertar-lhe a mão, perscrutando a bagagem que trazia com um certointeresse. Esperava um presente, porém tinham-lhe ensinado que não lhedevia fazer referência, caso não lho dessem. Tinha os olhos e a tezmorena do pai e uma farta cabeleira escura. Elfrida calculava que dalia uns anos, teria um punhado de raparigas a suspirar por ele nosarredores.O pai entrou atrás de Elfrida e pousou a mala ao fundo das escadas.Olá, pai.Olá, Ben. Terminaste os trabalhos de casa?Terminei.Muito bem. E tu, Amy, também já acabaste?Eu já acabei os meus há séculos respondeu-lhe a filha com arcomplacente.41Era tímida. Chegou-se ao pai e enterrou o rostozinho na sua perna, aoponto de só se lhe ver o longo cabelo de um louro leitoso e o azuldesbotado do macacão. Elfrida sempre soubera da existência de Amy eBen, mas, ao vê-los naquele momento, não pôde deixar de se maravilharcom o facto de serem mesmo filhos de Jeffrey, embora suficientementenovos para serem seus netos. Achou-os lindos. Porém, também Serena oera, ao seu jeito muito particular. Tinha o cabelo tão louro como o deAmy, mas usava-o ao alto, num carrapito preso com um gancho detartaruga. Possuía uns olhos azuis muito brilhantes e tinha o rostomagro salpicado de sardas. Vestia uns jeans finos, que lhe alongavamimenso as pernas, e uma camisola azul, e prendera um lenço de seda aopescoço. Como estava ao fogão, tivera de atar à cintura um avental àsriscas, que ainda não se lembrara de tirar.Qual é o programa? perguntou Jeffrey.Vou preparar uma chávena de chá para Elfrida, se lhe apetecer. Ou entãopoderá sentar-se aqui ao pé do lume, ir até ao quarto e desfazer asmalas, ou tomar um banho. Como ela preferir respondeu Serena.Quando é a janta?Às oito, se concordarem. Primeiro, darei de comer a Amy e a Ben.Amy emergiu de entre as pernas do pai e disse:Salsichas.Elfrida ficou com expressão curiosa.O quê?Salsichas para o nosso chá. E puré de batata e ervilhas.Que delícia.Mas vocês vão comer outra coisa. A mamã tem estado a fazer.Não me digas o que é, para a surpresa ser maior.É galinha com cogumelos.Amy! gritou-lhe o irmão. Não digas! Elfrida riu.Não faz mal, tenho a certeza de que deve estar uma maravilha.E agora, vejamos disse Serena, erguendo ligeiramente a voz acima datagarelice dos filhos , queres uma chávena de chá?Porém, tinham sido feitos outros oferecimentos mais aliciantes.O que eu realmente gostaria de fazer agora era de ir lá acima, desfazeras malas e tomar um banho. Será demasiado indelicado da minha parte?De modo algum. Só temos aquela casa de banho, mas as crianças podem láir depois de ti. Há água quente com fartura.

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Bem-hajas. Nesse caso é o que vou fazer.E quanto a Horace? perguntou Jeffrey. Não tem de ser alimentado?Sim, claro que sim. Estás a oferecer-te para o fazeres por mim? Duasmedidas de biscoitos e meia lata de comida. E um pouco de água quente.42Horace é um cão? perguntou Ben.Meu marido é que não é de certeza.Onde é que ele está?Lá fora. A fazer amizade, assim espero, com os teus cães.Quero ir ver...Eu também...Espera por mim...Saíram para o jardim escuro sem levarem agasalhos extra, botas deborracha ou quaisquer reprimendas da mãe. A porta ficou aberta,deixando entrar golfadas de ar frio. Jeffrey foi fechá-la calmamente epegou de novo nas malas de Elfrida.Anda disse-lhe, começando a subir as escadas que rangiam. Mostrou-lhe oespaço superior.Até daqui a uma hora. Vou preparar-te uma bebida avisou-a. E saiu,fechando a porta atrás de si. Elfrida sentou-se na cama, que era dupla,apercebendo-se imediatamente de que estava fatigada. Bocejoumonumentalmente, depois olhou em volta, apreciando o quarto encantador,tão parcamente mobilado que até dava a impressão de escassez, noentanto, maravilhosamente tranquilo. Um pouco como Serena. Paredes ecortinas brancas, no chão um tapete a condizer. Uma cómoda de pinho comnaperões de linho e renda. A fazer de guarda-fato, uns ganchos demadeira e uma série de cabides às cores. A cobertura acolchoada era dealgodão às riscas azuis, havia livros e revistas recentes na mesinha decabeceira, além de um pequeno vaso com uma única hortênsia cor-de-rosaclara.Elfrida bocejou de novo. Chegara. Não se perdera, o carro não avariaranem tivera nenhum acidente. E Jeffrey estava à sua espera ao fundo daestrada, aparecendo de repente no meio dela como um assaltante, aacenar-lhe com os braços para que parasse. Se ela não o tivessereconhecido imediatamente, teria apanhado um susto de morte, mas nãopoderia haver a menor confusão, pois Jeffrey continuava a ser o mesmohomem alto e magro de sempre, ainda ágil e activo, apesar dos anosavançados, assim conservado provavelmente devido à companhia da esposajovem e dos filhos pequenos. E o que era ainda mais importante, pareciafeliz. Fizera o que estava certo. A sua vida parecera ter-se resolvido,precisamente o que ela mais lhe desejara.Instantes depois, levantou-se da cama, desfez as malas e arrumou osseus poucos pertences, adaptando o quarto simples ao seu jeito. Depoisdespiu-se, embrulhou-se no seu velho roupão e foi ao pequeno quarto debanho, que ficava mesmo ao lado, onde se deixou ficar mergulhada,durante algum tempo, em água bem quente. Quando terminou, deixara debocejar, já não se sentia cansada, mas sim activa, animada e prontapara a noite que tinha pela frente. Vestiu então umas calças de veludoe uma blusa de seda, agarrou no seu saco de viagem, que estava aabarrotar de presentes, e desceu ao piso de baixo sentindo-se como43um marinheiro a percorrer a prancha que o levaria à coberta inferior.Na cozinha, as crianças comiam as suas salsichas, enquanto a mãe batiaclaras em castelo com a batedeira eléctrica. Quando Elfrida apareceu,olhou para ela e sorriu-lhe, dizendo:Vai ter com Jeffrey, está na sala. Acendeu a lareira.Posso ajudar? Não sou grande cozinheira, mas para lavar panelas aindasirvo.Serena riu-se.Não há panelas para lavar.Ainda volto a ver Amy e Ben?Claro. Depois do banho virão dar as boas-noites.

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O banho soube-me divinalmente. Rejuvenescedor. Ben perguntou:O que quer dizer rejuvenescedor?Quer dizer tornar mais novo explicou Serena.Ela não parece mais nova.Isso é porque sou velha disse-lhe Elfrida. Vê se não te esqueces de virdar as boas-noites porque tenho uma coisa para ti... ergueu o saco.Aqui.Podemos ver já?Não, só depois, ao pé da lareira. Mais ou menos como quando são ospresentes de Natal.Elfrida foi ao encontro de Jeffrey, que se encontrava na pequena salade estar, refastelado como qualquer nobre em frente da sua lareira aler o The Times. Quando ela apareceu, atirou o jornal para o lado elevantou-se com cautela porque naquela divisão, por alguma razão, otecto era excepcionalmente baixo e Jeffrey estava bem ciente do perigoque seria bater com a cabeça numa das vigas pintadas de branco. Eraparticularmente vulnerável por estar careca, via-se-lhe a pele muitobronzeada pelo sol, apesar da faixa de cabelo que lhe rodeava a cabeça,mais abaixo, ainda o mostrar tão escuro como quando era novo. Tambémtinha os olhos escuros; algumas rugas de expressão sulcavam-lhe o rostomagro. Vestia uma camisola azul-marinho e, em vez de gravata, usava umlenço vermelho. Elfrida sempre tivera olho para os homens bemparecidos,de modo que foi gratificante verificar que o seu primoJeffrey continuava elegante como sempre.Jeffrey observou:Estás encantadora.Pelo menos, limpa. Abençoado banho.Pousou o saco no chão e deixou-se cair num sofá, pondo-se a olharapreciativamente à sua volta, reparando nos quadros, uns conhecidos,outros não. Um fogo que ardia fortemente, jarras com plantas secas,fotografias de família em molduras de prata, algumas peças de mobíliaantigas e bonitas. Não havia espaço para muito mais. Observou:Construíste aqui uma casa encantadora!O mérito não é meu, mas sim de Serena. Vai um copo de vinho?44- Que delícia, obrigada. É um mundo completamente diferente daqueleonde vivias, não é? A tua casa em Camden, teres de ir para o Centrotodos os dias, as festas formais e o relacionamento com todas aspessoas certas.Jeffrey, que estava no outro lado da sala a preparar as bebidas, nãorespondeu imediatamente às suas observações, mas pareceu ficar areflectir sobre as mesmas. De volta, entregou-lhe o copo de vinho esentou-se novamente no seu cadeirão amplo. Os olhos de ambosencontraram-se, com o tapete de permeio.Desculpa disse Elfrida.Desculpa de quê?A falta de tacto. Sabes que falo sempre sem pensar.Não acho que tenha sido falta de tacto, apenas disseste a verdade. Eraum outro mundo, que não deixou saudades. Sempre preocupado com odinheiro, as minhas filhas em colégios demasiado caros. A contrataçãode um mordomo sempre que dávamos um jantar, uma cozinha nova só porqueos Harley Wright, que viviam no outro lado da rua, tinham redesenhado asua e Dodie não suportava ficar para trás. Permanentemente preocupadocom a liquidez financeira, com o estado do mercado de acções, asexigências de Lloyds, a possibilidade de me tornar supérfluo. Às vezespassava a noite sem dormir. E tudo isso para nada. Mas foi precisoafastar-me para me dar conta dessa realidade.Agora estás bem?Em que aspecto?Financeiro, suponho.Sim, estamos bem. Sem problemas. Não temos muito, mas também nãoprecisamos de mais.

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Vivem de quê? Das vossas galinhas? Jeffrey desatou a rir.Seria difícil. No entanto, mantêm-nos ocupados e proporcionam-nos umpequeno rendimento. No Verão, o facto de oferecermos cama e pequenoalmoçoajuda, mas só temos um quarto, que é o teu, e como a casa debanho é comum, não podemos cobrar muito. Há um edifício abandonadoentre esta casa e a quinta, e de vez em quando pensamos em propor a suacompra para depois o convertermos num anexo para turistas, mas ainda éum empreendimento razoável, por isso vamos sempre adiando. Serena aindatrabalha, faz arranjos para casamentos e festas do género, e Ben e Amyestão a receber uma educação excelente na escola local. Para mim foiuma revelação descobrir como se pode viver bem com simplicidade.E feliz?Mais feliz do que alguma vez imaginei possível.-E Dodie?Está a viver num apartamento nos arredores de Hurlingham,45muito jeitoso, com vista para o rio. Nicola está com ela, pois o seucasamento foi por água abaixo, portanto ficaram a viver juntas, semdúvida a darem cabo da cabeça uma à outra.E a filha de Nicola?A minha neta Lucy. Já tem catorze anos. Pobre miúda, agora também vivelá com elas. A vida dela não deve ser fácil, mas nada posso fazer parao evitar. Ainda tentei convidá-la a vir passar uns tempos aquiconnosco, mas Nicola diz que eu sou um patife e Serena uma bruxa,portanto não a deixa visitar-nos.Elfrida suspirou. Entendia perfeitamente a impossibilidade de alterar asituação. Perguntou ainda:E Carrie?Ainda está na Áustria, ou algo do género. Arranjou um bom emprego numaagência de viagens e tem uma posição cheia de responsabilidade.Não costumas vê-la?Almoçámos juntos na última vez em que estive em Londres, mas é rarohaver possibilidade de nos encontrarmos.Não casou?Não.E ela, vem cá?Não, mas por razões válidas. Não quer incomodar, constranger Serena,Ben e Amy. Seja como for, já tem trinta anos, não é nenhuma menina. Ésenhora da sua própria vida. Se quiser vir a Emblo, sabe que bastapegar no telefone.Fez uma pausa para pousar a bebida, puxar de um cigarro e acendê-lo.Elfrida comentou:Vejo que não desististe.Não, não desisti nem tenciono fazê-lo. Isso choca-te?Jeffrey, nunca nada me chocou ao longo da vida. Tu sabes.Estás com um aspecto maravilhoso. Como tens passado?Maravilhosamente, suponho.A solidão não pesa muito?Cada vez menos.O que te aconteceu foi uma crueldade.Referes-te a Jimbo? Querido homem. Foi mais cruel para ele do que paramim. A degeneração lenta de um homem brilhante. Mas não ficaram mágoas,Jeffrey. Sei que durou pouco tempo, mas o que tivemos foi especial.Poucas são as pessoas que alcançam tão grande felicidade, mesmo que porum ano ou dois.Fala-me do teu esconderijo em Hampshire.Dibton. A vila é vulgaríssima e sem nada de empolgante, mas creio queera precisamente disso que eu andava à procura. casa é uma casinha deoperário dos caminhos-de-ferro, faz parte de uma fiada delas. Tudoaquilo de que preciso.46-Pessoas simpáticas?

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Também elas vulgaríssimas. Simpáticas e amistosas. Acho quepoderá dizer que fui bem recebida. Em Londres é que eu não podiacontinuar.Alguma amizade especial?Elfrida começou por lhe falar dos Foubister, de Bobby Burton-Jones, dopastor e da mulher, e da pantomima da escola primária. Passou depois aMrs. Jennings, Albert Meddows e ao fabulosamente rico Mr, Dunn, com asua piscina coberta e a sua imensa estufa de gerânios vermelho-fogo eplantas da borracha.Por fim, falou-lhe dos Blundell: Oscar, Gloria e Francesca.Têm sido verdadeiramente amigos. Poderá dizer-se que me tomaram sob suaprotecção. Gloria é rica e generosa. Levam uma vida um bocadoindependente. A casa onde vivem, conhecida pela Granja, foi herdada porela, é perfeitamente hedionda, apesar de terrivelmente acolhedora econfortável. Ela tem dois filhos, já crescidos, de um primeirocasamento, mas Francesca é muito original, engraçada e meiga. Gloria éuma anfitriã ávida; mal se passa um dia em que não organize uma festa,um piquenique, um encontro ou uma reunião qualquer. Adora cavalos epela-se por reunir montes de amigos, com quem marca um local deencontro, indo depois ter com eles com um bar no porta-bagagens e ospequineses a ladrar desvairadamente a quem passa.Jeffrey estava nitidamente divertido.E Oscar também gosta dessas ocasiões?Não sei. Mas é um homem gentil, amável... um encanto de pessoa, naverdade... e sai muito com Francesca para apostar nos cavalos maisimprováveis e comprar sorvetes.Que é que ele faz? Ou é reformado?É músico. Organista. Pianista, professor.Fizeste muito bem em arranjar amigos tão interessantes. Salta à vistaque te adoram, provavelmente porque tiveste sempre o condão de entrarcomo uma boa lufada de ar fresco na vida das pessoas.Elfrida, porém, falou com uma certa reserva:Tenho de ser muito cuidadosa e restrita comigo mesma. Não tencionodeixar-me absorver.Quem não quereria absorver-te?Não deves ser sectário.Estive sempre do teu lado.Anos mais tarde, ao fazer uma retrospectiva das semanas passadas emEmblo, aquilo que Elfrida recordaria com maior clareza seria o som dovento. Este soprava continuamente, umas vezes reduzido a uma brisaagradável, outras projectando-se do mar com força tempestuosa,fustigando os penhascos, ululando chaminés abaixo e fazendo tremerportes e janelas nos seus gonzos. Passado pouco tempo, habituou-se àsua47presença constante, mas à noite era impossível ignorá-lo, o que a faziaficar deitada, no meio da escuridão, a ouvi-lo soprar impetuosamente doAtlântico, lançar-se pela charneca acima e fazer com que os ramos deuma velha macieira lhe batessem fantasmagoricamente na janela doquarto. Esse vento tornou claro que o Verão chegara ao fim. Outubromudou para Novembro, e as noites iam ficando cada vez maiores. As vacasdo fazendeiro, uma bela manada de leiteiras Guernsey, desciam doscampos para ser mungidas de manhã e de tarde, transformando o pradoentre Emblo e a casa da quinta num lodaçal. Depois de lhes tirarem oleite à tarde, eram de novo devolvidas aos pastos e abrigavam-se juntode um muro que se erguia num terreno não cultivado ou atrás de umemaranhado de mato e tojo.Porque é que não ficam abrigadas dentro de um estábulo durante a noite?quis Elfrida saber.Nunca ficaram. Não temos geada por aqui, e a erva abunda.Pobres bichos comentou Elfrida vendo-se obrigada a reconhecer, noentanto, que tinham um aspecto luzidio e razoavelmente satisfeito.

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A rotina diária da pequena família assenhoreou-se dela, acabando porfazê-la adaptar-se ao seu ritmo tranquilo. Havia sempre roupa paraapanhar, camisas para engomar, batatas para desenterrar, galinhas paraalimentar e ovos para lavar. Passada a primeira semana apercebeu-se,algo admirada, de que há sete dias que não lia um jornal nem viatelevisão. O resto do mundo bem poderia ir pelos ares, que Elfrida sóse preocupava em tirar os lençóis da corda antes da chuvada seguinte.Nalgumas noites chegava mesmo a encarregar-se da cozinha e a preparar ojantar para Amy e Ben, permitindo assim que Jeffrey e Serena fossemjantar fora ou a um cinema próximo. Ensinou também as crianças a jogaràs cartas e hipnotizava-as com histórias dos seus tempos no teatro.Certo fím-de-semana, o tempo instável aqueceu como na Primavera, ovento deixou de soprar com tanta força e o Sol brilhou num céu semnuvens. Serena, decidida a aproveitar o melhor possível o diabenevolente, chamou os quatro filhos do fazendeiro, arranjou um farnelde piquenique, e o grupo, formado por seis crianças, três adultos etrês cães, lançou-se a caminho pelos campos, em direcção aos penhascos.Amy e Elfrida iam lado a lado, à cabeça. O carreiro levou-os a unsdegraus de pedra que serpenteavam encosta abaixo, por entre tojo earbustos espinhosos.Elfrida avistou amoras-pretas.Podíamos apanhá-las sugeriu a Amy , para depois fazermos compota.Amy, porém, foi mais ajuizada.Não, não podemos. Depois de Outubro não se podem colher amoras, porqueé nessa altura que as bruxas da Cornualha as enfeitiçam.Extraordinário. Como é que sabes isso?48Foi a nossa professora que nos contou. A única diferença é queela não disse enfeitiçadas, mas sim urinadas.Ao chegarem à beira do penhasco, depararam com toda a imensidão dOoceano, extravagantemente azul e refulgente sob a luz do Sol. Ocarreiro descia, levantando dificuldades e parecendo perigoso, atédesembocar numa enseada secreta. A maré estava baixa, daí que houvesseuma pequena faixa de areia e as poças nas rochas brilhassem comojóias.Todos desceram com uma certa dificuldade, se bem que os cães selançassem em frente sem temor. Ao chegarem às rochas, Amy deixouElfrida nestas e foi juntar-se aos outros no areal, onde Jeffrey jápusera todos a erguer um castelo de areia gigantesco, enquanto Serenaprocurava conchas e pedrinhas arredondadas para depois o enfeitar.Chegado o meio-dia, o sol começou a aquecer verdadeiramente, ao pontode Elfrida tirar o casaco e enrolar as mangas da camisola para cima.Tinham deixado toalhas, cestos e mochilas com o farnel em cima de umarocha mais lisa onde Elfrida se sentou a observar o mar, sentindo-sehipnotizada pela sua imensidão e magnificência. As cores da água e asua limpidez eram de tirar o fôlego: faixas de azul, verde, turquesa,púrpura, todas se entremeavam, rendilhadas de espuma branca. Às tantas,ergueu-se uma vaga enorme, e as ondas começaram a formar-se na zona derebentação, ao largo, ganhando altura e peso antes de se esmagaremcontra a linha costeira de granito entalhado, projectando enormesjactos de água sibilante no ar. No alto, as gaivotas rodopiavam e, aolonge, perto da linha do horizonte, via-se um pequeno barco de pesca aabrir caminho por entre a água turbulenta.Elfrida ficou a olhar, enfeitiçada, perdendo por completo a noção dotempo, mas, pouco depois, Serena foi para junto dela, afim de prepararo piquenique. Tirou de dentro dos cestos e das mochilas garrafas, coposde plástico, guardanapos, um saco de maçãs. De um deles vinha umapetitoso cheiro a pasteis quentes.Elfrida ficou espantada:Quando é que fizeste esses pasteis, Serena? Levam imenso tempo.Tenho sempre alguns na arca congeladora. As crianças adoram-nos.Eu também.

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Tirei-os ontem à noite. Tinha o pressentimento de que o dia iria estarbom. Que tal uma bebida? Podes escolher entre cerveja ou vinho. Oulimonada, se te sentires abstémia.Prefiro vinho.A garrafa vinha dentro de um saco térmico e o vinho, bebido de um copode plástico, soube melhor do que algum outro anteriormente provado.Elfrida virou-se de novo para o oceano e declarou:Isto é o paraíso.49No Verão vimos para cá quase todos os fíns-de-semana. Agora que as duascrianças já podem andar sozinhas, é mais fácil.Que família tão feliz a vossa.É verdade concordou Serena, sorrindo. Eu sei. Temos muita sorte. Masolha que tenho mesmo consciência disso, Elfrida. De verdade. Todos osdias me sinto agradecida.De vez em quando, Elfrida saía de Emblo e ia dar uma volta de carrosozinha, deixando Horace na companhia dos cães-pastor de Jeffrey. Ofacto de aquele pequeno pedaço do país ser tão selvagem, remoto e,ainda assim, tão diversificado, não cessava de a espantar. As estradas,libertas do trânsito turístico do Verão, eram estreitas eserpenteantes, porém nada mais encontrou além de uma ocasionalcamioneta, carrinha de carniceiro ou tractor. A estrada, depois deatravessar uma charneca vazia, deslizava até um vale minúsculo cheio derododendros, onde jardins de meter inveja ainda se mantinhamverdejantes com hortênsias e as saltitantes florescências pendentesconhecidas por brincos-de-princesa.Um dia, foi até à cidade vizinha, onde estacionou o carro e seguiudepois a pé pelo emaranhado confuso de ruelas e azinhagas que conduziamao porto. Na rua deste havia restaurantes, lojas de artesanato e umasérie de pequenas galerias com todo o tipo de arte e escultura.Encontrou uma livraria e entrou, demorando algum tempo a escolher doislivros para Amy e Ben. Soube-lhe tão bem que se foi deixando ficar e,ao lembrar-se de Francesca, também lhe comprou um. Encontrou-o nasecção de livros em segunda-mão: A Ilha dos Carneiros, de John Buchan.Lembrava-se de o ter lido na escola e de ter ficado encantada com aaventura, além disso, sabia que era uma história que Oscar e Francescapodiam ler juntos, afundados na poltrona enorme junto da lareira detoros incandescentes.Mandou embrulhar os livros, pagou-os, e a seguir saiu de novo para arua, prosseguindo o seu caminho. Encontrou umas camisolas de coresvivas, feitas à mão, numa loja de artesanato, e escolheu duas, uma paraJeffrey e outra para Serena. Comprou postais e uma garrafa de vinho,depois, já consideravelmente carregada, lançou-se de novo ao caminho,enveredando por um labirinto de ruas de piso de pedras arredondadas,onde havia roupa pendurada a secar e nastúrcios e petunias cor-de-rosanos parapeitos das janelas. Mais outra galeria. Incapaz de resistir,deteve-se em frente da montra, na qual viu uma pequena pinturaabstracta, de moldura manchada a imitar madeira, com todas as cores daCornualha aplicadas em formas que representavam exactamente asimpressões e os sentimentos que aquela terra antiga lhe provocavam.Elfrida sentiu imediatamente vontade de a levar, não para si, mas paraa oferecer como presente. Pensou que se Jimbo fosse vivo, a comprariapara lha oferecer, pois era exactamente o tipo de imagem que50ele teria simplesmente adorado. Imaginou-se a dar-lha, a levá-la até saern Barnes, onde tinham sido tão inimaginavelmente felizes juntos.Imaginou-o a rasgar o papel de embrulho, enquanto ela observavaa sua expressão, antecipadamente certa que seria de deleite e prazer...A imagem tremeu, ficou aguada e Elfrida apercebeu-se de que tinha osolhos rasos de lágrimas. Nunca chorara por Jimbo, limitara-se a sofrero seu luto em privado, consigo mesma, tentando aprender a conviver coma solidão gélida de uma existência sem ele. Pensara tê-lo conseguido,

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mas não era assim. Perguntou a si mesma se não seria uma mulher incapazde viver sem um homem e, a ser verdade, não havia nada que pudessefazer.Controlou as lágrimas. Ridículo. Tinha sessenta e dois anos e ali achorar como uma rapariga que tivesse perdido o seu amado! No entanto,continuou no mesmo sítio, a olhar para o quadro, cheia de vontade de oter. De partilhar o prazer que este lhe provocava. De o dar.Lembrou-se então de o comprar para oferecer a Oscar Blundell. Mas Oscarnão era simplesmente Oscar. Metade dele era Oscar e a outra metade,Gloria, e esta ficaria atónita perante tal presente. Elfrida podiaouvi-la a exclamar: «Elfrida! Não é possível que esteja a falar asério. Não passa de um amontoado de formas. Uma criança de quatro anosseria capaz de fazer melhor. E qual é a parte de cima? Francamente,Elfrida, que tolice a sua. O que a levou a dar dinheiro por uma coisadessas? Foi roubada.»Não, não seria boa ideia. Afastou-se relutantemente da montra dagaleria e seguiu em frente, deixando as ruas para trás e enveredandopor um caminho que subia aos ziguezagues até ao topo do promontórioverdejante que dividia as duas praias. O vento foi-se tornando cada vezmais forte e impetuoso à medida que subia, e quando chegou ao cimo, deuconsigo rodeada de oceano e céu, unidos num azul imenso na curva dohorizonte. Dava um pouco a impressão de se estar no meio do mar.Acercou-se de um banco e sentou-se, aninhada no seu casaco forrado apêlo de carneiro, rodeada dos seus embrulhos, fazendo lembrar uma velhareformada cansada das compras.Mas ela não era uma velha reformada qualquer. Era Elfrida. Estava ali.Sobrevivera e continuava em frente. Mas em direcção a quê? Uma gaivota,que andava à procura de migalhas de pão ou algo comestível que tivesseficado de algum piquenique, lançou-se do alto em voo rasante e pousouaos seus pés. Tinha uns olhinhos frios e ávidos e o seu descaramentofê-la sorrir. Percebeu que sentia falta de companhia. Especialmente dade Oscar. Desejava-o ali com ela, nem que fosse só por um dia, de modoa que, quando regressassem a Dibton, pudessem falar sobre o vento, omar e a gaivota, recordar e maravilhar-se perante a magia de um momentoespecial.Talvez isso fosse o pior de tudo. Não ter ninguém com quem recordar ascoisas.51Quando chegou o dia de Elfrida regressar a Dibton, ela mal podiaacreditar que estivera um mês em Emblo, tão celeremente as semanashaviam passado. Tentaram convencê-la, evidentemente, a ficar.Podes cá ficar o tempo que quiseres disse-lhe Serena, e Elfridapercebera que falava com sinceridade. Foste uma maravilha, uma misturade mãe, irmã e amiga. Sentiremos muitas saudades tuas.És um amor, mas tenho de regressar. Retomar de novo a minha vida.Voltarás cá?Tenta impedir-me.Planeara partir o mais cedo possível, afim de ainda chegar a Dibtonantes do escurecer. Eram oito da manhã já estava fora de casa, enquantoJeffrey carregava o carro. Tinha a pequena família à sua volta e Amydebulhada em lágrimas.Não quero que vás. Tens de ficar.Os hóspedes não ficam para sempre, Amy querida. É hora de partir.Também Horace mostrava uma relutância desleal em partir. Sempre que opunham dentro do carro, saltava novamente para o chão até que, por fim,teve de ser arrastado pela coleira e colocado em cima do banco com aporta fechada. Ficou a olhar pela janela, com um ar de tristeza nofocinho peludo e os olhos escuros pesarosos.Parece-me observou Ben , que ele também vai chorar. Nem Amy nem Ben setinham ainda vestido, de modo que os casacos acolchoados e as botas porcima dos pijamas davam-lhes um ar engraçado. Amy, ao ouvir o comentáriodo irmão, ficou ainda mais chorosa. A mãe inclinou-se e pegou-a ao

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colo.Anima-te, Amy. Horace ficará bem assim que se puser a caminho.Eu não quero que ninguém se vá embora. Eram horas de partir. Elfridavoltou-se para Jeffrey.Meu querido, mil vezes obrigada. O primo ainda não se barbeara e elasentiu-lhe o rosto áspero contra a face. E tu, Serena...Deu-lhe um beijo, passou a mão pelos cabelos louros de Amy e sentou-seao volante com determinação. Ligou o motor e afastou-se. Eles ficaram aacenar-lhe até o carro desaparecer de vista, mas Elfrida tinha acerteza de que só tinham voltado para dentro de casa depois do pequenoFiesta entrar na estrada principal e de ela e Horace se encontraremverdadeiramente a caminho.Não era altura para se sentir solitária e sem família. O adeus não foradefinitivo, pois podia voltar a Emblo quando quisesse. Talvez dali a umano, ou mais cedo. Jeffrey e Serena estariam sempre ali, assim como Amye Ben. Essa é que era a parte mais dolorosa: Jeffrey e Serena nãomudariam, mas as duas crianças ficariam mais altas, magras, gordas;perderiam aquela inocência infantil, além dos dentes da frente.52Nunca mais voltaria a encontrar as crianças que aprendera a amardurante aquele período particular das suas vidas. Do mesmo modo que asférias tinham terminado, também elas tinham desaparecido para sempre.Elfrida, decidida a animar-se, olhou em frente com optimismo, comosempre fizera quando se tornava necessário encontrar uma maneira eficazde lidar com uma sensação de perda. Ia voltar para o pequeno ninho quelhe servia de lar, para os seus pequenos pertences. Para o diminutorefúgio que partilhava com Horace. Abriria portas e janelas,inspeccionaria o seu jardim, acenderia a lareira.No dia seguinte, provavelmente, telefonaria para a Granja e falaria comGloria. Soariam então gritos de alegria pelo seu regresso e um pedidoimediato para que lá fosse a casa. E quando Elfrida fosse, levariaconsigo o livro para dar a Francesca, A Ilha dos Carneiros. Dir-lhe-ia:«Escolhi-o de propósito para ti porque adorei lê-lo quando tinha a tuaidade e tenho a certeza de que também gostarás.»Mas Elfrida sabia que precisava de fazer umas compras antes de seguirpara a Poulton's Row. O seu primeiro porto de escala seria ominimercado de Mrs. Jennings. Começou a fazer mentalmente uma lista:pão, leite, salsichas, ovos, manteiga, café, biscoitos e umas lataspara Horace. Talvez uma sopa para o seu jantar. Algo de sustento comouma Cullen Skink...Meia hora depois, entrou na auto-estrada no sentido sul-norte. Ligou orádio e preparou-se para a longa viagem.O relógio da igreja de Dibton marcava duas e meia da tarde quandoentrou na estrada principal da vila. Em frente do minimercado de Mrs.Jennings estava o mesmo grupo de jovens rústicos do costume e, um poucomais adiante, divisou Bobby Burton-Jones a aparar as sebes de alfena doseu jardim com um par de tesouras. Nada parecera ter mudado, excepto amaioria das árvores ter deixado cair as suas folhas e haver já umainconfundível friagem invernosa no ar.Elfrida estacionou o carro, pegou na sua bolsa e entrou noestabelecimento, que parecia estar vazio. Pegou num cesto metálico efoi andando pelos corredores, tirando aquilo de que necessitava dasprateleiras. Por fim, aproximou-se do balcão, onde Mrs. Jennings faziacontas nas costas de um envelope, pois não a ouvira chegar.Foi então que, ao olhar para cima, a viu. Pousou o lápis e tirou osóculos.Viva, Mistress Phipps, que surpresa. Já não a vejo há semanas. Asférias foram boas?Maravilhosas. Acabei de chegar. Ainda não fui a casa, porque Precisavade comprar algumas provisões. Pousou o cesto das compras em cima dobalcão e estendeu a mão para o Daily Telegraph. Acredita que passei ummês sem ler o jornal? Para ser sincera, nem lhe senti a falta.

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53Mrs. Jennings não fez nenhum comentário. Elfrida fítou-a e viu-a aolhar fixamente para ela, mordendo os lábios com ar aflito. Elfridapousou o jornal em cima das suas compras. Passado um bocado, perguntou:Há algum problema, Mistress Jennings?Então não sabe? perguntou-lhe a dona do minimercado.Não sei o quê?Não ouviu falar?Elfrida sentiu a boca repentinamente seca.Não.Foi Mistress Blundell.Que tem?Morreu, Mistress Phipps. Um desastre de carro no desvio de Pudstone.Trazia a filha para casa, depois de uma festa de fogo-de-artifício. Foino dia quatro de Novembro. Um enorme camião articulado. Só Deus sabecomo aconteceu. Ela não o deve ter visto. Estava uma noite pavorosa.Chovia a cântaros.Elfrida, atordoada pelo choque, não conseguia falar.Lamento, Mistress Phipps, pensei que já lhe tivessem contado.Como é que poderia ter sabido? Não li um único jornal e ninguém sabiaonde eu estava. Não deixei a morada do sítio para onde ia a ninguém.Uma tragédia, Mistress Phipps. Mal podíamos acreditar. Aqui na vilaninguém queria aceitar o sucedido.E Francesca? perguntou, receosa da resposta.Também morreu, Mistress Phipps. Assim como os dois cãezinhos que iamatrás. Se visse a fotografia no jornal, não acreditava. O carro ficoutodo esmagado. Elas não tiveram hipótese. A única coisa boa foi,segundo a Polícia, o ter sido instantâneo. Nenhuma delas se deve terapercebido. A voz de Mrs. Jennings tremeu ligeiramente. Notava-se quelhe era extremamente penoso falar no sucedido. Uma pessoa passa a vidaa ouvir falar deste tipo de coisas, mas quando acontecem com alguém queconhecemos...É verdade.A senhora ficou branca como a cal, Mistress Phipps. Quer que lheprepare uma chávena de chá? Venha até ao fundo da loja.Não, estou bem, obrigada. O que parecia ser verdade, pois o tremendochoque deixara-a calada, bastante calma e impassível. Perguntou: E ofuneral?Foi há dois dias, aqui na vila. Apareceu imensa gente. Uma verdadeirahomenagem.Queria então dizer que ela perdera até mesmo a possibilidade de chorarpelos mortos e reconfortar os vivos.E Oscar... Mister Blundel? perguntou.Mal o vimos. Esteve no funeral, claro, mas depois disso54desapareceu. Mantém-se recolhido. Pobre senhor. Uma pessoa nem imaginao que tem passado. O Que está a passar.Lembrou-se de Francesca a rir e a brincar com o pai, a tocar emconjunto com ele ao piano, enrodilhada contra ele na poltrona enorme aUvi-lo ler-lhe um livro. Depois afastou a imagem da mente, poisrecordá-la era demasiado insuportável.Ele está na Granja? inquiriu.Tanto quanto sei. O rapaz tem lá ido deixar o leite, os jornais eoutras coisas. Suponho que queira estar sozinho. O que é natural. Opastor foi até lá, mas nem a ele o quis ver. Mistress Muswell vai látodos os dias, como sempre fez, mas diz que ele não sai da sala demúsica. Deixa-lhe um tabuleiro preparado com o jantar em cima da mesada cozinha, mas conta que, na maioria das vezes, nem lhe toca.Acha que ele aceitará receber-me?Não faço ideia, Mistress Phipps. No entanto, a senhora e ele sempreforam amigos.Devia cá ter estado.

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A culpa não foi sua, Mistress Phipps.Alguém entrara na loja e Mrs. Jennings voltou a colocar os óculos, numatentativa corajosa de parecer atarefada.Isto é para pôr na sua conta, não é verdade? Prazer em vê-la. Sentimosa sua falta. Acho que estraguei o seu regresso a casa. Desculpe.Obrigada por me contar. Ainda bem que foi a senhora e não outra pessoaqualquer.Saiu da loja, entrou no carro, onde se deixou ficar sentada pormomentos, com a sensação de que o seu dia, a sua vida, fora partido aomeio e jamais poderia ser reparado, nunca mais voltaria a ser a mesma.Passara dos risos e da felicidade de Emblo para uma situação de perda edor impensáveis. E o que mais a perturbava era o facto de não tersabido da tragédia, não ter tido nenhum palpite ou suspeita da mesma.Aquilo fazia com que se sentisse culpada por alguma razão, como setivesse fugido às suas responsabilidades, ter ficado em Emblo em vez deestar ali. Em Dibton. Junto de Oscar.Passado um bocado ligou o motor e afastou-se, acabrunhada. BobbyBurton-Jones acabara de aparar as suas sebes e desaparecera portadentro, o que foi um alívio, pois não tinha vontade de parar para falarcom ninguém. Percorreu a rua principal da vila e virou na esquina quedava para aquela onde morava. As casas foram escasseando, até que, acerta altura, chegou diante dos enormes portões da Granja, a casa quePertencera a Gloria. Enveredou pelo caminho de acesso, subiu e deu avolta ao lado do sítio onde o majestoso cedro crescia. Avistou afachada elaborada da casa e viu uma enorme limusina preta estacionadaem frente da porta ampla.Parou o carro um pouco mais adiante e apeou-se, reparando então55que ao volante do impressionante veículo estava um motorista, deuniforme e boné, a ler o jornal. Ao ouvi-la, olhou-a de relance,cumprimentou-a com uma inclinação de cabeça e voltou aos seusresultados das corridas. Via-se bem que não estava para conversas.Elfrida passou por ele, subiu os degraus e percorreu a entrada aberta,detendo-se depois no familiar alpendre forrado a azulejo. A portasemienvidraçada estava fechada, mas ela não tocou à campainha,simplesmente abriu-a e entrou.Reinava o maior silêncio, cortado apenas pelo tiquetaque do relógio depé alto. Deteve-se por instantes, de ouvido à escuta, à espera de ouvirreconfortantes sons domésticos vindos da cozinha ou um fio de música doandar de cima. Nada. O silêncio era sufocante, como um nevoeiro.À sua direita, a porta da sala de estar encontrava-se aberta. Elfridaatravessou o vestíbulo, onde carpetes espessas abafaram os seus passos,e entrou, imaginando-se sozinha. Foi então que viu um homem sentado napoltrona ao pé da lareira apagada. Calças de tweed, sapatos rústicos epesados. Pouco mais se via.Oscar - murmurou, aproximando-se para o olhar. Foi então que sentiu osegundo maior choque daquele dia terrível. Oscar estava ali,envelhecido como nunca o poderia imaginar, transformado num velho deóculos, enrugado e encolhido na poltrona, com uma das mãos descarnadasa agarrar no punho de prata de uma bengala de ébano. Levouinstintivamente a mão à boca para abafar um grito ou, talvez, escondero seu desespero.O homem ergueu a cabeça para ela e exclamou:Santo Deus!Elfrida sentiu um alívio tão grande invadi-la que pensou que as suaspernas iam ceder. Antes que tal acontecesse, sentou-se precipitadamenteno banco almofadado em frente da lareira. Ficaram a olhar um para ooutro e, a certa altura, ele disse:Não a ouvi chegar. Tocou à campainha? Sou um bocado surdo, mas tê-la-iaouvido. Teria ido à porta...Não se tratava de Oscar, inacreditavelmente envelhecido. Era outrapessoa parecida com Oscar, mas não era Oscar. Talvez uns vinte anos

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mais velho que ele. Um cavalheiro idoso, já entrado nos oitenta, afalar com extrema cortesia e acentuado sotaque escocês. A sua vozlembrava-lhe a de um velho médico muito estimado, que cuidara de si nosseus tempos de criança. Por alguma razão, isso tornou muito mais fácillidar com ele.Não - respondeu-lhe , não toquei à campainha. Apenas entrei.Desculpe não me levantar. Ultimamente ando um pouco hirto e lento.Talvez devêssemos apresentar-nos. Sou Hector McLellan. Oscar é meusobrinho.Hector McLellan, em tempos proprietário de Corrydale, mas no presente aviver em Londres, cujo filho Hughie deixara Inglaterra para sempre,fora viver Para Barbados.Elfrida observou:Oscar falou-me em si.E como se chama a senhora, minha querida?Elfrida Phipps. Moro na vila. Sozinha. Gloria e Oscar foramimensamente gentis comigo. Lamento ter-me comportado com tão poucadelicadeza quando cheguei. O senhor pareceu-me Oscar, mas depoisapercebi-me da minha confusão.Oscar envelhecido pelo sofrimento?Exactamente. Acho que sim. Sabe, ainda não o vi. Fui passar um mês àCornualha, com uns primos. Acabei de saber tudo através de MistressJennings, do minimercado da vila. Entrei para comprar pão e... umascoisas. Foi então que ela me contou.Compreendo. Foi um acidente horrível.Que aconteceu?O velho encolheu os ombros.Gloria meteu pelo desvio e foi contra um enorme camião articulado.Quer dizer que não chegou a vê-lo?Estava muito escuro. Começara a chover.Mistress Jennings contou que fora a uma festa com Francesca.Espectáculo de fogo-de-artifício ou algo do género.Precisamente.Elfrida mordeu os lábios. Passados instantes, observou:Às vezes, no fim das festas, ela ficava um pouco bebida de mais.Arrependeu-se imediatamente de ter feito o comentário. O velho, porém,não desmentiu.Eu sei, minha querida. Todos nós estávamos a par. Às vezes, Gloriaexcedia-se um pouco. Ficava demasiado alterada no fim dos convívios.Talvez lhe custasse resistir. E depois vinha a guiar para casa. Oscarsabe isso melhor que qualquer de nós. Está cheio de remorsos por nãoter sido ele a levar Francesca à festa de fogo-de-artifício. Acho quenunca pensou que fosse algo mais do que uma festa para crianças, e quedepois Gloria não traria Francesca directamente para casa. Mas imaginoque estivessem lá outros pais e a coisa continuou. Começou a choverpouco antes de se virem embora. Depois, uma distracção momentânea, umaconfusão de luzes, um veículo pesado, uma estrada molhada... Abriu osbraços num gesto que dizia tudo. Tudo acabado. Vidas que se foram.Não cheguei a tempo nem mesmo do funeral.Eu também não. Estava com gripe e o meu médico proibiu-me de vir. Estaé a minha primeira visita, embora tenha enviado um cartão decondolências e entrado em contacto pelo telefone. Só ao falar com57Oscar é que me dei conta da sua situação. Portanto, assim que pude vimde Londres para conversar com ele. Posso estar velho, mas ainda sou seutio. Certamente viu o meu carro e o meu motorista à porta.Sim, vi. Elfrida ficou com expressão preocupada. O senhor falou na «suasituação». Isso tem algum significado especial?Pode crer.Poderei saber do que se trata?Não é segredo, minha querida. Gloria deixou tudo aos filhos, incluindoa casa. No dia a seguir ao funeral, vieram ter com ele e comunicaramlhe

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que não podia continuar a viver na casa, porque tencionavam vendêla.E onde é que eles imaginam que ele vai viver?Sugeriram um lar para a terceira idade qualquer. Creio que se chama OPrior. Trouxeram umas brochuras para ele ler. Acrescentou com veladaironia: Via-se bem que tinham pensado em tudo.Quer dizer que o põem na rua? Num lar de idosos? Oscar? Devem estarloucos.Não, não creio que estejam malucos, o que são é avarentos e impiedosos.E também têm duas mulheres sem coração, provavelmente a fazer força portrás, afim de deitarem a mão a tudo o que houver de valor.Nesse caso, Oscar tem de comprar outra casa.Hector McLellan baixou a cabeça e olhou para Elfrida por cima dos arosdos óculos.Oscar não tem recursos - informou.Quer dizer que não tem dinheiro?Uma reforma, evidentemente, e algumas economias, mas não o suficientepara comprar uma casa decente aos preços inflacionados de hoje em dia.Os filhos de Gloria, Giles e Crawford, devem ter conhecimento disso.Lembrou-se de algo mais. A própria Gloria devia saber. Certamentedeixou alguma coisa a Oscar. Era sempre tão generosa, tão dada a obrasde caridade!Talvez tencionasse fazê-lo. Ainda era uma mulher relativamente nova. Ébem provável que a possibilidade de morrer antes de Oscar nunca lhetenha ocorrido. Ou talvez, simplesmente, nunca tenha chegado a fazer umtestamento novo, ou a acrescentar algum codicilo ao antigo. Nuncasaberemos.Mas ele não pode ir viver para um lar da terceira idade. A própriaideia era ofensiva: Oscar, nem mais nem menos, enfiado no meio de umgrupo de velhos incontinentes, a comer pudins de leite e a fazercestos! A ideia que tinha de um lar não era muito clara, pois nuncavisitara nenhum. Declarou firmemente: Não permitirei que tal aconteça.Que tenciona fazer?58Ele pode ir viver comigo. Mal acabara de falar já se davaconta da impossibilidade de concretizar a sugestão. Na Poulton's Rowmal havia espaço para um, quanto mais para dois! E onde é que elecolocaria o seu piano de cauda? No telhado, ou no barracão do quintal?Parece que disse um disparate. Não, isso não é possível.Na minha opinião, acho que ele devia ir-se embora. Esta casa eesta vila, tudo isto está cheio de recordações penosas. O melhor seriaafastar-se. Desloquei-me até cá precisamente para o ver. MistressMuswell deu-nos almoço. Apresentei a minha sugestão, mas Oscar pareceincapaz de tomar qualquer tipo de decisão. Dá a impressão de que nãose importa com o que possa acontecer-lhe.Onde é que se encontra neste momento?Foi chamado ao jardim. O sistema de aquecimento da estufa estácom um problema qualquer. Disse-lhe que esperava até ele voltar, masdepois regressaria a Londres. Foi por isso que me encontrou aquisentado na poltrona do meu sobrinho, parecendo, sem dúvida, um velhoespírito maléfico.O senhor não faz lembrar nenhum velho espírito maléfico. Qualfoi a sua sugestão?Que ele vá para Sutherland passar uns tempos. A Corrydale e à velhacasa da quinta. Seja como for, metade pertence-lhe, e o meu Hughie, queé dono da outra metade, vive em Barbados e é provável que fique por lá.Pensei que a casa estivesse arrendada.Não, neste momento está vazia. Vivia lá um casal de idosos, osCochrane, mas o velhote morreu e a mulher foi viver com a filha. Soubedo acontecido através do nosso antigo feitor, o major Billicliffe. Jáse reformou, mas continua a viver em Corrydale. Quando Hughie vendeu amaior parte dos bens que lhe deixei, o major comprou a casa do guardaflorestal. Telefonei-lhe e falámos durante um grande bocado. Ele diz

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que a casa está em boas condições, talvez precise de uma pintura, masde resto está sólida e não tem humidade.Mobilada?Sim, nada de luxuoso, mas dá perfeitamente para ali viver nodia-a-dia.Elfrida reflectiu por um momento. Sutherland. Imaginou como sena:turfeiras e carneiros. Longínqua como a Lua. Observou:Fica muito longe para Oscar ir, ainda por cima sozinho.Em Corrydale e em Creagan conhecem-no. É da família, meu sobrinho. Aspessoas são amáveis. Hão-de lembrar-se dele, apesar de já lá não ir hácinquenta anos.Mas estará ele disposto a um afastamento desses? A tão grande mudançana sua vida? Porque não voltar a Londres e ficar perto da igreja ondefoi organista? Não seria mais sensato?Uma regressão. assombrada, perto, por recordações da filha.59Sim, tem razão.E o mais triste é ter abandonado a sua música. É como se a melhor partede si tivesse morrido.Como é que poderei ajudar?Isso é consigo. Tentar convencê-lo com jeitinho, talvez?Posso tentar.Não saberia, porém, aonde ir buscar as forças.Ficaram calados, a olhar tristemente um para o outro. O silêncio foiinterrompido pelo som de passos que se aproximavam, lentos, pelo pisode cascalho que dava acesso à casa. Elfrida levantou a cabeça e viuOscar passar em frente da janela comprida. Ficou imediatamente nervosa.Pôs-se de pé.Já aí vem disse.A porta da frente abriu-se e fechou-se. Aguardaram. Uma longa pausa.Depois a maçaneta girou, a porta da sala abriu-se e ele apareceu,ficando a olhar para os dois do outro lado do enorme tapete espesso.Vestia umas velhas calças de bombazina e um camisolão tricotado com umponto que fazia lembrar tweed. O cabelo branco farto caía-lhe sobre atesta, por isso empurrou-o para trás com a mão. Elfrida imaginara-ocaído, arrasado pela tragédia, mas a dor, essa tinha-a escondida, poisera um homem reservado.Elfrida. Soube que estava cá porque vi o seu carro lá fora. Elaaproximou-se dele, que lhe agarrou nas mãos beijando-a na face. Sentiulheos lábios gelados na sua pele. Olhou-o nos olhos.Querido Oscar. Já cá estou de novo.Há quanto tempo chegou?Há cerca de um quarto de hora. Parti da Cornualha hoje de manhã bemcedo. Fui ao minimercado e Mistress Jennings contou-me. Não sabia denada. Há um mês que não leio jornais. Vim então imediatamente paraaqui, onde encontrei o seu tio.Compreendo. Largou-lhe as mãos e olhou para Hector que, sentado na suapoltrona, assistia ao encontro. Desculpe tê-lo feito esperar, Hector.Surgiram complicações. Algo a ver com o mecanismo eléctrico. Mas vejoque Elfrida lhe fez companhia.E bem agradável. Agora tenho de me ir embora.O que originou um grande esforço por parte do velho, que tentoulevantar-se com a ajuda da bengala. Oscar aproximou-se imediatamente eestendeu-lhe a mão. Depois de um esforço considerável por parte deambos, conseguiu que o tio ficasse de pé, apoiado ao bastão e preparadopara partir.Atravessaram a sala ao ritmo do passo do velho senhor, até chegarem aovestíbulo. Aí, Oscar ajudou-o a vestir o sobretudo antiquado e a pôr ousado chapéu de feltro castanho na cabeça. Hector deu-lhe umainclinação jovial.Apreciei muito a sua vinda. Hector A sério Foi um prazer vê-lo.60

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Meu caro, grato pelo almoço. Se fores até à cidade, aparece lá emcasa.Sem dúvida.E pensa na minha sugestão. Pode parecer um pouco drástica, ao menospermitir-te-á mudar de ares. Aqui é que não deves ficar. - De repente,lembrou-se de algo e começou a apalpar o bolso do sobretudo. Quase meesquecia. Tomei nota do número de telefone de Billidiffe para ti. Bastaligares para ele, tem a chave da casa. Tirou um bocado de papel dobradodo bolso e entregou-o ao sobrinho. Só convém que não deixes muito parao fim do dia acrescentou com um brilhozinho nos velhos olhos remelosos.Ele tem tendência para se consolar com uma garrafa de uísque e, depoisdisso, fica com a cabeça à nora.Elfrida, porém, estava preocupada com outras questões de carácter maisprático.Há quanto tempo a casa está vazia?Uns dois meses. Mas uma tal Mistress Snead vai até lá de vez em quandopara limpá-la e arejá-la. Billicliffe é que tratou disso, mas eu é quelhe pago o salário. Não interessa nada deixar a propriedade arruinarse.Parece observou Elfrida , que o senhor pensou em tudo.Hoje em dia, não tenho muito em que pensar. Agora preciso de ir. Adeus,minha querida. Gostei muito de a conhecer. Espero que nos voltemos aencontrar um dia.Eu também espero. Vamos acompanhá-lo ao carro.Oscar enfiou a mão por baixo do cotovelo de Hector e os três saíramporta fora e desceram os degraus até ao piso de cascalho. A tardeesfriara e começara a cair uma chuva fina. O motorista, ao vê-los, saiudo carro enorme e deu a volta para abrir a porta do lado do passageiro.Ajudaram Hector a instalar-se no seu lugar e a prender o seu cinto desegurança.Adeus, Oscar, meu caro. Fica bem. Oscar abraçou o velho tio.Mais uma vez obrigado por ter vindo, Hector.Só espero ter-te trazido algum conforto.Pode crer que sim.Afastou-se e fechou a porta. O carro começou a andar. Hector acenou comuma mão encarquilhada, enquanto os dois ficaram a vê-lo afastar-se,rumo a Londres, a uma velocidade apropriadamente digna. Ficaram ali atéo carro desaparecer de vista e deixarem de ouvir o motor.O silêncio que se seguiu foi preenchido pelo crocitar de gralhas.Estava frio e húmido. Elfrida estremeceu.Voltemos para dentro sugeriu Oscar.Tem a certeza de que não quer que eu me vá embora também?61Não, prefiro que não vá. Quero que fique comigo.Mistress Muswell está cá?Não, todos os dias sai a seguir ao almoço.Gostaria de que lhe preparasse uma chávena de chá?Acho que seria uma ideia excelente.Posso levar Horace para dentro de casa? Tem passado o dia todo fechadono carro.Claro que pode. Agora não corre perigo. Os pequineses que o atacariamjá não existem.Elfrida sufocou uma exclamação de horror. Atravessou o piso de cascalhoe foi até ao seu pequeno carro abrir a porta a Horace. Este saltou parafora muito agradecido e disparou em frente, só parando em frente de umarbusto de loureiro mesmo a jeito, por baixo do qual se alivioudemoradamente. Terminada a satisfação daquela necessidade fisiológica,esgravatou em volta durante um bocado e depois voltou para junto deles.Oscar inclinou-se, acariciou-lhe a cabeça e só depois é que entraramtodos em casa. Oscar fechou a porta e conduziu-os depois até à cozinha,confortavelmente aquecida. A cozinha de Gloria, espaçosa e eficiente,onde tanta comida deliciosa fora confeccionada para saciar os apetitesde tantos amigos e familiares... Agora estava vazia, muito arrumada, e

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Elfrida reparou que Mrs. Muswell deixara em cima da mesa um tabuleirocom uma única caneca, um pote de leite e uma lata de biscoitos. Via-seque se esforçava o mais possível para alimentar e cuidar do seusolitário patrão.Elfrida encontrou a chaleira, encheu-a e pô-la ao lume. Voltou-se paraOscar, que se inclinava para o agradável calor emanado do fogão, edisse-lhe:Gostaria de ter o dom da palavra e uma mente privilegiada para saber oque lhe dizer, mas não é assim, Oscar. Lamento. Só gostaria de tersabido antes. Teria voltado imediatamente da Cornualha, ao menos paraassistir ao funeral.Oscar puxou de uma cadeira e sentou-se à mesa da cozinha. Ao ouvi-la,pousou os cotovelos no tampo, enterrando o rosto entre as mãos. Duranteum momento horrível, Elfrida pensou que chorava. Ouviu-se a si mesmacontinuar, desajeitadamente:Por acaso, não pus os olhos num único jornal, não li um único duranteum mês inteiro. Não fazia a menor ideia. Até hoje...Oscar afastou lentamente as mãos do rosto e ela viu que não chorara,mas tinha uma angústia tão grande no olhar que era pior do que aslágrimas.Eu teria entrado em contacto consigo, mas não sabia onde estavaretorquiu-lhe ele.Isso porque não me passava pela cabeça que pudesse precisar de saber.Respirou fundo. Oscar, conheço bem a dor e o sentimento de privação querepresenta perder um ser amado. Eu sempre soube,62desde o aparecimento da doença de Jimbo, que era terminal, que elejamais se recuperaria. Mas quando morreu, não estava minimamentepreparada para tanto sofrimento e tão grande vazio. Também sei queaquilo que senti na altura não se compara com o que está a passar nestemomento. £ nada pOSSO fazer para ajudar, para o consolar.Está presente.Se quiser falar, posso escutar.Ainda não.Eu sei. É demasiado cedo. Passou pouco tempo.Pouco depois do acidente, o pastor veio cá. Logo a seguir a terem-mecomunicado o falecimento de Francesca e de Gloria. Tentou reconfortarme,falou de Deus, e eu perguntei a mim mesmo se ele estaria bom dacabeça. Certa vez, a Elfrida perguntou-me se eu era religioso; creioque não fui capaz de responder à sua pergunta. Só sabia que a minhamúsica, o meu trabalho e os meus coros eram mais importantes para mimdo que qualquer dogma da Igreja. O Te Deum. Lembra-se do seu primeirojantar na Granja, quando demos uma volta pelo jardim e a Elfrida medisse que gostara especialmente de certa parte do Te Deun? As palavras,e essa música, já me encheram de uma certeza de divindade, e deeternidade, talvez.«Nós Te saudamos, Senhor. Tu és o nosso Deus.Toda a Terra Te adora, Pai Eterno.»Foi quando tocava órgão, fazendo ribombar as notas e ouvindo as vozesdos rapazes a subir até aos esteios, foi aí que acrediteiverdadeiramente, que soube o que era ter uma fé, a qual pensei que nadapoderia abalar. calou-se.Elfrida aguardou. Passado um bocado, inquiriu:E agora, Oscar?Tudo tinha a ver com Deus. E não posso acreditar num Deus capaz de metirar Francesca. Mandei o pastor para casa. Pareceu-me que se foiembora um pouco aborrecido.Elfrida mostrou-se compreensiva.Pobre homem.Sobreviverá, sem dúvida. A chaleira está a ferver.A interrupção foi bem-vinda. Elfrida entreteve-se a procurar o bule e ochá, e a deitar este na água fervente. Encontrou outra caneca para si,

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levou tudo para cima da mesa e sentou-se em frente de Oscar, tal comotinham estado naquele dia, há uma eternidade, antes dela partir para aCornualha, na sua pequena casa na Poulton's Row, tinha Oscar as botastodas enlameadas.Gosta dele bem forte, não é?Forte e preto.Elfrida serviu-se e depois deixou o chá a abrir mais.Hector falou-me dos seus enteados e da casa. Refiro-me à sua vendadisse.63Eles acham que eu devo ir para O Prior, uma mansão vitoriana convertidaem lar para cavalheiros desvalidos.O Oscar não vai para lá, pois não?Confesso que não tenho vontade nenhuma.Que pretende fazer?Gostaria de ficar sozinho, para me recuperar de tudo isto. não possocontinuar aqui, pois Giles e Crawford querem que saia para poderem pôra casa à venda, o mais depressa possível.Brutos.Elfrida deitou o chá de Oscar, preto como breu, na caneca, e empurrou-apara perto dele. O amigo juntou-lhe um pouco de leite e bebeu.Ela disse-lhe:Horace McLellan falou-me na sugestão que lhe fez.Bem me pareceu.A ideia é assim tão má?Elfrida, é uma loucura.Não vejo porquê.Então dir-lhe-ei porquê. Sutherland fica na outra ponta do país e já lánão vou há cinquenta anos. Apesar do optimismo de Hector, nãoconheceria absolutamente ninguém. A casa tem estado meio ao abandono,há meses que não vive lá ninguém. Não sou um animal naturalmentedomesticado. Não saberia por que ponta pegar para a tornar habitável. Epara quem me viraria então?Mistress Snead? Elfrida!Era uma censura, mas, ainda assim, Elfrida insistiu:Essa casa é muito isolada?Não, fica em plena Creagan, a aldeia lá do sítio.E horrenda?Horrenda? repetiu Oscar. As palavras que a Elfrida utiliza! Não, éapenas uma casa larga, quadrada e sem nada que a distinga. Não épropriamente feia, mas também não tem nada que a alinde. E não dispõede jardim, que também não serve de grande consolo quando é Inverno.Nem sempre será Inverno.O pior é que não consigo imaginar o que farei da minha vida.Bem, uma coisa é certa: o Oscar não pode ficar aqui. E só vai para OPrior se passar por cima do meu cadáver. Portanto, tem que reflectirsobre as alternativas disponíveis. Podia ir viver comigo em Poulton'sRow, mas, como sabe, aquele casebre mal tem espaço para mim e Horace.Oscar não fez nenhum comentário à sugestão mirabolante. Pensei quetalvez gostasse de regressar a Londres, mas Hector disse-me que não é ocaso.E tem razão.64- Escócia continuou Elfrida em tom pensativo. Sutherland. ao menosseria começar de novo.Tenho sessenta e sete anos e neste momento não estou em condições paracomeçar o que quer que seja. E, apesar de não me apetecer falar comninguém, também tenho pavor de ficar sozinho. Sentir solidão, viver sóé o pior. A casa vazia. Mesmo antes de casar com Gloria, dispunhasempre da companhia de colegas, membros do coro, alunos, todo um mundode gente animada. Tinha uma vida preenchida.Pode voltar a ser assim.

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Não.Sim, Oscar, pode. Sei que nunca será o mesmo, mas o Oscar temmuito para dar às pessoas. Uma generosidade de espírito que nós nãodevemos desperdiçar.Oscar franziu o sobrolho.Disse «nós».Foi um lapso. Queria dizer o Oscar.Oscar acabou de beber o seu chá até a caneca ficar vazia. Pegou no bulee voltou a enchê-la com o que restara. Parecia ainda mais forte eescuro que na vez anterior e estranhamente pouco apetecível.Supondo que ia para a Escócia. Como faria uma viagem tão longa?Há aviões e comboios.Preferia ir no meu carro.Então vá a guiar. Não tem pressa. Siga por fases...Elfrida sentiu a voz sumir e não foi capaz de terminar a frase, poisimaginar Oscar a empreender tal viagem até ao desconhecido, sozinho,enchia-a de desolação. Gloria devia estar ali ao seu lado, parapartilharem o volante, Francesca no banco de trás, com os seus jogos decomputador e a sua tagarelice ingénua. E no espaço ao fundo do carroenorme, os dois pequineses irrequietos e barulhentos, incluídos nasférias juntamente com os tacos de golfe e as canas de pesca...Tudo desaparecido. Morto. Para nunca mais.Oscar sentiu-lhe a angústia e pousou uma das mãos nas dela.Tem de ser corajosa, Elfrida, senão eu não me aguento.Estou a tentar. Mas não o posso aliviar.Imaginemos... imaginemos que levamos a sua ideia em linha de conta.Imaginemos que vou. Que me meto no carro e parto para a Escócia, paraSutherland. Se eu fizer essa viagem, vem comigo?Elfrida ficou calada; não sabia o que responder. Ficou a olhar para orosto dele, ainda não muito certa de ter ouvido bem; se ele lhe fizerarealmente aquela proposta extraordinária ou se, na confusão provocadaPelo choque e pela tristeza, a sua imaginação não a teria inventado?Ir consigo?Porque não? A ideia é assim tão má? Irmos juntos? Havemos de lá chegar.Iremos buscar a chave ao major Billicliffe, descobriremos a casa,tomaremos posse e passaremos o Inverno lá.65O Natal?Natal, não. Este ano, não. Seria assim mau? É tão ao norte que os diasserão pequenos, as noites longas e escuras, e eu provavelmente nãoserei grande companhia. Mas, por volta da Primavera é possível que mesinta mais recomposto. Já terá passado algum tempo. Aqui, comoclaramente disse, não tenho futuro. Giles e Crawford querem a casa,portanto deixarei que fiquem com ela. Com toda a pressa que têm.E a minha casa, Oscar? Que hei-de fazer com a minha casita?Deixe-a. Ou feche-a. Ficará segura. Tenho a certeza de que os seusvizinhos a vigiarão.Falava a sério. Estava a pedir-lhe que fosse com ele. Queria a suacompanhia. Precisava dela. Dela, Elfrida. Excêntrica, desorganizada,fenecida já a sua beleza. Até mesmo com uma certa reputação duvidosa. Ecom sessenta e dois anos de idade.Oscar, não sei se serei assim uma aposta tão boa.Está a subestimar-se. Por favor venha, Elfrida. Ajude-me. Como podereiajudar? perguntara a Hector, enquanto esperavamque Oscar voltasse da estufa. E naquele momento fora Oscar a responderà pergunta.Toda a vida fora impulsiva, tomara decisões sem pensar no futuro e nãolamentara nenhuma delas, por mais tresloucadas que tivessem sido. Aoolhar para trás, só lamentara as oportunidades perdidas, por teremaparecido na altura errada ou porque fora demasiado tímida para asaproveitar.Respirou fundo.

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Está bem, irei.Querida amiga.Irei por ti, Oscar, mas também o devo a Gloria. Jamais esquecerei asimpatia e generosidade com que me trataram, a mim, uma desconhecida.Quando vim para Dibton, tu, Gloria e Francesca foram os meus primeirosamigos...Continua.Sinto-me envergonhada. Temos estado a falar e só agora pronunciei osseus nomes diante de ti. Na Cornualha, falava muito de vocês. Contava aJeffrey coisas sobre os três, como tinham sido simpáticos comigo. Fuiàs compras e escolhi um livro para Francesca, e por pouco não compreium quadro para ti e Gloria, mas depois achei que ela não o iriaapreciar muito.E eu, teria gostado?Não sei. Formara-se-lhe um nó na garganta, que lhe dificultava a fala.Estava a chorar, sentia a boca a tremer, porém, as lágrimas,estranhamente, como que aliviavam, rolando-lhe quentes e molhadas pelasfaces. Os velhos, lembrou a si mesma, ficam horríveis quando choram.Tentou enxugar as lágrimas com um lenço.só estive uma vez na Escócia. Em Glasgow, faz imenso tempo, com umacompanhia66de teatro itinerante. Não tivemos quase público nenhum e nunca parou dechover. Procurou um lenço na manga e assoou-se. ... e não fui caPaz deentender uma única palavra do que me diziam.Em Glasgow têm um sotaque muito pronunciado.Na altura não teve graça nenhuma.E agora também não, mas, como sempre, fizeste-me sorrir.-Como uma espécie de palhaço?Não, palhaço não. Apenas como uma amiga estimada e divertida.SamSamÀs sete horas da primeira manhã escura de Dezembro, Sam Howard empurrouo seu carrinho com a bagagem para fora do terminal de chegadas doAeroporto de Heathrow. Do lado de lá da barreira apinhava-se a habitualconfusão de gente que viera esperar quem chegava no avião: casaisidosos, jovens em fato de treino, mães fatigadas com filhos pequenos aocolo; e também motoristas uniformizados para os VIP dos quais Sam nãofazia parte. homens não identificados que seguravam cartazes commensagens misteriosas, escritas em maiúsculas: MR. WILSON, dizia uma;ABDUL AZIZ CONSOLIDATED TRADERS, dizia outra.Sam não tinha ninguém à sua espera. Nem mulher, nem motorista. Nenhumasboas-vindas, humildes que fossem. Sabia que no outro lado da parede devidro do terminal aquecido faria muito frio; em parte, porque tinhamalertado para a temperatura em Londres antes da aterragem do avião, mastambém porque todos estavam protegidos com casacos acolchoados, luvas,lenços e barretes de lã. Em Nova Iorque também estava frio, mas era umfrio seco e revigorante, que estimulava, juntando-se-lhe um ventocortante que soprava do rio East e que fazia adejar violentamente todasas bandeiras que caíam nos dentes das suas rajadas.O seu carrinho, carregado com duas malas, um enorme saco de golfeamericano e a pasta, não dava muito jeito. Manejou-o em direcção àsportas automáticas da saída e, de repente, viu-se no meio de uma manhãde Inverno inglesa, fria, húmida e escura. Aí chegado, foi para a filados táxis. Só teve de esperar cerca de cinco minutos, mas isso nãoimpediu que ficasse com as plantas dos pés enregeladas. O táxi estavacoberto, não se sabia por que razão, por letras de imprensa, e omotorista era um indivíduo taciturno, de bigode de pontas caídas. Samesperava que não fosse de conversas, pois não tinha vontade de falar.Para onde?Wandsworth, por favor. S W dezassete. Beauly Road número catorze.71

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É pra já.O motorista nem se mexeu para ajudar a arrumar a bagagem, achando, aoque parecia, que Sam era suficientemente novo e com boa constituiçãofísica para tratar do assunto sozinho. Este não logrou as expectativase pôs tudo a bordo, ajeitou o saco de golfe no chão do táxi, empurrou ocarrinho para onde não estorvasse e entrou, fechando ruidosamente aporta a seguir. O táxi arrancou, com os pára-brisas a trabalharfuriosamente.A breve espera deixara-o gelado. Sam levantou a gola do sobretudo azulmarinhoe, cruzando os braços, recostou-se no plástico antiquado dobanco. Bocejou. Sentia-se cansado e sujo. Viajara na classe executivacom um grupo de empresários, mas, antes de aterrarem, os outros tinhamfeito idas discretas aos lavabos para se lavarem, barbearem, arranjaros nós das gravatas e refrescarem-se de um modo geral. Se calhar,coitados, tinham reuniões logo após a chegada. Não era o seu caso, oque lhe dava grande satisfação. O seu compromisso estava marcado parasegunda-feira ao meio-dia, altura em que se apresentaria no White'spara almoçar com Sir David Swinfield, presidente da Sturrock &Swinfíeld, o último patrão de Sam. Até lá, tinha o tempo todo por suaconta.Bocejou de novo e passou uma mão pela barba que lhe começava adespontar no queixo. Talvez devesse ter-se barbeado. Sentir-se-ia comum ar um pouco menos boémio. Lembrou-se de que era provável que tambémo desse a entender pelas roupas: camisolão, jeans gastos e botas.Sentia os olhos ressequidos e pesados pela falta de sono, mas isso forapor ter passado a breve noite a ler um livro. Além disso, tinha oestômago às voltas, sem dúvida devido à refeição copiosa que tomara àsduas da manhã, hora do Reino Unido.O táxi deteve-se num sinal vermelho. De repente o motorista falou,proferindo a pergunta por cima do ombro.Esteve de férias?Não - respondeu-lhe Sam.Sabe... por causa dos tacos de golfe.Não, não estive de férias.Em trabalho, então?De certo modo. Trabalhei seis anos em Nova Iorque. Caramba. Como é queaguentou o ritmo?Não foi mau. Até foi bom. Uma pessoa habitua-se. A água da chuvaescorria pelos vidros.A manhã não está grande coisa para um regresso a casa. Luz verde.Continuaram em frente.Lá isso não - concordou Sam.Não esclareceu que não estava de volta a casa. Naquele momento nãotinha casa, o que parecia condizer com a sua imagem de ocioso. Era aprimeira vez na vida, e já tinha trinta e nove anos, que se viadesprovido72de um tecto a que chamasse seu. Embrulhado no seu sobretudo com artaciturno e aninhado no banco de trás do táxi, pensou nas casas que játivera, relembrando, em primeiro lugar, a de Yorkshire, em Radley Hillonde, filho único, nascera e fora criado. Era uma casa de famíliaampla, sólida e confortável, impregnada do cheiro a fumo de fogo delenha, flores primaveris e bolos no forno. A casa encontrava-se rodeadapor quatro hectares de terra e dispunha de um campo de ténis e de umbosquedo onde, nos fins de tarde outonais, ele se escondia deespingarda em riste para caçar os pombos que vinham dos restolhais. Erapara Radley Hill que voltava depois das aulas na escola local, e maistarde do colégio interno, de onde vinha para férias, normalmenteacompanhado por um amigo. Era um lugar confortável, como um velhocasaco de tweed, que pensou nunca mudaria, mas claro que isso acaboupor acontecer. É que, no decorrer do seu último ano na Universidade deNewcastle, a mãe morrera e, depois disso, nunca mais nada voltara a ser

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como dantes.O negócio da família era uma pequena fábrica de lanifícios, numapequena cidade de Yorkshire. Terminado o curso, Sam pensara em levantarvoo, arranjar talvez um emprego no estrangeiro, mas a morte da mãetirara-lhe a coragem de abandonar o pai, de modo que voltou paraYorkshire, Radley Hill e a fábrica, munido do seu diploma deengenheiro. Durante alguns anos, pai e filho funcionaram muito bemjuntos e o negócio floresceu. Mas, às tantas, a recessão abateu-sesobre o ramo, e a fábrica, que se especializara em requintados artigosde lã e tweeds muito leves, teve de enfrentar a concorrência da Europa,um fluxo de importações e um problema de fluidez financeira. Foi entãoque a Sturrock & Swinfíeld, o grande conglomerado têxtil com base emLondres, avançou e tomou conta do negócio. Sam ficou a trabalhar sob anova gerência, mas o pai, cão demasiado velho para aprender novostruques, reformou-se antes de tempo. Porém, entreter-se com o seujardim e com o estranho jogo que era o golfe não foi o suficiente paracombater o stress da solidão, o tédio e a inactividade forçadas, demodo que morreu um ano depois com um ataque cardíaco fulminante.Radley Hill ficou para Sam. Depois de grande reflexão, colocou apropriedade à venda. Parecia a única atitude sensata a tomar, poispassara a viver em Londres, ainda a trabalhar para a Sturrock &Swinfield, especializando-se nos altos e baixos dos mercados flutuantese no negócio da corretagem dos têxteis. O dinheiro obtido com a vendade Raley Hill permitiu-lhe comprar o seu primeiro bem, um apartamentocom jardim em Park Common, tão próximo do metropolitano que à noiteouvia o estrépito das composições. Mas tinha uma nesga de jardin queapanhava o sol da tarde e, depois de mobilado com algumas das peçasmais pequenas da velha casa em Yorkshire ficou confortável e agradável.Fora feliz ali, levando uma vida despreocupada de solteiro73que, ao recordar, via sempre cheia de sol e de amigos. Dera incontáveisfestas improvisadas em que as divisões ficavam a transbordar e osconvidados acabavam sentados no terraço minúsculo, e fíns-de-semanainvernosos a abarrotar de antigos colegas do Norte que vinham assistiraos jogos de râguebi em Twickenham. E, evidentemente, uma série deromances tórridos.Foi nos estertores de um deles que chegou, de repente, um convite deSir David Swinfeld. Ali, no prestigiado escritório bem no alto, acimada névoa londrina, Sam foi informado de que seria transferido para NovaIorque, Estados Unidos. Mike Passano, administrador da sucursal novaiorquina,pedira que fosse ele, especificamente. Representara umapromoção, assim como um aumento de responsabilidade e de salário.«Tem alguma razão para não ir, Sam?»Nova Iorque. Ele respondera, «Não, senhor», o que era verdade. Nãotinha laços familiares, mulher, filhos. Nada que tivesse de abandonar.«Nenhuma razão.» Era a oportunidade pela qual ansiara no seusubconsciente desde a universidade. Um emprego novo, uma cidade nova,um país novo. Uma vida nova.Levou a namorada do momento a jantar fora, tentou explicar; esta chorouum pouco e disse que, se Sam quisesse, iria para Nova Iorque com ele.No entanto, sabia que não era o que desejava. Sentindo-se um malandro,confessou-lho, ela chorou um pouco mais e, quando chegou a altura de sedespedirem, arranjou-lhe um táxi, meteu-a dentro dele e ficou a vê-loafastar-se. Nunca mais lhe pôs os olhos em cima.Era igualmente impiedoso no que se referia a bens materiais. Uma etapada sua vida chegara ao fim, e não fazia ideia se algum dia voltaria aLondres. Assim, vendeu o seu carro e o apartamento, deixandoarmazenadas apenas algumas peças de mobília preferidas, quadros elivros. Deixou a sua secretária do escritório completamente vazia.Alguém deu uma festa, onde pôde despedir-se de todos os seus amigos.«Não fiques muito tempo por lá», disseram-lhe. «Volta depressa.»Mas Nova Iorque estava à sua espera e, depois de chegar, ficou seduzido

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por tudo o que encontrou. Adaptou-se ao lugar como pato na água,deleitando-se com todos os aspectos que diziam respeito à miscelâneaestimulante e cosmopolita que formava a cidade. Lá, o seu lar era umapartamento num prédio sem elevador em Greenwich Village, mas depois decasar com Deborah, esta convenceu-o a mudar-se e acabaram num eleganteduplex na Rua 70, Este. Sempre apreciara o desafio de uma casa nova,novos ambientes, de pintar um pouco, arrumar os móveis e pendurarquadros. Mas Deborah não queria nenhum dos trastes da velha casa deGreenwich Village no seu lindo apartamento novo e, além disso,contratou os serviços de um decorador de interiores que morreria seaquele sofá a cair de velho fosse 74integrado no seu décor de tons condizentes. Ainda houve algumasdiscussões, mas não muitas, pois Sam normalmente acabava por ceder,contentando-se em ficar com o seu velho sofá de cabedal no sótão, ondetambém tinha o computador e o fax. Sabia-lhe bem estar ali e houveocasiões em que, nos fins-de-semana, Deborah imaginou-o a fazer horasextraordinárias, enquanto Sam ficava enfiado no seu sofá de cabedal aassistir a futebol pela televisão.Lares. O da Rua 70, Este, fora o último, também desaparecera.Juntamente com Deborah.Ela nunca fora uma mulher cobarde. Dissera-lhe, cara a cara, que se iaembora. Estava farta de ser preterida em favor da Sturrock & Swinfíeld,farta de estar casada com um fanático do trabalho. Também havia claro,outro homem, e quando ela lhe disse de quem se tratava, Sam ficousimultaneamente estupefacto e cheio de ansiedade quanto ao futuro dela.Assim lho disse, porém Deborah estava decidida. Era demasiado tarde.Tomara uma decisão. Sam não foi capaz de a dissuadir.Sentiu-se furioso, mas também magoado, desorientado e humilhado.Lembrou-se do antiquado termo «cornudo». Sou um cornudo, puseram-me umpar de cornos.Mas, apesar de tudo, compreendia.Na manhã a seguir à sua partida, ao entrar no escritório, foi recebidopor olhares de relance e rostos comiserantes. Alguns colegas encheramsede cuidados, deram-lhe palmadinhas de solidariedade nas costas,fizeram-no saber que eram seus amigos e estavam à sua disposição para oque precisasse.Outros, que nunca tinham gostado muito de Sam, mostraram sinais deestar ironicamente divertidos. Apercebeu-se então de que,provavelmente, todos andavam a par do que se passava, e Sam, apesar deser o actor principal no drama, fora o último a saber.Em determinada altura do dia, Mike Passano aparecera, entrara pelaporta aberta e empoleirara-se na beira da secretária de Sam. Depois defalarem de questões do dia-a-dia, Mike dissera-lhe: «Lamento o queaconteceu em relação a Debbie. Só queria que soubesses.» «Obrigado.» «Oconsolo não é muito, mas ao menos não tens filhos para complicar ascoisas.» «É verdade.» «Se uma noite destas quiseres aparecer parajantar...» «Eu estou bem, Mike.» «Certo. Bem. Fica para outra ocasião.»Aguentara estoicamente durante seis semanas. No escritório, arranJavasempre desculpa para ficar até muito depois dos outros terem saído,voltando tarde para um apartamento vazio e sem comida. Às vezes, Paravanum bar e tragava uma sanduíche, que acompanhava com um uísque. Oudois. Começou a sofrer, pela primeira vez na vida, de insónias edurante o dia sentia-se invadir por uma estranha agitação, como se nãoapenas o seu casamento mas tudo o mais, tivesse perdido a graça.75Mike Passano aconselhou-o: «Tira umas férias», mas isso era a últimacoisa que Sam desejava. A pouco e pouco, foi-se compenetrando de que jáestava farto de Nova Iorque. Queria Inglaterra. Queria voltar paracasa. Queria céus enevoados, campos verdejantes, cerveja quente eautocarros vermelhos.Até que, certa tarde, quando estava no ponto mais baixo do seudesespero, o telefone tocou no seu apartamento. Era Sir David

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Swinfield, de Londres.Podemos falar, Sam?Com certeza.Ouvi dizer que as coisas não lhe estão a correr muito bem.As más notícias chegam depressa.Mike Passano contou-me. Soube hoje de manhã. Lamento.Obrigado.Apetece-lhe mudar? Sam ficou de pé atrás.Qual é a sua ideia?Ideia nova. Projecto novo. Mesmo ao cimo da sua rua. Pode terinteresse.Onde?Reino Unido.Quer dizer que saio de Nova Iorque?Esteve aí seis anos. Tratarei das coisas com Mike.Quem é que me substitui?Lowell Oldberg.Não tem experiência.Também você não tinha. Só lhe restava conformar-se.É uma despromoção? perguntara Sam abruptamente.Não, Apenas um desvio estratégico. Para cima e em frente. Uma pausa.Quero-o de volta, Sam. Preciso de si. Acho que chegou a altura.A casa na Beauly Road era uma vivenda de três pisos, ligeiramentedistante das outras, separada do passeio por um jardim frontal que foratransformado em abrigo pavimentado para automóveis. O resto datranquila rua residencial tinha carros estacionados em ambos ossentidos, indício da afluência que se fazia sentir naquela zona. Tambémhavia árvores, naquele momento despidas de folhagem, mas, no Verão,cheias de folhas! o que proporcionaria uma ilusão de campo, sugerindoum agradável subúrbio afastado da cidade de Londres.76A manhã ainda estava escura. Quando Sam, rodeado pela sua bagagem,pagou ao taxista, a porta da frente da casa abriu-se, deixando escaparum fio de luz, e uma figura masculina corpulenta apareceu.Sam! Semipreparado para o seu dia na cidade, Neil Philipvestia as calças de um fato formal e uma confortável camisola azul.colarinho de gola alta. Desceu o carreiro, acercando-se do portão.Caramba, como é bom ver-te.Sam foi então envolvido num abraço enorme, já que Neil nunca fora homempara conter as suas emoções. Era como ser abraçado por um urso. Omotorista do táxi, sempre impassível, afastou-se. Neil pegou nas duasmalas tremendamente pesadas e levou-as até à porta aberta, deixando Samàs voltas com o seu saco de golfe e a pasta.Janey está a acabar de organizar as crianças, não tarda a descer. Aviagem correu bem? Imagino que estejas terrivelmente cansado. Deixoucair as malas ao fundo das escadas. A chaleira está ao lume, queres umachávena de café?Adoraria.Então, anda.Sam tirou o sobretudo e dobrou-o sobre o corrimão. De cima chegou-lhe osom de uma voz infantil a lamuriar-se em relação a algo. Num dosdegraus das escadas estavam dois pares de botas de borracha, ao lado umdo outro, e um camião de brincar. Seguiu atrás de Neil pelo corredor,até chegar a uma espaçosa cozinha familiar, com clarabóia e janelassobre o lava-loiça. As cortinas ainda estavam corridas, mas, no alto,podia ver as nuvens escuras, manchadas pela reflexão da luz. Osarmários eram em pinho, o frigorífico zunia ao de leve, e a mesa estavaposta para o pequeno-almoço: toalha de mesa em xadrez, pacotes decereais, um jarro com leite, suportes para ovos.Neil deitou café em pó numa chávena e adicionou-lhe água a ferver. Oaroma delicioso encheu a cozinha.Queres comer alguma coisa?

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Não, só café.Sam puxou de uma cadeira e sentou-se. Não conseguia perceber por querazão se sentia tão fatigado, já que passara pelo menos sete horassentado.Estás com óptimo aspecto, Neil.Oh, cá se vai vivendo. Vida de família. Colocou duas fatias de pão numatorradeira eléctrica. Não chegaste a conhecer esta casa, Pois não?Comprámo-la dois anos depois de ires para Nova Iorque. Subida de nível,chamou-lhe Janey. Além disso, também precisávamos de um jardim para ascrianças.Refresca-me a memória.O quê?Idades. Daisy e Leo. Uma pessoa perde-lhes a conta.Daisy tem dez e Leo seis. Estão contentíssimos por ires cá77ficar. Não falam de outra coisa desde o teu telefonema. Quanto tempotencionas ficar?Não são férias, Neil. Negócios. O presidente chamou-me cá. Qualquercoisa a ver com um projecto novo.Disseste adeus a Nova Iorque?Por enquanto.Sam, lamento muito o que aconteceu em relação a Deborah.Depois falamos nisso, agora não. Há muito mais para dizer.Hoje, ao fim da tarde, vamos até um pub e poderás deitar tudo cá parafora diante de uma caneca de cerveja. Mas não te esqueças de que podesficar o tempo que quiseres.É muita generosidade tua.Eu sou assim, meu caro, eu sou assim.As torradas saltaram e Neil tirou-as da torradeira, enfiando-lhe maisduas. Sam observou os movimentos delicados e precisos de um homemgrande, aparentemente desajeitado. Neil continuava a ser senhor de umafarta cabeleira escura onde, no entanto, já se vislumbravam osprimeiros fios brancos. Também ganhara um pouco de peso, como os homensatléticos têm tendência, de resto tudo o mais parecia na mesma.Neil Philip fazia parte da vida de Sam. Eram amigos desde o primeirodia no colégio interno, altura em que não passavam de dois rapazinhosapreensivos perante uma vida nova. Neil era uma das visitas regularesde Radley Hill nas férias, e a mãe de Sam acabou por tratá-lo como umsegundo filho. Quando Sam foi para Newcastle, Neil seguiu para aUniversidade de Edimburgo, onde jogou râguebi como um fanático,chegando mesmo a representar a Escócia numa temporada brilhante.Terminada a universidade, encontraram-se de novo em Londres, nos temposda Eel Park Common, e foi como se tivessem apenas feito uma pausa naconversa. Quando Neil casou com Janey, em St. Paul, Knightsbridge, Samfoi o padrinho. E quando chegou a vez de Sam desposar Deborah, nojardim da casa dos pais em East Hampton, Neil e Janey tinham ido deavião para que ele pudesse ser o padrinho do amigo. Sam ficara-lheprofundamente grato, pois, caso contrário, o noivo teria ficadotristemente representado em termos de familiares, amigos ou conhecidos.Neil serviu-se de café e pôs ovos a escalfar. No andar de cima, asvozes foram-se tornando cada vez mais altas, ouviram-se passos a descerapressadamente as escadas e duas crianças irromperam pela cozinhadentro, Daisy vestida com o seu uniforme do colégio e Leo envergandouns jeans e uma camisola. Pararam, de olhos fixos no desconhecido.Sam cumprimentou-os:Olá. Intimidados, não responderam.Cumprimentem o amigo disse-lhes Neil.78Pensei que trazia um chapéu de cobói observou Leo. Em Nova Iorque nãousam chapéus à cobói, tolo disse-lhe a irmã, trocista.Bem, então que usam?Se calhar não usam nada.

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Quem é que não usa nada? perguntou Janey, assomando à porta, vestidamuito à semelhança do filho e de braços abertos para acolher Sam. Oh,Sam, há quanto tempo. Como é bom ver-te.Sam pôs-se de pé para a abraçar e beijar.Deus, grande bruto, não fizeste a barba.A preguiça era demasiado grande.Já não te vemos há séculos. Esperamos que possas ficar definitivamentepor cá. Daisy, nunca hás-de conseguir comer esses Coco Pops todos,portanto despeja alguns na tigela de Leo.Após a saída dos donos, a casa ficou tranquila: Neil seguiu para a sualabuta diária e Janey foi levar as crianças à escola. Tinham mostrado aSam o seu quarto e a sua casa de banho. Depois de um banho relaxante ede se barbear, embrulhou-se num roupão que encontrou pendurado atrás daporta da casa de banho e meteu-se na cama. Podia ver através da janelaos ramos rendilhados de um plátano. Os automóveis passavam, silvando,na rua. Ao longe, no céu, um jacto sulcava os ares. Adormeceu.Choveu durante a maior parte do fim-de-semana, mas na segunda-feira demanhã o tempo nasceu seco, mesmo com umas abertas de céu a espreitar,de vez em quando, detrás das nuvens que passavam. Neil, depois deassistir na televisão a um jogo de futebol empapado em água, deorganizar um longo passeio molhado pelo Richmond Park no domingo e deuma maratona de Monopólio depois do lanche, inspeccionou a manhãdesanuviada e declarou com franco azedume: «Isto é que é azar» e partiupara o trabalho.As crianças saíram a seguir; uma vizinha veio buscá-las para as levar àescola. Uma senhora da Jamaica apareceu para aspirar a casa, enquantoJaney ia às compras.Queres uma chave? perguntou a Sam. Depois das quatro já cá estou.Nesse caso, não me faz falta.Quando é que pensas voltar?Não faço ideia.Bem - sorriu-lhe e deu-lhe um beijo rápido , então, boa-sorte.Sam saiu pouco depois dela, adequadamente vestido para a ocasiãoimportante, levando o seu sobretudo e um guarda-chuva de Neil, não sedesse o caso de chover. Fechou a porta da frente ao som do hino que a79empregada da limpeza cantarolava enquanto lavava a casa de banho. Aomeio-dia e vinte e cinco subiu a St. James Street, apresentou-se diantedo porteiro do White's e perguntou por Sir David Swinfield. Sir Davidencontrava-se no bar, responderam-lhe, à espera de um convidado.Só saíram do clube às três e meia, descendo os degraus que conduziam aopasseio, onde o carro de Sir David, mais o respectivo motorista, oaguardavam. Sam declinou delicadamente a boleia oferecida e ficou a vero enorme carro-salão preto a meter-se no meio do trânsito e desaparecerem direcção a Picadilly.Sam virou-se e começou a andar de volta a Wandsworth; pelo menos fariaparte do caminho a pé. Atravessou Green Park e a Belgrave Square,enveredou pela Sloane Street e, por fim, pela Kings Road. Naquelaaltura, já o dia chegara ao fim, as luzes haviam-se acendido, asmontras das lojas brilhavam com toda a parafernália da decoraçãonatalícia e do consumismo sedutor. Foi então que se deu conta, atónito,de que andara tão metido consigo mesmo que nem se dera conta daaproximação do Natal. Os meses, lentos nalguns aspectos, tinham passadocomo uma flecha, noutros. Natal. Não fazia a menor ideia onde opassaria e não se lembrava de ninguém que pudesse estar à espera de umpresente dele, o que era uma verdade desanimadora e não abonava muito aseu favor. No entanto, a ideia dos presentes entusiasmou-o. Entrou numaflorista, onde comprou um arranjo enorme de lírios brancos para Janey;um pouco mais adiante, parou numa loja de vinhos e escolheu uma garrafade conhaque e outra de champanhe para Neil. Carregado, pensouigualmente nas crianças, Daisy e Leo. Também gostaria de lhes oferecerpresentes, porém não fazia a mínima ideia dos seus gostos. Teria de

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lhes perguntar. Como já passara dois dias na companhia deles, tinha acerteza de que saberiam esclarecê-lo.Ao chegar à World's End já gastara a sua energia; também recomeçara achover. Já eram quase cinco da tarde e o trânsito encontrava-se no seuauge, arrastando-se a passo de caracol, no entanto cinco minutos depoismandou parar um táxi e deu a morada ao motorista. Demorou um tempoimenso a atravessar a Wandsworth Bridge. Quando, finalmente, subiram aBeauly Road até ao fim, avistou as luzes acesas por detrás das cortinascorridas do número catorze, o que lhe deu a reconfortante sensação deque chegava a casa.Quando tocou à porta, Janey veio abrir.Ora cá estás. Pensei que te tinhas perdido. Vestia os seus jeans e umacamisola vermelha, e prendera o cabelopreto no alto da cabeça com um travessão de tartaruga.Estive a fazer exercício. Janey fechou a porta.Seria de pensar que um domingo molhado no Richmond Park seriaprolongado pelo resto da semana. Que tal correu? Refiro-me ao almoçocom o presidente, claro.80- Correu bem. Depois conto-te. Entregou-lhe os lírios. São para ti. Umpresente doméstico para uma anfitriã gentil.Obrigada. Não era preciso trazeres-me flores, mas fico contente.Ainda por cima lírios. Dão um cheiro delicioso a toda a casa. Vem até àcozinha, eu preparo-te uma chávena de chá.Sam, depois de se deter para pendurar o seu sobretudo num bengaleirocheio de pequenos sobretudos e anoraques, foi atrás de Janey levando osaco das garrafas. Guardou o conhaque na garrafeira de Neil e ochampanhe no frigorífico.Champanhe! exclamou Janey, que enchia a chaleira, ligando depois osistema eléctrico. Isso significa uma celebração?Talvez. Puxou de uma cadeira, onde se sentou, apoiando oscotovelos em cima da mesa. Onde estão Daisy e Leo?Lá em cima, a ver televisão ou a jogar no computador. Têm licença parao fazer depois de terminarem os trabalhos de casa.Que bem cheira esta cozinha.É o jantar. Tenho más notícias. Vamos ter outro convidado.Que tem esse outro convidado assim de tão mau?É um chato.Porque o convidaram?Ele é que se fez convidado. É um velho amigo dos meus pais e como estáem Londres sozinho, não tem mais ninguém conhecido. Telefonou e pareciadesanimado, portanto senti-me na obrigação de o convidar. Por acasolamento, porque preferia que fossemos só nós os três. Já avisei Neil.Liguei-lhe para o escritório e ficou mesmo desconsolado, mas disse queia tentar chegar mais cedo a casa para preparar as bebidas e acender alareira.Eu podia perfeitamente encarregar-me disso.Tu és convidado. Tomas um banho, descansas um pouco e depois aparecestodo bonito.Imagino que para impressionar esse vosso convidado indesejado. ViuJaney fazer uma careta. Vá, que tem ele de tão chato?Janey, fora buscar uma jarra florida, enchera-a de água, e agoraentretinha-se a dispor os seus lírios dentro dela.Ele não é propriamente repulsivo. Apenas um bocado maçador. Gosta que oconsiderem um velho excêntrico. Quando está por perto, uma pessoa põe otraseiro instintivamente fora do alcance dos seus dedos.Sam riu-se.Ah, é desses...Pois é. Casou três vezes, mas agora está sozinho.De onde é?Penso que andou na escola com o meu pai, mas actualmente viVe nasBaamas, em Barbados ou um sítio do género. Já lá está há imenso tempo.

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81Que faz o tipo em Londres?Não sei bem. En route para França, suponho. Vai passar o Natal a Nice.Parece ser uma pessoa interessante.Não é. Pronto. Estão lindas. Obrigada, mais uma vez. Vou colocá-las nasala de estar, no lugar de honra. A chaleira começou a apitar e elapegou na caixa do chá. Estou ansiosa por saber como o teu U encontrodecorreu, mas quando estou a cozinhar não consigo concentrar-me, alémdisso, ainda tenho de fazer um pudim.Posso esperar.Correu bem, Sam? Foi positivo?Foi. Eu acho que sim.Que maravilha. Fico contente. Sam bebeu o seu chá e, corrido da cozinhapor Janey, subiu ao pisode cima, onde encontrou Daisy e Leo entretidos a brincar no quarto.Tinham desligado a televisão e estavam sentados a uma mesa de aspectomuito usado, cheia de folhas de papel, que pareciam estar a recortar.Além de tesouras, tinham lá posto também tubos de cola, canetas de bicode feltro, um novelo de fio colorido e uns bocados de fita num tecidomuito fino. Já estava em curso uma obra qualquer. Ao entrar, olharampara ele.Olá, Sam.Viva. Que estão a fazer?Cartões de Natal respondeu-lhe Daisy com ar importante. A minhaprofessora de desenho ensinou-nos hoje a fazê-los e estou a mostrar aLeo como é. Põe-se cola, depois salpica-se com pozinhos brilhantes edeixa-se secar. Mas primeiro é preciso desenhar alguma coisa.Como, por exemplo?Bem, uma árvore de Natal. Ou uma meia. Ou uma casa com as janelasiluminadas. A única coisa aborrecida é o pó brilhante espalhar-se portodo o lado. Leo diz que são brilhozinhos. Agora, Leo, dobras o papelassim, com muito cuidado... não pode ficar torto...Saltava à vista que não precisavam de ajuda. Deixou-os e foi para o seuquarto, onde se despiu e tomou um duche.Tomas um banho, descansas um pouco e depois apareces todo bonito.Levara o The Times para cima consigo, de modo que, depois do banho,estendeu-se em cima da cama a tentar dar-lhe uma vista de olhos, porémnão conseguiu concentrar-se e deixou o jornal resvalar para o chão,deixando-se ficar, simplesmente, a olhar para o tecto. Do lado de lá daporta fechada chegavam sons. As vozes das crianças; um telefone atocar; os passos de Janey quando foi atender. «Está», ouviu-a dizer.Captou o cheiro de fazer crescer água na boca que vinha do jantar empreparação e, algum tempo depois, o barulho das torneiras a correr parao banho das crianças.82Há muito tempo que não se sentia envolver no seio de uma família deverdade, que não era tão acarinhado e desejado. Ao aprofundar essalinha de pensamento, apercebeu-se de que o retraimento de Deborahcomeçara meses antes de lhe anunciar que se ia embora, mas Sam andarademasiado ocupado para reparar no desgaste gradual de que a relação deambos estava a ser vítima. Sabia que o fim de um casamento nunca eraculpa de uma só das partes. Fosse de que maneira fosse, a outra metadetinha de carregar com uma parte da culpa.Deu consigo a relembrar Radley Hill, pois a atmosfera que se vivianaquela despretensiosa casa londrina, onde Janey e Neil criavam os seusfilhos, trouxera-lhe lembranças da segurança e do conforto do lugaronde Sam passara a sua meninice e adolescência. Sempre as boas-vindas,a lareira acesa, o cheiro da deliciosa comida campestre que vinha dacozinha. Botas no alpendre, raquetes de ténis no vestíbulo, as vozesdos jovens seus amigos, o som dos seus passos escada abaixo. Não sabiase alguma vez viria a desfrutar do refúgio de uma vida familiar. Atéentão, os seus esforços nesse sentido tinham sido um fracasso. Ele e

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Deborah podiam ter tido filhos, mas a ideia nunca agradaraparticularmente à mulher, e ele fora obrigado a ceder, relutantemente,nessa matéria. O que, perante a maneira como as coisas tinhamdescambado, fora até melhor. O certo é que a casa na Rua 70, Este,habitada apenas pelos dois, nunca fora um verdadeiro lar. É verdade quea sala de estar fizera a inveja de todos os amigos, tão impecavelmentedecorada em tons de creme e bege, com esculturas modernas e quadrosabstractos, estrategicamente iluminados, nas paredes. E a cozinha erauma maravilha de instrumentos modernos, porém dela nunca saíra mais doque uma fatia de melão ou uma piza aquecida no microndas. Deborah nãoera muito dada às prendas do lar; preferia receber os amigos emrestaurantes.Radley Hill. Ao relembrar os dias frenéticos da vida urbana: ostransportes, os negócios, as noites tardias e os dias longos, o cheirodo metro e dos gases dos escapes dos automóveis recordou Yorkshire,visualizou a sólida e simples casa de pedra, o terraço, os prados, osroseirais de sua mãe. Pensou na aldeia onde seu pai tivera a fábrica,onde o vento dispersava o fumo das chaminés, e o rio, que descia dascolinas, deslizava entre as ruas sombreadas pelas árvores e por baixodas pontes recurvas. O som da água a correr sobre as rochas era tãofamiliar e fazia de tal maneira parte da vida, que uma pessoa deixava,pura e simplesmente, de o ouvir. Pensou no campo circundante e noslongos passeios a pé que fazia com o pai ao domingo; ou quando iampescar Para os pequenos e afastados lagos escuros que havia na zona dascharnecas, onde o ar era frio, límpido, e os espaços vazios eramtrespassados pelo piar dos maçaricos...Lá fora, na rua, um carro estacionou por baixo da sua janela. A portada frente abriu-se e fechou-se. Ouviu Janey perguntar:Neil! Olá querido!Soube então que o amigo chegara a casa.83Levantou-se da cama, libertou-se do roupão e foi então vestir-seadequadamente para a noite que tinha pela frente: calças engomadas, umacamisa lavada, uma camisola de caxemira azul-marinho, sem gravata;meias creme, sapatos engraxados. Penteou o cabelo, pôs um pouco deaftershave e desceu. A porta da sala de estar encontrava-se aberta, demodo que entrou e foi dar com Neil, em mangas de camisa, entretido apuxar o brilho a uns copos com um pano e a arrumar a mesinha dasbebidas: revistas e livros endireitados, almofadas afofadas, lareiraacesa. Os lírios que Sam oferecera a Janey lá estavam na sua jarra, nomeio de uma mesinha redonda polida, rodeada por um conjunto de caixasBattersea. O seu perfume, acentuado pelo calor, já se espalhara peloar. O relógio por cima da lareira mostrava que eram sete e um quarto.Viva! cumprimentou Sam.Neil interrompeu a sua tarefa para olhar para o amigo.Ora viva. Então, descansaste bastante?Devia era ter vindo dar-te uma ajuda.De modo nenhum. Escapuli-me mais cedo para casa, afim de virdesempenhar o meu papel de anfitrião.Já soube que temos companhia para o jantar. Neil ficou de má catadura.O tipo é mesmo parvo. Janey devia ter-lhe dado com os pés, mas édemasiado sensível para isso. Deu uma passagem ao último copo, pousou-oe atirou o pano para o lado. Pronto, já está. Tudo pronto. Tomemos umabebida e sentemo-nos para aproveitar este momento de tranquilidade.Quero que me contes como tudo se passou antes do nosso convidado chegare termos de o ouvir a ele. Uísque? Soda ou água? Com gelo? Como vês,sei a fraseologia toda, caso te tenhas esquecido de como se diz.Pode ser soda. Onde está Janey?A bater natas.E as crianças?Na cama, espero. A ler. Caso contrário, vai haver sarilho. Serviu asbebidas, acrescentou-lhes gelo e levou um dos copos a Sam. Depois, com

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um suspiro de alívio, deixou-se cair numa das confortáveis poltronasque ladeavam a lareira. Então, conta lá como o almoço correu.Sam instalou-se na poltrona ao lado.Bem, creio eu.Nada de abominável? Nenhuma sugestão de redundância? Sam riu-se. Sabiabem ter alguém com quem não fazer cerimónias,84estar com um homem que conhecia quase desde que nascera e com quemnunca tivera o menor segredo.Precisamente o oposto.A sério? Algum emprego novo, então?Isso mesmo.Nos Estados Unidos?Não. Aqui. Reino Unido.Em que sítio?Sam não respondeu imediatamente. Tomou um gole da sua bebida, sentiu-agelada, acre e estimulante na língua, depois pousou o copo sobre amesinha lateral.-Já ouviste falar da McTaggart, em Buckly?O quê... aquela gente que fabrica tweed em Sutherland?Exactamente.Bem, claro que sim. Qualquer cavalheiro de província que se preze temum fato de caça feito de tweed Buckly. O meu pai tinha um, melhordizendo, tem. Parece uma armadura. A lembrança fê-lo rir. Não me digasque estão com dificuldades.Têm estado, mas a Sturrock & Swinfield comprou-os aqui há uns meses.Admira-me que não tenhas dado por isso, mas, se calhar, não lês oFinancial Times.Não falho um dia, mas essa escapou-me. Os têxteis não se enquadram naminha linha de interesses comerciais. É extraordinário, a McTaggart irpor água abaixo. Esboçou um sorriso pesaroso. Repara, se calhar foimais um dos cenários habituais, não se pode fazer dinheiro com umproduto que dure eternamente.Esse, evidentemente, foi um dos problemas. E nunca diversificaram.Imagino que fossem instalações antiquadas e eles nunca vissemnecessidade de modernizar. Mas o mercado diminuiu, até mesmo em relaçãoaos tweeds tradicionais. Com a venda das grandes propriedades e oesvaziamento das grandes áreas de caça, deixou de haver necessidade detweeds para os fiscais de caça e os guardas-florestais. Mas tambémtiveram outros reveses. O velho McTaggart morreu há dois anos, e osdois filhos não estavam interessados no negócio. Um já andava metidonos computadores, o outro dirigia uma boa garagem nos arredores deGlasgow. Não quiseram largar o que tinham para dar continuidade aonegócio do pai. Calculo que a vida no Norte perdeu os seus encantos.- Que extraordinário observou Neil, deixando escapar um susPiro -Enfim, cada um tem as suas aspirações. Então, que foi que aconteceu?Bem, primeiro os filhos desbarataram parte do património vendendo todosos edifícios ligados à fábrica, depois puseram-na à venda. Ostrabalhadores, ao verem que não aparecia ninguém suficientementeinteressado, foram ter com a Local Company e, juntos, começaram a gerira empresa. O problema é que não há falta de emprego naquela área, comopodes imaginar. Seja como for, são todos operários especializados e têmpassado de pais para filhos naquele ofício, tecelões, fiandeiros,tintureiros, tudo o que se possa imaginar. Sam esvaziou o resto dabebida que tinha no copo. Portanto, estavam a ser razoavelmente bemsucedidos, até já tinham recebido algumas encomendas novas, exportaçõespara os Estados Unidos, esse tipo de coisa... quando, trás!, aconteceuma desgraça. Choveu consecutivamente durante dois meses, o rio galgouas margens e inundou a fábrica até à altura de um homem. Perderam tudo,o estoque, os computadores, a maior parte da maquinaria. Acabou-se. Osbancos suspenderam o crédito, a LEC ficou com os dedos queimados, e aforça laboral viu-se diante de um futuro no desemprego.

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Neil levantou-se e foi buscar o copo de Sam.Caramba, mas que grande azar.É verdade. Portanto, em desespero de causa, abordaram a Sturrock &Swinfield. David Swinfield mandou fazer um estudo de viabilizaçãoexaustivo no local e ficou interessado. Mas a fábrica ainda está namaior desgraça. Já não funciona desde a cheia; só lá ficaram trêsoperários.Neil entregou-lhe o copo com nova dose.E qual é o teu papel nisso tudo?Vou pôr tudo novamente de pé. Dirigir o negócio.Assim, sem mais nem menos?Não exactamente. Mesmo antes da cheia já a fábrica estava em mauestado. A maioria das máquinas é, provavelmente, do tempo da Arca deNoé. Só daqui a um ano é que tudo ficará pronto para voltar afuncionar.Estou admirado de que o estudo de viabilização de Swinfield tenhamostrado que aquele lugar tem alguma hipótese financeira. Quero dizer,achas que ainda é possível fazer alguma coisa por uma indústria numlocal tão remoto? Para ser franco, duvido de que valha, sequer, a pena.Oh, eu acho que vale. Claro que teremos de diversificar, mas o nomeMcTaggart tem muito boa fama em todo o mundo. O que vale muitíssimo nosmercados de luxo.O quê? Certamente esses não receberão bem aquelas excelentes roupaspesadonas, à prova de espinhos e para todos os climas, destinadas ausar no campo, pois não? Isso seria trágico. Terias de continuar afabricar desse material.Claro que o faremos, assim como tecidos de lã em xadrez. Essa é aimagem de marca de McTaggart. Tradição. Mas essa será apenas uma parteda nossa produção. Concentrar-nos-emos em força em têxteis mais leves,mais coloridos. Tecidos de camisas para o mercado italiano, por exemploXailes, lenços de cabeça, écharpes, malhas de lã. Simultaneamente carose de curta duração.86Caxemira?Claro.Estão, portanto, previstas incursões à China profunda, não?- David Swinfield já mandou agentes à Manchuria.E quanto à maquinaria?provavelmente será comprada na Suíça.O que significará um programa de formação total para o operariado.sim, mas esse será efectuado no local, por representantes dosfornecedores. O que, infelizmente, se saldará numa força laboral.reduNeil ficou calado, assimilando o que acabara de ouvir. Depois,suspirou e abanou a cabeça, mostrando-se algo confundido.Parece interessante, mas não te estou a ver vivendo numa turfeira,depois de Londres e Nova Iorque. Seria o mesmo que colocar um vicecônsulda Grã-Bretanha nas ilhas Andaman. Não tem jeito nenhum.É aquilo que sei e posso fazer.Salário?Subiu.Suborno. Sam sorriu.De maneira nenhuma. Simplesmente um bónus.E que vais fazer contigo mesmo? Do teu tempo de lazer, quando nãoestiveres a trabalhar que nem um escravo na fábrica ou a tentar fazer obalanço das contas? Tenho muita dificuldade em acreditar que Bucklyseja um local com muita animação. Podes muito bem ser obrigado a jogarao bingo.Pescarei. Lembras-te das pescarias com o meu pai? E jogarei golfe.Existem pelo menos cinco campos magníficos nos arredores. Entrarei nosclubes e farei amizade com os velhotes de camisolas com nódoas de sopa.O mais provável fabricadas por Nick Faldo.Não importa.

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Não achas, portanto, que tudo isso representa uma regressão?Vou regressar às minhas raízes, se é que isso é regredir. E,estranhamente, a ideia de ter de enfrentar e resolver tantasdificuldades entusiasma-me. Também sei como dirigir uma fábrica.Aprendi com o meu pai. Ele tinha uma autêntica paixão pelo seutrabalho. Adorava as suas máquinas da mesma maneira que os outroshomens adoram os seus carros. Costumava tocar nos rolos enormes detweed como se estivesse a acariciá-los, pelo prazer de sentir a lãentretecida sob os dedos. Se calhar também sou assim. Só sei que jáestou farto de marketing. Anseio por regressar ao piso de uma fábrica,aos primeiros passos de todo o negócio. Neste momento acho que éexactamente disso que preciso.87Neil observou-o atentamente do outro lado da lareira e disse-lhe:- Não fiques ofendido, mas não sei bem se o teu presidente não estará aser paternalista.Referes-te ao facto da minha vida pessoal se ter desfeito?Para ser franco, sim.Não te preocupes. Fiz-lhe a mesma pergunta, mas ele já me tinhadestinado para o negócio da fábrica, em Buckly, muito antes de saber deDeborah.Claro. Realmente foi uma pergunta parva. Sir David Swinfield nãochegaria onde chegou por ter um coração mole. Quando é que partes?O mais depressa possível. Mas ainda há uma série de coisas a resolverantes de ir. Tenho uma reunião marcada para amanhã de manhã com opessoal financeiro. Para organizar um programa de reinvestimento. Essetipo de coisa.Onde é que tencionas viver quando fores para lá? Pareceu-me ouvir-tecontar que os filhos do McTaggart venderam as casas todas.É verdade, tens razão. Mas isso não tem grande importância. Se calhar,fico numa pensão, ou alugo uma casa. Nunca se sabe, posso até ir morarpara uma cabana de telhado de turfa com uma moçoila de cabelos negros.Neil riu-se. Olhou de relance para o relógio, ajeitou o seu pesoconsiderável na poltrona e bocejou com gosto, passando os dedos pelocabelo.Bem, só me resta desejar-te a melhor das sortes, meu caro.Basta um bom pontapé no começo para a coisa voltar a andar. Neilsorriu.Nesse caso, é melhor comprares umas botas de futebol decentes, poisvais precisar delas...Ficou-se por ali, pois tinham tocado à campainha.Neil exclamou:Oh, raios. Pousou o copo e levantou-se. Deve ser o velho maçador.Mas antes de ter tempo de ir à porta, ouviu a porta da cozinha abrir-see os passos rápidos de Janey soarem pelo corredor fora. A seguir, a suavoz:Ora viva. Como está? Muito gosto em vê-lo. Parecia genuinamenteencantada e Sam pensou, não pela primeira vez, que a amiga era umapessoa maravilhosamente gentil.Faça o favor de entrar. Murmúrios de uma voz masculina. Oh, chocolates.Muito obrigada. Terei de os esconder das crianças. Veio a pé desde ometro ou conseguiu arranjar táxi? Dê-me o seu sobretudo, para opendurar. Neil está lá dentro...A porta abriu-se. Naquela altura, os dois homens já se tinham posto depé c Ncil adiantou se para cumprimentar o seu comvidado, conduzido atéà sala pela dona da casa.-Viva..._Neil. Caramba, como é bom vê-lo! Já lá vai muito tempo. Foi muitagentileza sua receber-me para jantar.De modo algum.Janey observou:E olha o que ele me trouxe. Mudara para umas calças de veludo pretas e

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uma blusa de cetim branca, mas ainda não se livrara do seu avental decozinheira às riscas vermelhas e brancas. Mostrou uma modesta caixa dechocolates de menta After Eight. Chocolates divinais.É só uma lembrança. Estou a ver se me lembro há quantos anosnão vos vejo. Quando é que foi a última vez? Um almoço com os seuspais, Janey. Realmente já faz muito tempo.Sam, de pé e de costas voltadas para a lareira, mirou o recém-chegado.Viu um homem bem entrado na casa dos sessenta, mas com o porte e osmaneirismos de um jovem vivaço de quarenta anos antes. Era provável quetivesse sido um indivíduo atraente, ao jeito de David Niven, masnaquela altura da sua vida as feições haviam perdido a firmeza, tinhaas maçãs do rosto raiadas de veias finas, e o bigode, bem aparado,manchado por toda uma vida de tabaco, tal como os dedos. O cabelo erabranco, a enfraquecer, porém usava-o até ao colarinho. Tinha os olhosbrilhantes, num azul muito claro, e o rosto e as mãos profundamentebronzeados, já com manchas prenunciadoras da idade. Vestia calças deflanela cinzentas, camisa às riscas azuis e brancas, um blazer azulescuro,com botões em metal dourado, e calçava sapatos de camurçacastanhos. Do colarinho alto e hirto pendia uma extravagante gravata deseda com vistosas riscas vermelhas, amarelas e verde-pavão. O relógiode pulso era em ouro, assim como os botões de punho. Saltava à vistaque tivera um cuidado especial com a sua aparência, tresandando a EauSauvage.É verdade, muito tempo concordou Janey. Devem ter passado uns seteanos. Ainda eles moravam no Wiltshire. Agora, permita-me que proceda àsapresentações. Este é Sam Howard, que veiopassar uns dias connosco. E, Sam, este é Hughie McLellan.Como está?Prazer em conhecê-lo. Apertaram as mãos.Sam e Neil são amigos há muitos anos, desde o tempo de estudantes.Nada como um velho amigo. Santo Deus, o trânsito em Londres está umpavor. Nunca vi nada tão complicado. Levei um quarto de hora a apanharum táxi.Onde é que ficou instalado? perguntou Neil.Oh, no meu clube, evidentemente, mas já não é o que era. Dei umagorjeta ao porteiro, mas mais valia ter poupado a moeda. E o incómodo.89Deixe-me arranjar-lhe uma bebida, Hughie. A visita ficou nitidamentemais animada.Boa ideia. Olhou de relance para a mesa onde estavam as garrafas e oscopos. Gim com água tónica, se não se importa. - Apalpou os bolsos. Dámelicença que fume, Janey?Claro, esteja à vontade. Deve haver por aí um cinzeiro. Tentou ver seencontrava algum, viu um em cima da sua secretáriaesvaziou os clipes que tinha dentro e pousou-o sobre a mesinha ao pé dosofá.Raios, hoje em dia ninguém fuma. Nova Iorque é um pesadeloMal uma pessoa se descuida, aparece um tipo que lhe dá um tiro.Tirou um cigarro da sua cigarreira de prata e acendeu-o com o seuisqueiro de ouro. Soltou uma baforada de fumo e pareceu ficarimediatamente muito mais descontraído, estendendo depois a mão parapegar no copo que Neil lhe estendia. Bem-haja, meu caro. Aos bonstempos.Queres beber alguma coisa, Janey?Tenho a minha bebida de cozinheira na cozinha. Uma taça de vinho. Apropósito, Neil, não te importas de lá ir abrir uma garrafa para ojantar?Com certeza. Desculpa. Já o devia ter feito. Hughie, dá-me licença porum instante? Sente-se, esteja à vontade. Sam faz-lhe companhia...Depois dos dois saírem e fecharem a porta, Hughie fez como lhe tinhamdito. Com o copo e o cinzeiro convenientemente à mão, instalou-se nosofá da esquina, apoiando um dos braços nas costas do mesmo.

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Casa encantadora esta. Nunca tinha cá estado. Na última vez em que cávim, ainda moravam em Fulham. Conheço Janey desde criança. Os pais sãovelhos amigos meus.Ela contou-me. Vive em Barbados, suponho.É verdade, tenho uma casa em Speighstown. De vez em quando venho atéLondres, só para não perder o contacto com as coisas, falar com o meucorretor, cortar o cabelo e ir ao meu alfaiate. O pior é que os amigosestão a desaparecer. Sempre que cá chego, há mais um que bateu asbotas. Uma tristeza, realmente. Enfim, estamos todos a ir para velhos.Apagou a ponta do cigarro, tomou novo gole do seu gim tónico e pousouum olhar especulativo em Sam. Está de férias?Por assim dizer. Só por alguns dias.Qual é o seu tipo de trabalho?Lanifícios. Logo a seguir, como não tinha vontade de falar de sipróprio, insistiu: Há quanto tempo vive em Barbados?Cerca de trinta anos. Dirigi o Beach Club durante quinze deles, masdesisti daquilo antes de me tornar um alcoólico inveterado. Antesdisso, vivia numa propriedade na Escócia. Foi-me doada por um paiparcimonioso que não tencionava pagar direitos de transmissão por suamorte.90Sam sentiu-se vagamente interessado.- Que tipo de propriedade? perguntou.- Oh, de tamanho razoável. Quintas, terras, esse tipo de coisa. Um ,casarão vitoriano. Caça, boa pesca.Vivia lá permanentemente?- Tentei, meu caro, mas os invernos naquela latitude são de respeito.para apreciar aquele tipo de vida ao máximo é preciso dispor de umpouco de apoio. Para os nossos avós estava tudo muito certo, poistinham criados para tudo o que era serviço, cozinheiros e capatazes comsalários inacreditavelmente baixos. Quando eu fui para lá, só aquecer amaldita casa custava um dinheirão. O que não quer dizer... ergueu umasobrancelha e esboçou um sorriso manhoso ... que não tenhamos passadoum bom bocado. A minha primeira mulher tinha a mania de receber e faziacom que Corrydale estivesse sempre a abarrotar de hóspedes. Eucostumava dizer que ela tinha hóspedes do mesmo modo que os outrostinham ratos. Comida para um exército e bebida para um exército debêbados. Dias memoráveis. Enquanto falava, recordando temposaparentemente inesquecíveis, Hughie ia acariciando a sua gravata deseda, fazendo-a deslizar entre os dedos. Claro que não podiam durarpara sempre. Foi então que Elaine fugiu com um negociante deutilidades, e depois disso, manter as coisas como estavam não pareciafazer grande sentido. Além de que metade do pessoal pusera-se a milhas,e o gerente do banco começara a emitir ruídos desagradáveis...Sam escutava tudo aquilo com um misto de irritação e compaixão. Aliestava um indivíduo a quem tinham entregue um tesouro em bandeja deprata, o qual depois desbaratara. Era difícil sentir pena dele, pois abravura de Hughie transformava-o numa personagem lamentável.portanto, vendi tudo e ponto final. Mudei-me para Barbados. A melhorcoisa que já fiz na vida.Vendeu tudo, assim, sem mais nem menos? O lote inteiro?Bem, não exactamente. A propriedade foi vendida por lotes. A quinta foicomprada pelo inquilino da altura, e uma das duas casinhas ficou paraos velhos inquilinos fiéis que tinham estado a viver nela. O querestou, o casarão, estábulos, terra, foi arrematado por uma cadeianacional de hotéis rurais. Sabe como é. Peixe à discrição epossibilidade de caçar faisões e tetrazes.Hughie acabou com o resto de gim tónico que tinha no copo e dePOISficou a olhar, pensativamente, para o copo vazio.Deseja mais uma dose? Hughie mostrou-se animado.Excelente ideia. Pouca água tónica.Sam tirou-lhe o copo da mão e Hughie puxou de mais um cigarro. Quanto

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tempo vai ficar em Londres? perguntou-lhe, enquanto Preparava a bebida.91O menos tempo possível. Cheguei há cerca de quatro dias. Parto paraNice na quarta-feira. Tenho uma boa amiga lá, Maudie Peabody. talvez aconheça. Não? Oh, obrigado, meu caro. Foi muito amável. Maudie é umavelha conhecida dos meus primeiros tempos em Barbados. Americana. Podrede rica. Tem uma villa divina nas colinas sobranceiras a Cannes. Passoo Natal com ela, assim como a passagem do ano, e depois volto paraBarbados.Sam voltou a instalar-se no seu lugar junto da lareira.Parece ter a sua vida muito bem organizada.Oh, não tenho passado mal, realmente. Faz-se o que se pode. Agora, quevivo sozinho, sinto-me um pouco solitário. Não fui muito bem sucedidonos casamentos. Além disso, são danadamente caros. Todas as minhas exmulhereslevaram o seu quinhão. O que restou dele!Tem filhos?Não. Nada de crianças. Tive papeira quando andava em Eton e fiqueiestéril. Uma pena, de facto. Se não fosse isso, teria tido filhos quecuidassem de mim na velhice. Para dizer a verdade, pouca família meresta. Tenho o meu pai, mas com esse mal falo. Ficou danado quandovendi o que me deixou, porém nada pôde fazer contra isso. Também tenhoum primo, um tipo apagado. Vive no Hampshire. Tentei telefonar-lhe, masnão consegui.Onde é que o seu pai vive?Muito confortável e solitário numa mansão para os lados de Albert Hall.Ainda não entrei em contacto com ele. Vou adiando. Se calhar, passo porlá quando voltar de França. Visita de cortesia. Nunca temos muito deque falar.Sam ficou aliviado quando Neil e Janey voltaram de novo para juntodeles. A dona da casa terminara, ao que parecia, o seu jantar e tirarao avental. Tinha um ar radiante e, ao entrar na sala, aproximou-se deSam, pôs-lhe os braços à volta do pescoço e deu-lhe um beijorepenicado.Neil falou-me do novo emprego. Acho óptimo. Não te importas que eusaiba, pois não? Acho fantástico, um verdadeiro desafio. Estoufrancamente satisfeita por ti. Não poderias ter arranjado nada maisexcitante para fazer.Sam reparou que Neil o fitava, um tudo nada embaraçado.Não ficas aborrecido por eu lhe ter contado, pois não?Claro que não. Deu um abraço a Janey. Poupaste-me o trabalho.Que se passa? quis saber Hughie, de ouvido alerta. Poderei saber do quese trata?Janey voltou-se para ele.É o novo emprego de Sam. Soube hoje. Vai mesmo para o Norte da Escóciapôr uma velha fábrica de lanifícios a funcionar novamente.92Não me diga! Pela primeira vez, a atenção de Hughie eradistraída por algo ou alguém não relacionado com a sua própria pessoa.Escócia, hcin? Que zona? " Sam disse-lhe.-Buckly. Sutherland.Hughie ficou de boca aberta.por amor de Deus! Buckly. Não me diga que tem a ver comaMcTaggart?Conhece-os.-Meu caro, como a palma da minha mão. Buckly fica apenas a 5quilómetros de Corrydale. Os meus fatos de caça eram todos feitos emtweed de Buckly. E a minha avó costumava cozer-me as meias de caça comlinha McTaggart. Velha firma de família. Foi fundada pelo menos hácento e cinquenta anos. Que raio aconteceu?O velho McTaggart morreu. Os filhos não estavam interessados. Acabouse-lhes o dinheiro e uma cheia levou o resto por água abaixo.Que história trágica. É como saber da morte de um velho amigo.

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E o meu caro vai tomar conta daquilo! Quando é que segue para o Norte?Breve.Tem onde ficar?Não. Todas as propriedades domésticas da fábrica foram vendidas.Acamparei numa pensão e depois procurarei algo para comprar.Interessante comentou Hughie.Olharam todos para ele, que não entrou em pormenores, concentrando-seapenas no acto de apagar o seu cigarro. A certa altura, Janey não seconteve:Porque é interessante?Porque eu tenho uma casa.E onde é que tem a casa?Não em Corrydale, mas em Creagan. Ainda mais perto de Buckly.Porque tem uma casa em Creagan?Fazia de escritório da velha propriedade e era nela que vivia a famíliado feitor. Bastante ampla, sólida, vitoriana. Com quintal. Mas a minhaavó achou que não dava jeito no dia-a-dia porque ficava demasiado longede Corrydale, de modo que instalou o feitor e a respectiva família emacomodações mais adequadas, dentro do perímetro do parque. Deixou avelha casa para mim. E a um primo meu. Somos co-proprietários.Neil franziu o sobrolho.Então quem é que lá vive neste momento?Tem estado vazia. Esteve alugada durante os últimos vinte anos a umcasal de velhotes de apelido Cochrane, mas um morreu e o outro foiviver com a família. Para ser sincero, uma das razões que me trouxe93a Londres foi a ideia de a colocar à venda. A minha parte fazia-mejeito. Tentei ligar a Oscar, que é o outro proprietário, para falarsobre o assunto, mas não consegui encontrá-lo. Se calhar morreu. Detédio? sem dúvida.Janey ignorou aquele pequeno acesso de malícia e perguntou:Ele estaria disposto a vender a sua metade da casa?Não posso imaginar razão para não o fazer. Não lhe serve de nada. Naverdade, tenho uma reunião marcada na Hurst & Fieldrnore amanhã demanhã para os sondar, ver se querem encarregar-se da venda.Mas o seu primo...Oh, quando voltar de França resolvo a questão com ele.Então, o que estava a dizer, Hughie?O vosso amigo Sam precisa de uma casa e eu tenho uma para vender. Souobrigado a reconhecer que lhe vem mesmo a calhar. Perto do trabalho,das lojas e de um campo de golfe onde há campeonatos. Nenhum homempoderia pedir mais. Virou a cabeça e olhou para Neil. Não custa nada iraté lá dar uma vista de olhos. Nunca se sabe se não chegamos a umacordo. Uma negociação particular viria mesmo a calhar.Sam, cauteloso, inquiriu:Quanto é que está a pedir?Bem, não se procedeu a nenhuma avaliação por razões óbvias. Mas...Hughie baixou os olhos, sacudiu um pouco de cinza do joelho das calças... cento e cinquenta mil?A dividir entre si e o seu primo?Exactamente. Setenta e cinco para cada.Quando é que tenciona entrar em contacto com ele?Não faço ideia, meu caro. Ele tem-se mantido afastado. Pode estar emqualquer lado. Mas não há razão para não ir dar uma vista de olhos àcasa.Há lá algum agente ou pessoa com a qual possa falar?Não é preciso. Hughie ergueu-se de lado e apalpou o bolso das calças.Tirou de dentro dele uma chave grande e antiquada, presa a uma etiquetavermelha onde estava escrito em letras maiúsculas, CASA DA QUINTA.Exibiu-a no ar como se fosse um trofeu.Janey ficou espantada.Anda sempre com ela?

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Tolinha, claro que não. Já vos disse que amanhã tencionava ir à Hurst &Fieldrnore, onde a deixaria.Sam pegou na chave.Como é que comunico consigo?Dê-me um cartão seu, meu caro. Pode mandar-me um fax para Barbados. Efica com o número do telefone de Maudie, no Sul de França, para ondepoderá ligar se tomar uma decisão rápida.Claro que irei ver a casa, e obrigado. Mas, certamente, que nada poderáser oficializado sem a aprovação do seu primo.94Claro que não. Nada de trapaças. Tudo como deve ser. Ainda assim, umaproposta viável. Verificou-se nova pausa. A certa altura Janeyobservou:Foi uma coincidência extraordinária. Tenho a certeza de que eUm sinal maravilhoso. De que tudo vai correr bem. Não será bomcelebrarmos? Sam ofereceu-nos uma garrafa de champanhe. não devemosabri-la e fazer uma saúde a Sam, a McTaggart e a dias felizes QUetalvez passe na nova casa?Esplêndida ideia! concordou Hughie. Mas se não se importam eu preferiaantes outro gim tónico.CarrieNessa noite, Carrie sonhou com a Áustria e com Oberbeuren. No sonho, océu era de um azul intenso e a neve tão resplandecente que cada flocobrilhava como uma jóia. Ela fazia esqui numa pista vazia. Ia deslizandoatravés dos campos brancos que se espraiavam a perder de vista de ambosos lados. Havia pinheiros negros, a pista estendia-se pelo meio deles eestava sozinha. De repente, ao emergir de entre os pinheiros,apercebeu-se de que não estava só, pois avistou, ao longe, outroesquiador solitário, uma silhueta negra, trepidante, que descia avertente ziguezagueando na neve. Sabia que o esquiador era Andreas equeria que este soubesse da sua presença, para que esperasse por si.Andreas. Pára, espera por mim. Esquiemos juntos por aí abaixo. Podiaouvir a sua voz, arrastada pelo vento, assim como o som que os seusesquis faziam na superfície muito batida da pista. Mas Andreasdesaparecera. Foi então que, ao passar uma elevação de terreno,percebeu que ele ouvira o seu chamado e estava à sua espera, apoiadoaos seus bastões, com a cabeça levantada e os óculos puxados para oalto. Sorria. Os dentes brancos sobressaíam no rosto intensamentebronzeado. Talvez tivesse querido apenas brincar. Andreas. Deteve-se aoseu lado e só então é que viu que não era Andreas, mas outro homemalto, de sorriso cruel e olhos duros como seixos cinzentos. O céudeixara de ser azul, apresentava-se agora escuro e tempestuoso, e elatinha medo...A sensação de medo acordou-a, levando-a a abrir imediatamente os olhosno meio da escuridão. Ouvia as batidas do coração. Desorientada,divisou, por entre uma abertura entre os reposteiros, as luzes acesasna rua. Não estava na Áustria nem em Oberbeuren, mas sim em Londres.Não no seu apartamento a cheirar a pinho, com a varanda do lado de ládas janelas, mas sim em Puney, no quarto que os amigos Sara e DavidLumley, lhe tinham dispensado. Não havia céus gelados e cheios deestrelas, apenas o gotejar de chuva cinzenta. O sonho foi-sedesvanecendo- Andreas, que nunca fora verdadeiramente seu,desaparecera. Tudo terminara.99Estendeu a mão e apalpou o tampo da mesinha-de-cabeceira, à procura doseu relógio de pulso. Eram seis da manhã de um dia escuro de princípiosde Dezembro.A cama vazia era desconsoladora. Deu consigo a sentir uma necessidadefísica desesperada de Andreas; desejaria tê-lo ali, sentir-lhe o corpomacio e musculoso contra o seu. Voltar para onde ambos deveriam estar,na enorme cama trabalhada sob as vigas inclinadas; amantes, abraçadosum ao outro em pleno êxtase. Virou-se de lado, aconchegando-se a si

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mesma para ficar mais confortável e aquecida. Tudo ia correr bem. Eracomo uma doença, acabaria por passar. Fechou Os olhos, enterrou o rostona almofada e voltou a adormecer.Às nove da manhã despertou novamente, vendo que a enevoada manhã deInverno começara a clarear. Naquela altura, já David e Sara deviam terido para o trabalho. Sabia que ficara sozinha em casa. Já ali seencontrava há uma semana e ainda nada fizera; não vira ninguém nem derao menor passo para arranjar novo emprego. Sara e David, infinitamentecompreensivos, tinham-na deixado à vontade, e a única consolação queCarrie tivera resumira-se a uma longa e reconfortante conversa de quaseuma hora com o pai, que vivia na Cornualha. «Entrarás em contacto com atua mãe, não é verdade?» perguntara-lhe ele. Carrie prometera fazê-lo,mas continuara a arranjar boas desculpas para adiar a situação. Porém,uma semana era demasiado tempo; tinha consciência de que não podiacontinuar a adiar indefinidamente. Naquele dia, naquela própria manhã,telefonaria a Dodie. Surpresa, diria com ar jovial. Estou de volta.Aqui. Em Londres.Haveria espanto, explicações, desculpas e depois combinariam o encontromútuo. Não temia essa situação, mas também não lhe apetecia muitovoltar a ver a mãe, nem sua irmã Nicola. Sabia que iria encontrarmuitas novidades e nenhuma delas boa. Apesar de tudo, os laços desangue tinham muita força, quanto mais depressa resolvesse a situação,melhor.Levantou-se da cama, enfiou o robe e desceu ao piso de baixo. A cozinhaestava arrumada e brilhava de asseio. Sara era uma dona de casaexemplar, apesar de trabalhar a tempo inteiro. Arranjara mesmo tempopara escrever um bilhete a Carrie, deixando-o encostado à plantaenvasada colocada no meio da mesa.Bons dias. Tens bacon e sumo de laranja no frigorífico. David tem umareunião até tarde, mas eu estarei em casa à hora do costume. Se foresaté Safeway, agradecia que comprasses algo vegetariano para o jantar.Couve-flor serve. E umas saquetas de chá Lapsang Souchong. Beijinhos.Sara.Carrie pôs a chaleira ao lume, fez café. meteu uma fatia de pão natorradeira. Bebeu o café, mas não comeu a torrada. O telefone estava emcima100da cómoda a olhar para si como um peso na consciência. Já era um quartopara as dez quando acabou de beber a sua terceira chávena de Café.Certamente que até mesmo Dodie Sutton já devia estar levantada earranjada àquela hora. A chuva tamborilava contra a janela. Ouviu o tomde chamada. Aguardou. Está?Mãe.-Quem fala?Carrie.Carrie? Estás a ligar da Áustria?Não, de Londres. Estou cá. De volta a casa.Na Ranfurly Road?Não. Já desisti da casa da Ranfurly Road há três anos. Três meses deaviso de ambas as partes. Estou sem sítio para morar.Então onde é que estás?Em Putney. Com uns amigos. Mesmo do outro lado do rio.Há quanto tempo voltaste?Há cerca de uma semana. Mas tenho tido muito que fazer, caso contráriojá teria telefonado.Uma semana? Estás de férias? Dodie falava em tom de lamúria, como se afilha a tivesse enganado de alguma maneira.Não, não estou de férias. Deixei o meu emprego. Achei que já lá estavahá tempo de mais.Sempre pensei que ficavas lá para sempre. Já não te vemos há anos. Queaconteceu?Não aconteceu nada. Apenas me deu na veneta.

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Tencionas arranjar outro emprego?Tem de ser. Olha, mãe, pensei em ir ver-te. Hoje estás em casa?Só de manhã. À tarde fiquei de ir jogar xadrez com a velha LeilaMaxwell. Está com cataratas, coitada, e mal vê as cartas, mas é omínimo que posso fazer.Então, que tal ao almoço? insistiu Carrie.Aqui em casa?Se preferires, vamos comer fora.Não. Prepararei qualquer coisa. Sopa e patê ou algo parecido. Achasbem?Perfeito. Como vai Nicola?Oh, minha querida, nem queiras saber os dramas. Carrie sobressaltou-se.Dramas?Eu acho que ela não está boa da cabeça. Depois te conto. Fez-se umapausa e, de repente, Dodie, nitidamente como quem acaba de ter umaideia brilhante, acrescentou:Se calhar o teu regresso a casa até vem mesmo a calhar. Ela vem101cá almoçar, mas talvez possas chegar um pouco mais cedo paraconversarmos só as duas sobre o assunto.Carrie começou a achar que, afinal, não devia era ter telefonado.E Lucy, como vai? perguntou.Lucy também está cá. Esta manhã não teve aulas, algo relacionado com asubstituição da caldeira. Está no seu quarto a estudar para não sei queexame. Passa a maior parte do tempo lá metida, por isso não nosincomodará.Gostaria de a ver.Oh, claro que a verás. A que horas cá estás?Onze e meia está bem? Se calhar vou a pé.Não tens carro?Tenho, mas o exercício não me fará nada mal.O dia está horrível.Sobreviverei. Então até logo, mãe.Fico à tua espera.Dodie desligou. Instantes depois, Carrie pousou o auscultador, sentousea olhá-lo durante algum tempo e depois desatou a rir. Não de alegriamas de amargura, pois a recepção fria e ambígua da mãe fora exactamentea que Carrie temera e esperara.Fora sempre assim. Uma falta de comunicação, talvez mesmo umaantipatia, com a qual Carrie se habituara a viver e aprendera aaceitar, ainda antes de entrar na adolescência. Estar com outrasfamílias e ver como se relacionavam entre si só serviu para fortalecera sua percepção, e não fora a presença do pai, talvez tivesse crescidosem saber o que era amar e ser amada.Nunca compreendera muito bem o que levara Jeffrey Sutton a casar comDodie. Talvez por ela ser bonita, namoradeira e insinuante, e em jovemter tido a capacidade de se tornar exactamente no tipo de companheiraque qualquer potencial marido desejaria para a sua vida. Para vir adescobrir, mais tarde, que tudo não passara de um acto calculado.Dodie, por seu lado, viu em Jeffrey não só um homem atraente e másculo,como também alguém que lhe daria segurança, já que o seu trabalho comocorretor na City era sólido, a sua carreira evoluía firmemente, e osseus colegas desfrutavam do nível social que Dodie sempre desejaraalcançar.Nicola fora a primeira a nascer, seguida, cinco anos depois, de Carrie.As irmãs eram de tal maneira diferentes e tinham tão pouco em comum quecada uma parecia pertencer a um dos progenitores. Como se Dodie tivesseconcebido Nicola sem a ajuda de Jeffrey, e este tivesse sido pai deCarrie por meio de algum método miraculosamente individual.Fora seu pai, seu amigo, seu aliado. . o elemento mais forte de umaunião que só poderia ser classificada de um casamento desastroso.102

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Quem levava as crianças à escola, enquanto a mãe ficava na cama a bebehrricar chá da China e a ler novelas, era Jeffrey. Carrie lembrava-se deele voltar do trabalho, do som da sua chave na porta, e de correrescada abaixo para o receber. Dodie ainda não voltara do seu jogo debridge, e o consorte era obrigado a desenvencilhar-se sozinho nacozinha. Sujo e exausto depois de um dia de trabalho duro, deixava cairpesadamente a pasta, despia o sobretudo e subia para a ajudar nostrabalhos de casa ou para a ouvir dedilhar a sua lição de piano. EraJeffrey quem trazia alegria à família, lembrando-se sempreespontaneamente de um piquenique, um passeio, umas férias. Ele é quelevara Carrie a esquiar pela primeira vez a Vale d'Isere, tinha ela dezanos. Tinham ficado instalados numa villa alugada e participado numaanimada festa juntamente com outras duas famílias. Fora uma dasmelhores festas que Carrie tivera, além de o início de uma paixão paratoda a vida. Nicola recusara o convite, em parte porque não eraminimamente atlética, mas também porque gostava de ficar sozinha comDodie, de modo a poderem ir as duas às compras, em busca de vestidosnovos que Nicola pudesse usar em todas as festas de Natal para as quaisfora convidada e não tencionava perder.As paixões de Nicola resumiam-se a roupas, rapazes e festas, pelo queninguém se admirou de que, aos vinte e um anos, ficasse noiva e depoiscasasse. O jovem eleito chamava-se Miles Wesley e era tudo o que Dodiesonhara para a filha mais velha. O rapaz tinha uma avó chamada LadyBurfield; os pais possuíam uma invejável propriedade no Hampshire; foraeducado em Harrow e tinha um respeitável emprego na Hurst & Fieldmore,uma firma antiga e respeitável, com sucursais em todo o país. Milesestava na sede, na Davies Street, aprendendo os meandros da venda degrandes áreas destinadas a desporto, caça e pesca. Nenhuma mãe poderiater desejado melhor. Dodie passou um agradável período a planear umcasamento que faria a inveja de todas as suas amigas e seria tema deconversa para os anos seguintes.Carrie não foi dama de honor nesse casamento porque se recusou a tal.Aos quinze anos era alta, esguia e dedicava-se afincadamente aos seusestudos porque queria, acima de tudo, entrar na universidade. A suaaparência geral fazia o desespero da mãe, que abominava os jeansgastos, as botas pesadas e as T-shirts largueironas tão ao gosto deCarrie, e por pouco não desmaiou quando certa vez a viu chegar com umcasaco de cabedal, comprado na loja Oxfam, que não parecia mais do queum carneiro morto.Quando a palavra «dama de honor» foi mencionada, Carrie clarificouimediatamente a sua posição.Disse:Não.Houve discussões terríveis." Como podes ser tão egoísta? quis saber Dodie.103Sem a menor dificuldade.É a tua única irmã. Bem podias pensar nela.Olha, mãe, não o faria nem pela rainha. Sou demasiado alta para ir dedama de honor. Não pretendo percorrer nenhuma coxia de igreja parecendoum enorme merengue de tafetá cor-de-rosa. Uma perfeita idiota!Sabes perfeitamente que não será tafetá cor-de-rosa. Nicola e euescolhemos um chiffon rosa-forte.Ainda pior.Só pensas em ti.Desta vez, vou fazer precisamente isso. Nicola não se importará. Temmontes de amigas bonitas, ansiosas por ser damas de honor. De qualquermodo Carrie bocejou , não sou muito a favor dos casamentos pela Igreja.De vez em quando adorava enfurecer um pouco a mãe. Porque é que elesnão vão só ao registo? Pensa no dinheiro que pouparias. Por outro lado,isso significaria a ausência de presentes de casamento e chequesapetitosos.

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Que observação mais indelicada.Estou só a ser prática.Dodie respirara fundo e mantivera a voz baixa e branda:Se as pessoas desejarem dar a Nicola um cheque como presente decasamento, sei que será muito bem recebido. Afinal de contas, elesterão de mobilar o apartamento novo. Frigorífico, candeeiros, carpetes.Sabes que tudo isso custa muito dinheiro.O melhor era meterem toda essa massa numa conta especial e depoisutilizarem-na para pagar o divórcio...Dodie saíra da sala e atirara com a porta. A questão da dama de honornunca mais foi mencionada.Carrie foi a primeira pessoa em quem Jeffrey confiou. Tinha entãodezanove anos e andava em Oxford a tirar Literatura Inglesa eFilosofia, adorando cada momento da sua nova vida. Certo domingo demanhã, ele telefonou-lhe de Londres.Tens alguma coisa de especial para fazer hoje? perguntou-lhe.Nada de especial.Pensei em desafiar-te para almoçarmos juntos.Que bom.A tua mãe está com Nicola. Lucy apareceu com febre e a avó foi ajudar.Apareço aí por volta do meio-dia.Carrie ficou encantada.Cá estarei.Estava um dia de Outubro dourado e Jeffrey, depois de ir buscar Carrie,levara-a a almoçar ao Manoir aux Quatre-Saisons, nos arredores. Fora ummimo dispendioso. Terminado o almoço, deram um passeio pelo jardim esentaram-se a desfrutar do sol benigno daqueles últimos dias104 Uquentes de Outono; as aves cantavam e as folhas caíam na relva comomoedas de cobre.Foi então que Jeffrey lhe falou de Serena, de a ter conhecido, deapaixonar-se por ela.já a conheço há cinco anos. Tem idade para ser minha filha, mas é tudopara mim, não creio que possa continuar a viver sem ela. O Seu paitinha uma amante. Outra mulher. E Carrie nunca desconfiara minimamente.Era difícil saber o que dizer.Estás chocada, Carrie?Claro que não, pai. Apenas fui apanhada desprevenida.Vou deixar-vos a todas para ir viver com ela.Carrie olhara para o pai e vira a dor nos seus olhos escuros. É umadecisão terrível.Não, não é. Só quero que me contes o que está a acontecer. Por mim, jáme teria ido embora e levado Serena comigo. Noentanto, não fui capaz de fazê-lo antes de achar que tanto tu comoNicola estavam... lançadas na vida, creio. Adultas. Tinha de ficarenquanto ainda precisasses de mim, enquanto ainda pudesse fazer-tefalta. Agora é diferente. Tenho a certeza absoluta de que és capaz decaminhar pelos teus próprios pés. E Nicola é uma mulher casada e mãe deuma menina. Só espero que seja feliz. Miles sempre me pareceu um tipoàs direitas, mesmo apesar de um pouco mole. Estou convencido de queNicola o domina, mas isso é lá com ele.Pobre homem.Pensou no próprio casamento do pai com Dodie.Tens sido muito infeliz durante todos estes anos? perguntou-lhe.Jeffrey abanou a cabeça.Não. Houve momentos de grande felicidade, sobretudo quando estavacontigo. Mas estou farto de manter as aparências e de me esforçarsempre pelo melhor. O esforço de tentar arranjar dinheiro suficiente,de continuar a lutar e de me matar a trabalhar deixou-me exausto.Preciso de uma vida diferente, de amor, afecto, companheirismo ealegria, e Dodie é incapaz de me dar alguma destas coisas. Comoprovavelmente te deves ter dado conta, já não dormimos juntos há anos.

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Quero uma casa onde os amigos possam aparecer, sentarem-se à mesada cozinha e partilharem espaguete e uma garrafa de vinho. Quero entrarem casa ao fim do dia e ouvir alguém chamar o meu nome. De manhã, querobarbear-me e sentir o cheiro dos ovos com bacon a vir da cozinha e docafé a coar. E não se trata apenas de andropausa, é apenas umanecessidade profunda que tem estado a tremeluzir há anos. Eu não iadizer que era andropausa. Eu sei que não.Outra família saíra do hotel para o sol cálido da tarde. Um casal comum filho pequeno. Este encontrara um malho de críquet e uma bola, demodo que tentava acertar nesta com o dito. Depois de falhar105três vezes, o pai foi colocar-se atrás do filho e, envolvendo as mãosda criança com as suas, ensinou-lhe como se fazia. Carrie observou:Tu fizeste tudo o que podias por nós. Nenhum homem poderia ter feitomelhor. Se é essa a tua vontade, não deves hesitar.E a tua mãe?Ficará arrasada, evidentemente, e com o orgulho pelas ruas da amargura,mas estou convencida de que nunca investiu muito no vosso casamento e,talvez, quem sabe, acabe por se tornar uma pessoa melhor ficandosozinha. Carrie suspirou. Tens de ser realista, pai. Ela não deixará dearranjar um bom advogado de divórcio e deixar-te nas lonas.Eu sei. É um preço que terei de pagar.E quanto ao teu emprego?Largá-lo-ei.Não te fará diferença?Não, já cheguei mais alto que alguma vez desejei. Além disso, estoufarto da lufa-lufa, da ansiedade e de ter de vencer constantemente aconcorrência para me manter à frente. Se calhar, nunca fui um animalambicioso. E agora tornei-me egoísta. Achas que é errado querer serfeliz na minha idade?Sabes muito bem o que penso.Durante algum tempo não proferiram palavra, deixaram-se simplesmenteali ficar sentados, numa harmonia silenciosa. A certa altura, Jeffreyvoltou a falar:Agora conversemos sobre ti. Há um fideicomisso em teu nome, fi-loquando nasceste. Nicola também, mas a maior parte já se gastou naquelecasamento ridículo. A questão é que está parado no banco, a acumularalguns juros, é certo, mas talvez tenha chegado a altura de olevantares e o utilizares para comprar uma casa para ti. Em Londres ounoutro sítio qualquer. Investir na habitação é sempre bom. Gosto de teimaginar independente... Não é nenhuma fortuna, mas creio que chegarápara uma casa relativamente modesta. Que achas?Acho que a ideia me agrada. Carrie inclinou-se para a frente edepositou um beijo na face do pai. És um amor. Obrigada. Não nosperderemos de vista, pois não? Escrever-nos-emos, mandaremos faxes umao outro e telefonar-nos-emos, vás tu para onde fores. Manteremos ocontacto.Jeffrey sorriu e ficou com um ar menos tenso; tensão que ela sehabituara a ver-lhe nos últimos tempos. Saltava à vista que tiveramuito em que reflectir. Perguntou então:Se eu no próximo domingo vier ter contigo a Oxford e trouxer Serenacomigo, gostarias de a conhecer?Claro que gostaria, pai. Mas ela que não pemse que sou demasiadoimportante e que alguma vez me interporei entre vocês. Não quero ser106motivo para que Serena se sinta culpada ou com remorsos. A partir deagora, as velhas responsabilidades devem terminar e começa a tua novavida. Só espero que, desta vez, seja tudo felicidade.- E tu, minha querida? Que me dizes de ti? Tens algum amor natua vida?Dezenas - brincou ela. Não me faltam.Não virá por aí mais algum casamento pomposo?

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Nem pensar. Pelo menos nos próximos anos. Tenho muitas outras coisaspara fazer na vida. Ainda por cima, agora tenho de comprar uma casapara mim. Falámos sobre tantos planos e tantas questões...Não estejas demasiado optimista. Vêm aí tempos difíceis.Carrie pegou-lhe na mão e disse:Aliados, pai. Ombro a ombro.Jeffrey tinha razão. Foi uma experiência traumatizante, e durante muitotempo ecoaram sons de ressentimento e recriminação. No final do dia,porém, a maioria das pessoas teve de concordar que Dodie se saíra muitobem e lucrara o mais possível com uma situação lamentável. Tal comoCarrie previra, deixou Jeffrey com uma mão à frente e outra atrás,ficando com a casa da família em Campden Hill, o carro, a maior partedos bens terrenos de Jeffrey e quase todo o seu dinheiro. Este nadacontestou, mas também pouco mais teria conseguido alterar.Dodie, assim que soube que Carrie tinha comprado uma pequena casa comterraço na Ranfurly Road, pôs a casa de Campden Hill à venda, jurandodramaticamente que esta estava demasiado cheia de más recordações paraque pudesse lá viver. Obteve um bom preço por ela e mudou-se para umencantador apartamento antigo em Fulham, com vista para sul e paraPutney, no outro lado do rio, e com jardins privados que faziamfronteira com Hurlingham.«É o meu pequeno ninho solitário», dissera às amigas, em tomsimultaneamente melancólico e animado, e todos comentaram que estavamaravilhosa. Na verdade, sentia-se mais satisfeita que nunca com o seubrídege, os beberetes e a inesgotável panaceia das compras, de onderegressava cheia de sacos de marcas e caixas atafulhadas de papéisabsorventes e guloseimas. Começou a ir passar férias ao estrangeiro comamigas, fez viagens confortáveis de comboio a Paris e cruzeiros peloMediterrâneo em paquetes impecavelmente dirigidos, onde dispunha detodas as oportunidades para deslumbrar nalguma colecção de roupasrecentemente adquirida. Foi num desses cruzeiros que conheceu JohnnieStruthers, um coronel da aviação reformado e viúvo. O indivíduo, quetinha uma nítida paixoneta por Dodie, telefonava a convidá-la parajantar, sempre que ia a Londres.Dodie estava feliz como nunca lhe acontecera. Então, sete anos depoisdo próprio divórcio de Dodie. Nicola Wesley descobriu que o Pacato domarido andava a enganá-la com outra mulher, pelo que aproveitou107a oportunidade para se pôr ao largo de um casamento que já dera o quetinha a dar. Claro que foi ter com a mãe, instalando-se no seu lindo eespaçoso apartamento. O que teria sido muito divertido e animado, nãofora Nicola levar consigo Lucy, a filha de sete anos, o que fez com queDodie percebesse que os seus dias de tranquilidade tinham chegado aofim.O bule do café estava vazio e as borras no fundo da sua chávenaesfriaram. Carrie levantou-se, atirou a tosta não comida para o baldedo lixo, passou o bule por água e meteu a chávena e o pires na máquinade lavar. Subiu ao andar de cima, tomou um duche, lavou o cabelo curtoe vestiu-se. Ultimamente, não andava a preocupar-se muito com a suaimagem, ia para todo o lado com uns jeans velhos e sem maquilhagem, masnaquela manhã sabia que era tempo de ter um pouco de cuidado consigomesma, quanto mais não fosse para ganhar coragem.Escolheu, portanto, umas calças adelgaçantes cor de camelo, umacamisola de gola alta em caxemira, botas envernizadas, argolas de ouroe um fio, também de ouro, ao pescoço. Perfumou-se, inspeccionou a malaa tiracolo, em cabedal, tirou o casaco do guarda-roupa e desceu.As chaves da porta da frente estavam em cima da cómoda do vestíbulo,dentro de uma tacinha em metal, ao lado de uma jarra com jacintosbrancos. Na parede acima da cómoda havia um espelho alto. Enquantovestia o casaco e abotoava os botões, via a sua imagem reflectida nele.Deteve-se por momentos, mirando-se. Viu uma rapariga alta, magra, decabelo escuro... ou talvez, mais exactamente, uma mulher alta, magra e

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de cabelos escuros. Afinal de contas, estava prestes a completar ostrinta. O seu cabelo castanho-dourado brilhava, acabado de lavar, e umcaracol caía-lhe sobre a testa, como uma asa de pássaro. Os seus olhos,acentuados pela sombra e pelo rímel, eram grandes e escuros como café;quanto ao rosto ainda conservava a tonalidade bronzeada adquirida nasimensidões de neve onde o sol se reflectia. Estava com bom aspecto.Confiante. Ninguém de quem se tivesse pena.Acabou de abotoar os botões do casaco, em tecido canelado cinzentoescurodebruado a verde-floresta, que fora comprado em Viena no anoanterior. Andreas, que ia com ela, ajudara-a a escolher e depois fizeraquestão em pagá-lo. «Nunca mais deixarás de o usar», dissera-lhe, «eficarás sempre com um aspecto deslumbrante.»Naquele dia estava muito frio, nevava ao de leve, e, depois decomprarem o casaco, tinham andado pelas ruas de braço dado, acabandopor almoçar em grande estilo no Sacher.Não penses nisso.Pegou nas chaves, ligou o alarme e saiu de casa. Desceu a rua, depoisenveredou pela Putney High Street, percorrendo os passeios movimentadosem direcção ao rio. Ao atravessar a ponte, sentiu a friagem108de um vento que soprava do leste, esgueirando-se rio acima, vindo domar. Passada a ponte, pouco faltava para chegar a Farnham Court, oornamentado quarteirão eduardino de apartamentos onde Dodie tinha oseu. Subiu os degraus, passou as pesadas portas principais, meteu-se noelevador e carregou no botão. O elevador subiu até ao andar pretendidoonde parou de supetão. Carrie abriu as portas, que fizeram um ruídoenorme, atravessou o corredor e carregou na campainha.Dodie estivera à sua espera. Atendeu quase imediatamente, abrindo afechadura dupla e escancarando a porta.Carrie!Tinha o mesmo aspecto de sempre, nem mais velha, magra ou gorda.Pequena e com boa apresentação, cabelo escuro impecavelmente arranjado,com uma madeixa branca que era completamente natural e provocavainvejas. Envergava um fato saia-casaco de malha de lã, com a saia curtacomo se usava, e sapatos baixos decorados com fivelas quadradas emdourado. Uma mulherzinha bonita e fútil, aparentemente muito bem navida. A única coisa que denunciava a sua idade era a boca, que os anoshaviam moldado numa expressão de descontentamento permanente. Sempretinham dito a Carrie que os olhos eram o espelho da alma, porémdecidira, há muito tempo, que a boca de uma pessoa é que mostravaverdadeiramente o seu carácter.Entrou e Dodie fechou a porta cuidadosamente. Não haveria braçosabertos, abraços, exclamações de deleite maternal.Olá, mãe, como tens passado? perguntou, despindo o casaco. Estás comóptimo aspecto.Obrigada, querida. Tu também pareces muito bem. Tão bronzeada! Como setivesses acabado de chegar de umas férias a apanhar sol. Põe o teucasaco na cadeira. Queres café ou alguma outra bebida?Não, tomei o pequeno-almoço há pouco. Deram então um beijinho formal naface uma da outra, mal se tocando. Dodie tinha as bochechas macias eperfumadas. Só me levantei às nove.Levantar tarde da cama sabe bem. Anda...Virou-se e conduziu a filha até à sala de estar. Nesse instante, asnuvens daquele dia invernoso afastaram-se e, por um momento, a salaficou repleta de um sol de Inverno ofuscante. A divisão era agradável,tinha duas janelas largas voltadas para sul, com uma varanda no lado defora e, ao fundo, a paisagem com o rio. Logo a seguir, separada por umaporta dupla que ficava sempre aberta, estava a sala de jantar de Dodie.Carrie reparou na mesa de mogno e no lindo armário, tudo parte da suainfância, da casa de Campden Hill. Havia uma profusão de flores frescase o ar estava impregnado do perfume inebriante de lírios brancos.Onde está o pessoal? perguntou Carrie.

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Como já te disse, Lucy está no seu quarto e...Ela não é muito sociável, pois não?109Nem por isso. Gosta muito de lá estar. Tem a sua secretária, umcomputador e uma pequena televisão.Na lareira de mármore branco tremeluzia um pequeno aquecedor eléctricoa imitar os de carvão. Dodie sentou-se na sua poltrona habitual, delado. Estivera a ler o jornal quando Carrie tocara à porta, de modo quepegou nele com a mão de unhas delicadamente pintadas de cor-de-rosa,dobrou-o e pousou-o sobre a mesinha.As nuvens voltaram a tapar o sol que desapareceu.Foi bom teres vindo tão depressa. Queria falar-te deste drama ridículoque surgiu de repente.Nicola?Deve estar a chegar.Carrie instalou-se na poltrona no outro lado do tapete branco de pelede ovelha, estendido em frente da lareira.Onde é que ela foi?A um agente de viagens.Tenciona viajar?Eu acho que enlouqueceu. Já to disse ao telefone, não disse? Conheceuum homem. Um americano. Encontrou-o numa festa qualquer há umassemanas, e a partir daí têm-se encontrado.Carrie achou que a notícia era boa e não dava minimamente a entenderque a irmã enlouquecera.Que tipo de americano? perguntou cautelosamente.Oh, muito apresentável. Homem de negócios. Caminhos-de-ferro, aço oualgo do género. Vive em Cleveland, Ohio ou lá o que é. Chama-se RandallFischer. Voltou para a América e convidou Nicola para ir lá passar oNatal com ele.Em Cleveland, Ohio?Não, ele tem uma casa na Florida; ao que parece passa sempre o Natallá.Parecia tudo tão normal que Carrie sentia dificuldade em perceber! ondeestava o drama.É casado?Diz que é divorciado.Nesse caso, provavelmente é. Já o conheces?Claro que sim. Ela trouxe-o cá a casa uma vez ou duas para tomar umabebida, e uma noite ele levou-nos a jantar fora às duas. Ao Claridges.Estava hospedado lá.Nesse caso, deve ter muito dinheiro depreendeu Carrie, franzindo depoisa testa. Não gostas dele, mãe?Oh, não me parece má pessoa. Tem à volta de cinquenta anos. Não éparticularmente atraente.Nicola acha-o a seu gosto?- Acho que sim.Então onde é que está o problema?110Acho que ela se está a precipitar. No fundo, nada sabe sobre oindivíduo.Mãe, Nicola tem trinta e cinco anos. Certamente já sabe cuidar de simesma e cometer os seus próprios erros, se o quiser.A questão não é essa.Então qual é? Esclarece-me.Não compreendes, Carrie? Trata-se de Lucy.Queres dizer que Lucy não foi incluída no convite?Claro que foi, mas recusa-se a acompanhá-los. Diz que não querir para a Florida, não conhece ninguém lá, não terá nada para fazer eque Randall, no fundo, não tem vontade de que ela vá. Só a convidou porobrigação.Carrie mostrou-se compreensiva.

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Entendo o seu ponto de vista. Que idade tem? Catorze. Provavelmentesente-se como um peixe fora de água. Reconheço que é um poucoembaraçoso ver a mãe a braços com um romance amoroso.Um leve rubor começara a subir pelo pescoço de Dodie, que abominavaqualquer forma de discordância e não gostava que a obrigassem aargumentar para defender a sua posição.É uma oportunidade esplêndida para Lucy. Viajar. Ver outra parte domundo.Não, se ela não quiser.Mas então que fará ela?Agora, pensou Carrie, é que estamos a chegar ao cerne da questão.Referes-te ao Natal? Fica contigo, acho. Afinal de contas, este pareceser o seu lar neste momento. Desde que os pais se divorciaram. Paraonde é que ela poderia ir?Dodie não replicou imediatamente. Em vez disso, pôs-se de pé, agitada,e foi até à janela, ficando a olhar para o rio com ar pensativo. Carrieaguardou. A certa altura, a mãe virou-se.Não consigo tomar conta dela sozinha. Tenho a minha vida. Tenho planosfeitos, convites... Talvez vá passar o Natal com os Freeman, aBournemouth. Todos os anos vão para o Palace Hotel. Convidaram-me parair com eles. O seu tom de voz tornava perfeitamente claro que Lucy nãofazia parte do seu esquema festivo. Já não sou nova como dantes,Carrie. Os meus tempos a tomar conta de crianças já passaram. E nãotenciono alterar os meus planos por causa de uma pirralha teimosa.Não, pensou Carrie, tal ideia nunca me passou pela cabeça por uminstante sequer. Passado um bocado, perguntou:E o pai dela? Miles. Então, não poderá ir passar o Natal com ele e anova mulher? Ou agora já não se falam?Oh, sim, claro que se falam. Dodie voltou para a sua poltrona, onde sesentou de novo, chegando-se para a frente, tensa. De vez em quandopassa um domingo com o pai. mas sem grande entusiasmo.111Eles não têm filhos, pois não?Não. E duvido de que alguma vez venham a ter. Ela é uma mulher dedicadaà sua carreira. Dodie falava com desdém. Não quer que bebés interfiramna sua vida.Quer dizer que não aceitarão que Lucy vá passar o Natal com eles?De facto, telefonei a Miles, em desespero de causa, e coloquei-lhe oproblema. Fui obrigada a isso porque Nicola recusa-se a falar com ele enem mesmo lhe pronuncia o nome. O pior é que, no Natal, Miles e amulher vão esquiar para Saint Moritz com um grupo de adultos. Lucynunca fez esqui e é uma desgraça com pessoas que não conhece. Milesdisse que estava fora de questão, pois estragaria o Natal a todos.Carrie começou a sentir uma imensa pena da criança, atirada para olimbo por dois progenitores demasiado preocupados com os seus própriosinteresses. Fez por não parecer demasiado fria, afirmando:Nesse caso, parece que chegaste a um beco sem saída.Nicola está perfeitamente determinada a ir à Florida. Sabes como podeser egoísta. E depois de tudo o que eu fiz por ela...Talvez só não queira perder a oportunidade de se divertir um pouco.De se divertir um pouco repetiu Dodie amargamente, fazendo com que aspalavras parecessem quase indecentes.Carrie observava-a. De repente, Dodie pareceu querer fugir ao olhar dafilha. Olhou para baixo, ajeitou a manga do casaco, ajustou um dosbotões dourados e observou:Era a isto que eu me referia quando falámos ao telefone. O facto de oteu regresso repentino da Áustria se ter verificado numa alturapropícia.Estás a pensar em mim? Para tirar o peso de Lucy de cima de ti? Dodieergueu os olhos para a filha.Já fizeste planos?Mãe, acabei de chegar da Áustria. Ainda não tive tempo para fazer

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planos. Não tenho casa e só em finais de Fevereiro é que voltarei a tera da Ranfurly Road. Ando a viver com a mala às costas. Não tenho mesmoa menor hipótese de ter alguém a morar comigo.Não me referia a isso. Pensei que talvez... o teu pai.Jeffrey?Agora trata-lo por Jeffrey?Chamo-lhe Jeffrey desde o divórcio. Sei que é meu pai, mas também émarido de Serena e meu amigo.Dodie vacilou um pouco ao ouvir os nomes, porém Carrie, sabendo que amãe estava a ser cruel, ignorou o facto.Além disso, acho que a ideia não é viável.Mas» ele é avô de Lucy. Com certeza...112- Olha, mãe, eu já falei com Jeffrey. Telefonei-lhe no dia em quecheguei. Tivemos uma longa conversa. Falámos sobre o Natal, mas eleestá à espera do irmão de Serena e da respectiva mulher e bebé, queficaram de lá ir passar aqueles dias. Emblo vai ficar a abarrotar, nempensar em enfiar mais duas pessoas lá.Podias sugerir...Não. Não é justo para Serena. Ela não nos pode receber, mas ficarácheia de sentimentos de culpa por causa disso. Nem sequer tocarei noassunto.Oh!Dodie deixou escapar um suspiro e recostou-se, como se tivesse acabadode chegar ao seu limite. Fazia lembrar um balão a quem tivessemesvaziado todo o ar, ficando murcho e repentinamente velho.Realmente não posso continuar assim muito mais tempo. É demasiadapreocupação. Ninguém me ajuda, nem mesmo a minha própria família.Mas, mãe...Não terminou. Ouviu-se o ruído de uma chave na porta da frente, depoiso barulho desta a abrir e a fechar de novo.Nicola voltou - disse Dodie desnecessariamente, recompondo-se,ajeitando o cabelo e ficando sentada com um ar animado e expectante.Nicola entrou na sala e Carrie levantou-se, voltando-se para a irmã.Olá cumprimentou.Carrie! exclamou Nicola, abrindo a boca de espanto. Que diabo estás afazer aqui? Imaginava-te na Áustria.E estava - retorquiu-lhe Carrie. Mas agora voltei.As irmãs entreolharam-se. Nunca tinham sido muito chegadas, jamaishaviam sido amigas e partilhado segredos. Carrie reparou então queNicola, à medida que os anos iam passando, estava cada vez maisparecida com a mãe: a mesma altura, a mesma figura equilibrada, o mesmocabelo escuro e farto. A mesma boquinha de trejeito malévolo. Postas aolado uma da outra, facilmente passariam por gémeas. Carrie lembrava-sesempre dela muito arranjada. Com camisolas e saias a condizer, o mesmoem relação a malas e sapatos, o lenço de seda do pescoço exactamente dacor do baton. Um pouco como aquelas bonecas de recortar em cartão, àsquais se prendiam moldes de roupa em papel, com umas pequenas dobras devirar nas pontas: um vestido leve para a praia, um casaco de gola depele para um passeio no Inverno, um gorro e uma bolsa em crinolina parauma festa elegante. Naquele momento, via que Nicola continuava apreocupar-se com o mesmo estilo, pois por baixo do casaco de imitaçãode pele de leopardo trazia um fato saia-calça impecavelmenteconfeccionado. A bolsa de pôr ao ombro era em camurça castanha,exactamente no mesmo material e tom das botas de salto alto.113Nicola pousou a bolsa no assento de uma cadeira e começou a desabotoaro casaco.Voltaste de vez? perguntou.Não sei. Terei de ver.Carrie aproximou-se da irmã e deu-lhe um beijo, que ela retribuiumecanicamente.

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Mas quando é que chegaste? quis saber, despindo o casaco e atirando-opara cima da bolsa.Há cerca de uma semana. Tenho tido umas coisas para fazer, por isso éque só liguei à mãe esta manhã.Nicola lançou um olhar frio a Dodie.Imagino que a mãe já te tenha posto ao corrente de todos os dramas.Para te ter do seu lado.Saltava à vista que havia problemas entre Dodie e Nicola. Carriecalculou que Lucy estivesse a passar um mau bocado com as duas. Dodiemostrou-se magoada.Não é justo, Nicola - protestou.Não, mas aposto que é verdade disse Nicola, deixando-se cairpesadamente no meio do sofá. Seja como for, agora é demasiado tarde.Parto no dia dezoito de Dezembro. Por duas semanas.A esta declaração desafiadora seguiu-se um silêncio carregado designificado. Dodie virou a cabeça e pôs-se a olhar para o carvãoeléctrico que tremeluzia. Toda ela transbordava de desaprovação. Nicolacaptou o olhar de Carrie e fez-lhe uma careta, como se as duasestivessem de conluio contra a mãe. Carrie não lhe retribuiu o olharporque, naquele momento, nenhuma delas lhe estava a agradar.Não servia de nada, no entanto, ser apanhada no meio daquela briga.Então disse, o mais brandamente que pôde:Parece que há um problema com Lucy.Também foi convidada para ir à Florida, mas recusa-se a ir comigo.Compreendo o seu ponto de vista.Oh, como não podia deixar de ser!A mãe sugeriu que eu ficasse a tomar conta dela durante o Natal.Tu?A exclamação de Nicola fez com que a palavra parecesse um insulto.Depois de reflectir um pouco voltou a proferi-la, dessa vez com umaentoação completamente diferente. Uma ideia brilhante que ainda não lhetinha ocorrido.O pior é que não posso.Porque não? ........Não tenho casa !E a da Ranfurly Road?114- Ainda está alugada.Dodie decidiu então meter-se na conversa:Pensei que Carrie pudesse levar Lucy a passar o Natal à Cornualha com oteu pai, mas ao que parece isso também está fora de questão.Porquê? perguntou Nicola.Carrie esclareceu-a:Falta de espaço.o estupor do Miles, mais o estupor da mulher, recusam-se a ficar comela, os egoístas. Desculpas, só desculpas de todos os lados. Roeu aunha do polegar. Eu vou, de qualquer maneira. Vou à Florida ter com oRandall e ninguém me fará mudar de ideias. Há imenso tempo que nãotenho umas férias, vou e pronto.Carrie, por um lado, compreendia a irmã, mas, por outro, pensava emLucy. Assim, tentou apelar à razão:Mas, Nicola...Não pôde continuar, pois Nicola virou-se de rompante para ela.Para ti está tudo muito bem.Carrie perguntou a si mesma quantas vezes não ouvira já aquela velhaqueixa na vida. Para ti está tudo muito bem.Como nunca formaste família, não sabes o que é ficar dia e noite presoa uma criança. O tempo todo. Manter Lucy entretida, resolver osproblemas da escola. Tudo sozinha. Tanto quanto vejo, a tua vida temsido umas férias permanentes, nada além de fazeres esqui e divertireste.Montanhas, gente nova e festas. E sempre na Áustria. Há anos quenão te ponho os olhos em cima. Uma despreocupação total.

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Carrie esforçou-se por falar com voz serena:Nicola, vê-se bem que não tens a menor ideia sobre o que tenho feito.Trabalhei como relações públicas numa agência de viagens muitoprestigiada, onde todas as manhãs nove pessoas se apresentavam no meuescritório. Tinha uma secretária e um apartamento só para mim, mas naestação alta era frequente trabalhar sete dias por semana. Portanto,não me venhas com essa conversa da irresponsabilidade.Não é o mesmo - insistiu Nicola, teimosa e agarrando-se ao seuressentimento. Não é o mesmo que criar um filho.Carrie desistiu.Olha, assim não chegamos a lado nenhum. Nicola ignorou-a.É contigo, mãe. Terás de esquecer Bournemouth. Dodie não se aguentou eenfureceu-se.Nem penses nisso.Dificilmente poderás deixar Lucy aqui sozinha.E porque teria eu de fazer o sacrifício?De repente, Carrie percebeu que não era capaz de continuar a ouviraquele arrazoado sem sentido. As duas, estavam de tal maneira viradas115uma contra a outra que nenhum argumento no mundo as poderia fazerchegar a qualquer conclusão razoável.- Parem! - ordenou-lhes bruscamente.Deveras surpreendentemente, assim fizeram. Passado um bocado, Nicolaperguntou:- Então, tens alguma sugestão brilhante, Carrie?- Não sei. Só sei que estamos a falar da tua filha, não de um cão quetenha de ir para um canil. Se não se importam, gostaria de ir ter comela. Dificilmente falará com menos irracionalidade que a mãe ou a avó.- Muito obrigada.- Onde fica o seu quarto?- A seguir à cozinha. - Nicola fez um gesto com a cabeça. - Nastraseiras.Carrie foi até à porta. Quando ia a abri-la, a mãe acrescentou:- Vê se consegues convencê-la a ser boa rapariga e simplesmente... ir.Carrie não respondeu. Saiu da sala e fechou suavemente a porta atrás desi.LucyFarnham Court fora construída no tempo em que era suposto as famíliasde classe média ainda empregarem criadas internas. Daí que todos osapartamentos dispusessem de um quarto, pequeno e insignificante, para acriada ou a estafada cozinheira da casa. Lucy Wesley, quando fora viverpara casa da avó, após o divórcio dos pais, ficara com este quarto e,para dizer a verdade, pouco lhe importava que estivesse atravancado oufosse pouco ensolarado, pois era só seu.A janela deitava para o espaço fechado que ficava no meio do edifício,ao fundo do qual havia um pátio pavimentado, com alguns canteiroscontendo arbustos e bolbos que a porteira devia manter arranjados eregados; não havia vista absolutamente nenhuma e a janela encontrava-sevelada por uma cortina de voile branco. As paredes, no entanto, eramamarelas, o que proporcionava uma ilusão de luz solar, e os cortinadostinham riscas brancas e amarelas. Lucy dispunha de uma cama, cheia deursinhos de pelúcia, e de uma mesa ampla, com gavetas, onde fazia ostrabalhos de casa, assim como de uma série de prateleiras para a suacolecção enorme de livros. Tinha o seu computador em cima da dita mesa.A decoração era completada por candeeiros, um pequeno televisor e umapele de ovelha a fazer de tapete sobre a alcatifa do chão. Quando ascolegas a visitavam, não escondiam a inveja e a admiração que sentiampor Lucy ter um quarto só para si, não ter de o dividir com nenhumairmã ou com a tralha de algum parente.Era um quarto muito arrumado, porque Lucy era uma jovem extremamentearrumada. Conservava os livros em filas muito direitas, a cama estavasempre feita e as roupas dobradas. Na escola acontecia o mesmo com a

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sua carteira, onde tinha os seus lápis sempre afiados e os cadernos deexercícios empilhados muito certinhos. Mrs. Burgess, que vinha fazer alimpeza a casa da avó uma vez por semana, entrava no quarto de Lucyarmada de aspirador Hoover e pano do pó, deixando-o a cheirar alavanda, mas de vez em quando, levada por uma espécie de compulsãodoméstica, Lucy voltava a limpá-lo ela mesma, polindo o vidro duespelho da mesinha-de-cabeceira e a moldura de prata que continha afotografia do pai.119Sentia terrivelmente a sua falta, não apenas como pessoa mas como qualpeça de mobília à qual falta uma perna e acaba por perder equilíbrio ecair de lado, com o seu afastamento todo o sentido de família ruíra porterra desfeado e sem préstimo, e Lucy percebera que era irreparável enunca mais nada voltaria a ser como dantes. Tinha set anos na altura emque os pais se divorciaram. Uma idade má (se é que havia alguma idadeboa). Ainda criança pequena, mas com tino sufi ciente para saberexactamente o que estava a acontecer, deparara-se com a desagregação daestrutura da existência, ficando ela e a mãe sozinhas a juntar osdetritos de tudo o que restara. Tinham-se mudado para casa da avó, eLucy ainda pensara que era uma situação temporária acabando poraceitar, a pouco e pouco, o facto de ser permanente. Por alguma razão,apesar de discordâncias e discussões, a situação parecera convir aambas as mulheres, e como ninguém se dera ao trabalho de perguntar aopinião a Lucy, esta guardara-a para si mesma.De tempos a tempos via o pai, porém a nova esposa deste, chamadaMarilyn, só queria sossego, não mostrando o menor interesse porcrianças ou enteadas, ou o que quer que fosse além do seu trabalhoabsorvente, caso contrário, certamente já teria tido filhos seus. Ela eMiles nem mesmo tinham uma casa como devia ser, com jardim, mas sim umapartamento, o tipo de apartamento onde ninguém se dava ao trabalho decozinhar, pois bastava um simples telefonema para virem entregar umarefeição ligeira à porta num carrinho.Marilyn não era, de modo algum, o tipo de pessoa com que se pudessedesabafar, e Lucy achava que já não podia fazê-lo com o pai por causada divisão de lealdades para com ambas as partes. Às vezes, tinha aimpressão de que rebentaria se não encontrasse um adulto com quemfalar. Miss Maxwell-Brown, a directora do seu colégio, era exactamenteesse tipo de pessoa. De vez em quando dava a entender, no decurso dealguma conversa a sós, que, se Lucy tivesse alguma coisa a dizer, elateria muito gosto em escutar. Mas a reserva de Lucy, assim como a mesmalealdade fastidiosa, impediam-na de o fazer. Além disso, tinha horror aque alguém sentisse pena de si, como se fosse uma espécie de órfã.Portanto respondia sempre: «Não, estou bem. Está tudo muito bem.» Mrs.Maxwell-Brown deixava-a então ir, relutante.Naquela manhã de sexta-feira, faltava um quarto para o meio-dia,terminara os seus trabalhos de casa (estivera a trabalhar neles desde opequeno-almoço) e escrevia no seu diário. Este era grosso como umaBíblia, tinha uma capa de cabedal e uma fechadura minúscula, com arespectiva chave. O papel era grosso e macio, dava prazer escrevernele, e fora um presente vindo da Cornualha. Na primeira folha vinhaescrito: «Votos de Feliz Natal, Lucy, do Avô, Serena, Amy e Ben.»Nunca se esqueciam do Natal nem do dia de anos, o que era uma simpatiada parte deles, porque Lucy era uma criança quando aquele casamentoespecífico se dissolvera e não se lembrava de Jeffrey Sutton,120nunca conhecera Serena, Amy ou Ben. Às vezes, quando a vida se tornavadesanimadora, deixava-se ficar na cama a tecer fantasias sobre eles,imaginando que a convidavam para ir e ficar lá e que o que seria aindamais improvável - a mãe e a avó a deixavam fazer a viagem. Tinha tudomentalmente planeado. Iria de táxi até Paddington, meter-se-ia nocomboio e estariam à sua espera num sítio com mar azul, para depois alevarem para uma casa no meio de um jardim maravilhoso, talvez perto de

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uma praia, onde os ventos que chegavam do oceano entrariam pela janelaaberta do seu quarto. E terAmy e Ben ao pé de si seria como possuir uma irmã e um irmão a sério.Lucy nunca mais deixara de escrever no diário desde o dia em que orecebera. Não era tanto um diário, antes um bloco de notas, pois nãohavia datas, apenas lindas páginas em branco, onde a pessoa é queescrevia a data e, por baixo, o que tinha a dizer. Às vezes, tinhapouca coisa para registar, mas lá acontecia ir ao cinema ou a umconcerto com o resto da classe e então já havia muita coisa pararecordar, chegando a utilizar até duas ou três páginas. Escrever com asua melhor caneta no papel espesso e cremoso dava-lhe grandesatisfação. Adorava blocos de notas, papel, canetas, o cheiro da tinta,todos os utensílios da escrita. As papelarias eram os seus lugarespreferidos e raramente saía de alguma sem trazer uma caixinha de clipescoloridos, um maço de postais ou uma caneta de tinta vermelha Biro.Escreveu:Esta manhã a mamã foi ao agente de viagens, esaiu logo a seguir ao pequeno-almoço. Ela e a avó mal se falam porcausa do Natal, de Bournemouth e da Florida. Gostaria de quecompreendessem que eu detestaria a Florida. Não se pode passar o diainteiro a nadar numa piscina e eu não gosto assim tanto de Randall, degelados ou de ver vídeos!Sempre era melhor ter o diário de que ninguém com quem desabafar, masuma pessoa seria melhor. Pousou a caneta e olhou para a manhãacinzentada que se via do lado de lá das adejantes cortinas de voilebrancas. Pensou em Carrie, a irmã mais nova da mamã, e uma esplêndidatia. Carrie seria perfeita, porque falava consigo como se fosse umapessoa crescida e também estava sempre pronta a fazer coisas excitantese novas. Carrie, antes de ir para a Áustria e nunca mais voltar, foraquem valera a Lucy; quem lhe proporcionara programas especiais na suacompanhia como, por exemplo, assistirem à La Filie Mal Gardée na OperaHouse, ou irem até Kew nos primeiros dias quentes da PrimaVera. Carriefizera mesmo com que o Museu de História Natural parecesse121divertido e interessante. Certa vez, tinham descido o rio num barco, emdirecção à Tower Bridge, almoçaram a bordo, e toda a Londres vista dobarco, parecera uma cidade estrangeira, desconhecida, com torres epináculos banhados pela luz do Sol. Pegou novamente na caneta.Não me importaria de passar o Natal com o meu pai, mas eles vão parafora, esquiar. Marilyn diz que é um compromisso prolongado. Tenho acerteza de que o meu pai o cancelaria, mas claro que ela não deixa. Nãosei o que tem O Natal assim de tão especial, e porque fica toda a gentetão agitada. Seja como for, hoje à tarde vou ao cinema com Emma edepois volto para tomar chá com ela.Enquanto Lucy estava no quarto, primeiro a estudar, depois a escreverno seu diário, do lado de lá da porta a avó ia-se entretendo nas suastarefas domésticas. De vez em quando, no decurso da manhã, ouvira otelefone tocar e a voz baixa da avó a tagarelar. Há cerca de uma horaatrás, ouvira alguém tocar à campainha e entrar para fazer uma visitae, enquanto terminava os seus exercícios de Francês, chegava-lhe omurmúrio suave de uma conversa por trás das portas da sala de estar, aofundo do corredor. Não fazia ideia de quem se tratava e não sentianenhuma curiosidade especial. Devia ser alguma das amigas chatas daavó. Naquele momento, porém, chegou-lhe aos ouvidos o ruído próprio doelevador a subir, e, a seguir, o barulho de uma chave a entrar nafechadura da porta da frente, percebendo então que a mãe voltara daagência de viagens.O pior era que, apesar da insistência de Lucy em afirmar que não iriapara a Florida, não sabia se a mãe não teria mesmo reservado doisbilhetes e Lucy acabasse por não ter outro remédio senão acompanhá-la àforça. Afinal de contas, aos catorze anos pouco se podia fazer, exceptopassar as duas semanas amuada, detestar cada momento e, na melhor das

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hipóteses, estragar também as férias aos outros. Ela era perfeitamentecapaz de o fazer e a mãe sabia, mas, ainda assim, a possibilidadeaterradora não deixava de se pôr. Levantou a cabeça como um cão alertae pôs-se à escuta. No entanto, os passos não se detiveram à sua porta,seguiram pelo corredor, até à sala de estar. A porta abriu-se e fechouse.Vozes, de novo. Fechou os olhos e desejou também poder fazer omesmo aos ouvidos.De pouco consolo servia, mas ao menos a terceira pessoa, fosse quemfosse a visita, evitaria nova discussão, pelo menos naquela altura.Aguardou o desenrolar dos acontecimentos, o que demorou cerca de cincominutos. Depois, a porta da sala abriu-se e fechou-se de novo e alguémaproximou-se. Lucy fechou o diário e ficou à espera, de olhos fixos namaçaneta da sua porta. A sua mãe vinha comunicar-lhe o que fora122decidido sobre os planos para a Florida. Lucy sentiu-se imediatamenteagoniada, tal era a aflição. Contudo, bateram à porta e percebeu quenão se tratava da mãe, pois esta jamais anunciava a sua chegada, maspelo contrário, entrava de rompante, invadindo a sua privacidade,completamente indiferente ao que porventura estivesse a fazer. Quandobatiam à porta, Miss Maxwell-Brown dizia sempre, Entre! Mas antes deela chegar a dizer o mesmo, a porta abriu-se lentamente, e uma cabeçaespreitou.Interrompo?Sorria. Não era a mãe. Nem a avó. Nenhuma das conhecidas chatas da avó.Mas...Carrie. Carrie? Acabara de pensar nela, e agora aparecia-lhe ali àporta do seu quarto, não na Áustria, onde Lucy a imaginara a ter umavida glamorosa de férias a esquiar e em hotéis luxuosos. Carrie. Alémdisso, costumava vê-la de cabelo comprido, agora usava-o curto e estavamuito magra e bronzeada, alta como sempre.Carrie. Lucy ficou estupefacta, sem palavras. Num turbilhão de emoçõesvariadas. Atónita e incredulamente deliciada por um facto maravilhoso eimprevisível se ter concretizado. Carrie. Sentiu um rubor cálido depuro deleite subir-lhe às maçãs do rosto. Coisas como aquela aconteciammuito raramente, por isso estava sem palavras. Por sua vontade, ter-seialevantado de um salto e corrido a abraçar Carrie, mas talvez esta ativesse achado horrivelmente infantil. Talvez...Não abras tanto os olhos. Sou mesmo eu disse Carrie. Lucy levantou-selentamente. Exclamou:Santo Deus! Carrie entrou no quarto e fechou a porta atrás de si.Surpresa?Sim, não fazia ideia. Estás cá há muito tempo?Cerca de uma hora. Conversava com a minha mãe.Não. Refiro-me a Londres.Uma semana.Não sabia.Ninguém sabia. Não importa, agora já sabes. Baixou-se e deu-lhe umbeijo na cara. Sentiu um perfume muito agradável. Cresceste. Acabei dedizer um disparate, mas antigamente tinha de me dobrar o dobro parachegar a ti. Olhou em redor. Bonito quarto. Era muito sombrio. E quearrumado. Andaste a fazer-lhe a limpeza da Primavera?Não esta manhã. E foi a avó que a fez por mim. Deixou-me escolher ascores.Perfeito. Tudo ensolarado. Havia uma pequena poltrona azul ao lado dacama e Carrie deixou-se cair nela, esticando as pernas comPridas ecruzando os pés elegantemente calçados com umas botas. Tens estado aestudar?123Sim, a fazer os trabalhos de casa. Lucy pegou no diário e guardou-odiscretamente dentro de uma gaveta. A seguir, voltou a sentar-se e fezgirar a sua cadeira de maneira a ficar de frente para a tiA. Quando éque chegaste?

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Já disse, há uma semana. Podia ter-vos avisado da minha chegada, masfoi tudo um pouco precipitado.Quanto tempo ficas por cá?Por tempo indefinido. Larguei o trabalho que tinha. Neste momento,estou simultaneamente sem casa e sem trabalho, mas não im porta. Comotens passado?Lucy encolheu os ombros.Vou andando.Parece que vem por aí uma certa crise. Ou talvez já aí esteja! Pobrecriança, deves estar a tentar adivinhar o que vai acontecer a seguir.Lucy estava grata por a tia ir directamente ao assunto. Carrie forasempre muito objectiva, nunca fugindo a perguntas embaraçosasrelacionadas com algum dilema. De repente, Lucy sentiu-se muito melhore até suficientemente forte para perguntar:A minha mãe comprou dois bilhetes para a Florida, não comprou?Ter-te-ias importado?Muitíssimo. Carrie riu-se.Não te rales, ela vai sozinha. Portanto, essa pequena batalha já tuvenceste. Deve ter sido muito difícil.Achas que, no fundo, estou a ser uma estúpida em não querer ir com ela?Não, acho que tens toda a razão. Só irias chatear, estarias a mais. Émuito melhor para Nicola ir sozinha. Mas isso levanta um problema.Referes-te ao Natal, não é?Não, não me refiro ao Natal, mas sim a ti. O que é que tu queres fazer?Aposto como ainda ninguém te fez essa pergunta.Pois não.Eu sugeri que fosses ter com o teu pai, mas ao que parece ele e Marilynvão para a montanha com um grupo de amigos.Não gostaria de ir com eles. Marilyn não me aprecia muito e eu nuncaesquiei, portanto, acho que não seria nada divertido.Não tens nenhuma colega especial, com uma mãe especial, com quemgostasses de estar?Lucy sentiu-se um pouco embaraçada. Claro que tinha colegas, montesdelas, mas ninguém especial, nenhuma com uma mãe maternal. Emma Forbesera a sua maior amiga, mas a mãe dela trabalhava numa revista e andavasempre em reuniões. Lucy mal a conhecia, e Emma tivera de se tornartremendamente independente e organizar a sua própria124vida com a ajuda de uma chave da casa e uma empregada sueca. apesar detodas as suas conversas, risadas e tempo passado juntas, Emma ainda nãofizera a menor referência ao Natal. Carrie aguardava. Os seus olhosescuros mostravam-se observadores, cheios de compreensão. Lucy disse: -___ pensei que talvez pudesse ir ter com o meu avô à Cornualha.- O problema é eu nunca ter estado com ele ou com Serena, Amyou Ben, e nem sequer me lembrar dele. Além disso, a avó mostra um?horror em relação a ele, nem sequer pronuncia os nomes daquela família.mas achei que, se não tivesse alternativa, talvez me deixasse ir.Gostarias?Sim, acho que sim. O pior é que nunca estive... a voz faltou-lhe - E secalhar eles também não me querem lá.Carrie observou:Acho a ideia uma maravilha e estou convencida de que um diaainda acabas por ir até lá. Mas este Natal não pode ser. Quando volteida Áustria falei com Jeffrey e sei que têm a casa cheia. Uma casa que,ainda por cima, não é muito grande, na verdade até é minúscula, e vaificar bem atravancada com umas visitas.A esperança morreu.Oh, pronto. Paciência...Mas de certeza que um dia irás até lá. Talvez na Primavera. Elesadorariam e tu também. Vamos ter de arranjar outra solução.Aquele «nós» era significativo.Nós?

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Sim. Tu e eu. Órfãs unidas sob a tempestade. Que havemos de fazer?Referes-te ao Natal?Claro que é ao Natal.Em Londres?Acho que passá-lo em Londres seria muito aborrecido, não achas? Talvezdevêssemos ir para fora.Mas para onde?Parecia não haver resposta para aquela pergunta. Olharam uma para aoutra com ar pensativo; às tantas Carrie pôs-se de pé, acercou-se dajanela, afastando a cortina de voile e olhando para o triste pátio trêspisos abaixo.Tive uma ideia. Acabou de me vir à cabeça! exclamou. Largou a cortina eveio empoleirar-se na beira da secretária de Lucy. Alguma vez ouvistefalar de Elfrida Phipps? . Lucy disse que não com a cabeça, curiosasobre o que viria a seguir.- É um amor de pessoa. Prima de Jeffrey. A tua avó nunca a suportOu Porser muito independente e livre, ainda por cima actriz, e por ter tidomuitos namorados e maridos. Nunca tiveram aquilo que poderias125chamar de muito em comum, de modo que a tua avó sempre censurou muitoElfrida. Mas eu sempre a adorei. Quando fui para Oxford comeceinovamente a dar-me com ela e tornámo-nos grandes amigas.Que idade tem?Oh, já não é nova. Mais de sessenta. Mas é mais divertida do que algumapessoa que já tenhas conhecido. ?Onde é que vive?Costumava viver em Londres, mas um dia o seu... bem, ele não era seumarido, mas ela adorava-o... morreu e ela foi para o campo. Certa vez,faz muito tempo, esteve de cama depois de uma operação e eu fiquei comela até melhorar. Jeffrey diz que está a viver numa aldeia noHampshire. Conta que a casa dela é minúscula, mas tenho a certeza deque terá espaço para nós as duas. E se não houver, Elfrida inventá-loá.Não achas que é uma boa ideia? Vamos tentar?Nós as duas?E Elfrida.Durante quinze dias?Claro.Ela não se importará?Aposto a minha última moeda em como vai delirar.Como é que lhe iremos pedir esse favor?Telefono-lhe. Tenho o número.Agora?Não, agora não. Quando voltar para Putney. Não convém os outros saberemos nossos planos antes de termos a certeza de que está tudo certo.Depois, apresentamo-los como um fait accompli.Se ela não nos puder receber no Natal...Não devemos pensar de maneira tão negativa. Há que ter pensamentospositivos. E por enquanto não digas uma palavra. Será o nosso segredo.Carrie afastou a manga da sua camisola de caxemira do pulso e consultouo relógio. Céus, é quase uma da tarde! Estou cheia de fome, e tu? A tuaavó disse que poderíamos comer uma sopa e patê, mas não creio que issome baste. Que tal irmos as quatro almoçar fora? Haverá por aí um sítiobarato, animado e que fique perto?Há o Rosetti. Fica a cinco minutos de caminho, a pé.Italiano?Espaguete e coisas do género.A minha comida preferida. Que dizes? Vamos perguntar às nossas mães sequerem ir almoçar fora connosco?Lucy lembrou-se de Emma.Hoje à tarde vou ao cinema com uma amiga. Fiquei de ir ter com ela àsduas e meia.Como é que vais?

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126-De metro.- Não há problema. Almoçamos e depois mando-te num táxi. Chegarás atempo.Estava a ficar cada vez melhor. Almoços de restaurante e táxis.Perguntou a si mesma se Carrie, recém-chegada da Áustria, não era rica.Pelo menos parecia, com as suas roupas bonitas, o cabelo brIlhante e amaquilhagem elegantíssima... tão bem como as modelos que pousavam, decabedal e peles, nas páginas lustrosas da Vogue, tão da preferência desua avó. Era como se, de repente, ela saísse dum recanto sombrio e friopara o meio da luz esplendorosa e quente , Tudo porque se sentiaaliviada, já sem preocupações, com Carrie novamente de volta, umapresença benévola que resolvia todos os problemas. Para seu horror, aemoção fez com que os seus olhos se humedecessem ridiculamente esentisse o esgar do choro a deformar-lhe as feições, como se fosse umbebé.Oh, Carrie...Ei, nada de lágrimas. Não há motivo nenhum para chorar. Vamos divertirnosà grande.Abriu os braços a Lucy e esta refugiou-se neles, premindo o rostocontra a caxemira macia da camisola da tia e sentindo-lhe, mais umavez, o perfume. Era mesmo verdade, estava ali. Felizmente, conseguiuimpedir que as estúpidas das lágrimas chegassem a cair, e depressaagarrou num lenço ao qual se assoou ansiosamente.Desculpa.Não tens que pedir desculpa de nada. Agora lava a cara e põe um casacoou algo do género. Vou dar a boa notícia às outras pessoas.Só sobre o almoço?Só sobre o almoço. Quanto ao resto, nada diremos... É um segredo entrenós as duas.Encontrou Dodie na pequena cozinha, de certo modo empenhada em pôr oprometido almoço a andar. Começara a pôr a mesa e estava prestes aabrir uma lata de sopa.Não abras! exclamou Carrie.Assustada, Dodie virou-se para a filha mais nova.Porque não?Vestida com as suas roupas impecáveis e formais, sem um fio de cabelofora do sítio, parecia deslocada numa cozinha. Nem mesmo pusera aventale tinha a lata da sopa bem afastada de si, à distância do braço, comose o abre-latas pudesse mordê-la.Porque vamos almoçar fora. Eu é que convido. Lucy e eu achámos quetínhamos todas direito a um pequeno mimo. Ela sugeriu um restaurantequalquer chamado Rosetti. Estás de acordo?Bem. Estou. Dodie continuava, no entanto, hesitante. Penso que tínhamoscombinado comer sopa e patê Aqui.127Tens toda a razão. Combinámos. Mas podemos mudar de Ídeia.É quase uma da tarde. Ainda arranjaremos mesa? Porque não? Preferesligar para eles? Sabes qual é o número?Acho que sim.Então faz isso mesmo. E guarda a lata de sopa para o jantar. Onde estáNicola?Na sala de estar.Amuada?Não. Encantada consigo mesma.Façamos um pacto. Durante o almoço nem uma palavra sobre a Florida.Lucy já teve que chegue.Bem, eu de certeza que tive.Carrie encontrou Nicola toda enfiada numa poltrona a folhear o númeromais recente da Harper & Queen que comprara quando voltava da agênciade viagens.Estás a planear arranjar um novo guarda-roupa para a viagem à Florida?

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Nicola fechou a revista e atirou-a para o chão.Sei o que estás a pensar, Carrie, mas estou-me nas tintas.Porque haverias de estar? E porque não haverias de ir se é isso quequeres?Estás a falar a sério?Tudo é melhor do que ficares por aqui a criar discórdia e cheia deressentimentos.Muito obrigada.Oh, Nicola... Carrie sentou-se no braço do sofá. Façamos umas tréguas.Vamos almoçar fora. Ficaremos mais animadas. E não falaremos daFlorida, de Bournemouth, do Natal ou do que quer que seja.A ideia foi de Lucy?Não, minha. E devo dar-te os parabéns. Ela é bonita por fora e pordentro, o que normalmente não tem a ver com a maioria das adolescentesde catorze anos. Fizeste um bom trabalho.Bem. Nicola, já mais descansada, permitiu-se um sorriso forçado.Obrigada. No entanto, apressou-se a acrescentar: Mas olha que não temsido fácil.Acho que criar uma criança nunca é. Não faço ideia. Agora vem, preparatepara sair. A mãe está a ligar para o restaurante para nos reservaremuma mesa. E Lucy e eu tencionamos comer montes de carbonara.Por cima da lareira da mãe havia um espelho veneziano, numa molduradourada, que reflectia todo o encanto da pequena sala. Nicola levantousee foi-se mirar nele, ajeitando o cabelo e passando o dedo mindinhopelos lábios pintados. Depois, encontrou os olhos da irmã e perguntoulhe:128Continua a haver um pequeno problema para resolver, não é? Tentareiencontrar uma solução. Carrie, porque voltaste da Áustria? Carrieencolheu os ombros. Foi uma decisão repentina. Bem, seja qual for arazão, estou contente. Nicola pegou no casaco de pele e depois estragoutudo acrescentando: Ao menos fico ccom um pouco menos de pressão emcima de mim.O almoço mostrou ter sido uma excelente ideia. Tanto Dodie como Nicolaadoravam o ambiente do restaurante e ainda o pequeno grupo ia acaminho, percorrendo a curta distância entre Farnham Court e o Roettijá estavam francamente mais bem-dispostas. O frio que se fazia sentirnaquele dia cinzento de Dezembro foi uma boa desculpa para Dodie seembrulhar no seu novo casaco preto orlado a pele, e quando passou asportas envidraçadas e entrou no interior aquecido, a cheirardeliciosamente, vários italianos, encantadores e sorridentes, correrampressurosamente a cumprimentá-la, aliviá-la do seu casaco, fazendo-asentir-se bela e importante. O lugar não era amplo e o número delugares já fora preenchido, no entanto, via-se uma mesa reservada a umcanto. Depois de todos sentados, Carrie não perdeu tempo, mandando virbebidas para todos: gim tónico para Dodie e Nicola, uma Coca-Cola paraLucy e uma Pepe para si. Depois escolheu uma garrafa de vinho paraacompanhar a refeição. As tensões, relaxadas pelo álcool e suavizadaspelo ambiente agradável do pequeno restaurante, foram gradualmentedesaparecendo; a conversa tornou-se, se não esfuziante, pelo menosrazoavelmente fácil.Vendo bem, já não estavam juntas há vários anos, havendo muitatagarelice e muito mexerico para pôr em dia. Velhos amigos econhecidos, parentes afastados. Carrie ficou a saber dos cruzeiros deDodie pelo Mediterrâneo e sobre determinada ilha grega da qual seapaixonara.O meu sonho era construir uma casa lá confessou.Carrie fez perguntas, falou-lhes um pouco de Oberbeuren, da magia dasmontanhas no Verão, altura em que os caminhantes vinham ficar no hotelenorme, e as vertentes brancas utilizadas para o esqui se cobriam deerva verde, onde o gado pastava e os chocalhos tilintavam no arlímpido.Dodie e Nicola cumpriram o prometido: não houve menção ao Natal, à

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Florida ou a Bournemouth.Quando acabaram de tomar café e Carrie estava a pagar a conta, Chegou aaltura de Lucy se ir embora. Um dos empregados prestáveis foi para arua, onde ficou no passeio, ao frio, com o seu longo avental branco aadejar ao vento, até avistar um táxi e fazer-lhe sinal para queParasse. Carrie deu algum dinheiro para pagar a bandeirada e esperouque Lucy se instalasse em segurança lá dentro. A jovem chegou-se para afrente no assento e baixou o vidro.129Carrie, ainda não te agradeci. Gostei muito.O prazer foi meu. Diverte-te com o filme. Depois telefona.Não demores muito.Assim que puder. Tens de te despachar. Nicola foi mais prática.Lucy, a que horas estás em casa?Por volta das sete.Porta-te bem.Está descansada.O táxi afastou-se e elas ficaram a vê-lo ir. Depois viraram-se ecomeçaram a percorrer o passeio em direcção ao rio. Pararam na esquinada Farnham Road para se despedirem.Realmente animaste-nos imenso comentou Dodie que, amolecida pelaprofusão de boa comida e bebida acabada de consumir, estava disposta aser generosa. Que bom estares novamente junto de nós! Vai dandonotícias. Diz-nos o que tencionas fazer.Sim, claro. Adeus, mãe. Deu um beijo no rosto de Dodie. Adeus, Nicola.Ainda te vejo antes da viagem?Oh, é provável, estarei por aqui. Obrigada pelo almoço.Se não te vir, diverte-te.É o que tenciono fazer.Separaram-se. Carrie ficou a vê-las ir, duas mulheres ridiculamenteidênticas, cada uma assoberbada pelos seus próprios afazeres eproblemas. Não tinham mudado. Virou-se e continuou a caminhar. Sóquando ia a meio da Putney Bridge é que, ao sentir a frialdade e ahumidade do vento de leste no rosto, se lembrou do bilhete que Saradeixara na mesa da cozinha a pedir-lhe que comprasse uns legumes para ojantar e também um pacote de saquetas de chá lapsang souchong. Então,ao chegar à Putney High Street, entrou numa mercearia paquistanesa, deonde saiu carregada de couve-flor, aipo e batatinhas novas. Comprouigualmente as saquetas de chá, um pão escuro estaladiço e duas garrafasde vinho Jacob Creek. O sujeito bem-parecido que se encontrava aobalcão, enfiou tudo num saco de compras e recebeu o dinheiro.Santo Deus, o dia está mesmo frio. Quando chegar a casa ficará bemaliviada.Ela concordou, agradeceu-lhe e saiu de novo para a rua. A tardeenevoada e invernosa entrara já no lusco-fusco; os automóveis jácirculavam de luz acesa e as montras das lojas faziam incidir quadradosde luz sobre o pavimento húmido. Quando Carrie chegou à pequena casacom terraço de Lumley, levava as mãos geladas e foi com muitadificuldade que despiu a luva e manuseou as chaves. Dentro de casa,acendeu a luz do vestíbulo, desligou o alarme e deliciou-se com ocalor. Entrou na cozinha, pousou o saco das compras e ligou a chaleiraeléctrica. Correu as cortinas de xadrez azul e branco, tirou asmercearias do saco e, como a água já estava a ferver, preparou umacaneca de chá. Finalmente,130despiu o casaco, dobrou-o nas costas de uma cadeira, tirou a agenda dedentro da bolsa e instalou-se ao pé do telefone.elfrida Phipps, Poulton's Row, Dibton. Carrie levantou o auscultador ecarregou nas teclas. Ouviu o toque duplo do telefone de Elfrida.Aguardou durante muito tempo, mas ninguém atendeu. Perguntou-se por queElfrida nunca se dispusera a investir num atendedor de chamadas. Talveztivesse saído. Carrie desistiu, bebeu o seu chá, foi ao andar de cima

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pendurar o casaco e mudar de sapatos. voltou à cozinha e fez novatentativa para encontrar Elfrida e, Mais uma vez, foi em vão. Depois deexperimentar pela terceira vez, altura em que já descascara as batataspara o jantar e fizera uma grAtinada com uns peitos de frango, começoua ficar algo preocupada. Afinal de contas, há muito tempo que nãocontactavam uma com a outra. Elfrida nunca fora muito de escrevercartas, preferindo o telefone, mas estivera sempre lá. Ocorreu-lhe aideia horrível de que pudesse ter morrido. Essa possibilidade deixouCarrie transtornada, mas depois o bom-senso voltou a dominar;raciocinou que, se algo tivesse acontecido a Elfrida, Jeffrey nãodeixaria de a informar.Jeffrey. Ligaria para o pai. Jeffrey sabia, certamente, do paradeiro daprima. Carrie sabia o número de Emblo de cor, portanto levantou oauscultador uma vez mais e fez a chamada. Dessa vez foi bem sucedida,pois ele atendeu quase imediatamente.Jeffrey Sutton.Jeffrey, fala Carrie.Minha querida. Como estás?Estou óptima. Apesar do frio.Está um Inverno dos diabos, não está? Nós quase fomos varridosdo alto do penhasco.Como vão Serena, Amy e Ben?Estão todos bem. Serena foi buscar os miúdos à escola de carro e euestou aqui sozinho a passar cheques para pagar contas. Então, que medizes?Dispões de um pouco de tempo para falar?De quanto tempo?Cerca de uma hora.Por amor de Deus, que aconteceu?Ando à procura de Elfrida. Tenho estado a ligar o número de uibton, masninguém atende. Ela não está lá.Não está lá?Foi para a Escócia.Que está ela a fazer na Escócia?Partiu o mês passado. Ainda lá se encontra.Porque não me disseste quando liguei para ti a semana passada?Parecia haver outros assuntos mais importantes sobre os quais devíamosfalar. Tu, por exemplo.131Pois foi. Carrie sentiu-se ligeiramente envergonhada.Bem, desculpa.Não sabia que o paradeiro de Elfrida era assim tãoimportante para ti.Bem, neste momento é. O que a levou a ir para a Escócia?É uma história muito longa observou Jeffrey E contou-lha.Escutou o relato muito penalizada. Começou a sentir-se maisdesconcertada. Conhecia Elfrida muito bem e sabia-aum coração compassivo e impetuoso, e sem grande preocupaçãocom o futuro. Ainda assim, sentia que houvera ali uma certaprecipitação. Exprimindo o que lhe viera à ideia, perguntou: Ela estáapaixonada por esse homem?Não sei, Carrie, na verdade não faço ideia do que se passa. Deu-me anotícia pelo telefone e parecia mais preocupada do que satísfeita.Nesse caso não se trata de paixão, mas sim de compaixão.Disse-me que ele lhe pediu que o acompanhasse para lhe fazer companhiae consolo, e que ela aceitou.Que tipo de consolo gostaria eu de saber.Partiriam no dia seguinte, de carro, fazendo a longa viagem por fases.Em que zona da Escócia estão?Sutherland. Bem ao norte. Tenho a morada e o número de telefonealgures. Não queria que Elfrida desaparecesse sem que alguém ficasse asaber para onde ia.

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Ela já entrou em contacto depois de chegar?Não. Imagino que ande preocupada com outros assuntos. Era tudo muitofrustrante.Oh, raios! exclamou Carrie.Porque estás assim?Precisava mesmo de entrar em contacto com Elfrida. De falar com ela.Há algum problema?De certo modo.Contigo?Não, não comigo. Com a tua neta, Lucy Wesley.Explica lá isso. Foi então a vez de Carrie falar, de tentar explicar aopai, o mais resumidamente possível, a situação complicada que estava aser vivida em Farnham Court: Nicola de partida a passar o Natal naFlorida» com o novo namorado americano; Lucy recusando-se a acompanhara mãe; Dodie insistindo em não poder faltar à elegante festa planeadano Palace Hotel, em Bournemouth- e tanto Nicola como Dodie a dizeremque não desistiriam absolutamente de nada.132OscarEm pleno Inverno, era uma terra estranha. Monótona, onde a força dovento clareava. As colinas,que desciam até à costa, já tinham os cumes cobertosde neve, neve que se misturava com as nuvens aoponto de os fazer desaparecer de vista, velados, indistintos, como sejá tivessem sido absorvidos pelos céus sombrios.Era estranho, porque Oscar não se lembrava de ver a paisagem assim. Nosseus tempos de rapaz, costumava ir visitar a sua avó a Corrydale noVerão e, nessa altura, lá, bem ao norte, as tardes prolongavam-se atéàs dez ou onze da noite, e quando se ia deitar, as sombras das árvoresalongavam-se sobre os campos que o sol dourara.Passeava com Horace. Saíra de casa depois de almoço, lançando-se aocaminho com a ajuda de um cajado improvisado, protegido do vento friopor um casacão forrado de lã de ovelha e um velho chapéu de tweed bempuxado para a testa. As botas eram fortes, preparadas para caminhar,mas assim que atravessou as ruas da pequena aldeia e subiu a vertenteque conduzia ao campo de golfe, conseguiu começar a caminhar com umacerta velocidade. Passado um bocado já não sentia o frio e tinhaconsciência do seu corpo, quente debaixo de todas aquelas camadas delã, assim como da batida acelerada do seu coração.Horace saltitava alegremente à sua frente. Seguiram pelo carreiro queserpenteava bem ao cimo do campo de golfe por entre moitas densas detojo. Cerca de quilómetro e meio mais à frente, esse carreiro ia ter auns degraus e depois acompanhava uma linha férrea que já não era usada,mas que, em tempos, estabelecera ligação com Londres. Oscar chegara aCreagan através daquele pequeno ramal, com muitas paragens em passagensde nível.O mar estendia-se à sua direita, para além do campo de golfe e dasdunas, cor de aço sob o céu invernoso, melancólico; a zona de maréficava bem ao longe. Deteve-se a escutar, ouvindo as ondas a morrer naPraia, empurradas pelo vento, e o grito das gaivotas. Quando observavaas aves reparou, vagamente surpreendido, que havia alguns jogadores degolfe, figuras vestidas em tons coloridos que percorriam espaços entreburacos, puxando os seus carrinhos carregados de tacos.137Lembrava-se de que, quando a sua avó jogava golfe, costumava levar umcaddie consigo, sempre o mesmo, um velho ex-recluso chamado Sandy, queconhecia cada curva e obstáculo do campo como a palma da sua mão e aaconselhava em conformidade. Sandy passava a maior parte do tempoembriagado, mas quando fazia de caddie de Mrs. McLellan, comportava-secom a sobriedade de um juiz. A velha linha férrea desaparecia dentro deuma moita de giesta. Oscar, ao dar a volta a essa parcela de terreno,viu que chegara ao fim do campo de golfe, ao nono tee. Revelou-se-lhe

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então a extensão seguinte da costa, outra baía ampla e baixa, um velhomolhe e um aglomerado de cabanas de pescadores, amontoadas, térreas ebaixas, de modo a escaparem à fúria do vento.Foi então que ouviu vozes: um homem a chamar, um murmúrio de conversas.Virou a cabeça e viu, abaixo dele, um grupo composto por quatro homensa caminho da ponta do campo de golfe. Oscar ficou imediatamenteincomodado, com receio de que um deles fosse o major Billicliffe, quedessem pela sua presença e forçassem apresentações e conversa. Ficoumuito quieto, esperançado em passar despercebido, porém os seus medosrevelaram-se, felizmente, infundados. O major Billicliffe, alto comouma árvore e com as pernas franzinas envoltas nos seus calções folgadospresos abaixo do joelho, não fazia parte do grupo. Oscar observou asquatro figuras corpulentas, envergando casacos coloridos, calças àprova de água, sapatos de ténis brancos e bonés de pala americanos.Billicliffe nunca andaria tão bem-posto.Fora por causa do major Billicliffe que Oscar mantivera a sua presençatão discreta desde que chegara a Creagan. De vez em quando, a pedido deElfrida, atravessava discretamente a estrada para ir ao supermercadocomprar um pão grande, ou na sua saída diária para ir buscar o TheTimes e o Telegraph ao jornaleiro. Ia sempre atento, não fosse o casode Billicliffe aparecer à sua frente, esfuziante de saudações econvites para a sua casa horrível.Elfrida achava que Oscar estava a ser fraco.Ele é inofensivo, Oscar, não passa de um velho estúpido. Se oencontrares, deves manter-te firme. Delicado, mas firme.O sujeito é um maçador de primeira.Não podes passar o resto da vida fechado em casa, Oscar. É ridículo.Fico dentro de casa, porque o tempo está péssimo, para dizer o mínimo.Disparate. Costumavas passar o sábado inteiro a apanhar as folhas secasdo chão do teu jardim, mesmo que chovesse a cântaros.1. Caddie: rapaz que leva os tacos e outros objectos no jogo de golfe.(N. da T.)138Billicliffe não pode entrar no meu jardim.- Pode ver-te do lado de lá do muro. É suficientemente alto para iSSo.Nem sequer me fales nisso.Aquele passeio com Horace fora a primeira incursão verdadeira de Oscarao campo e fizera-o porque, de repente, sentira-se agitado, cheio deuma energia nervosa que lhe deu vontade de esticar as pernas. Nem mesmoa perspectiva de encontrar o major Billicliffe o dissuadiu e, comoElfrida ressaltava constantemente, não podia passar o resto da vidafechado dentro de casa, a esconder-se atrás do sofá sempre que tocavamà campainha da frente.Era uma situação francamente aborrecida, pois Billicliffe, antigofeitor de Corrydale, agora reformado, era o homem que tinha a chave daCasa da Quinta consigo e, à sua chegada, a primeira prioridade forairem pedir-lha.A ocasião não fora propícia. Oscar e Elfrida, depois da longa viagem dedois dias que os trouxera do Hampshire em pleno Inverno, estavamexaustos. Tinham vindo pela Al, enfrentando chuva, veículos pesados econdutores maníacos que passavam em alta velocidade pela via rápida. Aoatravessarem a fronteira da Escócia, subiram o Soutra, a chuvatransformara-se primeiro em granizo, depois em neve, e as condiçõeshaviam-se tornado bastante complicadas.Elfrida sugerira que fizessem mais uma paragem para terem uma noiterepousante, mas Oscar estava simplesmente desejoso de chegar, de modoque prosseguiram caminho, cada vez mais para norte. No cume deDrumochter, a neve atingira os quinze centímetros de altura. Tinham-sedeixado ir no rasto protector da traseira de um enorme camiãoarticulado, confiantes de que, se acontecesse alguma catástrofe, esta,pelo menos, atingiria o grande veículo primeiro.A noite caiu cedo e os últimos quilómetros foram feitos em condições

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nocturnas. Oscar também descobriu que a memória lhe falhara e viu-seaflito para descobrir o caminho no emaranhado de novos sistemasrodoviários que tinham sido construídos há bastante tempo, desde assuas visitas juvenis.Porque é que tudo tem de mudar? queixou-se, de mau-humor, esforçando-sepor ler o mapa à luz de uma lanterna.Em nome do progresso retorquiu-lhe Elfrida firmemente. Ao menos nãoiremos por uma estrada de pista única.Finalmente, atravessaram a ponte nova que se estendia sobre a enseada.Nos velhos tempos recordou Oscar , tínhamos de passar as colinas emeter cerca de oito quilómetros pelo interior.Estás a ver? As coisas melhoraram. E agora aonde vamos? - Temos devirar à esquerda, voltar à estrada antiga e seguir para Ridente.139Será que a estrada antiga ainda lá está?Se não estiver, ficamos em maus lençóis.Mas continuava lá, de modo que saíram da via rápida e enveredaram pelocampo. Nessa altura, já Elfrida se sentia muito fatigada. Encontrar acasa de Billicliffe fora a última gota frustrante.«Ele está na velha cabana de Ferguson», dissera Hector a Oscar, quandoeste lhe pedira indicações e direcções. «Era o antigo guarda-florestal.Certamente lembras-te dele. Vira pelo portão principal e segue o teufaro. Eu ligarei a Billicliffe a avisá-lo da tua chegada.»Porém, a escuridão fê-los perder todo o sentido da distância e nãoderam pelo tal portão. Só depois de passarem em frente é que Oscar viuo letreiroCORRYDALE COUNTRY HOTEL RURALTinham de encontrar um sítio onde pudessem virar e voltar para trás.Foi preciso muito tempo e fizeram-no num pátio lamacento de uma quinta,com um cão que ladrava ferozmente. Ao retrocederem, a passo de caracol,tiveram então mais sorte. Depois de passarem o portão, Oscar perscrutouo que os rodeava, em busca de indicações, mas ficou ainda mais confusoque antes.Não me lembro de nada disto queixou-se, como se a amnésia que oassolava fosse da responsabilidade de Elfrida.As coisas mudam, Oscar, as coisas mudam.Não vejo uma malfadada casa em parte nenhuma.Bem, não podemos passar o resto da noite às voltas. Sentia-se um certodesespero na voz de Elfrida. Oscar esperava quea amiga não estivesse prestes a perder a sua calma, pois mostrara-setão maravilhosamente tranquila durante dois dias que ele achava que, seela ficasse tão desesperada como ele já se sentia, dificilmenteaguentaria.Tens a certeza de que estamos na estrada certa?Naquela altura, porém, Oscar já não tinha a certeza de nada. Respondeulhetristemente:Talvez estejamos demasiado velhos para andar nesta caça aos gansos.Ora, não sejas ridículo. Claro que não estamos. E não é nenhuma caçaaos gansos, sim a uma chave. Temos de encontrar a chave. Basta quedemos com a estúpida dessa casinha.O que, no fim, acabou por acontecer, completamente por acaso. Viraram àesquerda numa estrada cheia de sulcos que parecia conduzir a ladonenhum, mas viram imediatamente uma luz a brilhar por entre árvoresdespidas, um portão aberto e um carreiro curto, que conduzia a140uma casa de pedra, onde a única janela deixava passar a iluminaçãointerior.Será qUe é ali? perguntou Elfrida em tom duvidoso.Oscar suspirou de alívio, pois acabara de reconhecer, de recordar.É ali declarou.-Graças a Deus!Elfrida fez entrar o carro pelo portão e parou em frente da casita,

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sentindo estalar o cascalho do chão sob os pneus. Os faróis do carroiluminaram um alpendre rural de madeira e uma porta fechada. Elfridadesligou o motor. De repente, assustando-os até à medula, a quietudefoi trespassada por uma cacofonia de rosnadelas, latidos e uivoslúgubres.Por amor de Deus! exclamou Elfrida.É um cão observou Oscar.Um mastim. Um rottweiler. Um cão de caça. Um cão como odos Baskerville. Não ponho o pé fora deste carro. Prefiro conservartodos os meus membros.Foi então que se ouviu o som de uma voz, alterada pela fúria, e umaporta a bater. O ladrar parou. O pobre e paciente Horace, sentado nobanco de trás, espreitava timidamente pela janela. Saltava à vista quetambém ele não queria perder nenhum dos membros. Aguardaram.Vamos só buscar a chave e pomo-nos imediatamente a caminho. Nada deconvívio disse Oscar.Como quiseres.A porta da pequena casa abriu-se e a débil iluminação do interiormostrou uma entrada diminuta, diante da qual se postava uma figuramasculina, magra e desajeitada, de joelhos bambos, a espreitar sob oumbral baixo da porta, com a mão a fazer de pala sobre os olhos, afimde os proteger do fulgor dos faróis do carro. Elfrida desligou-osimediatamente.É você? Blundell? Tenho estado à espera...A frase ficou simplesmente suspensa no ar, por terminar.Oscar e Elfrida apearam-se, ambos rígidos e doridos de exaustão. Oscarsentia os joelhos a ranger. Ali fora, o ar estava muito frio.Desculpe disse Oscar, embora dificilmente pudesse ter chegado maiscedo. Guiar no meio do escuro é difícil. Está tudo muito diferente.Vimos buscar a chave e depois...Ia a dizer, «seguiremos o nosso caminho», mas o major Billicliffe não odeixou terminar.Com certeza. Tenho-a aqui. Entrem. Ia precisamente beber alguma coisa.Fazem-me companhia.Bem...É bom ver-vos. Tenho estado ansioso por isso. Saiam do frio!141Afastou-se para o lado, mantendo a porta hospitaleiramente aberta eOscar, depois de um momento de hesitação, capitulou, embora sódesejasse não deparar com mais nada que o impedisse de chegar ao fimdaquela viagem horrível, ver-se em Creagan e tomar posse da sua casa.Tudo indicava, no entanto, que teriam de se prestar àquele encontrosocial, com bebidas.Obrigado agradeceu debilmente, estendendo a mão a Elfrida, para aajudar a seguir à sua frente.Esta é a minha amiga Elfrida Phipps. Veio partilhar a viagem comigo.Esplêndido. Esplêndido. Foi uma grande viagem. Encantado em conhecê-la,minha senhora. Pegou na mão de Elfrida e, por um momento, Oscar pensouque a ia beijar, tão corteses e antiquadas eram as suas maneiras.Como está? cumprimentou Elfrida.E agora fechemos a porta e deixemos o maldito frio lá fora. Venham.Seguiram-no até uma pequena sala de estar de tecto baixo, onde umafogueira minúscula, que ardia num pequeno espaço forrado a azulejo,pouco fazia para aquecer o ar. Tudo parecia no maior estado de confusãoe abandono: poltronas de cabedal bambas, um tapete enrugado, umacarpete coberta de pêlo de cão, cinzeiros a transbordar de cinza decachimbo.Ao fundo da sala havia uma outra porta, atrás da qual o cão enfurecidofora preso. Do outro lado chegavam ganidos e uma respiração pesada, devez em quando soava um encontrão contra a porta e o entrechocalhar deuma corrente, quando o animal aprisionado, frustrado até ao limite,atirava o seu peso contra a mesma.

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Elfrida, como era natural, começou a ficar um pouco nervosa.Que tipo de cão é? perguntou.Uma labrador respondeu-lhe o major Billicliffe. Uma cadela velha emuito querida. Incapaz de fazer mal a uma mosca.Por cima do fogo havia uma cornija de lareira atravancada com umamiríade de objectos: canecas farruscadas, uma bola de golfe, um relógioque parara no meio-dia e um quarto, uns quantos postais e convites depontas reviradas, e uma caixa de couro onde o major guardava as suaspróteses auditivas. Antes de fazer fosse o que fosse, agarrou nestas ecolocou-as nas enormes orelhas avermelhadas. Oscar e Elfrida viram-no,fascinados, proceder a alguns ajustamentos estridentes com o auxílio daponta do dedo. Em seguida, voltou-se para eles com uma expressãosatisfeita, como quem acabara de executar um trabalho complicado. §Assim está melhor. Raramente ando com elas. Às vezes até me esqueço dosítio onde as deixei. E agora, que desejam tomar?142Atravessou a sala até se deter diante de um velho carrinho carregado degarrafas, com um ou dois copos cheios de manchas na prateleira debaixo. o bar está aberto.Oscar ansiava por uma chávena de chá, mas sabia que isso demorariaainda mais tempo a preparar.-Um uísque será óptimo. Muito pequeno. Com muita água.-E a senhora?Elfrida parecia um pouco embaraçada. Também ela sentia uma vontadedesesperada de tomar um chá, porém respondeu sem hesitar:-Poderá ser um xerez?Tenho algum não sei onde. Onde estará a garrafa? Pegou numa queContinha uma pequena porção de líquido. Ainda chega.Foi servindo as bebidas e falando. Oscar e Elfrida mantinham-se ao ladoda fogueira miserável, sem interromper.A limpeza aqui da casa tem andado muito fraca nos últimostempos. Sabem, a mulher morreu há dois anos. Sinto muito a falta dela,mas que se há-de fazer? Há uma serviçal que ficou de vir limpar isto.Oscar viu-o manusear desajeitadamente garrafas e jarros, entornandoágua na carpete, erguendo os copos com mão trémula. Assim à vista, omajor Billicliffe fazia lembrar um cavalo velho a caminho do matadouro,as pernas muito magras, cobertas por umas meias, terminavam num par desapatões pretos rústicos, pesados e emporcalhados. Tinha a cabeçacareca, esparsamente coberta por alguns fios de cabelo grisalho, e osolhos remelosos. O bigode estava manchado de nicotina e os dentes,amarelados, já apresentavam falhas.Custava imaginá-lo como um oficial garboso e aprumado de qualquerregimento do Exército britânico.Hector ligou para mim a avisar da vossa chegada. Fiquei encantado. Eratempo de termos um pouco de sangue novo nestas bandas. Como vai o meucaro? É curioso que nunca nos tenhamos encontrado, nós dois, mas enfim,já lá vão tantos anos... Estou cá desde os sessenta, mal saí doexército. Bem, não exactamente. Primeiro, fiz um curso de formaçãoprofissional em Cirencester, precisava de me qualificar para o lugar.Feitor. Não é trabalho para um ignorante qualquer. Óptima pescaria. Amulher achava isto um bocado solitário. Não pescava. Passeava os cães.A velha televisão é que a impediu de perder o juízo. Conseguira,finalmente, acabar de preparar as bebidas, de modo que aproximou-se,periclitante, com um copo em cada mão, para as entregar. O uísqueparece um bocado claro. Tem a certeza de que assim está bem?Perfeito , mentiu Oscar.O major Billicliffe voltou ao carrinho, afim de resolver o problema dasua própria sede, o que pareceu requerer uma porção de uísquetremendamente escuro num copo pequeno.Devia ter por aqui algo que se trincasse. Sentem-se, fiquem à vontade.143Não podemos demorar muito.

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Daqui a Creagan são só uns cinco minutos.Oscar e Elfrida não tiveram outro remédio senão sentar-se na beira deum sofá. No outro lado do tapete, o major Billicliffe depositou a suaaltura tremenda na única poltrona existente, com os velhos joelhos aressaltar debaixo do tweed gasto dos seus calções compridos.Já estou reformado, claro. O bom do Hector deixou-me comprar estacasita, mas também estava vazia há muito tempo. E Hughie pouco seralava. Os dias dos trabalhadores agrícolas com habitação própria já lávão. Agora são todos contratados. A maquinaria é formidável. Eu gostavade trabalhar para Hector, mas foi por pouco tempo. Hector foi embora,veio Hughie, e esse deitou tudo a perder. Fazia umas orgias na casagrande. Umas orgias do caraças. Uma desgraça. Um mau exemplo paratodos. Essas bebidas estão boas? Isso depois acabou. Hughie pirou-separa Barbados e vendeu o sítio. Hoje é um hotel. Devem ter passado pelaplaca. Tudo vidros espelhados e com casa de banho. E os preços do barsão uma perfeita roubalheira. Nunca ponho lá os pés. Tudo o que sobrahoje da propriedade é a quinta, que o jovem Thomson (o pai costumavaarrendar a quinta) comprou, mal aquilo foi posto à venda. Parece queestá a sair-se bem. Mas eu nunca vou até lá, como já vos disse. Jogagolfe? Temos um grupinho muito jeitoso. Devia juntar-se a nós. Sequiser inscrevo-o. Fica perto da sua casa. Simpático, o casal que viveulá durante anos. O seu apelido era Cochrane. Depois do velho morrer, amulher foi viver com a filha. Se calhar, foi a sua sorte. Depois temosMistress Snead... cuida da casa. Vai e vem. Acho que Hector lhe pagaalguma coisa. Não chegou a dizer-vos?Oscar acenou com a cabeça em sinal afirmativo.Boa mulher. Boa mulher. Conheci-a no talho. Disse que tem mantido acaldeira a funcionar. Já não é da minha responsabilidade, senão játinha lá dado um salto para inspeccioná-la.Oscar, sentindo-se desesperado, perguntou:A chave?O major Billicliffe franziu a testa, confundido.Como?A chave. Da Casa da Quinta. Se não se importa passe-nos já a chave,pois temos de ir andando.Ah, com certeza. Tenho-a algures. Acabou a sua bebida de um trago,pousou o copito vazio e ergueu-se com esforço. Atravessou a sala maisuma vez e pôs-se a remexer numa velha escrivaninha de tampo rolante,que estava aberta e com um aspecto de desarrumação caótica. Inclinou-see procurou a esmo, sem resultado, durante uns momentos. Meteu as mãosnos pequenos compartimentos, abriu e fechou gavetas até que, de repenteexclamou: «Eureka! e ergueu uma chave grande e de ar antigo, à qualestava amarrada uma etiqueta amarrotada. Sabia que a tinha num ladoqualquer. Ultimamente ando um pouco esquecido.144Oscar e Elfrida acabaram de beber as suas bebidas fracas e levantaramsecom ar decidido. Oscar tirou a chave da mão do major Billicliffe.Muito obrigado. Desculpe ter incomodado.Não foi incómodo nenhum. Adorei ter um pouco de companhia.Lembrem-se, estou quase sempre no clube. Já não jogo tanto comoantigamente. Sabe bem conversar um pouco com os velhos amigos e tambémse pode comer uma boa sanduíche no bar. Acompanhou-os até à porta. Têmde voltar aqui de novo. E talvez eu apareça por lá para ver se estãobem instalados.Elfrida sorriu.Com certeza. Mas não vá já. Oscar não tem estado muito bem e precisamosde um pouco de tempo para organizar as coisas.Claro, claro. Mas não há dúvida de que voltaremos a ver-nos por aí.A meio do seu passeio, Oscar fez então uma pausa para observar osgolfistas, tranquilizado pelo facto de nenhum dos quatro homens ser omajor Billicliffe. Já se tinham posicionado e escolhido os tacos, demodo que ele, não desejando perturbá-los ou desviar-lhes a atenção,

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deixou-se ficar imóvel até o último jogador atirar a sua bola para oque parecia um lugar indefinido. A luz começava a escassear e Oscarlembrou-se de que eles teriam de se pôr a caminho, se quisessem chegarao clube antes de escurecer. O golfista debruçou-se para apanhar o seutee e, ao fazê-lo, reparou em Oscar.Os olhos de ambos encontraram-se por um instante, com a zona lisa docampo de golfe de permeio. O outro homem ergueu a mão à laia desaudação ou, quem sabe, para dar a entender a Oscar que dera pela suapresença. Oscar retribuiu a saudação. A seguir, o golfista enfiou o seutaco no saco, pegou na alça do seu carrinho e seguiu no encalço dosseus companheiros. Oscar viu-o ir, uma figura corpulenta de calçasazul-claras e casaco escarlate. Provavelmente era alguém que viera devisita a Creagan, calculou vindo, talvez, dos Estados Unidos ou entãoum residente local. Momentos depois, desaparecia atrás do obstáculonatural formado por um pequeno outeiro coberto de tojo, e Oscarprosseguiu o seu caminho mais o cão.Começava a sentir-se um pouco fatigado. Mais abaixo, entre o campo degolfe e as dunas, avistou o carreiro empedrado por onde os tractores deconservação do campo passavam e que ia ter à aldeia. Ao fundo, oextenso areal da praia curvava e depois dele, recortada contra asnuvens cinzentas, viam-se os telhados das casas espalhadas a esmo e oPináculo da igreja da aldeia. O efeito era sombrio como uma gravuraantiga. Parecia muito distante e Oscar perguntou a si mesmo se nãoteria exagerado no passeio. Mas de repente viu um pequeno abrigo deCadeira, construído para servir de abrigo a viajantes apanhados desurpresa145pela chuva ou a precisarem de descansar os pés por um bocado. Oscar, aoaproximar-se, viu que se encontrava dividido em quatro segmentos,proporcionando abrigo a alguma ventania, cada um fornecido com umpequeno banco de madeira. Decidiu sentar-se por instantes, afim derecuperar o fôlego e, depois de escolher o compartimento que mais lheagradou, instalou-se o melhor possível.Pensou nos golfistas, reflectindo no companheirismo que os unia naqueletipo de jogo, no qual tinham ficado entretidos até ao lusco-fusco datarde que terminava, e deu-se conta de que sentia uma inveja que quasetocava o ressentimento. Estavam juntos. Amigos. Conversavam, jogavam,competiam. Tomariam uma bebida no clube, depois cada um voltaria para oseio da respectiva família. Homens vulgares.Teve dúvidas de que alguma vez voltasse a ser um homem vulgar.Em tempos, nos seus dias de juventude, Oscar jogara golfe, emborasempre sem grande habilidade. Talvez fosse altura de recomeçar, decomprar um conjunto caro de tacos, um carrinho Big Bertha e espantartodos, incluindo a sua própria pessoa, com uma fantástica perícia noarremesso da bola. A perspectiva, apesar de divertida, não o fezsorrir. Naquela altura já nada o fazia sorrir.Luto. Ainda estava de luto. Ele próprio utilizara muitas vezes essapalavra inócua, escrevendo a amigos a quem acabara de falecer a mulher,um progenitor ou mesmo um filho. Era uma palavra que englobava umamultitude de emoções não vividas. A palavra condolências era outra.«Queira receber as minhas mais sinceras condolências», escreveria,assinando depois a carta e indo metê-la disciplinadamente no correio,ciente de ter cumprido, o melhor possível, uma tarefa necessária.Agora sabia que não tivera a menor percepção do que dissera. O luto nãoera um estado de espírito, mas sim algo físico, um vazio, um mantomortal de dor indescritível e impermeável a qualquer consolo. A suaúnica protecção, que ele mesmo erguera, era uma paliçada que o isolavado mundo. Ali, em Creagan, eram-lhe poupados os encontros, os contactoscasuais com conhecidos. E também o insultuoso conforto beato do pastor,a dor que o embaraço dos outros lhe causava. As condolênciasdesajeitadas mas bem-intencionadas, olhos que fugiam aos seus. Duranteo seu passeio observara, como era seu hábito, o céu, as nuvens, as

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colinas, as aves. Sentira o vento na cara e escutara o troar das ondasa abaterem-se na costa. Cheirara o odor forte e adocicado damaresia... e não sentira nenhuma reacção, não se animara nem semaravilhara. Não se inspirara. Não sentira alegria. Era um pouco comoolhar para um quadro, ao qual se era indiferente, e ver uma paisagemenorme, primorosamente executada, mas completamente falha de alma.Sempre desprezara a autocomiseração e agora, ali sentado, todoencolhido, no pequeno abrigo de madeira, lutava contra ela como umleão, esforçando-se por ser positivo, por valorizar as benessesactuais.146A primeira era a Casa da Quinta. O facto de lhe pertencer parte dela,de estar vaga e de lhe ter proporcionado o santuário oportuno para ondefugir. A segunda, Elfrida. O seu reaparecimento, após as férias naCornualha, representara um grande alívio para Oscar. O seucompanheirismo preservara-lhe a razão, a sua maneira de estar na vida,simples e prática, ajudara-o a atravessar a fase mais negra,confortando-o só pelo facto de aceitar as suas limitações. Quandoficava calado, ela deixava-o sozinho. Quando ele queria falar,escutava-o.A terceira benesse era a noção de que, mesmo que ele não ficasse parasempre naquela remota comunidade do Norte, não tinha a menorpossibilidade de regressar à casa que pertencera a Gloria. Os seus doisfilhos já haviam tomado posse da Granja, pondo-a à venda. De certomodo, Oscar estava-lhes grato, pois a sua atitude sem tréguas e poucoabonatória poupara-o ao martírio de viver num espaço assombrado pelasrecordações de Francesca, onde já só reinava um silêncio gélido eentorpecente.Tenho de continuar, disse de si para si. Seguir em frente, passo apasso. Porém, aos sessenta e sete anos, já com a maior parte da suavida para trás, às vezes parecia impossível reunir a energianecessária. Aquele manto mortal, composto de choque e perda terrível,não só o cegara e ensurdecera como lhe imbuíra cada osso do corpo deuma fadiga pavorosa e penetrante.- Tenho de ir.Dessa vez disse as palavras em voz alta, e Horace, que estivera deitadoaos seus pés, sentou-se e olhou para ele com ar expectante, quasesorrindo. Era um cão muito sorridente. Oscar sentia-se grato pela suacompanhia. Pôs-se então de pé.- Vamos, meu velho. É tempo de voltar para casa.Quando Oscar chegou, finalmente, ao clube, estava escuro e sentia-semuito cansado. Caminhou penosamente ao longo da berma da estrada,avistando o fulgor das luzes a brilhar pelas janelas largas, por trásdas quais se viam figuras descontraídas como se estivessem num pubcheio de amigos, sentadas à mesa a comer sanduíches, sem dúvida afalarem sobre os seus assuntos. Entre o clube e o primeiro tee havia umadro pavimentado, com canteiros altos que no Verão se deviam encher deflores de cores alegres: begónias e gerânios. Ao lado do clube ficava oparque de estacionamento, agora inundado com a luz que vinha de cima -Ainda ali estavam mais de uma dezena de veículos. Quando Oscar seaproximou, viu uma carrinha muito usada. Encostado a ela estava umhomem, a substituir uns sapatos de golfe por uns sapatões rústicos.Reconheceu nele o indivíduo do blusão encarnado e das calças azulclarasimpermeáveis, porém já não tinha o boné de pala americano,vendo-se-lhe, sim, a farta cabeleira, já grisalha, iluminada pela luzfria que vinha de cima.O homem deu a última laçada nos atacadores e pôs-se de pé. Nessaaltura, já Oscar se aproximara. Por um instante hesitou, sem saber se147devia parar a dirigir-lhe uma palavra amigável. Perguntar, talvez, se ojogo correra bem. Mas ainda não tomara uma decisão, já o problema eraresolvido.

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Viva. Que tal foi a caminhada?Oscar fez uma pausa e virou-se para o indivíduo.Creio que exagerei um pouco. Estou com falta de prática. E consigocorreu tudo bem?Ao chegarmos ao décimo-quinto, desistimos. Não tivemos coragem paracontinuar. Estava demasiado escuro e frio. Inclinou-se para pegar nossapatos de golfe e atirá-los para as traseiras da carrinha cuja portafechou. Não estava tempo para um jogo plenamente desfrutado. Acercouse.Oscar viu um rosto rude de provinciano e um par de olhos azuisperscrutantes. Desculpe-me, mas o senhor é Oscar Blundell, não é?Oscar ficou desconcertado não só por o reconhecerem como tambémidentificarem.Sim, sou.Sabia que estava de volta a Creagan. (Que mais saberia ele?) . Só cáestive há vinte anos, por isso não cheguei a conhecer MistressMcLellan, a sua avó, no entanto tive o prazer de travar uma grandeamizade com Hector. Foi por pouco tempo, antes de ele passar Corrydalea Hughie e ir viver para o Sul. A propósito, chamo-me Peter Kennedy.Estendeu a mão a Oscar, que a apertou com a sua, enluvada. Bem-vindo aCreagan.Obrigado.Deve estar exausto. É uma longa caminhada, e contra o vento. Vou entrarpara tomar uma chávena de chá. Gostaria de me fazer companhia?Oscar ficou calado, hesitante e dividido por emoções contraditórias.Estava cansado até aos ossos, mas a ideia de se sentar um pouco, numambiente aquecido, e desfrutar do consolo de uma chávena de chá quentee reconfortante, era muito tentadora. Por outro lado, não estava bemcerto de ter coragem para entrar naquela casa de convívio fortementeiluminada. Se calhar haveria apresentações, teria de falar comdesconhecidos, responder a perguntas.Mas havia algo de tão afável e genuíno naquele novo amigo, algo de tãodesarmante e sincero, que não foi capaz de recusar o convite. Em vezdisso, tentou encontrar uma desculpa.Tenho o cão.Pômo-lo no meu carro. Será por pouco tempo, não lhe fará mal.Eu... Tinha de ser dito. Preferia não encontrar o major Billicliffe.O rosto jovial de Peter Kennedy franziu-se num sorriso compreensivo.Não se preocupe. Pousou a mão no braço de Oscar. FOI para casa há unscinco minutos. Vi-o partir.148Há-de pensar que sou pouco caridoso. Não, não acho. Portanto, vaifazer-me companhia, não é verdade?sim, Com muito gosto.- Muito obrigado.Será um prazer.Resolveram o problema de Horace, colocando-o na parte de trás dacarrinha de Peter Kennedy, juntamente com o saco e os sapatos de golfe.Ele ficou a olhá-los através da janela com ar reprovador, mas Oscaresforçou-se por não ligar.Não demoro disse ao cão.Juntos, deram a volta à esquina do clube e subiram o pequeno lance dedegraus que conduzia à porta principal. Peter Kennedy abriu-a e deixouque Oscar entrasse num vestíbulo sóbrio, alcatifado e com armáriosalinhados contra a parede contendo trofeus e escudos em prata, assimcomo retratos emoldurados de velhos golfistas que tinham prestigiado oclube. À direita, umas portas envidraçadas davam para a sala principal,mobilada com mesas e cadeiras confortáveis, mais um pequeno bar aocanto. Ao entrarem, uma ou duas pessoas levantaram a cabeça para osmirar, porém a maioria pouca atenção lhes deu.Vamos sentar-nos além. Há uma mesa livre e ficaremos sossegados.Mas antes que o pudessem fazer, a porta giratória ao lado do barescancarou-se para deixar passar uma empregada de mesa já entrada nos

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anos. Usava saia branca e blusa preta e tinha o cabelo brancomaravilhosamente ondulado e arranjado. Ao dar por eles, desfez-se emsorrisos.Mister Kennedy, não sabia que o iria ver hoje à noite.Olá, Jessie. Será que não vimos a tempo de uma chávena de chá?Nunca é demasiado tarde. Devem estar gelados, depois de andarem a jogarlá fora com um dia destes. Desviou o olhar para Oscar, que acabara detirar o chapéu e se mantinha imóvel, debaixo de todas aquelas camadasde camisolas e casacos que levava. Também esteve a jogar?Não, só a passear.Jessie, este é Mister Oscar Blundell. Veio para ficar na Casa daQuinta.Oh, Deus! Então é o senhor! Ouvi falar da sua vinda, mas ainda não ovira. Também joga golfe?Lamento, mas não.Teremos que dar um jeito a isso. Agora, Mister Kennedy, onde é que quersentar-se?Porém, antes que pudesse responder-lhe, houve uma interrupção.DO fundo da sala veio uma exclamação sonora feita por uma voz profundaque soou como um clarinete, sobressaltando os presentes e suscitandoolhares pouco amigáveis da parte de um grupo que se juntara em redor deuma televisão.149Peter! Chegue aqui para lhe dizer uma coisa. Já não o vejo há umasemana ou mais!Peter Kennedy virou-se e Oscar, que seguiu a direcção do seu olhar, viuno canto mais afastado da sala um homem idoso muito corpulento, sentadonuma cadeira de rodas, ao lado de uma mesinha onde estava um copinho deuísque.Peter Agitava um cajado nodoso, como se fosse possível deixar de serouvido ou visto. Chegue aqui e venha contar-me as novidades.Oscar, não se importa que o deixe sozinho só por um instante? É o velhoCharlie Beith e tenho de lá ir cumprimentá-lo.Com certeza.É só um minuto. Jessie cuidará de si. Dito isto, afastou-se em direcçãoao inválido. Mas que grande surpresa , foi dizendo. Então hoje resolveupôr o pé fora de casa, Charlie?O velho na cadeira de rodas saudou-o com tamanho entusiasmo e afectoque Oscar sentiu que estava, de certo modo, a ser um intruso e desviouo olhar.Jessie tomou conta da situação.Venha sentar-se e ponha-se à vontade. Tire o casaco, ou nem dará peladiferença quando sair. Quer que lhe traga um scone? E prefere cháindiano ou chinês?Oscar perguntou:Desculpe, mas de quem se trata?Charlie Beith? É uma pessoa muito engraçada, tem mais de noventa anos,embora ninguém saiba a idade certa. Tinha uma quinta em Toshlands,ainda não há muitos anos. Agora quem cuida dela é o filho. Ia bem atélhe dar um ataque há uns dois anos. Vive no lar da terceira idade eMister Kennedy costuma visitá-lo regularmente. Uma das filhas trouxe-ocá hoje à noite, para se distrair e conviver um pouco. É um grandevivaço.Na verdade observou Oscar, hesitando , não era ao velhote que me estavaa referir, mas sim a Mister Kennedy. Acabei de o encontrar no parque deestacionamento. Conhecia o meu tio. Mas não sei...Quer dizer que não sabe o que faz ou quem é? Deve ser a única alma emCreagan que não o conhece. É o nosso pastor. O pastor da igreja.O pastor. O vigário. O reitor. Não interessava. O homem cuja missão erareconfortar não só os doentes do corpo como também os do espírito. Asimpatia espontânea de Peter parecera genuína, porém o que acabara desaber tornava-a deprimentemente suspeita. Já estaria a par das razões

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do regresso de Oscar a Creagan? Já saberia da horrível morte da suamulher e filha? Assim sendo, quem...?Mas tive o prazer de travar uma grande amizade com Hector. TeriaHector, levado pela melhor das intenções, entrado em contacto com PeterKennedy? Explicando a situação. Sugerindo, quem sabe, uma150visita pastoral. Conversas reconfortantes; orientação espiritual;tentar suavemente o regresso de Oscar ao seio de uma Igreja em quedeixara de acreditar.Sente-se bem? perguntou Jessie.Oscar olhou para o rosto maternal e reparou na expressão preocupada.Sentia um calor que não era provocado pela sala aquecida, nem pelascamadas de roupa que vestia, mas sim pelo turbilhão interior,assustadoramente próximo do pânico. Sabia que não podia Continuar ali,caso contrário sufocaria.Fazendo um esforço enorme, obrigou-se a falar:Desculpe. Está muito quente. Acabei de me lembrar. A sua voz soavairreal, parecia vinda de outra sala. Prometi. Preciso de voltar paracasa.Mas não toma o seu chá?Lamento mas não posso... Já a recuar para a porta, tentou desculpar-sede novo.Voltou-lhe as costas e dirigiu-se, cuidadosa e lentamente, para asaída. A porta envidraçada custou a empurrar, mas depois fechou-sepesadamente nas suas costas. Atravessou o vestíbulo, abriu o segundoconjunto de portas e, por fim, saiu para o ar gélido. O vento frioacometeu contra ele, que teve de se inclinar para a frente, afim de nãoperder o equilíbrio, deixando o ar gelado encher-lhe os pulmões. Sentiuo suor gelar-lhe na testa e colocou o seu velho chapéu de tweed. Estavabem. Sobrevivera. Só precisava de chegar a casa. Para ficar a salvo.Sozinho com Elfrida. Desceu os degraus, foi até ao parque deestacionamento e tirou Horace do carro de Peter Kennedy. Depois pôs-sea caminho, em passadas largas e rápidas, arrastando o cãozito atrás desi. Fugindo.ElfridaEm Dibton, o Instituto Feminino era famoso pelosseus passeios-mistério. Normalmente, realizavam-se aos sábados à tardee, nessas ocasiões, as senhoras empilhavam-se numa camioneta que depoisas levava para destino desconhecido. Na maioria das vezes, iam parar auma área comercial com jardins para visitar e lojas de recordações ondepodiam comprar toalhas de chá floridas, marcas para livros e pacotes deguloseimas de fabrico caseiro. Depois das compras, seguia-se o lanchenum hotel local qualquer; um lanche como devia ser, com peixe e batatasfritas. Em seguida, empilhavam-se de novo na camioneta e eramconduzidas de volta a casa.Estas saídas eram muito populares.Elfrida, tão abruptamente impelida a ir para o Norte da Escócia, paraCreagan e para a Casa da Quinta, por circunstâncias alheias ao seucontrolo, considerou que aquele iria ser o seu maior passeio-mistériode todos os tempos. Desde que ela e Oscar tinham partido de Dibton quenão fazia ideia do que lhe estava reservado, e ainda não houvera nenhummomento adequado para se informar. A sua partida fora de tal modoprecipitada, o fazer das malas tão acelerado e tão curto o tempo paraas despedidas, que pormenores minuciosos relativos ao seu destinoperderam toda a importância. Só havia que partir.Fora necessário, como é evidente, tomar algumas providênciasindispensáveis. O carro de Oscar tivera de ir à revisão e de seratestado de gasolina. Oscar tratou do assunto. Os enteados, Giles eCrawford, foram informados da sua partida iminente e o seu gerentebancário alertado para a mudança de morada. Quanto a Elfrida, entregoua chave de Poulton's Row à vizinha do lado, com o mínimo deexplicações, pedindo-lhe também que ficasse de olho no seu pobre Ford

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Fiesta, abandonado à beira do passeio em frente da sua casita.- Quando é que regressa, Mistress Phipps?- Não faço a menor ideia. Mas darei notícias. Também tem aqui a chavedo carro. Sirva-se dele quando quiser. Só lhe fará bem. - Quase como sefosse um cão velho necessitado de exercício. - Desliguei a água etranquei todas as janelas.155Mas, para onde vai?Acho que para a Escócia.Depois, Oscar tivera de entrar em contacto com Hector McLella para opôr ao corrente da situação, enquanto Elfrida ligava ao seu primoJeffrey, na Cornualha, e tentava explicar as circunstâncias que alevavam a tomar aquela decisão. Não foi muito bem sucedida, pois elelevara algum tempo a compreender a situação. Porém quando, por fimconseguira, Jeffrey limitara-se a dizer, «Boa sorte», mas só depois deela lhe dar a morada e o número de telefone da casa de Oscar é que adeixara desligar.Sem ter a menor ideia concreta do tipo de roupas de que irianecessitar, enfiou uma variedade de peças (quentes) e de sapatos(fortes) na mala. A seguir, meteu os seus bens mais preciosos, quelevava sempre consigo, dentro de um velho saco maleável com fechometálico: o xaile de seda, a embrulhar o pequeno quadro pintado por SirDavid Wilkie; os cãezinhos Staffordshire; o seu relógio; a peça detapeçaria em que se encontrava a trabalhar. Por cima iam algumasfotografias em molduras de prata e meia dúzia de livros. Era tudo. Abagagem de Oscar pouco mais volume fazia: uma maleta de viagem,preparada por Mistress Muswell, uma pasta a rebentar pelas costuras e oseu equipamento de pesca.Tencionas ir à pesca, Oscar?Não faço a menor ideia. Mas não posso ir para a Escócia sem a minhacana. Seria quase um sacrilégio.O Volvo de Oscar teve espaço para tudo isto, e ainda para Horace mais oseu cobertor, biscoitos e tigela para a água. Horace, tal como Elfrida,não fazia ideia do que lhe estava reservado, no entanto entroualegremente no carro e instalou-se confortavelmente, ao que tudoindicava aliviado por não o deixarem para trás. Quando via malas deviagem não ficava nada satisfeito.Não vamos nada pesados observou Elfrida a Oscar, porém este estavademasiado ansioso e distraído para fazer algum comentário em resposta.Em vez disso, voltou-se para trás, afim de dar as suas últimasinstruções à leal Mistress Muswell que sempre o acompanhara no decorrerdaqueles dias difíceis e que, naquele momento, se encontrava ao cimodos degraus, nitidamente emocionada, dando a impressão de, a qualquermomento, desatar a chorar.Adeus, Mistress Muswell.Mande um postal disse-lhe ela corajosamente, mas em voz trémula.Com certeza. Adeus. Obrigado por tudo.Deu-lhe então um beijo rápido na face, o que fez com que a velhaempregada se fosse abaixo. Ao afastarem-se da Granja, Elfrida viu, peloespelho retrovisor, a figura elegantemente uniformizada a assoar onariz e a limpar os olhos com um lencinho.156- Que irá ser dela? perguntou Elfrida, sentindo-se uma traidora.Giles prometeu tratar da sua situação. Não deve ter dificuldade emarranjar novo emprego. É uma mulher maravilhosa.Depois disso, pararam de falar. Elfrida foi a guiar durante a maiorparte do caminho, só deixando que Oscar a substituísse quando começavaa sentir-se perigosamente fatigada, «o CANSAÇO MATAva e UMA PARAGEM»alertavam letreiros de estrada aos veículos ligeiros e pesados quecirculavam rumo ao norte pela Al. Parava então o carro na berma daestrada ou nalgum posto de paragem e trocava de lugar com ele.Durante esse primeiro dia, Oscar mal falou e ela deixou-o estar calado,

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sem sequer sugerir que ligassem o rádio do carro na FM clássica. De vezem quando, paravam para Horace dar uma voltinha, esticarem as própriaspernas, às vezes para comerem ou tomarem uma chávena de chá. O tempoestava frio e desolado e a noite caiu cedo, altura em que a condução setornou ainda mais cansativa. Isso fez com que saíssem da auto-estrada efossem até uma pequena vila em Northumberland, de que Oscar serecordava. Aí encontraram, na praça principal, uma velha estalagem deque ele também se lembrava e ainda não fora excessivamente modernizadaou alterada. Melhor ainda, a gerência teve a gentileza de deixar Horaceentrar, mais o seu cobertor, e ficar instalado junto da sua dona.Na manhã seguinte, mal o comércio abriu, Elfrida foi dar um passeiopela vila e encontrou um pequeno supermercado, onde comprou algumasprovisões para a eventual chegada: uma lata de sopa, pão, manteiga,bacon e ovos. O empregado arrumou-lhe tudo dentro de um saco decompras, e de repente ela avistou uma garrafa de uísque (medicinal?)que resolveu também levar.O segundo dia de condução foi um pouco melhor. O tempo estava horrível,mas pelo menos Oscar tornara-se mais comunicativo. Olhava para oscampos e quintas por que passavam, apontava para marcos e olhava para océu com ar preocupado, fazendo previsões meteorológicas poucoanimadoras. Apesar disso, ainda não chegara a altura de conversar, delhe fazer a torrente de perguntas por que ansiava: Como irá ser, Oscar?De que tamanho é a casa, alguém a terá ido aquecer, haverá água quente?E estará limpa, terá lençóis? E as pessoas serão amistosas para nós, econhecer-te-ão? Ou banir-nos-ão?Tudo era inimaginável. Mas aquilo era uma aventura, disse de si parasi, metendo a segunda para subir a escorregadia vertente do Soutra, comos pára-brisas a trabalhar no máximo e todo o mundo à volta a parecerque se afogava no meio da brancura de uma borrasca súbita.Em jovem, nos seus tempos de actriz, viajara com companhias itinerantesde norte a sul da Grã-Bretanha, sem mesmo saber o que a aguardava nofim da jornada. As recordações que conservava daqueles dias eram umaamálgama indistinta de cidades provincianas, teatros bolorentos157e alojamentos que cheiravam a couve cozida. Mas era jovem, fazia umtrabalho que amava e sentia-se muito feliz. Cada viagem num comboiobarulhento era um desafio, cada teatro encardido uma nova descoberta.Naquele momento, sentia um pouco dessa velha excitação aquecê-la, masviu-se obrigada a lembrar a si própria que já não era a mesma raparigaardente, antes uma respeitável senhora de sessenta e dois anos. Aomenos não estou sozinha. Nem aborrecida. Nem morta!O encontro com o major Billicliffe fora o derradeiro obstáculo.Ultrapassado este e com a chave bem guardada dentro do bolso de Oscar alonga e extenuante viagem de dois dias ficara para trás e os últimosquilómetros foram fáceis, quase despreocupados. Oscar foi a guiar.Estava frio, mas a neve parara de cair e a estrada escura estendia-secolina abaixo, em direcção ao mar, por entre densos aglomerados deconíferas. Elfrida abriu a janela do seu lado e ouviu o sussurro dovento nos ramos, sentiu o cheiro a pinheiro e a maresia. A certaaltura, as árvores começaram a escassear e viram-se rodeados de dunas epinheiros raquíticos e, mais ao fundo, avistaram uma linha direitaprateada que era o mar. Ao longe, no meio da água, um farol piscava,sulcando a escuridão. Depois, mais à frente, o brilho dos candeeiros derua e casas com janelas iluminadas por trás de cortinas corridas.Apareceu uma rua com casas de pedra, porém, de tamanhos e alturasdiferentes entre si. Viu a igreja assomar, com um relógio iluminadocomo uma lanterna redonda na sua torre. Os ponteiros estavam paradosnas sete da tarde. A certa altura, começaram a aparecer casas maiores emais bonitas, erguidas por trás de muros altos de pedra. Creagan.Parecia deserta. Ninguém a caminhar pelas ruas, de carros nem amostra.Nenhum som, nem mesmo o grito das gaivotas. Mais uma volta, mais umarua até que, a certa altura, Oscar parou junto ao passeio. Desligou o

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motor. Ficou imóvel por instantes. Elfrida aguardou. De repente, pousouuma das mãos nas dela.Minha cara, chegámos , anunciou.Ali estava a Casa da Quinta. Elfrida viu-a, pela primeira vez, à luzdos candeeiros: quadrada, sólida, afastada da rua e rodeada por umacerca em ferro forjado e um pátio coberto de pequenos calhaus roladosda praia. A frente da casa fazia lembrar um desenho de criança: tinhauma porta e cinco janelas. Acima destas, inseridas a meio da inclinaçãoda cobertura de telhas, sobressaíam duas águas-furtadas.Apearam-se do carro e Elfrida soltou Horace. Este, que não se esquecerado ladrar e dos uivos da cadela do major Billicliffe, hesitou em sair,preocupado, atento. Porém, finalmente tranquilizado, saltou para a ruae a pouco e pouco começou a cheirar em volta, em busca de odoresdesconhecidos.Oscar abriu o portão e percorreu o carreiro. Elfrida e Horace foramatrás dele. Meteu a chave à porta. Esta abriu-se para dentro e eleprocurou um interruptor. Encontrou-o e acendeu a luz.158Entraram, e Elfrida sentiu imediatamente a limpeza de um lugar acabadode esfregar e encerar. Em frente, uma escada conduzia a um patamar comuma janela sem cortinas. Havia uma porta fechada em cada um dos lados,mas ao fundo do corredor uma terceira encontrava-se aberta e foi nessaque Oscar entrou, acendendo outra luz.Elfrida fechou a porta da entrada atrás de si, deixando o frio da noiteinvernosa lá fora. Foi atrás de Oscar e encontrou-o numa cozinha, ondese via um antiquado armário pintado e uma mesa de madeira. Por baixo dajanela havia uma tina de barro e, ao lado, um espaçoso fogão a gás queteria, possivelmente, uns quarenta anos de existência.Não é propriamente um luxo , observou Oscar. Parecia estar a pedirdesculpa.Está óptimo assegurou-lhe Elfrida, com sinceridade. Alguém deixou aquium bilhete.Era uma folha de papel com linhas que se encontrava no meio da mesa,com uma ponta presa debaixo de um frasco de compota. Oscar pegou nobilhete e entregou-o a Elfrida, que o leu em voz alta.«Liguei a caldeira (petróleo). Vai precisar de mandar vir maispetróleo. Camas feitas em 2 quartos. Água quente para o banho. Carvão elenha no barracão. Algumas janelas não abrem. Leite no frigorífico(copa). Apareço amanhã para ver se está tudo bem. Cumprimentos, J.Snead (Mrs.)»Oscar elucidou:Mistress Snead.Pois.Elfrida, vais chorar?É possível.Porquê?De alívio.Tudo isso fora há três semanas atrás. Já era Dezembro, cinco da tardede uma sexta-feira escura, em pleno Inverno. Oscar, que fora dar umpasseio na companhia de Horace, ainda não voltara. Elfrida afastouimagens dele morto de um ataque cardíaco, do seu corpo caído aos pés deuma duna de areia. Simplesmente, demorava-se um pouco mais que oprevisto, certamente desfrutando daquela sua primeira incursão aosarredores, sentindo-se mais apto para o exercício e enchendo os pulmõesde ar fresco e rejuvenescedor. A decisão de sair fora exclusivamentesua mas ela tivera o cuidado de não parecer demasiado entusiasmada,receosa de lhe dar a impressão de que estava ansiosa por se livrardele.159Deixou-se ficar em frente do fogão, onde aquecia água numa chaleira.Preparou uma caneca de chá de saqueta, juntou-lhe um pouco de leite elevou-a para a sala de estar, no piso de cima. Era uma divisão formal e

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espaçosa, com uma enorme janela panorâmica que deitava para a rua e aigreja. Podiam gastar-se ali horas sentado na sacada a ver o mundopassar: carros a andar de um lado para o outro, carrinhas de entregas ecamiões carregados de brita; pessoas às compras, paradas no passeio aconversar, crianças tagarelas como pardais, indo e vindo da escola.A sala encontrava-se mobilada, tal como o resto da casa, com o mínimodos mínimos de móveis. Um tapete turco grosso. Um sofá e duas cadeiras.Uma mesa contra a parede, uma estante com a frente envidraçada ondehavia alguns livros encostados uns aos outros. Nada de quadros nemornamentos. Nem a menor pista sobre os interesses e afazeres dosocupantes anteriores. Elfrida achava aquela falta de decoração e deobjectos bastante terapêutica. Sem quadros, bugigangas, pequenosobjectos de prata e conjuntos de porcelana decorativa para dispersar aatenção, tornava-se possível apreciar as proporções agradáveis dadivisão, a cornija trabalhada e a rosácea de estuque no meio do tecto,de onde pendia um candelabro vitoriano encantador.Depois de chegar e desfazer as malas, pusera o seu modesto cunhopessoal na casa. O David Wilkie pendia agora na parede em frente dalareira, por cima da pesada mesa de carvalho que Oscar utilizava comosecretária. Os cães Staffordshire e o relógio ocupavam a cornija demármore vazia da lareira. Comprara no Arthur Snead, Frutas e Legumes,um ramo de crisântemos, descobrira uma jarra amarela e fizera umarranjo pouco ambicioso. Colocara a tapeçaria meio feita em que estavaa trabalhar na base de uma cadeira. Já acendera a lareira e naquelemomento deitava-lhe carvão e toros, antes de se ir sentar à janela aver se Oscar chegava. Mal acabara de se instalar, com a caneca nasmãos, quando o telefone tocou. Assustou-se, pois ainda quase não tinhamrecebido chamadas desde a sua chegada. Elfrida esperava que não fosse omajor Billicliffe. Pousou a caneca no chão e foi atender. O telefoneencontrava-se no primeiro andar, sobre uma pequena cómoda mesmo ao ladoda porta da sala de estar. Pegou no auscultador. Está?Elfrida?Sim?Fala Carrie. Carrie Sutton.Carrie! Onde é que estás?Em Londres. Como tens passado?Vai-se andando.Jeffrey disse-me que estavas na Escócia. Deu-me o teu número detelefone. Elfrida, quero fazer-te um pedido. É um grande favor.Não faças cerimónias.Tem a ver com o Natal.160Como era de prever, foi um telefonema prolongado. Quando acabaram defalar, Elfrida pousou de novo o auscultador. Nesse preciso instanteouviu a porta da frente abrir e percebeu que Oscar e Horace tinhamchegado a casa. Inclinou-se sobre a balaustrada e perguntou:Correu tudo bem?Sim. Já cá estamos.Desceu ao piso de baixo. No vestíbulo, Oscar livrava-se do casaco e dochapéu, que pendurou no bengaleiro de madeira trabalhada. Horacemarchara já em direcção à cozinha, à sua tigela de água e ao seu cestoquentinho.Demoraram imenso.Percorremos quilómetros. Fomos até à ponta do campo de golfe. Já não melembrava de que ficava tão longe.Passou a mão pelos cabelos. Elfrida achou-o com ar exausto.Que tal uma chávena de chá? propôs.Creio que neste momento preciso é de algo mais forte.Um uísque. Vai para cima. Acendi a lareira. Já to levo.Foi à cozinha, deitou uma porção de uísque num copinho para Oscar edepois voltou a pôr a chaleira ao lume para fazer mais chá para si,pois sabia que a anterior esfriara. Horace já dormia. Deixou-o ficar e

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subiu ao andar de cima com o copinho numa mão e a caneca na outra.Encontrou Oscar apoiado à lareira com uma mão, a olhar fixamente para ofogo. Quando ela entrou, virou a cabeça na sua direcção e sorriu,agradecido.És a bondade em pessoa.Pegou no copo e sentou-se cuidadosamente numa das poltronas, esticandoas pernas à sua frente. Elfrida foi correr as cortinas, ocultando anoite.Ainda não as tinha corrido porque estava sentada à janela a ver se vosvia.Pensaste que eu tinha morrido?A imaginação prega partidas terríveis.Fizeram-me atrasar. Conheci um indivíduo à entrada do clube.Conversámos. Convidou-me para entrar, afim de tomar um chá, mas àstantas foi falar com um velho numa cadeira de rodas. Perguntei então àempregada de mesa de quem se tratava; respondeu-me que se chamava PeterKennedy e era o pastor.Elfrida aguardou. Às tantas, perguntou:E então, Oscar?- Pensei que ele soubesse do acontecido. Do acidente. Gloria eFrancesca. Da morte de ambas. Ocorreu-me a possibilidade de Hector lheter contado. Imaginei-o um tipo simpático, mas às tantas não passariade caridade. Pena de mim. Não quero ser ajudado. Não quero ter de161falar ou escutar. Quero que me deixem em paz. Por isso não fiquei. Vimmeembora. Para casa.Oh, Oscar.Eu sei. Fui rude e mal-educado.Estou certa de que ele compreenderá.Espero que sim. Simpatizei com ele.Haverá tempo. Bem precisas dele. Oscar respirou fundo, com ar sofrido.Observou:Detesto-me a mim próprio.Oh, meu caro, nunca faças isso.Censuras-me?Não. Eu compreendo.Bebeu um pouco do chá que escaldava, reconfortante. Sentara-se emfrente dele, numa pequena cadeira de base larga forrada em tecidoaxadrezado. Sentia o calor da fogueira na barriga das pernas.Talvez não seja uma altura oportuna, mas tenho de te perguntar umacoisa. De te dizer algo , disse.Espero que não me queiras dizer que te vais embora.Não, não é isso. Recebi um telefonema. De Carrie Sutton, filha deJeffrey. Voltou da Áustria. Quer vir passar o Natal connosco.Mas nós não vamos celebrar o Natal.Oscar, eu disse-lhe que não passaremos de um pouco de borrego ao almoçoe nada de enfeites. Contei-lhe que foi esse o nosso acordo. Elacompreende. Não lhe faz a menor diferença. Diz que também não estáinteressada no Natal.Nesse caso, que venha. Elfrida hesitou.Há uma complicação.Um homem?Não. A neta de Jeffrey. Sobrinha de Carrie. Lucy. Se Carrie vier, Lucyterá de a acompanhar.Fez-se um silêncio muito prolongado. Os olhos de Oscar desviaram-se dorosto de Elfrida e fixaram-se na fogueira. Por um momento, pareceu tãovelho como o tio, naquele dia horrível em que Elfrida encontrara oidoso inesperadamente e achara, por um instante horrível, que setratava de Oscar.Disse a Carrie que precisava de te perguntar. De te falar na menina ,acrescentou.Que idade tem ela?

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Catorze.Porque é que tem de vir?Oh, não sei. Elfrida encolheu os ombros. Uma história qualquer da mãeque vai para a Florida passar o Natal com um namorado e a filha nãoquerer acompanhá-la. E Dodie, a avó, recusa-se a ficar162Com a neta. O tipo de confusão egoísta que está sempre a acontecernaquela família.Oscar não fez comentários. Elfrida mordeu os lábios. Acrescentou:Posso telefonar a Carrie e dizer-lhe que não venha. Que ainda é muitocedo. Uma menina a cirandar por aqui seria extremamente penoso para ti.Possivelmente, insuportável. Compreendo perfeitamente e não pensareimal de ti se disseres que não.Oscar fitou-a com uma expressão de afecto nas feições suaves.Adoro a tua franqueza, Elfrida.Tem de ser mesmo assim.Se elas vierem...Saberão que não haverá Natal.Mas, e a menina?Terá a companhia de Carrie. Farão o que lhes apetecer. Irão à igreja,acompanharão os cânticos, trocarão presentes.Parece um programa muito fraco para uma menina tão jovem.E para ti, Oscar?Eu não conto. Nada poderá ser mudado. Parece-me que tens vontade de queelas venham. Então diz-lhes que o façam.Tens a certeza? Absoluta? Oscar assentiu.És uma pessoa muito querida, boa e corajosa.Há espaço para elas?O sótão está vazio. Talvez pudéssemos comprar uma cama e Lucy dormirialá em cima.Precisaremos de comprar mais que uma.Pouca coisa mais.O que quiseres, isso é que importa. Diz-lhes que venham. Quandoquiserem. Far-te-ão companhia. Receio que a minha não seja nadaanimada.Oscar, não foi para fazermos uma companhia animada um ao outro queviemos para aqui.Oscar bebeu um pouco do seu uísque, aparentemente perdido nos seuspensamentos. Depois, disse:Telefona já a Carrie. Se vierem de comboio ou de avião, podemos mandarum táxi buscá-las a Inverness. Se chegarem de carro, avisa-a da neve.Elfrida sentia-se profundamente grata a Oscar pela sua generosidade deespírito. Tê-lo ali sentado a pensar naqueles pormenores mundanos fê-lasentir-se muito melhor. Estava a ser hospitaleiro, quase como setivesse sido ele a fazer o convite e não este a ser-lhe praticamenteimposto. Acabou de beber o seu chá e pôs-se de pé.- Vou telefonar imediatamente a Carrie. Dirigiu-se para a porta edepois voltou-se para trás. Obrigada, Oscar.163LucyAinda 8 de DezembroJá tomei nota de todas as coisas maravilhosas que me aconteceram hoje,desde a chegada de Carrie a irmos almoçar fora e ela dizer-me que nósas duas talvez pudéssemos ir passar o Natal fora. O filmetambém foi muito bom. Bem, agora são dez e meia da noite, quase horasde ir para a cama, por isso estou a escrever em camisa de dormir. O queaconteceu é que depois do jantar tomei um banho, lavei o cabelo, e,quando estava a secá-lo, fui à cozinha preparar um copo de leite quentecom chocolate. Nessa altura, o telefone tocou e a minha mãe veio dizermeque era Carrie, a querer falar comigo. Acho que já tinham estado aconversar. Atendi no telefone da cozinha e esperei até ouvir o dique esaber que a minha mãe desligara, portanto não iria escutar. Às vezes

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tem essa mania. Foi então que Carrie me disse. Vamos passar o Natal àEscócia. Elfrida, prima do meu avô, está lá com um amigo e ambos queremque vamos. É um lugar chamado Creagan, e parece que a casa é bastantegrande. Estou tão entusiasmada que quase rebento. Carrie diz que édemasiado longe para irmos de carro, portanto apanharemos um avião atéInverness e depois seguiremos o resto do caminho num táxi. Partimos a15 de Dezembro; ela já reservou as passagens. O amigo de Elfrida chamaseOscar, mas Carrie não sabe como ele é, pois nunca o conheceu.Perguntei-lhe se já tinha contado à mãe e à avó, e ela disse que não.Quis saber se ela queria que eu lhes dissesse, mas a resposta foi outravez negativa, porque a avó nunca simpatizou muito com Elfrida e serámelhor a Própria Carrie falar-lhe no assunto, portanto virá cá amanhãpara dar a notícia e acalmar a avó, se ela começar a levantardificuldades. A mãe não dirá uma palavra porque só pensa em Randall ena Florida. Perguntei a Carrie o que devia levar e ela falou-me emcasaco de pele e sapatos para a neve mas claro que estava só a brincar.Nem acredito que vou à Escócia. Já estou a167contar os dias. Carrie diz que provavelmente o Natal não serágrande coisa, pois Oscar e Elfrida já são um pouco velhos Mas o queinteressa é que me vou embora com Carrie, o Natal não importa nada,tanto mais que nunca gostei muito de pudim de Natal.Elfrida diz que há lá uma praia, no mar do Norte. Mal consigoesperar!ElfridaNaquela manhã de sábado, Elfrida foi a primeira adescer. Vestira umas calças grossas em veludo listrado, mais duascamisolas, e sentiu-se grata a estas quando abriu a porta das traseiraspara deixar Horace sair para o quintal. Durante a noite formara-se umacamada grossa de gelo refulgente que tudo cobria, e os seus passosdeixaram marcas na erva grossa e estaladiça do pequeno espaço. Aindanão era dia, e ela e o cão emergiram no meio da luz emitida por umcandeeiro de rua que iluminava a vertente inclinada que ia até ao cimoda colina.Horace detestava o frio, portanto Elfrida manteve-se perto dele,esperando que o animal cheirasse aqui e ali, disparando a certa alturaaté ao cimo do quintal onde sentiu o rasto de um coelho, demorandoimenso tempo até descobrir o sítio exacto para o seu chichi. Elfridaaguardava, enregelada, tentando ser paciente, e ao olhar para o céu,viu-o azul-safira e muito límpido. Para leste, sobre o mar, o fulgor daaurora estendia-se numa faixa cor-de-rosa, embora o Sol ainda nãotivesse despontado no horizonte. Concluiu que iria estar um dia lindo,e sentiu-se grata. Já tinham tido céus cinzentos, ventos uivantes echuva que bastasse.Horace terminou, finalmente, o que tinha a fazer, de modo que voltaramapressadamente para dentro de casa. Elfrida fechou a porta. Depois,colocou a chaleira ao lume e procurou a frigideira para o bacon. Pôs amesa com uma toalha aos quadrados, chávenas e pires. Foi buscar osovos. Oscar gostava de comida cozinhada ao pequeno-almoço e emboraElfrida não lhe fizesse companhia, adorava o cheiro do bacon a fritar.Fez torradas, munindo-se de todas as cautelas, pois naquela cozinhaantiquada isso representava um certo perigo, já que a torradeira eramuito velha, já dera o que tinha a dar e o seu funcionamento deixavamuito a desejar. Às vezes, fazia saltar duas torradas razoavelmentedouradas. Outras, regurgitava o pão tal qual como este entrara. Mas setiVesse um ataque de mau génio, esquecia-se de se desligar a si mesma,a cozinha enchia-se de fumo escuro e os dois pedaços de carvão quesaíam nem às gaivotas agradavam.171De vez em quando, Elfrida dizia a si mesma que tinham de comprar umatorradeira nova. Havia uma pequena loja de electrodomésticos ao cimo darua, a William G. Croft. As montras do estabelecimento estavam repletas

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de microndas, secadores de cabelo, ferros-de-engomar, fritadeiras e umasérie de outros aparelhos sem os quais Elfrida podia viverperfeitamente. Uma torradeira, porém, era essencial. Um dia fora atélá, mas viera-se embora sem concretizar a compra, ao tomar conhecimentodo preço.A situação estava um pouco complicada para ela, pois sem o pequenorendimento adicional das suas almofadas bordadas, vivia permanentementecom falta de dinheiro. O final do mês nunca chegava suficientementedepressa para ela poder ir buscar a sua pensão aos Correios. Achava queo mais aconselhável seria arranjar um inquilino para Poulton's Row,alugando-lhe a casa ao trimestre e assegurando, deste modo, um pequenorendimento. No entanto, organizar a questão logística a partir deSutherland era demasiado para Elfrida, pelo que a ideia em germinaçãofoi posta de lado. Quanto a Oscar, ela não fazia a menor ideia se sedefrontava, ou não, com o mesmo dilema, mas também não tencionavaperguntar. Provavelmente, tinha algumas economias, uma conta no bancoou acções, contudo, sabia que Gloria é que pagava as contas dasdespesas diárias que o estilo de vida luxuoso da Granja criava.Prosseguia, portanto, a sua luta diária com a torradeira, decidindo quetodo e qualquer dinheiro seu disponível se destinaria à compra delivros ou flores.Naquele dia, sentia-se bem-humorada e o cheiro do bacon misturava-secom o da torrada acabada de fazer e do café quente. O café eraextremamente importante. Estava sentada à mesa a tomar a primeirachávena do dia quando Oscar desceu para se lhe juntar. Elfrida reparouimediatamente na sua aparência. Normalmente, usava uma camisa deflanela por baixo de um pulôver quente. Muito informal. Nada degravata. Naquela manhã, porém, não só vestira uma das suas melhorescamisas como também pusera gravata, um colete e o seu melhor casaco detweed.Mirou-o com um certo espanto.Estás muito elegante.Obrigado. Fico satisfeito em saber que reparaste.Para quê toda essa elegância?Oscar tirou o seu prato de bacon e ovos mexidos da placa quente, ondeElfrida o deixara para não arrefecer.E se te disser que é por ser sábado?Não fico convencida.Porque não me posso permitir transformar-me num velho desmazelado.O facto de teres gravata não fará grande diferença.Sentou-se e serviu-se de café.Obrigado. Não, tens toda a razão. Fiz um pequeno esforço porque precisode ir visitar alguém.Elfrida ficou surpreendida, mas fez o possível por não o dar aentender. Também sentia grande curiosidade.Quem é que vais visitar?Rose Miller.Quem é Rose Miller?Uma velha amiga.Nunca me falaste nela. É caso para eu morrer de ciúmes?Não me parece. Deve ter uns oitenta e cinco anos, se é que ainda estáviva. Era a criada da minha avó. Vive em Corrydale, numa casita comtelhado de colmo. Vou ver como está.Por que razão resolveste ir visitar a antiga criada da tua avó, assim,de repente? Tens-te mantido tão reservado que, se calhar, as pessoasaté pensam que andas fugido.Importas-te?Oh, meu caro Oscar, estou absolutamente encantada. Só não entendo muitobem essa mudança no teu estado de espírito.Oscar pousou a sua chávena. Ao falar de novo, fê-lo com voz diferente,sem gracejar.Foi ontem. Depois de encontrar aquele sujeito. Peter Kennedy. O pastor.

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Ter-me portado de maneira tão estúpida, tão rude. E há outra coisa. Nodecorrer das últimas semanas considerei-me um anónimo, mas claro queisso é ilusão minha. Se Peter Kennedy sabe quem sou, isso tambémacontece com muitas outras pessoas. Apenas são demasiado delicadas,sensatas e acanhadas para me virem bater à porta. É um meio pequeno; asnotícias espalham-se depressa. Nesta altura, já Rose Miller deve saberda minha chegada. E ficará profundamente magoada se não entrar emcontacto com ela. Portanto, decidi ir. Comprarei um ramo de flores noArthur Snead e, juntos, recordaremos os velhos tempos. Não precisas docarro, pois não?Não. É o que viver aqui tem de melhor. Basta-me atravessar a praça parair ao supermercado, o talho fica ao fundo da rua e a caminho de casasempre posso dar uma vista de olhos pela loja de antiguidades e trazerde lá um bule vitoriano. Ou até arranjar o cabelo.Queres dizer que há mesmo um cabeleireiro em Creagan?Evidentemente. Por cima da barbearia. Onde havia de ser? respondeuElfrida, inclinando-se sobre a mesa para lhe tirar o prato vazio dafrente e se servir da sua segunda chávena de café. As cortinas de panode algodão listrado ainda estavam corridas, de modo que puxou-as para olado, revelando o céu que clareava.De repente, sentiu-se animada como já não lhe acontecia há muito tempo.As coisas começavam, lentamente a melhorar. O dia estaria Enregelantemas agradável. Oscar ia fazer uma visita, e na semana173seguinte, Carrie e Lucy chegariam. Ao pensar nisso, achou que o diaanterior talvez tivesse representado um ponto de viragem, embora não otivesse reconhecido como tal.Vou dar uma volta anunciou Oscar. Esticar as pernas Apanhar ar fresco.Levarei Horace comigo.Saltava à vista que Elfrida não seria convidada para os acompanhar Oque não fazia diferença, porque não tinha vontade de sair, estafando-sea arrostar o vento e a chuva. Conseguiu, mais uma vez, não mostrarsurpresa e recomendou-lhe simplesmente que se protegesse bem contra ofrio que fazia.O certo é que, felizmente, Oscar encontrara o tal homem, Peter Kennedy.O pastor. E, vá-se lá saber por que razão, tinham entabuladoconversação e ele fora tratado com simpatia e hospitalidade. O factode, qual cão que morde a mão que o alimenta, Oscar ter entrado empânico e saído porta fora, revelara-se, provavelmente, menos importantepara Peter do que para Oscar que, via-se bem, ficara muito envergonhadocom o seu comportamento. Se calhar, passara a noite acordado, cheio deremorsos. Talvez a visita à velha serviçal fosse uma espécie dereparação, o seu primeiro passo no regresso ao convívio com o seusemelhante.A que horas vais, Oscar? perguntou Elfrida, trazendo a sua chávena devolta para a mesa. Refiro-me ao encontro marcado com Rose.Não é nenhum encontro marcado, pois ela não sabe da minha ida.Mas chamar-lhe encontro marcado é muito mais excitante.Creio que cerca das dez e meia. Achas bem?Perfeito. Ela já andará a pé e oferecer-te-á um chá e, talvez, umbiscoito. Bebeu o seu café. Talvez não fosse má ideia, já que estarásem Corrydale, ires fazer uma visita ao major Billicliffe.Estava com medo que dissesses isso.Oh, Oscar, estás a ser covarde. O homem não passa de um velhoinofensivo e, se calhar, até se sente terrivelmente solitário. Éindelicado continuar a viver aqui e fazer de conta que ele não existe.Vendo bem, estava à nossa espera com a chave e uma bebida deslavada.Oscar, calado, não parecia minimamente entusiasmado. Podias passar porlá casualmente, para o dia correr mais depressa. Talvez convidá-lo parauma bebida na altura em que Carrie e Lucy estiverem cá. Poderias dizerque era uma festa.Oscar desviou o tema da conversa com astúcia.

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Quando é que elas chegam?Sexta-feira. Já te tinha dito. Chegam a Inverness de avião e jácombinei com o homem do táxi para as ir buscar.Não sabiam que tínhamos um táxi aqui.Alec Dobbs.174- Pensei que esse era o cangalheiro.E é, mas também tem um táxi.- Um homem de muitos misteres.Elfrida beberricou o seu café. Já se esquecera do major Billicliffe epensava agora na chegada de Carrie e Lucy.já temos pouco tempo, não é? Tenho de ver se dou uma voltapor aí para arranjar com que mobilar o sótão. Deve haver alguma lojacom artigos em segunda-mão. Tentarei saber.A quem perguntarás? . Ao homem do talho?Ou ao jornaleiro?Porque não ao cangalheiro?A Mistress Snead, sem dúvida. Essa deve saber de certeza.A fascinante conversa teria prosseguido indefinidamente, se não fosseinterrompida pelo toque estridente da campainha da frente, o que fezcom que Horace desse um pulo de susto e se sentasse no seu cesto aladrar perdidamente.Elfrida mandou-o calar, saiu da cozinha e desceu ao vestíbulo. O toquefora do carteiro, que deixara duas cartas no tapete. O que Elfridaconsiderou, mais uma vez, um bom presságio, porque ainda praticamenteninguém lhes escrevera desde a sua chegada.Inclinou-se para pegar nas cartas, que depois levou consigo até juntode Oscar.Uma é para ti, dactilografada e de aspecto formal, provavelmente dogerente do teu banco. E a outra é para mim.Agora é a minha vez de ter ciúmes.Não me parece que seja caso para isso. Tirou os óculos do bolso ecolocou-os. Uma letra muito certinha e pontiaguda, à moda antiga.Pegou numa faca, abriu o envelope e tirou a carta. Voltou a página afimde ver de quem era a assinatura e sorriu.Oscar, é de Hector. Aquele velhinho simpático escreveu-nos. Sentou-se eabriu o papel azul espesso. É um cheque! Um cheque de quinhentaslibras!Oscar ficou de boca aberta.Quinhentas libras? Tens a certeza?Vê tu mesmo. Endossado a ti.Oscar ficou a olhar para o cheque com ar ligeiramente estupefacto, edepois observou:Talvez seja melhor veres a que se destina. Elfrida leu então, em vozalta:Estimados Oscar e Elfrida,Não escrevi antes porque queria dar a ambos tempo para seinstalarem. Espero que tenham feito boa viagem e a casa estivesse175em boas condições. Devo confessar que, depois de partirem, ainda penseiem escrever a Peter Kennedy, o pastor da igreja paroquial de Creagan.Sei que tu, Oscar, desejas preservar a tua privacidade e o anonimatopara poderes conformar-te com a tragédia que sofreste, mas não pudedeixar de me sentir preocupado contigo, e Peter é bom homem, umexcelente amigo, e eu sabia que podia confiar que não iria comentar osteus problemas com ninguém. Era visita regular de Corrydale antes de euentregar a propriedade a Hughie, e gostei muito da sua companhia e dasua perspicácia. Espero que se cheguem a conhecer e que tu estejasdisposto a aceitar a atenção dele e a possível oferta de solidariedade.Conto que estas minhas iniciativas não te ofendam. Também me preocupa apossibilidade da casa estar insuficientemente mobilada e equipada. Comosabem, já não a vejo há anos, embora tenha providenciado, desde a

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partida dos Cochrane, para a sua manutenção. Como me sinto responsávelpor te ter convencido a sair do Hampshire para ires viver para Creagan,gostaria muito de patrocinar a aquisição de quaisquer extras que vocêsachem que tornarão a vossa vida mais confortável. Assim, envio umcheque de quinhentas libras que, espero, seja suficiente para as vossasnecessidades.O tempo em Londres ainda está cinzento e frio. Saio pouco, mas vejo daminha janela. Espero que estejam os dois bem. Gostaria de uma carta ouum telefonema vosso para ficar sossegado. Vi no The Times que a Granjaestá à venda. Os rapazes não perderam tempo.Um abraço para os dois, HectorElfrida dobrou a folha e voltou a metê-la no envelope.Vou responder-lhe ainda hoje de manhã , declarou.Está a ser muitíssimo generoso. E realmente não estamos a precisar denada.Ai isso é que estamos! contrapôs Elfrida firmemente.O quê, por exemplo?Uma torradeira nova que não queime o pão, expluda ou que meelectrocute. Esta é do século passado. Além disso, precisamos de umacama para Lucy e seria agradável ter cortinas na janela da escada.Nunca reparei em nenhum desses pormenores observou Oscar, mostrando-sealgo envergonhado.Os homens nunca reparam.Talvez possas comprar uma máquina de lavar loiça. Não?Não quero nenhuma máquina de lavar loiça.- Um microndas?Também não quero nenhum microndas.176Que tal uma televisão?Nunca vejo televisão. E tu?Só os noticiários. E o Songs of Praise. E os programas sobre viagens.Oscar, não achas que somos umas pessoas cheias de sorte por termos tãopoucas necessidades?Sem dúvida. Pegou no cheque e observou-o. Em mais de um aspecto.Segunda-feira irei ao Banco da Escócia depositar isto numa contaconjunta em nome de nós dois. Podes comprar mobília à vontade.Mas o dinheiro não é para mim.É para nós dois.E o Banco da Escócia prestar-se-á a isso?Já sou cliente deles desde rapaz. Não prevejo dificuldades.Estás a ser demasiado optimista, Oscar. E não te esqueças das florespara Rose.Não esquecerei.O dia acabou por se revelar radiosamente límpido. O Sol vermelhoergueu-se no céu azul e não corria uma brisa. As senhoras que andavamàs compras caminhavam cautelosamente pelos passeios, receosas deescorregar ou cair. Calçavam botas grossas e agasalhavam-se com chapéuse luvas de lã. O frio, porém, não as impedia de pararem para tagarelar,a respiração condensada em vapor que ficava a pairar por instantesenquanto falavam.A igreja, que se erguia por trás do rendilhado negro de árvoresdespidas, refulgia, dourada, sob os raios solares. As gaivotasrodopiavam por cima do pináculo da torre e viam-se gralhas pousadas nocata-vento da cúpula. A geada cobrira a erva do velho cemitério, e oscarros, vindos de quintas distantes, traziam um revestimento de neve.Na parte aberta do porta-bagagens de um deles aparecia a ponta de umpinheiro para a árvore de Natal.Elfrida, depois de terminar rapidamente as suas tarefas domésticas,fazer camas, acender o fogo na lareira e trazer um cesto de lenha dobarracão do quintal, sentou-se à janela da sala a observar toda aquelaactividade sazonal. Oscar saíra, depois de gastar algum tempo e esforçoa retirar o gelo do vidro da frente, afim do pára-brisas poder

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funcionar. Elfrida esperava que Rose Miller ficasse satisfeita em vê-loe calculava que assim seria.Voltou-se para a mesa, com o sol diáfano a aquecer-lhe as costas, ecomeçou a escrever a Hector.177Casa da Quinta9 de DezembroEstimado HectorQue bom ter escrito. Os nossos agradecimentos, meus e de Oscar, pelogeneroso presente. Foi muito bem-vindo por várias razões. Estamos comuma certa falta de objectos essenciais, embora nos tenhamosdesenvencilhado bastante bem sem eles. Mas agora uma jovem prima minha,Carrie Sutton, vem cá passar o Natal e traz consigo a sobrinha, Lucy,que tem catorze anos, portanto será bom dar um aspecto um pouco maisfestivo à casa e torná-la mais acolhedora. Precisamos realmente de umatorradeira nova, mas isso bastará, e também tenho de comprar algumamobília para o quarto de Lucy (irá dormir no sótão!), de modo que o seucheque veio mesmo a calhar.Oscar está bem. Tem andado muito melancólico desde quechegámos e eu de vez em quando fico um pouco deprimida por vê-lo assim,sem saber se acabará por emergir de tão grande desgosto para prosseguira sua vida. Ainda não quis ver nem falar com ninguém. Ontem, noentanto, foi dar um longo passeio com Horace, o meu cão, e ao pé doclube de golfe foi abordado por Peter Kennedy. Simpatizou muito comele, disse que tinha um rosto bondoso. Convidado para tomar um chá noclube ainda entrou, mas assim que percebeu que Peter Kennedy era opastor, ficou em pânico e fugiu.Fiquei preocupadíssima ao saber do acontecido, mas o incidente fê-lopensar e chegar à conclusão de que não pode continuar a fugir. Tantoque, esta manhã, meteu-se no carro e foi a Corrydale fazer uma visita aRose Miller. É o primeiro passo que dá voluntariamente em direcção aomundo dos outros; estou muito contente e convencida de que os Kennedyvirão logo a seguir. Aconteça o que acontecer, Oscar não deve serimpelido, mas sim deixado à vontade para que avance ao seu próprioritmo. Estamos realmente muito bem e os dias passam com tranquilidade.Esta terra é muito calma e eu levo Horace para grandes passeios àbeira-mar e às vezes só voltamos depois do pôr-do-Sol. Não temostelevisão, mas também não nos faz falta. Oscar trouxe o seu radiozinhoe passamos o serão a jogar canasta e a ouvir a FM clássica. Foi umalonga viagem do Hampshire até aqui, e nós...Estava tão atenta à sua carta, tão alheia às vozes que lhe chegavam darua, mais abaixo, que não ouviu o portão de ferro abrir e fechar, nemos passos até à porta da frente. Quando a campainha soou, sobressaltousede tal maneira que deixou cair a caneta. No piso de baixo, Horacedesatou, como de costume a ladrar em pânico. Levantou-se, saiu da salae desceu apressadamente as escadas.178Oh, Horace, está calado!Atravessou o vestíbulo e abriu a pesada porta, deixando entrar o solbrilhante e o frio penetrante, deparando com uma figura femininadesconhecida.Não ligue ao cão.Não tem importância.A sua visita era uma mulher talvez perto dos quarenta anos, alta, magrae de aspecto maravilhosamente simples. Tinha o cabelo muito escuro,quase preto, cortado a direito pela altura dos ombros e com franja.Envergava uma Barbour muito usada por cima de uma camisola de lãvermelha comprida e calçava o que pareciam ser umas botas Doc Marten.Trazia um cachecol em tecido de lã escocesa ao pescoço, que faziaressaltar-lhe o rosto lindamente estruturado e sem qualquermaquilhagem. Estava bronzeada, porém o frio daquela manhã desenhara-lherosáceas vermelhas nas bochechas. Os olhos eram profundos e escuros

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como breu. Numa mão trazia um saco de plástico cheio de compras, naoutra um pequeno cesto rural contendo ovos.Sorriu.Olá. É Elfrida Phipps? Espero não estar a incomodá-la, mas eu souTabitha.Elfrida não disfarçou o espanto que se lhe espelhou no rosto.Sou Tabitha Kennedy. Mulher de Peter Kennedy.Oh! Elfrida fez um esforço enorme para não parecer surpreendida além dorazoável. Nunca na vida deparara com uma pessoa com tão pouco aspectode ser mulher de um pastor. Que prazer em conhecê-la. Afastou-se daporta, mantendo-a aberta. Faça o favor de entrar.Tabitha Kennedy, porém, hesitou.Deve estar ocupada. Trouxe-lhe apenas uns ovos. Das minhas galinhas.Não estou ocupada e ovos frescos são um verdadeiro pitéu. Entre, voupreparar-lhe uma chávena de café.Tabitha entrou e Elfrida fechou a porta.Importa-se de ir até à cozinha? perguntou, indicando o caminho. Porei achaleira ao lume e depois iremos tomar o café lá para cima. Ou prefereantes chá?Adoraria uma chávena de café. Estou gelada. Peter ficou com o carro,por isso tive de descer a colina a pé. O chão está tão gelado quepensei que não escapava de uma queda.Foi atrás de Elfrida até à cozinha, pousou o cesto de ovos em cima damesa e pendurou o saco nas costas de uma cadeira.Oscar também levou o carro. Foi a Creagan visitar alguém chamado RoseMiller.Oh, vai ser uma festa. Rose sempre adorou Oscar. Está sempre a falarnele. Sabe que nunca estive aqui? Sempre que vinha até179esta casa era tudo muito formal, subia as escadas e ia logo para a salade estar. Os Cochrane eram um velho casal engraçado, muito reservado.Pouco dados, como se diz, ao convívio. Eu e Peter éramos convidados,uma vez por ano, a vir tomar chá e a ter uma conversa educada. Era tudoum pouco difícil de suportar. Que tal se sentem aqui?Elfrida enchera a chaleira e pusera-a ao lume, e naquele momentodispunha as chávenas e os pires num tabuleiro.Optimamente. Tabitha olhou em redor.Esta cozinha faz-me lembrar uma exposição num desses museus doPatrimónio Nacional. A minha avó tinha uma tal e qual assim. Não creioque os Cochrane fossem muito dados a electrodomésticos, mas se assimera, Mistress Cochrane certamente levou a maioria. Têm máquina de lavarlouça?Não, mas como nunca tive nenhuma, não me faz diferença.E máquina de lavar roupa?Há uma, muito velha, na copa. Leva horas, mas funciona. E a minhamáquina de secar é a corda pendurada ao fundo do quintal.Tem copa? Posso ver?Com certeza.É por esta porta? Cada vez melhor. Chão lajeado, tanque de cimento etábuas de esfregar em madeira. Mas têm um frigorífico.Que pouca falta me faz com este tempo.Tabitha fechou a porta que dava para a copa, voltou para a cozinha efoi sentar-se numa cadeira junto da mesa.Serve-se daquela sala de estar grande lá de cima?Constantemente. Passo a vida a subir e descer escadas.E quanto às divisões do rés-do-chão?Uma delas é uma tenebrosa casa de jantar vitoriana. Montes de móveispesados e escuros em mogno, cortinas de tecido felpudo e um pianovertical com suportes para velas. A outra divisão deve ter servidooriginariamente de escritório da propriedade. Não me parece que osCochrane a tenham alguma vez utilizado. Ainda lá está uma velhasecretária de tampo rolante e gavetas especiais para guardar as rendas.

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Receio que ainda não tenhamos aberto as portas de nenhuma dessas salas.Comemos aqui ou ao pé da lareira.Muito mais simples.E Oscar parece não se importar.Ainda bem que Oscar não está. Uma das razões que me trouxe aqui foipedir desculpa e agora já não precisarei de o fazer disse Tabitha.Pedir desculpa? De quê?Peter pediu-me que o fizesse. Acha que ontem à tarde foi demasiadometediço e bisbilhoteiro. Espera sinceramente não ter perturbado Oscar.180Tanto quanto sei, Oscar é que acha que devia pedir desculpa apeter. Não foi nada delicado ter-se vindo embora daquela maneira, masentrou em pânico. Ficou cheio de remorsos. Percebeu que não se tinhaportado nada bem.Hector escreveu-nos a contar que a mulher e a filha lhe morreram numacidente de automóvel. Superar algo assim e depois continuar a viverleva muito tempo.É o chamado luto.Eu sei. Para si também não deve ter sido fácil. Para dizer a verdade,tem sido infernal.Elfrida ouviu-se proferir aquelas palavras impulsivas e ficou espantadapor elas lhe terem saído, porque nem sequer identificara, ou admitira,os momentos mais difíceis, nem mesmo a si mesma.Penso que a frustração é o pior, pois não há absolutamente nada que umapessoa possa fazer para ajudar. E depois há a impaciência. A seguir,vem o remorso derivado da impaciência. Tive de morder a língua em maisde uma ocasião. E há ainda outro aspecto, que é eu ser um animalbastante social. Não me refiro a festas constantes, mas antes a fazeramigos e a conhecer gente. Oscar tem-me obrigado a comportar com muitareserva. Se calhar, criei uma imagem de pessoa pretensiosa.Estou certa de que não.Mistress Snead tem sido a minha salvação. Temos grandes conversas àvolta de uma chávena de chá.Ainda bem que ela trabalha para si.Hoje... hoje tenho a impressão de que os tempos de maior dificuldade jáestão a ficar para trás. Espero que sim, para bem de Oscar. Ele é umamor de pessoa, não merece o que aconteceu. Talvez o ter ido visitarRose Miller seja um passo em frente.Nós estivemos sempre à disposição, Peter e eu, mas achámos que ambosprecisavam de algum tempo. Por vezes, é difícil saber qual a alturaapropriada.Não se preocupe com isso, por favor.Acha boa ideia Peter vir visitar Oscar? Podiam acertar as coisas entreeles.Acho a ideia esplêndida, mas diga-lhe que telefone primeiro.Assim farei.O café estava pronto, o tabuleiro preparado. Elfrida pegou nele.Subamos. Lá em cima é mais confortável. Foi à frente, seguida porTabitha.Sempre achei esta escada uma beleza. Dá uma bela impressão logo àentrada. Peter diz que as balaustradas são feitas de pinho do Báltico,trazido como lastro nos barcos da pesca do arenque.Ao chegar ao patamar intermédio parou para olhar pela janela. No ladode lá, o quintal, ainda coberto de gelo e desolado pelo inverno que181ia a meio, estendia-se pelo declive acima numa série de socalcoscobertos de erva, com um carreiro e pequenos lances de degraus pelomeio Mesmo ao cimo, havia uma fileira de pinheiros com ninhos degralhas.Já me tinha esquecido da extensão de terra que pertence a esta casa. Láde fora não se consegue ver por causa do muro alto. Adoro um quintalmurado. O velho Cochrane era um excelente jardineiro. Abastecia o Manse

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de alfaces gratuitas.Oscar também gosta de jardinagem, mas até agora ainda só varreu umasfolhas.Na Primavera aparecem narcisos silvestres e os socalcos ficam roxos. Etambém há lilases.Elfrida, carregada com o tabuleiro, continuou a subir. Atrás dela,Tabitha prosseguiu o seu comentário:Não é só a sensação que transmite, impressiona verdadeiramente. Não seimagina tão grande...O sol baixo entrava pela porta aberta da sala.Sempre achei esta sala de estar uma das divisões mais bonitas da casa.Oh, olhe, deixaram-lhe ficar o candelabro. Deve ter vindo de Corrydale.Olhou em volta para as paredes nuas e reparou no pequeno quadro queElfrida trouxera consigo de Dibton. Santo Deus, que lindo. Aproximou-separa o examinar mais de perto. Não estava aqui, pois não?Não. É meu disse Elfrida, pousando o tabuleiro em cima da mesa junto dajanela.É um David Wilkie, de certeza. Elfrida ficou impressionada.Sim, é. Já o tenho há anos. Levo-o sempre comigo para onde vou morar.Como é que tamanha preciosidade foi parar às suas mãos?Ofereceram-mo. Tabitha riu-se.Alguém deve ter gostado muito de si.Parece uma mancha num mata-borrão; demasiado pequeno para uma paredetão grande.Mas é encantador.Elfrida foi pegar fogo à lenha da lareira.Será que precisamos? perguntou Tabitha. Está tudo tão quentinho.É o que esta casa tem de melhor... uma caldeira a petróleo eaquecimento central. Quando vim para cá estava com imenso receio de queisto fosse um gelo, mas como vê estamos muito confortáveis. A caldeiratambém aquece a água, portanto, os banhos são escaldantes.E estas casas vitorianas são sólidas, estão muito bem construídas. Nãodeixam entrar uma corrente de ar.O fogo pegou e começou a crepitar. Saltaram pequenas chamas. Elfridajuntou-lhe um bocado de carvão e um toro.182Sentamo-nos ao pé da janela?Óptimo. O sol está uma beleza.Tabitha tirou o cachecol do pescoço e abriu o fecho do blusão, quedespiu e atirou para cima de uma cadeira antes de se sentar na bancadada janela.Costuma ficar aqui a ver quem passa? Já deve saber o suficiente sobrenós, os locais, para escrever um livro.É realmente fascinante. Elfrida afastou para o lado a carta quecomeçara a escrever a Hector. Vive cá há muito tempo?Cerca de vinte anos. Casámos pouco antes de Peter vir para cácomo pastor.Que idade tinha?Vinte. Tabitha fez uma careta. Alguns paroquianos não aprovaram nada,mas ao fim do dia já estava tudo bem. Os nossos dois filhos nasceram emManse.Que idade têm?Rory, dezoito. Terminou o liceu. Os nossos dois rebentos têmfrequentado o colégio local. Teve notas para entrar na Universidade deDurham, mas só começa no próximo ano. Não sei o que irá fazer para seocupar neste intervalo. Peter diz que o que interessa é que o rapaztrabalhe ou estude. Clodagh tem doze e, sabe-se lá porquê, é doida porcavalos. Ainda não percebemos porque escolheu ela um passatempo tãodispendioso.Podia antes ter optado pelo planador.De repente começaram ambas a rir. Sabia bem estarem ali as duas atagarelar, à volta de uma chávena de café, sobre os seus homens e

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filhos, como se fossem velhas conhecidas.Ao olhar para Tabitha, ali sentada com a sua camisola de gola alta e ocabelo cortado à menina, Elfrida encheu-se de curiosidade.Gosta de ser casada com um pastor?Adoro estar casada com Peter. E não sou apenas a mulher do pastor, poisdou aulas de pintura no liceu. Sou uma professora qualificada, comtodos os diplomas próprios. Cinco manhãs por semana.Não me diga que é pintora...Sim, pinto e desenho, mas também ensino trabalhos manuais, cerâmica ebordados. Todos os paninhos da igreja foram feitos pelas alunas maisvelhas. Foi um projecto grandioso. E não há mãe em Creagan que nãotenha uma jarra de flores, um tanto desequilibrada, para as suasbegónias.Eu fui actriz disse Elfrida.Depois sentiu-se um pouco acanhada e desejou não ter deixado escapar asua antiga profissão, não fosse estar a querer competir com o talentode Tabitha.Tabitha, porém, mostrou-se surpreendida e encantada.Não me diga! Se quer saber, até nem fico muito admirada. Estou mesmo aimaginá-la em palco. Era famosa?183Não, absolutamente nada. Mas tive sempre trabalho, por muito modestoque fosse.Isso é o que importa, não é? Fazermos aquilo de que gostamos e i aindapor cima pagarem-nos por isso. É assim que eu também sinto. É excelentepara o amor-próprio. Peter compreende. É uma das razões pelas quaisgosto tanto dele. Estou ansiosa para que o conheça. Podia convidá-lapara ir até a Manse, mas é melhor esperar que, primeiro, eles dois seentendam. Assim que isso acontecer, irão até lá. Telefonarei.Gostaria imenso.Que fazem no Natal?Não devemos fazer nada de especial. Não creio que Oscar tenha vontadede o festejar. E eu compreendo, porque pode ser uma altura extremamenteemotiva. Mas é complicado, já que no próximo sábado chega uma primaminha, que traz a sobrinha consigo. Já as adverti de que os festejosserão fracos, mas vêm na mesma.Que idade tem ela?Carrie tem trinta, mas a sobrinha, catorze. Não a conheço. Espero quenão seja demasiado tímida. Ou demasiado vivaça, já agora. Espero...também espero que não se aborreça.Há sempre tanto que fazer em Creagan no Natal que, sem dúvida, sedivertirá imenso. As crianças da localidade reúnem-se...Ela não as conhece.Apresentá-la-emos a Rory e a Clodagh, e depois conhecerá os outrostodos.Elfrida não se sentia tão segura disso.Eles não se importarão?Importar? Porque se haveriam de importar?Bem... uma criança estranha. De Londres.Mais uma razão para a entreterem observou Tabitha.De repente, Elfrida captou o lado severo da professora, a manter adisciplina, e da mulher do pastor, a criar os filhos segundo osverdadeiros princípios cristãos. Percebeu então que Tabitha, apesar dasua aparência boémia e dos modos juvenis, era uma pessoa diferenciada.O aumento do respeito fez com que Elfrida a apreciasse ainda mais.Foi então que se lembrou.Tenho de comprar alguma mobília. Estamos com uma certa escassez dela,pois a casa estava meio vazia, para ser alugada. Não há problema quantoao quarto para Carrie, mas pensei em pôr Lucy no sótão. É lindo eluminoso, mas falta-lhe... Não se importa de lá ir comigo dar-lhe umavista de olhos? Poderá ajudar-me a pensar no que hei-de arranjar.Com certeza. Com todo o gosto. Tabitha terminara o café e puxou então a

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manga da camisola para cima, afim de ver as horas. Depois tenho de ir acorrer. Peter tem uma reunião em Bucky hoje à noite e preciso de lhedar uma sopa antes de sair.184Se não tiver tempo...- Claro que tenho. Venha, mostre-me. Sou uma perita em decorações deinterior.O capital é curto.Sou mulher de um pastor, portanto, isso não é novidade. Subiram asescadas até ao último piso, onde ficavam os sótãos. Um deles, semjanela, tinha três baús velhos, um manequim de modista e teias dearanha com fartura. O outro, com a sua clarabóia enorme e a baixada notecto, tinha a enchê-lo unicamente a pálida luz do Inverno. Tabithaficou encantada.Que quarto encantador. Qualquer adolescente adoraria tê-lo só para si.Vai pôr alcatifa? É que as tábuas do soalho são lindas. E também tem umradiador, o que o tornará muito confortável. Claro que precisará de umacama e, talvez, de uma cómoda com gavetas. E que tal uma televisão?Não tenho nenhuma.Pois é, mas os adolescentes gostam sempre de ver os seus programas.Rory tem uma velha, que já não utiliza; vou falar com ele sobre oassunto. E alguns candeeiros. E uma cortina para a clarabóia. Casocontrário, fica um bocado assustador.Tenho algum dinheiro observou Elfrida , mandado por Hector, mas nãomuito. Pensei em ir a uma loja de mobílias em segunda mão...Em Buckly há um mercado excelente.Nunca fui a Buckly.Eu levo-a. Encontra tudo muito mais em conta.Camas?Oh, camas maravilhosas. E lençóis, quadros, objets d'art, roupasterrivelmente antigas, guarda-fatos, carpetes. Na semana que vem. Umatarde qualquer... pode ser terça-feira?Elfrida, cuja agenda estava tristemente vazia há mais de um mês,concordou.Podemos ir no seu carro? Peter deve precisar do nosso. Elfridaconcordou de novo.Vai ser muito divertido. Mal posso esperar. Consultou novamente orelógio de pulso. Agora tenho mesmo de voar ou Peter ficará furibundo.Depois de Tabitha partir, Elfrida foi acabar a carta para Hector.só chegámos às sete da noite do segundo dia. Esta missiva está a levarmuito tempo a escrever porque fui interrompida pelachegada de Tabitha Kennedy, que veio fazer uma visita. Tenho a certezade que dentro em breve Peter e Oscar esclarecerão o mal-entendido.Tabitha é adorável e vai-me levar a um mercado em Buckly para eucomprar coisas para a casa. Mais uma vez,185obrigada pela sua simpatia e generosidade. Espero que fique bem e que otempo melhore para poder sair e dar umas voltinhas. Um grande abraço denós dois.Elfrida Releu a carta, meteu-a num envelope, escreveu a morada e coloulheo selo. Depois, desceu ao piso de baixo e inspeccionou rapidamenteo conteúdo do frigorífico. Concluiu que só precisava de uns legumes etalvez, de alguma fruta. Horace dormia no seu cesto e não desejavaclaramente, ser incomodado, de modo que deixou-o ali e, depois de seagasalhar, saiu porta fora. Não a fechou à chave, já aprendera que, emCreagan, ninguém o fazia.O vento estava enregelante, mas o sol baixo derretera já parte do geloe o pavimento apresentava-se molhado e escuro. Ainda assim, Elfridacaminhou com precaução como qualquer das outras senhoras que andavam àscompras, pois naquela altura uma perna partida fazia-lhe tanta faltacomo um buraco na cabeça.Meteu a carta no marco de correio, em seguida atravessou a rua em

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direcção ao Frutas e Legumes, de Arthur Snead. Por acaso, encontrou apequena loja vazia. Artur Snead estava apoiado ao balcão a ler oresultado das corridas. Ao ver Elfrida endireitou-se e dobrou o jornal,pondo-o de lado.Viva, Mistress Phipps. Como vai nesta bela manhã?Arthur Snead era a outra metade de Mrs. Snead, que o tratava sempre porArtur. Os Snead tinham-se revelado um conforto para Elfrida quando estachegara a Creagan, não apenas por Mrs. Snead fazer a limpeza da Casa daQuinta e ser uma mina de informações utilíssima, mas também porque eramcockneys e Elfrida, depois de ter vivido em Londres grande parte da suavida, adorava o sotaque familiar das suas vozes que, de certo modo, aajudara a sentir-se um pouco menos isolada. Os Snead haviam chegado aCreagan cinco anos antes, vindos de Hackney. Elfrida ouvira o relato dainusitada mudança durante várias chávenas de chá com Mrs. Snead.Contara que Artur se lançara à vida com um pequeno carrinho de mão naNorth End Road, tendo depois conseguido comprar, finalmente, umapequena loja. Depois, as pessoas da Câmara tinham-no ido chatear e eleficara tão farto que, ao ver isto anunciado numa revista de jardinagem- ele comprava sempre essa revista por causa do seu bocado de terra,onde cultivava umas ervilhas deliciosas - perguntara a Mrs. Snead, «Quetal achas isto, minha velha?» e ela, sempre leal, respondera, «Okay,Artur», de modo que se tinham posto a caminho, comprado a loja e opequeno apartamento por cima sem olhar para trás. A clientela era boagente e ele entrara no clube de bowling e viciara-se na pesca marítima.Quanto a Mrs. Snead, era agora membro da paróquia, participava naspasseatas e, de vez em quando, cantava no coro.186Respeitados e aceites pela comunidade local, continuavam a serconhecidos, sem malícia, pelos «Colonos Brancos».É melhor ter cuidado, minha querida, ainda esta manhã vi o seu homem acomprar crisântemos para outra senhora.Eu sei. Chama-se Rose Miller e estou a esforçar-me por não sentirciúmes. Tem por aí alguns legumes?Uns brócolos que são uma maravilha. Chegaram esta manhã. A camionetateve um bocado de dificuldade em subir a encosta. Dizem que por lá aneve chegou ao metro. E há batatas de Chipre.Elfrida comprou os brócolos e as batatas, umas tangerinas num saco derede e duas toranjas de ar deslavado que Arthur lhe vendeu por metadedo preço.Vai já para casa?Não. Elfrida resolvera-se. Vou comprar uma torradeira nova. A de lá decasa está um perigo.Então deixe aqui os sacos, que vou-lhos pôr em casa. É só atravessar arua e metê-los atrás da porta.É muito simpático da sua parte. De facto, porque é que as batatas hãodeser tão pesadas? Obrigado, Arthur.Assim, liberta de pesos, seguiu pela rua fora, em direcção aosElectrodomésticos William G. Croft. Ao entrar, a porta emitiu um sinalsonoro e Mr. Croft, com o seu fato-macaco em caqui, saiu da portaaberta da divisão dos fundos, onde passava a maior parte do seu tempo aconsertar aspiradores e televisores. Reconheceu-a imediatamente davisita anterior.Bons dias, Mistress Phipps, cá a temos de novo.É verdade. Venho por causa das torradeiras. Mas desta vez comprareiuma.A outra explodiu?Não. Mas pode acontecer a qualquer momento.Qual foi o modelo que preferiu?O mais barato. Mas acho que gostaria de algo um pouco mais... moderno.Tenho precisamente o que deseja.Foi buscar a dita, que ainda estava dentro da sua caixa, e tirou-a paracima do balcão, afim de Elfrida a examinar. Era extremamente elegante,

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de formas aerodinâmicas e em tom de azul-claro. O lojista mostrou-lhecomo funcionava, o que não era nada complicado, e como, pelo simplesgirar de um botão, podia obter torradas mais claras ou mais escuras.E tem um ano de garantia - finalizou Mr. Croft, como se isso a tornasseirresistível. O que, evidentemente, foi o caso.Elfrida disse que ficava com ela.O único problema é não dispor de dinheiro suficiente para a pagar já.Não se importa de ma guardar até eu a vir buscar, amanhã ou outro dia?187Não é necessário, Mistress Phipps. A senhora leva-a consigo agora epaga quando passar por cá na próxima vez.Tem a certeza?Não fico com medo de que fuja com ela.Elfrida levou a torradeira para casa, ligou-a e fez duas belas torradaspara si, que barrou com Marmite, comendo-as deliciada. Atirou a velhatorradeira para a lata do lixo. Nesse preciso instante ouviu a porta daentrada abrir e fechar, percebendo que Oscar acabara de chegar Ainda amastigar, desceu ao seu encontro, no vestíbulo.Voltaste. Como estava Rose Miller?Em esplêndida forma. Tirou o chapéu e pendurou-o no pilar do corrimãodas escadas. Conversámos imenso e tomámos um cálice de licor de bagasde sabugueiro.Vejo que dispensaram o chá.Porque estás a comer torradas?Comprei uma torradeira nova. Vem ver. Voltou à cozinha com ele no seuencalço. Não é uma beleza? Disseste-me que fosse às compras e eu assimfiz. Só ainda não a paguei. Disse que ia lá amanhã.Vou contigo.Despiu o casacão, ajeitou uma cadeira e sentou-se. Elfrida observou-o.Para um homem que acabara de beberricar licor com uma velha admiradora,tinha um ar cansado e preocupado. Talvez o licor fosse um pouco fortede mais para as onze da manhã.Estás bem, Oscar?Sim, estou bem. Segui o teu conselho e passei pelo major Billicliffe.Ah, fizeste bem.Pois, mas olha que não estou nada satisfeito.Porque não? Que aconteceu? Oscar contou-lhe.A casinha de Rose, em Creagan, erguia-se na pequena estrada que seestendia por trás da casa do antigo feitor, por onde ele passara parafazer a sua visita. Fica para outro dia, disse Oscar de si para si.Billicliffe pode esperar até outro dia. Mas depois, estimulado pelolicor e a caminho de casa, ouvira a cadela a uivar. O som parecia umpedido de socorro e Oscar ficara imediatamente preocupado. Não puderadeixar de passar por lá. Enveredara com o carro pelo caminho que ia darà pequena casa de pedra e ouvira a cadela a uivar mais uma vez. Elfridaescutava-o consternada, já receosa do fim da história.Que foi que fizeste?Saí do carro e toquei à campainha. Ninguém respondeu, com excepção dacadela, que parou de uivar e começou a ladrar. Depois, experimentei aporta e vi que estava aberta. Entrei e chamei, mas não houve resposta.188Se calhar, esqueceu-se de colocar as próteses auriculares.Não encontrei ninguém lá dentro. E a cadela estava fechada nomesmo sítio das traseiras, a atirar-se à porta tal como na noite em quelá passámos.Não a soltaste?Não nessa altura. Tentei a outra divisão do piso térreo. Aí o caosainda era maior do que na sala de estar. Camisas ressequidas penduradasnas costas das cadeiras, papéis e caixas velhas, tudo empilhado em cimade uma mesa, tacos de golfe espalhados pelo chão. Mas havia uma escada,de modo que resolvi subir, abri uma porta que encontrei ao chegar aopiso de cima e espreitei. Foi então que deparei com o velhote, metido

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na cama.Estava morto?Por um momento pensei que sim, mas depois ele pronunciou o meu nome emexeu-se.Graças a Deus!Não estava morto, mas tinha um ar cadavérico e via-se que não seencontrava nada bem. No entanto, ao dar-se conta de que chegara umavisita, tentara recobrar as forças, soerguera-se sobre as almofadas epusera uma expressão corajosa. Quando Oscar puxou de uma cadeira, sesentou a seu lado e lhe perguntou qual era o problema, o majorBillicliffe explicou. Havia um mês ou dois que não se sentia muito bem,umas dores de estômago valentes e falta de apetite. Na véspera, amulher que lhe fazia as limpezas aparecera e ficara tão preocupada coma sua aparência que telefonara ao Dr. Sinclair, um médico que vivia emCreagan. Para abreviar, o Dr. Sinclair abandonara a sua consulta damanhã e fora imediatamente a Corrydale onde, depois de examinar o majorBillicliffe minuciosamente, lhe dissera que era melhor ir uns dias parao hospital de Inverness, onde faria alguns exames que permitiriamdeterminar a origem dos seus males. Deixara sedativos e um analgésico,e a enfermeira local passaria por lá todos os dias.Quando é que ele tem de ir para Inverness?Segunda-feira. O doutor Sinclair já lhe reservou uma cama.E como é que ele vai para lá?Claro que aí é que estava o problema. Uma ambulância percorreriaprovavelmente a longa distância que mediava entre Inverness e Corrydalepara ir buscar o velhote, mas se as estradas estivessem intransitáveispor causa da neve, certamente teria de se recorrer a um helicóptero.Foi nesse ponto que a voz débil faltara ao major Billicliffe e Oscarpercebera que o velho militar estava muito assustado não apenas com aideia de o levarem de helicóptero, mas também com a perspectiva dohospital, exames, médicos, doença, sofrimento e uma possível operação.Fora nesta conjuntura que ele começara a sentir-se responsável. parecianão haver mais ninguém e sugerira ao major ser ele, Oscar189a levá-lo de carro ao hospital e a ver se ficava convenientementeinstalado.O major Billicliffe quase chorara ao ouvir o oferecimento.Mas porquê? perguntara, procurando um lenço enxovalhado para limpar assuas lágrimas débeis de inválido. Porque haveria o senhor de sepreocupar com um velho estúpido como eu?Oscar respondera-lhe:Porque teria muito gosto nisso. Porque o senhor faz parte de Corrydale.Por causa da minha avó e de Hector. O major BillicliffJ não se mostraraconvencido. Oscar finalizara: Porque é meu amigo!Elfrida estava muito emocionada.És um amor de pessoa. E foi exactamente o que devias ter feito! Seestiveres presente, ele não terá tanto medo.Só espero que não fiquemos retidos no meio de uma tempestade de neve.Oh, quando lá chegares, é só atravessar aquela ponte. E a cadela?Desci ao andar de baixo e fui soltá-la no jardim. Estava aflita porurinar. E não se mostrou nada feroz; como ele disse, era apenas umalabrador muito querida, a precisar de festas. A propósito, chama-seBrandy.Interessante.Depois de resolver o seu pequeno problema, meti-a no carro e levei-a aRose Miller, a quem contei o sucedido. Ficou preocupada por não fazerideia do que se passava. O major passara por algumas adversidades, masela não pudera ir até lá a casa para ver se podia fazer alguma coisa.Quando me vim embora, já se estava a preparar para lá ir fazer umaslimpezas e cozinhar-lhe alguma coisa. Aos oitenta e três anos, nada lheagrada mais do que um desafio. E o que é engraçado é que parece ter umagrande estima pelo velho Billicliffe. Estava sempre a dizer, «Perde-se

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com o uísque, mas é um cavalheiro muito bom e delicado, e demasiadoorgulhoso para pedir ajuda.»E quanto à pobre cadela?Rose vai tomar providências para que Charlie, o sobrinho, cuide delaaté Billicliffe voltar do hospital. Ele trabalha na propriedade, para opessoal do hotel, e tem um abrigo onde a cadela pode dormir. Charliedar-lhe-á comida e levá-la-á consigo.Parece que trataste de tudo.Penso que ele irá ficar bom. São só dois dias, e depois estará nohospital.Oh, Oscar, a manhã que tu tiveste!Mas ainda bem que fui. Sorriu. Portanto, foi isto. E tu? Que maisfizeste, além de comprares uma torradeira?Tive uma manhã muito agradável. Melhor que a tua! Escrevi a Hector eTabitha Kennedy veio visitar-me. Tenho imenso que te contar.190Então contas-me tudo durante o almoço. Façamos uma extravagância.Celebremos a nossa consciência tranquila e a generosidade de Hector.Vamos até ao pub, comemos uma sanduíche, ou se calhar uma tarte, eudesafio-te para um gim tónico e beberemos a... nós?Almoço. Fora.Falas a sério?Claro.Oh, Oscar.Elfrida sentiu-se quase à beira das lágrimas, por um momento ridículo,mas em vez disso deu a volta à mesa, rodeou-o com os braços e abraçouo.Estava a ser um belo dia.OscarDepois de um pequeno-almoço tardio, Oscar, agasalhado como de costumecontra o frio, descera a rua até ao jornaleiro para ir buscar a suaresma semanal de jornais dominicais. A pequena vila estava despovoada esilenciosa: ainda não havia carros àquela hora matutina e o único somaudível era o das gaivotas e das gralhas, nas suas eternasmovimentações, a pairar, rodopiar e pousar na torre da igreja. Estavamais um dia brilhante, sem nuvens nem o menor sopro de vento. Tudoestava petrificado pelo gelo, e os seus passos soavam no pavimentodeserto. Sentia-se tão isolado como um explorador do Árctico. Aoregressar, encontrou Elfrida e Horace de partida para um bom eprolongado passeio à beira-mar. Elfrida levava um gorro grosso de lãque fazia lembrar um abafador de bule de chá, bem puxado sobre asorelhas, e o seu casacão de cobertor, franjado nas pontas.Ela ainda lhe propôs que os acompanhasse, mas Oscar recusou o convite,porque queria sentar-se a ler a secção de arte do jornal, inteirando-sede tudo o que estava a acontecer em Londres. Exposições, óperas econcertos. Gostava, igualmente, de ler os artigos que tratavam dejardinagem. De momento, as notícias do mundo ficavam para segundoplano.Quanto tempo demoras? perguntou-lhe ele.Não faço ideia, mas voltarei para casa a tempo de te grelhar acosteleta. E meti um pudim de arroz no forno.Oscar gostava de pudim de arroz. Elfrida já lhe fizera um certa vez eficara esplêndido, cremoso, saboroso e a saber ligeiramente a limão.Para que lado é que vais? quis ele saber.Ao longo das dunas. Porquê?Para ir à tua procura com um destacamento, se não estiveres de volta aoanoitecer.Já te prometi que terei o máximo cuidado.Isso mesmo.Separaram-se. Oscar entrou em casa e subiu até à sua magnífica sala deestar. Elfrida preparara a lenha para a fogueira, de modo que acendeua,depois voltou novamente ao piso de baixo e foi ao barracão195

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encher um segundo cesto de madeira. Para o fogo arder o dia inteiro, umcesto não bastava até à hora de deitar. Com as chamas a arderagradavelmente, seleccionou a secção de Artes do jornal e instalou-secomodamente a lê-la.Foi perturbado pelos sinos da igreja. O relógio da mesma disse-lhe queeram dez e meia da manhã. Deixou cair o jornal, levantou-se e foi atéao assento da janela, onde ficou sentado, meio de esguelha, a olharpara a rua. Achava fascinante ver, aos domingos de manhã, como a vilavazia se começava a encher a pouco e pouco.A igreja ganhava vida, preparando-se para a afluência dominical. Osportões da frente tinham sido abertos e sacristãos, anciãos, ou lá comolhes chamavam, envergando fatos escuros ou kills, passavam por eles,desaparecendo no interior. Oscar reconheceu Mister W. G. Croft, quevendera a nova torradeira a Elfrida. De repente chegaram-lhe os sons,embora abafados pelas grossas paredes de pedra, do órgão. «Que oRebanho Paste Tranquilamente». O som era atenuado pelas espessasparedes de pedra, mas o ouvido profissional de Oscar identificou deimediato a qualidade do instrumento e o talento de quem o tocava. Eramuito frequente, nas igrejas rurais, os organistas terem de fazer omelhor que podiam com equipamentos antigos e gastos, um coro de vozesdesafinadas, sendo ainda obrigados, enquanto pedalavam, a cantar em vozbem alta para dar à congregação alguma ideia da melodia.No início, Oscar achara um pouco desconcertante ter a igreja tãopróxima, uma recordação constante de tudo o que perdera. Naquelemomento, ali sentado, percebeu que só precisava de atravessar a ruapara ser arrastado para o meio daquela gente e, qual nadador apanhadonuma corrente, ser sugado para dentro daquelas portas imponentes, indoparar à nave sublime.As janelas da igreja eram altas e arqueadas, em estilo gótico. Do ladode fora, as cores dos vitrais das janelas revelavam-se ténues, mas elesabia que, para apreciar a sua magnífica beleza, era preciso vê-las dointerior, com a luz do dia a jorrar através das cores e a traçarlosangos de rubi, safira e esmeralda nas lajes gastas.Talvez aquilo fosse simbólico. Talvez, isolado da igreja, encontrasseoutros deleites, prazeres e confortos que, no estado de espírito em quese encontrava naquele momento, negasse a si próprio deliberadamente.Era uma suposição interessante, ainda que perturbadora, sobre a qualnão tinha vontade de reflectir. Afastou-se da janela e voltou parajunto da lareira e do seu jornal. Mas quando a congregação, que estavana igreja do outro lado da rua, se levantou para cantar o seu primeirohino, ele baixou o jornal e escutou, olhando fixamente para as chamas.Escutai, uma voz forte soa,Cristo está perto, parece dizer.Afastai os sonhos sombriosVós que sois filhos do dia.Um belo e antigo hino clássico do Advento. Lembrou-se de o ensaiar como coro da escola onde leccionara, implorando-lhes que cantassem como seacreditassem verdadeiramente na sua mensagem de esperança.«Tenho de falar com Peter Kennedy», pensou.O domingo, no entanto, era o dia mais ocupado da semana de um pastor.Talvez no dia seguinte. Ou no outro.Entretanto... colocou os óculos e esforçou-se por se concentrar noSunday Times e numa erudita crítica sobre a realização de Fidelio, noCovent Garden.Segunda-feira era um dos dias de Mrs. Snead. O outro era a terça.Chegou às nove em ponto, estavam Elfrida e Oscar a acabar de tomar opequeno-almoço, e anunciou a sua entrada pelo bater da porta dastraseiras. Depois fez uma pausa na copa, onde se livrou do anoraque, dolenço da cabeça e das botas, pendurando a roupa no seu gancho docostume. Fazia-se sempre acompanhar de um saco de plástico às flores,onde guardava a sua fatiota de trabalho: um avental e um par de sapatosde ténis. Oscar e Elfrida aguardaram. Então, a porta abriu-se e bangl

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Ali estava ela.Bom dia a todos.«Uma entrada», pensou Oscar «que faria o orgulho de qualquer actriz.»Bom dia, Mistress Snead.Caramba, que vento frio! Esfregando as mãos uma na outra pararestabelecer a circulação, Mrs. Snead fechou a porta atrás de si com umpontapé. Parece que atravessa uma pessoa como uma faca.Elfrida pousou a sua chávena de café.Tome um chá.Não me importava nada, antes de começar. A água está a ferver, nãoestá? Reparou na torradeira nova. Ena, vejam só o que está aqui! Andounas compras, hem? Já não era sem tempo; a outra já estava como havia deir. Que foi que lhe fez? Foi para o caixote do lixo, espero.Procurou uma caneca, uma saqueta de chá e um pacote de leite. Feito oseu chá, puxou da cadeira que estava à mão e sentou-se junto deles.Que é que se está a passar com o major Billicliffe? Ficaram ambos aolhar para ela. Oscar observou então:As notícias viajam depressa.O Charlie Miller foi ao Artur ontem à tarde comprar uma couve. Ele éque lhe contou. Disse que tem de cuidar da cadela. E que o velho vaipara o hospital de Inverness. Espero que não seja nada de grave.Também esperamos que não, Mister Snead. E Oscar é que vai levá-lo atélá.197Foi mais ou menos isso o que Charlie disse ao Artur. Fitou Oscar. Estádisposto a isso, Mister Blundell? Ainda é um bom esticão.Acho que não terei problemas, Mistress Snead.Pelo menos não neva. A que horas pensam partir?Assim que acabar de tomar o meu pequeno-almoço.Tem telemóvel, não tem? Devia ter um.Não, não tenho, mas não haverá problema.Bom, esperemos que sim, seja como for. Não vale a pena ser pessimista.Agora, antes que me esqueça, Artur manda perguntar se querem uma árvorede Natal, para ficar reservada.Uma árvore de Natal? Elfrida mostrou-se hesitante. Bem... Não sei.Têm de ter uma árvore. Sem ela não é Natal.Sim. Talvez. Mas pensámos em não ter essa preocupação.Uma árvore de Natal não é nenhuma preocupação. É um divertimento.Decorá-la e isso tudo.Elfrida apelou a Oscar.Que achas?Oscar achou que era tempo de acabar com o sofrimento da amiga.Fez muito bem em perguntar, Mistress Snead, mas a nossa árvore de Natalvirá de Corrydale.Elfrida ficou de boca aberta. E, pela primeira vez na vida, sentiu-sefuriosa com Oscar.A nossa vem de Corrydale? Porque não me contaste? Eu aqui a dizer aMistress Snead que não queremos árvore nenhuma e agora é que me contasque reservaste uma? És impossível!Desculpa.Quando é que organizaste isso tudo?No sábado, quando fui visitar Rose. Contei-te que Charlie trabalha nosjardins lá da zona. Têm uma plantação de árvores de Natal e Rose disseque ele nos escolheria uma bem bonita.Devias ter-me dito.Tinha tantas outras coisas para te contar, que me esqueci. Achei queseria simpático para Carrie e Lucy.Elfrida deitou imediatamente a fúria para trás das costas.Foi uma ideia simpática. Quando é que a trazem?Temos de telefonar a Charlie e depois ir buscá-la. Naquela altura, jáMrs. Snead estava de orelhas arrebitadas.Era uma mulher pequena e magra, com o cabelo grisalho fortemente

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encaracolado por uma permanente, que andava sempre com uns excêntricosbrincos pendentes. Ali sentada, de cabeça à banda e olhinhos atentosaos quais nada escapava, fazia lembrar a Oscar um pardal descarado.Vão ter visitas, vão?198-Ainda não tive oportunidade de lhe dizer, Mistress Snead, mas umaprima minha vem cá passar o Natal. Traz a sobrinha, Lucy, que temcatorze anos.Mrs. Snead ficou francamente encantada.Que bom. Ter gente nova cá em casa vai animar-vos. Quando é que chegam?E aonde é que quer que durmam? Teremos de limpar e encerar os quartos.Pensei em pôr Lucy lá em cima no sótão.Mas não tem lá móvel absolutamente nenhum...Depois de amanhã já terei. Tabitha Kennedy vai comigo ao mercado deBuckly. Diz que tem de tudo.Mrs. Snead fungou.Não é nada novo advertiu. Tudo em segunda mão.Tenho a certeza de que servirá perfeitamente.Pensei que a senhora tencionasse montar uma bela mobília nova. Estavanitidamente desiludida com a falta de gosto de Elfrida. Vi uma emInverness quando lá fui pela última vez. Era linda. Toda folheada anogueira, com manípulos em metal dourado. E a cama tinha uma cabeceirae uns folhos em cetim cor de pêssego.Devia ser muito bonita, Mistress Snead, mas um pouco luxuosa de mais.Além disso, não tenho vontade de guiar até Inverness.Mrs. Snead ponderou na nova situação doméstica e beberricou o seu chá.Há pouca fartura de roupa de cama continuou. Certamente não quercomprá-la em segunda-mão. A ideia de me servir de um cobertor usadonunca me agradou. Em Buckly há um vendedor de tecidos; não tem nada deespecial em roupas de vestir, mas tem muitos lençóis e atoalhados.Podia pedir a Mistress Kennedy para lá dar um pulo consigo.Boa ideia.Oh, bem. Mrs. Snead acabou de beber o seu chá e, pondo-se lestamente depé, foi despejar o que ficara no fundo da sua chávena no lava-loiça.Aqui sentada na conversa não chego a lado nenhum. Por onde quer quecomece, Mistress Phipps?Vamos até ao sótão. É preciso varrê-lo, esfregá-lo e limpar aclarabóia. Assim, quando a mobília chegar, pode ser imediatamentelevada para cima e colocada no seu lugar.Quem é que vai fazer esse carrego, posso saber? Mrs. Snead sabiamostrar-se muito protectora e inabalável. Nem a senhora nem MisterBlundell, espero. Ainda arranjam umas hérnias.Contratarei um transporte que tenha pessoal de mudanças.Se quiser, Artur trata-lhe do assunto.É muita gentileza vossa.E tem muito jeito com a chave de parafusos, isso lhe garanto eu. Ditoisto, Mrs. Snead muniu-se de vassouras, espanadores e a sua lata decera para o chão e subiu ao sótão. Pouco depois, ouvia-se o barulho199do velho aspirador Hoover, acompanhado pela voz de Mrs. Snead quecantarolava, «I want to be Bobby's girl». Elfrida reprimiu uma risada.Oscar observou:Mistress Snead não só nos limpa o pó como traz consigo uma canção queme transporta ao passado. É uma mulher realmente notável.Que recordações é que a cantoria dela evoca em ti, Oscar?Salas de estudo no colégio para rapazes, cheiro a suor dos sapatos deginástica e concertos com música em altos berros.Não me parece nada romântico.Eu era um professor solteiro. Não tinha inclinação para romances.Consultou o relógio. Elfrida, tenho de ir andando.Tem cuidado contigo, está bem?Esforçar-me-ei por te fazer a vontade.

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Não vem ao caso, mas acho que és um santo.Hei-de pedir a Mistress Snead que me dê lustro à auréola.Oscar...Que foi?Boa sorte.Nessa noite, o vento virou para leste. Oscar acordou às primeiras horasda manhã com os assobios e os silvos de uma borrasca iminente e otamborilar da chuva nos vidros das janelas. Ficou acordado durantemuito tempo, a pensar em Godfrey Billicliffe. Ao menos sabia o seuprimeiro nome, ficara a conhecê-lo ao ajudar a irmã da recepção apreencher os incontáveis formulários, antes de deixar o velho enfermoentregue aos seus cuidados.A missão não fora tão difícil como receara. O percurso até Invernessdecorrera sem incidentes e Billicliffe, encorajado pelas atenções deque era alvo, falou sem parar durante todo o caminho. Oscar ficara asaber muito sobre a sua vida: a sua carreira no exército; a suapassagem pela Alemanha com o Exército britânico do Reno; como conheceraa sua futura mulher em Osnabriick; o seu casamento em Colchester; ofacto de nunca terem tido filhos. Oscar, ao volante do seu carro, ficougrato por não ter de fazer grandes observações àquela torrente derecordações. A única coisa que tinha de fazer, de vez em quando, erauma concordância casual ou um movimento afirmativo de cabeça, após oque Godfrey Billicliffe continuava.Só depois de acelerarem pela auto-estrada que passava pela Black Isle,e Inverness aparecer ao longe, do outro lado da água, é que o majorBillicliffe se calou. Por instantes, Oscar pensou que tivesseadormecido, mas ao olhar de relance, viu que não. Talvez fossesimplesmente a matutar. Passado algum tempo, recomeçou a falar, emboraagora já não fosse do passado, mas sim do presente e do futuro.Venhu calado a pensar, Oscar...Sobre o quê?200No que irá acontecer... quando for desta para melhor.Mas o major não vai desta para melhor assegurou-lhe Oscar, esperandoestar a ser convicto.Nunca se sabe... Não é como quando se é jovem... Tenho de estarpreparado. Pronto para todas as contingências. Aprendi isto noexército. Preparar para o pior e esperar pelo melhor. Nova pausaprolongada. Gostaria de saber... claro que é consigo, claro... seconcordaria em ser meu executor. Ficaria descansado... Mãos capazes...Não sei bem se as minhas mãos são capazes.Disparate. Sobrinho de Hector McLellan. Não que o filho dele fossegrande coisa... mas o senhor... é de outra cepa. Os amigos morreramtodos. Pensei que pudesse... Gostaria muito...Oscar não suportava as frases por terminar do major. Disse então, omais calmamente que pôde:Se quiser. Se isso o tranquiliza, serei seu executor. Mas...Esplêndido. Então está combinado. Direi ao meu advogado. Boa pessoa.Ele é que me tratou de tudo quando comprei a minha casa à Câmara deCorrydale. Excelente pescador.Ele tem nome?O major Billicliffe, ao ouvir a inesperada pergunta de Oscar, emitiu umronco que, provavelmente, pretendia ser uma gargalhada.Claro que tem nome. Chama-se Murdo McKenzie. Da firma McKenzie & Stout.South Street, Inverness.Murdo McKenzie.Tenho de o avisar de que o senhor é o meu executor. Depois de meinstalar... telefono-lhe... Eles devem ter telefone... não é? finalizouem tom duvidoso.É claro. Tenho a certeza de que a enfermeira lhe levará um telefonepara a mesinha-de-cabeceira.É um bocado diferente dos velhos tempos observou o major Billicliffe,

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que em tempos passara uma temporada no hospital militar em Scutari.Rondas dos oficiais médicos e arrastadeiras. E uma matrona que pareciaum sargento. Nessa altura não havia telefones.As recordações submergiram-no e só voltou a falar quando chegaram aoseu destino.O hospital era o Royal Western. Oscar encontrou-o sem grandedificuldade e, assim que chegaram, tiraram-lhe o problema das mãos. Sóprecisou de acompanhar o major Billicliffe até ao lugar onde ficaria.Um porteiro apareceu com uma cadeira de rodas e Oscar foi ao seu lado,carregando a mala consigo: uma peça de equipamento pesadíssima e deaspecto gasto, que parecia feita de pele de elefante. Subiram numelevador enorme e depois percorreram corredores intermináveis, forradosa linóleo encerado, até chegarem, finalmente, à Enfermaria Catorze. Airmã estava pronta para proceder à admissão, munida da sua prancheta edos seus questionários. Tudo correu bem até se chegar ao parente maispróximo.201- O seu parente mais próximo, major Billicliffe. O velho major ficourepentinamente confuso.- Como disse?- Parente mais próximo. Sabe, mulher, filhos, irmãos ou irmãs. Ovelhote sacudiu a cabeça.- Não tenho ninguém. Não tenho ninguém.- Ora, deixe-se disso. Deve ter alguém.Oscar não foi capaz de suportar a cena por mais tempo.- Eu - disse firmemente. - Eu sou o parente mais próximo do majorBillicliffe. Oscar Blundell. Pode tomar nota. Moro na Casa da Quinta.Em Creagan.A irmã assim fez.- Tem telefone? Oscar deu-lhe o número.Por fim, tudo ficou escrito, registado e assinado. Chegou a altura deOscar se retirar. Despediu-se.- Poderá cá voltar?- com certeza. Desde que não fique preso na neve.- Obrigado por me ter trazido. Fico-lhe grato.- Não tem de quê.Afastou-se então do velho e da sua mala, dizendo a si mesmo que a culpanão era sua. Não havia razão para se sentir como um traidor.Não podia ter feito melhor. Mais tarde, se não recebessem notícias doinválido, ele e Elfrida percorreriam mais uma vez a longa distância eiriam visitar Godfrey Billicliffe. Ninguém melhor do que Elfrida para oanimar. Provavelmente levar-lhe-ia uvas.Uma rajada de vento atingiu a casa. Oscar virou-se nas almofadas efechou os olhos, começando de imediato a pensar em Francesca. Erafrequente isso acontecer-lhe nas horas sombrias de vigília, nas noitesagitadas, e tinha pavor do que tal significava: um tormento de saudade,angústia e sensação de perda. Francesca. Os seus lábios formaram,silenciosamente, o nome da filha. Francesca. Enfiou a mão por baixo daalmofada e agarrou no lenço, certo de que acabaria por chorar. Noentanto, em vez disso, deu-se conta de uma espécie de tranquilidade,como se estivesse melhor consigo mesmo, o que já não lhe acontecia hámuito tempo. Francesca. Viu-a correr na sua direcção através dos pradosensolarados da Granja. E a imagem ficou, pungente, mas especialmentedoce.Apegando-se a ela, adormeceu.A manhã seguinte nasceu com um tempo horrível. O gelo que tudo cobria,fora submergido por cargas de água acompanhadas de granizo, e a ruaestava repleta de chapéus-de-chuva apressados e a escorrer. Ao meiodia,o enorme camião de brita apareceu, de volta ao seu depósito, comos pára-lamas carregados de neve e os pára-brisas no máximo.202Elfrida comprara um bloco de notas para si. Durante o almoço, composto

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por sopa e um bocado de stilton que encontrara no supermercado, fezlistas.- Tenho de pensar em todos os pormenores - disse a Oscar com arpreocupado. - Não há tempo para esquecimentos. Elas devem estar aí nasexta-feira. Achas que Lucy quererá um toucador?Oscar, que tentava fazer as palavras-cruzadas do The Times, pôsnobremente o jornal de lado e tirou os óculos, como para pensar melhor.No entanto, só conseguiu sair-se com «Não faço ideia».- E uma cama, evidentemente. Esforçou-se por prestar atenção aoproblema.- Um guarda-fato? - arriscou.- Jamais conseguiremos enfiar um guarda-fato debaixo daquele tectoinclinado. Teremos de nos ficar por uns cabides presos na parede -respondeu Elfrida, tomando nota.Oscar recostou-se na sua cadeira e observou-a com ar divertido. Nuncavira Elfrida tão embrenhada num assunto e tão organizada. Por ummomento fez-lhe lembrar, na melhor maneira possível, Gloria, a planeare a esboçar, a escrever listas e a fazer com que as coisasacontecessem.- Quando é que Mistress Kennedy cá vem?- Disse que estava cá às duas e meia. Ofereci-me para ir no teu carro.Não precisas dele, pois não?- Não.- Se estiveres com energia, podes levar Horace a passear. Oscar,começando a impacientar-se, retorquiu:- Veremos. E voltou às suas palavras-cruzadas.Quando Tabitha Kennedy chegou, Elfrida estava ao cimo do quintal atirar a roupa que fora indevidamente pendurada na corda a secar.Portanto, quando tocaram à campainha, Oscar é que desceu para abrir aporta.Tabitha vinha de gabardina e botas, porém não trazia nada na cabeça e ovento agitava-lhe o cabelo escuro. Afastou uma madeixa da cara.- Olá. Sou Tabitha.- com certeza. Faça o favor de entrar. Elfrida não demora, foi só tiraruma roupa molhada da corda. Sou Oscar Blundell.- Eu sei. - Tinha um lindo sorriso. - Como está? - Apertaram as mãos. -Espero não ter chegado demasiado cedo.- De modo nenhum. Venha até lá acima, sempre se está melhor do que aquide pé.Foi à frente e Tabitha seguiu-o, conversando como se o conhecesse desdesempre.203Não acha toda esta chuva uma desilusão, depois de um tempo maravilhosode gelo? Há por aí canos a rebentar por tudo o que é sítio e ofunileiro não tem mãos a medir.Na sala de estar, o fogo da lareira ardia vivamente e um jarro com osjacintos que Arthur Snead os obrigara a aceitar enchia o ar com a suafragrância.Oh, que maravilha! Cheiram mesmo a Primavera, não acha? Disse a Elfridaque teríamos de ir no vosso carro, mas Peter hoje fica em casa, porisso deixou-me trazer o nosso. Tudo menos ir às compras comigo.Compreendo-o perfeitamente. Ainda bem que pode dar uma ajuda a Elfrida.Tenho todo o gosto nisso. Adoro gastar o dinheiro dos outros. Éprovável que voltemos bastante tarde. O mercado só fecha às cinco enessa altura já devemos estar a precisar urgentemente de um cháregenerador.No piso de baixo uma porta bateu e ouviram-se os passos de Elfrida acorrer escada acima. Apareceu à porta com o seu casacão grosso e ogorro que fazia lembrar um abafador de bule.Tabitha, desculpe tê-la feito esperar. É em dias como o de hoje queanseio por um secador de roupa. Mas só em dias como este. Agora sópreciso de ir buscar a minha bolsa, a lista das compras e as chaves do

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carro.Não são precisas disse-lhe Tabitha. Vamos no meu.Finalmente partiram, cheias de entusiasmo, fazendo lembrar a Oscar duasraparigas de saída para se divertirem. Ficou à janela a vê-las ir,depois de se meterem na carrinha muito usada, apertarem os cintos desegurança e atravessarem a praça até desaparecerem de vista.Estava sozinho. Horace dormia ao pé da lareira. Ciente de que andara aprotelar as coisas, fez nova tentativa para terminar as palavrascruzadas,mas, derrotado, acabou por colocar o jornal de parte. Sabiaque havia outros assuntos a tratar. Levantou-se e foi até à pesada mesade carvalho, encostada à parede em frente da lareira, que lhe fazia desecretária. Arranjou espaço, afastando para o lado um ou dois dossierscom papéis e a sua pasta, e depois sentou-se a escrever duas cartas quejá deviam ter seguido há muito. Uma era para Hector McLellan, aagradecer-lhe a generosidade, e esforçando-se por parecer positivo etranquilo. A segunda destinava-se a Mrs. Muswell, a quem abandonara tãoabruptamente. A recordação dela a chorar à porta da Granja, enquantoele e Elfrida se afastavam, atormentava-lhe a consciência desde então.Na carta, assegurava-lhe que estava bem, agradecia-lhe a lealdade edizia-lhe que esperava que tivesse encontrado outro emprego ao seugosto. Mandou-lhe cumprimentos e depois assinou.Dobrou as cartas, endereçou os envelopes e colou-lhes os selos. Estavamprontos para ir para o correio.Peter hoje está em casa.Naquele momento.204Saiu do quarto e foi até ao patamar, onde estava o telefone. Pegou nalista telefónica, procurou o número e carregou nos dígitos. Ouviu o somdo toque, mas só por uma vez, como se o aparelho estivesse em cima deuma secretária, mesmo ao alcance de uma pessoa pronta a atenderimediatamente.Residência Paroquial de Creagan. Era a mesma voz afável. Fala PeterKennedy.Às cinco e meia da tarde, Oscar, convenientemente agasalhado e dechapéu posto, saiu da Casa da Quinta e percorreu, a pé, a estradaíngreme que conduzia ao topo da colina. Elfrida e Tabitha ainda nãotinham voltado, de modo que deixou a luz do vestíbulo acesa para asacolher quando chegassem, e um bilhete para Elfrida em cima da mesa dacozinha. «Saí por um bocado, mas não demoro.» Também deixou Horacetratado, depois de dar uma volta com o cão e de lhe dar os seusbiscoitos e corações de borrego. Este era o melhor petisco que lhepodiam oferecer; engolira avidamente toda a porção, a seguir foraaninhar-se no seu cesto a tirar uma soneca.Oscar passou entre muros altos e árvores de jardim. Estava muitoescuro, uma tarde sombria, porém o vento abrandara, dando lugar a umachuva miudinha. Ao cimo da estrada, depois da subida muito inclinada,fizera uma pausa para recuperar o fôlego, e depois continuara em frentepelo carreiro que se estendia pela vertente da colina acima. A cidadeficou para trás, em baixo. Passeou o olhar por outros jardins, topos detelhado, a linha das ruas marcada com candeeiros. Na torre da igreja, orelógio brilhava como uma lua cheia.Um pouco mais ao longe a sua vista já se ajustara à escuridão.conseguia distinguir a linha da costa distante, estendida, como umbraço, pelo mar fora e segurando entre os dedos a luz intermitente dofarol. Não havia estrelas.Um portão dava para uma estrada larga, ladeada à direita por amplascasas de pedra vitorianas, no meio de jardins espaçosos. A primeira eraa Casa Paroquial. Oscar recordava-se da sua localização de sessentaanos antes, altura em que a avó o levava consigo e ele ficava a brincarcom os filhos do pastor de então. Lembrava-se da casa e da família queali vivera, porém os nomes tinham-se-lhe varrido da memória.Por cima da porta havia uma luz acesa. Abriu o portão. Depois de entrar

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fechou-o e percorreu o carreiro, ouvindo o barulho das pedrinhas dapraia debaixo das solas dos sapatos. A porta da frente fora pintada deazul-claro. Tocou à campainha.De repente estremeceu. Fez por se convencer de que era por causa dofrio e da humidade.Ouviu uma porta interior abrir-se, logo seguida da azul, que seescancarou, fazendo-o cegar com a luz forte. Peter205estava ali, a recebê-lo com toda a afabilidade. Vestia uma camisolagrossa de gola alta e umas calças de bombazina muito usadas. Tinha umaaparência reconfortantemente leiga.Oscar! Venha, entre. Olhou por cima do ombro de Oscar. Não trouxe ocarro?Não. Vim a pé.Fez muito bem. Entraram para o vestíbulo, onde se via um tapete turco,uma estante em carvalho fumado, uma cómoda antiga sobre a qual haviauma pilha impecavelmente arrumada de revistas da paróquia. No pilar docorrimão da escada estava um chapéu de montar e no primeiro degrau viaseum par de sapatos de futebol e uma pilha de roupa limpa e dobrada.Tudo ali deixado, calculou Oscar, até a pessoa que fosse para cima aseguir, a levar.Dispa o casaco. As crianças saíram, portanto temos a casa só para nós.Tenho a lareira acesa no meu gabinete. Passei a tarde lá dentro a pôruma papelada em dia e a escrever um artigo há muito prometido! aoSutherland Times.Oscar livrou-se de luvas, casaco e chapéu, entregou-os a Peter Kennedyque os colocou numa impressionante cadeira de carvalho com ar de terpertencido, em tempos, a um bispo.Agora, venha daí propôs o pastor. Seguiu à frente até ao seu gabinete,uma sala de janelas recurvas que dava para a frente e devia ter estadodestinada a servir de casa de jantar na altura em que a casa foraconstruída. Tinha uns cortinados espessos que protegiam da tardeinvernosa e era suavemente iluminada por três candeeiros, um em cima daenorme secretária atravancada e outros dois sobre a cornija da lareira,cada um em sua ponta, onde estavam duas velhas poltronas forradas acabedal. As paredes tinham muitas prateleiras com livros, e, depois dovazio arejado da Casa da Quinta, o interior daquela sala revelava-secheio de segurança, penumbra e calor. Era um pouco como regressar aoventre materno.O cheiro também era maravilhoso e Oscar conseguiu, a certa altura,perceber que vinha da pilha impecável de pedaços de turfa que ardialentamente dentro do receptáculo da lareira. Observou:Fogo de turfa. Algo do qual já me tinha esquecido. Às vezes, quandolevo o cão à rua durante a noite, sinto-lhe o cheiro, vindo de outraschaminés. Hei-de ver se arranjo alguma, só por causa do odor.Tenho muita sorte. Um dos meus paroquianos tem uma turfeira e mantém-mefornecido. Agora venha sentar-se e fique à vontade. Deseja um café?Oscar não respondeu imediatamente e Peter Kennedy consultou o seurelógio. Seis menos um quarto. Podíamos muito bem tomar um cálice deLaphroaig. Tenho uma garrafa guardada, só para ocasiões especiais.Uísque de malte. Laphroaig. Irresistível.206Nada me poderia saber melhor.Também me pareceu, portanto preparei-me.Oscar viu então em cima da secretária ao pé de um computador, uma pilhade livros, papéis algo desarrumados e o telefone. um pequeno tabuleiroimpecavelmente arranjado com a garrafa de Laphroaig, dois cálices e umjarro de água. Nem valia a pena pensar no café. Ficou comovido.As raparigas ainda não voltaram?Não.Oscar sentou-se numa das poltronas, que achou surpreendentemente maciae confortável. Acima dele, no meio da cornija da lareira, erguia-se um

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relógio, do tipo daqueles que são oferecidos a pastores ou professoresreformados depois de quarenta anos de serviço leal. Tinha um tiquetaquesuave, determinado e agradável como um metrónomo cuidadosamentemarcado.Cá por mim elas combinaram banquetear-se com um lanche, depois determinarem as compras.Não tenho dúvidas. Espero que tenha corrido tudo bem. Peter pegou nosdois cálices, entregou um a Oscar e sentou-se napoltrona ao lado, voltado para a sua visita. Ergueu o seu.À nossa saúde.O Laphroaig era um autêntico néctar, límpido, delicioso, a deslizarpela garganta, quente. Peter continuou:Nesta altura, Buckly é uma cidade deveras deprimente. A maioria daspessoas encontra-se desempregada. A fábrica de lanifícios foi ao ar, eos especialistas em tecelagem e fiação poucas alternativas de trabalhotêm.Oscar franziu o sobrolho.A fábrica de lanifícios? Não me diga que fala da McTaggart...Exactamente. A McTaggart.Faliu? Não fazia ideia. Espantoso. É como dizerem-me que o Rochedo deGibraltar ruiu. Que aconteceu?Peter contou-lhe.O velho morreu, os filhos não se interessaram. Os trabalhadoresobtiveram alguma ajuda financeira e continuaram em frente. Não estavama sair-se mal, mas foi então que o tempo piorou horrivelmente. O riogalgou as margens e ficou tudo inundado. Perdeu-se tudo, destruiçãototal.Oscar estava horrorizado.Então não há mais nada a fazer?Parece que um desses grandes conglomerados têxteis vai tomar contadaquilo. A Sturrock & Swinfield, de Londres, mas até agora ainda nadade especial aconteceu e o povo de Buckly começa a recear o pior. Ouseja: nunca chegar a acontecer realmente.207Que tragédia! comentou Oscar, com expressão compungida. Nem sei como éque deixei escapar isso. Acho que... ultimamente não tenho lido osjornais com muita atenção, pelo menos as páginas regionais. E aqui sócompro o The Times e o The Telegraph, portanto nunca me inteiro dasnotícias locais. E com pouca gente tenho falado tirando Mistress Snead.Aliás, é por essa razão que aqui estou. Para lhe pedir desculpa. Deviater vindo antes, mas não o fiz.Por amor de Deus! Não esteja preocupado. Apercebi-me de que o apanheide surpresa e devia ter esperado por uma ocasião mais propícia para oabordar. Espero que não tenha ficado demasiado incomodado.Não percebo o que me deu. Foi ridículo.Por favor, não pense mais nisso. Não houve nenhum prejuízo. Há-de iraté lá comigo para tomar um chá, outra bebida ou o que porventura lheapetecer. O melhor seria juntar-se ao clube quando lhe apetecesse,para, então, quando o tempo voltasse a melhorar, podermos jogar todosjuntos. Costuma fazê-lo?No tempo da minha avó, quando era rapaz, jogava, mas nem nessa alturatinha muito jeito.Gostaria imenso de jogar consigo.Não disponho de equipamento próprio.Eu arranjo-lhe algum emprestado. O campo é esplêndido e seria uma penaviver aqui e não experimentar ao menos uma volta. A sua avó era umajogadora de golfe exímia. Quando vim para cá, ouvi falar muito na suaperícia. Foi campeã dois anos seguidos. De uma maneira ou outra, deveter sido uma senhora excepcional.Sim, realmente era.E também uma grande apreciadora de música.E de jardinagem. O que fazia era bem feito.

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Oscar tomou mais um gole de Laphroaig e depois pousou o cálice namesinha ao seu lado, onde ficou a reluzir como uma jóia sob a luz suavedo candeeiro. Depois disse:Godfrey Billicliffe também me convidou para entrar no clube de golfe,mas receio que, nesse momento concreto, o nosso encontro não estivessea desenrolar-se na altura mais auspiciosa. Tanto Elfrida como euestávamos exaustos da longa viagem que acabávamos de fazer. O nossoúnico desejo era tomar posse da chave da nossa casa e fugir. Acho quefomos muito indelicados.Ele às vezes é um grande maçador. Eu sei. Também tive conhecimento deque ontem de manhã o foi levar ao hospital no seu carro.Como é que soube? Peter Kennedy sorriu.Nesta pequena comunidade as notícias espalham-se depressa. Não, não sepreocupe, não foi mexerico. O doutor Sinclair telefonou-me para mecolocar ao corrente do problema. O seu gesto foi muito generoso.208Não. Creio que ninguém sabia. Ele tem sido problemático desde que amulher morreu. Tem-se ido abaixo a uma velocidade assustadora. Solidão,talvez, mas também é demasiado orgulhoso para o admitir, e nenhum denós teve coragem para lhe sugerir que vendesse a casa e fosse viverpara o lar da terceira idade.Os meus enteados também me incitaram a que fosse para um lar dereformados no Hampshire; mas isso foi porque herdaram a casa da mãe equeriam ver-se livres de mim para a poder vender. Achei a ideiapavorosa. Como o princípio do fim.Como é que se apercebeu de que havia algo de errado com ele? Fuivisitar Rose Miller. Ao voltar para casa ouvi a cadela do Billicliffe auivar. Então, fui ver o que se passava. Para ficar com a consciênciatranquila, acho. Tanto Elfrida como eu tínhamo-nos sentido um pouco malem relação ao velhote. Foi então que o encontrei no piso de cima,obviamente em muito mau estado. A perspectiva de ambulânciase de helicópteros também o apavorava. Tinha um ar terrivelmente só.Oferecer-me para o levar a Inverness no meu carro foi o mínimo que pudefazer.Na sexta-feira preciso de ir a Inverness onde vou moderar uma reunião.Passarei pelo hospital para lhe fazer uma visita, ver como está.Disse que me declararia como o seu parente mais próximo, portanto têmlá o meu nome e número de telefone na série de formulários que tivemosde preencher. Portanto, acho que, se houver alguma novidade, sereiinformado.Bem, então vá-me dando notícias.Com certeza.Ora bem, fale-me no seu tio. Como é que vai Hector?Cada vez mais velho. Vive em Londres. Foi visitar-me depois... depoisdo funeral. Não participou nele porque estava com gripe e o médicoproibiu-o, e muito bem. Foi Hector que sugeriu que eu saísse doHampshire e viesse para cá.Eu sei, Oscar. Ele escreveu-me uma longa carta. Fiquei cheio de penacom o acontecido. Ainda tive vontade de ir logo ter consigo para lheoferecer os meus préstimos no que fosse preciso... mas o meu instintodisse-me que, por enquanto, o senhor precisava de ficar sozinho. Esperoque não tenha ficado com a impressão de que fui indiferente oudesatento.Não, não pensei nisso.Às vezes... falar com um desconhecido, uma pessoa afastada, ajuda.É como desabafar com alguém que se encontra numa viagem de comboio esabe que nunca mais se voltará a ver.Não exactamente , Peter sorriu , pois espero que volte a ver-me.209É difícil saber por onde começar. Parece que já foi tudo há muitotempo.A vida tende a ter dessas situações.

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Nunca pensei em casar. Achei sempre que ficaria solteiro toda a vida.Tinha o meu trabalho como professor, dava aulas de piano e ensaiava ocoro. Desfrutava da companhia de outros professores e das suas esposas.A minha paixão era a música. Leccionava em Glastonbury, numa escolapública pouco conhecida, mas excelente por isso mesmo. Sentia-me muitobem por lá. Depois comecei a envelhecer, o reitor reformou-se e foisubstituído por um sujeito mais jovem. O reitor fora sempre um bomamigo, e, embora o seu substituto fosse perfeitamente competente,delicado e tradicionalista, um ano depois achei que era tempo de mudar.Fora-me oferecido o lugar de organista e maestro de coro em SaintBiddulph, Londres. Ainda fiquei a reflectir durante algum tempo, masnão muito. A música de Saint Biddulph sempre tivera grande fama pelasua excelência, e o coro era estável, fundado graças a uma doaçãogenerosíssima feita por um paroquiano dedicado, alguns anos atrás.Portanto, mudei de agulha e fui para Londres. Passei a viver numapartamento espaçoso e confortável no segundo piso de uma casa antiga,apenas a cerca de cinco minutos da igreja, e as senhoras da paróquiatrataram de me arranjar uma empregada competente, de modo que era muitobem tratado.«Foram tempos maravilhosos. Acho mesmo que o pico da minha carreirarelativamente modesta. Dois dos elementos do coro eram cantores deópera profissionais, o público era entusiasta, e conseguimos alargar orepertório e apresentar, em ocasiões especiais, alguns temas coraisambiciosos. Salvate Flores Martyrum, de Palestrina, a adaptação dovigésimo-terceiro salmo por Schubert, o Requiem, de Fauré. Materialglorioso.«Conheci os Bellamy pouco depois de chegar a Saint Biddulph. Viviam comum certo estilo numa casa em Elm Park Gardens, e mostraram-seimensamente gentis e hospitaleiros comigo logo desde o princípio.Quando George Bellamy adoeceu, habituei-me a ir lá a casa fazer-lhecompanhia, jogar gamão com ele. Quando faleceu, compus a música para oseu funeral, que teve uma certa grandiosidade.«Depois do funeral, pensei que Gloria já não quereria que eucontinuasse a ir lá a casa, que a razão das minhas visitasdesaparecera. No entanto, ela continuou a convidar-me para várioseventos sociais, um beberete, um jantar, uma ceia dominical. Às vezesíamos ao cinema juntos, ou passávamos um dia em Kew. Eu não dava grandeimportância ao assunto, mas apreciava a sua companhia. Até que um diaela, na sua maneira prática de estar na vida, me disse que não seria máideia casarmos. Explicou-me que não gostava de viver sem um homem ehaveria de gostar de ter uma esposa que cuidasse de mim. Sei que pareceum bocado frio de mais, mas o210certo é que eu gostava muito dela, que, penso, também sentia o mesmopor mim. Ambos ultrapassáramos já os arroubos da juventude, portantotínhamos idade suficiente para tornar bem sucedido o que outros viamapenas como um casamento de conveniência.Ela foi uma mulher maravilhosa, meiga, generosa e compassiva. Eu nuncavivera, desde os meus tempos de rapaz em Creagan, no meio de tantoconforto material, com tanta abundância. Ela e George tinham filhos,Giles e Crawford, mas já eram ambos adultos, tinham saído de casa eviviam independentes. E Gloria ainda era uma mulher nova, a transbordarde vitalidade física. Quando me disse que estava grávida, fiqueiridiculamente incrédulo. Nunca, em toda a minha vida, me imaginara aser pai. Mas quando Francesca nasceu, aquela criaturinha minúscula,senti uma felicidade tal que sei que nunca mais voltarei a experimentarna vida. Era como se tivesse ocorrido um milagre. O que nunca deixou deser.«Às vezes, à medida que foi crescendo, quando andava de um lado para ooutro a pairar e, de uma maneira geral, a fazer os disparates que todasas crianças fazem, ficava a olhar para ela e continuava a acharinacreditável que eu tivesse contribuído para criar aquele ser humano

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em miniatura, tão belo e encantador.«A certa altura, Gloria herdou uma casa no campo, no Hampshire, de modoque mudámo-nos de Londres para lá e iniciámos a nossa nova vida emDibton. Não posso deixar de admitir que tinha saudades de SaintBiddulph, mas a música continuava a fazer parte da minha vida. Ensinavaum pouco e, de vez em quando, tocava órgão no serviço matinal da igrejalocal.Ao chegar aqui, Oscar fez uma pausa para pegar no cálice e tomar maisum gole de Laphroaig. Um pedaço incandescente de turfa deslizou, com umsilvo, para o leito de cinzas da lareira. O relógio prosseguia o seutiquetaque.Conhece a sua amiga Elfrida há muito tempo? perguntou Peter.Não. Só nos conhecemos quando ela foi viver lá para a aldeia. Estavasozinha e Gloria estabeleceu amizade com ela, como que tomou Elfridasob sua protecção. Era divertida, cheia de vida e todos nós gostávamosmuito da sua companhia. Francesca passava a vida a ir de bicicletavisitá-la. Fazia-a rir. Na altura do acidente, Elfrida encontrava-se naCornualha, de visita a um parente. Regressou logo a seguir ao funeral,sem fazer a menor ideia do que acontecera. Quando Hector me sugeriu quesaísse do Hampshire e voltasse a Creagan, percebi que não seria capazde o fazer sozinho. A viagem parecia demasiado árdua e tinha pavor deficar sozinho. Pedi então a Elfrida que viesse comigo. Ela, como éextremamente bondosa, concordou. Faz-me muita companhia e conseguiusempre fazer-me sorrir nos momentos mais difíceis. Quando a conhecipela primeira vez, perguntou-me se era religioso.211Respondi-lhe que é difícil não acreditar quando se passa a maior parteda vida às voltas com as liturgias e as tradições da Igreja Anglicana.E que achava que precisava de ter algum ser a quem agradecer.«Isso, porque me sentia um afortunado. Era feliz. O casamento deconveniência resultara, e Francesca fazia com que não me arrependessede nada. Gloria, no entanto, tinha uma personalidade forte, dominadora.E os bens eram praticamente todos seus. Às vezes, era preciso lidar comela com todo o tacto. Adorava companhia, gente, artistas, festas e, devez em quando, bebia de mais. Não estou a dizer que fosse umaalcoólatra, longe disso, apenas bebia socialmente. Era frequente,depois de uma noite fora, eu ter de conduzir o seu magnífico carro, oque ela detestava e fazia com que na manhã seguinte acordasse amuada.Mas eu conhecia a sua fraqueza, tal como acontecia com as suasnumerosas qualidades.«No dia da festa ao ar livre de Guy Fawkes, ela disse que levavaFrancesca, e lembro-me de ter pensado que também devia ir. Mascombinara receber um homem que ficara de me construir uma cerca novapara a zona do estábulo. Era um trabalho que eu queria ver terminado omais depressa possível, de modo que nem pensei em adiar a questão. Alémdisso, era apenas uma festa infantil. Um grande lanche, com fogo-deartifício.Estariam em casa no mínimo às sete da tarde.«E, como era evidente, tratava-se de uma festa para crianças, embora osadultos também lá estivessem, na maioria amigos de Gloria. Mas depoisdo fogo-de-artifício terminar, as crianças ficaram a brincar no jardimcom os seus pauzinhos luminosos e a dar largas à sua excitação,enquanto os adultos entraram para tomar uma bebida.«Não faço ideia da quantidade que Gloria bebeu. Graças a Deus não lhefizeram nenhuma autópsia. As condições de condução eram péssimas. Derepente começara a chover fortemente e as estradas estavam alagadas.Tinham estado a decorrer umas obras de reparação no cruzamento, ondeficaram luzes de alerta a piscar. Talvez tenha sido isso que aconfundiu. Nunca saberemos. O motorista do camião afirmou que o carrodela saíra da sua faixa e dirigira-se para ele a uma certa velocidade,na altura em que dava a volta, vindo da direita. Tinha, como éevidente, prioridade. Numa fracção de segundo, o carro de Gloria ficoudestruído, irreconhecível, e tanto ela como Francesca morreram.

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«A notícia foi-me dada pela Polícia. Um sargento jovem e delicado.Pobre rapaz. Não consigo descrever a minha reacção, porque não sentinada. Fiquei aparvalhado. Vazio. Desprovido de emoção. Até que, a poucoe pouco, esse vazio foi sendo preenchido por uma raiva amarga, umressentimento contra quem, ou o que, permitira que tal coisa me tivesseacontecido. Sei que o mundo está cheio de horrores e uma pessoa acabapor endurecer, horrorizada, mas endurecida, ao ver na televisão imagensHe aldeias destruídas, crianças a morrer de fome, enormes catástrofesnaturais. Mas aquilo era comigo. Era a minha vida, a minha212existência. A minha mulher. A minha filha. Se havia um Deus (e eu nuncativera a certeza absoluta disso) eu não queria ter nada a ver com Ele.«O nosso clérigo em Dibton apareceu a apresentar condolências. Disse-meque Deus manda às pessoas só aquilo que elas são capazes de suportar.Então, revoltei-me contra ele e respondi-lhe que preferia mil vezes serfraco como a água e ainda ter a minha filha viva. Depois mandei-oembora. Nunca mais nos reconciliámos um com o outro. Euconhecia a fraqueza de Gloria. Devia ter ido com elas. Eu é que deviater estado ao volante daquele carro. Se ao menos. "Se ao menos" é o meupesadelo.Essa ideia de «Se ao menos» é uma compreensão tardia de algo que deviater sido feito e não foi. Um exercício inútil. Parece-me que o acidenteresultou de várias circunstâncias trágicas. Quem sabe? Talvez o Oscartambém tivesse morrido e aí ter-se-ia aberto um vazio ainda maior navida daqueles que vos conheciam e amavam... Quanto a Deus, admitofrancamente que acho mais fácil viver com as velhas questões sobre osofrimento, do que com muitas das explicações piedosas apresentadas, devez em quando, algumas das quais parecem raiar a blasfémia. Espero bemque ninguém tenha procurado consolá-lo dizendo que Deus deve terprecisado mais de Francesca do que o senhor. Eu não conseguiria adorarum Deus que me roubasse deliberadamente um filho. Esse Deus seria ummonstro moral. Oscar estava estupefacto.É nisso perguntou por fim , que acredita verdadeiramente? Peterassentiu.É no que acredito piamente. Trinta anos de ministério ensinaram-me quea única coisa que nunca devemos dizer quando uma criança morre é que«Foi a vontade de Deus». Simplesmente não sabemos o suficiente parafazer semelhante afirmação. Na verdade, estou convencido de que quandoFrancesca morreu naquele acidente terrível, Deus foi o primeiro acompadecer-se.Quero continuar em frente, prosseguir a minha vida, ser capaz deaceitar... poder dar de novo. Não gosto de estar sempre a receber.Nunca fui pessoa para isso.Oh, Oscar, as coisas serenarão. A sua profissão fez com que a Igrejatenha feito parte da sua vida durante muitos anos, é natural queconheça bem, tal como eu, as grandes promessas bíblicas sobre vida emorte. O problema é que o trauma provocado pela dor pode, muitas vezes,torná-las irreais. Aquilo de que provavelmente irá precisar mais,durante algum tempo, não é de quem lhe cite a Bíblia, mas sim de amigoschegados que lhe segurem na mão e o escutem quando quiser falar sobreFrancesca.Oscar lembrou-se de Elfrida. Peter calou-se por instantes, como que adar-lhe tempo para reflectir sobre aquele novo conceito. Oscar, porém,nada disse.213A vida é agradável continuou Peter. Para lá da dor, a vida continua aser agradável. O que é básico continua lá. Beleza, alimento e amizade,reservatórios de amor e compreensão. Mais tarde, certamente ainda não,o Oscar vai precisar de outros que o encorajem a iniciar coisas novas.Acolha-os bem. Ajudá-lo-ão a seguir em frente, a acarinhar as boasrecordações e a enfrentar as más com algo mais do que amargura e raiva.Oscar lembrou-se da noite em que, a altas horas, a imagem de Francesca

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lhe viera à mente e de como, pela primeira vez, esta não o fizeraverter dolorosas lágrimas de perda e saudade, mas enchera-o sim, de umconforto apaziguador. Talvez tenha sido esse o início da suarecuperação. Talvez aquela conversa, aquela entrevista, fosse qualfosse o nome que tinha, representasse uma continuação. Não tinha formade saber. Só sabia que se sentia melhor, mais forte, não tãoimprestável. Se calhar, vistas bem as coisas, ele não se tivesse saídoassim tão mal.Obrigado agradeceu.Oh, meu amigo, gostaria de ter podido dar-lhe muito mais.Não. Nem pense nisso. Deu-me o suficiente.LucyLucy ainda só andara de avião duas vezes na vida: uma delas quando foraa França, convidada a passar umas férias grandes com a família de umacolega da escola, e a segunda quando fora às ilhas do Canal com a mãe ea avó. Esta última viagem tivera lugar durante a Páscoa e tinham ficadohospedadas num hotel onde era preciso mudarem de roupa para o jantar.Achara as duas ocasiões tremendamente excitantes, mas daquela vezfizera um esforço para ter um ar perfeitamente descontraído, de modo adar a impressão, a quem porventura olhasse para ela, de que era umaviajante madura e experimentada.As suas roupas ajudavam: a mãe, talvez para atenuar sentimentos deculpa não assumidos, levara Lucy ao Gap, onde lhe comprara uma série deroupas encantadoras. Naquele momento vestia os jeans novos, quentes edebruados a algodão vermelho. As botas eram de camurça creme e comsolas grossas de borracha, o casaco, encarnado, era forrado eacolchoado, como que parecendo que estava embrulhada num edredão.Também tinham comprado dois camisolões de gola alta, um azul-marinho eo outro branco, uma minissaia e dois pares de collants pretos grossos.Por fim, uma mochila, em lona azul-marinho debruada a encarnado, ondeLucy metera o seu diário, porta-moedas, pente e escova do cabelo e umatablete de chocolate. Lavara o cabelo na noite anterior; naquela manhãescovara-o e penteara-o para trás, fazendo um rabo-de-cavalo queprendeu com uma fita de algodão encarnada.Carrie parecia, como sempre, imensamente elegante nas suas botas altas,casaco canelado e chapéu de pele de raposa preta. Lucy dava-se contadas cabeças que se voltavam para Carrie quando esta passava, a empurraro seu carrinho de bagagens. O único senão era a pobre Carrie estar comum bocado de frio. Não era um tipo de frio que a fizesse parecer feia,apenas um tudo nada frágil. Dissera que começara a sentir-se adoentadaum dia ou dois atrás. havia muita gripe por ali , mas era apenas umaconstipação para a qual já tomara medicamentos, e ficaria óptima quandocomeçasse a respirar o ar frio e puro da Escócia.Fizeram o check in, passaram a segurança e Lucy, quando ficaram a217aguardar que chamassem para o seu voo, começou a sentir-se emsegurança. Desde que tinham feito planos para o Natal, ela não sócontava os dias como também rezava para que nenhum dos seuspressentimentos nervosos se concretizasse. Tinha a certeza de queacabaria por acontecer alguma coisa que impediria a sua ida com Carrie.Alguém adoeceria, ou a avó decidiria, irrevogavelmente, que Lucy nãodeveria ficar na companhia de Elfrida Phipps, que não tinha em muitoboa conta, e a quem Lucy estava ansiosa por conhecer. Quem sabe se, naAmérica, Randall Fisher não teria um ataque e morreria, ou o telefonetocasse em Londres a avisar Lucy de que não deveria ir.Porém, não houve nenhuma desgraça, e viram-se, finalmente, dentro doavião que voava rumo ao norte e, se este não caísse, já nada poderiasustê-las. Sentada, com a testa encostada à escotilha, olhava aimensidão do território inglês que se espraiava em baixo, fazendolembrar uma colcha aos quadrados esverdeados e acinzentados onde sereflectiam os contornos das sombras das nuvens que passavam lentamente.O extraordinário é que estava uma manhã linda, fria mas sem chuva nem

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um vento de enregelar os ossos. Acima das nuvens, o céu era de um azulsafiraclaro e o horizonte apresentava-se enevoado. Lucy imaginou aspessoas, no chão, a olharem para cima e verem aquele avião,interrogando-se para onde iria. Ao olhar para baixo, para o quepareciam ser faixas de terra desabitada, o único vestígio de qualquertipo de indústria reduzia-se a uma minúscula coluna de fumo que seerguia de um aglomerado de colunas de refrigeração. Perguntou a simesma qual era a vida real, quais eram as pessoas de verdade.A hospedeira de bordo trouxe pequenos tabuleiros com alimentos:pãezinhos, manteiga, marmelada, uma fatia de bacon, um pequeno cacho deuvas frescas. Havia café ou chá, e tanto Lucy como Carrie preferiramcafé. Tudo era pequenino, em tamanho de boneca, impecavelmenteencaixado num pequeno tabuleiro de plástico. Lucy tinha fome, por issocomeu tudo, e ao ver que Carrie não queria o seu pãozinho, também odevorou. Depois de levarem os tabuleiros, Carrie pôs-se a ler o jornale Lucy virou-se de novo para a janela, pois não queria perder umcentímetro que fosse da Escócia.Estava convencida de que encontrariam chuva ou até mesmo neve, noentanto, o céu continuava maravilhosamente límpido. Quando o aviãocomeçou a perder altura, o terreno em baixo foi ganhando contornoslentamente. Então viu neve no cimo das montanhas e muitas zonasescuras, que depois veio a saber serem plantações de coníferas, depoiso brilho azulado do mar, barcos, e uma ponte que se estendia sobre umestuário amplo. O avião inclinou-se para um dos lados, deu uma voltaantes de se fazer ao solo, e a ocidente erguiam-se bastiões montanhososcobertos de neve, tudo a brilhar sob o sol pálido. Lucy pensou que nãopoderiam parecer mais belos, afirmando a si mesma que isso só poderiaser um bom augúrio.218Carrie dobrou o jornal e guardou-o. Sorriram uma para a outra.Tudo bem? perguntou Carrie. Lucy assentiu.Aterraram, sentindo os pneus enormes baterem na pista alcatroada.Avistou o edifício do terminal, que se parecia vagamente com um clubede golfe avantajado, onde havia bandeiras a adejar na brisa forte.Devem estar à nossa espera observou Carrie.Quem?Um táxi de Creagan. O motorista chama-se Alec Dobbs.Como é que o conheceremos?Deve trazer um papel com o nome Sutton escrito.Então, depois de irem buscar as suas malas à faixa da saída debagagens, viram-no em frente das chegadas: um homem de constituiçãorobusta, com um blusão acolchoado e um boné de tweed desbotadoenterrado até às orelhas. Por perto viam-se outros indivíduos,igualmente fascinantes: um idoso magro de chapéu de feltro, uma mulherde calças, com o cabelo branco despenteado e as faces bronzeadas pelosol e, o melhor de todos, um homem de kilt desbotado e muito usado.Lucy não conseguia desviar o olhar, porque os joelhos azulados do homempareciam-lhe enregelados.Folgo muito em vê-las! exclamou Alec Dobbs. Fizeram boa viagem?Não tinha nada a ver com os motoristas de táxi do costume, parecia maisum velho amigo. Apertou-lhes as mãos, pegou nas malas como se nadapesassem e foi à frente. O Sol, baixo no céu, brilhava fracamente efazia muito mais frio que em Londres, além de que ainda se viam unsrestos de neve à volta do parque de estacionamento. No ar pairava umcheiro a pinheiros, e quando Lucy respirou fundo sentiu o interior donariz tão frio que espirrou. Nunca fora à Suíça, mas achava que seriaparecido, sol, neve e pinheiros, tudo reunido sob uma abóbada de céuprístino e desanuviado.O carro de Alec era um Subaru de tracção às quatro rodas. Alec,enquanto guardava as malas no porta-bagagens do carro, foi explicando:Tenho outro carro, um Rover dos grandes, que seria mais confortávelpara as senhoras, mas podemos ter que atravessar terreno difícil na

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Black Isle e ainda há neve.Carrie sentou-se no banco de trás e Lucy instalou-se ao lado domotorista.Ainda há muita neve? quis saber a jovem, pois nunca tivera um Natalbranco e estava ansiosa por isso. Um Natal com neve viria mesmo acalhar.Já não é muita, mas ainda cai, o que quer dizer que vem aí mais. Falavacom voz suave precisa e delicada. Era a primeira vez que Lucy ouvia osotaque de Sutherland.219Quanto tempo leva a viagem daqui a Creagan?Cerca de uma hora e um quarto. Não mais.Lucy consultou o relógio. Eram onze e um quarto. Chegariam por volta domeio-dia e meia hora. A tempo do almoço. Apesar dos dois pãezinhos quecomera, começava a ter fome de novo. Esperava que fosse algo quente esubstancial.É a primeira vez que vem a Creagan? perguntou o taxista.Nunca tinha vindo à Escócia.Pois bem, vai gostar muito. E ficará instalada numa bela casa. Estevevazia durante demasiado tempo. É bom ter gente a viver nela outra vez.Carrie inclinou-se para a frente.Como está Elfrida? perguntou. Mistress Phipps.Está óptima. Costumo vê-la por lá, a fazer as suas compras, a passear ocão. Ela é que veio reservar o táxi para as vir buscar. Esta manhãtelefonou para ter a certeza de que não me esquecera.O senhor vive em Creagan? perguntou Lucy.Desde sempre. Nasci lá, e o meu pai já lá vivia. Quando ele sereformou, fiquei-lhe com o negócio.Do táxi?Não só do táxi. Lucy ficou intrigada.Que mais?Carros funerários - contou-lhe ele, com uma ponta de humor na voz. Souo cangalheiro lá do sítio.Lucy calou-se num instante.Foi uma viagem espectacular. A estrada passava por campos cultivados epontes, e no terreno difícil os pneus do Subaru faziam a neve rangerdebaixo de si. Seguia ao longo das margens de um extenso lago criadopor comportas, que se enchia ou esvaziava ao sabor das marés, e atravésde aldeolas com pequenas casas erguidas em pedra cinzenta, assim comopubs, lojas e igrejas de aspecto robusto, rodeadas por velhoscemitérios repletos de lápides inclinadas e cobertas de líquenes. Porfim, surgiu a última ponte, sobre mais um estuário que se estendia comoum longo braço de água azul a desaparecer por entre as dobras dascolinas a ocidente.Alec informou:Daqui a uns dez minutos já lá estamos.Parte do entusiasmo morreu imediatamente e Lucy começou a sentir-se umpouco nervosa. Não se tratava apenas de chegar a um sítio desconhecido,a uma casa estranha, mas era, sim, a perspectiva de conhecer,finalmente, os seus anfitriões, Elfrida e Oscar. Elfrida não apreocupava tanto, porque Carrie falara muito nela, ao ponto de acharque ia encontrar uma pessoa de idade indefinida e tremendamentedivertida. Oscar Blundell, porém, o amigo de Elfrida, era um casocompletamente220diferente. Para começar, era um homem, sexo com o qual Lucy não estavanada habituada a lidar.Mas isso não era tudo. Carrie falara-lhe de Oscar e dos motivos pelosquais Elfrida viera fazer-lhe companhia até àquela pequena cidade doNorte da Escócia. A mulher e a filha, então com doze anos e chamadaFrancesca, tinham morrido num acidente de automóvel terrível. Carrienão se alongara sobre a catástrofe e fugira às perguntas horrorizadas

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de Lucy. Dissera simplesmente que fora um acidente, sem culpa deninguém, mas que Oscar ainda não se refizera do choque.Francesca tinha doze anos. Lucy, catorze.«Será que ele me quer lá?», perguntara. «Não será horrível para ele teruma pessoa da minha idade lá em casa? Achas que me odiará?»Carrie sorrira e abraçara-a.«Falei nesse aspecto a Elfrida, pelo telefone. Ela conversou com Oscarque fez absoluta questão que lá fôssemos passar o Natal. E como a casaonde vamos ficar é dele, seremos, a seu convite, suas hóspedes. Alémdisso, nunca ninguém conseguiria odiar-te.»Ainda assim, era um pouco complicado e assustador. Era uma altura emque Lucy ansiava por tranquilidade. Os problemas que passara em casatinham-lhe bastado.Foi então que, deveras repentinamente, se viram rodeadas de um ambientemarítimo: dunas altas em cada lado da estrada, onde cresciam pinheirosatrofiados e aglomerados de urze e se notava também uma certa luz,reflectida pelo oceano. Lucy baixou o vidro, sentindo o cheiro amaresia. A estrada descia colina abaixo e, mais à frente, espraiava-sea pequena cidade. Mal se deram conta, entravam já na rua principal. Nãoera cinzenta nem sombria como as outras por onde já tinham passado, massim construída em arenito dourado que parecia reflectir o débil sol deInverno. A rua era ladeada por casas que se erguiam do lado de lá dejardins murados, e havia edifícios e árvores bonitas, assim como umainesperada sensação de prosperidade e espaço.Carrie, que pouco falara durante a viagem, observou então:Que extraordinário. Faz lembrar Cotswolds. É como uma cidade deCotswolds.Alec sorriu.Muitos visitantes fazem essa observação, mas eu nunca estive emCotswolds.Pedra dourada. Ruas largas. E os jardins...O que muitas pessoas ignoram é que, por causa da corrente do Golfo,gozamos de um clima parecido com o de Eastbourne. Pode havertempestades a tumultuar a outra vertente das colinas, que nós aquijogamos golfe ou passeamos na praia ao sol.É uma espécie de microclima observou Lucy.Exactamente.221A rua alargou-se, dando lugar a uma praça no meio da qual se erguia umaigreja bonita e grande, assim como um velho cemitério, tudo rodeado porum muro de pedra. No alto da igreja via-se um cata-vento dourado, porcima do qual rodopiavam gaivotas e gralhas. A chiadeira das gaivotasfazia lembrar as férias de Verão. Os ponteiros do relógio marcavammeio-dia e vinte e cinco minutos.Fizemos uma boa média observou Alec. I Continuou a guiar, a velocidademoderada, virou à direita a seguirao pátio da igreja e parou à beira do passeio.É aqui? perguntou Lucy. I O taxista desligou o motor.É aqui. Apearam-se do Subaru, mas, antes de Alec ter sequer tempo paraabrir o fecho do portão, ouviram ladrar furiosamente e, logo a seguir,a porta da entrada escancarou-se. Elfrida Phipps lançou-se pelocarreiro adiante, seguida pelo seu cão vociferante.Carrie! Oh, minha querida. Rodeou Carrie com os braços e as duasabraçaram-se com força. Já chegaste, já chegaste. Estava tão ansiosa, eentusiasmada, que mal podia esperar!Lucy observava, ligeiramente afastada. Elfrida era muito alta e magra,e tinha uma cabeleira cor de marmelada, que usava descontraidamentesolta. Vestia calças de uma bombazina particularmente espalhafatosa eum enorme camisolão cinzento. Tinha sombra azul nas pálpebras e muitobaton nos lábios. Lucy percebeu então porque é que a sua avó não aaprovava. Ao beijar Carrie, deixou-lhe a cara suja de baton.Elfrida! Estás com um ar magnífico. Não há dúvida de que te dás bem na

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Escócia! exclamou Carrie.Querida, isto aqui é o paraíso. De gelar até aos ossos, mas o paraíso.Apresento-te Lucy.Mas, claro. Riu-se. Não achas o cúmulo, Lucy? Somos parentes e nuncapusemos os olhos em cima uma da outra. Mas o teu avô era o meu primopreferido e passámos óptimos bocados juntos. Pousou as mãos nos ombrosda jovem. Deixa-me olhar para ti. Sim, és como eu imaginava. Bonitacomo um quadro. Este é Horace, o meu cão, que, fico contente em dizer,parou de ladrar. Tem estado ansioso por te conhecer porque espera que oleves a dar grandes passeios pela praia. Oh, Alec, tem aí as malas. Étudo? Não se importa de as levar lá para cima? Vamos, entrem, saiam dofrio e venham conhecer Oscar.Percorreram o carreiro e entraram em casa em fila indiana, Elfrida àfrente, a seguir o cão e depois Carrie, Lucy e, por fim, Alec,carregado com a bagagem. Este fechou a porta com o pé depois de entrare todos atravessaram um vestíbulo comprido, ao fundo do qual ficava umaescadaria ampla, por onde subiram. Lucy gostou da sensação que a casa222lhe transmitia: solidez, segurança, com corrimões robustos e umaalcatifa espessa a tapar os degraus. Assim como o odor a madeira antigaencerada e a móveis muito usados, além do ligeiro cheiro a comida empreparação que vinha da cozinha. Elfrida ainda não se calara.Como foi o voo? Não apanharam muitos poços de ar? Felizmente o tempomanteve-se sereno.Tinham chegado ao patamar do primeiro piso. A bonita escadaria subiaaté ao andar de cima. Ao fundo do patamar, uma faixa de luz saía de umafresta da porta.Elfrida levantou a voz para chamar:Oscar! Já chegaram! Depois, em voz normal: Ele está na sala de estar.Vocês duas entrem e cumprimentem-no, enquanto vou dizer a Alec paraonde vão as malas. A de Carrie fica aqui, Alec, e a de Lucy vai lá paracima. Consegue subir mais um andar?Carrie olhou para Lucy e sorriu-lhe tranquilizadoramente. Pegou-lhe namão, o que era reconfortante, e ambas empurraram a porta entreaberta,onde o sol batia, e entraram numa bela sala de estar de paredesbrancas, esparsamente mobilada e cheia de luz. Na lareira ardia umpequeno fogo e de uma janela alta, arqueada, que deitava para a ruavia-se a igreja: tão próxima que dava a impressão de se poder tocarnela com a mão.Oscar aguardava-as, de pé, com as costas voltadas para a lareira. Eraalto como Elfrida mas não tão magro. Era senhor de uma bela cabeça,onde o rosto, tranquilo e bondoso, não enrugado mas estranhamente liso,era encimado por uma cabeleira grisalha. Tinha os olhos encapuçados edescaídos nos cantos. Envergava uma camisa aos quadrados e uma gravatade lã e, por cima, um sweater azul.Carrie foi a primeira a falar:Como está, Oscar? Sou Carrie Sutton.Minha querida... Aproximou-se para as cumprimentar e Lucy pensou queele devia sentir-se um pouco atónito por estar a dar as boas-vindas auma pessoa tão sensacionalmente glamorosa como Carrie. Mas encantado,também. Muito prazer em conhecê-la. Fizeram boa viagem? Apertaram asmãos.Perfeita - respondeu-lhe Carrie. Sem problemas.E Alec deu logo convosco? Elfrida tem estado nervosíssima a manhã toda,sempre a correr para a janela para ver se chegavam.Foi muita gentileza sua receber-nos. Carrie olhou em volta. E que casamaravilhosa a sua.Só sou dono de metade.Isso não a torna menos especial. Largou a mão a Lucy e rodeou-lhe osombros com o braço. Esta é Lucy Wesley, minha sobrinha.Lucy tentou controlar o nervosismo. Cumprimentou:223

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Como está?Baixou os olhos, mas depois fez um esforço para o olhar directamente.Durante o que pareceu ser muito tempo, ele nada disse. Lucy sabia quedevia estar a pensar na própria filha, morta aos doze anos. Sabia queestava provavelmente a compará-la a Francesca e a sentir um misto deemoções, entre elas dor. Esperava não sair desfavorecida dessacomparação. Pouco mais podia fazer. Subitamente, ele sorriu-lhe.agarrou-lhe na mão com carinho e afabilidade e, a partir daí, eladeixou de se sentir nervosa.Com que então és Lucy.É verdade.E vais ter de dormir no sótão. Carrie riu-se.O Oscar fala como se isso não fosse muito tentador.Os sótãos nunca parecem muito tentadores. Nem isso, nem os baús velhos,nem as cabeças de alces embalsamadas. Mas não te preocupes, Lucy,Elfrida tornou-o irresistível para ti.Largou então a mão de Lucy e olhou para o relógio da igreja através dajanela.Já é meio-dia e meia hora. Que tal irem conhecer os vossos quartos einstalarem-se? Depois, tomaremos uma bebida e almoçaremos. Elfridapassou grande parte da manhã a preparar uma empada à moda do campo.Achou que precisariam de algo substancial para comer depois de umaviagem tão longa.Lucy sentiu-se animada. O pior dos encontros iniciais passara. Elfridaera divertida e Oscar gentil. E Elfrida dissera que ela era bonita comouma pintura. E iam comer empada à moda do campo, ao almoço.Almoçaram na cozinha.Temos sala de jantar explicou Elfrida , mas é tão escura e sombria quenunca comemos lá. E como não tem ligação directa com a cozinha, teriade passar a vida de um lado para o outro com os pratos.Aqui está-se muito melhor observou Carrie, opinião com a qual Lucyconcordou.Dispunham de uma mesa comprida, uma toalha aos quadrados, cadeiras demadeira desirmanadas, tudo confortavelmente informal. Lucy sabia queDodie morreria se lhe pedissem que fizesse alguma coisa em condiçõestão antiquadas: por um lado, a cozinha era um bocado escura, vistoficar voltada para o muro do quintal vizinho. As janelas tinham barrasde ferro para impedir a entrada de pessoas indesejáveis ou, então, paraimpedir a fuga de cozinheiras e auxiliares estafadas. Mas tal nãoimpedia que, tal como o resto da casa, transmitisse uma agradávelsensação de conforto. Também havia um enorme guarda-louça, pintado devermelho, onde Se via grande variedade de louça e ganchos para pendurarcanecas e chávenas.224Comeram a empada à moda do campo, que estava uma delícia, e Depois umpudim de maçã e merengue, com natas à parte. No fím, Carrie e Elfridatomaram um café. Oscar, porém, não quis. Em vez disso, consultou orelógio e disse:Se Horace e eu não sairmos já para o nosso passeio, não estaremos emcasa antes de anoitecer. Olhou para Lucy, no outro lado da mesa.Gostarias de vir connosco?Dar um passeio?Podíamos ir pela praia. Assim já ficavas a conhecer o caminho. A jovemficou muito contente com o convite.Sim, gostaria muito.Talvez não fosse má ideia, Oscar sugeriu Elfrida , dares primeiro umavolta pela cidade com ela e mostrares-lhe onde ficam as lojas, nãolevam mais de cinco minutos, e depois iam então até às dunas.Sem dúvida, se ela quiser. Tens algum casaco bem quente, Lucy?Tenho um novo.E um chapéu que aqueça. O vento que sopra do mar é capaz de te congelaras orelhas.

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Sim, também tenho um.Então vai preparar-te, para sairmos juntos.Posso ajudar a levantar a mesa? ofereceu-se Lucy. Elfrida riu-se.Que menina bem-educada és. Claro que não. Carrie e eu tomamos contadisso quando acabarmos de tomar café. Vai com o Oscar, antes que fiquedemasiado frio.Cinco minutos mais tarde, saíram juntos, o homem idoso, a rapariga e ocão. Horace ia pela trela, levado por Lucy, que tinha as mãosenluvadas. Enterrara o seu chapéu de lã grossa sobre as orelhas ecorrera o fecho do casaco novo até acima. Oscar levava o seu casacãoimpermeável, com o forro aos quadrados, e um chapéu de tweed que, nasua opinião, lhe ficava bem, dando-lhe um ar distinto e agradável.Quando iam a passar o portão, Oscar disse à jovem:Vamos primeiro à cidade.Assim fizeram. Desceram a rua, contornaram o muro da igreja, passarampela loja de bricabraque, a farmácia, a livraria, o talho e ojornaleiro.É aqui que venho buscar o jornal todas as manhãs. Se um dia me der apreguiça e quiser ficar na cama até mais tarde, podes fazê-lo por mimsugeriu Oscar.Seguiram-se as bombas da gasolina, uma loja cheia de camisolastricotadas à mão, um hotel pequeno, uma montra cheia de brinquedos paraa praia e o supermercado. Lucy deteve-se sob uma árvore despida defolhas, e olhou através do portão de ferro para uma porta lateral daigreja que, ao cimo de um carreiro, estava aberta.225Algo a fez sentir vontade de entrar. Dali conseguia ver uma entradaausteramente alcatifada, logo seguida de uma porta interior, essafechada.A igreja está aberta? perguntou.Sempre. Só aquela porta. Para visitantes, suponho.Como é por dentro?Não sei, Lucy. Nunca lá entrei.Podemos lá dar um pulinho agora? Só por um instante? Oscar hesitou:Eu...Oh, entremos. As igrejas são tão bonitas quando estão vazias! São comoas ruas sem ninguém. Pode ver-se o seu formato. Antes de se encherem denovo.Oscar respirou fundo e Lucy ainda pensou que iria recusar, dizer, «Nãotemos tempo», ou «Fica para outro dia». No entanto, ouviu-o deixarescapar, como se fosse um suspiro profundo, «Está bem».Lucy abriu o portão, que rangeu nos seus gonzos, e percorreram ocarreiro. Dentro do pequeno vestíbulo encontraram um aviso:PERMITIDA A ENTRADA DE VISITANTES, MAS NÃO DE CÃES.Prenderam a ponta da trela de Horace ao manipulo da porta de entrada edeixaram-no sentado em cima do capacho. Não pareceu ficar nadasatisfeito.No interior, a igreja estava vazia. As suas passadas soaram no chãocoberto de lajes, fazendo eco no tecto. A luz do Sol entrava pelasjanelas de vidros coloridos. Três dos braços do formato cruciformeestavam ocupados por filas de bancos e genuflexórios, todos voltadospara a coxia central, de modo que era um pouco como se fossem trêsigrejas. As paredes eram em pedra, o tecto arqueado ficava bem no alto,e os espaços entre as vigas estavam pintados de azul-celeste.Lucy deu uma volta a examinar tudo. Leu as palavras inscritas em velhasplacas, sobre pessoas de outras eras que tinham sido fiéis servidoresde Deus e visitas frequentes da igreja. Havia muitos nomes de nobres ede pessoas com títulos, assim como outros, vulgares. Era tudo muitomaior do que ela calculara e quando acabou de inspeccionar ospormenores, desde a pia ornamentada aos genuflexórios com o estofoelegantemente cosido à mão, já Oscar se fartara de estar de pé esentara-se à sua espera no banco da frente.

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Sentindo remorsos, Lucy foi sentar-se ao seu lado.Desculpe.Porquê?Por ter demorado tanto.Fico contente em ver que te interessas por estas coisas.Carrie contou-me que foi organista. Que ensinava música.É verdade. Também fui regente de coro Baixou os olhos para Lucy. Sabestocar piano?226- Não. Nunca aprendi. A minha mãe disse que isso roubaria demasiadotempo às lições, passatempos, trabalhos de casa e outras coisas. Alemdisso, no apartamento da minha avó não há nenhum piano.Gostarias de tocar?Sim, acho que sim.Nunca é demasiado tarde para começar. Ouves música?Lucy encolheu os ombros.Só música pop e do género. Ficou pensativa. Às vezes lá na escolalevam-nos a concertos. Este Verão fomos a um concerto ao ar livre noRegent Park. Havia um palco enorme e uma orquestra a sério.Oscar sorriu.Choveu?Não, estava uma noite linda. E no final tocaram a Music for the RoyalFirework e houve fogo-de-artifício ao mesmo tempo. Adorei. A música, osestrondos, as luzes e os foguetes, era tudo ao mesmo tempo, o quetornava o espectáculo duplamente excitante. Agora, sempre que oiço amesma música, vejo o céu da noite encher-se de luzes brilhantes comvários desenhos.Uma experiência e tanto.É verdade. Foi lindo.Ergueu os olhos, de boca aberta, para a janela de vidros coloridosmesmo em frente. Maria e o Menino Jesus.Não gostaria nada de fazer anos a meio do Inverno. Muito menos no Nataldisse.Porque não?Bem, por um lado, se calhar só recebia um presente. Por outro,normalmente está mau tempo.Quando é que fazes anos?Em Julho. Muito melhor. O único senão é ainda ter aulas.Ainda assim, é Verão.Pois é. Oscar reflectiu por um momento e depois observou:Na verdade, não acho que Jesus tenha nascido no Inverno. Acho que omais provável é ter sido na Primavera.A sério? E porque acha isso?Bem, os pastores andavam a guardar os seus rebanhos, o que deviasignificar que era tempo dos cordeiros nascerem, de modo que tinham deestar alerta em relação aos lobos, para que não lhos fossem comer. Alémdisso, existem dados científicos que nos mostram que, na altura, hádois mil anos, se via uma estrela estranhamente brilhante no céu,precisamente naquele lugar.Então porque não celebramos o Natal na Primavera?Creio que os primeiros cristãos foram uns espertalhões. Limitaram-se aadaptar o que lhes fora legado pelos habitantes pagãos dos países queconvertiam. O solsticio de Inverno fora sempre celebrado no227dia mais curto do ano. Penso que esses pré-cristãos, para se animar,faziam uma espécie de festa, acendiam fogueiras, bebiam álcool,acendiam velas, apanhavam azevinho e faziam bolos. Oscar sorriu.Embriagavam-se e entregavam-se a práticas lascivas.Quer dizer que os primeiros cristãos utilizaram a mesma festa para issotudo?Algo do género.Mas também lhe juntaram outros pormenores.

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A sua crença no Filho de Deus.Compreendo. Vendo bem, parecia uma adaptação muito prática. E quanto àsárvores de Natal?Vieram da Alemanha. Trazidas por Alberto, o príncipe consorte da rainhaVitória.E os perus?Os perus vieram da América. Antes disso, a ave tradicional era o ganso.E os cânticos?Uns antigos, outros novos.E os brindes? Que significam? Nunca soube.Apenas uma desculpa para os copos. Com uma cerveja condimentada.E as peúgas?Acho que nunca soube de onde veio o costume das peúgas. Lucy ficoucalada durante algum tempo. Em seguida perguntou:Gosta do Natal?De algumas partes respondeu-lhe Oscar, mostrando-se cauteloso.Na verdade, não aprecio muito. Há muito entusiasmo e depois... fica-secomo que... desiludido.O que prova que nunca devemos alimentar demasiadas expectativas.Lá no alto, por cima deles, o relógio da igreja deu as duas e meia datarde. Os toques eram distantes, melodiosos, abafados.Acho que já estamos aqui há demasiado tempo acrescentou Oscar.Lucy ficou em silêncio. A igreja estava muito sossegada. Outros sonschegavam até eles, vindos de longe: um carro que passava, a voz de umhomem a falar alto, o piar prolongado de alguma gaivota a rodopiar porcima da torre do relógio. Olhou para cima e reparou, pela primeira vez,numas lâmpadas colocadas bem no alto, mesmo junto da dobra da cornijaescavada na pedra. Naquele momento encontravam-se apagadas, razão pelaqual não dera por elas, mas...Observou:Este espaço deve ficar lindo com todas aquelas luzes acesas. Devemparecer holofotes, assim como a luz do Sol, a brilhar no tecto azul.228Penso que as acendam na missa ao domingo.Gostaria de ver. Oscar disse calmamente:Se quiseres, podes vir. A seguir pôs-se de pé. Vem daí. Era supostodarmos um longo passeio. Ainda temos de ir até à praia e já não devefaltar muito para escurecer.CarrieOscar, Lucy e Horace tinham saído para o seu passeio. A porta pesada dacasa fechou-se após a sua passagem e Carrie e Elfrida ficaram sozinhas,ainda sentadas à mesa com os restos do almoço e o café àsua frente. Sorriram uma à outra. Duas mulheres degerações diferentes, mas velhas amigas que já não estavam juntas hádemasiado tempo, a desfrutarem naquele momento, finalmente, de umaprivacidade tranquila.Que homem excelente! observou Carrie.Achava que Elfrida, apesar dos seus sessenta e dois anos, possuía avitalidade e a energia de uma jovem. A esbeltez ficava-lhe bem, assimcomo o cabelo alaranjado negligentemente penteado, as roupasexcêntricas e o baton berrante, pormenores que contrariavamsaudavelmente os anos avançados. A sua simples presença inculcavaenergia.É, não é? concordou, com satisfação.Estou muito contente por terem feito amizade. Lucy estava apreensiva.Falei-lhe, como não podia deixar de ser, do que aconteceu à mulher e àfilha e ela ficou com receio que Oscar não a quisesse aqui por lhefazer lembrar Francesca. Achou que talvez ficasse perturbado com a suapresença. Que chegasse mesmo a detestá-la.Elfrida mostrou-se compreensiva.Pobre menina, mas perspicaz, sem dúvida. Contudo, estou convencida deque Oscar não é capaz de detestar quem quer que seja. E mesmo que assim

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fosse, jamais o diria ou demonstraria. Tivemos uma pequena divergênciaquando cá chegámos, por causa de um pobre velhote muito maçador a quemprecisámos de ir pedir a chave aqui da casa. Reconheço que era de fazerperder a paciência a um santo; não parava de dizer a Oscar que o iriameter no clube de golfe e que tinham de se encontrar para tomar umcopo. Oscar ficou aterrorizado. Passou as duas semanas seguintesescondido dentro de casa ou a atravessar a rua apressadamente com ochapéu enfiado até às orelhas, como um criminoso, com um medo mortal deencontrar o major Bilhcliffe e ter de o convidar a tomar233um gim. Depois descobriu que o velhote estava muito doente. Encontrou-ometido na cama em muito mau estado. Ofereceu-se logo para o levar aohospital de Inverness no seu carro, pois ficou cheio de pena dele. Omajor Billicliffe é viúvo e vive completamente sozinho. Como vês, Oscarnão é nada bom a detestar pessoas. Jamais poderia ser comparado com umadessas pessoas que passam a vida zangadas com o mundo.Parece-me um amor de pessoa. Só espero que não seja demasiadocomplicado para vocês terem-nos aqui às duas.É uma maravilha, precisamente aquilo de que estávamos a precisar.Não terá de ser um Natal cheio de animação. Lucy e eu temosexpectativas relativamente modestas em relação à que é conhecida pelaestação festiva.Nós também. Embora Oscar tenha encomendado uma árvore de Natal, àsescondidas, assim que soube da vossa vinda.Lucy vai adorar. Pode decorá-la. Pobre menina, a minha mãe nunca tevegrande jeito para criar um ambiente mágico e Nicola é demasiadopreguiçosa. No entanto, acho que a minha mãe te está verdadeiramenteagradecida, porque assim já pode ir passar as suas animadas férias emBournemouth de consciência tranquila.Como é que ela está?Na mesma. Não era preciso dizer mais.E Nicola?Também na mesma. Ao contrário do vinho, não melhoram com o tempo.E o teu pai?Não o tenho visto, mas falámos ao telefone.Em Outubro passei um mês maravilhoso com eles em Emblo. Quando chegueia casa é que recebi esta notícia horrível sobre o que acontecera aOscar. Foi como sair de um mundo e entrar noutro. A vida pode mudar dodia para a noite.Eu sei. Carrie pensou em Andreas, mas depois afastou o pensamento. Eusei repetiu.Fez-se silêncio. Carrie terminou o café e pousou a pequena chávena.Sabia o que viria a seguir, e assim foi.E tu, Carrie?Eu? Estou óptima.Não me parece. Por um lado, pareces cansada e estás pálida. Eterrivelmente magra.Olha quem fala. Tens de admitir, Elfrida, que nenhuma de nós ganhariajamais o prémio da mulher mais voluptuosa.Porque é que voltaste da Áustria tão de repente? Carrie encolheu osombros.Oh, foram Impulsos.Não acredito nisso.234 lPrometo que um dia te conto. Agora não.Não estás doente, pois não?Não. Estou um pouco constipada e também fatigada. Mas doente, não.Largaste o emprego?Larguei.Tencionas arranjar outro?Acho que sim. Na verdade, a agência de viagens para a qual trabalhei noestrangeiro telefonou-me um dia destes e fui falar com eles.

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Ofereceram-me um lugar, bastante bom, na sucursal em Londres. Ainda nãodei uma resposta, mas é provável que aceite, quando voltar, depois doNatal.E a tua casa?Aluguei-a até Fevereiro. Até lá, moro com uns amigos ou alugo uma.Sinto-me muito triste por não poder ajudar.Ao receber-nos aqui já estás a ajudar.Não é nada de excitante.Não ando com vontade de nada de excitante.Elfrida ficou calada. Terminou o seu café, depois suspirou e passou amão pelo indomável cabelo cor de fogo.Nesse caso, não digo mais nada. E agora conta-me , mostrou-se novamentealegre , que gostarias de fazer hoje à tarde? Talvez uma sesta? Voupreparar-te um saco de água quente.Cama e saco de água quente. Carrie não tinha memória da última vez emque alguém a apaparicara. Elfrida dissera: «Pareces cansada.» Depois:«Que tal uma sesta?» Ela passara demasiados anos a ser forte, a cuidardos outros e dos seus problemas: cancelar reservas, arranjar reboquespara esquis defeituosos, substituir quartos inadequados, comboios ecamionetas que falhavam; a falta de neve, ou o facto de haverdemasiada; um conjunto a tocar demasiado alto até de madrugada;passaportes, dinheiro, secadores perdidos... E depois voltar a Londrese ser confrontada com mais uma série de problemas familiares queprecisavam de ser resolvidos.Apercebeu-se de que estava farta de ser forte. Farta de ser o pilar deenergia ao qual todos se encostavam. No andar de cima estava o seuquarto, a sua mala. Fora até lá acima, afim de pendurar o casaco eescovar o cabelo antes de almoço, e vira, com enorme satisfação, aenorme cama de casal, fofa e macia, com a sua coberta branca e os tubosde metal brilhante da sua armação, que faziam lembrar os corrimões deum navio bem conservado. Sentira imediatamente uma vontade imensa de semeter dentro dela e dormir.Talvez uma sesta. Sentia grande carinho e gratidão por Elfrida.Respondera-lhe:«Acho que não há nada que me apeteça mais. Mas não te importas235de, primeiro, me mostrares a casa para eu poder movimentar-me com maisfacilidade, pois não? Parece tão grande que posso perder-me. Imaginavaos,aos dois, a viver numa casita qualquer e venho encontrar-vos numaautêntica mansão!- Claro que sim - aquiesceu Elfrida, levantando-se.- E quanto à lavagem da loiça?- Fica para mais tarde. Não temos máquina de lavar-loiça, mas comotambém nunca tive nenhuma, não me faz diferença. Além disso gosto detratar dela à maneira antiga, com muito detergente. Vem daí!Saiu da cozinha à frente de Carrie e começou por levá-la às duasdivisões do rés-do-chão.- Em tempos, a casa pertenceu à propriedade de Corrydale - explicouElfrida como se fosse uma guia de turismo. - O feitor e a famíliaviviam aqui, por isso é tão grande. Herdámos apenas as peças de mobíliamais essenciais e não vale a pena estarmos a encher-nos de tarecos.-Abriu a porta. - Aqui era o escritório da quinta que, como podes ver,está perfeitamente inabitável. Parece uma loja de tralhas. E esta é anossa sala de jantar. O mais sombrio que se possa imaginar.Era, na verdade, atemorizadora, e cheirava a prolongadas refeiçõesantigas.- Mas adoro a mesa - observou Carrie. - E repara neste armário,construído de modo a aguentar o peso de enormes pernas de veado. E umpiano! Daremos concertos?- Creio que não. Só Deus sabe quando terá sido afinado pela última vez.- Mas o Oscar toca.- De momento, não. Por enquanto só escuta música, não a faz. Subiram ao

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andar de cima.- Lucy fica no sótão. Preparei tudo lá em cima para ela, mas estouconvencida de que depois quererá ser ela própria a mostrar-te tudo. Jáviste também a sala de estar e as casas de banho. E este -, abriu outraporta -, é o segundo quarto livre. Podia ter posto Lucy aqui, mas émuito pequeno e um bocado lúgubre. O sótão pareceu-me um espaço muitomais atractivo para ela, e diverti-me imenso a decorá-lo.Carrie espreitou para dentro do quarto pequeno e vulgar, onde o espaçoera quase todo ocupado por mais uma cama enorme. Estava, nitidamente,desocupado, e foi então que Carrie começou a sentir-se algo incomodada,sem saber, mas imaginando o que iria acontecer a seguir. O interesse emver a casa não era mais que isso. Interesse, não curiosidade. Noentanto, o seu pedido inocente parecia agora ter sido um pouco comolevantar a tampa da caixa de Pandora.- Elfrida...Elfrida ou não ouviu ou não ligou. Em vez disso, abriu a última portacom um floreado que tinha um toque de desafio.- E este - declarou -, é o nosso quarto.236Era uma divisão espaçosa e notável, o quarto principal da casaoriginal, com janelas altas que deitavam para a luz de fim da tarde,para a vila e a igreja. Nele viam-se um majestoso guarda-fatovitoriano, um lindo toucador e uma cómoda no mesmo estilo. E uma camaimensamente alta e larga. Em cima dela estava estendido o xaile de sedaescarlate de Elfrida, com o bordado a começar a empalidecer e a franjaa desfiar-se, mas ainda maravilhosamente opulento, a fazer lembrar osvelhos tempos e a casa da sua dona em Putney.E outros objectos pessoais: umas escovas masculinas em marfim sobre acómoda, um par de sapatões muito bem arrumados debaixo de uma cadeira,um pijama escuro dobrado sobre uma almofada. E um agradável cheiromasculino, um misto de cabedal polido e rum.Fez-se um pequeno silêncio. Depois, Carrie olhou para Elfrida e notoulheuma expressão vagamente embaraçada. Achou graça, pois Elfrida nuncamostrara a mínima vergonha em relação aos seus muitos e variados casosamorosos.Foi então que lhe perguntou:- Não estás chocada?- Elfrida, estás a falar comigo. Não sou Dodie.- Eu sei que não és.- Dormem juntos? Elfrida assentiu.- São amantes?- Somos.Carrie pensou no homem encantador e distinto, com a sua densa cabeleirabranca e o rosto gentil.- Fico contente - declarou.- Ainda bem que aceitas. Precisava de te dizer. De te explicar.- Não tens de dar explicações.- Não tenho, mas quero.- Viajámos juntos de Dibton até à Escócia. Eu conduzi a maior parte docaminho, as condições atmosféricas estavam um horror e a Al estavacheia de trânsito. Os dias que antecederam a nossa partida foramtraumatizantes por causa das despedidas e das disposições que tivemosde tomar antes de virmos, que nos deixaram aos dois de rastos. Oscarmal falou. Quando escureceu já estávamos fartos de estrada, de modo quevirámos já não sei em que cruzamento e seguimos para Northumberland.Oscar disse que se lembrava de uma pequena cidade que tinha Um pequenohotel na rua principal, e por milagre lá encontrámos a dita Cidade, como hotel no mesmo sítio. Deixei-me ficar dentro do carro com Horace,enquanto Oscar entrava a saber se tinham quartos Para nós.«Passado um bocado voltou e disse que não se importavam de quelevássemos o cão connosco, mas só dispunham de um quarto com 237cama dupla. Nessa altura, eu já estava tão estafada que até num armário

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dormiria, de modo que disse a Oscar que o reservasse. Inscreveu-noscomo Mister e Mistress Blundell no registo. Senti-me como uma raparigaleviana a dar uma escapadinha de fím-de-semana com o namorado.«Tomámos banho, uma bebida e jantámos. Depois, como tínhamos de noslevantar cedo na manhã seguinte, fomos para cima. Chegados ao quarto,eu e Oscar tivemos uma conversa ridícula em que ele disse que dormiriano sofá e eu a contrapor que ficava no chão com Horace. De repente,sentimo-nos demasiado cansados para discutir e deitámo-nos na camajuntos, adormecendo logo a seguir.«Mas o que eu não sabia era que Oscar andava a ter uns pesadelosterríveis. Mais tarde, contou-me que os tinha desde o acidente, que sedeitava o mais tarde possível, tão apavorado se sentia com eles. Nessanoite, acordou-me com os seus gritos, e por um momento fiqueiaterrorizada. Depois, percebi que tinha de o acordar. Assim fiz e elecomeçou a chorar, era horrível para ele, dei-lhe um gole de água eacalmei-o. Abracei-o e cheguei-o a mim, de modo que passado um bocadovoltou a adormecer. Depois disso, nunca mais o deixei dormir sozinho.Quando cá chegámos, vinha um pouco preocupado com o que as pessoaspudessem pensar. Dizer. Temos uma senhora muito boa que nos vem cá acasa fazer limpezas, Mistress Snead. O Oscar receava que ela se pusessecom mexericos e se gerasse uma situação de censura e mal-estar. Disselheque não me ralava com isso, pois não tencionava deixá-lo.«Creio, minha querida Carrie, que tudo isto poderá parecer um poucosuspeito da minha parte. Oportunista. Como se estivesse à espera damorte de Gloria para me atirar a Oscar, meter-me na sua cama. Mas podescrer que não foi isso. Sempre gostei imensamente dele, no entanto, erao marido de Gloria, de quem eu também gostava, embora talvez não tantocomo dele. É difícil explicar. Mas tudo o que fiz, todas as opções quetomei tiveram a melhor das intenções. Convidou-me para vir para aEscócia com ele e como era um homem à beira do desespero, eu aceitei.«Podia ter sido um desastre, mas, em vez disso, temos uma relação quecreio consolar-nos aos dois. Fizemos amor pela primeira vez uma semanadepois de cá chegarmos. Era inevitável, evidentemente. Ele é um homemmuito atraente e, sabe-se lá porquê, também acha que aqui a velhota nãoé nada de se deitar fora. A partir daí, os pesadelos horrendoscomeçaram a desvanecer-se e já dorme noites inteiras. Ainda aparecempesadelos, mas são muito menos frequentes. E se ouvires gritos a meioda noite, não te preocupes, porque eu estou junto dele.«Não fiz segredo de nada, não menti. Assim que foi possível, falei emprivado com Mistress Snead e expliquei-lhe as circunstâncias que nostinham levado a viver juntos. Ela é de Londres e poucas coisas achocam, além de ser uma boa amiga e uma utilíssima mina de informações.238Depois de me ouvir, disse, "Cá por mim, Mistress Phipps, seria umacrueldade deixar aquele homem sofrer quando lhe pode dar um pouco deconforto nesta sua hora de precisão." E pronto. Agora tu também sabes.Por um momento, nenhuma das duas falou. A certa altura, Carriesuspirou.Pobre Oscar. Mas quão mais desgraçado não seria sem ti.- E Lucy? Que faremos em relação a ela? Não parece nada estúpida. Achasque devemos contar-lhe?- Não demos demasiada importância a isso. Se ela fizer perguntas, digolhea verdade.- Somos tão velhos que vai ficar espantada.- Não me parece. O próprio avô tem uma mulher muito jovem e um par decrianças lindas. Não é nenhuma novidade para Lucy. Simpatizounitidamente com Oscar e sentir-se-á tão contente como eu. Carrie rodeouos ombros magros de Elfrida com um braço e chegou-a carinhosamente asi. - Como é bonito precisarem um do outro e encontrarem-se.- Oscar ainda não saiu da depressão, de modo algum. Ainda lhe faltapercorrer um caminho longo. Há dias em que se sente tão deprimido quemal fala. Quando é assim, aprendi a deixá-lo sozinho. Tem de lidar com

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a dor ao seu jeito.- Não deve estar a ser nada fácil.- Oh, querida Carrie, nada é. E agora, não percamos mais tempo, casocontrário o dia chegará ao fim. Vou arranjar-te uma botija de águaquente e vais dormir um pouco.LucySexta-feira, 15 de DezembroCá estamos, são agora dez da noite de um longo dia. Carrie chegou aoapartamento da avó eram oito e meia da manhã e deixou o táxi à espera.Depois seguimos para Heathrow. A mãe e a avó ainda não tinham partido.A mãe só vai para a Florida na terça-feira. Ainda estavam as duas derobe e mostraram-se muito simpáticas. Acho que se sentem as duas umbocado culpadas por tantas discussões e zangas. Ofereceram-me presentesde Natal, todos embrulhados, que guardei na minha mala. A minha mãedeu-me cento e cinquenta libras e a avó cinquenta, como dinheiro debolso. Nunca me senti tão rica e estou com medo de perder a bolsa, mastenho-a em segurança, dentro da minha mochila nova. O voo correu bem,sem poços de ar, e deram-nos uma espécie de pequeno-almoço no avião. EmInverness estava um senhor simpático, chamado Alec, à nossa espera,para nos trazer para aqui. Havia neve numa colina e levámos mais oumenos uma hora e um quarto a chegar.Creagan é muito antiga e bonita, cheia de casas grandes e com umaigreja enorme. Esta casa é espantosa, é muito maior do que parece e temtrês andares. Foi alugada, e muita da mobília, segundo Oscar me contou,veio de Corrydale, a enorme casa onde ele ficava quando era rapaz etinha uma avó lá. Estou a falar em muita mobília, mas, na verdade,pouca vejo, e também não há quadros nem coisas do género. A sala deestar e os quartos ficam no primeiro piso; eu estou cá em cima, nosótão que Elfrida decorou de propósito para mim. Não precisou de opintar porque está todo em branco e impecável, mas teve de comprarmóveis, o que foi uma grande gentileza.Portanto, este é o meu quarto. Tem o tecto inclinado e uma clarabóia(não há janela) com uma cortina, mas acho que nunca a correrei porqueassim poderei ficar deitada a olhar para o céu. É como estar lá fora.243A cama é em madeira escura e há um edredão e um cobertor grosso de lã,para o caso de eu ter frio. Há um toucador branco, com espelho debalanço e pequenas gavetas, assim como uma cómoda com gavetas. Depois,tenho uma mesinha-de-cabeceira, um candeeiro e uma mesa, que dá muitojeito, encostada a uma das paredes não inclinada. Penso que deve tersido uma mesa de cozinha, está um bocado usada, mas será óptima paranela escrever o meu diário e as minhas cartas. Depois, há duas cadeirasde braços e vários ganchos na parede para pendurar a minha roupa. Nãotrouxe muita. O chão é soalho encerado e no meio está um lindo tapetemaravilhosamente grosso com muitas cores vivas, e mesmo à beira daminha cama há uma pele de ovelha para lá pôr os pés quando me levantarnas manhãs frias. Acho tudo muito diferente e romântico. Elfrida eOscar são muito simpáticos. Pensei que fossem terrivelmente velhos. Sãovelhos, mas nem parecem, nem agem como tal. Elfrida é muito alta, magrae tem o cabelo alaranjado, e Oscar também é alto, mas não tão magro. Etem muita fartura de cabelo branco, uma voz muito macia e olhos meigos.Antes de sairmos de Londres, Carrie contou-me que a mulher e a filha,Francesca, morreram num terrível acidente de automóvel. E os cães delastambém. Não foi nada fácil vir conhecê-lo, porque uma pessoa nunca sabeo que há-de dizer a alguém que sofreu algo tão horrível. Mas ele éverdadeiramente simpático e não pareceu ficar nada perturbado quando meviu mais a Carrie. Almoçámos e depois convidou-me para ir dar uma voltacom ele e Horace. Horace é o cão de Elfrida. Portanto, fomos; nãoestava demasiado frio, demos uma vista de olhos pelas lojas, sentámonosum bocado dentro da igreja e, depois, atravessámos o campo de golfee chegámos à praia. Esta é linda, comprida e limpa, sem garrafas deplástico nem lixo. Montes de conchas. Apanhei duas vieiras. Hei-de lá

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voltar e levar Horace comigo.Sinto-me muito feliz. Nunca vivi numa casa tão grande, mas está-se bem,como se tivesse sido sempre habitada por gente abastada e alegre.Também tem um grande quintal, que nesta altura do ano pouca coisamostra. Amanhã irei lá explorar.OscarPara sua grande surpresa, Oscar estava a fazer uma fogueira. Em Dibton,na Granja, tornara-se um jardineiro entusiasta, sobretudo porque estavareformado e as poucas lições de piano que dava, além da participaçãoocasional no serviço dominical da igreja, deixavam-lhe algum tempolivre. No início, a sua inexperiência era total, pois nunca regara,sequer, um canteiro de janela. Porém, conhecimentos há muitointeriorizados vieram à tona do seu subconsciente, conhecimentos quelhe tinham ficado das férias passadas em Corrydale com a avó, umajardineira nata com tanta experiência e sucesso que havia pessoas quevinham ver as glórias de Corrydale e procurar o seu conselho.Os aspectos práticos, esses adquirira-os ele mesmo, por tentativas e oestudo intensivo de enormes compêndios de jardinagem. Também tivera aajuda de dois homens locais que vinham cortar a relva, fazer um poucode reflorestamento e encarregar-se das escavações mais pesadas. Nãotardou que o seu novo hobby o absorvesse e começasse a apreciar oexercício físico, assim como o prazer de planear, plantar e desfrutarda simples satisfação de andar ao ar livre.Chegar a Creagan em pleno Inverno não lhe permitira fazer grande coisano quintal íngreme que se estendia por trás da Casa da Quinta, colinaacima. Varrera umas folhas mortas e limpara sarjetas entupidas, porém,nada mais. Naquela manhã, no entanto, Elfrida queixara-se ao pequenoalmoçode um maciço de lilases que crescera para cima do carreiro,atrapalhando o percurso que precisava de fazer para levar o cesto com aroupa lavada até à corda.Oscar prometera resolver o assunto.Depois do pequeno-almoço, foi buscar a chave do barracão do quintal aogancho onde estava pendurada no armário da cozinha, e saiu para irinvestigar. Estava um dia estranho, toldado, e apenas corria uma brisaligeira. De vez em quando, as nuvens apartavam-se, revelando uma nesgade céu azul, mas ainda havia neve no topo das colinas, o quesignificava que ainda viria mais.Conseguiu fazer girar a chave enferrujada e abrir a empenada porta247de madeira com um empurrão, deparando com um interior escuro e húmido,que uma pequena janela coberta de teias de aranha mal conseguiailuminar. Havia uma mesa para envasar plantas, sobre a qual se viamuita terra, alguns vasos de flores partidos, uma pilha de jornaisamarelecidos e algumas ferramentas arcaicas, tais como sacholas epodadeiras. Não havia sinal de qualquer segadora Strimmer ou outra peçade equipamento moderno, mas nas paredes à volta, pendurados em enormespregos de pedreiro, estavam umas forquilhas e umas pás de ar pesado.Também havia um ancinho, uma enxada, uma serra enferrujada e uma foiceenorme. Estava tudo com um ar muito abandonado e, a seu ver, a precisarde ser limpo e oleado, mas como não encontrou nenhum recipiente com oproduto necessário, decidiu deixar essa tarefa específica para maistarde.Encontrou um par de tesouras de podar velhas, mas mais ou menosfuncionais, dentro de uma caixa cheia de porcas, parafusos e chaves deparafuso enferrujadas. Foi daquelas que se serviu para resolver osproblemas dos lilases, o que o deixou com uma braçada de caules quetinha de pôr no lixo. Não se via nenhum carrinho de mão por ali, masmesmo que existisse, dificilmente poderia dar vazão a uma quantidadetão grande. Enfiou, portanto, tudo dentro de um saco de batatas que porali estava e foi pô-lo ao cimo do quintal, atrás de uma velhaameixoeira, onde se viam uns restos de fogueira.Resolveu então limpar o barracão, e como o dia ainda estava seco e

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calmo e ele estava para aí virado, queimou a lixarada toda.Havia muita, e foram precisas várias idas e vindas pelo carreiro para atrazer toda. Cortou jornais às tiras, partiu algumas caixas de sementesde madeira apodrecida e acendeu a sua fogueira. Não tardou que ardesselindamente, de modo que Oscar foi reunindo as folhas com o ancinho paraa alimentar, começando a ficar cada vez mais encalorado. Despiu ocasaco, pendurou-o na ameixoeira e ficou a trabalhar de camisola. Ofumo ergueu-se, espesso e revolteante, deixando tudo a cheirar aOutono. A seguir, ocupou-se de uma hera sufocante, que cortou earrancou da velha parede de pedra. Tão atento estava ao seu trabalhoque nem deu por abrirem e fecharem o portão ao fundo do quintal, assimcomo não viu o homem que se aproximou dele, percorrendo o carreiro.- Oscar.Assustado, Oscar voltou-se e deu de caras com Peter Kennedy, que estavavestido para o golfe com o seu casaco vermelho e o boné de basebol, depala comprida, puxado bem para a testa.- Caramba, nem o ouvi.- Não foi minha intenção apanhá-lo de surpresa. Vou a caminho do clubede golfe, jogo às dez e meia. Vi o fumo da fogueira e calculei que oencontraria aqui.- Em que posso servi-lo?248Nada de especial. No entanto, vim dizer-lhe que ontem estiveem inverness e dei um pulo ao hospital para ver Godfrey Billicliffe.Fez muito bem. Como está ele?Peter sacudiu a cabeça com pessimismo.Receio que as notícias não sejam nada boas. Está muito doente.Tem um cancro.Cancro.Meu Deus! - exclamou Oscar.Penso que ele já tinha as suas suspeitas, os seus receios, masnunca falou de nada a ninguém. Disse-me que se andava a sentir mal hámuito tempo, mas nunca foi ver o médico, limitava-se a tratar-se comanalgésicos e uísque. Não queria que lhe dissessem... tinha medo daverdade.- Naquele dia em que o encontrei de cama, estava assustado.- Eu sei.Oscar pensou no velho doente, lembrando-se das lágrimas que lhe tinhammarejado os olhos remelosos.- Ele já sabe? - perguntou.- Sabe. Convenceu o jovem médico a dizer-lhe.- Quanto tempo lhe resta?- Pouco. Está a morrer, mas não tem dores, está bastante tranquilo, eacho que adora ser alvo de toda a atenção das enfermeiras que cuidamdele. Será um alívio.- Tenho de o ir ver.- Não. Ele pediu-me que lhe dissesse para não ir. Está medicamentado emuito debilitado, e já tem o aspecto de um homem prestes a abandonareste mundo. Mas pediu-me que lhe transmitisse os seus cumprimentos eagradecesse toda a gentileza que teve para com ele.- Eu nada fiz.- Fez, sim. E valeu-lhe na altura em que mais precisou de um amigo.Oscar atirou um ramo para o meio da sua fogueira com um pontapé. Por ummomento, ao lembrar-se da relutância que sentira em falar sequer com ovelho Billicliffe, escondendo-se pelas esquinas com um medo terrível deo encontrar, odiou-se a si mesmo. Perguntou:- Falou com o médico no hospital?- Falei. Depois de me despedir, fui falar com ele, que me confirmou oque eu já sabia.- Que poderei fazer?- Na realidade, pouco. Talvez escrever-lhe um bilhete. Enviar-lhe umpostal. Ele iria gostar.

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- Parece muito pouco.- Ele está realmente conformado. Não se revolta, não está amargurado.Dorme durante a maior parte do tempo, mas quando abriu os olhosreconheceu-me, falámos e ele estava completamente lúcido. Penso queaceitou.249Oscar suspirou profundamente.- bom, então ficamos assim. - Pensou nos aspectos práticos Consto comoo seu parente mais próximo. "- Eles comunicar-lhe-ão o que se passa, ou a mim. Ficaremos emcontacto.- Obrigado por me contar.- Sabia que gostaria de saber. Agora tenho de ir e deixá-lo trabalharna sua fogueira.Oscar pousou o ancinho.- Acompanho-o ao portão.Seguiram pelo carreiro em fila indiana. Peter deteve-se ao chegar aoportão.- Há mais uma coisa. Lembrei-me de que talvez sentisse saudades da suamúsica. - Apalpou um dos bolsos do casaco vermelho e tirou de dentrodele uma pequena chave de metal. - A igreja está sempre aberta, mas oórgão fica fechado à chave. Falei no assunto com Alistair Heggie, onosso organista, que acha muito bem que o Oscar o utilize sempre quelhe apetecer. Aqui tem...Antes de Oscar poder protestar, Peter agarrou-lhe no pulso e colocoulhea chave na palma da mão aberta, fechando-a a seguir.Oscar ainda principiou: - Oh, não...- Não é obrigado. Talvez até nem queira. Mas gostaria de pensar que, selhe apetecer e se sentir que consegue, pode fazê-lo.- É muita bondade sua.- Só lhe peço que a guarde em local seguro - pediu Peter, sorrindo. -É o nosso único exemplar. - Fez menção de se afastar, mas voltou denovo para trás. - Que esquecimento o meu. Vim vê-lo por mais uma razão.Tabitha pediu-me que vos convidasse a todos para lá irem até Manse paraum lanche e umas empadas de carne na terça-feira, ao fim da tarde.Todos são bem-vindos. Nada de formalidades. Não precisam de mudar deroupa. Os nossos filhos devem participar. - Terça-feira - repetiuOscar, ainda com a chave na mão e tomando nota mentalmente. Não sepodia esquecer de avisar Elfrida. Terça-feira às seis da tarde. Será umgrande prazer. - Esplêndido. - Peter passou o portão e fechou-o atrásde si. - Ver-nos-emos lá.- bom jogo. E obrigado por ter vindo.LucySegunda-feira de manhã, quando Lucy desceu do seuespaço etéreo, que era o sótão, reparou, ao chegar aoprimeiro piso, que a porta do quarto de Carrie estavafechada. O seu primeiro pensamento foi a possibilidade de Carrie se terdeixado adormecer, ficando na dúvidase devia, ou não, acordá-la. Depois, felizmente, optou por não o fazer.Ao chegar ao piso seguinte, encontrou Elfrida e Oscar a tomar opequeno-almoço. Naquela manhã, Oscar estava a comer salsichas e Lucyteve esperança de que também lhe coubessem algumas, pois uma das coisasque mais adorava era saboreá-las ao pequeno-almoço.- Lucy! - exclamou Oscar, quando ela apareceu à entrada da cozinha,pousando os talheres e estendendo-lhe um braço de modo a cumprimentá-lacom um abraço carinhoso. - Que tal te sentes esta manhã?- Eu estou óptima, mas que aconteceu a Carrie?- Carrie não está muito bem - respondeu Elfrida, levantando-se da mesapara ir buscar as salsichas de Lucy ao fogão, onde eram mantidasquentes. - Não creio que seja gripe, mas o certo é que a constipaçãonão lhe passa. Duas salsichas ou três?- Três, se chegarem. Ela ainda está deitada?

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- Está, fui vê-la e ela disse-me que tinha passado a noite a tossir,não conseguira dormir e não se sentia nada bem-disposta. Levei-lhe umachávena de chá, mas diz que não quer comer nada. Quando o centro desaúde abrir, às nove, telefonarei ao doutor Sinclair e pedir-lhe-ei quevenha examiná-la.- Ele dá consultas ao domicílio?- O centro de saúde fica mesmo no outro lado da rua. Lucy sentou-se adeliciar-se com as suas salsichas.- Em Londres, os médicos nunca vão a casa dos doentes. A pessoa tem deir aos centros e sentar-se na sala de espera junto dos outrosPacientes. A avó diz sempre que se vem de lá com mais problemas do queos que se levaram à entrada. Acha que ela vai ficar bem? Refíro-me aCarrie. Quando o Natal chegar já tem de estar boa.- Veremos o que o doutor Sinclair diz.- Posso ir vê-la?- É melhor não, enquanto não soubermos qual é o problema. Pode serterrivelmente contagioso e depois ficavas cheia de borbulhas. Ou deescaras com corrimento. Como o pobre Jó.Lucy atirou-se às suas salsichas, que estavam uma delícia, e Elfridaserviu-lhe uma chávena de café.- Tenho muita pena porque esta manhã tencionávamos dar um longo passeiona praia com Horace - disse.- Não há motivo para não ires.- O Oscar vem?- Esta manhã não posso. Tenho de escrever umas cartas, depois precisode ir à livraria encomendar dois livros, e ainda passar pelo talho paratrazer a carne.- Oh, compreendo - aquiesceu Lucy. Era difícil esconder a desilusão.Oscar sorriu.- Podes ir sozinha. Levas Horace. Ele tomará conta de ti. Podes lançarteà descoberta sozinha.Lucy animou-se.- Posso mesmo?- Claro.Matutou sobre aquela nova perspectiva de liberdade enquanto comia assuas salsichas, e chegou à conclusão de que pôr-se ao caminho sozinhacom o cão lhe agradava. Como era evidente, em Londres nunca a deixavamdar longos passeios solitários e se combinava alguma coisa com Emma,sua mãe fazia sempre questão em saber aonde ia e quando voltaria. Masali, em Creagan, saltava à vista que esse tipo de precauções não eranecessário. Elfrida e Oscar nem sequer fechavam a porta da entrada àchave. Na cidade, os carros ligeiros e os pesados passavam devagar, aspessoas que iam às compras paravam de vez em quando no meio do caminhoa conversar umas com as outras, e nos passeios parece que havia semprecrianças sozinhas a andar de skate ou em grupos. No dia em que Oscar alevara até à praia, vira jovens a subir às rochas e a andar debicicleta sem que houvesse um único adulto à vista. Quanto a homenssinistros de gabardina, bêbados ou drogados, parecia não existiremnaquele clima sadio. Quem sabe, à semelhança dos gérmenes e do míldio,não vicejassem no frio.A porta das traseiras abriu-se e fechou-se com um estrondo.- É Mistress Snead - avisou Oscar.Instantes depois, a dita estava junto deles, irrompendo pela cozinhadentro de fato de treino cor-de-rosa e um par de sapatilhas vistosas.- Oh, o tempo voltou a ficar horrível. Nuvens negras. Cá por mim, vainevar.- Reparou em Lucy. - Ora viva, que está cá a fazer? Veio paraficar? Onde está a sua tia?Usava o volumoso cabelo grisalho aos caracóis e trazia uns óculos corde-rosa, a condizer com o fato de treino.254- Está de cama. Adoeceu.- Oh, mas isso é uma maçada. Já foi ao doutor, foi? Elfrida vai-lhe

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telefonar a pedir que venha cá.- Ora esta! - Mrs. Snead olhou para Elfrida. - Mas que azar. Querodizer, acabar de chegar e ficar logo doente. Chama-se Lucy, não éverdade? Mistress Phipps falou-me de si. Que tal achou o seu quarto?Gostámos imenso de o decorar para si. Antes disso, não passava de umvelho sótão vazio.- Tome um pouco de chá, Mistress Snead - ofereceu Elfrida. Mrs. Sneaddisse que lhe saberia muito bem e, assim, preparou uma caneca para si,sentando-se a seguir à mesa a beber.Lucy sabia que a sua avó desaprovaria fortemente tanta familiaridade e,perversamente, ficou a gostar ainda mais de Mrs. Snead.A manhã avançou. Mrs. Snead lançou-se ao trabalho, Lucy e Oscar lavarama loiça do pequeno-almoço e Elfrida foi telefonar ao médico. Acampainha da porta da frente tocou às dez da manhã e Lucy correu aopiso de baixo a atender, no entanto o médico já entrara, de modo que oencontrou a limpar os sapatos ao capacho.- Viva! - cumprimentou-a ele, com acentuada pronúncia das Highland. Eraainda bastante novo, com um rosto queimado pelo vento e umassobrancelhas ruivas que faziam lembrar umas lagartas.- Quem é a menina?- Sou Lucy Wesley. Estou hospedada aqui.- Muito bem. Agora diz-me, onde está a doente?- Lá em cima.Elfrida aguardava, apoiada ao corrimão.- Doutor Sinclair, foi um santo em vir.O médico subiu as escadas, mas Lucy não foi no seu encalço. Em vezdisso, voltou à cozinha, onde Mrs. Snead separava a roupa para lavar namáquina.- Foi o doutor que chegou? Espero que não seja grave.- Eu pensava que era uma constipação. É certo que não se sentiu nadabem durante o voo. Custou-lhe muito.- Ora, anime-se, não tarda ficará boa. E agora, gostaria de me dar umaajuda? Dê um pulinho lá acima e traga-me as toalhas da casa de banho deMistress Phipps. Depois dou-lhe umas lavadas para as substituir.O Dr. Sinclair não demorou muito tempo. Ele e Elfrida entraram noquarto de Carrie e Lucy, que fora buscar as toalhas, ouviu vozes dooutro lado da porta fechada. Era reconfortante sabê-lo ali, no entantoesPerava que não diagnosticasse algum micróbio sinistro, uma doença queexigisse antibióticos e duas semanas de cama. Depois de examinarCarrie, não desceu imediatamente, foi antes à sala de estar falar comOscar.255Lucy, que terminara a sua tarefa relacionada com a lavandaria, deixouseficar um bocado no corredor, mas depois não se aguentou e foi parajunto deles. Encontravam-se os três sentados ao pé da janela, a falaremde alguém a quem chamavam major Billicliffe. Ao que parecia dito estavano hospital em Inverness e gravemente doente. Todos ti nham umaexpressão compungida. Então Elfrida virou-se e, ao vê-la à entrada,sorriu-lhe.- Não estejas com esse ar tão preocupado, Lucy. O médico levantou-se.- Carrie está bem? - perguntou-lhe Lucy.- Sim, não tardará a ficar óptima. Só precisa de um pouco de descanso ede muitos líquidos... receitei um xarope para aquela tosse. Deixem-nadescansar, que daqui a um dia ou dois estará a pé.Lucy ficou muito aliviada.- Posso ir vê-la?- Preferia que por enquanto a deixassem sozinha. Elfrida sugeriu:- Que tal levares Horace a dar o seu passeio exploratório?- Aonde vais, Lucy? - perguntou o médico.- Pensei em dar um passeio à beira-mar.- Gostas de aves?- Não sei como se chamam.

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- Na praia há aves lindas. Amanhã venho cá ver a tua tia e trago o meulivro sobre aves, para lhe poderes dar uma vista de olhos.- Obrigada.- De nada. De nada. Bem, tenho de ir. Ficaremos em contacto, MisterBlundell. Adeus, Mistress Phipps.Retirou-se então, descendo apressadamente as escadas, saindo e fechandofirmemente a porta atrás de si. Lucy olhou pela janela e viu-o meter-sedentro do seu carro e seguir para a visita seguinte. Levava um cão nobanco ao seu lado, a olhar pela janela, um grande springer spaniel deorelhas descaídas. Concluiu que devia ser agradável ser médico deprovíncia e levar um cão no carro.Mrs. Snead tinha razão. Estava um dia pavoroso, apesar de não chover, oque era bastante estranho, porque o fim-de-semana fora tão ameno quepermitira que Oscar pudesse fazer a sua fogueira. Lucy saiu de casa comHorace pela trela, passou o portão, a praça e depois virou para aestrada que ia ter ao clube de golfe. Viam-se poucos aficcionados eapenas alguns carros estacionados. O caminho público passava ao lado docampo, acompanhando as ondulações naturais do terreno. Quando chegou aoponto mais alto de uma elevação, deparou com o horizonte em toda a suaextensão visível, frio e imóvel como aço, e um vasto arco de céu que asnuvens baixas tornavam acinzentado. Estava maré baixa e pequenas ondasvinham morrer na areia molhada e reluzente. Ao longe via-se o farol, equando chegou ao pequeno parque de256estacionamento, bandos de gaivotas depenicavam junto dos caixotes doliXo como se esperassem ali encontrar migalhas ou restos de sanduíches.Assim que Horace as avistou, começou a ladrar e todas elas levantaramvoo, esvoaçaram um pouco por ali e depois voltaram a pousar recomeçandode novo a catar o lixo à procura de algo comestível. Lucy desprendeu atrela da coleira do cão, que correu em frente e desceu a rampa até àareia. No meio das dunas era fundo, macio, custando a andar, o quelevou Lucy a ir para cima da areia molhada e dura. Ao olhar para trás,viu a marca das suas próprias pegadas, assim como as das patas deHorace, em círculo, fazendo lembrar pontos de uma costura.Havia rochas e pequenas poças de água no meio destas, e a seguir avasta praia curvava-se para norte. Bem ao longe, as colinas encadeavamseumas nas outras, cinzentas e ameaçadoras, empoalhadas de neve. Océu, por trás delas, apresentava-se escuro como uma contusão arroxeada.Lucy sentiu o vento leve e enregelante no rosto.Estava sozinha. Não se via uma pessoa, um cão, na praia. Apenas aves arasarem as ondas baixas que vinham morrer no areal.Sentiu-se minúscula como uma formiga naquele mundo enorme, vazio earejado, reduzida à escala mais ínfima pela expansão e amplidão danatureza. Uma insignificância. Sabia-lhe bem aquela sensação de não teridentidade, de ninguém saber ao certo quem ela era, e, se encontrassealguém, essas pessoas não a reconhecerem de lado nenhum. Assim, nãopertencia a ninguém senão a si mesma. Caminhou energicamente para semanter quente, detendo-se apenas para apanhar umas conchas, uma ououtra pedrinha arredondada mais bonita ou algum pedaço de vidro que omar esculpira com a sua erosão. Guardou os tesouros no bolso. A certaaltura, Horace encontrou um bocado de alga comprido e levou-o na bocacomo um trofeu. Lucy tentou tirar-lho e tudo redundou numa brincadeira,com Lucy a correr atrás do cão. A jovem encontrou um pau, que atirou àsondas, e Horace esqueceu a alga, largou-a e foi a galopar para dentrode água, descobrindo então que esta estava demasiado gelada, o que ofez bater em retirada.A praia terminava em mais um afloramento de rochas, com poças e fendascheias de pedrinhas; cheirava fortemente a maresia. Lucy fez uma pausapara recuperar o fôlego. A praia ficava separada do campo de golfe pordunas altas. Hesitou, tentando decidir-se pelo caminho a tomar, quandoouviu o som de um motor e viu, no cimo das rochas, um tractor a rodarsobre uma elevação de terreno, na sua direcção. Como Puxava um carrinho

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de golfe, não vinha muito depressa. Claro que devia haver por alialguma espécie de estrada. Lucy resolveu voltar para casa por aquelecaminho. Içou-se, com algum esforço, para cima de um rochedo íngremecoberto de areia e enveredou pelo meio das dunas. Horace adiantou-selhee desapareceu de vista. As dunas formavam Uma pequena colina,coberta de vegetação rasteira densa, do cimo da qual avistou o caminho.257Horace já havia chegado, detendo-se à sua espera, mas a olhar nou tradirecção. Não havia dúvida de que sentira a presença de estranhos.Parado, de orelhas espetadas, tinha a cauda peluda erguida como umabandeira. Estava muito quieto e atento. Lucy olhou e viu uma outrapessoa com um cão, a subir determinadamente a encosta, vinda do lado davila. De botas, calças grossas e casaco de pele de borrego, trazia nacabeça uma boina larga, escocesa, de través sobre os cabelos grisalhoscortados curtos. O cão que a acompanhava, solto, imobilizou-se malavistou Horace. Os dois animais ficaram a olhar um para o outro duranteum longo instante. Lucy estava apavorada, pois o outro cão era umrottweiler.- Horace - chamou num sussurro agonizante, pois tinha a boca seca.Horace ou não ouviu ou fez de conta que não. De repente, o palermacomeçou a ladrar. O rottweiler avançou lentamente, com o corporeluzente tenso, músculos retesados. Soltou uma rosnadela que lhe veiodo fundo da garganta e as beiças negras arreganharam-se, mostrando osdentes. Horace, sem recuar, soltou mais um latido tímido e foi entãoque o rottweiler se precipitou para ele.Lucy gritou. Horace também gritou, um grito canino que fez lembrar umuivo a pedir socorro. Ficou debaixo do outro cão, que começou aabocanhá-lo e a mordê-lo, e por mais que se debatesse, não conseguialibertar-se.A dona do cão não tinha o menor préstimo. Trazia uma trela metálica namão, mas saltava à vista que era incapaz de controlar o seu animal deestimação naquelas circunstâncias. Em vez disso, puxou de um apito noqual soprou fortemente, pondo-se a gritar ordens como se fosse umsargento:- Brutus! Brutus! Pára, rapaz! Deita! De joelhos! O rottweiler não lheligou nenhuma.- Brutus!- Agarre-o - gritou Lucy, histérica de horror. Horace, o cão adorado deElfrida estava prestes a ser assassinado. - Faça alguma coisa! Mande-oparar!Nunca mais se lembrara do tractor que se aproximava. De repente esteapareceu, qual cavalaria num velho filme de cobóis. A sua portaescancarou-se, o seu condutor saltou para o chão, percorreu a curtadistância a correr e, sem mostrar o menor medo ou hesitação, entrou emacção, dando um pontapé com a bota pesada nos traseiros musculados dorottweiller. Este, espantado, largou Horace e virou-se para atacar oseu novo inimigo, porém o jovem agarrou-o pela coleira guarnecida detachas e, com um certo esforço, atirou-o para longe da presa.Lucy jamais pudera imaginar que existisse alguém tão dotado de bomsenso,força e bravura.- Que raio pensa que está a fazer? - gritou o rapaz à dona do258cão, arrancando-lhe a trela da mão e prendendo-a à coleira do cão querosnava e se debatia. Arrastou o animal na sua direcção e a mulherpegou na ponta da trela com as duas mãos.Seguiu-se a mais notável das discussões.Não diga palavrões na minha frente!Porque não manteve o cão preso pela trela?Ele foi atacado!Agora que o perigo passara, a mulher tornara-se beligerante. Não tinhasotaque de Sutherland, parecia mais de Liverpool ou de Manchester.- Nada disso. Eu vi tudo!

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- Brutus só reage se o atacarem.A mulher, que estava a ter imensa dificuldade em controlar o cão, tinhao rosto vermelho de tanto esforço.- Esse cão é um monstro!- Disparate!- Onde é que vive?- E que tem você com isso, seu fedelho?- É que se vivesse aqui saberia muito bem que não pode passear um cãoselvagem em locais públicos.- Eu não vivo aqui - retorquiu a mulher como se tivesse orgulho dofacto. - Estou de visita à minha irmã, que está numa caravana.- Então volte para a caravana dela com o seu cão e tranque-o.- Não fale comigo nesse tom de voz.- Falo consigo como muito bem me apetecer. Trabalho para o clube degolfe, faço parte do pessoal.- Ora, todo petulante, não é?- Leve-me esse cão daqui para fora. Vá. Se o volto a encontrar soltopor aí, apresento queixa na Polícia.- E eu queixar-me-ei de desrespeito!Nessa altura, porém, Brutus entrou em acção. Avistara dois inocentesgolfistas ao fundo do caminho: todo eriçado e com uma necessidadedesesperada de enterrar os dentes no pescoço de alguém, iniciou acaÇada. A dona, vacilante, também foi, arrastada por ele, com as pernasprotegidas por calças a agitarem-se como pistões.- Nunca me senti tão insultada na vida - ainda declarou ao afastar-se.Fazia, nitidamente, questão em ter a última palavra. - Não meesquecerei disto...Deixaram de a ouvir, pois a distância já era grande e o vento levavalheas palavras. Às tantas, desapareceu.Lucy sentara-se na erva áspera e húmida com Horace nos braços, e ocãozito encostara a cabeça na frente do seu casaco vermelho novo. Ojovem aproximou-se e ajoelhou-se ao seu lado. Lucy reparou que eramuito novo, tinha o rosto queimado pelo sol e os olhos azuis. O cabelo,cortado curto, era tão louro que parecia pintado; usava uma argola deouro na orelha esquerda.259Perguntou a Lucy:- Estás bem?Lucy, para sua grande vergonha, desmanchou-se em lágrimas.- Eu estou, mas Horace...- Deixa-me ver.Afastou-lhe suavemente Horace da roupa, apalpou-o e examinou-oafastando-lhe o pêlo comprido do focinho e emitindo, ao mesmo tempo,sons reconfortantes.- Penso que ficará bem. São só ferimentos e arranhões superficiais.- Ele só ladrou - disse Lucy, soluçando. - Ele ladra sempre! É mesmoestúpido. Pensei que iria ser morto.- Felizmente safou-se.Lucy fungou. Não levara nenhum lenço consigo. Limpou o nariz às costasda mão.- Nem sequer é meu. Pertence a Elfrida. Só viemos dar uma volta.- De onde é que vieram?- Creagan.- Eu levo-os até lá no meu tractor. Posso deixar-te no clube. Achas queconsegues ir o resto do caminho a pé?- Sim. Acho que sim.- Muito bem. Vem daí.Ajudou-a a pôr-se de pé, depois inclinou-se para pegar em Horace elevou-o até ao tractor. Deixara o veículo com as portas abertas e omotor ligado. Lucy subiu para a cabina. Só havia um assento, no entantoela empoleirou-se na ponta e Horace foi colocado a seus pés, onde sesentou e apoiou pesadamente contra os seus joelhos. Em seguida, o jovem

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saltou para o seu lugar e meteu uma mudança. Avançaram então, passando,aos solavancos, por cima dos buracos, com o carrinho de golfe amatraquear atrás.Lucy parara de chorar. Perguntou, hesitante:- Achas que Horace ficará bom?- Quando chegares a casa, dás-lhe um banho com um desinfectante. Nessaaltura poderás verificar melhor os estragos. Se houver mordedurasprofundas, talvez tenha de levar uns pontos... pelo que precisarás de olevar ao veterinário. O certo é que ficará magoado e mal se poderámexer durante uns dias.- Sinto-me tão culpada! Devia ter tomado conta dele melhor.- Não poderias ter feito absolutamente nada. Acho que aquela mulherdeve ser internada. Se voltar a ver aquele animal demoníaco, mato-o.- Chama-se Brutus.- Brutus, o Bruto.Lucy ainda conseguiu sorrir, apesar de tudo. Depois disse:- Muito obrigada pela ajuda.260- Estás hospedada na Casa da Quinta, junto de Oscar Blundell,não é?- Conheces?- Eu não, mas o meu pai sim. É Peter Kennedy, o pastor. Eu sou RoryKennedy.- E eu, Lucy Wesley.- É um nome bonito.- Eu acho-o horrível. - Sabia mesmo bem ir ali sentada naquela cabinaalta, partilhando do mesmo banco com aquele jovem corajoso e simpático.Gostava de sentir o corpo robusto dele encostado ao seu, do cheiro aóleo do casacão dele, do calor provocado por um contacto físico a quenão estava habituada. - Parece nome de missionária.- Bem, há coisas piores. A minha irmã mais nova chama-se Clodagh.Também não gosta do nome. Quer que a tratem por Tracey Charlene.Dessa vez Lucy riu com vontade.- Será que não estiveste na igreja ontem? - perguntou Rory.- Estive, mas não te vi, se calhar foi por estar tanta gente. Queriaver as luzes acesas, a brilhar no tecto. É lindo. Elfrida foi comigo.Carrie também teria ido, é minha tia, mas está constipada e precisa deficar dentro de casa. Esta manhã, o médico foi vê-la e disse-lhe quenão saísse da cama. Não tem nada de especial, só precisa de descansar.Caso contrário, teria ido comigo e, se calhar, aquela luta entre oscães não teria acontecido.- Não há nada pior do que uma luta entre cães. Não se consegue fazernada para os separar.Ouvir aquilo era reconfortante.- Trabalhas no campo de golfe?- Sim, por enquanto. Estou no início do meu ano intercalar. Terminei oliceu em Julho e no ano que vem vou para a Universidade de Durham.Passei o Verão todo a trabalhar como assistente de golfe paraamericanos. Foi francamente lucrativo, mas já se foram todos embora,portanto agora ajudo o responsável pela conservação do relvado docampo.- Que tencionas fazer depois?- Quero ir ao Nepal. Posso arranjar trabalho por lá, a dar aulas. Lucyficou impressionada.- A ensinar o quê?- A ler e escrever, acho. Só a crianças. E aritmética. E futebol. Lucyficou pensativa.- Estou com muito medo do meu ano intercalar.- Que idade tens? - Catorze.- Ainda tens tempo para fazer planos.- O problema é que não quero ir para um sítio estranho e assustador.Sozinha.

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- Assustador?261- Sabes como é. Crocodilos e revoluções. Rory sorriu e observou:- Tens andado a ver demasiada televisão.- Se calhar fico em casa.- Onde é que vives?- Londres.- Frequentas algum liceu na cidade?- Sim, um externato.- Vieste passar o Natal aqui?- Vim com Carrie. Vivo com a minha mãe e a minha avó. A minha mãe vaipassar o Natal à América. Na verdade, parte amanhã, de avião. E a minhaavó vai para Bournemouth. Foi por isso que Carrie me trouxe consigo.- E o teu pai?- Estão divorciados. Vejo-o pouco.- Não deve ser fácil. Lucy encolheu os ombros.- Já me habituei.- A minha mãe disse-me para te emprestar a minha televisão velha.Queres?- Tens outra?- Claro.- Bem, seria simpático da tua parte, mas até agora ainda não me fezfalta.- Depois trato disso.Durante algum tempo seguiram aos solavancos e calados pela trilhaesburacada. Às tantas, Rory disse:- Parece que amanhã ao fim da tarde vocês vão todos até Manse para umlanche. Às sete da tarde há um hooley na escola. Clodagh e eu vamos.Também queres vir?- Que é um hooley?- Um baile.Lucy sentiu-se imediatamente ansiosa. Detestava dançar, nunca conseguialembrar-se quando era para a direita ou para a esquerda. Já estivera emfestas, mas bailes, nunca. E, nas festas, normalmente ficava a umcanto, consumida de tanta timidez.- Não sei - respondeu.- Que é que não sabes?- Se quero ir a um baile.- Porque não? São apenas os miúdos da escola a ensaiar reels para asfestas de Hogmanay2. É muito divertido.1. Reel. dança (neste caso, escocesa). (N. da T.)2 Hogmanay: último dia do ano, quando os jovens cantam e buscampresentes. (N. da T.)262- Eu não sei dançar reels. Não conheço os passos.- Então é altura de aprenderes.Ainda assim, Lucy hesitou. Mas quando ele virou a cabeça para si e lhesorriu de maneira amiga e incentivante, Lucy, para sua própriasurpresa, deu consigo a responder:- Está bem. Aceito. Obrigada. Preciso... de ir vestida de algumananeira especial?- Nem pensar. Jeans e sapatilhas.Enquanto conversavam, o tempo escurecera ameaçadoramente. De repente,os primeiros flocos de neve começaram a cair. Tombavam, esvoaçantes, docéu cor de chumbo, pousando na parte da frente do tractor e acumulandoseno vidro da frente. Rory ligou o pára-brisas, dizendo:- Já estava mesmo à espera disto. Viam-se as nuvens carregadas de nevea virem do Norte. Ouvi o boletim meteorológico hoje de manhã, e elesavisaram que vêm aí umas quedas de neve bem fortes.- Vai ser um Natal branco?- Gostarias?- Nunca vivi nenhum.

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- É óptimo para andar de trenó. Trabalho duro para quem está na estradae para quem trabalha para a desimpedir.Entretanto chegaram ao fim da viagem, subindo a encosta que levava atéao clube. Rory meteu o tractor no parque de estacionamento, desligou,abriu a porta e desceu.- Achas que já não tens problemas?A neve assentava-lhe sobre o cabelo e os ombros do casacão grosso. Lucydesceu atrás dele, pegou em Horace e pousou-o no chão. O cão sacudiu-see conseguiu até agitar a cauda emplumada. A neve caía e rodopiava emtorno deles e os seus pés trituravam ruidosamente a camada de neve queacabara de cobrir o solo. Lucy sentiu um floco pousar no seu nariz esacudiu-o. Tirou a trela do bolso e Rory prendeu-a à coleira de Horace.- Pronto, já está - disse Rory, sorrindo-lhe. - Agora vai para casa.- Obrigada por tudo.- Até amanhã.- Até amanhã.Afastou-se de Rory e desceu a colina, debaixo de neve. Horace coxeavacorajosamente a seu lado. Um banho com desinfectante, dissera Rory, edepois, talvez uma ida ao veterinário. Esperava que Elfrida não ficassedemasiado perturbada, mas tinha a certeza de que era o mais certo.Compreenderia que nada daquilo fora por culpa de Lucy. Ouviu o motor dotractor começar a trabalhar atrás dela, e virou-se para dizer adeus, noentanto a neve era demasiada para que Rory a visse.263Seguiu em frente com esforço, deveras abalada pela emoção e nervosismo.Fora um passeio cheio de peripécias: uma longa caminhada, uma brigaentre cães, um passeio de tractor, uma queda de neve e um convite paraum baile. Estava ansiosa por chegar a casa e contar tu do a Oscar e aElfrida.ElfridaElfrida ficou imensamente aliviada assim que ouviu aporta da frente abrir e a voz de Lucy chamar. Era quase meio-dia, masestava escuro como se fosse noite, e o mundo, por trás da janela dacozinha, mostrava-se atapetado com a neve que tombava. Ficarapreocupadacom Lucy, logo que a neve começara a cair de um céu cor de granito,culpando-se por ter sido irresponsável e ter deixado a criança sairsozinha, imaginando todo o tipo de horrores. Oscar, no piso de cima,não se sentia tão preocupado. Lera o jornal e assegurara a Elfrida,sempre que esta vinha a correr para espreitar pela janela, de que ajovem era sensata, levava o cão consigo, não podia passar o resto davida excessivamente protegida. Tudo o que Elfrida sabia ser verdade.Voltou para a cozinha, afim de preparar o almoço, e pôs-se a descascarbatatas, sempre de ouvido à escuta, como um cão. Quando ouviu Lucy novestíbulo, largou as batatas e correu ao seu encontro, limpando as mãosao avental. Deparou com Lucy e Horace em cima do capacho, cobertos deneve e com uma história terrível para contar.O relato foi feito na cozinha aquecida, enquanto Lucy despia o casaco etirava as botas.- Aquele cão horrível, era um rottweiler, andava sem trela e atirou-sea Horace e mordeu-o, mas depois apareceu um tractor. Era Rory Kennedy,que foi tremendamente valente e discutiu imenso com a dona dorottweiler, puseram-se aos gritos um com o outro. Ela foi-se emborafuriosa e Rory trouxe-nos no tractor até ao clube, quando começou anevar. E, oh, Elfrida, desculpe, mas não consegui impedir o que sepassou. E o pobre Horace está cheio de mordidelas e arranhões. Rorydisse que devíamos dar-lhe um banho com desinfectante e, se calhar,levá-lo ao veterinário. Há desinfectante cá em casa? Se não houver,posso ir à farmácia buscá-lo... apanhei um susto de morte. Pensei queaquele cão matava Horace.Lucy estava nitidamente alterada com todo o incidente, mas,curiosamente, também entusiasmada, pois saíra de toda aquela aventura

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trazendo Horace vivo para casa. Tinha as bochechas muito vermelhas, os267olhos brilhantes e parecia mais viva e cheia de vitalidade que nunca.Era uma menina adorável, evidentemente, mas pouco dada a efusões e adocilidade não era apanágio dos seus catorze anos. Aquela metamorfoseera auspiciosa, de modo que Elfrida esqueceu todas as suas ansiedades epercebeu que fizera muito bem em deixar Lucy sair sozinha. Horacesentou-se no chão com um ar muito infeliz.- Que aconteceu, Horace! - perguntou-lhe Elfrida. - Foste atacado poralgum cão selvagem?- Ele realmente ladrou -, teve de admitir Lucy -, mas não foi muito.- Só os cães estúpidos é que ladram aos rottweilers.Elfrida foi ao andar de cima buscar um frasco de Dettol e Lucy encheu oenorme tanque da roupa com água morna. Meteram Horace dentro dela etoda a neve que trazia presa às patas e ao peito derreteu. Não haviachuveiro, mas Elfrida arranjou um jarro velho, com o qual lhe deitou aágua a cheirar a hospital sobre o lombo, as pernas e o pescoço. Horacedeixou-se ficar, todo encharcado, a sofrer em silêncio, no entanto,quando o banho chegou ao fim, Elfrida não lhe descobrira nenhumferimento grave, apenas uma série de mordidelas e arranhões quesarariam com o tempo. Tinha a pele do estômago seriamente magoada e asorelhas ligeiramente rasgadas, mas, de um modo geral, parecia ter saídoda tareia com males pouco duradouros.Lucy respirou de alívio.- Portanto, não é necessário levá-lo ao veterinário?- Parece-me que não. Ainda bem, pois não faço ideia onde fica o maispróximo, e com esta neve não nos convinha nada andar por aí.Deixou a água escoar, tirou Horace do tanque e levou-o para a cozinhatodo embrulhado numa toalha felpuda branca. Secou-o com todo o cuidado.- Agora temos dois inválidos. Talvez devêssemos pôr um letreiro aanunciar, «Enfermaria da Casa da Quinta».Lucy sentia-se muito culpada.- Que horror. Esqueci-me completamente de Carrie. Estará a dormir?- Assim espero. Não ouvi um som.- Onde está Oscar?- Na sala de estar.- Tenho de lhe ir contar tudo o que aconteceu.- Ele deve estar ansioso por saber, mas, querida, tens as calçasensopadas. É melhor ires vestir umas roupas secas. Traz as molhadaspara baixo, para as pendurarmos no varal.- Certo. - Lucy ia a afastar-se, mas, ao chegar à porta aberta, detevesee voltou-se para trás. - Elfrida?- Sim?- Rory Kennedy é uma simpatia. E tem o cabelo pintado.268- O cabelo pintado? - Elfrida compôs uma expressão de horror. E quediria a tua avó! Lucy disse-lhe, imitando a voz de Dodie:Inadmissível!Depois sorriu e desapareceu. Elfrida ouviu-a subir os degraus dois adois, até ao seu quarto no sótão.Eram três da tarde quando Elfrida foi ver como Carrie estava. A neveparara de cair, mas o dia continuava escuro, pelo que teve de acenderas luzes e cerrar as cortinas. Bateu suavemente à porta de Carrie eabriu-a.- Carrie?- Estou acordada.Apesar da penumbra, Elfrida viu-a virar a cabeça na almofada branca.Aproximou-se da mesinha-de-cabeceira e acendeu a luz. Carrieespreguiçou-se e depois sorriu-lhe.- Que horas são?- Três da tarde.- Parece noite.

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- É verdade. Tem estado a nevar e já temos um metro de altura, mas parajá, parou. - Foi até à janela e puxou as cortinas grossas, o que fezcom que o pequeno quarto ficasse imediatamente com um aspectoacolhedor, com a única luz acesa a tornar os recantos escuros. Elfridasentou-se na beira da cama enorme. - Como te sentes?- Entorpecida. Como pude dormir tanto tempo?- Estavas estoirada. Queres comer alguma coisa? Ou tomar uma chávena dechá, o que quiseres.Carrie pensou um pouco.- Adoraria uma chávena de chá. Mas primeiro tenho de ir à casa debanho.Levantou-se da cama na sua camisa de dormir em cambraia, mostrando osbraços e as pernas longas e finas. Pegou no robe e vestiu-o, atandofortemente o cordão em volta da cintura estreita. Elfrida deixou-a edesceu à cozinha para pôr água a ferver. Preparou um tabuleiro para asduas e foi à procura de uns biscoitos deliciosos e caros que Oscartivera a veleidade de trazer numa das suas idas às compras. Levou otabuleiro para cima e encontrou Carrie já de novo na cama, depois deter lavado a cara, escovado os dentes e penteado o cabelo escuro.Também pusera um pouco do seu perfume especial, sentindo-se,claramente, muito mais apresentável.- Elfrida, és um anjo. Desculpa todo este trabalho.- Não é trabalho nenhum. Fico muito contente por poderes terdescansado.- Que silêncio! Onde estão todos?- Assim que a neve parou, Oscar e Lucy resolveram ir às comPras. Foramà procura de enfeites para a árvore de Natal.269- Achas que encontrarão?- Não faço ideia. Provavelmente no ferreiro. Lucy levou Horace a dar oseu passeio e teve uma aventura tremenda... - Contou a Carri a saga deHorace e do rottweiler e Carrie, além de ficar horrorizada também sesentiu impressionada pela compostura de Lucy e pelo modo como seconduzira.- Que aventura! Muitíssimo assustadora, mas provavelmente aquilo quelhe estava a fazer falta. Nem imaginas a vida monótona que ela leva emLondres com Dodie e Nicola. São ambas muito egoístas e não têmimaginação para nada. Nem sei o que teria sido da minha vida na idadede Lucy, se não fosse Jeffrey. E a pobre rapariga não só não tem nenhumJeffrey, como também nenhum pai como deve ser. Dodie e Nicola têm oshorizontes tão limitados que não são capazes do menor estímulo.- O que é que a pobre criança faz o dia todo?- Passa a maior parte do tempo na escola. Tem um quartinho agradável sópara ela no apartamento e uma amiga chamada Emma...- Aposto em como nunca vê nenhum homem. Ou rapaz.- A escola é feminina e se visita o pai, a chata da Marilyn impõesempre a sua presença. Se calhar tem ciúmes, a estúpida da mulher.- Acho que ela ficou encantada com Rory Kennedy. Além de ter sidotremendamente corajoso e ter salvo Horace, usa o cabelo pintado. E umbrinco!- Que excitante!- Fomos todos convidados para ir a Manse amanhã à tarde, lanchar com osKennedy. Quero que conheças Tabitha, mas, se calhar, ainda não teapetece muito conviver.- Verei.- A seguir parece que há um bailarico qualquer no átrio da escola... acriançada toda vai dançar reels. Rory convidou Lucy para ir com ele e airmã, de modo que está entusiasmadíssima e diz que hoje à noite vailavar o cabelo.Carrie bebeu o seu chá, que estava escaldantemente quente e a saberligeiramente a fumo, pois Elfrida utilizara uma saqueta de chá lapsangsouchong. Observou, com uma certa tristeza:

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- Tenho o terrível pressentimento de que, quando chegar a altura devoltarmos para Londres, vamos ter um vale de lágrimas.- Não digas isso. Nem quero pensar.- Tenho estado a reflectir neste meu emprego na agência de viagens emLondres. Resolvi aceitar. Talvez lá fique só um ano. Depois poderei darum pouco de assistência a Lucy, tentar animar um pouco a sua vida.Obrigarei Dodie a concordar, a deixar-me levar Lucy para a Cornualha,afim de lá passar uns tempos com Jeffrey e Serena. Sabes, ela nunca viuJeffrey. Ainda era bebé quando eles se divorciaram, e o ressentimento eo rancor de Dodie não mostram sinal de abrandar.270- Pobre mulher.Porque dizes isso?- Porque ela não tem mais nada em que pensar. Queres mais umpouco?Carrie ergueu a chávena vazia e Elfrida voltou a enchê-la.- Nicola já telefonou?- Nicola? Estavas à espera de alguma chamada sua?- Não, mas amanhã parte para a Florida. Pensei que pudesse quererdespedir-se de Lucy, o que, obviamente, não é o caso.- Lucy nunca falou nisso. Para ser sincera, acho que anda demasiadopreocupada com aventuras caninas, Rory Kennedy e na compra dedecorações natalícias com Oscar.- Melhor para ela.Ficaram em silêncio, beberricando o seu chá e desfrutando da companhiauma da outra. A casa estava muito tranquila. Elfrida observou, com omáximo de indiferença de que foi capaz:- Será uma boa altura para conversarmos?Carrie levantou a cabeça, pousando os lindos olhos escuros no rosto deElfrida.- Conversar?- Disseste que me contarias. Quando desse jeito, mais tarde. Por quemotivo voltaste da Áustria. O que te levou a sair de lá tãoprecipitadamente. Porque aceitas o emprego em Londres. Talvez agora,que não temos ninguém a interromper, seja uma boa altura. Não estou aquerer ser bisbilhoteira, mas gostaria de saber. Não tanto sobre aÁustria, mas sobretudo porque estás tão desgastada e com um ar tãotriste.- É esse o aspecto que tenho?- O que não te torna menos bonita.- Oh, Elfrida, és um anjo. Eu não me sinto bonita, mas sim velha eacabada. Estou quase com trinta anos. Não sei o que vai ser da minhavida. Os anos passaram a correr desde a última vez em que te vi.Antigamente, os trinta pareciam a léguas de distância. Agora, sem quedesse por isso, já aí estão, a seguir virão os quarenta, os cinquenta,e eu tenho de fazer algo da minha vida. Mas a simples perspectiva detomar decisões, conhecer gente nova e encontrar velhos amigos deixa-mecompletamente esvaída.- Provavelmente, foi por isso que apanhaste esta gripe terrível e elate deitou assim abaixo.- Queres tu dizer que é psicossomático, não é?- Não, não me refiro a isso, refiro-me a estares fisicamentevulnerável.- Vulnerável. Nunca imaginei que alguém viesse a utilizar semelhantepalavra referindo-se a mim.- Somos todos vulneráveis.- Eu pensei que era forte. - Carrie terminou o seu chá e Elfrida271pegou na chávena vazia e colocou-a no tabuleiro, levantando-se da cama,afim de o pousar no chão. Em seguida, voltou para o mesmo sítio eajeitou-se o melhor possível, encostando-se ao fundo da cama em metal.- Que aconteceu, Carrie?

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- Estava em Oberbeuren quase há um ano, tinha feito uma temporada deInverno e outra de Verão. Ganhava bastante bem, encontrara umapartamento só para mim e fazia aquilo que mais gostava de fazer acimade tudo. Tudo corria às mil maravilhas. Foi então que conheci Andreas.Chegou com as primeiras neves, inserido num grupo de amigos do mesmosexo. Tinham o hábito de se reunir todos os anos, de fazerem umaespécie de festa só para homens que já vinha dos tempos da faculdade.Ficaram instalados no hotel grande e foi nessa altura que o conheci.Ele era banqueiro em Frankfurt, o negócio pertencia à sua prestigiadafamília, do qual o pai era presidente. Era casado e tinha dois filhos.Soube desse facto desde o princípio, mas já não era nenhuma meninainocente, de modo que me convenci de que era capaz de ultrapassar essepormenor. Não tencionava apaixonar-me por ele nem ele por mim, mas foio que aconteceu. Simplesmente aconteceu.«Era o homem mais atraente que eu já conhecera, o mais generoso edivertido dos companheiros, um esquiador exímio, uma maravilha na cama.Não tinha ar germânico, não era louro de olhos azuis. Na verdade, eraaté bastante moreno, alto e magro, com um ar todo intelectual. Nesseprimeiro Inverno deslocou-se a Oberbeuren com muita frequência. Voavaaté Munique no avião da empresa, e daí seguia de carro para asmontanhas. Depois não se instalava no hotel, ficava comigo. Era como sefosse um mundo só nosso, onde mais ninguém podia entrar. Quando a nevederreteu, pensei que deixaria de ir, mas ele adorava as montanhas tantono Inverno como no Verão, de modo que caminhávamos dias a fio,nadávamos em lagos gelados e dormíamos em estalagens distantes. Aoacordarmos, nalguma cama com colchão de penas de ganso, ouvíamos oschocalhos dos rebanhos que vinham ser mungidos pela manhã.«Viajava muito pela Europa em negócios, e eu ia muitas vezes ter comele a Viena, Luxemburgo ou Munique. Em Viena, era Inverno, visitámos omercado do Natal e comprámos biscoitos de gengibre, estrelasrefulgentes e pequenos enfeites de madeira pintada. Nessa noite aindafomos à Ópera ouvir Der Rosenkavalier e depois jantámos no ThreeHussars.«Então, há cerca de seis meses, ele voltou a Oberbeuren. Pareciafatigado e ligeiramente preocupado. Quando lhe perguntei se havia algumproblema, respondeu-me que pedira o divórcio à mulher, para depois secasar comigo. Senti-me dilacerada por sentimentos antagónicos. Lembreimede Jeffrey e Serena e pensei no quão felizes eram juntos. Mas tambémme veio à memória a discórdia e a amargura que rodeou272todo aquele divórcio. Eu não conhecia a mulher dele, só sabia que sechamava Ingá. Não conseguia compreender como era possível uma mulhernão estar completamente apaixonada por Andreas. Portanto, sentia-mesimultaneamente culpada e extasiada. Mas não tinha esperança num futuroa dois porque não valia a pena. Vivera com Andreas um dia de cada vez.já fazia tanto tempo que mal conseguia lembrar-me de como era quandoele, a coisa mais importante da minha vida, não estava ali.«Ele não voltou a falar no divórcio. Vinha estar comigo nas montanhas ede vez em quando dizia coisas como: "Quando casarmos, construiremos umacasa aqui e viremos cá todos os fíns-de-semana. Trarei Os meus filhos.Hás-de conhecê-los."«Eu, no entanto, nem sequer tentava responder, pois tinha medo. Eracomo desafiar o destino.«Certo dia, disse-me que consultara um advogado. Mais tarde, quecomunicara aos pais o fim do casamento e o divórcio iminente.«Penso que deve ter havido uma discussão monumental. A família deAndreas era importante em Frankfurt, rica, com excelentes conhecimentose influências. E também era católica. Imagino o que ele não terápassado. E se calhar, até não. Só sei que não tinha coragem de ser eu aromper a ligação. Portanto, o que me iria acontecer dependia dele. DeAndreas. A decisão era sua.«Ele ainda se aguentou durante três meses, mostrando-se tão forte e tão

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resoluto que acreditei verdadeiramente que resolveria o assunto,cerraria os dentes e libertar-se-ia. Mas penso que, no final do dia, apressão era demasiado grande. Gostava obviamente da mulher e adorava osfilhos. Respeitava os pais e apreciava o estilo de vida de quedesfrutava. Creio que lhe terão dito que, se desfizesse a família,estava acabado. Ficaria entregue a si mesmo.«É tudo tão banal, não é? É o tipo de história de que já se ouviufalar. Uma história saída de um melodrama antigo ou de uma óperavitoriana. Quando Andreas me disse que tínhamos de terminar, pôr umponto final no nosso amor, porque ia voltar para junto de Ingá e dosfilhos em Frankfurt, eu fortaleci-me e aceitei a sua decisão. Masquando chegou a altura de dizer adeus e soube que nunca mais o veria,foi como se a vida me saísse do corpo, como se me sentisse sangrar atéà morte ou algo de horrível como isso.«Pensei que seria capaz de continuar em Oberbeuren e tentar prosseguiro meu trabalho, o que não aconteceu. Não conseguia concentrar-me emnada e o trabalho era demasiado exigente e importante para ser feito ameio gás. Portanto, fui ter com o meu patrão e informei-o de que me iaembora, que regressava a Londres. Fiquei o tempo suficiente Para mesubstituírem... deixei lá uma rapariga muito eficiente que trabalharasob a minha orientação... e voltei para casa.«Ainda sonho com Andreas. Às vezes é assustador, outras aparece-me adizer que foi tudo um erro, que Ingá não o quis de volta e poderemos273voltar a estar juntos. Nessas ocasiões acordo com uma tal sensação defelicidade...Fez-se um silêncio prolongado e depois Carrie agitou-se e sorriudizendo:- E foi assim.- Minha querida, obrigada por me teres contado.- Uma chatice, na verdade. Como disse, banal.- De modo algum.- Hei-de recompor-me. Esquecerei Andreas e ficarei boa da cabeça. Avida continua. Estou aqui, contigo. Ficarei bem e farei os possíveispor animar o ambiente.- Não tens de te esforçar para o que quer que seja.- Vais contar a Oscar?- Se me deres licença.- Faz-lhe só uma resenha rápida. Gostaria de que ele soubesse.Simplificará as coisas para nós dois.- Muito bem. - Elfrida suspirou fundo. - Carrie, não deves considerar oque aconteceu como o fim da alegria e do amor. A vida é extraordinária.Há surpresas maravilhosas mesmo ao virar da esquina. Agora, a situaçãopode parecer-te um pouco desanimadora e vazia, mas olha para mim!Imaginei que ficaria sozinha o resto da vida, no meu cantinhogeriátrico no Hampshire, e de repente vejo-me no Norte da Escócia aviver com Oscar Blundell.- Oscar não é casado.- Pois não - concordou Elfrida, pensando em Jimbo e suspirando de novo,perplexa com as voltas e reviravoltas do destino. - O mundo está cheiode homens casados - observou.- Não para mim, Elfrida. Nunca mais.Do piso de baixo chegou até elas o barulho da porta da rua a abrir e afechar e o som alegre das vozes de Lucy e Oscar, que regressavam dascompras.Elfrida recompôs-se e levantou-se da cama.- Tenho de ir preparar um chá para Oscar. Queres que diga a Lucy paravir ter contigo?- Sim, faz isso. Quero ouvir a aventura da luta dos cães directamentedela... e sobre o novo amigo que arranjou.- Não troçarás dela, pois não?- Oh, Elfrida! Como se eu fosse capaz disso. Ainda me lembro

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exactamente do que é ter catorze anos.SamEncontravam-se no bar Duke's Arms, em Buckly, um pequeno pub austeroque não fizera concessões nemao turismo nem às tendências decorativas da época. As paredes eram detábuas de pinho empalhetadas, ailuminação débil e o chão coberto de linóleo castanho, gasto. Oproprietário estava ao balcão e não parecia satisfeito com o seutrabalho. Em volta viam-se várias mesas redondas pequenas e cadeiras deaspecto pouco convidativo, e numa lareira minúscula ardia um fogo deturfa. Dominando tudo do alto da sua caixa de vidro, via-se um enormepeixe embalsamado, de olhos vítreos. No ar pairava um fedor a cervejaantiga e a uísque. Fergus Skinnner perguntou:- O que há-de ser? Um copo de cerveja, se faz favor.- Não prefere uma caneca?- Vou conduzir. Fergus levara Sam ao local, vindo do salão da igreja eatravessandoa estrada coberta de neve depois de terminada a reunião. Aquele era oantro onde se refugiava normalmente, contou a Sam, porque as mulheresnão punham lá os pés; era um lugar onde um homem podia sentar-se aregalar-se com uma bela caneca sem que ninguém o viesse aborrecer comconversas.- Sim, sim - concordou, compreendendo a situação de Sam. E realmenteuma pena, mas não há nada a fazer. - Mandou então vir uma caneca grandede Bell para si. - Eu cá, ando a pé. - Mas se a sua intenção era serengraçado, não se lhe notou o menor lampejo de humor nos olhos.Era um indivíduo alto, no início dos quarenta anos, mas com ar de maisvelho, com o cabelo escuro e a pele clara de um verdadeiro montanhês daEscócia. Tinha feições pronunciadas - olhos profundamente inseridos,nariz adunco, faces muito magras e alongadas - e uma expressão sombria.A sua aparência, porém, nada tinha a ver com o seu carácter. FergusSkinner fora o antigo capataz na fábrica de tecelagem e quando afamília McTaggart falira, ele é que reunira os trabalhadores, forafalar com a Associação Comercial local e organizara o resgate daempresa. Fora eleito capataz quase por unanimidade, mas a mudança foramais dura para ele do que para qualquer outro.No entanto, não se deixou derrotar porque, provavelmente, a únicaalternativa seria ir abaixo, e ele era um homem demasiado forte paraisso. Quando Sam lhe telefonou de Londres, dos escritórios da Sturrock& Swinfield, a pedir-lhe que organizasse uma espécie de reunião com ostrabalhadores, Fergus Skinner cumprira o combinado: pusera cartazes aalertar o público e publicara vários anúncios nos jornais dalocalidade. Daí que a reunião tivesse tido muita afluência e quemchegara mais tarde tivera de ficar de pé.Levaram então as bebidas para uma mesa ao lado da lareira. O únicooutro cliente era um homem muito velho que, sentado a um canto meditavaem frente do seu copo, com um cigarro ao canto da boca. Não pareciainteressado em nenhum dos outros presentes. Na parede, um relógioredondo, cujos ponteiros mostravam ser cinco e meia da tarde, faziaouvir o seu tiquetaque regular. O barman, que puxava brilho a um copo,olhava absortamente para um pequeno televisor a preto e branco, cujosom estava tão baixo que mal se ouvia.Um pedaço de turfa incandescente resvalou para o meio das cinzasquentes da fogueira. Fergus ergueu o copo e exclamou:- À nossa saúde!- E ao futuro. A cerveja estava morna.- Ao futuro.A reunião, realizada no salão da igreja de Buckly por a fábrica aindase encontrar num estado de desolação e ruína, cheia de humidade eenregelante, fora proveitosa. Sam e Fergus tinham subido para cima daplataforma alteada, de onde o recém-chegado vira não só homens comotambém mulheres, assim como uma criança ou outra, demasiado pequena

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para ficar em casa sozinha.No início, o ambiente fora de cautela e não exactamente amistoso.Aquela gente, sem trabalho fazia tanto tempo, não aceitaria de mãobeijada nenhumas promessas coloridas. Sam começara por se apresentarcomo o novo director-geral da McTaggart, aquele que tomaria a seu cargoa reconstrução, em termos gerais, da fábrica em ruínas e o relançamentodo negócio. Teve como resposta o silêncio, apercebendo-se que o maisprovável era considerarem-no apenas como um investidor de capital,enviado de Londres pela Sturrock & Swinfield. Falou-lhes então dealguns dos seus antecedentes: oriundo do Yorkshire, nado e criado naindústria dos lanifícios e numa fábrica de família muito semelhante àMcTaggart, de Buckly. De como, também eles, tinham deparado com278dificuldades financeiras e sido salvos pela Sturrock & Swinfield, razãopela Qual se encontrava ali naquele dia. O ambiente descontraiu umpouco. As pessoas agitaram-se, acomodando-se melhor nas cadeiras.prosseguiu.Levou muito tempo. Passou todo o processo a pente fino. O estudo deviabilização e a reestruturação. Um negócio erguido sobre tradição eboa vontade, mas a ter de acompanhar o progresso. Portanto, novosprodutos, novos mercados, nova maquinaria.No início da reunião tivera de perguntar se alguém queria fazerperguntas. Depois já via mãos no ar.- Isso significará reciclagem?Respondeu-lhes que sim. Apareceram logo outras perguntas, bem precisas:- Haverá dispensa de trabalhadores?Respondeu que, no princípio, sim, haveria, mas assim que a nova fábricaentrasse em plena laboração, verificar-se-ia uma expansão gradual,assim como a criação de novos postos de trabalho.Uma mulher levantou-se e perguntou se haveria trabalho para si, que erados acabamentos manuais, ou se tudo seria feito com as tais máquinasnovas e sofisticadas. Sam respondeu-lhe que, tendo em conta os produtosluxuosos que pretendiam fabricar, aquela especialidade nunca deixariade ter trabalho.A pergunta mais importante foi: «Quando?» Quando é que voltariam aotrabalho?O mais tardar dali a nove meses. Um ano, no máximo.Porquê tanto tempo?Havia muito a fazer. Se alguma pessoa quisesse provas do facto, podiamconsultar fotocópias dos planos já feitos, que se encontravam afixadasem quadros ao fundo da sala.O exterior da velha fábrica ficaria na mesma. O interior seriaesventrado e reconstruído de raiz. Criariam uma loja para atrairturistas e o arquitecto tomara providências para um pequeno café epastelaria, para os quais também seriam precisos trabalhadores.E quem trataria dos contratos de construção?Sam explicou que Sir David Swinfield fazia questão em que todos osintervenientes no processo fossem da zona e que se recorresse aospedreiros, canalizadores, electricistas e marceneiros locais. Depois dapassagem do ano seriam apresentadas propostas e feitos os cálculossubsequentes.No fim, gerou-se uma discussão generalizada, precisamente o que Sampretendia que acontecesse. Antes da reunião terminar, desceu daplataforma e misturou-se com os presentes para esclarecer dúvidasrelacionadas com o que estava nas fotocópias, escutar os problemas etentar criar confiança da parte dos operários. Quando tudo chegou aofim,279achou que não fizera exactamente amigos, mas que ganhara uma certaconfiança da parte deles e, se tudo corresse bem, colaboração.Era um começo mais auspicioso do que aquele com que contara e não piordo que receara.

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Fergus inclinou-se para deitar mais um pedaço de turfa na fogueiraagonizante.- E quando é que -, perguntou -, tenciona vir viver para Buckly?- Já cá estou, Fergus.- Mas não volta para Londres?- Claro que volto. Provavelmente, andarei acima e abaixo como um ioiô,mas de momento estou aqui.- E onde é que se instalou?- Para já, num hotel em Inverness.- Mas tenciona ir a casa passar o Natal, não?Sam hesitou. Iria trabalhar muito de perto com Fergus, de modo quecalculou que fosse melhor ser completamente franco com o homem ecolocar todas as cartas, no que se referia à sua vida pessoal, sobre amesa. Assim, não haveria confusões nem más interpretações.- Sabe, de momento não tenho casa. Vivia em Nova Iorque. Nem sequertenho família. Minha mulher e eu estamos separados. Ela ficou nosEstados Unidos.- Isso é terrível. Não ter um lar - observou Fergus. Sam sorriu.- Há coisas piores. Seja como for, o meu tempo e a minha cabeça andarãotão ocupados com a fábrica que nem tempo terei para pensar no Natal.Podia voltar a Londres e passá-lo com uns amigos, mas para já prefiroconcentrar-me apenas no trabalho.- Não pode ir e vir todos os dias de Inverness. É uma viagem muitolonga, mesmo com as pontes novas.- Encontrarei por aqui algum sítio onde morar. Alugarei ou arranjareiuma residência temporária. Ficarei bem.- Seria muito bem-vindo em minha casa. A minha mulher teria muito gostoe há espaço que chegue.- É muita gentileza sua, mas prefiro ficar sozinho. - Terminara a suamodesta bebida. Olhou de relance para o relógio. - É melhor ir andando.Como disse, é uma viagem longa.- Mas dispõe de um excelente carro. Um Land Rover Discovery novo, aoque me parece.- Sim, é novo. Comprei-o em Londres, quando soube que viria aqui paracima. Há três dias fui até ao Norte nele. É um veículo excelente.- Sim, sim, sem dúvida. O meu filho tem um Land Rover.- Que faz o seu filho?280É guarda-florestal. Não estava interessado nos lanifícios, preferiatrabalhar ao ar livre. Sempre adorou a natureza. Quando era rapaz,passava vida a trazer pássaros feridos e esquilos doentes para casa,mantinha-os em gaiolas e cuidava deles até ficarem bons. Havia semprealgum animal selvagem desgraçado a um canto da nossa cozinha.A minha mulher observou certa vez que era uma sorte não vivermos noQuénia.Disse aquilo com ar tão sério que Sam levou algum tempo a aperceber-sedo sentido da piada.Ao saírem, repararam que voltara a nevar. No outro lado da rua, emfrente da igreja, o Discovery verde-escuro de Sam tinha uma camada deneve com dois centímetros e meio de espessura.- Eu no seu lugar telefonava a saber as condições meteorológicas. Numanoite como esta, a Black Isle pode ser um perigo - disse Fergus.- Talvez o faça. Depois verei.- Ainda nos vemos antes do Ano Novo?- É provável. Ligarei para si. Manter-me-ei em contacto.- Foi um prazer conhecê-lo.- O prazer foi todo meu, Fergus.Despediram-se com um aperto de mão. Fergus seguiu por uma rua estreitae comprida, atapetada por pesados flocos de neve, deixando um rasto depegadas atrás de si. Sam viu-o ir, depois subiu para o seu jipe enorme,enfiando a mão no bolso para tirar duas chaves: uma, do seu carro, e aoutra, um modelo antiquado preso com um cordel à etiqueta que dizia:

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«Casa da Quinta de Hughie McLellan.»Sam ficou a reflectir durante uns instantes. A reunião fora umaprovação que lhe provocara um grande desgaste de energia, mas comoterminara bem, sentia-se estimulado e não fatigado. Seria agradávelvoltar à base, tomar um banho, e uma bebida no bar, seguida de jantar.Por outro lado, já que estava tão perto de Creagan, valeria a penafazer o pequeno desvio até lá e dar uma vista de olhos à zona,orientar-se e localizar a casa de Hughie. Não precisava de entrar,bastava ver que aspecto tinha, calcular as suas possibilidades. Decidirse valeria a pena lá voltar, tendo em vista uma hipotética compra.Ficou sentado e hesitou durante algum tempo, resolvendo depois deitaruma moeda ao ar. Se fosse caras, seguiria directamente para Inverness;coroas, iria até Creagan. Encontrou uma moeda e atirou-a. Coroas.Colocou a moeda e a chave da casa em cima do painel de instrumentos eligou o motor e as luzes.Os feixes luminosos fortes e longos dançaram com os flocos de neve.Sentiu-se aventuroso.Creagan, aqui vou eu. Estranhamente, havia muito trânsito na estrada.Transportes pesadosrumo ao norte, abrindo caminho pela neve com os pára-brisas no máximo.Camiões enormes, carregados de madeira, camiões-cisterna comcombustíveis e camionetas com gado. Carros com gente que voltava a casadepois do trabalho no final do dia; um tractor, com a luz de aviso abrilhar intermitentemente como uma estrela. Sam ficou preso no meio detudo isso durante cerca de dois quilómetros, até virar junto de umaquinta e ganhar novamente velocidade. A neve parou de cair d repente.Uma nesga de céu claro mostrou a curva de um quarto crescente.Atravessou uma longa ponte sobre um estuário e, alguns quilómetros maisà frente, os faróis do seu jipe iluminaram um letreiro luminoso deestrada: ROTA TURÍSTICA. CREAGAN. 3 QUILÓMETROS.Virou e a estrada de sentido único serpenteou ao longo das margens deum braço de mar. Era meia-maré, e reparou no tremeluzir escuro da água.Os baixios lamacentos estavam brancos de neve, transmitindo umaimpressão surrealista, de sonho. Ao longe, na outra margem, via-se umanesga de luz a sair pela janela de uma pequena casa. Passado um bocado,a estrada virou à direita e ele passou por uma elevação de terrenocoberta de coníferas, depois entrou em campo aberto e avistou, àdistância, as luzes de uma pequena vila.O céu escureceu e voltou a nevar. Entrou na urbe por uma rua ladeada deárvores, mas a luz dos candeeiros permitiu-lhe ver a igreja, a praça eum cemitério murado. Fez-lhe lembrar cartões de Natal. Só lhe faltavauma senhora de saia em balão com embrulhos festivos nos braços. Deu avolta, lentamente, à igreja, tentando ver onde estava e qual era a casavazia e ao abandono que pertencia a Hughie McLellan. Depois de ter dadouma volta completa sem resultado, resolveu pedir indicações e parou àbeira do passeio. Aproximava-se um casal, de braço dado, com uma sériede sacos de compras. Baixou o vidro da janela.- Desculpem. Pararam.- Sim? - perguntou o homem, solícito.- Ando à procura da Casa da Quinta.- Já está diante dela - respondeu o homem sorrindo, divertido. É esta.- Indicou a casa atrás de si.- Oh, compreendo. Muito obrigado.- Mande sempre.E seguiram o seu caminho.- Boas noites - disse Sam.- Adeusinho.Tinham-se afastado e Sam deixou-se ficar dentro do carro, a olhar paraa casa, na qual reparara, mas não ligara por entender que não podiapertencer a Hughie. A deste estava vazia, desocupada. E aquela tinhajanelas, com as cortinas cuidadosamente corridas, que deixavam passarluz.

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282Estava ocupada, vivia lá gente. Sam disse a si mesmo que só lhe restavaseguir o seu caminho. Sair dali. Fizera a viagem para nada. Mas comogostava de mistérios e sabia que aquele não lhe sairia da cabeça atédescobrir o que se passava. Pegou na chave, desligou as luzes e saiu doDiscovery para o meio da neve. Atravessou o passeio, abriu o pesadoportão de ferro e entrou. Aproximou-se da porta. Havia uma campainha.Carregou no botão e ouviu-a tocar algures dentro de casa.Aguardou um pouco, com a neve a assentar-lhe nas costas, depoisinsistiu. Acendeu-se imediatamente uma luz exterior e ele ali ficou,como se tivesse sido apanhado por um holofote. Depois ouviu passos eabriram a porta.Não sabia muito bem com o que contar. Talvez uma idosa de avental ou umvelhote de pulôver e pantufas, aborrecido por terem interrompido o seuprograma de televisão preferido. O que não contava era deparar com umajovem morena e alta, de jeans e camisolão. Uma raparigasensacionalmente bonita, que teria feito virar cabeças na QuintaAvenida.Ficaram a olhar um para o outro. A certa altura ela perguntou, semgrande entusiasmo:- Sim?- Desculpe, mas esta é a Casa da Quinta?- É, sim.- A Casa da Quinta de Hughie McLellan?- Não. A Casa da Quinta de Oscar Blundell.Debaixo da luz, coberto de flocos de neve, molhado e transido de frio,Sam mostrou a chave com a etiqueta e alvitrou:- Talvez me tenha enganado.A jovem olhou para a chave. Depois retrocedeu e abriu mais a porta.- É melhor entrar - disse.CarrieNessa manhã, o médico passou pela Casa da Quinta, talcomo prometera, com o rosto muito vermelho do frio, ogrosso sobretudo de tweed humedecido pela neve recém-caída e a cheirara turfa. Trouxe um livro sobreaves para Lucy, entregou-lho e depois subiu ao piso decima, galgando dois degraus de cada vez -, afim de ir ver a doente.Carrie, encostada às suas almofadas, disse-lhe que estava muito melhor,dormira optimamente e já se sentia recuperada. Ele, porém, aconselhou-aa ficar mais um dia de cama e Carrie, como sabia que se não aceitasseo conselho teria uma discussão com Elfrida, cedeu de imediato.Depois do médico partir, tão abruptamente como chegara, Elfrida subiuao quarto e enfiou a cabeça pela porta entreaberta.- Que foi que ele disse?- Que já estou boa, mas devo ficar de cama mais um dia. Lamento.- Lamentas o quê?- Tanto incómodo.- Não sejas tola. Não é incómodo nenhum. Queres uma botija de águaquente?- Não, obrigada. Estou bem quentinha.- É mesmo pena que não possas ir connosco visitar os Kennedy hoje àtarde, mas fica para outra vez. Estou muito entusiasmada. Sei que é umdisparate, mas é a primeira vez que Oscar e eu vamos a algum lado. Umdia almoçámos no pub, mas essa foi a nossa única saída.- Ficarei aqui a tomar conta do teu jantar.- Não precisa de grandes cuidados. Fiz um kedgeree1, que depois metereino forno, e se por acaso não o comermos hoje à noite, ficará Para oalmoço de amanhã. É um prato muito acomodatício.- Elfrida, tens andado a ler demasiados livros de culinária.- Deus me livre!O dia foi passando e Carrie viu o tempo que fazia pela janela, o que adeixou satisfeita por não ter de sair, pois, de vez em quando, nevava

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1. Kedgeree: prato da índia, preparado com arroz, carne e ovos. (N. daT.)287e o céu ficava cinzento. Ouviu, várias vezes, o vento a sibilar emtorno da velha casa. Estava-se muito confortável dentro desta. Lembrousede uma vez ficar doente, quando era criança, e dos outrosprosseguirem a sua vida do dia-a-dia sem a sua participação. O telefonetocou e alguém correu a atender. Ouviam-se passos de um lado para? ooutro, vozes a chamar e a responder. Portas a abrir e a fechar. OuviuOscar a subir pesadamente as escadas, depois a descê-las e percebeu queandava a abastecer a lareira de lenha. Perto do meio-dia surgiramcheiros de cozinhados - cebola a refogar ou, então, uma panela de sopaao lume. O luxo de nada ter para fazer, da ociosidade e totalirresponsabilidade, eram situações das quais Carrie já se esquecerafazia muito.Lucy era uma visita frequente.- Carrie, olha. O doutor Sinclair é uma simpatia, não é? Emprestou-meeste livro sobre aves, para eu saber como se chamam da próxima vez quevoltar à praia.- Foi realmente uma gentileza.- Não me importava nada de que o meu médico de Londres fosse como ele.O nosso não é nada simpático e faz-nos esperar imenso tempo. - Pousou olivro ao lado. - Carrie, não sei o que hei-de levar vestido hoje ànoite ao tal baile.Via-se bem que, naquela altura, estava bem mais preocupada com o que seiria passar naquela noite do que com os nomes das aves marinhas.- Quais são as opções?- Bem, tenho os meus jeans novos, mas devem ser um pouco quentes demais para dançar. Tenho os velhos, que foram lavados e Elfrida passou aferro. Ou achas que devo antes levar a minha minissaia nova e oscollants pretos?- Rory disse alguma coisa sobre o que se devia levar?- Falou em jeans e sapatilhas.- Nesse caso, segue o seu conselho. Os velhos e aquela tua camisola dealgodão vermelha às riscas brancas. Fica-te muito bem. Tem um ar muitofrancês. E vale sempre mais ir para o discreto do que para oespampanante. Eu guardava a minissaia para o Natal.- Natal. Que estranho, ainda não pensei muito nele e já só faltam seisdias. Ninguém parece minimamente preocupado ou em preparativos. Nestaaltura já a avó está com uma enxaqueca... dizendo que há imenso quefazer.- Bem, Oscar mandou vir a árvore e as decorações já estão compradas.- Eu sei, mas preciso de comprar alguns presentes. Para ele e paraElfrida. Não faço ideia do que há-de ser. E também há outros aspectos.Comida, por exemplo. Achas que irão fazer alguma ceia de Natal?- Sabes tanto como eu, mas estou convencida de que sim. É bem provável.O caso é que Elfrida foi sempre muito despreocupada. Tudo ficará para aúltima da hora.288-E quanto às peúgas?Acho que será melhor não contarmos com elas desta vez. Importas-te?Certamente já não acreditas que o Pai Natal desce pela chaminé Com ospresentes, não é?- Não, claro que não. Além disso, o costume das meias penduradas paraos presentes é um bocado tolo. Excepto a tangerina e o saco de moedasde ouro em chocolate.Pendurá-las-ei na árvore para ti.A sério, Carrie? Sabes, é muito agradável passar um Natal diferente,não é? Sem sabermos como vai ser.- Espero que te divirtas... na companhia de três adultos.- Eu também serei uma adulta. Aí está o que este Natal tem de tãoespecial.

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Eram seis menos um quarto quando Oscar, Elfrida e Lucy saíram,finalmente, para a pequena festa em Manse. As nevascas não tinhamparado de cair o dia todo, e naquela altura as estradas estavam com umaboa camada de neve que as tornava bastante perigosas.Como nem Elfrida nem Oscar gostavam da perspectiva de ir de carro atéManse, correndo o risco de derraparem ou levarem com algum tipo deavalanche em cima, resolveram subir a colina pela vertente. Todosagasalhados, de chapéu e botas, vieram despedir-se de Carrie um a um. Eesta desejou a todos que se divertissem e lhe fossem contar tudo quandovoltassem.- Não me parece que haja muito que contar - admitiu Elfrida -, a nãoser que eles tenham convidado outras pessoas e alguma se embriague.- Nunca se sabe.Lucy foi a última. Carrie achou-a extremamente bonita, com os olhosbrilhantes e o sorriso entusiasmado. Levava o seu novo casacão vermelhoacolchoado, assim como as botas e o enorme barrete de lã, além dapequena mochila, ao ombro.- Que levas aí dentro?- As minhas sapatilhas e uma escova de cabelo. E uma tablete dechocolate.- Vais divertir-te imenso.- Não sei quando estarei de volta.- Não importa. Nada importa. Rory provavelmente virá trazer-te. Sequiseres, convida-o para entrar e tomar uma cerveja ou algo do género.Como preferires. Alguém estará a pé.- Posso, de verdade? Bem... - Reflectiu sobre a perspectiva. Verei.- Isso. Agora, toca a andar.- Até logo, Carrie.- Até logo, querida. - Abraçaram-se e Lucy deu-lhe um beijinho.Diverte-te.289Por fim partiram, e Carrie ouviu a porta da frente fechar. Esperoucerca de cinco minutos, não se desse o caso de alguém se ter esquecidode alguma coisa e voltarem todos para trás, o que não aconteceu. Porfim? L levantou-se da cama e preparou um banho de imersão, onde decidiuficar imenso tempo. A seguir vestiu unsjeans e a sua camisol de lãgrossa, penteou-se, pôs um pouco da sua água-de-colónia e sentiu-seimediatamente muitíssimo melhor. Já estou boa, disse ao seu reflexo noespelho.saiu do quarto e desceu ao andar de baixo para ver como estava Horace.Parecia de boa saúde, embora o cãozito parecesse quieto e magoado comos safanões que levara. Para o corsolar, estavam a dar-lhe umtratamento principesco, corações de borrego e caldo de carne, nãoprecisando de se aventurar para lá do espaço rente da porta dastraseiras. Carrie baixou-se para lhe afagar a cabeça. - Queres ir lápara cima para junto da lareira? - perguntou-lhe. Horace não fez mençãode aceitar. Fechou os olhos e voltou a adormecer, muito quentinho noseu cesto com o cobertor de lã em cima. Karrie descobriu uma garrafa devinho meio cheia, serviu-se de umcopo e foi para a sala de estar. Aí, as cortinas estavam corridas, ofogo ardia e havia só um candeeiro aceso junto de uma das poltronas querodeavam a lareira. Colocou mais um tronco na pira e sentou-se a ler ojornal da manhã, comprado por Oscar.Lá fora, na rua, alguns carros passavam de um lado para o outro, e aneve abafava qualquer som, enquanto a maioria das pessoa já se dirigiampara as suas casas. Estava a ler um artigo sobre uma velha actrizconhecida, que entrara numa série televisiva em Londres; tornadaimensamente popular e ganhara grande fama. Carrie acabarade chegar à parte de Hollywood quando o som agudo da campainha dacampainha soou pela casa toda, quase a fazendo dar um salto.em circunstâncias normais, ter-se-ia seguido o ladrar maníaco deHorace, no entanto este ainda não esquecera a experiência vivida na

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praia com o rottweiler e abstivera-se.- Raios! - exclamou Carrie.Baixou o jornal e esperou. Talvez fosse alguém cujo carro avariara eprecisasse de se servir do telefone. Ou um negociante local, a entregaruma conta ou um postal de Natal. Ou criancinhas a cantar hinos dafesta.Quem sabe, se não atendesse, se fossem embora.A campainha soou de novo. Não valia a pena, teria mesmo de ir.exasperada, atirou o jornal para o lado, levantou-se e foi ao pisoinferior, acendendo as luzes à medida que ia descendo, o que iluminou ovestíbulo. Destrancou a porta enorme, abriu-a e deparou com a neve, ofrio e o homem que ali estava, sozinho, sob o feixe da luz exterior.Usava o cabelo escuro muito curto e vestia um sobretudorosso azul-marinho, com a gola levantada sobre as orelhas. Tinha ocabelo e o sobretudo fartamente cobertos de flocos de neve, como sealguém o tivesse polvilhado com açúcar em pó.Carrie olhou para além do indivíduo e avistou o imponente e prestigiadoveículo estacionado em frente. Portanto, não se tratava de nenhum homema pedir ajuda, comerciante ou cantor de músicas natalícias.- Sim? - perguntou.Desculpe, mas esta é a Casa da Quinta?A sua voz era agradável, o seu sotaque - mais uma entoação do que umsotaque - familiar. Americano?- É, sim.- A Casa da Quinta de Hughie McLellan?Carrie franziu a testa. Nunca ouvira falar de alguém com aquele nome.- Não. A Casa da Quinta de Oscar Blundell.Foi a vez dele hesitar. Depois, ergueu a mão enluvada com que seguravana chave grande, à qual se via uma etiqueta presa com um cordel. Nestaestava escrito, em maiúsculas grandes a preto, com tinta à prova deágua, CASA DA QUINTA. Uma pista pouco subtil como num filme policialantigo. Mas como é que ele...?Devia haver explicações, evidentemente, mas estava demasiado frio paraficar na soleira da porta a ouvi-las. Carrie retrocedeu e abriu mais aporta.- É melhor entrar - convidou. Ele, porém, hesitou:- Tem a certeza?- Claro. Entre.Passou por ela, que fechou depois a porta contra o frio e se virou Parao olhar de frente.O sujeito parecia um pouco embaraçado.- Peço imensa desculpa. Espero não tê-la incomodado.- De modo nenhum. Não será melhor despir o sobretudo? Penduramo-loali... como o radiador está aceso, secará num instante.Ele voltara a guardar a chave dentro do bolso e tirou então as luvas,desabotoou o sobretudo e despiu-o. Carrie reparou que se vestia demaneira convencional, mesmo formal, com um fato de flanelacinzentoescura e uma gravata. Pegou-lhe na pesada peça de vestuário ependurou-a no velho bengaleiro de madeira trabalhada.- Talvez seja melhor apresentar-me. Sam Howird.- Carrie Sutton. - Não apertaram as mãos. - Suba até à sala de estar. Alareira está acesa e é muito mais confortável do que ficar aqui de péno vestíbulo.291Foi à frente, seguida por ele: subiram as escadas, atravessaram o hallfamiliar e entraram na enorme sala de estar. Ao entrar, o sujeito tev?uma reacção que, de um modo geral, era comum aos recémchegados:Que sala extraordinária.- Não se está à espera, não é? - Foi buscar o jornal que acabarade chegar. - E durante o dia é adorável porque está sempre cheia degente.Pousou o jornal na mesinha ao lado da sua poltrona. - Deseja tomar

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alguma coisa?- É muita gentileza sua. Gostaria muito, mas vou conduzir.-Para onde?- Inverness.- Inverness! Agora? com este tempo?Chegarei bem.Carrie tinha as suas dúvidas, mas encolheu mentalmente os ombros.Não era da sua conta. Sugeriu:- Que tal sentarmo-nos para poder contar-me porque tem a chaveda casa de Oscar em sua posse?A expressão dele era pesarosa.- Para ser sincero, não estou bem certo.Isso não o impediu de se ir sentar na poltrona de Oscar e dar aimpressão de se descontrair imediatamente, como se estivesse em casa etivesse acabado de sair debaixo da neve, sem ser esperado nemconvidado.CarriE achou que tinha um rosto interessante, nem bonito nem rústico.Mas interessante. Os olhos, profundamente inseridos, eram vulgares.Recostou-se na poltrona, cruzando as longas pernas nostornozelos.- Mas estou certo de que podemos esclarecer a confusão. Diga, MisterBlundell alguma vez viveu no Hampshire?- Sim, viveu.- E tem um tio idoso que mora em Londres?- Não faço ideia.E um primo chamado Hughie McLellan?Receio que esteja a fazer perguntas à pessoa errada. Estou aqui depassagem. Como hóspede. Não sei verdadeiramente nadada família de Oscar. É a primeira vez que estou com ele e comoestou com gripe, tenho estado de cama, portanto poucas oportunidadesaindativemos para sabermos coisas uns dos outros.Compreendo.Além disso, Oscar e Elfrida, que é uma espécie de prima minha, emulher de Oscar, saíram. Só estarão de volta cerca das oito da noite.Olhou de relance para o pequeno relógio em cima da cornija da lareira.São quase sete... se quiser esperar.Não, não posso esperar. Tenho de me pôr a caminho.Mas ainda não percebi por que razão está na posse de uma chave destacasa.Foi-me entregue por Hughie. Ele quer pôr a casa à venda.Carrie fítou-o, surpreendida.À venda? Mas a casa é de Oscar!- Creio que pertence a ambos, a meias, se é que entendi bem. Sei que acasa lhes pertence em partes iguais. Oscar contou-me.Ainda assim, esse tal Hughie McLellan não tem o direito de pôr à vendaalgo qlue não lne Pertence Por inteiro.Sem dúvida. - Concordou com ela. - Realmente parece umpouco suspeito.Mas então porque é que quis vir cá vê-la? Tenciona comprá-la?Ele respondeu cautelosamente:- Pensei nessa possibilidade.- Para quê?- Para minha habitação. Agora estou a trabalhar em Buckly. Nareactivação da fábrica de têxteis McTaggart. Terei de ficar por lá epreciso de um sítio para viver.- Onde fica Buckly?- A cerca de trinta quilómetros daqui, para norte. Acabo de chegar delá. Passei a tarde numa reunião com os trabalhadores.- Não seria melhor morar mesmo em Buckly?- As acomodações da fábrica foram todas vendidas. Provavelmente dariamais jeito, mas falaram-me nesta casa e deram-me a chave, de modo que

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resolvi dar uma passagem rápida por aqui e conhecer a vila. Para sersincero, pensei que a casa estivesse vazia. Mas quando vi luz, resolvitocar à campainha e esclarecer o mistério.- Mas não esclarecemos.- Não, realmente não, e isso só acontecerá depois de falarmos comMister Blundell. E receio que não haja tempo para isso. Fica para outrodia. Para já, é melhor ir andando.- Pois eu acho que deve falar com Oscar. É justo que ele saiba o queaconteceu... o que está a acontecer.- Tenho mesmo de...Pôs-se de pé. Carrie imitou-o e foi até à ampla janela panorâmica,afastando as cortinas. No exterior, a cena era de extrema invernia. Aneve caía pesada e ininterruptamente e o Discovery, estacionado à beirado passeio, estava todo coberto de neve. Não se via um carro e ninguémpassava na rua. Carrie pensou na estrada para Inverness, nos Muitosquilómetros, na colina que era preciso subir para passar a Black Isle,e na ponte sobre Cromarty Firth que tinha de ser atravessada.Ela, ao contrário de Elfrida e Oscar, não tinha medo de guiar na neVe-Depois dos três invernos passados nas montanhas da Áustria, nada mtaisa atemorizava nesse campo. Mas aquilo, sem que soubesse muito bemporquê, era diferente. Havia algo de duro e implacável naquele clima.Aquela neve não iria parar ou dispersar-se. Ficaria assim toda a noite.293Voltou-se para o visitante, que ficara junto da lareira e disse-lhe:- Acho que não devia ir.- Acha?- Venha ver.Sam foi para junto dela e ficaram os dois a observar o tempo, cada vezpior, que se fazia sentir no outro lado da janela. A princípio, elenada disse e Carrie sentiu um pouco de pena dele.- Está realmente mau - insistiu ela.- Sem dúvida. Fergus Skinner, o gerente da fábrica, aconselhou-me atelefonar para o Instituto Meteorológico para obter informações. Nãoachei que fosse necessário na altura, mas agora vejo que me enganei.- Eu diria que seria uma boa ideia.- Tenho telemóvel, mas não sei o número.- Vou saber qual é.Saiu para o patamar, de onde voltou com a lista telefónica, ondeprocurou o número de emergência.- Aqui está. Quer tomar nota?Sam puxou de uma caneta, Carrie leu o número em voz alta e eleassentou-o na margem da lista telefónica, tirando, em seguida, otelemóvel do bolso.Carrie deixou-o entregue à sua tarefa, sentado à janela com as cortinascorridas. Colocou mais um toro no fogo e levantou-se, ficando a ver aschamas novas pegar.Sam conseguiu imediatamente ligação e inquiriu sobre as condições daestrada, a A9, até Inverness. Houve um silêncio prolongado, durante oqual escutou o que lhe diziam do outro lado da linha. Depois:- E amanhã? - Nova pausa. - Muito bem, já entendi. Obrigado, Adeus.Entreolharam-se, cada um no seu lado da sala. Carrie nada disse, maspercebeu que as notícias não poderiam ser piores. Sam confirmou-o.- Tinha toda a razão. A estrada está intransitável. Não fazia ideia deque fosse tão grave.- Lamento.? - Eu... - Guardou o telemóvel. - Acho melhor ir andando. Deixarde a incomodar.- Para onde?- Como?- Para onde é que irá?- Deve haver alguma pensão ou hotel... Alojar-me-ei num deles.- Nesta altura do ano não encontra nenhuma pensão ou hotel abertos em

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Creagan. Durante o Inverno está tudo fechado. Não descobrirá nada.- Mas certamente...- Terá de ficar aqui. Connosco - propôs Carrie.294- Aqui? Mas eu não posso fazer semelhante coisa!- Porque não?- Não me conhecem. Sou um desconhecido. Não posso simplesmente aparecere...- Claro que pode. Seja como for, não parece haver alternativa. Sei quetemos um quarto vazio. Uma cama disponível. Seria ridículo não utilizála.- Mas...Carrie sorriu. Agora que a situação estava esclarecida e ela levaraavante o seu ponto de vista, estava a achar graça à falta de à-vontadedele.- Como é que costumam dizer? Numa tempestade, qualquer porto é um portoseguro.- Mas Mister Blundell...- Ficará encantado em ter mais um hóspede. E extremamente interessadono que tem para lhe contar. Elfrida, essa então delirará. Não há nadaque mais aprecie do que hóspedes inesperados. Nem sequer tem de sepreocupar com o jantar. Há um kedgeree no forno, e água quente comfartura para o banho. Que mais poderá um homem querer?Sam abanou a cabeça, derrotado pela insistência dela.- Nada, imagino.- Tem escova de dentes?- Tenho uma no carro, e também a minha máquina de barbear.- Seja como for, se calhar também não dorme de pijama. Portanto não háproblema.- Pois não. - Ficou pensativo. - Mas se não se importa, farei mais umtelefonema.- Esteja à vontade. - (Obviamente precisava de ligar para casa, ondequer que fosse, para explicar à mulher o acontecido.) - Não deve deixarninguém preocupado.Sam puxou de novo pelo seu telemóvel e marcou o número. Carrie ficousem saber se devia dar uma desculpa e retirar-se da sala, pois nãoqueria escutar uma conversa privada e pessoal; palavras de amor;recados para as crianças. Mas antes de o poder fazer, ele completava aligação e punha-se a falar com uma recepcionista de um hotel emInverness.- É só para avisar que não vou ficar aí esta noite. Estou preso aqui emCreagan, por causa da tempestade. Fico em casa de amigos. Talvez volteamanhã. Guarde-me o quarto. Obrigado. Adeus.Telefonema terminado.- É tudo? - perguntou Carrie.- Sim, é.- Não precisa de fazer mais nenhum telefonema?Sam enfiou o telemóvel novamente no bolso e sacudiu a cabeça.- Não.295- Certo. Bem, nesse caso, que tal tomar a tal bebida?- Seria óptimo.- Terei de descer à cozinha para lha ir buscar. Não estão aqui em cImaporque não há sítio onde as guardar. A garrafeira de Oscar consistenuma prateleira da dispensa.-Deixe-me ir ajudá-la.- Não, fique aqui e ponha-se à vontade. O que prefere? Temos de tudo.- Uísque?- Soda, água ou gelo?- Só com gelo.-Muito bem. Volto num instante.Carrie desceu apressadamente à cozinha e encontrou um tabuleiro nadispensa, onde colocou uma garrafa de uísque, o balde de gelo, que

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encheu, um copo e a garrafa de vinho. Levou o tabuleiro para cima, ondeencontrou o seu visitante não ao pé da lareira, mas no outro lado dasala, a olhar atentamente para o pequeno quadro de Elfrida. Para melhoro fazer colocara uns óculos de aros de chifre, que lhe davam um ardeveras intelectual.Quando Carrie apareceu, tirou-os.- Que quadro tão adorável.- É verdade. Pertence a Elfrida. Trouxe-o com ela do Hampshire.Tem-no há anos. É um David Wilkie. Diz que é a sua apólice de seguropara quando um dia lhe faltar o dinheiro e não se quiser transformarem pedinte. Como vê, não existem mais quadros na sala, daí que pareceum pouco perdido.-Não há dúvida de que é um tesouro... Vá, deixe-me pegar nisso.Tirou o tabuleiro a Carrie e esperou que esta arranjasse espaço parasImesma na mesinha de Oscar, tendo, para isso, de afastar algunspapéis. Carrie disse-lhe então:- Prefiro que prepare a bebida para si.-Não bebe nada?- Mantenho-me no vinho.- Posso voltar a encher-lhe o copo?- com certeza, se fizer favor.Carrie voltou para a sua poltrona junto da lareira e ficou a observálo,apreciando-lhe os movimentos precisos das mãos. Intrigada, com osseus objectivos, com o seu aparecimento na Casa da Quinta, o motivo queo levara ali e o que o fizera ficar (mau tempo). Tudo pareciauma espécie de plano. A trama de uma peça de teatro, talvez. O tecer deuma fita que poderia revelar-se perturbadora.Sam atravessou a sala trazendo nas mãos os copos de uísque e devinho, e entregou a Carrie o dela, sentando-se em seguida no mesmolugar onde já estivera. .< .,, , ,,,,. «>"À sua saúde - brindou.À sua, também.- Disse-me que acabou de ter uma gripe?-Não foi das piores. Bastou-me ficar de cama.Não vive cá?Como já lhe disse, sou visita. Vivo em Londres. Tenho uma sobrinhajovem, que trouxe comigo. Passamos o Natal e a passagem deano aqui.Ela também foi ao tal lanche?É verdade, e depois vai a uma espécie de baile de reel com osoutros jovens da cidade. Só Deus sabe quando voltará para casa. Conhecebem esta parte do mundo?- Não, não a conheço minimamente. Sou do Yorkshire. Depois estivesediado em Londres durante algum tempo, antes de ir para Nova Iorquedurante seis anos.Carrie sorriu de si para si, pois tivera razão em relação ao sotaque.- Daí o uísque com gelo.- Exactamente.- Que faz?- Sou, basicamente, um corretor de lanifícios; trabalho para a Sturrock& Swinfield.Carrie ficou impressionada.- Santo Deus!- Eles compraram, há uns anos, a fábrica de tecidos que o meu pai tinhano Yorkshire e trabalho para eles desde essa altura.- Nova Iorque e tudo?- Nova Iorque e tudo.- Trabalhar aqui vai ser uma pequena mudança de cultura, não vai?- Pois vai - concordou Sam -, de certo modo.- Como disse que a fábrica se chamava?- McTaggart, de Buckly.- Está a ter problemas? Sam respondeu sem hesitar:

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- Não.Depois explicou sucintamente a cadeia de acontecimentos quedesencadeara a ruína da empresa. Não obstante os esforços heróicos dostrabalhadores, parecia que uma intervenção divina, na forma de umacheia, acabara com o negócio de uma vez por todas.- E é de uma situação dessas que vai tomar conta?- Não estarei completamente sozinho.- Quer dizer que contará com o apoio da Sturrock & Swinfield?- Claro. Além do capital e da técnica. Arquitectos e desenhadores denomeada.- E quando tudo estiver de vento em popa, que produzirá?- Tudo. Uma gama muito variada. Tweeds e xadrezes tradicionais, mastambém visaremos novos mercados. O comércio da moda. Lãs de luxo.297- Quando é que a produção terá início?- A fábrica tem de ser reconstruída de raiz. Portanto, talvez uns novemeses. Um ano.- Porque não deitam tudo abaixo e começam do princípio?- Porque é um edifício antigo particularmente bonito. Em pedra comparedes triangulares altas e longas janelas arqueadas. Tem mais decento e cinquenta anos, faz parte da pequena vila. Destruí-la seria umacto de vandalismo.- E o senhor tem algum sítio onde morar?- Tenho. - Sorriu. - Mas isso só ficará resolvido depois de eu falarcom o seu anfitrião.- Por acaso, Hughie McLellan, quem quer que seja, mencionou algumpreço?- Sim, mencionou.- Posso saber qual é?- Cento e cinquenta mil dólares, dividido entre os primos; os doisproprietários.- Portanto, se Oscar Blundell desse setenta e cinco mil a Hughie,poderia comprar a parte dele.- De facto.- Não é assim tanto dinheiro como isso, pois não?- Pelos padrões de hoje, não.- O pior é que Oscar não deve dispor dessa quantia. Na verdade, tenho acerteza de que não tem. E é tão pouco mundano que nem deve saber ondeir procurá-lo. Seja como for -, encolheu os ombros -, não tenhoabsolutamente nada a ver com isso. Penso apenas que seria bom ele poderficar aqui.- Prometo não pô-lo fora de casa.- Nem podia. É a casa dele.- Meia casa.- Tem direitos adquiridos de ocupação.De repente ele riu, afastando a ligeira tensão que acabara de surgir.- Tem toda a razão. Comprei o meu primeiro apartamento, que não tinhaninguém a viver lá, quando fui trabalhar para Londres. Foi uma sensaçãoestupenda. Já se passaram alguns anos.- Onde ficava o seu apartamento?- Em Eel Park Common.- Que engraçado!- Onde é que está a graça?- Tenho uma casinha na Ranfurly Road. Fica só a uns oitocentos metrosde distância.- É onde mora?- Onde morarei, em Fevereiro, quando os inquilinos saírem. Sam pareceuum pouco confuso e Carrie teve pena dele porque, naverdade, ela não estava a mostrar-se muito expansiva. O problema eranão querer falar de si.298Estive três anos na Áustria, em Oberbeuren, a trabalhar para

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uma agência de viagens chamada Overseas. Foi por isso que aluguei acasa. Mas agora estou de volta, de novo em Londres. Ainda estou com afirma, mas ofereceram-me um lugar na sede, que fica na Bruton Street.- Vai aceitar?Vou. Porque não?Irá ter saudades da Áustria e das montanhas.Carrie respondeu:- Sem dúvida.Por um momento, nenhum dos dois falou, e o silêncio ficou impregnado depalavras por dizer. Depois, Carrie ajeitou-se na sua poltrona e olhoupara ele.- O seu copo está vazio. Deseja outra bebida?ElfridaOscar e Elfrida voltaram para casa de braço dado, caminhando com grandeprecaução. Eram quase oito da noite, estava muito escuro e a neve caíacom abundância. no entanto havia candeeiros de rua durante todo opercurso, daí que não precisassem da lanterna que Oscar, por precaução,levava no bolso. À medida que foram percorrendo o carreiro que seestendia pela vertente da colina abaixo, a cidade foi-se espraiando epuderam ver, do outro lado dos ramos nus das árvores de outras pessoas,a redonda face iluminada do relógio da torre da igreja. Tudo parecia detal maneira transformado, mágico, que Elfrida sentiu-se compelida aparar e ficar a olhar.- Oscar, quem me dera saber pintar - observou.Como ele levava a mão dela enfiada no seu braço, foi obrigado a parar.No entanto, perguntou-lhe:- Achas que é a altura indicada para devaneios nostálgicos?- Porque não?- Tenho neve a derreter-se pela minha nuca abaixo.- Mas não seria maravilhoso captar esta cena? Imprimi-la numa tela parasempre? A neve a cair no meio da luz dos candeeiros de rua e dasjanelas iluminadas. E o relógio, na sua pose permanente de lua cheia. Aúnica coisa que não seria possível pintar é o cheiro a fogo de turfa.- Concordo que seria, realmente, muito agradável. Mas, por favor, vamospara casa.A rua inclinava-se ingrememente ao longo do muro do quintal de Oscar.Havia aí um corrimão, ao qual ambos se agarraram para descer, quaispassageiros a abandonarem um avião. Ao fundo podiam ver o Portão dastraseiras, iluminado pelo candeeiro suspenso sobre a porta de entrada.Tinham chegado a casa sãos e salvos.Na copa, imitaram Mrs. Snead e despiram os casacos molhados, as botasincrustadas de neve e os chapéus ensopados, que penduraram a303secar. Elfrida disse algo acerca da jantar, porém Oscar preferiaesperar um pouco. Estava empanturrado de sanduíches de salmão fumado eempadas de carne. Além disso, não bebera nada por causa do caminho paracasa, pelo que lhe apetecia imenso um uísque generoso antes de pensarem mais comida.Elfrida entrou na cozinha primeiro que ele e cumprimentoucarinhosamente o seu cão. Ia a abrir a porta do forno para espreitarpara dentro quando ouviu Oscar exclamar:- O meu uísque desapareceu.- Tens a certeza?Oscar acercou-se de Elfrida, que fechava a porta do forno, parecendo umpouco desconcertado.- Parece que lhe nasceram pernas.- Talvez Carrie tenha tido vontade de tomar um gole.- Pensei que ela ainda precisava de ficar de cama.- Uma pessoa pode estar de cama e ter vontade de beber um gole deuísque. Não tens mais nenhuma garrafa?- Tenho, mas aquela estava aberta.- Investiguemos.

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Saíram da cozinha e subiram ao piso de cima. Elfrida, ao chegar aopatamar, parou. Por detrás da porta fechada da sala de estar chegava ummurmúrio suave de vozes. Oscar também ouviu. Olharam um para o outrocom ar cúmplice.- Acho que já sei onde está a minha garrafa de uísque - observou Oscar.- Chiu.Elfrida aproximou-se da porta entreaberta do quarto de Carrie em bicosde pés e depois voltou para junto de Oscar.- Não está lá - sussurrou-lhe com ar conspirativo. - Cama vazia.Oscar, participando na brincadeira, também baixou a voz:- E tem uma visita.- Quem será?- Mistério. Que tal descobrirmos? Assim fizeram.Ao abrirem a porta da sala de estar, depararam com uma tranquila cenade camaradagem: a adorável sala estava suavemente iluminada, tinha ascortinas corridas, a lareira acesa, as duas poltronas mais confortáveisaconchegantemente próximas do seu calor, e nelas, com ar de quem seconhecia há muito tempo, Carrie e um desconhecido. Elfrida pensouimediatamente nas possibilidades: talvez um velho conhecido de Carrieque tivesse vindo à sua procura; um admirador antigo, fielmenteconstante...Carrie virou a cabeça e, ao ver que eram eles, levantou-se de imediato.304Elfrida, já voltaram. Não vos ouvimos. A festa foi boa? Eu aborreci-me.O homem desconhecido já se pusera igualmente de pé, ficando em frenteda lareira, à espera de que o apresentassem. A primeira impressão que odesconhecido deu a Elfrida foi a de uma formalidade de tipoprofissional, com o seu fato cinzento-escuro de corte impecável, agravata elegante e o cabelo cortado curto. Era alto, pernas compridas,e a pele bronzeada acentuava-lhe os olhos castanho-avelã. Apesar dosseus sessenta e dois anos, foi atravessada por um arrepio de atracçãofísica que em nada diminuía o seu afecto por Oscar. Era apenas umaespécie de identificação, uma recordação ardente de como, em tempos, ascoisas tinham sido para si.- Elfrida, este é Sam Howard. Elfrida Phipps. E o meu anfitrião, OscarBlundell.- Como está?Trocaram apertos de mão.Sam Howard disse:- Peço imensa desculpa por esta intrusão.- Porque haveria de ser uma intrusão?- Porque estou em vossa casa sem ser convidado.Nessa altura, já Oscar localizara a sua garrafa de uísque.- Ali está ela! Não estava a perceber para onde fora.- Pensou que eu andava a beber às escondidas? Desculpe. Trouxe-a paraSam tomar um pouco. Quer um? - perguntou Carrie rindo.- Desesperadamente. Mantive-me abstémio de propósito durante a festa,para poder trazer Elfrida para casa em segurança pela neve.- Nesse caso - disse Carrie -, preparo-lhe um. Mas preciso de ir láabaixo buscar mais copos. Eu preferi um pouco de vinho...- Faço-te companhia - disse Elfrida, sentindo-se subitamente fatigada.Sentou-se, algo aliviada, no meio do sofá, estendeu as pernas emfrente. - Há duas horas que estou de pé, a comer sanduíches e empadasde carne.- Estava lá maisalguém?- Oh, sem dúvida, foi uma festa a sério. Mais três casais, todos muitoconversadores e simpáticos.- E Lucy?- Essa foi com os filhos dos Kennedy para outra sala qualquer e nuncamais lhe pusemos a vista em cima. Quando saímos já tinham ido Para otal reeling. Como ficara combinado.- Óptimo. Vou buscar os copos e mais uma garrafa de vinho. E soda para

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Oscar.Carrie saiu. Elfrida ouviu-a descer as escadas a correr. Entretanto,Óscar já se sentara na sua poltrona e ficaram os dois sozinhos com odesconhecido. Elfrida sabia que Oscar não sabia o que havia de lhedizer,305portanto foi em seu auxílio. Fê-lo com o seu sorriso mais amigável,perguntando:- Agora diga-nos exactamente quem é e porque está aqui. Deve ser umvelho amigo de Carrie.- Na verdade, não é o caso.Puxou uma cadeira e sentou-se perto de Elfrida, inclinando-se para afrente para falar com ela, de mãos presas entre os joelhos.- Vi-a pela primeira vez esta noite.- Santo Deus! - balbuciou Elfrida.Sam começou a explicar e eles escutaram. Chamava-se Sam Howard.Trabalhava para a Sturrock & Swinfíeld, o conglomerado têxtil quetomara conta da finada fábrica de Buckly, a McTaggart. Iria trabalharpara lá como director.Elfrida não entendeu grande coisa, mas Oscar percebeu logo tudo.- Peter Kennedy contou-me que a McTaggart ia ser reestruturada, mas nãosabia que as coisas já estavam em movimento.- Ainda não estão propriamente em movimento, mas já não falta muito.- É uma notícia esplêndida.- Espero que sim.- Quando é que a laboração arranca?- Antes disso, precisamos de reconstruir a fábrica.- Que aconteceu? - interrompeu Elfrida.- Houve uma série de azares - elucidou-a Oscar -, e depois uma cheiadeu cabo do resto. - Voltou-se para Sam. - Está nesse negócio há muitotempo?- Desde sempre, na verdade. O meu pai tinha uma pequena fábrica noYorkshire.- Ora bem! Onde é que está instalado? Em Londres?- Tenho estado, mas trabalhei estes últimos seis anos em Nova Iorque.Depois, em Novembro, chamaram-me a Londres para tomar conta desteprojecto.- Isso significa que vai viver aqui?Nesse momento Carrie reapareceu, trazendo um segundo tabuleiro comcopos e garrafas. Sam pôs-se imediatamente de pé e foi ajudá-la.Levaram algum tempo, entre os dois, a arranjar espaço na mesinha deOscar. A garrafa de vinho ainda trazia a frescura do frigorífico e Sam,depois de lhe retirar a rolha com perícia, encheu um copo para Elfridae foi-lho levar.- E o senhor o que toma?Oscar soltou uma exclamação de deleite. Sabia-lhe bem estar sentado emfrente da lareira e ter outro homem a encarregar-se dos deveres deanfitrião.- Um uísque com soda seria esplêndido. Sem gelo.306Sam serviu-lhe a bebida. Está bem assim?- Perfeito.E o senhor, não toma mais nada? - perguntou-lhe Elfrida.Sam, porém, respondeu que estava bem assim, ainda não acabara de bebera sua segunda dose. Foi buscar o seu copo à mesinha junto da lareira evoltou para a sua cadeira, ao lado de Elfrida.Carrie perguntou então:- Até onde é que já foi?- Como?Relativamente às explicações.- Já soubemos tudo o que se relaciona com a fábrica de lanifíciosdisse-lhe Elfrida. - Certamente não há mais novidades, pois não?

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- Aí é que tu te enganas, Elfrida - retorquiu Carrie, que voltara paraa sua poltrona, onde se enrolara como um gato.Elfrida aguardou.- Nesse caso, surpreenda-me.Sam retomou a liderança da conversa.- É uma questão muito pessoal e complicada. Pouco antes de vir cá paracima, acabado de chegar de Nova Iorque, fiquei em casa de uns velhosamigos: Janey e Neil Philip. Têm uma casa em Wandsworth. Certa noite,um velho amigo dos pais de Janey foi lá jantar a casa. Chama-se HughieMcLellan.Fez uma pausa, talvez deliberada, dando tempo para que a novidadebombástica fosse interiorizada. O que pareceu levar algum tempo no casode Elfrida. A certa altura, Oscar exclamou:- Hughie! Não me diga que está a falar do meu primo Hughie?- É verdade, penso que estou.- Mas Hughie está em Barbados.- Não, voltou a Londres para ver uns amigos e tratar de váriosnegócios, calculo. Depois irá passar o Natal e a passagem de ano ao Sulde França, com alguém chamado Maudie Peabody.- Que coincidência extraordinária!- Conversámos um pouco e depois ele ficou a saber (penso que Janey lheterá dito) que eu vinha aqui para Buckly, afim de tomar conta daMcTaggart. Perguntou-me então onde tencionava morar. Respondi-lhe queainda não tinha onde, mas em breve encontraria. Tirou então a chavedesta casa do bolso. Disse que era dono de metade, mas que queriavender.- Diabos me levem! - exclamou Oscar.Elfrida achou que, dadas as circunstâncias, aquela linguagem até eramuito moderada.- Mas que grande malandro. Sempre foi. Por que raio não entrou emcontacto comigo?307- Segundo me disse, ainda tentou telefonar. O senhor vivia emHampshire, segundo creio. Ligou para lá, mas ninguém atendeu. ?- O pai dele, Hector, sabia onde eu estava, que viria aqui paraCreagan. Porque não lho disse?- Creio que ele não foi ver o pai, só tencionava fazê-lo quandovoltasse de França, antes de seguir para Barbados.- Ora esta, mas que reviravolta inesperada - comentou Oscar que,abalado pela perfídia do primo, tomou um gole enorme de uísque e ficoua matutar sobre o insólito da situação. - Porque terá resolvido vendera casa tão repentinamente? Passámos tantos anos a receber a escassarenda, dividida ao meio, que nunca me passou pela cabeça que elequisesse pô-la à venda. Muito menos que o fizesse sem me falar noassunto.- Cá por mim, ele está é a precisar de arranjar dinheiro rapidamente.- Não me surpreenderia. Dar uma pensão a cada uma das três ex-mulheresdeve custar uma boa maquia. Mas enfim, ele sempre foi um perdulário. -Lembrou-se de outro aspecto. - Fez essa combinação através de algumagente?- Não. Ele tencionava ir ter com a Hurst & Fieldmore no dia a seguiràquele em que nos conhecemos, mas achou que uma venda particular seriamais satisfatória para ambas as partes.- Qual foi a sua resposta?- Disse que, se calhar, nada podia ser combinado sem o senhor, seuprimo, ser consultado.- Então que faz aqui?- Ele tinha a chave da casa consigo. Sugeriu-me que a viesse ver, jáque vinha para o Norte. Contou-me que se encontrava vazia, que um velhocasal vivera aqui, como inquilinos, mas que o marido morrera e a mulherfora morar para outro sítio qualquer. Dito isto, simplesmente tirou achave do bolso e entregou-ma.

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- Não foi confiar de mais numa pessoa desconhecida?- Sem dúvida. Mas dadas as circunstâncias, deve ter concluído que podiaarriscar.- E uma venda directa pouparia no fisco, não?- Precisamente.- Mencionou alguma soma?Durante o decorrer da conversa, Sam não saíra da sua cadeira algoincómoda. A sua imobilidade era notável e não desviara nunca o olharatento de Oscar. Ao chegarem ao âmago da questão, não pestanejou nemmostrou o menor sinal de inquietação. Respondeu:- Cento e cinquenta mil.- Estaria preparado para pagar essa soma?- Ainda não vi a casa.- Mas se resolvesse comprá-la...?308- Sem dúvida.- Metade são setenta e cinco, não é verdade?- Exacto.Suponha que eu queria mais?- É negociável. Estou apenas a citar o seu primo. Compreendo.Oscar terminou a sua bebida e Sam levantou-se para lhe ir buscar o copovazio e enchê-lo com nova dose. Depois trouxe-o e voltou a entregá-lo aOscar, dizendo então:Agora que já sabem como tudo aconteceu, só me resta pedir desculpa aosdois. Entregar-vos-ei a chave de Hughie e esqueceremos todo esteassunto. Precisava realmente de vos contar toda a história, para quecompreendessem.- com certeza - aquiesceu Oscar, olhando para a nova dose de uísque quetinha no copo. - Obrigado - agradeceu, pousando-o em cima da mesinha aolado.Elfrida, que se mantivera calada com alguma dificuldade, achou quechegara a altura de meter a sua colherada.- Tornou tudo muitíssimo claro, Mister Howard.- Sam.- Está bem. O Sam tornou tudo muitíssimo claro, mas ainda não conseguiperceber muito bem como apareceu aqui.- Vim para o Norte há alguns dias.- É a primeira vez que vem ver a fábrica? - quis saber Oscar.- É, sim.- Disse que o chamaram de volta a Londres em Novembro. Agora estamosquase no Natal. Dá a impressão de que a Sturrock & Swinfield tem andadoa empatar um pouco.Sam sorriu, concordando com a observação.- Também sou dessa opinião, mas também é preciso ver que tive de ir como presidente à Suíça, para escolher a nova maquinaria que vamosutilizar. Estivemos lá uma semana inteira.- Está hospedado em Buckly? - perguntou Elfrida.- Não, num hotel em Inverness. Hoje à tarde, tive a minha primeirareunião com os trabalhadores. Havia muita coisa a debater. Depois detudo esclarecido, tomei uma cerveja com Fergus Skinner, o capataz dafábrica, que organizou tudo, e quando me preparava para ir paraInverness, lembrei-me de fazer o desvio por Creagan e dar uma vista deolhos por aqui, como aconteceu. Um transeunte disse-me que esta era aCasa da Quinta, mas como saltava à vista que estava habitada, fiqueicheio de curiosidade. Saí do carro e toquei à campainha. Nunca gosteimuito de mistérios por resolver.- Compreendo - observou Elfrida, achando tudo aquilo altamenteexcitante. Não tinha dificuldade em imaginar a cena. O desconhecido309bem-parecido, o toque na campainha, e... Carrie a descer as escadas, aabrir a porta e a deixá-lo entrar. aOlhou para Carrie, enrodilhada na outra poltrona. Não proferiu uma

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única palavra. Havia ocasiões em que era impossível adivinhar o quepensava, e aquela era uma delas.- Carrie, espero que tenhas convidado Sam para jantar - disse. Carriedesatou a rir. Virou a cabeça e Elfrida achou quase conspirativo oolhar que trocou com Sam. Como se, de facto, já tivessem algum segredopara partilhar. Depois ele sorriu, ficando de imediato com um ar maisjovem, menos sério e responsável.- Mais confissões - concluiu Sam. Que teriam eles tramado?- Mais confusão - observou Elfrida com alguma impaciência, o que fezcom que Carrie ficasse com pena dela.- Elfrida, Sam passa a noite connosco. Convidei-o e não lhe resta outroremédio. Todas as estradas para Inverness estão bloqueadas pela neve.Ligámos para o Instituto de Meteorologia e foi o que nos disseram.Importas-te?Elfrida respondeu, sem conseguir esconder o prazer que sentia:- Nada me poderia dar maior gosto.Era quase meia-noite. Elfrida encontrava-se na cama e, ao seu lado,Oscar lia um livro, O Amor nos Tempos de Cólera. O candeeiro da suamesinha-de-cabeceira era a única iluminação do quarto, cujos cantosestavam mergulhados na sombra. Os cortinados grossos tinham sidoligeiramente abertos, de modo a deixarem entrar apenas uma pequenanesga da luz que vinha da rua, mais abaixo, e uma frincha aberta najanela permitia a circulação de um pouco de ar gélido. Felizmente,Oscar e Elfrida concordavam naquelas pequenas coisas, pois nenhum dosdois gostava de dormir às escuras e abafado.A nesga de luz recaía nos varões de metal dos pés da cama, fazendo-osbrilhar como ouro. O amplo guarda-fato de mogno, que Mrs. Snead poliasemanalmente, sobressaía contra a parede, e viam-se as molduras emprata com as fotografias de Elfrida em cima do toucador antiquado,assim como o seu espelho de mão, de costas em marfim» e o seu frasco deperfume. Era o seu quarto. O quarto deles. Na casa de Oscar.Recordou os acontecimentos daquela noite, muitos deles memoráveis. Ela,Oscar, Sam e Carrie tinham-se, finalmente, sentado à mesa da310cozinha a jantar, eram nove da noite, altura em que o kedgeree jásecara um pouco, embora ninguém parecesse importar-se demasiado e,muito menos, queixado. Acompanharam-no com ervilhas, geladas porterem ficado na parte de cima do velho frigorífico e, como sobremesa,pêssegos com chantilly. Oscar abrira nova garrafa de vinho e, terminadAesta, mais outra. Tomavam café quando Lucy e Rory Kennedy voltaram doseu baile, ambos corados de tanto terem pulado, ou talvez dofrio apanhado no caminho de volta do salão da escola.Lucy ficou um pouco surpreendida por ver uma pessoa desconhecida àmesa, mas apresentaram-lhe Sam e explicaram-lhe as circunstâncias dasua presença. Ficou muito imp ressionada.Quer dizer que a neve é que o fez entrar cá em casa? - perguntou,incrédula.- Assim parece - respondeu Sam.- Que excitante. Faz lembrar um livro de Agatha Christie. Amanhã um denós poderá ter sido assassinado.- Não por mim.- Então por Oscar. O Oscar será o mau da fita. Anda por aí de noite defaca na mão ou uma corda para estrangular pessoas. E, pela manhã,ninguém imaginará que foi ele, a Polícia será chamada, e também umdetective terrivelmente esperto.- Porque terei eu de ser o vilão? - protestou Oscar.- Porque é o mais bonzinho de todos nós e o culpado é sempre o maisimprovável. Tem de ser o Oscar.Oscar perguntou então que tal fora o baile de reel na escola e, ao queparecia, Lucy divertira-se imenso e participara em todas as dançasexcepto numa que se chamava «Duque e Duquesa de Edimburgo», que erapreciso aprender. Houvera um conjunto musical a sério e quem tivesse

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calor e sede, tinha limonada para beber.- Rory, quem organizou tudo isso? - perguntou Carrie, divertida.- O reitor e um dos alunos mais antigos. Correu muito bem. Todos foram.Até os putos.Oscar ofereceu uma cerveja a Rory, mas este disse que preferiachocolate quente. Lucy disse que também lhe apetecia um e que iriaprepará-lo para os dois. Arranjou-se espaço à mesa, puxaram-se maisduas cadeiras e puseram-se todos a beber chocolate quente e a comerbiscoitos da lata de Elfrida.A certa altura, Rory disse que eram horas de voltar para casa. Pôs-sede pé e Sam perguntou-lhe:- Como está o tempo?- Bem, parou de nevar, mas é tudo quanto se pode dizer. Contarei ao meupai que o conheci e falar-lhe-ei da questão da McTaggart e de as coisasjá estarem a andar por lá. Vai adorar.- Ele que não fique demasiado entusiasmado. Ainda vai levar algumtempo.311- Bem - observou Rory filosoficamente -, o que é preciso é começar.Lucy, amanhã à tarde tentarei trazer-te a tal televisão. Tudo dependede como as coisas correrem no campo de golfe. Não deverá haver muitomovimento, presumo. Talvez haja alguma movimentação de trenós, mas seassim for depois te digo. Ligo para ti.Saiu pelas traseiras porque lhe dava mais jeito para ir para casa eLucy foi-se despedir dele. Voltou para a cozinha com um sorriso noslábios, sorriso que se perdeu quase imediatamente num enorme bocejo.Carrie atraiu-a a si com um braço.- Estás cansada. Vai-te deitar.- Posso tomar um banho primeiro?- Claro. Divertiste-te? Lucy deu-lhe um beijo.- Imensamente.Oscar e Sam ficaram sentados a acabar o seu café e o brande que Oscarfizera aparecer, milagrosamente, na sua prateleira de vinhos dadispensa; Carrie e Elfrida lavavam a loiça e foram ao andar de cima daruma vista de olhos ao armário dos lençóis e atoalhados de Mrs. Snead,afim de prepararem a última cama disponível que havia, para Sam.Arranjaram almofadas, fronhas, uma toalha de banho e um cobertor extra,para o caso de o novo hóspede sentir frio. Carrie inspeccionou oguarda-fato, que estava vazio, com excepção de dois cabides, de ondeemanava um forte cheiro a naftalina. Elfrida foi até ao armário dalouça e voltou com um espanador e um naperão de linho debruado a renda.Depois de fazer uma limpeza rápida ao quarto, colocou o naperão sobre acómoda. Carrie deu corda e acertou o relógio que se encontrava em cimada mesinha-de-cabeceira.- Que mais - perguntou Elfrida -, poderá um homem desejar?- Flores frescas? Lenços de papel? Um minibar?- Quando Oscar acabar de lhe tratar da saúde, a última coisa de queprecisará é de um minibar. Só não tenho nenhuma escova de dentes nova.- Ele disse-me que tem uma. E uma máquina de barbear. Ficarálindamente.- E pijama?- O mais provável é dormir em pêlo.- Como é que sabes?- Instinto, Elfrida. Instinto feminino. Deitaram subitamente a rir.Carrie observou:- És uma santa. Tive de o convidar a ficar, mas foi tudo mais fácilassim que soube que não te importavas.- Sempre adorei uma casa cheia, e esta dá mesmo para festas e pessoas.Oscar e eu temos andado por aqui só os dois há demasiado tempo. Agoraestá repleta. - Disse-o com enorme satisfação. - Repleta até ao limite.Uma casa de família. Assim é que deve ser.312

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Uma casa de família. Elfrida, deitada na cama, sentia que a casa que arodeava era como um escudo, uma carapaça, um refúgio. Era uma casa daqual gostara desde o princípio e que naquele momento amava. Cheia deamigos, tornara-se um lar. O lar de Oscar. No entanto, Hughie queriavendê-la, e só a simples ideia de Oscar ter de se submeter aos planosdo primo e abandonar o único lugar que alguma vez lhe pertencera, eramais do que Elfrida podia suportar.Oscar chegara ao fim do seu capítulo. Marcou o sítio onde ia no livro,fechou-o e pousou-o sobre a mesinha-de-cabeceira.- Ainda estás acordada?- Estou.- Desculpa.- Não foi por tua causa.Oscar desligou a luz, mas o quarto não ficou demasiado escuro devido àabertura no meio dos cortinados.- Oscar - disse Elfrida.- Que é?- Se Hughie quer vender a sua metade desta casa, que tal comprares aoutra metade para ficar a pertencer só a ti? Para sempre.- São setenta e cinco mil.- Tu... não tens essa quantia?- Se vender tudo o que tenho, talvez consiga umas vinte mil.- Podíamos fazer uma hipoteca.- Não por esse montante. Não na minha idade. E sempre tive horror dehipotecas. As pessoas dizem, «Faz uma hipoteca», mas o que elas queremdizer é, «Pede dinheiro emprestado». Assusta-me. Nunca tive muito, mastambém nunca contraí dívidas. Não poderia começar agora.- Se eu tivesse setenta e cinco mil, ajudaria?- Se tu tivesses setenta e cinco mil, seriam teus. Não se destinariam afinanciar-me.- Adoro esta casa.Adoras, minha querida?- É tão sólida, tão despretensiosa, tão... adaptável. Não a sentes, écomo se pulsasse, mantendo-nos a todos vivos, abrigando-nos, cuidandode nós todos?- Acho que não sou tão imaginativo como tu.- Não podes ficar sem ela, Oscar.- Hughie não pode vendê-la sem o meu consentimento.- Mas ele precisa do dinheiro. - Calou-se e ficou a reflectircuidadosamente no que diria a seguir. - Oscar, escuta. Se eu vender omeu quadro, o meu David Wilkie, quanto pensas que darão por ele?- É o teu tesouro.- Não, é a minha segurança. E talvez seja tempo de a fazer valer.- É a tua segurança, não a minha.313- Oscar, nós estamos juntos. Somos demasiado velhos para implicar sobrepequenos pormenores como este.- Setenta e cinco mil não é um pequeno pormenor. É muito dinheiro. Se oquadro vale aquilo que eu penso, nesse caso só há que vendê-lo. Se nãoconseguirmos setenta e cinco mil por ele, pedimos o resto sob a formade empréstimo. Faz sentido. Para quê manter um quadro quando se podecomprar segurança? Quando se pode comprar esta casa? Viver aqui o restoda vida? Tu gostarias, não gostarias? Eu cá não suporto a ideia de estacasa preciosa ir para outras pessoas. Quero que te pertença. Quero quefiques aqui.Oscar permaneceu calado durante muito tempo. Depois pegou-lhe na mão.Elfrida sentiu-lhe o calor e aninhou-se mais contra ele.- És uma querida - disse-lhe.- Vá, dorme.- És muito generosa.- Depois falamos nisso - disse-lhe ela. - De manhã.Lucy

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Quarta feira, 20 de DezembroSão oito e meia da manhã e estou a escrever o meu diário. Devia tê-lofeito ontem à noite, mas sentia-me tão cansada que me limitei a tomarumbanho e a meter-me na cama, por isso levantei-me hoje mais cedo paraapontar o que aconteceu, antes que me esqueça. Foi fabuloso!Fomos a pé até casa dos Kennedy, pois Oscar não queria conduzir o carrocom a neve tão alta. Só em fotografias eu vira tanta neve. Nãodemorámos muito porque fomos por um atalho. A casa dos Kennedy chama-seManse porque Peter Kennedy é o pastor. É uma casa enorme e antiga, nãocomo esta onde estou, mas muito mobilada e com coisas por todo o lado.Carrie não foi connosco por causa da constipação. Quando lá chegámos,também estavam outras pessoas. Mistress Kennedy chama-se Tabitha e émuito bonita, de aspecto jovem e fora do comum. Rory contou-me queensina desenho e pintura na escola. Depois, deixámos os adultos na salade estar e fomos para a cozinha, onde estavam três outros rapazes,amigos e colegas de Rory, e também Clodagh, sua irmã, que tem doze anose é muito magrinha, com olhos azuis e tranças louras. Ficámos lásentados a beber Coca-Cola, e reparei que Clodagh é muito namoradeira.A mesa já estava posta e tivemos uma espécie de lanche-ajantarado, comuma suculenta massa com queijo, salada e, no fim, um delicioso bolo dechocolate e gelado. Depois de terminarmos, Preparámo-nos e saímos todospela colina abaixo, seguindo depois Pela estrada que vai dar à escola,que fica a menos de um quilómetro. A escola é velha, mas tem uma datade edifícios novos à volta, e o ginásio é um deles. Chamam-lhe salão,mas também faz de ginásio. Havia gente de todas as idades, dos sete aadultos. O reitor éMister Mclntosh, chamam-lhe «À Prova de Água» pelas costas, mas apostoem como ele sabe. É bastante novo e muito simpático. A um317dos cantos do salão havia uma plataforma onde uma banda tocava, umabanda de verdade: acordeonista, baterista e violinista. ?A barulheira era enorme, todos falavam ao mesmo tempo, de modo queMister Mclntosh teve de mandar calar toda a gente, com voz suave, mastodos obedeceram. Disse que eram horas de começar. nós íamos entrar noStrip the Willow porque é o mais fácil para os mais pequenos e para osnovatos (eu).Rory e os outros que tinham estado connosco, ajudaram a pôr todos emfila, com parceiros e outros pormenores. Os rapazes dançavam comrapazes e as raparigas com raparigas, se quisessem o que me pareceumuito adequado. Dois rapazes quiseram dançar com Clodagh, mas Rorydisse que comigo dançaria ele. Estávamos mais ou menos a meio da fila,por isso eu mal conseguia ver o que se passava mais à frente. A músicaera muito animada e mexida, com uma tremenda batida da bateria. A dançanão era muito difícil, só tínhamos de dar voltas e voltas com o par, oualguma outra pessoa da fila, e depois voltar para trás da fila. Àsvezes, calhava-nos algum rapaz enorme que nos fazia rodopiar pelo ar,mas depois vinha um pequeno, que tínhamos de nos esforçar por nãolevantar do chão.No fim ficámos todos cheios de calor e sem fôlego, mas havia limonada,de modo que começámos de novo.Fizemos um reel de oito, mas com dezoito, o que torna tudo maiscomplicado. Seguiu-se algo chamado Hamilton House, que era divertidoporque se começava com um rapaz e depois girava-se com outro. Depoisfoi o Dashing White Sergeant, em que se corre o salão todo aos três,com as linhas em direcção opostas, de modo que, no fim, já nosconhecemos todos. Seguiu-se o Gay Gordons, mas Rory disse que era umadança parva, portanto ficámos antes a beber limonada. Não dancei só comele, mas com muitos outros rapazes, suficientemente simpáticos e que,apesar de não saber como se chamavam, me vinham convidar. A maioria daspessoas estava de jeans e roupas usadas, mas alguns rapazes usavam osseus kilts com camisas de râguebi ou velhos coletes de tweed. O tempo

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simplesmente voou, o que foi muito esquisito, pois por muito quefizesse calor e a sede apertasse, mal a música recomeçava a tocar, umapessoa saltava logo para o meio da pista de dança. Tudo terminou porvolta das dez da noite e ninguém tinha vontade de ir para casa, masquando o conjunto se foi embora, não fazia sentido continuar ali, demodo que fomos ao bengaleiro buscar os nossos agasalhos, que vestimos.Clodagh e os outros voltaram para Manse. Um dos rapazes tinha um trenó,de modo que cada um deles, à vez, foi puxando pelo outro pela rua forae colina acima. Mas Rory veio acompanhar-me a casa de Oscar. Foi umanoite linda, com a neve a cair suavemente e tudo coberto por ela.318Carrie disse-me que o convidasse a entrar e tomar uma cerveja, o quefiz e Rory aceitou. Depois, mais surpresas. Estavam todos na cozinha, aacabar de jantar. Carrie estava a pé e também havia um desconhecidopresente. Chama-se Sam Howard, vem viver para cá e dirige uma velhafábrica de lanifícios qualquer. Tem óptimo aspecto, diria mesmo que éda idade certa para Carrie. Pensei que fosse um velho amigo, mas pareceque a neve o obrigou a passar a noite cá em casa, não pôde voltar paraInverness. Tínhamos visto um belo Range Rover estacionado em frente,mas não fazíamos ideia do que se tratava.Seja como for, tomámos chocolate quente e uns biscoitos na companhiadeles e depois Rory foi para casa. Disse, no entanto, que hoje vinha cátrazer a televisão para o meu quarto. Não que me faça falta, pois estãosempre a acontecer tantas coisas por cá que não creio que me sobretempo para a desfrutar. O melhor é achar que vão continuar a acontecercoisas. Nunca me senti assim. Em Londres, uma coisa boa termina edepois não há mais nenhuma, mas aqui há coisas boas todos os dias.Agora é melhor vestir-me e descer para o pequeno-almoço. Está a chegarmeum cheirinho a bacon frito que me faz crescer água na boca.ElfridaElfrida, como de costume, foi a primeira a descer. Aochegar ao patamar, afastou as cortinas (um magnífico Par delas, muitousadas, que comprara no mercado em Buckly) e espreitou para ver comoestava o dia. Na verdade, era noite, visto ainda estar escuro, porémparara de nevar e a luz dos candeeiros de rua permitiam-lhe ver oquintal, com todas as suas formas alteradas. Arbustos e árvoresvergavam sob o peso da neve, e a erva formava montes indistintos.Reinava a maior tranquilidade e silêncio.Elfrida desceu até à cozinha. Horace, ao que parecia, começara arecompor-se. Quando abriu a porta, levantou-se do seu cesto e veiocumprimentá-la com a cauda peluda a abanar amistosamente. Elfridaafagou-o, deu-lhe palmadinhas e tiveram uma pequena conversa. A seguir,abriu-lhe a porta e ele saiu. Quando voltou, tinha uma expressãoindignada no focinho. Não contara com tamanha inconveniência, sobretudonaquele estado de saúde delicado em que se encontrava.Voltou para o seu cesto e amuou.Elfrida começou a tratar do pequeno-almoço: pôs a mesa, fez café, tirouo bacon do frigorífico. Era o resto e teria de comprar mais. Naverdade, tinha de começar a pensar no jantar de Natal. Andara a adiar aquestão de dia para dia, mas já faltava tão pouco tempo que, se calhar,todas as lojas já estavam vazias e ela nem uma tarte de carneconseguiria comprar. Descobriu um envelope velho e um lápis e, enquantoo bacon fritava, começou a fazer uma lista, hesitante. Escreveu:«bacon», depois «tangerinas», depois resolveu ficar-se por ali atétomar a sua Primeira chávena de café.Estava precisamente a bebê-lo quando a porta da cozinha se abriu e Samapareceu. Elfrida vestia as suas calças aos quadrados, assim como umacamisola azul-escura, com ovelhas a pastar por toda ela, mas Samcontinuava com o mesmo fato da véspera porque, evidentemente, não tinhamais nada para vestir. Parecia um tudo nada deslocado e Elfrida tentoulogo pô-lo à vontade.- Vou emprestar-lhe um sweater - propôs.

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323- Realmente sinto-me tão esquisito como pareço. Exageradamente trajado.- De modo algum. Está muito elegante, embora com ar de presidenteprestes a fazer um discurso. Que tal dormiu?- No maior conforto. Só me lembro de camas assim em casa da minha mãe.- Fritei bacon para o pequeno-almoço.- O cheiro chegou lá acima.- Vou estrelar-lhe um ovo.- Posso fazê-lo eu. Tenho muito jeito.- Não com o seu melhor casaco vestido. Ficará a cheirar a cozinha.Tentarei encontrar-lhe algo um pouco menos formal.Elfrida foi então ao andar de cima. Oscar estava na casa de banho afazer a barba, portanto passou-lhe uma vista de olhos às gavetas edescobriu uma bonita camisola de jersey azul, de gola alta. Quandovoltou à cozinha, encontrou Sam, de mangas de camisa arregaçadas, aestrelar cuidadosamente o seu ovo. Atirou-lhe a camisola.- Está demasiado frio para andar em mangas de camisa.Ele apanhou-a e vestiu-a, fazendo emergir a cabeça pela gola caneladaqual mergulhador a erguer-se das profundezas.- Está muito melhor - comentou Elfrida. - Agora pode descontrair.Sam deitou o ovo num prato e juntou-lhe duas fatias de bacon frito.Elfrida meteu mais pão na sua torradeira nova e, em seguida, encheu-lhea chávena de café. Sentaram-se à mesa, fazendo companhia um ao outro.- A neve parou...- Sinto-me muito mal em relação à noite de ontem... Começaram a falar ecalaram-se ao mesmo tempo, ficando depoiscada um à espera de que o outro continuasse.- Porque se sentiu mal? Não foi incómodo nenhum. Limitámo-nos aalimentá-lo com um kedgeree meio ressequido e a esticar-lhe doislençóis numa cama - afirmou Elfrida.- Não me referia bem a isso. Embora tenha sido imensamente simpático davossa parte. Falava, sim, do facto de ter aparecido de repente, com achave da casa na mão e a dizer que queria comprá-la. Ontem à noitefiquei acordado imenso tempo a pensar nisso e senti-me muitoembaraçado. Só espero não ter ofendido nem aborrecido Oscar.- Oscar não é pessoa para isso. Por um momento, ficou ligeiramentezangado, com Hughie, não consigo. E tenho de concordar que o primo delenão agiu com muita correcção. Mas, segundo Oscar, ele foi sempre assim.No entanto, não me posso pronunciar, pois nunca o conheci. Gostou dele?Refiro-me a Hughie.- Nem por isso. Muito bajulador. Bastante antiquado. Não parava deajeitar a gravata.324Elfrida identificou imediatamente o hábito irritante.- Oh, detesto os homens que fazem isso. Não suporto vê-los.- A chave continua no bolso do meu casaco. Entregá-la-ei a Oscar.- Ele não está nada preocupado.- Será que... - Sam pousou os talheres e pegou na chávena de café. -Será que Oscar está a pensar em comprar a outra parte da casa a Hughie?- Falámos sobre isso ontem à noite, quando nos deitámos. Sabe, Oscar eeu não estamos juntos há muito tempo. No início de Novembro, a mulher ea filha morreram num acidente de automóvel e ele teve de sair doHampshire. Eu vim com ele. Partilhamos do mesmo quarto e da mesma cama,mas não sabemos se teremos um futuro juntos. Eu ainda não faço, porenquanto, parte integrante da sua vida. Sou uma espécie de rodasobressalente que mantém o carro a andar até ele se desenvencilharsozinho. Portanto, tenho uma certa dificuldade não só em pressioná-lo adeterminada acção como também em fazer, sequer, sugestões.- Ele tenciona voltar ao Hampshire?- Não. A casa em que vivia com Gloria já está à venda.- Esta é a única propriedade que possui?- É. Ainda por cima é só meia propriedade.

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- Mas não seria melhor para ele comprar a outra parte a Hughie?- Sem dúvida. Seria o melhor, mas é financeiramente impossível. Fiqueia saber ontem à noite.- Quer dizer que ele não dispõe da quantia suficiente?- Exactamente.- E quanto a uma hipoteca?- Nem quer pensar nisso.- Compreendo.Sam voltou ao seu ovo com bacon, porém a sua presença era tão forte ecompreensiva que Elfrida continuou, sentindo que podia confiarcompletamente nele:- Como já disse, ontem à noite conversámos sobre o assunto. Ele contoumeque, mesmo que vendesse tudo o que tem, não conseguiria juntar maisde vinte mil. Então eu disse-lhe: «Oscar, eu tenho o meu pequenoquadro.»- Refere-se ao seu David Wilkie, não é?- Precisamente. Foi-me oferecido há muitos anos, como sendo umoriginal. Nunca o mandei avaliar porque nunca o pus no seguro. Mas,como qualquer mulher da minha idade, sempre me permiti acreditar quevale alguma coisa. A minha salvaguarda para possíveis tempos de penúriae dificuldade.- Estaria disposta a vendê-lo?- Por Oscar faria tudo... menos deitar-me de um penhasco abaixo ou darum tiro em mim mesma. E, afinal de contas, o que é um pequeno quadro?Deu-me prazer durante muitos anos, mas é preciso manter325um certo sentido das proporções. Certamente é mais importante ter umacasa tão adorável como esta.- Concordo consigo - disse Sam. - Faz alguma ideia de quamto vale? ?- Nem por isso. Mas não é altura nem lugar para começar a fazercálculos. Sou uma desconhecida nesta parte do mundo. Não tenhocontactos de tipo nenhum. Não saberia por onde começar. Há uma loja deantiguidades no outro lado da rua, mas nada mais sei além disso.Sam ficou silencioso durante algum tempo. De repente disse:- Janey Philip... está casada com o meu melhor amigo. Como sabe, era emcasa deles que estava quando conheci Hughie. Janey trabalhou em tempospara a Boothby, os comerciantes de belas-artes. Podia telefonar-lhe.Tenho a certeza de que terá sugestões excelentes.- Estamos um bocado perto de mais do Natal para começar a tentar venderquadros.- Não precisamos de o fazer imediatamente.- E a neve obstrui tudo. A propósito, ela continua a fazer com quecontinue na nossa companhia, Sam? Espero que sim.Sam pousou a chávena e desatou a rir. Elfrida ficou com uma expressãointrigada.- O que é que tem tanta graça?- A Elfrida. A maioria das pessoas estaria ansiosa por se ver livre deestranhos.- Eu não o sinto como um estranho. Mas, enfim, imagino que seja umdisparate dizer semelhante coisa. Claro que deve estar ansioso porvoltar a Inverness. A casa.- Elfrida, eu não vou além de Inverness.- Então, e a sua casa?- Neste preciso momento, não tenho casa. Excepto um apartamento em NovaIorque. Foi onde vivi durante seis anos, mas a minha mulher e euseparámo-nos e depois tive de voltar para Inglaterra, afim de assumireste posto em Buckly.- Oh, Sam, lamento muito.- Porquê?- A sua mulher... Não sabia.- Acontece a muito boa gente. Separados.- Ainda não se divorciaram?

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- Não.- Filhos?- Não.- Pais? - insistiu Elfrida, começando a parecer um pouco desesperadaaté perante si mesma.- Já morreram os dois. E a nossa velha casa no Yorkshire foi vendida.- Então o que vai fazer no Natal?326- Ainda não pensei nisso. O Natal, neste momento, não é data à qual dêmuita importância. Provavelmente, ficarei em Inverness até ao fim dasfestas e depois voltarei a Buckly e porei as coisas a andar. Nestemomento, para ser sincero, é o que mais me preocupa. Este ano não pensonem em família nem em celebrações.Podia passar o Natal connosco.-Elfrida...--Não, estou a falar a sério. Não consigo imaginá-lo sentado na s«alade estar de um hotel em Inverness, com um chapeuzinho de papel nacabeça e completamente sozinho. É ridículo. Oscar e eu também nãopensávamos celebrar o Natal. Preparávamo-nos para ser pagãos efestejarmos o solstício de Inverno com costeletas de borrego. Foi entãoque Carrie e Lucy se fizeram convidadas e Oscar foi comprar umpinheiro, encarregando-se depois, com a ajuda de Lucy, de arranjar asdecorações. E eu estou para aqui sentada a pensar na comida que hei-decomprar. Não tenho jeito nenhum para este tipo de coisas e, até agora,ainda só tomei nota do bacon e das tangerinas. Mas podíamos arranjar umbocado de azevinho e ir à caça de um peru, ou lá como eles fazem porestas bandas. Além disso, o que conta são as pessoas, não é? Os amigoscom quem se passa o Natal. Não vá embora. Será divertidíssimo ficarmostodos juntos.Elfrida terminou, Sam mantinha-se calado e, mais uma vez, ela pensou senão teria exagerado e feito figura de parva.- Oh, Sam, faça o que tiver na vontade. Isso é que é importante. Eledisse-lhe então:- A Elfrida é a pessoa mais hospitaleira e generosa que alguma vezconheci. Mas dir-lhe-ei o que vou fazer. Vou telefonar para aMeteorologia e perguntar como estão as estradas. Se estiveremdesimpedidas, voltarei a Inverness e deixarei de a importunar. Nemimagina o trabalho que tenho para fazer. Se continuarem intransitáveis,nesse caso aceitarei, com muita gratidão, o seu convite.- Oh, que bom! Rezarei para que caia uma bela nevasca.- Que dirá Oscar?- Dirá, «Esplêndido» e continuará a ler o seu jornal.Sam afastou o punho da camisola de Oscar e consultou o seu belo Rolex.- São quase nove horas. Se não se importa, irei fechar-me no quarto como meu telemóvel a fazer algumas chamadas - propôs.- Esteja à vontade. Mas primeiro tome mais uma chávena de café. Aseguir apareceu Carrie.- Onde estão todos? Pareceu-me ouvir vozes.- E ouviste bem. Era Sam, mas voltou para o quarto, afim de fazer unstelefonemas.- Ainda há muita neve. - Carrie serviu-se de café e meteu uma fatia depão na torradeira. Pegou numa fatia de bacon e comeu-a com327os dedos. Ao sentar-se, viu o envelope usado com a lista de comprasque Elfrida começara a fazer. - Que é isto? Bacon e tangerinas, vai seruma orgia!- Estava a tentar fazer uma lista de compras para o Natal. Preciso deme concentrar e tentar esboçar um plano ou dois. Tenho andado a adiar eagora já só temos quatro dias.- Porque não me deixas tomar conta desse assunto? Sou uma organizadoraprofissional e não há nada que goste mais de fazer do que listas. Ondeé que poderemos ir fazer compras garrafais? - Em Kingsferry, no outro

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lado da ponte, há um supermercado enorme. Vocês passaram por ele quandovieram do aeroporto. Chama-se PriceRite. Só receio que não consigam láchegar por causa da neve. Depende da estrada ter sido limpa ou não. Masquando Sam falar com a Meteorologia, ficaremos a saber. - PriceRite.Soa bem.- Vende tudo, desde biscoitos para cão a estrume para roseirais. Só láfui uma vez, porque, como somos só dois, não precisamos de grandesquantidades de comida. O que não é o caso neste momento. - Sam vaivoltar para Inverness?- Depende. Se a neve não deixar circular, convidei-o a passar a quadrafestiva connosco.Carrie manteve-se inexpressiva. Limitou-se a dizer:- Nesse caso, seremos cinco cá em casa... - puxou o envelope para si epegou no lápis. - Vejamos. Fazemos refeição festiva de Natal?- Sim, acho que sim. Almoço ou jantar no dia de Natal?- Oh, jantar, é muito mais festivo.- Nunca conseguiremos enfiar um peru naquele forno pequeno.- Então faremos galinha. Duas.Carrie escrevia furiosamente. Galinhas. Couves-de-bruxelas. Batatas.Alhos para o recheio. Ervilhas congeladas. Cenouras. Montes deleite. Manteiga. Pão. Molho de arando. Pauzinhos de canela.- E estalinhos?- Sim, isso é indispensável.- E vinho?-Oscar há-de querer encarregar-se dessa parte.- Salmão fumado?- O meu preferido.- E nozes e outros frutos secos. Empadas de carne?- Não te importas de as comprar? Eu sou um desastre em pastelaria.Podemos fazer uma imitação e depois empurrar tudo para baixocom brande. Bolo de Natal. Isso faço eu. Pudim de Natal.- Não seria aconselhável arranjarmos pernil assado frio? Dá imensojeito para o Boxing Day assim como sanduíches.1. Boxing Day: dia dos presentes (26 e 27 de Dezembro, em Inglaterra).(M da T.)- Esplêndido. E um panelão de sopa.Da sopa encarrego-me eu - ofereceu-se Elfrida, sentindo-se, aomenos daquela vez, competente e eficiente. A sopa era a suaespecialidade caldo de galinha e quaisquer legumes disponíveis.Chamava-lhe sopa de Sobras». - E talvez uns aperitivos, para o caso deresolvermos fazer uma festa.Uma festa?- Achas que não devíamos? Quem convidaríamos?- Bem... - Elfrida reflectiu nas possibilidades, que não eram muitas. afamília Kennedy. O médico e a mulher... e o simpático livreiro, mais amulher. Ontem estavam no Manse e ele e Oscar entenderam-se muito bem.Oscar, como que respondendo a uma chamada, apareceu à porta.- com quem é que eu me entendi muito bem?- O livreiro.- Chama-se Stephen Rutley e a mulher é Anne.- Que bom lembrares-te, Oscar. Vamos fazer uma pequena festa, portantoeles serão convidados.- Quando é que teremos uma pequena festa?Carrie e Elfrida entreolharam-se, pois ainda não haviam decidido nada.Carrie disse então:- Nada como uma noite de sábado para dar uma festa.- No dia anterior à véspera de Natal.- Terei de comprar umas bebidas - observou Oscar.- Se a ponte estiver aberta, Carrie vai fazer as compras todas aoPriceRite, em Kingsferry. Talvez pudesses ir com ela.- Sim, talvez. Elfrida, parece que o bacon acabou.- Oh, Oscar, desculpe. Fui eu - admitiu Carrie. - Comi a última fatia.

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Vou fritar-lhe mais algum.- Não há mais - anunciou Elfrida.Mas não teve importância porque havia salsichas no frigorífico e Carriepreparou-as. Depois apareceu Lucy. Elfrida deixou-os entretidos e subiuao piso de cima, agora muito mais feliz por terem sido feitos algunsplanos e pouparem-na à provação de passar uma hora, ou mais, noPriceRite, a empurrar um carrinho pelos corredores cheios de gente nassuas compras natalícias, a procurar desesperançadamente o café moído.No quarto, procedeu a uma pequena arrumação a esmo, fez a cama ecolocou-lhe o seu xaile de seda vermelha por cima. Dobrou roupas eguardou-as, a seguir procedeu a uma escolha no cesto da roupa suja,esperançada em fazer uma lavagem e depois pendurá-la na corda a secar.O que talvez acontecesse, pois o Sol começara a esgueirar-se por um céulímpido; toda a neve refulgia onde a luz a tocava, e as sombras329eram de um maravilhoso azul-esfumado. Em baixo, na rua, a manhã seguiao seu curso: a primeira das senhoras às compras aparecera, automóveisdeslocavam-se lentamente, um homem, ao volante de uma caravanaestacionada, comia um reconfortante pão com presunto. Uma rapariga saiuda padaria com uma vassoura e começou a varrer o passeio em frente.Envergava um fato-macaco e um bom par de botas. No cimo, as gaivotasrodopiavam e empoleiravam-se no cata-vento da igreja debicando as suaspenas na manhã magnífica.Afastou-se da vista agradável com esforço, agarrou na roupa suja eatirou-a para o chão da casa de banho. Mais tarde levá-la-ia parabaixo. Entrou na sala de estar, ainda mergulhada na penumbra, e abriuos cortinados. O sol baixo entrou e encheu-a de luz. Os detritos danoite anterior ainda estavam por todo o lado: copos vazios, a garrafade uísque de Oscar; almofadões amachucados, cadeiras desarrumadas.Juntou os copos e deu uma pequena arrumação, ajoelhando-se depois pararecolher as cinzas que haviam ficado da fogueira da noite anterior - atarefa que menos gostava de fazer, mas à qual não podia fugir todas asmanhãs. Oscar dizia-lhe sempre que tratava ele do assunto, porém otrabalho dele era carregar a lenha, pelo que lhe parecia um poucoinjusto deixá-lo tratar também de um balde cheio de cinzas.Varria a lareira quando ouviu Sam dizer, atrás de si:- Elfrida, eu trato disso.- Oh! - Virou-se e viu-o à entrada da sala. Entrou, fechou a porta eela largou a escova e levantou-se, sacudindo as mãos na parte de trásdas calças axadrezadas. - Não se preocupe. Todas as manhãs faço estetrabalho. Termino mais tarde. Quais são as novidades?Sam mostrou-se aborrecido.- Receio que tenham de me aturar no Natal.- Que maravilha! - exclamou Elfrida. Depois achou que era melhormostrar um tom minimamente compassivo em relação a ele. Pobre Sam. Estápreso aqui. Não lhe resta alternativa. Conte-me o que se passa.Elfrida foi sentar-se à janela e ele instalou-se ao seu lado. O soldébil que passava pelo vidro era morno.- As estradas estão transitáveis até à Cromarty Bridge, mas a zona daBlack Isle está completamente interdita. Não passam carros em nenhumadirecção.- Devem ter tido mais neve que nós.- Pois é. Assim parece.- Carrie e Oscar estão a planear uma ida em grande ao PriceRite. Ficano outro lado da ponte. Acha que não terão problemas em lá chegar?- Até aí não há problema. Os varredores de neve devem andar atrabalhar. Mais para sul é que começam os problemas.- Telefonou para o seu hotel?330- Sim, telefonei, e também ao presidente da minha empresa, DavidSwinfield, em Londres, e a Janey.-Janey? - repetiu Elfrida com ar intrigado. Já se esquecera de quem se

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tratava.Janey Philip. Contei-lhe. A mulher de Neil.sim, claro. Desculpe. A que trabalhava para a Boothby.Exactamente. Deu uma grande ajuda. Foi à procura de um doscatálogos actuais da Boothby e fez um pouco de pesquisa. Eles têm umrepresentante nesta zona do mundo. Vive em Kingsferry e é Sir JamesErkine-Earle.Céus! - Elfrida estava muito impressionada. - Que grandioso.- Ela deu-me o número de telefone dele, mas ainda não lhe liguei,pensei em falar primeiro consigo. Para ter a certeza de que quer vendero quadro... ou, pelo menos, mandá-lo avaliar.- Mal falei no assunto a Oscar.- Prefere conversar com ele primeiro? Elfrida reflectiu por instantes edepois respondeu:- Não, porque pode tentar dissuadir-me.- Uma avaliação não pressupõe automaticamente uma venda. E, seja qualfor o seu valor, deve pô-lo no seguro.- Não me parece que possa aguentar o valor das apólices.- Então, que me diz? Telefono-lhe?Faça isso. Verei o que diz.- Deixei o telemóvel no meu quarto. Vou buscá-lo.Dito isto saiu, deixando Elfrida sozinha na sala, a olhar para o seupequeno tesouro, pendurado, sozinho, no meio de uma parede enorme.Fazia parte da sua vida há tanto tempo - o casal de idosos sentado àmesa com a sua Bíblia de família, ele sobriamente vestido, ela vistosano seu vestido vermelho e o xaile de seda amarelo-narciso, os rostosatentos, ponderados e bondosos, com uma certa dignidade e calma aemanar da sua imobilidade. Tinham sido uma companhia reconfortante aolongo de uma série de anos, acompanhando-a através de tempos detristeza e desolação. Gostava muito deles.Mas não eram tão importantes como Oscar.Cinco minutos depois, Sam estava de volta, aparentemente satisfeitoconsigo mesmo.- Tudo combinado - disse, sentando-se de novo ao lado de Elfrida.- Falou com ele? com Sir James Erskine-Earle?- Falei. Sem dificuldade. Atendeu pessoalmente o telefone e vem aCreagan hoje à tarde. Tem a ver com o monumento celebrativo aos mortosna guerra... ele faz parte de uma comissão qualquer. Passa por aquicerca das quatro da tarde, afim de dar uma vista de olhos ao seuquadro. Pareceu muito interessado.- Oh, Sam. - Elfrida começou de imediato a ficar nervosa. Não sei seconsigo esperar até lá.331Terá de ser.Oferecemos-lhe uma chávena de chá. Comprarei uns sconesPareceu-lhe pessoa simpática?Perfeitamente acessível.é muito excitante, não acha?Poderá ser.Acha que conte a Oscar?no seu lugar fá-lo-ia. Não há-de querer ter segredos para ele,pois não. Tem toda a razão. Obrigada, Sam, pelos seus cuidados!Não tem que agradecer. É o mínimo que posso fazer. Ora bem,é que Oscar vai levar Carrie a fazer compras a Kingsferry. porque nãohei-de ser eu a acompanhá-la? Assim, poderiapôr as compras no carrinho e depois carregar tudo para casa.Elfrida achou a ideia estupenda, e não apenas por aquelas razões.Óptimo. Que gentileza a sua. Oscar vai adorar. Detesta ir às compras.Tambem tenho outro motivo. - Estava cada vez melhor. - Preciso comprarroupa. Não posso passar os próximos cinco dias assim!Acha que Kingsferry tem alguma loja de pronto-a-vestir para homens?E farmácia, já que não tenho pasta de dentes.

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ElfrIda respondeu com voz animada, apesar de um pouco esmorecida.esperara que o tal outro motivo fosse ficar sozinho com Carrie:Claro que tem tudo isso.Também gostaria de comprar algum vinho para Oscar... Talvezdeva falar com ele antes de ir.Seria boa ideia. Oscar tem ideias muito definidas sobre vinho.faz muito bem.as gaivotas faziam grande alarido na manhã que aclarava,na berma do telhado alto, planando e circulando emvolta da torre, deleitadas com o ar límpido. Elfrida virou a cabeçaparavê-las.Estranhamente, gostaria de que você ficasse com esta casa. Tema dignidade e solidez que é mesmo própria para um importanteexecutivo de uma empresa - disse olhando para Sam, ali sentado com acamisolazul de Oscar, tendo a sensação de que estivera sempre ali. - Asvoltas que a vida dá, não é? O Sam com a sua chave e a queda de neve. Ecá estamos todos reunidos. É muito agradável ter gente nova competenteà nossa volta. Carrie a organizar tudo e o Sam a tomar decisões de queeu nunca seria capaz. Nunca tive jeito para tomar decisões. Agi sempresob impulso, o que por vezes foi desagradável. Oscar e eu temos sidodois velhos aqui sozinhos há demasiadotempo. Mistress Snead disse que as visitas nos animariam, mas é maisque isSO. E também sei que, sem ter realmente falado no assunto, temosandado a temer o Natal. Achei que só poderia ser triste, dadas ascircunstâncias. Mas agora que o temos a si e a Carrieconnosco, não poderá tornar-se melancólico como receavamos. Reflectiuum pouco e depois sorriu. - Seja como for, nada podemos fazer para oevitar, portanto mais vale que o tornemos alegre. Talvez acabe por seruma daquelas festas às quais desejamos escapar a Todo o custo mas queacabam por se revelar das mais memoráveis e divertidas. Compreende oque quero dizer? Sam compreendia perfeitamente o que ela queria dizer.LucyEram dez e meia da manhã e todos estavam ocupados. Sam e Carrie tinhamsaído no impressionante Discovery, rumo a Kingsferry e ao PriceRite.Antes de se porem a caminho, no entanto, fora preciso empreenderem umcerto esforço físico. Sam encontrara uma páno barracão de Oscar e retirara a neve do percurso entre a entrada dacasa e o portão, e depois limpara a neve que se empilhara sobre o seucarro com a ajuda de uma escova. A seguir, aspergira o pára-brisas comum produto antigelo. Por fim, Carrie fora ter com ele. Deram entãoinício à sua expedição de compras, armados com uma lista que nunca maisacabava, a qual fora feita depois de muito tempo e reflexão docolectivo. Carrie levava o seu casaco canelado e o chapéu de pelepreto, e Sam envergara o elegante sobretudo azul-marinho que tão bemlhe ficava. Ao afastarem-se no carro, deixaram atrás de si umaimpressão de opulência.Elfrida, depois de pendurar a sua roupa ao ar frio e parado, levaraHorace a dar uma pequena volta, só até ao cimo da colina, onde ficava ohotel, então encerrado, voltando depois para casa pela estação. Casocontrário, como ela dizia, ele ficaria com os músculos atrofiados enunca mais sairia do seu cesto. Oscar ficou sentado à lareira, na salade estar, a ler o seu jornal. Ficara nitidamente aliviado ao saber quejá não precisava de ir às compras.Lucy sentara-se à mesinha do seu quarto a traçar os seus própriosplanos. Naquela manhã, sairia para comprar os seus presentes de Natal.Entregara os da mãe e da avó antes de sair de Londres, mas aindafaltava muita coisa. Dispor de dinheiro para as férias facilitara tudo,pois assim escusava de se preocupar com os tostões.Elfrida, Oscar, Carrie. Juntava-lhes agora Sam. E Mrs. Snead. E Roty.E, se calhar, Clodagh, pois caso contrário poderia parecer um poucoesquisito.

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Não se lembrava de mais ninguém.Foi buscar a sua mochila, meteu a lista lá dentro e verificou acarteira, que exibia um volume satisfatório. Vestiu o casacãoacolchoado,337calçou as botas e desceu ao piso de baixo. A meio do caminho, espreitoupela porta aberta da sala de estar.- Oscar.- Sim, querida?- Vou fazer umas compras.- Certo.- Se não se importa, avise a Elfrida quando ela voltar.- Fica descansada.Deixou-o e continuou a descida. O Natal começava a ganhar corpo.Tinham-se traçado planos durante o pequeno-almoço e informaram Lucy deque iriam fazer um jantar na véspera de Natal, uma autêntica festa paraadultos. Em Londres, onde o Natal era, normalmente, uma celebraçãorazoavelmente pacata, a grande festa tinha lugar sempre à hora doalmoço, mas uma festa à noite significava ter algo por que ansiar o diatodo, além de que Lucy poderia pôr a sua minissaia preta nova e acamisola branca. A meio da descida, entretida com os seus pensamentos,fez uma pausa e depois, obedecendo a um impulso, abriu a porta dadesolada sala de jantar sem uso. Estava escura e triste, a precisardesesperadamente de uma boa limpeza e de cera, no entanto, a suaimaginação fê-la vê-la iluminada pela luz da lareira, de velas e cheiade comida deliciosa - acepipes como frutas cristalizadas, um pudim aubrandy flambé, cálices de vinho, travessas de prata a transbordar denozes e chocolates, e o brilho de estalinhos.Uma ideia começou a ganhar forma, mas não era altura de estar a pensarnela, portanto, fechou a porta e saiu para o meio da manhã friae agradável e o brilho ofuscante da neve. No outro lado da rua estavaum enorme camião camarário onde dois homens robustos, com a ajuda deuma escada, penduravam fiadas de luzinhas coloridas em volta e por cimada copa das árvores despidas que se encontravam no interior do recintomurado do pátio da igreja.Lucy começou a percorrer o passeio na sua ronda pelas lojas modestas.Também estas exibiam enfeites festivos, com os vidros das montrascheios de desenhos feitos com neve artificial e arranjos de azevinho deplástico e laços de cetim vermelho. Na montra do ferreiro via-se umaserra eléctrica de cadeia enfeitada com uma fita de lantejoulas e umcartão que dizia: «IDEAL PARA PRESENTE DE NATAL». Lucy teve dúvidas deque as pessoas aceitassem a sugestão, Entrou na loja de roupas edeparou com todo o tipo de camisolas, casacos de malha de lã, boinaslargas, meias e luvas. Algumas das camisolas tinham desenhos tricotadosna parte da frente, padrões étnicos que pareciam ter sido concebidospor um peruano louco. Acabou por descobrir um cachecol de caxemiravermelho, muito fino e comprido, que, tinha a certeza, ficaria muitobem à volta do pescoço elegante de Carrie. E também a aqueceria.Seguiu-se a livraria. Aí, Mister Rutley, que dirigia a loja e a quemcOnhecera no Manse, pôs-se à sua disposição. Saudou Lucy como uma velhaamiga e foi extremamente útil. Esta, depois de muito reflectir, trocarimpressões e mudar de ideias, escolheu um livro para Oscar ter namesinha da sala, cheio de fotografias coloridas, de página inteira, develhas casas rurais, castelos e jardins escoceses. Tinha a certeza deque ele iria adorar. Mr. Rutley ofereceu-se para o trocar se por acasofosse necessário, mas Lucy tinha a certeza de que Oscar nem sonharia emfazê-lo por ser o tipo de pessoa que preferia cair morto a ferir ossentimentos de alguém.Para Sam, e seguindo uma sugestão de Mr. Rutley, escolheu um mapa deCreagan e arredores, onde se incluía a cidade de Buckly. Parecia umpouco insípido, mas, por outro lado, era provavelmente a prenda maisútil que ele podia receber, já que iria viver e trabalhar nas

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cercanias. Também era caro, portanto Lucy nem hesitou e, além dele,levou também alguns cartões, papel de embrulho com azevinho e um poucode fita cintilante. Mr. Rutley guardou tudo dentro de um saco e recebeuo dinheiro.- Espero ver-vos a todos ainda este Natal, Lucy.- Eu também. Obrigada.- Divirta-se.Seguiu-se a farmácia. Aí, foi muito mais rápido. Escolheu um sabonetede lavanda para Mistress Snead e, para Clodagh, uns enfeites de cabeloque ela poderia prender na ponta das tranças. Já para Rory foi um poucomais difícil, pois Lucy não fazia a mínima ideia do que ele gostariarealmente de receber. Se ela própria tivesse um irmão, ou até mesmo umrapaz amigo, seria mais fácil escolher. Foi então que viu uma garrafaenorme de Badedas. Seu pai usara sempre Badedas, nos velhos tempos emque ela ainda era menina, antes do divórcio. Metia-se na banheira cheiade água, onde ficava de molho enquanto o vapor de água perfumado, acheirar a castanha-da-índia, enchia a metade da casa que ficava noandar de cima. Talvez Rory gostasse de tomar um banho de imersão comBadedas, depois de um longo dia no campo de golfe. Hesitou um pouco,mas, incapaz de se lembrar de algo mais apropriado, acabou por comprar.Para Elfrida, foi mais complicado. Que poderia uma pessoa oferecer aElfrida que pagasse todas as risadas e o afecto espontâneo que dera aLucy? Como não teve nenhuma inspiração na farmácia, saiu e foi andandopelo passeio, passando em frente das Frutas e Legumes de Arthur Snead.De repente teve uma ideia brilhante, voltou atrás e entrou por umaporta que fez «pingue», quando a fechou.- Mister Snead?- Ora viva!- Chamo-me Lucy Wesley. Estou hospedada na Casa da Quinta. MistressSnead é minha amiga.- Oh, sim. Ela falou-me em si.339- Se eu encomendar umas flores especiais para Elfrida, poderá levá-laslá a casa na véspera de Natal?O lojista pareceu hesitar ligeiramente, franzindo os lábios.- A véspera de Natal calha a um domingo, querida.- Bem, então que seja no sábado. Vendo bem, até é melhor qUe sejanesse dia, visto irem dar uma pequena festa.- A verdade é que, minha querida, está tudo suspenso por causa da neve.Não passa nada de Inverness e é de lá que todos os meus fornecimentosnormais vêm. Em que estava a pensar? Crisântemos? Cravos?Lucy ficou com uma expressão indecisa. - Não exactamente.- Tenho lírios stargazer lá atrás, entregues ontem, quando ainda sepassava nas estradas. Mas são caros. - Stargazers?- Ainda fechados, lindos e muito frescos. Devem começar a abrir daquia um dia ou dois. - Posso ver um? - com certeza.O homem desapareceu por uma porta ao fundo da loja e pouco depoisvoltou com uma haste, no cimo da qual se via uma florescência única,cremosa, elíptica e muito fechada. Era muito parecida com as que a avócostumava comprar na florista da esquina em Fulham, e chegavam a durarduas semanas, - Quantas tem?- Uma dúzia, mas como disse, são caras. Três libras cada. Três vezesseis eram dezoito. Dezoito libras. Mas ficariam lindas na sala de estarde Elfrida. Desabrochariam lentamente, fazendo aparecer pétalas rosapálido,e impregnariam a casa com a sua fragrância inebriante. Entãonão hesitou:- Ficarei com seis e pagar-lhe-ei agora, mas se não se importa guardaasaté sábado e vai-mas lá levar nesse dia, está bem? - com certeza. Edigo-lhe mais, farei um lindo arranjo com papel especial e um enormelaço cor-de-rosa.- Tenho aqui um cartão que comprei na livraria. Se eu escrever umaspalavras nele, poderia seguir juntamente com as flores? - Esteja

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descansada.Emprestou-lhe uma caneta e ela escreveu, «Elfrida - Feliz Natal emuita amizade da Lucy.»Meteu-o no envelope, escreveu, «Elfrida Phipps», fechou-o e entregou-oa Mr. Snead, juntamente com as dezoito libras. Era muito dinheiro. masvalia a pena.Mr. Snead fez tinir a sua caixa registadora. - Se quiser visco, aviseme.Ainda tenho um ramo ou dois, mas aquilo vende-se como pão quente.O Visco era sinónimo de beijos.- Verei - disse Lucy, cautelosamente.Despediu-se e seguiu para casa, carregada com as suas compras e atransbordar de espírito natalício.Assim que chegasse, iria directamente para o seu quarto, fecharia aporta e pôr-se-ia a embrulhar os seus presentes com o papel festivo,pondo-os depois com a fita brilhante. Depois, escondê-los-ia na gavetado fundo da cómoda. Ao atravessar a praça, viu um carro estacionado emfrente da casa de Oscar, uma velha carrinha de caixa aberta, porém nãoligou importância, pois em Creagan as pessoas estacionavam ondecalhava. No entanto, ao empurrar a porta da frente, ouviu vozes vindasda cozinha. Foi ver quem era e encontrou Elfrida a mexer uma panela queestava ao lume, e Rory Kennedy. Em cima da mesa da cozinha estava umaparelho de televisão, e ao pé, um carrinho de plástico com rodas.Quando apareceu à porta, carregada de sacos de compras, pararam defalar e viraram-se para ela, sorrindo. Rory cumprimentou:- Viva!Vestia um casaco de lã de carneiro cinzento e calçava botas deborracha, e estava com um ar muito másculo. Como a sua presença eracompletamente inesperada, Lucy ficou sem palavras, ainda que encantada.- Olá. Pensei... pensei que vinhas mais tarde. A hora do chá, porexemplo. Imaginei-te a trabalhar.-com o tempo assim, há pouco que fazer no campo de golfe. O responsávelmandou-nos a todos para casa, por isso pedi o carro emprestado ao meupai e vim trazer-te a televisão.Lucy olhou para o aparelho. Parecia muito mais sofisticado do que o quetinha em Londres.- Pensei que era velha. Não parece nada.- Arranjei uma maior para mim. Também trouxe o suporte, para o caso denão teres onde pô-la.Elfrida tirou a panela do lume, pousando-a num tripé de ferro, eobservou:- Eu acho o máximo. Iremos todos lá para cima para o sótão sentar-nos aver. Lucy, talvez seja melhor mostrares a Rory onde deve colocá-la láno teu quarto.- São quatro lances de escada - advertiu Lucy. Rory sorriu.- Acho que sou capaz.Lucy foi à frente, com os sacos de compras a bater-lhe nas pernas.- Foste às compras? - perguntou Rory, atrás dela.Lucy pensou que só ele conseguia ser capaz de carregar com todo aquelepeso escadas acima e falar ao mesmo tempo.- Fui. Presentes de Natal. Em Londres, não tive tempo. Chegaram aopatamar de cima, parando diante da porta do quarto341de Lucy. Esta entrou primeiro e atirou os sacos para cima da cama. Roryseguiu-a e pousou cuidadosamente o aparelho de televisão no chão.Endireitou-se e olhou apreciativamente em volta.- Ei, que quarto porreiro. E com montes de espaço. Está sempre assimtão arrumado?- Mais ou menos - respondeu Lucy com ar despreocupado, não querendo queele a achasse pedante.- Pois Clodagh tem o quarto sempre numa desgraça. A nossa mãe estásempre a mandá-la arrumar as coisas. Vou até lá abaixo buscar osuporte.

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Depois de ele sair, descendo ruidosamente as escadas, Lucy guardourapidamente os sacos de compras na gaveta do fundo da cómoda e fechou-afirmemente. Se ele adivinhasse que ela tinha ali Badedas para lheoferecer, ficaria envergonhada. Instantes depois, Rory voltava com opequeno suporte com rodas. Descobriram uma tomada adequada e Rorycolocou a televisão em cima do suporte, enfiando a ficha no sítio. Oaparelho dispunha de antena própria, de modo que Rory ligou-a e mexeunos botões para regular a imagem.- É realmente boa - elogiou Lucy, encantada.- Posso conseguir que fique ainda melhor.Sentado no chão, de pernas cruzadas, mostrava-se muito atento ao quefazia. Carregava em botões, mudava de canal. Num passava o Super-homem,para crianças, noutro, um filme antigo a preto e branco. Depoisapareceu uma senhora a ensinar como se faziam cartões de Natal,decorados com recortes tirados de um catálogo de sementes. Roryverificou o som e deu mais um toque na antena. Lucy instalou-se nochão, ao seu lado.... «E depois finaliza-se com um lacinho de fita bonita. Assim. Pensoque todos concordarão que qualquer pessoa ficaria encantada em receberum cartão tão personalizado.»Rory comentou:- Eu, não. - E carregou noutro botão. Estavam a dar o boletimmeteorológico para toda a Escócia, segundo o qual as caminhadas ou oalpinismo não eram aconselhados nos próximos dias.- Queres que a deixe ligada? - perguntou Rory.- Não. Já sei como trabalhar com ela. Rory desligou-a.- Faz por não tocar na antena. Acho que já a coloquei na melhor posiçãopossível.- Foste realmente uma simpatia em ma emprestar... e em trazer-ma.- Não custou nada. Assim já ficou resolvido.- Olhou mais uma vez emredor com ar admirativo. - Foi esta a mobília que a minha mãe ajudou acomprar? É muito gira. Ela adora ir ao mercado de Buckly... voltasempre com uma pechincha. Ou é uma fronha de almofada342de linho esfarrapada, um boneco de louça qualquer, eu sei lá que mais.Temos a casa cheia de tralha, mas parece que há sempre espaço para maisalguma coisa. O teu quarto em Londres é como este?- Não. Não é tão grande e nem tem esta vista da janela. Mas é bonito. Eao menos não tenho de o partilhar com ninguém. Tenho lá os meus livros,o meu computador. As minhas coisas.- Que tal é viver numa cidade?- Não é mau.- Deve ser estupendo, todos aqueles museus, exposições, concertos epeças de teatro. Só lá fui uma vez. O meu pai levou-me, numa altura emque precisou de ir a uma conferência. Ficámos num hotel e fomos aoteatro todas as noites. Foi no tempo quente e comíamos em pubs, emesplanadas, entretidos a olhar para toda aquela gente esquisita quepassava. Foi bom. Muito mais divertido que Creagan.- Para quem lá vive permanentemente, é diferente.- Penso que sim.- Para quem tem casa própria com jardim, pode ser muito agradável.Quando eu era pequena, tínhamos uma casa com jardim em Kensington, enão se ficava com a impressão de viver na cidade porque havia sempre umbocado de erva, flores, coisas do género. Mas depois os meus paisdivorciaram-se e agora eu, a minha mãe e a minha avó moramos numapartamento. Fica perto do rio e tem uma varanda com uma vista bonita,mas não há onde se possa estar. Como, por exemplo, um sítio onde umapessoa se possa estender um bocado em cima da relva a ler um livro. Aminha amiga Emma, que anda no liceu comigo, vive numa casa a sério e àsvezes fazemos um churrasco no jardim.Não conseguia lembrar-se de mais nada para lhe contar e tinha a noçãodolorosa de que tudo parecia extremamente sem graça. Passado um bocado,

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Rory perguntou-lhe:- Tens saudades de casa? Lucy fítou-o com espanto.- Saudades de casa?- Bem, sabes como é, saudades da tua mãe. Das tuas coisas. Tudo.Clodagh é um horror. Não pode ficar nem uma noite afastada de casa,chora que nem um bebé.- Não - respondeu Lucy, ouvindo a sua própria voz soarsurpreendentemente forte e precisa. - Não, não tenho saudades de casa.Nem sequer penso no regresso a Londres. Pus isso simplesmente de ladona minha cabeça.- Mas...- Tu não compreendes. Não é como aqui. Não é como esta casa, a tuacasa, cheia de gente e amigos da tua própria idade a entrar e a sair. Oapartamento é da minha avó e ela não quer as minhas amigas por lá. Dizque fica com enxaquecas. De vez em quando, Emma vai até lá, mas a minhaavó não gosta muito dela, e o ambiente fica sempre um343pouco tenso. Passamos quase o tempo todo no meu quarto. Certa vez,tanto a minha mãe como a minha avó saíram, de modo que passámos a tardetoda na casa de banho a lavar o cabelo, a perfumarmo-nos e a pintarmosas unhas com verniz prateado. Quando estou em casa de Emma podemosfazer o que nos apetece. A mãe dela está quase sempre fora, atrabalhar. Edita uma revista. E a empregada é quase sempre divertida edeixa-nos cozinhar e fazer bolos horrorosos.Calou-se, dando oportunidade a que Rory fizesse algum comentário asemelhante caudal de confidências, porém o jovem nada disse. Passado umbocado, Lucy continuou:- Aqui é completamente diferente. Uma pessoa pode fazer tudo e, se nãohá nada com que se ocupar, tem possibilidade de sair, ir às compras,passear por aí, ou ir até à praia, ou fazer umas explorações pelasredondezas, ou sair à noite sem que ninguém a impeça. E aqui todos mechamam amorzinho ou querida, apesar de, ao mesmo tempo, me trataremcomo uma adulta. Como se eu fosse uma pessoa crescida, não uma criança.A avó e a mãe chamam-me só Lucy. Nada mais. Mas nunca me sinto umapessoa a sério. Já tenho catorze anos, e às vezes sinto que nada fiz navida além de ir às aulas. Se tivesse um irmão ou uma irmã, não seriatão mau. Sobretudo um irmão, pois estar sempre na companhia de mulherespode ser terrivelmente enfadonho. Falam de vulgaridades como roupas,restaurantes ou das outras pessoas...- Que liceu frequentas?- Chama-se Stanbrook. Fica muito perto do sítio onde moro. Vou demetro. São só duas paragens. Por acaso, gosto muito de lá andar, dosprofessores, do reitor, e Emma também lá está. Fazemos coisas como ir aconcertos, exposições de pintura, à natação e a jogos no parque. Massão só meninas, por isso às vezes acho que seria francamente divertidoir para uma escola mista. Conhecem-se muitas pessoas diferentes.- E o teu pai? - perguntou Rory.- Vejo-o pouco, porque a minha mãe não gosta que eu esteja com ele e,além disso, tem uma mulher nova que também não faz gosto em me ter porperto. Tenho um avô. Chama-se Jeffrey Sutton. É o pai de Carrie. Masvive na Cornualha com uma mulher nova e dois filhos pequenos.- Não poderás ir passar uns tempos lá?- Sim, podia, mas a minha avó ficou com muita mágoa dele, e o seu nomemal é pronunciado lá em casa. Um dia encho-me de coragem e digo quequero ir lá passar uns tempos. Mas, se calhar, terei de esperar até serum pouco mais velha.- Não precisas de esperar. Tens de o fazer quanto antes.- Acho que não tenho forças para isso - admitiu Lucy tristemente. -Detesto discussões e ter de fazer valer a minha vontade. Uma vez tiveuma briga com a minha mãe e a avó por querer furar as orelhas.344Na escola todas o fizeram, excepto eu. Não tem importância nenhuma, mas

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a discussão manteve-se durante dias e, como eu já não aguentava mais,desisti. Sou terrivelmente fraca nestas coisas. Rory observou:- Acho que ficarias muito bem com as orelhas furadas. Podias usarargolas de ouro. - Sorriu. - Como eu.- Eu não poria uma, mas sim duas.- Aproveita para o fazer enquanto cá estás. Em Kingsferry há umjoalheiro.- A minha mãe morria.- A tua mãe está na América.- Como é que sabes?- Elfrida contou à minha mãe e esta a mim.- Arranjou um namorado. Chama-se Randall Fischer. Está na Florida comele. Foi lá passar o Natal. Eu também fui convidada, mas não quis ir.Só estorvaria. Além disso - acrescentou -, não simpatizo muito com ele.Rory nada disse sobre o facto, e Lucy reparou que era muito bomouvinte. Ficou com curiosidade em saber se seria um dom natural ou se opai lhe teria ensinado a importância do silêncio na altura apropriada.Recordou-se então do dia em que Carrie aparecera em Londres,precisamente numa altura em que Lucy ansiava por uma confidente.Pensara que poderia desabafar com Carrie, abrir-lhe o coração. Masesta, acabada de chegar da Áustria, estava estranhamente indiferente esem paciência para escutar fosse quem fosse. Alheada, talvez fosse apalavra, como se parte dela tivesse ficado noutro lugar. Mas RoryKennedy era diferente. Rory tinha tempo para ouvir e era compreensivo.Lucy sentiu grande afecto e gratidão pelo amigo.- Desculpa - disse. - Não tinha intenção de dizer tudo isto. Mas temsido muito divertido estar com Elfrida e Oscar, ter ido aos reels econviver com toda aquela gente da minha idade. E pensar que este ano oNatal vai ser mesmo a sério, e não apenas comer faisão assado com a mãee a avó, ou mesmo ir a um restaurante aborrecido, por elas não sequererem dar ao trabalho de cozinhar. E a neve e tudo o resto. E aigreja. E os foguetes a subir aos céus...A voz morreu-lhe. Terminara. Não havia mais nada a dizer. Pensou noapartamento, em Londres, depois empurrou a imagem para o fundo da mentee fechou-lhe uma tampa imaginária em cima. Não servia de nada recordar.Não valia a pena estragar aquele momento, aquela hora, aquele dia.Agora.Rory observava-a. Lucy fitou-o nos olhos e sorriu. Ele disse-lhe:- Hoje à tarde queres ir andar de trenó?- Tu vais?- Porque não? Telefonarei a convidar mais malta. Iremos para o345campo de golfe, tem umas ladeiras mesmo boas. - Olhou de relance para oseu relógio. - É quase meio-dia. Teremos de voltar cedo, antes deescurecer. Que tal ires agora comigo até minha casa? Peço à minha mãepara nos arranjar um farnel e depois vamos ter com os outros.- Não tenho trenó - lembrou Lucy.- Nós temos três ou quatro na nossa garagem. Levas um desses.- Pôs-se de pé. - Anda daí.- Mas a tua mãe...- Não, ela não se importará, e haverá comida suficiente para alimentarum exército. É sempre assim. - Estendeu a mão a Lucy para a ajudar alevantar. - Pára de te preocupar - disse-lhe. - Pára de levantarobstáculos no teu próprio caminho.- É o que estou a fazer?- Agora já não.346Elfrida347A ida às compras a Kingsferry fora coroada de sucesso: Sam e Carrie nãosó tinham trazido uma série de caixas de cartão repletas de comida -legumes, cereais, fruta e petiscos de Natal - como também caixas de

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garrafas de vinho, grades de cerveja, Coca-Cola e seis garrafas deuísque Famous Grouse. E mais, tinham conseguido dar uma volta pelaslojas de roupa masculina, onde Sam se munira de um guarda-roupa desenhor rural: calças de bombazina, camisas de flanela, um sweatercanelado grosso, um par de botas Timberland e um casaco Barbour. Assimcomo, sem dúvida - Elfrida era demasiado discreta para perguntar -roupa interior, meias e os materiais básicos necessários para fazer abarba, tomar banho, lavar os dentes e aparecer sempre agradavelmentecheiroso e apresentável.Sam vestiu as suas roupas novas para o almoço, e todos admiraram a suaaparência discreta e despretensiosa. Terminada a refeição, vestiu o seuBarbour e acompanhou Oscar ao clube de golfe, onde Sam marcara encontrocom o secretário para falarem da possibilidade de se tornar membro.Elfrida, que ficou a vê-los caminhar lado a lado ao longo do passeiocoberto de neve, pensou que era bom Oscar gozar de um pouco decompanhia masculina.Ela e Carrie ficaram a preparar a chegada, marcada para as quatro datarde, de Sir James Erskine-Earle. A primeira coisa a resolver era ondelhe iriam servir o chá. Elfrida pensou na cozinha - não valia a penaestarem com cerimónias -, porém Carrie disse que isso estaria muitocerto para alguém que se conhecia, mas que, se calhar, Sir Jamesficaria um pouco desconcertado se lhe pedissem que enfiasse os joelhosdebaixo da mesa da cozinha e tomasse o seu chá numa caneca.Elfrida compreendeu o ponto de vista da prima.- Então é melhor irmos para a sala de estar.- O quê? Todos sentados à volta da lareira?- Porque não?- Os homens detestam estar sentados, a não ser que estejam treinadospara isso, como os pastores. Não se entendem com chávenas, pires349e bolinhos, tudo ao mesmo tempo. Podemos pôr as coisas em cima da mesaem frente da janela, tudo como deve ser, como a mãe costumava fazer.- Tentarei descobrir uma toalha bonita.- Há uma guardada no louceiro de Mistress Snead. Queres que faça unsscones?- Sabes fazê-los? - exclamou Elfrida, impressionada.- Claro que sei. E tu podes ir ao padeiro buscar uns bolinhos finos.Elfrida vestiu o casaco e saiu. O padeiro não tinha bolinhos finos,mas, em vez disso, sugeriu pão de gengibre a Elfrida, que comprou um,assim como um frasco de doce de amora-preta de fabrico caseiro.- Vai dar alguma festa, Mistress Phipps? - perguntou a rapariga ao darlheo troco.Elfrida respondeu-lhe que não, não era propriamente uma festa, mas sima visita de alguém para o chá da tarde.Quando voltou à Casa da Quinta, os scones de Carrie já estavam no fornoe cheiravam deliciosamente. Elfrida desembrulhou o pão de gengibre e odoce, arranjou um tabuleiro onde colocou os melhores pratos, chávenas epires da casa, ainda que desirmanados. Descobriu um açucareiro, umatacinha para a manteiga e, até, uma faca para a mesma.- Vamo-nos armar em nobres - observou.Desencantou umas colheres de chá e deu uma boa esfregadela ao interiordo bule do chá.Foi ao piso de cima e encontrou uma toalha de linho no louceiro. Tinhaum pouco de goma, de modo que, depois de um pouco de ferro, ficou comum ar muito festivo estendida em cima da velha mesa. Colocou cincopratos e facas de sobremesa, as chávenas com os pires, assim como atacinha da manteiga e o frasco do doce. Não havia flores, mas quemsabe, Sir James Erskine-Earle não se importasse com isso. Afastou-se damesa com o tabuleiro nas mãos e olhou para o pequeno quadro penduradona parede em frente que, possivelmente, a partir daquele dia deixariade ali estar. Estava ligeiramente torto, pelo que foi endireitá-lo,dando-lhe uma pequena pancadinha de afecto, como se fosse uma criança

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encorajada a portar-se bem.- Se não tiver tempo para me despedir - disse-lhe Elfrida -, faço-oagora. Foi muito agradável ter-te comigo.Oscar e Sam voltaram do clube de golfe a horas e com boa disposição. Aentrevista com o secretário do clube fora satisfatória. Sam ficara asaber que havia uma lista de espera para novos sócios, mas como eleiria morar em Buckly, era bem possível que pudesse passar à frente.Tinham sido apresentados ao comandante e a outros membros, e depois deadmirarem retratos e trofeus, regressaram a casa a pé.Oscar apreciara nitidamente a saída. Elfrida, recordando a outra ida350ao clube que tão desastrosamente terminara com um ataque de pânico euma fuga, agradeceu silenciosamente aos céus, enquanto subia ao piso decima para pentear o cabelo cor de fogo e passar nova camada de bâtonnos lábios.Quando Sir James Erskine-Earle chegou, ao bater das quatro da tarde,revelou-se uma surpresa. A campainha da porta soou estridentemente eElfrida foi abrir. Ficou um pouco perplexa por deparar com um homem tãojovem e que, apesar de vir de uma reunião sobre o monumento dehomenagem às vítimas da guerra, se apresentava como se tivesse idofazer jardinagem, com umas calças de golfe em tweed muito gastas e umcasaco que parecia ter perdido a maioria dos botões. A camisa tinha ocolarinho coçado e o pulôver exibia um pequeno orifício. Quando lheabriu a porta, ele tirou o boné de tweed e Elfrida reparou que usava ocabelo fino cortado à estudante.- Mistress Phipps?- Sim. Sir James, como está? - Trocaram um aperto de mão. Faça o favorde entrar. - Ao conduzi-lo escadas acima, disse-lhe: Fico-lhe grata porter vindo tão rapidamente.- Não tem que agradecer. - Possuía uma voz encantadora e um sorrisoingénuo. - Sempre apreciei ocasiões em que me pedem que veja algo deespecial.Elfrida levou-o até à sala de estar e apresentou-o aos outros, queestavam todos com ar muito pouco à vontade, como se Sir James Erskine-Earle os fosse avaliar a eles.- Oscar Blundell. Carrie Sutton, minha prima, e Sam Howard, que vemdirigir a velha fábrica de lanifícios em Buckly.- Falámos ao telefone. Que esplêndido conhecê-lo. Está na Sturrock &Swinfíeld? Andei com um dos Swinfíeld em Eton, mas não creio que fosseo seu presidente. - Olhou em volta. - Que casa mais surpreendente! Defora ninguém diria do seu esplendor. Fez parte de Corrydale, suponho.- É verdade, mas já lá vão alguns anos - respondeu Oscar. Talvez tenhaconhecido o meu tio, Hector McLellan?- Vagamente. Trabalhei em Londres durante alguns anos. Só vim para oNorte após a morte do meu pai, e instalámo-nos todos em Kingsferry. Foium certo choque cultural para a minha família, mas agora já sehabituaram completamente.Aproximou-se, como era de esperar, da janela, como acontecia a quem alientrava. Estava escuro, mas Elfrida não correra os cortinados, de modoque se viam as árvores, no outro lado da rua, enfeitadas com as suasluzinhas de Natal que brilhavam como jóias, tendo ao fundo a velhaparede de pedra da igreja.- Que panorama. E tão perto da igreja. Devem conseguir ouvir a músicado órgão. Instrumento maravilhoso. Cheios de sorte. - Voltou-se para ospresentes. - Mas não devo fazer-vos perder mais tempo com as minhasobservações. Onde está o quadro que desejam que eu veja?351- Está... - Elfrida aclarou a garganta. - Está aqui.- Compreendo. Em estado de isolamento.- Não temos mais nenhum.- Posso tirá-lo da parede?- Faça favor.

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Sir James Erskine-Earle atravessou a sala e pegou delicadamente nelepela moldura, tirando-o para baixo, segurando nele como se fosse umapeça da mais fina porcelana.- Que cena mais encantadora.- Inclinou-o sob a luz do candeeiro que seencontrava na mesinha de Oscar. - Sir David Wilkie.- É verdade. Pelo menos sempre assim acreditei.- Um retrato de seus pais. Sabiam? Pintado, suponho, cerca de miloitocentos e trinta e cinco.- Não sabia que eram os pais. Pensei que se tratava apenas de umsimpático casal de idosos.Fez-se silêncio. Todos aguardavam o seu veredicto, ligeiramentenervosos. Sir James Erskine-Earle levou o seu tempo, tirando primeiroum par de óculos sem aros de dentro de um dos bolsos do seuirrepreensível casaco. Quando os colocou, ficou a parecer um jovemestudante pobre. Talvez de medicina, já que as suas mãos eram sensíveise delicadas como as de um cirurgião. Olhou de perto, examinou, apalpoucom a ponta dos dedos, virou o quadro e inspeccionou a parte de trás.Por fim, pousou-o cuidadosamente em cima da mesinha de Oscar.- Como é que tomou posse dele, Mistress Phipps?- Foi um presente. Faz muito tempo... uns trinta anos... de um amigo.- E sabe onde ele o comprou?- Penso que numa loja de quinquilharia em Chichester.- Pois.- Acenou com a cabeça. - É de calcular.- Eu sempre... sempre acreditei, fui levada a acreditar... que se tratade um original. Mas nunca o mandei avaliar nem segurar.O nobre fitou-a, com a luz do candeeiro a fazer faiscar os seus óculos,e esboçou o mesmo sorriso cativante de pouco antes. Virou-se de modo aapoiar-se à mesa e tirou os óculos. Disse então:- Tenho muita pena, mas não é um original. Trata-se de uma cópia. Osilêncio petrificado que se seguiu deveu-se ao facto de ninguémconseguir lembrar-se de alguma coisa para dizer.- É um trabalho encantador e lindamente executado, mas não é ooriginal.Oscar reencontrou a sua voz:- Como é que sabe?- Por um lado, não está assinado. Concordo que o tema é,inconfundivelmente, o de Wilkie, mas não tem assinatura. A outra razãoque me leva a chegar a essa conclusão é, estranhamente, o original terpassado pela sala de leilões da Boothby, na Bond Street, há não mais de352um ano. Foi para um comerciante dos Estados Unidos que licitava em nomede um museu qualquer. Era maior que o seu pequeno quadro, MistressPhipps, o que me leva a crer que quem fez esta cópia nunca pensou emfazê-la passar pelo original; terá sido mais um trabalho motivado pelorespeito e pela admiração. Talvez tenha sido um estudante, desejandoemular o estilo do mestre. Não há dúvida de que se trata de umaimitação extraordinária... o traço do pincel, a cor, a luz. Uma belaobra de arte. Se considerarmos a imitação como a forma mais sincera delisonja, quem lançou mãos a uma tarefa tão esmerada é digno deadmiração.O silêncio encheu, mais uma vez, a sala. A certa altura, Elfrida fez atão temida pergunta:- Quanto vale, Sir James?- Por favor trate-me por Jamie.- Bem... quanto pensa que vale, Jamie?- Se fosse o original, diria que andaria pelas oitenta e cinco millibras. Não me recordo da soma exacta por que foi vendido, mas terásido um montante desse género.- E sendo apenas uma cópia?- Umas mil? Talvez mais, talvez menos. Dependerá do mercado. As coisassó têm valor se alguém as deseja.Mil libras. Uma cópia, que não valia mais de mil libras. O pequeno

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tesouro de Elfrida, a sua segurança para dias de pobreza e solidão. Millibras. Curiosamente, perante si própria, não se importava muito. Nãovalia a pena vendê-lo, portanto poderia continuar a desfrutar dele parao resto da vida. Mas sabia que, para Oscar, era uma desilusão enorme.Todos os planos que ela fizera para comprar a parte de Hughie eassegurar o futuro de Oscar tinham ido por água abaixo. Todos os seussonhos ficaram reduzidos a pó, a lixo. Visionou-os como que arrastadospara longe, para fora de alcance, qual espuma num rio de correnterápida. Desaparecidos.Por um momento pavoroso imaginou-se prestes a rebentar em lágrimas.Algo desesperada, voltou-se para Carrie e viu que esta tinha os lindosolhos escuros pousados em si, transbordantes de carinho e compreensão.Elfrida abriu a boca para dizer algo, mas não lhe saíram palavras, demodo que Carrie veio em seu socorro.- Penso - disse ela -, que é melhor eu ir lá abaixo aquecer água paratomarmos todos uma reconfortante chávena de chá.Sam falou então, pela primeira vez desde que fora apresentado a JamieErskine-Earle:- Eu vou consigo, para lhe dar uma ajuda.Elfrida sabia perfeitamente que não eram precisas duas pessoas para pôruma chaleira com água ao lume, mas ficou-lhe grata por ter o tacto dese afastar de uma situação tão melindrosa. Deu consigo a desejar queSir James Erskine-Earle também se retirasse. Fora convidado a353ir ali avaliar o pequeno quadro e não era por culpa sua que se tratavade uma fraude, porém a sua sabedoria e perícia estragara muitasexpectativas e, agora, Oscar não tinha alternativa senão vender a suametade da casa. Não se importava propriamente de que Sam ficasse com acasa, o que a apavorava era Oscar não ficar com ela.Depois dos outros saírem, gerou-se um silêncio profundo. Talvez Jamiesentisse a desilusão de Elfrida, pois voltou a repetir:- Lamento muito.Elfrida não controlou a impaciência, nem com ele nem consigo:- Oh, por amor de Deus! A culpa não é sua.O avaliador voltou a pendurar o pequeno quadro com cuidado e precisão.A velha senhora do xaile amarelo fitou-o do alto, benevolente, aocontrário de Elfrida, que não foi capaz de fazer o mesmo.- Ao menos... continuará a proporcionar-lhe alegria - observou ele.- Nunca mais será como antes.Oscar, sentindo a tensão, meteu-se na conversa.- Apesar de tudo, continua a ser muito precioso para Elfrida. Estoualiviado por não haver motivo para sair de junto dela.- Oh, Oscar, eu tenho todos os motivos. E apenas um quadro. Mas não pormil libras. Essa quantia dá vontade de rir.- Elfrida. Tem calma.Elfrida virou as costas a ambos e foi até junto da lareira, ansiosa poralgo que a aliviasse da desilusão recebida. Tirou um toro do cesto dalenha e atirou-o para o meio da fogueira. Ficou a vê-lo pegar fogo echama.Então, atrás de si, Jamie voltou a falar:- Lamento, espero que não me tome por curioso, mas de quem é aqueleinteressante relogiozinho?Elfrida pensou, por instantes, que ouvira mal. Voltou-se e olhou paraJamie com expressão intrigada.- Aquele relógio?- Chamou-me a atenção. É tão fora do comum... Oscar esclareceu-o:- É de Elfrida.- Será que lhe posso dar uma olhada?Elfrida assentiu. Desviou-se para o lado. Jamie pôs novamente osóculos, aproximou-se e tirou o relógio do lugar que ocupava no meio dacornija da lareira. Ela e Oscar ficaram, pela segunda vez, a vê-loexaminar silenciosa e minuciosamente o objecto. Elfrida decidiu que, se

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ele lhe dissesse que não passava de um bibelô sem valor, ela lheatiraria a pá do carvão à cabeça.Sir James Erskine-Earle disse:- Trata-se de um cronómetro de viagem. Maravilhoso. Como é que tomouposse deste pequeno tesouro?354_ Refere-se a um tesouro sentimental ou a um tesouro de facto?Jamie respondeu delicadamente:Não estou bem certo.Elfrida elucidou-o com brusquidão:Foi-me deixado por um padrinho idoso. Um velho lobo-do-mar.Então, dando-se conta de que estava a mostrar-se irascível, abrandou:Como pode ver, um dos ponteiros é para as horas, outro paraos minutos e o terceiro para os segundos. Tenho de lhe dar corda todosos dias. Se calhar, podia adaptar-lhe uma bateria, mas parece que...Deus nos livre. É demasiado raro para isso.- Raro? Tem a certeza de que não é apenas um relógio velho e antiquado?- Prático. Mas também muito bonito.Elfrida olhou para o relógio que o avaliador tinha nas mãos e viu queganhava imediatamente um novo brilho, como acontecia quando um objectofamiliar era admirado por outras pessoas. O cabedal do exterior estavamuito usado, mas o interior conservara-se brilhante e escuro; e atampa, que se fechava sobre ele como a capa de um livro, estava forradacom um veludo, desgastado, cor de coral. Em volta do mostrador, onde seencontravam os ponteiros, o cabedal fora decorado com uma grinalda defolhas douradas em miniatura, desenho que se repetia no rebordo daarmação. A chave da corda, as dobradiças e as fechaduras minúsculaseram todas em metal.- Nem sequer sei quantos anos tem. Talvez mo possa determinar- observou Elfrida.- Infelizmente não sou perito em relógios. No entanto - acrescentou ele-, tenho um colega que é. Se quiser, se mo permitir, poderei mostrarlheeste relógio.- Porquê?- Porque penso que é especial.- Em que aspecto?- Utilizamos a palavra tesouro.- Quer dizer que vale alguma coisa?- Preferia não me pronunciar. Não sou suficientemente especializado.- Por acaso não valeria setenta e cinco mil libras, não? - perguntouElfrida abruptamente, à espera de um meneio negativo de cabeça ou, até,de uma risada irónica.Porém, Jamie Erskine-Earle não se riu. Retorquiu:- Na verdade, não lhe sei dizer. Mistress Phipps, não se importa...Permite-me que o leve comigo? Se não conseguir apanhar o meu colega,pelo menos poderei falar-lhe pelo telefone, ou enviar-lhe umafotografia do relógio. Claro que lhe passarei um recibo por ele, eguardá-lo-ei a sete chaves. 355A situação tornou-se repentinamente cómica.- Na casinha que eu tinha no Hampshire - contou-lhe Elfridaele ficava em cima da cornija da lareira da minha sala de estar enem sequer fechava a porta à chave.- Então devo felicitá-la pela sua boa sorte. Não está no seguro -acrescentou, constatando uma situação, não fazendo uma pergumta.- Não, claro que não está. É apenas um pequeno objecto que já tenho háanos e levo para todo o lado comigo.- Se me é permitido reiterar as suas palavras, um pequeno objectomuito especial. Dá-me licença de que o leve comigo?- com certeza.- Se pudessem arranjar-me uma caixa... ou algo em que o embrulhar. Omeu lenço não é exactamente o mais adequado.Oscar aproximou-se da sua mesinha, abriu uma gaveta e tirou de dentro

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desta uma folha de bolhinhas de ar, que guardara de um embrulho delivros novos.- Isto serve?- Perfeito. E uma folha de papel para eu lhes passar o recibo?Normalmente, trago um livro oficial comigo, mas hoje, claro, deixei-oem casa.Entregou o relógio a Oscar, que o embrulhou muito bem. A seguir, eErskine-Earle sentou-se na secretária e passou o seu recibo.- É melhor eu ficar com ele - disse-lhe Oscar. - Elfrida temten«dência a perder coisas.Guardou-o então no bolso de cima do seu casaco.- Só há um pormenor - disse Elfrida.- Do que se trata, Mistress Phipps?-Não falemos muito do relógio quando Sam e Carrie voltarem.Estamos todos demasiado abalados por causa do David Wilkie e não meagradaria alimentar falsas esperanças mais uma vez. Poderemossimplesmente dizer que o senhor acha que devemos segurar o relógio eque me vai fazer uma avaliação, está bem?- com certeza. É uma explicação excelente. Além disso, não deixa deser verdadeira.Nessa noite, ao tentar decidir-se sobre o que fazer para o jantar,sentiu que passara a tarde inteira numa montanha-russa. E toda aquelaexcitação, desilusão e expectativas reavivadas tinham feito com quenunca mais se lembrasse de Lucy. Estava a mexer, distraidamente, omolho à bolonhesa quando a jovem apareceu, entrando na cozinha pelaporta dos fundos.Elfrida olhou de relance para o velho relógio da cozinha. Eram quasesete da tarde. Olhou fixamente para Lucy, tentando lembrar-se do que ajovem andara a fazer todo o dia.Sim, sou eu - disse-lhe Lucy.- Oh, querida, desculpa.Elfrida olhou para mim como se eu fosse a última pessoa queesperava ver.Estava completamente alheada. Aconteceu tanta coisa aquique tu simplesmente me saíste do pensamento. Mas agora voltaste aentrar, o que é uma delícia.- Que aconteceu? - perguntou Lucy tirando o barrete de lã e começando adesabotoar o casaco. - Perdi alguma coisa?- Nem por isso. Recebemos apenas a visita de um homem simpático, queveio tomar chá connosco. Carrie fez scones. Acho que sobraram muitopoucos.- Quem era o homem simpático?- Chama-se Sir James Erskine-Earle. Vive na Casa de Kingsferry.- Acabei de estar em Kingsferry. com Rory - contou Lucy.- Pensei que ias andar de trenó.- E fui, mas depois escureceu e fomos até Manse lanchar. A seguir eu eRory demos um pulo a Kingsferry.- Fizeste mais compras?- Não. Não exactamente.Elfrida, cuja curiosidade ficara desperta, sentiu-se intrigada. Lucytinha uma expressão secreta, provocadora. Como se não conseguisse pararde sorrir.- Pareces o Gato de Cheshire. O que é que andaste a tramar? Lucy levoua mão ao cabelo comprido e atirou-o para trás das costas. Elfridareparou no brilho dourado.- Mandei furar as orelhas. Foi o joalheiro de Kingsferry. Rory é que melevou lá. E ofereceu-me estas argolas como prenda de Natal. São mesmode ouro.- Oh, querida...- Era um desejo muito antigo.- Deixa-me ver.- A minha mãe nunca me autorizou.

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- São lindas. Ficas com um ar muito crescido. Que presente tãogeneroso!- Acho que nunca me ofereceram nada que eu quisesse tanto.LucyAinda quarta-feira, 20 de Dezembro Penso que este foi um dos melhoresdias da minha vida. Montes de neve por todo o lado e tudo muito lindo.Esta manhã fui fazer compras de Natal equando voltei para casa, Rory estava cá a falarcom Elfrida, com o televisor que prometeu emprestar-me. Trouxe-o aquipara o meu quarto, pô-lo a funcionar e sentámo-nos a conversar. Não seiporquê, mas não custou nada falar-lhe de tudo: de achar Londres umtédio, assim como ter de viver num apartamento, e também da minha mãe,da avó e de Randall Fisher. E do pai e de Marilyn e da família quetenho na Cornualha. Foi tão bom ter alguém que me escutasse seminterromper e estar sempre a tentar animar-me ou a agradar-me, ou atémesmo a dizer que eram só disparates meus. Ou que não percebesse do queeu estava a falar. Ele apenas escutou.Quando acabei de lhe contar tudo, fomos até Manse e Mistress Kennedypreparou-nos beefburguers, Rory telefonou a alguns amigos e fomos todospara o campo de golfe escorregar de trenó na neve, o que foiextremamente divertido e deixou-nos a cair para o lado. Andámos detrenó até ficar completamente escuro e depois voltámos para Manse, ondeRory pediu o carro emprestado ao pai. Mister Kennedy disse que sim eRory levou-me a Kingsferry. É uma cidade muito antiga e fora do comum,com muitas lojas. Estacionámos o carro, fomos a um joalheiro e o homemfurou-me as orelhas, foi um instante e não doeu nada, colocando-meentão umas argolinhas de ouro próprias para o efeito. Contei a Rory quenão estava autorizada a usá-las em casa, mas ele disse que eu agora nãoestava em casa, mas sim com ele, depois pagou o trabalho e os brincos,dizendo que era o seu presente de Natal para mim.No caminho de volta conversámos mais um pouco no carro, e eu tenho asensação de que cheguei a um ponto de viragem na minha vida. Rory dizque tenho de me lembrar de uma série de coisas.361tenho boas notas na escola, portanto não sou estúpida.Se não me tornar um pouco mais assertiva em relação às coisasninguém o fará por mim.Tenho de me afirmar através de um diálogo lógico, não amuando.Se quero ir à Cornualha ver o meu avô, Serena, Amy e Ben, devomesmo ir. Não há absolutamente nada que possa impedir-me de ofazer. Basta tratar das minhas coisas, pedir ao meu avô que meconvide e pronto.Tenho de ser mais empreendedora. Sei muito bem tomar conta demim mesma. Conheço os perigos, como é o caso dos comprimidosecstasy nas festas; das bebedeiras, drogas, exibicionistas, maníacossexuais e de velhos solitários que nos abordam nas estações deauttocarros. Talvez devesse prosseguir os meus estudos até um grausuperior. Faltam dois anos para ter de tomar uma decisão. Nunca tinhapensado nisso. Enfiarei a ideia na cabeça da minha mãe e acabarei porconvencê-la. E farei com que Miss Maxwell-Brown fique do meu lado. Eserá já daqui a dois anos.O facto de ter algo de novo para planear e pelo qual ansiar, fazcom que me sinta muito mais determinada.Quem me dera ter um irmão como Rory.o, não queria. Porque se ele fosse meu irmão, não seria amesma coisa.As orelhas não me doem. Quando a minha mãe e a avó as virem,perceberão que mudei. Que farei valer a minha vontade. Que posso tomaras minhas próprias decisões. Já não sou uma criancinha.Receberam aqui um senhor para tomar chá, chamado Sir Jamesmkine-Earle. Levou o relógio de Elfrida para ser avaliado. Carrie disseque ele comeu seis scones.

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Amanhã é o primeiro dia do resto da minha vida.SamSam abriu os olhos no meio da escuridão e sentiu um ; frio terrível.Fora este que o acordara, apercebendo-se então de que o edredão lheescorregara da cama e, por isso, ele tremia debaixo do confortoinsuficiente de dois cobertores e um lençol de linho de monogramabordado. As cortinas da sua janela estavam, como de costume, puxadaspara o lado, mas aquela estava aberta - embora fosse apenas uma pequenafresta - o que fazia com que sentisse uma lufada de ar gelado investirfuriosamente contra si, provocando-lhe a mesma sensação que se temquando se abre uma arca frigorífica. Durante a noite, a temperaturadescera para um nível desconfortavelmente baixo.Debruçou-se para o lado, apanhou o edredão e arrastou-o de novo para oseu lugar. Continuava frio, porém o seu peso suave e macio era umconforto. Enquanto esperava que o corpo aquecesse, estendeu a mão ecarregou no botão do candeeiro da mesinha-de-cabeceira para ver ashoras: eram sete e meia da manhã.O quarto, ao qual já se habituara completamente, estendia-se à suavolta, com os recantos mergulhados na sombra. A mobília era escassa: umguarda-fato enorme, dentro do qual se encontrava tudo o que naquelaaltura possuía, e um lavatório que fazia de toucador - composto por umatina às flores e um jarro para água. O único espelho existenteencontrava-se dentro do guarda-fato e havia, ainda, uma pequena cadeiratrabalhada. Não era um quarto para trabalhar nem para se estar nele, noentanto servia perfeitamente para dormir.E para fazer telefonemas de negócio do seu telemóvel.Deixou-se ficar a aquecer lentamente, perguntando a si mesmo porquetudo aquilo lhe daria tanta satisfação. Concluiu que as proporções doquarto eram as ideais, as paredes desnudas prazenteiras, os cortinadosde cretone ralo e desbotado, suficientemente compridos para cair emfestões sobre a carpete gasta, faziam-lhe lembrar os de sua mãe navelha casa em Radley Hill. Estavam presos a aros de metal douradoenfiados numa vara do mesmo metal que terminava com uns ananases naPonta, e que, quando corridos, faziam um barulho agradável.365O som trouxe-lhe à memória a voz da mãe: «Querido, acorda. Está quasena hora do pequeno-almoço.»Nostalgia, talvez, mas no seu melhor.com o resto da casa passava-se o mesmo. A amplidão, as bonitas divisõesmeio vazias, com as suas cornijas trabalhadas e as portas altaSapaineladas. A escada de degraus baixos, erguendo-se em lances até aosótão, com o seu corrimão de pinho do Báltico polido, a cozinha,antiquada mas perfeitamente utilitária, as casas de banho, apaineladascom tábuas «macho-fêmea» pintadas de branco, com acessórios vitorianosoriginais e lavatórios dotados de reservatórios de água cujas correntese manípulos tinham escrito «Puxe».Tudo lhe dera a impressão, desde aquela primeira noite embaraçosa deter regressado a casa.Gostara da casa desde o primeiro instante. Dissera-lhe algo, dera-lheas boas-vindas. Recordou a extraordinária cadeia de acontecimentos queo levara até ali naquela altura particular, sendo depois obrigado aficar devido às condições atmosféricas. Dava a impressão de que tudofora cuidadosamente planeado pelo destino, por algum ser, felizmentebenigno, por influência da estrela que o guiava ou, quem sabe, pelomagnetismo incompreensível de velhas demarcações de terreno.Conhecer Hughie McLellan em Londres fora o primeiro elo da cadeia.Entregara-lhe a chave da sua casa em Creagan. Ele próprio atirara umamoeda ao ar dentro do carro, em frente do pátio da igreja, em Buckly.Se tivesse calhado cara, teria ido directamente para Inverness e, muitoprovavelmente, conseguiria atravessar a Black Isle antes da neve atornar intransitável. Porém, em vez disso, saíra-lhe coroa, de modo quefizera o desvio para passar por Creagan.

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Se, por acaso, Sam tivesse encontrado a casa fechada e desocupada, comoesperava, não se teria demorado por ali. Tencionara apenas localizá-lae observar o seu tamanho; a aparência de sólida dignidade vitorianater-lhe-ia bastado para assegurar o seu regresso para uma vista deolhos mais pormenorizada. No entanto, não a encontrara vazia. Dasjanelas de cima saíam jorros de luz e, com a curiosidade desperta,apeara-se no passeio em frente, atravessara o carreiro até à porta etocara à campainha.A partir daí ficara cativo e não houvera como voltar atrás.Naquele momento, já ali morava há dois dias, na companhia de outrasquatro pessoas vagamente relacionadas entre si, e ficaria até o Natalpertencer ao passado. Tencionara passar aquele período de tempo breve aanalisar as suas próprias prioridades para a fábrica, a trabalhar com oseu computador portátil e a calculadora, no entanto, era obrigado aaceitar o ócio imposto, porque tanto computador como calculadora,ficheiros, telefones e documentos essenciais, tinham ficado no seuquarto de hotel em Inverness. A única coisa que levara para a suareunião em Buckly fora o telemóvel, uma pasta fina e a chave da Casa daQuinta.366Como era impossível trabalhar, não tivera dificuldade em desligar eabrandar até alcançar um estado de espírito que já não experimentava háanos. Os horizontes estreitaram-se. As prioridades alteraram-se. Era umpouco como estar a bordo de um barco, isolado do resto do mundo, emboraintensamente envolvido com os outros passageiros. Desconhecidos que, apouco e pouco, iam-se tornando na família que já não tinha. A casa, talcomo aquele navio, tinha-os a todos dentro de si, e fazia-o com umacerta graça, como que contente por ter, mais uma vez, as divisõesespaçosas cheias, as portas abertas, as lareiras acesas, vozes a falar,passos nas escadas.Uma casa esplêndida, que Sam desejava possuir. Aí é que estava oproblema. Queria comprá-la a Hughie e a Oscar e ficar com ela para si.A sua localização era perfeita - levaria apenas vinte minutos, todas asmanhãs, a percorrer as estradas sem movimento até à fábrica e depois,no fim do dia de trabalho, o mesmo tempo para voltar para ela. Podia ira pé até ao clube de golfe. Se precisasse de uma cerveja, um pão ou umpacote de leite, bastava-lhe atravessar a praça e ir ao supermercado.Além disso, seria uma casa com futuro. O seu futuro. Ao possuí-la, Samjamais teria de partir. Ao contrário de uma minúscula casa de coberturaplana ou de uma pequena vivenda pitoresca, pintada de rosa, esta tinhacapacidade para albergar tudo o que quisesse meter lá dentro. Era estasensação de longevidade que mais o atraía. Em breve teria quarentaanos. Não queria continuar a andar de um lado para o outro, a comprar ea vender, a começar de novo. Queria ficar. Ali.No entanto, metade dela pertencia a Oscar Blundell, e era ali que ele eElfrida viviam. Além da casa, parecia que só se tinham um ao outro.Hughie descrevera Oscar como um tipo insípido. «O meu primo é um tipoinsípido.» Sam, porém, não achava Oscar minimamente insípido. Gostavaimenso dele, o que não facilitava nada a situação.Se Sam fosse Hughie, não se teria metido na questão do pequeno quadrode Elfrida. Jamais se teria dado ao trabalho de telefonar para Janey,em Londres, afim de descobrir o paradeiro do representante local daBoothby, Sir James Erskine-Earle. Elfrida é que se lembrara de vendêlo,mas tinha tão pouco sentido prático que nunca conseguiria, só porsi, empreender nenhuma iniciativa tão dinâmica. A visita de JamesErskine-Earle, ao fim do dia, nada resolvera porque, fosse como fosse,o quadro era uma imitação. Portanto, todos tinham voltado à estacazero. De certo modo, Sam teria gostado que o David Wilkie fosse umararidade autêntica e valesse um milhão, para ele assim poder pôr delado as suas ideias impraticáveis e ir à procura de outro sítio paraviver.E no entanto... não era capaz de afastar da ideia de que era ali,

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naquela sólida casa vitoriana, quadrada e sem adornos, que ele iriapassar o resto dos seus dias.Reflexões inúteis. Afastou-as da cabeça com um certo esforço, levantouseda cama e foi fechar a janela. O seu quarto ficava na parte de367trás da Casa da Quinta, e a luz do candeeiro de rua junto ao portão demadeira permitiu-lhe ver o quintal que subia aos socalcos até aoaglomerado de pinheiros, tudo petrificado pelo frio, resplandecente degeada. Não corria a menor brisa. O silêncio era total.Nos seus tempos de rapaz, no Yorkshire, de vez em quando levantava-semuito cedo e ia dar um longo passeio pelas charnecas, até algumpenhasco elevado de onde pudesse ver o Sol nascer. Nenhuma madrugadaera exactamente igual, e o céu a encher-se de luz parecera-lhe sempreum milagre. Lembrava-se de voltar a casa, depois dessas expediçõesmadrugadoras, a correr por campos verdejantes, saltando córregos, arebentar de energia e boa disposição, ciente de que muita da suafelicidade vinha da certeza de que, quando finalmente chegasse a casateria um lauto pequeno-almoço à sua espera.Há muito tempo que não assistia ao nascer do Sol. Naquele dia, o maiscurto do ano, talvez fosse uma boa altura para repetir a experiência.Vestiu-se, apertou os atacadores das botas, vestiu o seu Barbour,apalpou os bolsos à procura das suas luvas grossas de cabedal paraconduzir. Saiu silenciosamente do seu quarto, fechou a porta atrás desi com toda a cautela e depois desceu até ao andar de baixo. Ao chegarà cozinha vazia, encontrou Horace a dormitar no seu cesto.- Queres ir dar uma volta?Recuperado do seu encontro com o rottweiler, Horace quis. Sam encontroua lista de compras de Elfrida, escrevinhou-lhe uma mensagem. A seguir,foi ao bengaleiro do corredor buscar o seu boné de tweed e um cachecolque, embora não lhe pertencesse, lhe aconchegou reconfortantemente azona do pescoço. Fez girar a chave da porta da frente, abriu-a e saiupara o meio do frio escuro e paralisante da madrugada. A neveenregelada rangeu ruidosamente sob as suas botas. Ao abrir o portão,ouviu o barulho de um motor e viu o enorme camião de arenito, de faróisacesos e o limpador de neve recolhido, arrancar da praça e enveredarpor uma rua abaixo, em direcção à estrada principal.Sam e o cão seguiram na direcção oposta.Foram para o lado do campo de golfe e da praia, deixando os candeeirosde rua da vila para trás. O céu estava límpido e via-se uma únicaestrela no céu escuro, mas nas margens afastadas do mar, a névoapairava. A maré estava vazia, a areia gelada e as poças baixas, no meiodas rochas, duras como aço. O vento, que soprava do norte, mostrava-secortante como uma faca, levando-o a ajeitar melhor o cachecol em voltado pescoço e por cima do queixo. Lembrou-se de outras terras àquelalatitude, apenas um pouco mais para sul. Para ocidente, além doAtlântico, Labrador, baía de Hudson, Alasca. Para leste, a Escandináviae a imensidão da Sibéria. Aí, um homem que saísse fora de portas porcinco minutos, certamente congelaria até à morte. E, no entanto, eleali estava, a passear pela praia como qualquer veraneante, com um cãopela trela e sem se perturbar minimamente com o frio.368A corrente do Golfo era, de facto, uma invenção maravilhosa.Percorreu toda a extensão da praia em passo acelerado, depois voltou-separa o interior. Subiu por dunas, atravessou o carreiro, as duas parteslisas do campo de golfe, em seguida trepou por uma colina, abrindocaminho pelo meio de moitas de tojo. Quando chegou ao topo, estavacheio de calor por causa do esforço, enquanto Horace arquejavafuriosamente. Chegou junto de uma cerca e de uma série de degraus.Naquela altura, já o negrume do céu dera lugar a um cinzentoempalidecido,e a estrela desaparecera. Encostou-se à cerca, protegidodo vento que soprava do norte pelo tojo denso e virou-se de frente parao mar. Avistou a longa linha do horizonte, a baía a desaparecer de

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vista até ao ponto onde o farol ainda piscava. Para lá deste, asudoeste, o céu estava manchado de rosa, a luz que nascia tornadadifusa pela névoa. Era um excelente ponto de observação. Olhou para orelógio e viu que eram oito e quarenta. Sentou-se num dos degraus demadeira da escada e aguardou.O cão acomodou-se junto dos seus joelhos. Sam tirou uma das luvas epousou a mão na cabeça do animal, afagando-lhe o pelo macio e sedoso eas orelhas aveludadas. O mundo, o universo, pertenciam, naquelemomento, só aos dois. Do alto daquela pequena elevação de terreno,parecia infinito, acabado de inventar, imaculado, como se a Criaçãotivesse sido apenas no dia anterior.Lembrou-se, sem nenhuma razão especial, da tarde em que, estava ele emLondres, percorrera a King's Road no lusco-fusco húmido, as ruasatravancadas de pessoas às compras e de trânsito, e dissera a si mesmoque não havia uma única pessoa no mundo à espera de um presente seunaquele Natal. Assim, chegara a Creagan completamente desprevenido. Masa partir dali precisava de se atarefar e fazer com que, na manhã deNatal, tivesse embrulhos para entregar. Quatro. Eles eram quatro. Outalvez cinco, se incluísse a misteriosa Mrs. Snead, que ainda nãoconhecera. Oscar, Elfrida, Lucy. Carrie.Carrie.Depois de perder Deborah, fechar o seu apartamento, sair de Nova Iorquee voltar a Londres e a um trabalho novo, a última coisa que lhe poderiaocorrer era a possibilidade de outra mulher entrar na sua vida. Naquelemomento, um envolvimento emocional fazia-lhe tanta falta como um buracona cabeça. Mas Carrie estivera à sua espera, o último elo naquelaextraordinária cadeia de coincidências, contribuindo para a sensação deque ele não passava de um simples peão no jogo de outra Pessoaqualquer. Percorrera o carreiro coberto de neve, entre o portão e aPorta da Casa da Quinta, e tocara à campainha. E fora Carrie quemacabara por lhe abrir a porta.Carrie, com os seus cabelos castanhos, os seus olhos escuros eexpressivos, a sua esbeltez, o seu pescoço longo. A inclinação dassobrancelhas, o sinal fascinante num dos cantos da boca. A sua voz,profunda369e com um toque quase imperceptível de riso, para que ele nuncapercebesse bem se estava a brincar ou falava a sério. Tinha os pulsosfinos, as mãos com dedos longos e habilidosos, sem as unhas pintadas ena direita usava um anel de diamantes com uma safira que parecia terlhesido dado um dia por algum homem fascinado por ela, louco paracasar com ela. Ou, talvez, por algum parente idoso muito querido.Era completamente desprovida de artifício. Se não tinha nada paradizer, ficava calada. Se opinava, fazia-o de modo ponderado, reflectidoe inteligente. Parecia não perceber o sentido da tagarelice sem sentidoe enquanto os outros conversavam durante as refeições ou a tomar umabebida, ao fim do dia, mostrava-se sempre atenta, mas, frequentementeem silêncio. A sua relação com Elfrida e Lucy era, no entanto,profundamente carinhosa. Lucy entrava e saía, mas recebia sempredemonstrações de afecto dela, abraços casuais, um ouvido atento. Risos.Quanto a Sam, este não conseguia perceber o que Carrie pensava de si.Ela mostrava-se completamente à vontade, senhora da situação, mas, aomesmo tempo, reservada ao ponto do retraimento. A única vez em que ativera só para si por mais de cinco minutos - na ida ao hipermercado deKingsferry - ele julgara-se capaz de abrir caminho através dessabarreira, mas sempre que a conversa derivava para Carrie e a sua vidaprivada, esta calava-se e depois desviava a conversa. Quando Sam tiverade procurar uma loja de roupa masculina para se munir de algumas peças,tarefa que se revelara algo difícil, contara que ela entrasse na lojacom ele, fizesse sugestões, até brincasse com a sua escolha de calçõese pijamas (que tinham a designação de Vestuário íntimo) ou insistisseem lhe escolher alguma gravata horrenda e inadequada. Carrie, porém,

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lograra todas as suas expectativas. Em vez disso, atravessara a ruapara ir a um latoeiro comprar uma forma nova para bolos e outra parapudins, destinadas a Elfrida. De modo que Sam fez as suas comprasíntimas sozinho, e, quando voltou para o carro, encontrou-a à suaespera, a ler o The Times, sem mostrar o mínimo interesse no que elelevava.Sam deu consigo a imaginar se ela teria alguma vez sido casada, massabia que jamais teria coragem para lhe fazer semelhante pergunta. Nãotinha, afinal de contas, nada com isso. Naquela primeira noite,enquanto tinham estado à espera de que Oscar e Elfrida regressassem doseu convívio, ela ainda deixara escapar alguma informação superficialsobre si mesma. Não se alargara acerca de nada, não se prontificara afornecer nenhuns dados sobre a sua pessoa, ficando ele com a sensaçãode que havia uma poderosa porta, firmemente fechada, entre ambos e quenada convenceria Carrie a abri-la.Quando se falara de Lucy, Carrie mostrara-se mais aberta.Também falara do pai; fora então que a sua voz se enternecera, oslindos olhos brilharam e se mostrou mais animada e informativa. O paichamava-se Jeffrey, vivia com a segunda mulher, muito mais nova, na370Cornualha. «É um homem espantoso», dissera Carrie. «Extremamentegeneroso. Ficou com a minha mãe, apesar de infeliz, até Nicola e euchegarmos ambas à idade adulta e nos tornarmos independentes. Sónessa altura é que se afastou e nos deixou para ir viver com Serena.Elenão foi apenas meu pai, mas sim o meu melhor amigo. Abriu todas asportas, nunca cessou de elogiar, de incentivar. Sempre acreditei que,com um homem assim por trás de mim, seria capaz de fazer qualquercoisa.»Qualquer coisa. De repente, porém, algures no meio do caminho algocorrera mal. Mas Carrie não estava disposta a esclarecer Sam sobreisso.Quanto menos ela falava, quanto menos deixava escapar, mais ele ansiavapor saber. Não seria aquela obsessão o começo de uma paixão por ela?Caso contrário, porque se importava tanto? E que sentido faziaapaixonar-se por uma mulher já tão profundamente comprometida com a suacarreira e a sua família heterogénea? Uma mulher que nunca na vida seafastaria deles para ir viver para o Norte da Escócia com Sam Howard.Independentemente do facto de ele ainda ser casado com Deborah.Horace mudou de posição e ganiu, pois começava a ficar gelado. Samtambém estava com frio, mas não se mexeu. É que, ao olhar de novo parao céu, vira que a fina camada rósea explodira numa auréola de vermelhoe amarelo, espraiando-se em faixas vaporosas que faziam lembrarlabaredas. Por cima das colinas baixas do promontório distante assomavaa primeira faixa de um Sol cor de laranja. O rebordo recurvo de luzfaiscante tocou no mar agitado, esbateu sombras nas ondulações de areiae aclarou a escuridão do céu, ao ponto de este passar gradualmente doazul-marinho para a cor de água-marinha.Ficou a ver a esfera cor de laranja erguer-se no lado de lá do pontomais afastado do mundo, e perdeu mesmo todo o sentido do tempo. Era omesmo milagre que se renovava todos os dias desde o limiar dos tempos,e esqueceu-se do frio. O piscar irritante do farol cessouimediatamente. O novo dia nascia; a partir dali, os dias começariam atornar-se cada vez mais longos, depois viria mais um ano, e Sam, aopensar nele, não foi capaz de imaginar o que lhe reservaria.Voltou para Creagan em passo acelerado, seguindo pelo carreiro estreitoque se estendia no cimo do campo de golfe coberto de neve. A névoacomeçara a dissolver-se e o céu mostrava-se de um azul-claro límpido,com raras nuvens. Quando chegou junto das primeiras casas, viu que amanhã já seguia o seu curso: carros iam e vinham, lojas abriam, osprimeiros compradores saíam à rua com os seus cestos e sacos deplástico. O talhante varria a neve dos degraus do seu estabelecimento e

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uma jovem mãe empurrava um carrinho de madeira onde levava o seu bebébem agasalhado.371Sentia uma fome devoradora.Quando entrou em casa, também se apercebeu de que reinava grandeactividade dentro desta. Do piso de cima chegava o barulho de umaspirador Hoover, e uma voz feminina cantava uma versão muito pessoalda velha canção dos Beatles:«I love you, yeah, yeah, yeah...»Devia ser a inconfundível Mrs. Snead, sem dúvida, a tratar da limpezada casa.Da porta aberta da cozinha saía luz e o cheiro de fazer crescer água naboca de bacon e café. Sam desprendeu a trela de Horace, tirou as luvase entrou. Deparou com Carrie, sentada à mesa e rodeada dos detritos dopequeno-almoço das outras pessoas. Bebia café e lia o The Times, mas aolevantar os olhos e vendo que era ele, cumprimentou- bom dia.Naquela primeira noite, apenas há dois dias atrás, quando ele saíraintempestivamente do meio da escuridão e da neve, levando na mão achave de Hughie McLellan, ficara varado com o encanto inesperado darapariga que lhe abrira a porta. Ela acabara de se levantar da cama,onde estivera doente, o que lhe dera uma aparência empalidecida, frágile profundamente vulnerável. Ainda assim, achara-a sensacional. Naquelemomento, no entanto, a gripe era algo que pertencia ao passado,derrotada pela resistência da juventude. Esta manhã, vestia umacamisola de caxemira vermelha, cuja cor intensa a tornava mais viva,radiante e atraente que nunca. O bem-estar que sentia naquele momentodeu-lhe uma vontade quase incontrolável de lhe tocar, de a envolver nosseus braços, de beijá-la, derrubando barreiras imaginárias e começandoa falar.- O passeio correu bem?Impulsos loucos, prudentemente reprimidos.- Creio que me afastei demasiado. Horace está exausto.O cãozito regalava-se a beber água ruidosamente, entornando parte nochão.- Deve estar gelado.- De modo nenhum. Até tenho calor, do esforço. Mas estou esfomeado.- Há bacon - disse-lhe ela, depondo o jornal e levantando-se.- Já tinha adivinhado.- Farei café fresco.- Carrie, eu posso fazer isso.- Deixe estar. - Havia um prato no aquecedor, coberto por um outro.Carrie pegou nele, depois de enfiar umas luvas para forno, pousou-o emcima da mesa e, com um pequeno floreado, destapou-o. Ele viu não sóbacon como também ovos, uma salsicha e um tomate frito. Tudo tinha umar muito apetitoso. - Eu é que faço. Quanto a si, sente-se e coma.372sam olhou para o banquete com um certo espanto. .- Quem cozinhou tudoisto? -Eu. Calculei que tivesse fome. Sam sentiu-se enternecido.É um amor.Não foi nada de especial.Sam sentou-se e passou manteiga numa torrada.Onde estão todos?Carrie encheu a chaleira de água e ligou a ficha.- Oh, por aí. Já todos tomaram o pequeno-almoço. Acho que MistressSnead veio e Elfrida anda a fazer camas. Oscar está ao telefone. Estamanhã temos de ir buscar a árvore de Natal. Ele sugeriu que o Sam ofizesse com o seu carro... dispõe de mais espaço para carregar umaárvore, além disso, Oscar tem um pouco de medo de conduzir com neve.- Onde é que tenho de a ir buscar?- À quinta de Corrydale. É para lá que ele está a telefonar nestemomento. Um homem qualquer chamado Charlie Miller. Está tudoencomendado, mas ele quis ter a certeza de que lá estará quando

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fôssemos.- Fôssemos? Vai comigo?- Oscar desenhou um mapa. Terei de ser a sua navegadora. Além disso,quero ir a Corrydale. Oscar falou-me muito daquele sítio. A avó deleviveu lá, depois o tio e, por fim, Hughie. E Oscar também costumava láir passar férias quando era rapaz. Diz que os relvados e o jardim eramum espanto, mas claro que agora está tudo diferente porque foi tudoconvertido num hotel. Seja como for, gostaria de conhecer. O hotel estávazio, portanto, se Charlie Miller concordar, podemos dar uma vista deolhos pelo sítio.Sam, que comia o seu bacon sem proferir palavra, não cabia em si desatisfação. Não podia imaginar melhor maneira de passar aquela manhãesplendorosa do que ir a Corrydale com Carrie, tomar posse da árvore deNatal e dar uma vista de olhos. Seria interessante ver o que HughieMcLellan um dia possuíra e desbaratara. No entanto, limitou-se aresponder, «Certo», e continuou a comer, pois não queria que Carriereparasse no seu prazer e retrocedesse.Carrie deitou o café moído no pote e depois encheu-o com água a ferver.- Quer que lhe faça mais torradas?- Gostaria muito.Carrie fez mais torradas, coou-lhe o café, voltou a encher a suapróPria chávena e voltou para a sua cadeira. Sam ficou esperançado deque iriam passar uns agradáveis momentos na companhia um do outro, mas,como não podia deixar de ser, acabaram por ser interrompidos por Lucy,que desceu as escadas a correr e entrou intempestivamente na cozinha.- Carrie, Mistress Snead diz que vai lavar roupa branca e pergunta Sequeres aproveitar. Olá, Sam. O seu passeio com Horace foi bom?373- Podes crer.- A que horas foram?- Por volta das oito. Ainda estava escuro. Assistimos ao nascer do Sol.- Oh, que lindo! Quem me dera ter ido. Nunca vi um nascer do Sol asério. Deve ter sido maravilhoso, com toda aquela neve a cobrir o campode golfe. Como na Suíça ou coisa do género. ?- Sam e eu vamos a Corrydale buscar a árvore de Natal. Queres virconnosco? - perguntou Carrie.- Oh... - Lucy fez uma cara de pena. - Oh, eu adoraria, mas prometi aMistress Snead ajudá-la numa tarefa qualquer. Por isso não posso. E euque queria tanto conhecer Corrydale!Sam, adorando Lucy por não ir, declarou:- Eu levo-te lá noutra altura.- A sério? Promete? Oscar diz que é o sítio mais bonito do mundo e quea avó costumava lá ter azáleas lindas, de todas as cores. E o terrenodesce até à água, onde ele costumava ter um barco.Mrs. Snead guinchou do andar de cima:- Lucy! Então essa roupa? Quero-a toda junta... Carrie fez umaexpressão cómica.- É melhor fazeres o que ela disse, senão ainda arranjas sarilhos. Vai,Lucy...Então Sam, vendo que tudo corria a seu gosto, bebeu o café acabado defazer e sentiu-se animado como um estudante bem alimentado prestes ater uma sobremesa especial.O pequeno mapa de Oscar com indicações sobre Corrydale demonstrou serum plano meticuloso de tudo o que se encontrava dentro da protecção dazona limítrofe. A área parecia ser constituída por um pequeno labirintode estradas e caminhos, maciços de arvoredo e uma imensa linhacosteira. Cada casa de trabalhador da quinta tinha linhas próprias enome: casa de Billicliffe; casa de Rose Miller; casa do guardaflorestal;casarão da quinta. A última era a do jardineiro (CharheMiller), que se erguia ao lado do jardim murado e do barracão dotractor. Um pouco mais afastada, à beira de mais um carreiroserpenteante que corria paralelamente à água, erguendo-se isolada e com

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uma certa grandeza, desenhara a Casa de Corrydale, rodeada por jardinsformais e com o terreno circundante a descer, em socalcos, até aoscampos na orla do estuário.O mapa fazia lembrar as badanas de um livro de Whinnie-the-Pooh1, noentanto Carrie afirmou que era uma obra de arte e devia ser emoldurado.1. Whinnie-the-Pooh: personagem de célebre banda desenhada americana.(N. da T.)374A estrada por onde Sam e Carrie seguiram levou-os para território ondenenhum dos dois nunca se aventurara. Em vez de atravessarem a norte atéKingsferry, viraram à direita antes de chegarem a esta e foram Pelaestrada antiga, que rumava para oeste, serpenteando pelo meio de terraagrícola, descendo e subindo, correndo por avenidas altas de faiascomo num túnel. A neve tudo cobria com uma grossa ca£mada, no entanto,a manhã mantivera a sua promessa: o céu continuavasem nuvens, o ar gélido e cintilante. Havia pouco trânsito e viam-sepoucas pessoas: um tractor a atravessar ruidosamente um campo com umcarregamento de feno destinado a um rebanho de carneiros; umamulher a pendurar roupa lavada ao ar gélido e parado; uma carrinhados Correios a subir por uma ladeira cultivada, cheia de sulcos.À sua esquerda estendia-se o vasto braço de mar que penetrava cerca devinte e cinco quilómetros pelo continente adentro. A maré estava aencher e a água exibia um azul de Verão. Na margem afastada, as colinascompactas erguiam-se para o céu, todas ofuscantemente brancas, exceptoonde a rocha escura se projectara, abrupta, ou onde cavidadescirculares, para onde rolavam detritos rochosos, se tinham criadonalguns flancos, quais cascatas de pedra.- É tudo gigantesco, não é? Até o céu parece o dobro do que se vê emqualquer lado - disse Carrie.Levava a sua parca preta acolchoada e o chapéu de pele, e pusera óculosescuros para se proteger do brilho intenso.- Penso que é de não haver nevoeiro nem poluição. O ar é completamentelímpido. Sabia que cinco dos melhores rios de salmão da Escócia corrempara este braço de mar?- Quem lhe contou?- Oscar.- Se calhar pescava lá nos seus tempos de rapaz.- Rapaz cheio de sorte.Carrie analisou atentamente o mapa de Oscar.- Penso que estamos quase a chegar. Primeiro aparece o muro, depois oportão principal fica a cerca de quarenta metros...O muro delimitador surgiu quase imediatamente, à esquerda da estrada.Atrás deste viam-se lindas árvores, criteriosamente plantadas,sugerindo um parque. Quando chegaram junto do portão principal, viramque tinha uma enorme Wellingtonia de cada lado. Da chaminé de umcasinhoto subia uma fina coluna de fumo, havia uma corda de secar roupaao ar livre e um tractor de plástico de criança abandonado no degrau daporta da frente.Repararam na tabuleta.HOTEL DE CORRYDALECá vamos nós - declarou Carrie.375Sam entrou pelo portão e enveredou pelo caminho arranjado Que desciapela vertente da colina, ladeado de carvalhos majestosos. Viam-se-lhetrilhos abertos por veículos anteriormente passados por ali, e sombrasazuladas das árvores desenhavam-se na neve. Cerca de quarenta metrosmais adiante, a estrada bifurcava e aí havia um poste com uma tabuletade madeira. Para a direita, VISITANTES DO HOTEL. Esse caminho, não forautilizado, tinha a cobertura de neve imaculada. Mais à frente, CASA DAQUINTA E SERRAÇÃO, portanto continuaram em frente. Carrie consultou omapa de Oscar:- A seguir chegamos a outra bifurcação e vamos para a esquerda até

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vermos a casa de Billicliffe.- E quem é Billicliffe?- Era o antigo feitor deste sítio. Elfrida e Oscar tiveram de ir buscara chave a casa dele. Elfrida contou-me que era um velho maçador. a casaestava uma desgraça e que ambos não foram muito simpáticos com ele. Acerta altura, tornou-se uma dor de cabeça para todos, porque adoeceugravemente e Oscar teve de o levar para o hospital no carro. Onde aindase encontra. Ali está a bifurcação onde viramos para a esquerda.O trilho aberto por pneus continuava. Era, nitidamente, um acesso muitousado. A certa altura apareceu, afastado da estrada, a primeira casados trabalhadores da quinta.- Ali está - indicou Carrie - o sítio onde o major Billicliffe vive.Sam, curioso, abrandou, afim de lhe deitar uma olhadela. Era umapequena casa de pedra, de construção sólida, com um alpendre rural eduas janelas de água-furtada abertas no telhado de ardósia. No pequenoacesso que ia do portão à porta, com uma cobertura de neve no mínimo devinte e cinco centímetros, estava um velho Vauxhall, enferrujado,triste e abandonado. As janelas da casa estavam completamente fechadas,não havia nenhuma luz nem fumo a sair da chaminé.- Que sitiozinho sombrio - observou Carrie.- Nada brilha quando não é habitado.Continuaram lentamente em frente, os pneus a chiar sobre as raízescobertas de gelo. A estrada curvava e virava graciosamente ao acaso.Num outro canto, lá estava a casa de Rose Miller, uma visãocompletamente diferente: arranjada e alindada, com cortinas de rendanas janelas e umas galinhas a cacarejar alegremente no pequeno quintal.A dona da casa acendera a lareira e no ar pairava um delicioso cheiro afogo de turfa.Prosseguiram pela estrada sinuosa, passaram a casa da quinta e um pátioa tresandar a estrume, um pasto com carneiros, depois mais outra casa,a do guarda-florestal, com canis e um carreiro que ia dar às traseirasda casa, de onde dois spaniels apareceram a ladrar desalmadamente.376Ainda bem que não trouxemos Horace connosco - observouCarrie. Teria um ataque de coração e morreria.NaqUela altura já o braço de rio voltara a estar visível, com campos aestenderem-se até à água. Mais árvores, outra casa, e depois o muro, anorte, do jardim fechado, um belo edifício em pedra com um par deportões em ferro forjado no meio. Por trás erguia-se o barracão enorme,com as portas grandes escancaradas, e ao lado deste, o venerável LandRover salpicado de lama. Sam parou o carro e os dois apearam-se. Assimque o fizeram, um jovem saiu do interior do barracão, com uma velhacadela labrador amarela atrás de si. Estava , de fato-macaco, botas deborracha e chapéu de caçador de copa baixa, com a pala bem inclinadasobre o rosto.- Charlie Miller?sim, sou eu. Tem calma, Brandy, e não saltes para cima da senhora. Ésuma cadela parva e sem maneiras.Eu não me importo - disse Carrie, sorrindo.Se ela a sujasse com as patas, importava-se.- Virou-se paraSam - o senhor deve ser Sam Howard.- Exactamente. E esta é Carrie Sutton.Prazer em conhecê-la - disse Charlie Miller, apertando a mão aCarrie. - Oscar telefonou-me. Vieram então buscar a árvore; está nobarracão. Façam o favor de entrar.Seguiram-no até ao interior sombrio do barracão que servia,nitidamente, para várias funções. Sam viu uma pilha de caixotes combatatas, um amontoado de troncos serrados, uma série de velhas caixasde fruta, nabos metidos em sacos de rede. Cheirava intensamente aterra, serradura e óleo de motor. Apoiada a um velho tractor Fergusonestava a árvore que vinham buscar.- Oscar disse que um metro e oitenta chegava, por isso escolhi esta.

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Tem um bom formato e os ramos todos inteiros.- Parece-me óptima.- São duas libras cada meio metro. Doze libras. Têm onde fixá-la?- Por acaso não sei. Oscar não falou nisso.- Eu tenho isto.- Charlie tirou uma armação de madeira rudimentar presacom pregos de um canto. - Foram feitas pelo filho do homem da quinta,vende-as a duas libras cada.Sam olhou para o objecto com ar indeciso.- Funcionará?- Oh, sobre isso não tenha dúvidas.- Certo.Charlie colocou-o ao pé da árvore.- Portanto são catorze libras. - Saltava à vista que não era homem derodeios.Sam tirou quinze libras da carteira e entregou-lhas.- O filho do homem da quinta que fique con o troco. Merece-o, quantomais não seja pelo espírito de iniciativa.377- Eu digo-lhe - prometeu Charlie, guardando as notas dentro do bolso dofato macaco. - Querem que vos carregue a árvore para o carro?- Se não se importa, agradecíamos muito. Baixámos o banco de trás, porisso deve haver espaço suficiente.- Sem problema. Carrie então perguntou:- Charlie, acha que podemos dar um passeio por aqui? É a primeira vezque venho a Corrydale e gostávamos de conhecer melhor a zona e ver acasa. Mas se for privada ou não pudermos...- Claro que podem. Vão aonde vos apetecer. Mas olhem que o hotel estáfechado e não há muito que ver nos jardins.- Não nos importamos. Qual é o melhor caminho?- Voltam para trás, até à casa do Billicliffe, e depois viram nabifurcação à esquerda. Assim irão ter aos jardins e à casa. Encontramaí um carreiro que desce até à água e um outro que vem até aqui pelabeira-mar. Enquanto dão o passeio, aproveito para atar a árvore e metêlano vosso carro, e se não me encontrarem aqui quando voltarem, éporque fui jantar.- Obrigado.- Não tem de quê. bom passeio.Fizeram-se ao caminho, esmagando raízes geladas sob os pés, o aragradável como o vinho fresco, o sol fraco a aquecer-lhes as costas e afazer com que flocos de neve derretida caíssem dos ramos superiores dasárvores. Estas, despidas de folhagem, formavam desenhos que faziamlembrar renda negra contra o azul brilhante do céu. Passaram pelaquinta e pela casa do guarda-florestal; seguiu-se o portão do quintalda habitação encantadora de Rose Miller.- É o tipo de lugar - observou Carrie -, onde uma pessoa sente que sepode aninhar e passar o resto da vida.Depois de ultrapassarem a casa abandonada do major Billicliffe, saíramda estrada e enveredaram pelo carreiro que levava à casa principal. Adeslocação não era fácil, pois a neve estava intacta e bastante alta.- Em tempos deve ter havido por aqui muito dinheiro. É umempreendimento grande, com todas aquelas casas para trabalhadores, aquinta, o jardim murado e o resto. Gostaria de conhecer as origens.Refiro-me à riqueza - disse Carrie.- De alguma indústria, provavelmente. Estaleiro de navios, aço, essetipo de coisa. Ou ligações com o Extremo Oriente. Barcos, chá, teca.Não sei. Teremos de perguntar a Oscar.- Oscar não parece ser dono de nada.- Pois não. Não creio que tenha grande coisa.- Que terá acontecido a todo este dinheiro?378O que aconteceu em todo o lado. Os velhos morreram e o Estado levouuma grossa fatia dos bens pelo direito sucessório. O custo de vida

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subiu em flecha. A guerra mudou tudo. Seguiu-se-lhe um declíniogradual- Depois, tipos como Hughie tomaram posse, desbarataram o restodo capital e, por fim, venderam o que restava. No Sul de Inglaterra, omais provável era toda esta terra estar atravancada de vivendas de luxoe propriedades privadas. Mas como isto aqui é muito remoto e a cadeiahoteleira tomou conta da casa principal, esta foi conservada de modo aficar, pelo menos, com o mesmo aspecto original.Porque será que Oscar não herdou? Teria dado um proprietáriode terras magnífico.- Penso que não tinha direitos. Hughie era o primogénito do filho maisvelho. Um azar para todos aqueles a quem provou ser um desqualificado.- Parece injusto, não é?- Carrie, a vida é injusta.- Lamento pelo Oscar. Ele merece melhor, ele e Elfrida. Deviam ter umlugar onde pudessem viver juntos e a que chamassem seu, com a certezade que não teriam de partir. Gostaria de ser rica para poder tomarconta deles, comprar-lhes uma habitação agradável e fazer com que nadalhes faltasse para o resto da vida. Preferia não ter estado lá quandolhes disseram que o David Wilkie era uma imitação e valia tão pouco.Elfrida estava tão esperançada! E tinha a certeza absoluta de que eraum pequeno tesouro que os ajudaria a prosseguir e lhes daria segurança.Foi muito doloroso vê-la tão desconsolada e abatida. Senti-meconstrangida.- Eu também - lembrou-lhe Sam.- Mas consigo é diferente.- Diferente porquê?- Porque se eles não tiverem dinheiro, o Oscar ver-se-á forçado avender-lhe a sua metade da casa, e o Sam obterá aquilo que o trouxe atéaqui.- Acha que sou esse tipo de monstro?- Não sei. Não o conheço suficientemente bem. Ignoro o seu modo depensar.Sam deixou o assunto esfriar. Não valia a pena precipitar uma discussãotão no início do seu passeio. Em vez disso, perguntou:- Acha que eles ficarão juntos?- Sabe tanto como eu. Acho bem provável. Nenhum dos dois tem maisalguém no mundo. Mas aonde é que viverão?- Onde estão agora. Se Oscar não quiser vender, Hughie não poderá fazêlo.- Nesse caso, que fará o Sam?- Procurarei outro sítio.- Em Buckly?379- Não faço ideia. Até agora, mal vi as redondezas à luz do dia. muitomenos tentei inteirar-me de alguma casa à venda.Durante algum tempo, Carrie nada disse. Caminhavam em andamento rápido,as pernas longas dela a par das suas, abrindo caminho através da neve.À sua esquerda, os campos cobertos de neve estendiam-se à beira da águado estuário e, à direita, um pequeno bosque de faias antigas revelavapequenos vales estreitos e aberturas no meio dos enormes troncos dasárvores, onde a neve se mostrava salpicada de rastos de coelhos e depássaros. No alto, gralhas crocitavam e das árvores despidas vinha opiar prolongado e gorgolejante de um maçarico.Carrie declarou subitamente: - Gostaria de conhecer a sua fábrica.Sam, que nunca a imaginara minimamente interessada, ficou estupefactoperante a sugestão.- A sério?- Não parece muito crédulo.- Acontece apenas que não há muito que ver. Espaços amplos, vazios ehúmidos, algumas cubas de tingir e umas quantas peças de maquinaria quese salvaram.- Mas disse-me que era um edifício protegido. Que, só por si, erainteressante. Pode obter acesso? Tem chave?

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Falava a sério.- Claro que tenho.- Podemos ir lá um dia destes?- Se quiser.- Gosto de ver edifícios e casas vazias. Lugares despidos, paredesnuas. Gosto de imaginar como eram e de tentar visualizar como poderiamficar. Deve andar excitadíssimo com tudo isso, ansioso por vencer odesafio e deitar mãos ao trabalho.- É verdade - respondeu Sam, pensando no assunto e nos problemasaparentemente inultrapassáveis que ainda tinha de resolver. Mas, aomesmo tempo, é uma perspectiva deveras assustadora. De vez em quandoficarei, sem dúvida, frustrado, impaciente e até violentamente zangado,mas as dificuldades podem ser estimulantes, sobretudo se alguma outrapessoa acreditar que podem ser ultrapassadas. Em Buckly tenho umexcelente homem, Fergus Skinner, ao meu lado. Deposito muita confiançanele.- Mesmo assim é um grande passo para quem trabalhou em Nova Iorque.- Se eu fosse muito mais novo, provavelmente não teria aceite otrabalho. Mas já estou com trinta e oito. Andei por aí e por ali e fizvárias coisas. Para mim é precisamente a altura certa para mudar decurso. Apesar de toda a alta finança do mundo, nada é mais satisfatóriodo que voltar às raízes do negócio.- Foi uma descida na escala.380De certo modo, sim. Mas, compreende, nasci e cresci no comércio doslanifícios e no íntimo acredito que nada é mais bonito, confortável etão exactamente correcto como um casaco de tweed impecavelenteconfeccionado. Enfrentará ventos e tempestades e ao fim do diaestará perfeitamente apresentável à mesa de jantar de quem quer queseja. Adoro o cheiro e o toque do tweed. Adoro o som das engrenagensbem afinadas, o entrechocar dos teares, os pistões monstruosos dasmáquinas. E gosto das pessoas que trabalham com tudo isso, os homense mulheres que têm o fiar, o tecer e o tingir na massa do seu sangue,jácom duas ou três gerações por trás. Estou, portanto, no meu própriomundo.Considero-o afortunado.- Por causa do meu trabalho?- Não apenas por isso.- Carrie calou-se, levantando o rosto para o céu,onde um bútio voava, bem no alto. - Por ter vindo viver para aqui. Paraeste lugar imenso, limpo e saudável. - Continuou a falar:- Pense só no que pode fazer: jogar golfe, caçar gansos e faisões,pescar num desses rios de salmões de que me falou. - Reflectiu. -Pesca?- Sim. Costumava fazê-lo com o meu pai em Yorkshire. Mas era truta, nãosalmão. Já a caça não aprecio tanto.- Eu também não. Aqueles pássaros tão queridos a tombarem do céu. NoSavoy comemo-los e parecem do tamanho de canários.Naquele momento já conseguiam avistar, mais à frente, o muro do jardimformal, encimado por uma cerca de ferro forjado trabalhado. O carreiroconduzia até um portão de ferro forjado, ladeado por postes que exibiambrasões em pedra com leões entrelaçados por rosas espinhosas, que oInverno enegrecera.Ao chegarem ao portão detiveram-se, olhando através do entrelaçado dearabescos intrincados para o jardim que se estendia do outro lado:relvados, subindo em socalcos, pousando o olhar, pela primeira vez, naCasa de Corrydale. Era uma mansão vitoriana, com cornijas e torreões,construída com pedra avermelhada, parte da qual oculta por umatrepadeira. Era grande e, talvez, um tudo nada pretensiosa, porématractiva sob um ponto de vista de prosperidade e longevidade. Asjanelas estavam todas fechadas, mas voltadas a sul; os vidros faiscavame brilhavam, reflectindo o sol. Num dos lados do terraço do topo havia

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um Porta-bandeira alto e pintado de branco, porém sem nenhuma bandeira.- Lindo - observou Carrie passado um bocado. - Que bons tempos Oscardeve ter passado aqui.- Gostaria de viver aqui? - perguntou Sam.- Refere-se a esta casa? A este lugar?- Não. Refiro-me simplesmente ao sítio. Creagan. Sutherland.- Tenho um emprego. Em Londres. Preciso dele. Tenho de ganhar a vida.381- Imaginemos que não precisava. Ficaria bem aqui? Era capaz de seenfiar em semelhante meio ambiente?- Não sei. Acho que teria de me preparar. De sopesar todos os prós econtras. E para deixar Londres preciso de ficar livre. Sem compromissos. Sem responsabilidades.- Não é livre?- Há Lucy. -Lucy?- Sim, Lucy.Destrancou o portão e entrou. A seguir a este havia um carreiro largo,direito como uma régua, que atravessava o jardim em direcção a ummaciço de faias distante. A meio do caminho, ao lado das escadinhas quesubiam pelos terraços até à casa, havia um relógio de sol e um banco demadeira circular. Umas outras escadinhas desciam até um jardim comcanteiros de flores, abrigado por aglomerados de rododendros e azáleas.A sua estrutura formal, irradiando a partir de uma estátua de pedrarepresentando uma divindade mítica qualquer, era composta por curvas,círculos e elipses, todas debruadas a buxo. Como estava semi-soterradapela neve, não parecia mais do que um esboço de artista desenhado acarvão sobre uma folha de denso papel branco.- Lucy é a principal razão que me leva a aceitar este emprego emLondres. Alguém tem de a apoiar. Alguém tem de a fazer sair daquelavida enfadonha, limitada e completamente feminina que é obrigada alevar sem que tenha a menor culpa. Ela não tem hipóteses nenhumas.Terei de ser eu a tentar proporcionar-lhas.Sam reflectiu no que acabara de ouvir. Hesitando, observou:- Parece-me muito bem ajustada. Feliz, até.- Isso é porque ela é uma pessoa feliz. Aqui. Na companhia de Elfrida eOscar, conhecendo outras pessoas. E, evidentemente, Rory Kennedy.Voltar para Londres irá ser um verdadeiro desconsolo.Sam deu consigo aborrecido com aquela atitude superprotectora emrelação a Lucy. Carrie era demasiado nova e bonita para começar aestruturar a sua vida apenas em função da sobrinha.- Ela se calhar ficará bem - alvitrou. - É suficientemente nova pararesistir. com o tempo, acabará por ser ela mesma a libertar-se.- Nem pensar - afiançou Carrie, inflexível. - Não conhece a mãe egoístaque ela tem. Não faz a menor ideia.- Então o que pensa fazer com Lucy?- Oh, ainda não sei. Estarei por perto, sempre contactável portelefone. Lá. Talvez na Páscoa volte a levá-la para qualquer ladocomigo até à Cornualha, para visitar Jeffrey. Afinal de contas, é seuavô. Ou talvez possamos ir esquiar. Os filhos dele já têm idadesuficiente. O meu pai levou-me a fazê-lo pela primeira vez tinha eunove anos e adorei de tal maneira que foi o início de toda uma novapaixão.382Tenciona regressar a Oberbeuren?Não. - Disse a palavra quase ainda antes de ele completar apergunta. - Oberbeuren não. Outro lado qualquer. Arosa, GrindelwaldJu Vai d'Isère.Podia ir até aos Estados Unidos. Colorado ou Vermont. Pareceuma viagem muito longa, mas não há dúvida de que sairia mais barato.Vermont. - Carrie, com as mãos enfiadas nos bolsos da suaparca, caminhava ao lado dele. - Esquiou em Vermont?Sim. Várias vezes. Nós costumávamos sair da cidade de carro e

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ir lá passar fins-de-semana.- Nós? - repetiu Carrie. - Você e a sua mulher, não? Pronto, lá estava.A questão que tinham andado a contornar, o momento da verdade, o pontode não retorno. Respondeu:- Sim. com a minha mulher. Sabia que sou casado?- Sim, sabia - respondeu, com aparente indiferença. Continuaram acaminhar, ainda a par, como se nada estivesse aacontecer, nada tivesse sido dito.- Elfrida contou-lhe.- Claro. Achava que não o faria?- Não. Pensei que seria natural fazê-lo. A minha mulher e eu estamosseparados.- Também mo contou.- Quer saber os pormenores macabros?- Nem por isso.- Acho que são importantes.- Para si, talvez.- Penso que são importantes porque quero que compreenda.- Compreenda? Portou-se assim tão mal?- Não. Sim. Não fui infiel, mas trabalhava de mais, ficava muito tempoafastado de casa e nunca lhe dediquei tempo suficiente.- Como é que ela se chama?- Deborah. Debbie. Sempre a tratei por Deborah. Trabalhava em NovaIorque. Fui passar um fím-de-semana a Easthampton com um amigo econvidaram-nos para uma festa, onde a conheci. O avô dela tinha umamansão imponente naquela zona. Terrenos, praia, cavalos, cercados paraeles, piscina, tudo o que se possa imaginar. Casámos em Easthampton,num relvado defronte da casa do avô dela. Eram setecentos convidados,dez damas de honor e dez acompanhantes todos aperaltados como pinguins.Deborah estava encantadora e eu feliz por ser arrastado por umacorrente à qual não conseguia resistir nem podia controlar. Foi entãoque comprámos um apartamento no cimo das Seventies, onde não faltavanada. Isso manteve-a feliz durante uns temPos, mas depois de ficarterminado, e o decorador de interiores se ir embora, é que eu acho queela começou a sentir-se aborrecida e agitada, eu tinha de viajar pelosEstados Unidos de lês a lês, e de vez em quando383ela ia para Easthampton durante a minha ausência. Outras vezesentretinha-se a divertir-se.- Filhos?- Não. Deborah não queria bebés. Não tão cedo. Um dia, talvez,prometera-me, mas naquela altura, não. Seja como for, no Verão passadovoltou a encontrar determinado tipo. Conhecia-o da faculdade. casara jáduas vezes desde então, mas estava livre na altura. Em Nova Iorque.Rico, bajulador, bastante estúpido. Um autêntico gato vadio Começou porser aquilo que hoje em dia se designa delicadamente de relação. Nuncame passou pela cabeça. Só soube quando ela me informou de que me iadeixar para se juntar a ele. Fiquei devastado. Não apenas porque iaperdê-la, mas também porque sabia que se apaixonara por um indivíduosem o mínimo valor. E também sabia que ele é o tipo de pessoa para quemcasar com a amante era apenas criar uma nova vaga.- Mas vocês não se divorciaram?- Não. Não chegou a haver tempo. Seis semanas depois da partida dela,recebi um telefonema do meu presidente, David Swinfield, a pedir-me quevoltasse para Londres. E desde aí... bem, tenho andado a adiar. Adeixar passar. Tinha mais com que me preocupar. Claro que, mais cedo oumais tarde, receberei a carta de um advogado e, depois disso, tudoseguirá o seu rumo.- Acha que ela vai ser gananciosa e exigir uma pensão de alimentosmuito elevada?- Não sei. Depende do advogado. Não creio. Ela nunca foi esse tipo depessoa. Seja como for, o estupor é rico e Deborah tem dinheiro seu.

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Demasiado, até. Talvez seja esse um dos seus problemas. Dos meustambém.- Ainda está apaixonado por ela?- Oh, Carrie...- Eu sei. Mas sente-se responsável. Anda ansioso em relação ao futurodela. Receia que a magoem, a abandonem. Ainda sente vontade de aproteger.Passado um bocado, Sam respondeu:- Sim, acho que sim.- Se ela quisesse... se lhe desse um sinal, pedisse... voltaria paraela? Sam reflectiu e depois respondeu:- Não.- Porque não?- Porque a minha vida mudou de direcção. Porque Deborah fez parte dopassado que deixei para trás. Agora estou aqui. E é aqui que vou ficarporque tenho um trabalho a fazer.- Ela continua a ser sua mulher.- Que pretende dizer com isso?384Que quando se é casado com uma pessoa, esta continua a fazerparte de nós. Nunca se consegue ficar livre. Fica-se a pertencer-lhe.falava com tal amargura que Sam percebeu imediatamente que sótinha de fazer um pouco mais de força para, finalmente, ela se abrircom ele.Virou-se para ela.-Carrie...Carrie, porém, continuou em frente e ele teve de correr para a alcançare agarrar-lhe no braço, obrigando-a a voltar-se para si. As lentesescuras dos óculos de sol ergueram-se para ele que as tirou, vendoentão Para seu horror, que ela tinha os olhos cheios de lágrimas.Carrie. Abra-se comigo.Porquê? - Enraivecida, piscava os olhos para afastar as lágrimas. -Porque hei-de abrir-me consigo?- Porque eu tenho sido sincero consigo.- Eu não combinei nada. Não é da sua conta e não quero falar noassunto. Não serve de nada. E o Sam não compreenderia.- Podia tentar. Estou convencido de que entenderia. Eu próprio jápassei por maus momentos. O pior foi saber que todos estavam a par,excepto aqui o parvo. Vivendo um dia de cada vez e todos eles a seremem vão e a não conduzirem a lado nenhum. A tentar lidar com a rejeiçãototal.- Eu não fui rejeitada - gritou-lhe Carrie, enquanto o seu rosto seengelhava subitamente como o de uma criança e ela desatava a chorar.Furiosa consigo mesma, empurrou Sam para longe de si, tentando escaparao seu abraço, porém ele segurou-a pelos ombros com as mãos e não adeixou ir, pois sentia que, se o fizesse, ela talvez se fosse abaixo ea força dele era a única coisa que a mantinha de pé.- Eu não fui rejeitada. Era amada. Nós amávamo-nos e só queríamos ficarjuntos. Mas as dificuldades eram demasiado grandes. Foram mais fortesque nós. Demasiadas exigências, responsabilidades, tradições. Otrabalho dele, a sua família, a mulher, os filhos, a religião, odinheiro. Eu não tive hipótese. Nunca tive. E o que mais me custa é quesempre soube disso. Odeio-me por ter fechado os olhos e enfiado acabeça debaixo da areia como a avestruz estúpida. A fazer de conta deque tudo se resolveria. Caramba, tenho trinta anos. Pensei que podiaaguentar-me. Mas quando Andreas se foi embora, fiquei devastada.Portanto agora já sabe, Sam, e pode parar de tentar descobrir. E talvezPossa aceitar o facto de eu não estar realmente muito interessada emhomens casados. E se começar a ser simpático e a ter pena de mim,ponho-me a gritar.Sam abriu a boca para protestar, mas nesse momento Carrie, com Umatorção do corpo, libertou-se e correu para longe dele, tropeçando na

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neve, e endireitando-se, sem desistir. Sam foi atrás dela e voltou aagarrá-la.- Oh, Carrie.385Dessa vez ela não se debateu. Talvez estivesse demasiado cansada,demasiado ofegante com os soluços.Sam rodeou-a com os braços e ela encostou-se-lhe, com os ombros aestremecer e a molhar-lhe a frente da Barbour com as suas lágrimas.Abraçá-la, tê-la nos seus braços era algo que lhe apetecera fazer o diatodo. Sentia-a esguia, sem peso, e disse a si mesmo que conseguiasentir-lhe o bater do coração através de toda aquela combinação detecidos invernosos. O pêlo do chapéu dela fez-lhe cócegas no nariz.sentiu-lhe a macieza e a friagem da pele.- Oh, Carrie - murmurou, envergonhado por se sentir tão enlevado,quando ela sofria de tão grande desgosto e desdita. Tentou confortá-la:- Tudo irá correr bem.- Não irá correr bem, não.Notava-se tal frieza e inflexibilidade na sua voz que Sam teverepentinamente a noção de que não valia a pena continuar a proferirtrivialidades sem sentido. Ali de pé, com ela nos seus braços, deuconsigo estranhamente confuso e desorientado. De uma maneira geral, osseus instintos não costumavam deixá-lo mal; em vez disso, diziam-lhecomo lidar com qualquer situação, quer fosse de tipo emocional ou não.Naquele momento, porém, compreendeu que não sabia o que fazer. Carrieera linda, inteligente e desejável, mas também complicada. E, talvezpor isso mesmo, permanecia um enigma. Compreendê-la levaria muito tempoe exigiria muita paciência.Resignou-se com o facto, voltando a repetir: - Tudo se há-de resolver.- Não pode ter essa certeza.Dessa vez, teve a confiança e o bom-senso de não argumentar. Passado umbocado, o choro desesperado dela abrandou. Fez menção de se recompor.Sam Howard afastou-a suavemente de si e viu-a limpar as faces molhadasde lágrimas com a luva acolchoada.- Lamento muito - disse-lhe.- O quê?- Lamento o que se passou, pois não foi nada do que planeei nemdesejei. Não queria perturbá-la. Isto era uma simples saída para virbuscar uma árvore de Natal e dar um passeio. Não havia segundasintenções. Simplesmente correu mal.- A culpa não foi sua. Sou uma estúpida...- Falei de Deborah porque às vezes tenho necessidade de o fazer. Nãoqueria pô-la assim.- Eu sei. Esqueçamos o que se passou. Façamos de conta que nuncaaconteceu. Passeemos, tal como planeámos.- Mas falemos. Falar é sempre bom. Pensei que nunca mais acontecia.- Falar é bom? Não sei bem.386Facilita a compreensão das coisas.- Não sei se quero que me compreendam. Basta que me deixem em paz.Talvez agora eu fique melhor assim. Independente. Sem preocupações.Não parece muito certa disso - respondeu-lhe Sam, Só não o fez em vozalta.LucyQuinta-feira, 21 de DezembroEsta manhã, Sam e Carrie foram buscar a árvore de Natal. Mrs. Snead eeu fizemos uma limpeza profunda à casa de jantar. Tinha carradas de póe cheirava a mofo por não ser usada há muito tempo. Pusemos um papel naporta a dizer «PROIBIDO ENTRAR», para que ninguém vá lá dentro. Mrs.Snead queimou uns papéis na lareira, para ter a certeza de que achaminé não estava cheia de ninhos de gralhas, mas o fumo subiu todo eela disse que tudo funcionava bem, o que nos permitirá fazer uma belafogueira que tornará tudo muito melhor.

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Estavam lá duas caixas de cartão grande, que imaginávamos cheias dejornais amarfanhados, mas quando fomos ver melhor, descobrimos unscandelabros de prata, quatro, todos enfarruscados, mas muito bonitos.Levámos a lixarada toda pelo corredor e pusemo-la dentro do antigoescritório. Estavam lá uns reposteiros muito grossos, cheios de pó,portanto fomos buscar um escadote, tirámo-los, levámo-los para oquintal, onde os sacudimos muito bem. Depois voltámos a pendurá-los. Eulimpei a janela, Mrs. Snead esfregou todos os azulejos da lareira,depois afastámos a mesa e ela aspirou o chão. A seguir, passámos ceraem todos os móveis, colocámos os candelabros em cima de uns jornais elimpámo-los, o que levou imenso tempo porque têm muitos enfeites econtornos. Então, enquanto eu ia à rua comprar umas velas (altas e emtom creme, parecidas com as das igrejas), Mrs. Snead foi lá acima aoarmário da roupa buscar uma toalha e guardanapos. Não havia nenhuma, noentanto, descobriu um velho lençol de linho que, com um cobertor porbaixo a proteger a mesa, ficou óptimo. Não fizemos mais porque elatinha de voltar para casa, afim de dar o jantar ao marido, mas com asvelas e tudo, mais a lareira acesa, ficou com um ar lindamente festivo.Eu não queria que ninguém soubesse, para que fosse uma surpresa, masCarrie e Sam voltaram pouco antes do almoço com a árvore de Natal ehouve uma grande discussão para decidir em que sítio391ficaria. Achámos que o mais indicado seria a sala de estar, mas Elfridavai dar uma festa lá no sábado, virá muita gente e ela acha que aárvore poderá ocupar demasiado espaço. Oscar sugero patamar, mas vão lápôr uma mesinha para as bebidas e a árvore atrapalharia a ida e vindadas pessoas escadas acima e escadas abaixo. Tive então de sugerir acasa de jantar e desceram todos imediatamente a ver o que tínhamosandado a fazer e foi engraçado porque ficaram todos entusiasmadíssimos,cheirava agradavelmente a cera e Elfrida disse que não fazia ideia deque a sala de jantar pudesse ter um ar tão festivo. E, como é evidente,era o sítio ideal para a árvore. Portanto, Sam foi buscá-la e trouxetambém uma espécie de suporte para a encaixar, por isso foi tudo maisfácil. E Elfrida foi buscar o xaile vermelho que usa em cima da cama eatou-o em volta do suporte, escondendo assim a madeira nua e os pregos.A árvore tem o tamanho ideal e um formato bonito. Adoro o cheiro dasárvores dentro de casa, parece-se com a essência de pinho para o banho.À tarde, Oscar trouxe os enfeites que comprámos e atámo-los na árvore.Sam colocou a gambiarra e pôs a estrela bem lá na ponta. E Elfridaapareceu com um rolo inteiro de uma linda fita axadrezada que comprarapara atar os seus presentes, mas disse que a fita-cola fazia o mesmoefeito. Portanto, cortámo-la aos bocados e fizemos lindos laços queespalhámos por toda a árvore, e com os enfeites e as luzes acesas,ficou a coisa mais bonita que já vi na vida.Carrie contou-me que Corrydale é lindo e que um dia tenho de irconhecer o sítio. Disse que havia neve por todo o lado, assim comosombras azuladas e sol; jardins que descem desde a casa até à água, emontes de árvores grandes e antigas. De certo modo, gostaria de ter idocom eles buscar a árvore, mas tinha de preparar a sala de jantarenquanto Mrs. Snead cá estava, pois ela prometera ajudar.Amanhã temos de começar a preparar a festa. Elfrida telefonou a Mrs.Kennedy para lhe pedir uns copos emprestados, pois temos poucos. ECarrie ficou encarregue da comida. Esta tarde, depois de terminarmos oarranjo da árvore de Natal, fomos juntas ao padeiro encomendar folhadosde salsichas e pequenas quiches e pizas. E depois mandámos vir salmãofumado para pôr em pão de mistura. A festa deverá começar às seis datarde e tanto Mrs. Snead como Arthur vêm ajudar. Nunca pensei que umafesta desse tanto trabalho. Se calhar é por isso que a mamã e a avónunca o fazem em Londres.Rory também foi convidado, claro, assim como Clodagh. Vestirei a minhaminissaia preta nova, os collants pretos e a camisola branca. Gostariade prender o cabelo ao alto, para assim se notarem mais os meus

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brincos.392ElfridaAo acordar, em pleno Inverno, no meio da escuridão daquele gélido paíssetentrional, Elfrida abria os olhos e ficava sem saber que horas eram.Passado um bocado, aPalPava a mesinha-de-cabeceira até encontrar o seurelógio, para cujo mostrador luminoso olhava com esforço, e, se fossemduas da manhã, provavelmente sairia da cama, vestiria o robe e iria àcasa de banho. Às vezes, eram cinco da manhã. Ou oito, nesse caso horasde se levantar, mas não se via o menor vislumbre de luz no céu e estavatudo escuro como se fosse meia-noite. Nessa manhã, agarrou no relógio eeram sete e meia. Oscar, ao seu lado, continuava a dormir. Levantou-sesilenciosamente, para não o incomodar, pegou no robe grosso, enfiou ospés nas pantufas e foi até à janela. Viu que voltara a nevar, nãopesadamente, mas sim em flocos finos que um vento vindo do lado do marsoprava. Estes rodopiavam e pairavam em redor da igreja e a luz doscandeeiros de rua, que brilhava por entre os ramos negros das árvoresdo cemitério, davam-lhe uma tonalidade dourada. O efeito era de talmaneira espectacular que Elfrida soube que tinha de o partilhar comoutra pessoa. Oscar não gostaria de ser acordado, portanto deixou-osossegado, saiu do quarto, acendeu as luzes e desceu à cozinha, ondeaqueceu água e preparou duas chávenas de chá. Subiu de novo, até à salade estar, onde afastou as cortinas para o lado e pousou as chávenas noparapeito da janela. Depois foi ao sótão acordar Lucy.Lucy dormia, inocente como uma criancinha, com a mão enfiada debaixo dacurva suave da bochecha e o cabelo comprido caído sobre o pescoço. Acama ficava debaixo da janela oblíqua do telhado. A cortina não estavacorrida e via-se o vidro atapetado de neve húmida. Elfrida acendeu aluz do candeeiro da mesinha-de-cabeceira.- Lucy.Lucy mexeu-se, virou-se e abriu os olhos.- Lucy.- Humm?- Estás acordada?395- Agora estou.- Quero que te levantes. vou mostrar-te uma coisa. Fiz-te uma chávenade chá.- Que horas são?- Quase um quarto para as oito.Lucy sentou-se, ensonada, e esfregou os olhos.- Pensei que estávamos a meio da noite.- Não. Já é de manhã. E que linda. Os outros estão todos a dormir maseu quis mostrar-te.Lucy, ainda aturdida de sono, saiu da cama, vestiu o seu robe de pèlode camelo e comentou:- Está frio.- É do vento. Voltou a nevar.Desceram as escadas e atravessaram a casa tranquila. A sala de estarestava iluminada pela luz que vinha do lado de fora.- Olha - disse Elfrida atravessando a sala e instalando-se no assentoda janela. - Achei tão espantoso que tive de te acordar para vires ver.Tinha medo que tivesse parado de nevar e perdesses a oportunidade. Masestá precisamente como quando acordei.Lucy, de olhos arregalados, sentou-se ao lado de Elfrida. Passado umbocado, comentou:- Faz lembrar uma daquelas bolas de vidro que eu tive em pequena.Estava cheia de água e tinha uma pequena igreja dentro, e quando sesacudia provocava uma tempestade de neve.- Foi o que eu pensei. Mas aqueles flocos estão dourados por causa dasluzes, fazem lembrar flocos de ouro.- É o tipo de imagem que as pessoas desenham nos cartões de Natal e

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pensam que a realidade nunca se assemelha à fantasia - observou Lucy.- E as ruas tão limpas! Não se vê uma pegada, uma marca de roda decarro. Como se não houvesse mais ninguém no mundo a não ser nós. -Calou-se e depois lembrou-se de algo. - Imagino que as vias principaisestejam sob o efeito de nevascas. Ainda bem que não precisamos de ir alado nenhum. - Reparou que Lucy estremecia. - Toma, bebe um pouco dechá.Lucy aceitou e bebeu com prazer, rodeando a chávena com os dedos esaboreando o seu calor. Ficaram a olhar, em silêncio, para a cena quese desenrolava no lado de fora da janela. De repente apareceu umautomóvel, que deu a volta à igreja e seguiu na direcção da estradaprincipal. Seguia cautelosamente, em segunda, deixando um par detrilhos no seu rasto.Quando desapareceu de vista, Lucy perguntou:- Que horas serão na Florida?Elfrida foi apanhada de surpresa. Lucy nunca falava da Florida, da mãeou do seu novo amigo. Respondeu com indiferença:396Não sei. Menos cinco horas do que aqui, suponho. Cerca dastrês da manhã. E por lá o tempo deve estar quente e húmido. Custa aimaginar. Nunca estive na Florida. Nem sequer na América. - Esperou queLucy prosseguisse a conversa, porém esta manteve-se calada. Gostariasde lá estar? - perguntou-lhe em voz branda. - Céus azuis e uma piscina?Não. Iria detestar. Por isso é que não fui.Mas para a tua mãe deve ser uma maravilha. Umas férias fantásticas.Não gosto de Randall Fischer.-Porque não?É todo mesuras. Repugna.- O mais provável é ser muito delicado e completamente inofensivo.- Seja como for, isso é o que a minha mãe acha.- Bem. Então ela está satisfeita.- Prefiro mil vezes estar aqui do que na Florida. Isto é que é um Natalde verdade, não é? Vai ser mesmo a sério.- Espero que sim, Lucy. Não sei bem. Veremos.- Oscar.Oscar, que estava sentado ao pé da lareira a ler o jornal, ergueu osolhos.- Diz, minha querida.- Estou prestes a deixar-te sozinho.- Para sempre?- Não. Só por hora e meia. Mais ou menos. Telefonei a Tabitha Kennedy evou a Manse buscar uns copos emprestados para a nossa festa. Ela temumas caixas deles guardadas para as actividades da paróquia e disse queposso utilizá-los.- Muito gentil.- Terei de levar o carro. Guiarei devagar e com todo o cuidado.- Queres que vá contigo?- Se quiseres.- Preferia ficar aqui, mas estou à disposição para o que for preciso.- Talvez possas ajudar-me a trazer tudo para dentro de casa quando euvoltar.- Claro, avisa-me assim que chegares. - Ficou pensativo. - Está tudomuito calado. Onde estão todos?- Sam e Carrie foram a Buckly. E Lucy está fechada no quarto aembrulhar os seus presentes de Natal. Se quisesses podias levar Horacea dar um pequeno passeio. Parou de nevar.Oscar não pareceu particularmente encantado com a sugestão. Limitou-sea responder de maneira imprecisa:397- Está bem.Elfrida sorriu e depois inclinou-se para lhe dar um beijo.- Até logo.

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Ele, porém, já retomara a sua leitura.No exterior, o vento soprava com força e a neve estava traiçoeira.Elfrida, protegida com botas, o casaco tipo cobertor e o barrete de Kemergiu do calor da casa e deteve-se a olhar para o céu. por uminstante Viu nuvens rolar num céu tempestuoso e gaivotas a esvoaçar deum lado para o outro no ar enregelante. O carro de Oscar estava cobertode neve. Elfrida sacudiu a recém-caída com a mão enluvada, mas porbaixo havia uma camada de gelo, portanto sentou-se ao volante e ligou oaquecimento. O gelo começou então a derreter e, ao ligar o pára-brisasobteve dois semicírculos de vidro limpo. Pôs-se a caminho com toda acautela pela estrada fora, depois enveredou pela colina que ia dar aManse. O camião limpa-neve já tinha passado, de modo que Elfridaaliviada, chegou ao seu destino sem derrapar ou ter algum outro azar.Estacionou em frente do portão da casa, percorreu o carreiro do jardimda frente, sacudiu a neve das botas, tocou à campainha, em seguidaentrou no alpendre e abriu a porta interior.- Tabitha.- Estou aqui. Na cozinha.Elfrida reparou que a casa do pastor já estava preparada para o Natal.Ao fundo das escadas via-se uma árvore de Natal (não muito grande),cheia de bugigangas e estrelas, e no alto estavam pendurados enfeitesde papel, com um ar muito usado. Tabitha apareceu à porta aberta aofundo do vestíbulo, de avental e com o cabelo escuro preso num rabo-decavalo.- Que dia! Que bom vê-la. Tenho café a coar. Entre depressa e feche aporta. Veio a pé?Elfrida desabotoou o casaco e pendurou-o no pilar do corrimão.- Não, enchi-me de coragem e trouxe o carro. Não tive outro remédio.Não podia carregar com duas caixas cheias de copos de vidro até casa.Teria escorregado no caminho, se calhar partia uma perna e de certezaficava sem os copos. - Seguiu Tabitha até à cozinha. - Cheira bem.- Estou a cozinhar. Empadas de carne, folhados de salsicha, dois bolose uns biscoitos. Como sabe, gosto de cozinhar, mas o Natal começa atornar-se impossível. Tenho estado a manhã inteira aqui metida e aindapreciso de fazer um recheio e um creme para cobertura. E o bolo deNatal para enfeitar e um pernil para assar. O problema é que são tantosos paroquianos que vêm cá nesta altura do ano com cartões ou presentespara Peter, que tenho de os convidar a entrar e retribuir-lhes agentileza com algo para beber e comer.- Lamento. Tão atarefada e eu a interromper.398Tabitha deitou café numa caneca.- De maneira alguma. Serve-me de desculpa para me sentar duOte cincominutos. Puxe uma cadeira, ponha-se à vontade. Aquilo que me saberiamesmo bem era ir lá para fora. Devíamos passear pela praia e andar detrenó, completamente livres de responsabilidades, em vez de nosescravizarmos às exigências da época festiva. Tenho a certeza , que adata nunca foi destinada para tanto trabalho. Todos os anos juro a mimmesma simplificar, mas acabo sempre por complicar.Elfrida, seduzida pelo odor perfumado do café, aceitou o convite. Acozinha de Manse era quase tão antiquada como a da Casa da Quinta masmuito mais alegre, com os trabalhos manuais de Clodagh pendurados nospainéis da porta e uma velha secretária apinhada de papéis efotografias de família. Tratava-se, claramente, do domínio de Tabitha,onde ela não só cozinhava e alimentava a sua família como tambémorganizava a sua vida atarefada, fazia os seus telefonemas e escreviaas suas cartas. Naquele momento, depois de se servir de café, sentou-seno outro lado da mesa.- Conte-me as novidades. Que lhe aconteceu?- Nada de especial. Deixei Oscar a ler o jornal, e Sam e Carrie foram aBuckly conhecer a fábrica de lanifícios.- Sam é o tal desconhecido misterioso que saiu do meio da neve? Aindaestá convosco?

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- Passa o Natal lá em casa. O tempo está horrível e parece que não temmais lado nenhum para onde ir.- Santo Deus, que desconsolo. Ele e Carrie tornaram-se amigos?- Parece que sim - respondeu Elfrida, prudentemente.- Muito romântico.- Tabitha, ele é casado.- Então porque não está junto da mulher?- Ela está em Nova Iorque.- Não se falam?- Estão separados, segundo creio. Desconheço os pormenores.- Oh, bem - disse Tabitha, em tom filosófico. - Há de tudo.- É estranhíssimo que ainda não o tenha conhecido. Dá a impressão deque estamos juntos já há meses quando, na verdade, ainda só se passaramalguns dias. Seja como for, irá conhecer tanto Sam como Carrie amanhã ànoite. Bebidas na Casa da Quinta entre as seis e as oito.- vou pôr as caixas no vestíbulo. Seis copos de vinho, seis cálices eum par de jarros. Precisa de pratos?- Acho que não. Não vamos propriamente dar um jantar, são apenas comese bebes. Dos primeiros encarrega-se Carrie.- Quantos convidados espera?- Creio que devem ser uns dezassete. Vocês os quatro...- Clodagh provavelmente não irá. Uma colega convidou-a a ir cear lá emcasa, e depois dormirá por lá. Importa-se?399- Nem um pouco. Será muito mais divertido para ela.- Mas Rory irá de certeza. Quem mais?- Jamie Eskine-Earle e a mulher.- Jamie e Emma? Não sabia que já os conhecia.- Foi ele quem veio avaliar o meu quadro de David Wilkie. Mas é umaimitação, portanto, lá se foi mais um sonho por água abaixo.- Estava a pensar em vendê-lo?- Era provável que o fizesse. Agora, já não.- É uma pessoa simplicíssima. Refiro-me a Jamie. Tem ar de quem aindanão passou dos quinze anos, mas não só é um perito na sua especialidadecomo também é pai de três rapagões. Conhece Emma?- Só falei com ela pelo telefone, quando lhes fiz o convite.- É muito boa pessoa, extremamente prática e sincera. É criadora depóneis Shetland, cães de trabalho e superintende tudo em Kingsferry.Jamie interessa-se muito mais por andar à cata de antiguidadesidentificando candelabros cheios de amolgadelas e descobrindo retratosesquecidos. Quem dirige a quinta, ajuda a tratar do gado e mandaconsertar o telhado é Emma. Quem mais convidou?- Os Rutley, da livraria.- Óptimo.- E o doutor Sinclair e a esposa.- Mais uma vez óptimo.- Não sei como se chamam.- Geordie e Janet. - E os Snead.-Mistress Snead e Artur?- Bem, quando Mistress Snead descobriu que eu andava a convidar algumaspessoas, ofereceu-se para vir dar uma ajuda e lavar copos. Como eu nãoconseguia suportar a ideia de a ter encarcerada na cozinha o tempotodo, disse-lhe que também se juntasse a nós e trouxesse Artur. Propôslogo que o marido andasse a distribuir as bebidas num tabuleiro.- Como se fosse um mordomo.- Ela tem sido tão minha amiga e de Oscar, que não a podia deixar defora.- Serão a alma da festa.Tabitha bebeu o seu café. Depois pousou a caneca e os olhos de ambasencontraram-se. Tabitha perguntou-lhe então:- Como vai o Oscar?- Vai bem. Continua a apreciar um pouco de isolamento, que o deixem

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sossegado com os seus jornais e as palavras-cruzadas.- Peter deu-lhe a chave sobressalente do órgão da igreja. Tinhaconhecimento disso?- Não. O Oscar não me contou.- Peter achou que talvez ajudasse, que a música seria para Oscar umaespécie de terapia.400Ainda não se serviu dela. Só esteve na igreja uma vez, e foi porqueLucy queria conhecê-la por dentro. Tanto quanto sei, não voltou lá.Não creio que lhe proporcionasse grande conforto.Não é de conforto que Oscar precisa. Só quer que o deixem noseu canto a viver cada dia à sua própria velocidade. Quanto aos nossosconvidados, os esperados e os inesperados, penso que, de certo modo,ele diverte-se com toda aquela movimentação. Mas, Tabitha, ele aindanão está bem. Oscar e eu somos muito chegados, no entanto, sei queparte dele ainda está retraída, até mesmo em relação a mim. Como seessa parte estivesse ainda noutro sítio qualquer. Noutro país. Talvezausente numa viagem. Ou no exílio. No outro lado do mar. E eu não possoestar com ele porque não tenho o tipo de passaporte certo.- Peter diria que é uma questão de paciência.- Paciência nunca foi uma das minhas virtudes. Não que alguma vez tenhatido muitas.Tabitha riu-se.- Disparate. São só diferentes das outras pessoas. Beba mais café.- Não, obrigada. Estava uma delícia. - Elfrida levantou-se. Agora voudeixá-la trabalhar. Obrigada pelos copos e por me ouvir com tantapaciência.- vou ajudá-la a meter as caixas no porta-bagagens. Não são pesadas, sónão dão muito jeito. E amanhã às seis da tarde lá estaremos convosco,todos elegantes com as nossas fatiotas natalícias. Vai ser óptimo. Malposso esperar.OscarElfrida saíra ainda não fizera dez minutos quando Oscar, intensamenteembrenhado na resolução das palavras-cruzadas do The Times, foiinterrompido pelo aparecimento de Lucy que, de casaco vermelhoacolchoado e botas, estava, aparentemente, de saída.- Olá, Oscar.- Viva, bichinha. - Pousou o jornal. - Pensei que estavas a embrulharpresentes de Natal.- Sim, estava, mas acabou-se-me a fita. Sabe de Elfrida?- Foi a Manse pedir umas coisas emprestadas. Não deve demorar.- Só queria saber se precisava de que eu lhe trouxesse alguma coisa dosupermercado.- Pareceu-me que a única coisa que desejava era que levassem Horace adar uma volta.- Bem, então passo primeiro pelo super e depois levo Horace até àpraia.- Há muita neve.- Não me importo. Calcei as botas.- Bem, vê se não és atacada por nenhum rottweiler. Lucy fez uma careta.- Nem sequer me lembre.- Eu digo a Elfrida que estás de volta por volta da hora do almoço.Lucy saiu. Passado um bocado, Oscar ouviu Horace ladrar decontentamento e, em seguida, a porta da frente a abrir e a fechar,ficando então sozinho mais uma vez. Voltou às suas palavras-cruzadas.Matutou sobre o enigma seguinte. Foi então que o telefone tocou.O seu primeiro instinto foi deixá-lo tocar, esperar que alguématendesse o fastidioso aparelho. Depois lembrou-se de que estavasozinho em casa, pelo que pousou o jornal com uma certa irritação,guardou a caneta no bolso e levantou-se da poltrona para ir ao patamar.- Casa da Quinta.- Mister Blundell está? - perguntou uma voz feminina, bem esCoCeSa.

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405- É o próprio.- Oh, Mister Blundell, daqui fala a irmã Thompson, do Western, emInverness. Receio ter más notícias. O major Billicliffe faleceu aoprincípio desta manhã. O senhor vem aqui referido como sendo o parentemais próximo.O velho Billicliffe morrera... Oscar deu consigo a esforçar-se porpensar no que havia de dizer. Pouco conseguiu:- Compreendo.- Foi tudo muito tranquilo. Teve um fim sem sofrimento.- Ainda bem. Muito obrigado por me ter informado.- Tenho aqui os bens pessoais do falecido para lhe entregar. Sepuder...- com certeza - respondeu Oscar.- Quanto a algumas outras disposições...A freira, cheia de tacto, não terminou a frase, mas Oscar percebeuperfeitamente ao que se referia. Disse então:- com certeza. Obrigado por ter cuidado dele. Entrarei em contacto.- Obrigado, Mister Blundell. As minhas condolências. Adeus.- Adeus, irmã.Desligou e como precisou de se sentar imediatamente, fê-lo no primeirodegrau das escadas que conduziam ao sótão de Lucy. Billicliffe estavamorto e Oscar não só representava o parente mais próximo como também oseu executor. Vieram-lhe à cabeça pensamentos mesquinhos e rabugentos,e ficou satisfeito por Elfrida não estar em casa, caso contrário, aindaos teria exprimido em voz alta.Era mesmo típico daquele idiota morrer, nem mais nem menos, naquelaaltura.Uma casa cheia de gente, o Natal à porta e as estradas para Invernessintransitáveis. Nem que o tivesse planeado, Billicliffe teria escolhidouma ocasião mais inconveniente para bater as botas.Foi então que Oscar se lembrou de quando fora deixar o velhote. Deixousede ressentimentos, sentindo-se antes triste porque ele morrerasozinho e nem Oscar nem Elfrida, apesar das suas melhores intenções,tinham sido capazes de ir visitá-lo ao hospital, pedirem desculpa pelaindelicadeza e despedirem-se.Ponderou durante um bocado sobre o que deveria fazer a seguir. A bolaestava, obviamente, do seu lado e cabia-lhe tomar a iniciativa, noentanto, deu-se conta de que não sabia por onde começar. Lembrou-seentão, sentado no topo das escadas como uma baleia acabada de dar àcosta, que ainda só se tinham passado dois meses desde a noite fatídicaem que lhe tinham comunicado o falecimento de Francesca e Gloria. Nãose esquecera dos dias de desvario que se tinham seguido. Houvera ofuneral, evidentemente, a igreja de Dibton a rebentar pelas costuras, opastor, que nunca fora grande pregador, a esforçar-se por dizer aspalavras406certas, e Oscar, envergando o seu excelente sobretudo preto, no bancoda frente. Mas não saberia dizer como chegara ali, não tinha memória detodas as disposições complicadas que antecederam a ocasião, só sabiaque Giles, o filho mais velho de Gloria, aparecera e tomara conta detudo, enquanto Oscar, incapacitado pelo choque, se limitara a fazer oque lhe diziam. Giles, que Oscar nunca tivera em grande conta, acabarapor se mostrar imensamente eficaz. Tudo correra sobre rodas e todo opesadelo se desenrolara e passara a pertencer ao passado.Depois de tudo terminado, Oscar achou que nada mais de minimamenteimportante lhe voltaria a acontecer, de modo que foi vivendo os diascomo um zumbi. Depois, Giles voltou a aparecer na Granja, afim de oinformar de que tinha de sair, pois a casa de Gloria iria ser posta àvenda. E Oscar não ficou ressentido. Giles estava, mais uma vez, aoleme das operações e Oscar optou por uma atitude passiva e,simplesmente, deixou-se ir na corrente, concordando com tudo. Só quando

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mencionaram os velhos serviçais da casa é que começou a sentir osprimeiros sinais de alarme.Nesta altura, porém, as coisas eram diferentes: era a sua vez de tomarconta do assunto. Como é que chegara àquela situação? Recordou a manhãfria em que atravessara a Black Isle para levar o major Billicliffe aohospital de Inverness. E a conversa do velhote, cheia de reminiscênciasincompreensíveis. A certa altura, dissera-lhe: «Prepare-se para o piore espere o melhor», pedindo então a Oscar que fosse seu executor.O advogado. Oscar tomara nota do nome deste na sua agenda. Levantou-sedo degrau e foi à sala de estar buscá-la à sua secretária improvisada.Folheou as páginas. Murdo McKenzie. Achou que só Billicliffe podia terum advogado com um nome tão bizarro. Murdo McKenzie, da McKenzie &Stout, South Street, Inverness.Como não anotara o número de telefone, procurou-o na lista telefónica,copiou-o para a sua agenda e voltou ao patamar. Sentou-se de novo nasescadas, tirou o telefone da mesinha, colocou-o a jeito ao seu lado ediscou o número.Pensou que teria de haver um funeral, uma igreja, um velório. Pessoas aquem comunicar o acontecido. Tinha de informar Peter Kennedy. E pôr umanúncio no jornal. Só algumas linhas. Mas em qual deles? Na imprensanacional ou na local...- McKenzie & Stout.- Oh, bons dias. Poderia falar com o doutor Murdo McKenzie?- Quem devo anunciar?- Oscar Blundell. De Creagan.- Um momento, por favor.Oscar sentiu-se angustiado. Já não era a primeira vez que lhe diziam omesmo e ele era obrigado a esperar muito mais do que um momento,escutando uma versão tilintante de «Greensleeves» ou alguma407outra melodia entediante. Os seus receios, porém, revelaram-se infUndados. Murdo McKenzie apareceu em linha quase no mesmo instante.- Bons dias, Mister Blundell. Em que posso servi-lo?Era uma excelente voz de sotaque escocês, forte e determinada. Oscarsentiu-se encorajado.- Bons dias. Peço desculpa por incomodá-lo, mas telefonaram-me agora dohospital a dizer que o major Billicliffe faleceu esta manhã - O majorGodfrey Billicliffe - acrescentou, como se houvesse a menorpossibilidade de haver dois.- Oh, que triste notícia. Os meus pêsames. - (Parecia realmenteentristecido.) - Possivelmente já era de esperar.- Ligaram primeiro para mim porque têm o meu nome como o do parentemais próximo. Além disso, claro, o major Billicliffe pediu-me que fosseo seu executor. Parece que não tinha mais ninguém no mundo.- Não, efectivamente não lhe restava nenhuma família. Falou-me dessasua disposição e de que o senhor concordara em assumir o encargo.- É por isso que telefono. Terá de haver um funeral, mas quando, onde ecomo? Ele tem amigos em Creagan que, certamente, quererão estarpresentes, mas, tanto quanto sei, as estradas continuam intransitáveise não há a menor possibilidade de alguém chegar a Inverness. Para jánão falar do Natal, que está aí. E claro que será preciso contactar umaagência funerária. Notificar o banco, o registo...Murdo McKenzie interveio delicadamente:- Mister Blundell, porque não deixa tudo isso por minha conta? Emprimeiro lugar, o major Billicliffe deixou instruções no meu escritórioem como desejava ser cremado, o que evita muita dor de cabeça. Quanto àagência funerária, posso ser eu a tratar do assunto. Há uma excelentefirma em Inverness, com muito boa reputação, e eu conheço-os bem. Nãoprefere que seja eu a entrar em contacto com Mister Lugg e tratar dasprovidências necessárias?- Seria extremamente gentil da sua parte... mas quando?- Sugeria o próximo fim-de-semana. Nas vésperas do Ano Novo. Nessa

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altura, já o tempo deve ter amenizado um pouco e o senhor e quaisqueroutros amigos de Creagan podem vir até Black Isle assistir à cerimónia.- Mas não devíamos organizar uma espécie de reunião, tomar uma chávenade chá num sítio qualquer? Eu teria muito gosto em me encarregar dessadespesa.- Mister Lugg também se pode encarregar desse aspecto. Talvez a sala deestar de algum hotel, ou o salão de eventos. Depende do número depessoas esperadas.- E também há que tratar de todos os outros pormenores, a legitimaçãodo testamento, o congelamento da conta bancária e esse tipo de medidas.408Trataremos de tudo isso.- E dos seus bens pessoais. - Oscar lembrou-se do pijama de flanelamuito usado de Billicliffe, da sua prótese auditiva, da sua pasta decabedal surrada. Era tudo demasiado patético, mas, para seu horror,sentiu um nó de emoção crispar-lhe a garganta. - Será preciso ir buscálosao hospital.Telefonarei para a irmã da enfermaria. Lembra-se do número?Oscar lembrava-se, para sua própria surpresa.- Quinze.- Quinze. - Houve uma pausa, enquanto Murdo tomava nota. Mandarei aminha secretária tratar disso.- Fico-lhe realmente muito grato. Tirou-me um grande peso dos ombros.- Sei que o major Billicliffe não lhe queria causar o menor incómodo,portanto telefonarei a Mister Lugg e voltarei a contactar consigoquando souber das medidas tomadas. Poderá dar-me o seu número detelefone?Oscar deu-lho.- E encontra-se instalado na Casa da Quinta de Creagan, não é verdade?- Exactamente.- Então não há problema. E se aparecer algum, ligo para si.- Fico-lhe profundamente grato. Agradeço que me mantenha a par. Maisuma vez, obrigado. E agora não o incomodo mais...- Mister Blundell!- Sim?- Não desligue. Tenho mais uma coisa para lhe dizer. Claro que lheescreverei, mas nesta altura do ano os correios não são muito de fiar ejá que estamos a falar, aproveito para o pôr ao corrente.Oscar franziu a testa de surpresa.- Não estou a compreender.- Uma vez instalado no hospital, o major Billicliffe telefonou-me adizer que me queria ver. Eu vivo na estrada de Nairn e como passo pelohospital a caminho do escritório, dei lá um pulo na segunda-feiraseguinte, de manhã bem cedo. Ele estava na cama, claro, e muito fraco,mas perfeitamente lúcido. Sentia-se preocupado com o seu testamento.Desde a morte da mulher que nunca mais se lembrara de fazer um novo equeria então tratar do assunto como devia ser. Deu-me as instruções, otestamento foi lavrado nesse dia, no meu escritório, e ele pôde assinálo.O senhor, Mister Blundell, é o seu único beneficiário. Não erahomem de grandes posses, no entanto quis deixar-lhe a sua casa deCorrydale, o carro e a cadela. Receio que nem o carro nem a cadelasejam legados muito do seu gosto, mas foi essa a vontade do falecido.Quanto ao dinheiro, ele vivia muito frugalmente da sua pensão que, comoé evidente, será suspensa por sua morte. No entanto, tinha uma Poupançaque, uma vez deduzidas as despesas do funeral e alguma conta porsaldar, ascenderão a cerca de duas mil e quinhentas libras.409Oscar sentou-se no degrau com o telefone no ouvido, sem saber quedizer.- Mister Blundell?- Sim, ainda estou aqui.- Pensei que a comunicação tinha sido interrompida.

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- Não, estou aqui.- Não se trata de um legado substancial, mas o major Billicliffe faziaquestão em lhe demonstrar o quanto estava grato pela sua bondade paracom ele.- Não fui bondoso - retorquiu Oscar.O advogado, porém, se ouviu o comentário, não o demonstrou.- Não sei se conhece a casa.- Estive lá uma vez, para ir buscar a chave desta. Mas claro que aconhecia dos velhos tempos, quando era do guarda-florestal e a minhaavó vivia em Corrydale.- Fui eu que tratei da papelada quando o major Billicliffe a comprou. Ébastante modesta, mas diria que com grandes possibilidades demelhoramentos.- Sim. Sim. Sem dúvida. Desculpe mostrar-me tão pouco comunicativo, masde facto fui apanhado de surpresa.- Compreendo.- Nunca pensei... esperei...- Apresentar-lhe-ei tudo por escrito na carta que lhe vou enviar,depois poderá decidir o que fará a seguir. E não se preocupe com asdisposições a tomar por este lado. Falarei com Mister Lugg e deixareitudo nas suas mãos competentes.- Obrigado. - Oscar sentiu que esperavam algo mais dele. Muitoobrigado.- Foi um prazer, Mister Blundell. Adeus. E feliz Natal. Desligou. Oscarpousou lentamente o auscultador. No fim, o velho Billicliffe conseguirasurpreender todos. Oscar passou a mão pela cabeça desorientada.Exclamou então, para a casa vazia:- Caramba, com esta é que eu não contava!Ficou a pensar durante muito tempo na pequena casa, na antiga herdadede Corrydale, não durante o tempo de Billicliffe, mas anos antes,quando era habitada pelo guarda-florestal e a sua mulher. Nessa altura,fora um autêntico cortiço fervilhante, com os quatro filhos, três cães,uma gaiola de furões junto da porta das traseiras e cordas cheias deroupa a secar. Houvera sempre uma boa fogueira de turfa a arder nalareira, umas boas-vindas vociferantes aos ouvidos de um rapaz tãopequeno, e um prato de scones quentes a escorrer manteiga. Oscar tentoulembrar a disposição do lugar, mas naquele tempo não fora além da salade estar, com o seu cheiro a parafina e a pão a cozer.Agora pertencia-lhe.410Oscar viu as horas. Era meio-dia e cinco e de repente apeteceu-lheimenso uma bebida. Normalmente, nunca bebia a meio do dia, e quando ofazia, não passava de um copo de cerveja. Naquele momento, porém,precisava - se precisava - de um sofisticado e reconfortante gim tónicopara se acalmar e reunir a bonomia holandesa necessária para lidarcom aquela nova e inesperada reviravolta nos acontecimentos.Levantou-se, desceu à cozinha e foi à sua prateleira de bebidas. Tiroua garrafa de Gordon que aí tinha, outra de água tónica e levou-as paraa cozinha. Arranjou um copo e serviu-se de uma porção fortificante.A porta da frente abriu-se.- Oscar!Era Elfrida, de volta.- Estou aqui.- És capaz de me vir dar uma ajuda? Oscar foi cumprimentá-la, de copona mão. Confidenciou-lhe:- Estou a beber às escondidas. Agora dei nisto. Elfrida não se mostroumuito preocupada.- Oh! Fazes bem. Tenho duas caixas grandes no porta-bagagens do carro.Deixara a porta da frente aberta. Oscar foi com a mão por cima do seuombro e fechou-a.- Depois.- Mas...

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- Iremos buscá-los depois. Anda. Quero falar contigo. Tenho uma coisapara te dizer.Elfrida abriu muito os olhos.- É alguma desgraça?- De maneira nenhuma. Despe o casaco e vem para a cozinha, onde nospodemos sentar e estar à vontade.- Onde está Lucy?- Foi com Horace às compras, fita de embrulho, e depois iam dar umavolta. E Sam e Carrie ainda não voltaram. Portanto, desta vez estamossozinhos. Não percamos este bocadinho de tranquilidade. Queres um gimtónico?- Se a ideia é chegarmos ao almoço já alegres, prefiro um xerez. -Elfrida tirou o casaco, pendurou-o na maçaneta do corrimão e seguiuOscar até à cozinha. - Oscar, estás muito corado e agitado. Que é quese passa?- Já te conto.Elfrida instalou-se à mesa e Oscar trouxe-lhe o seu xerez, sentando-seem seguida.- À tua, minha querida.- E à tua, Oscar.O gim tónico estava um bocado forte, mas delicioso e precisamenteaquilo de que o seu estômago necessitava. Pousou o copo e disse:411- Se eu te contar, com toda a calma, porque é deveras complicado,prometes ouvir até ao fim sem fazer perguntas? Caso contrárioatrapalho-me.- Tentarei.- Certo. Em primeiro lugar, o major Billicliffe morreu esta manhã.Recebi um telefonema do hospital.Elfrida levou a mão à boca.- Oh, Oscar.- Eu sei. Não chegámos a ir vê-lo. Nunca nos sentámos à sua cabeceira adar-lhe uvas. Mas também é verdade que as estradas não teriam permitidoque fizéssemos a viagem.- Não é tanto isso. É muito triste. Morrer tão sozinho...- Ele não estava sozinho. Encontrava-se numa enfermaria, rodeado deenfermeiras bondosas e outras pessoas. De modo nenhum tão só como desdeque a mulher morreu.- És capaz de ter razão. - Elfrida reflectiu e depois suspirou.Que complicação. E tu és o parente mais próximo... Isso significa...?- Agora escuta - insistiu Oscar.Contou-lhe então tudo: o telefonema do advogado, Murdo McKenzie, asresponsabilidades tiradas dos seus ombros por um homem nitidamenteexperiente naquelas questões. Falou-lhe do agente funerário deInverness, Mr. Lugg, em quem o advogado confiava tanto e de como seriaa pessoa indicada para tratar de tudo, desde o crematório à sala deconvívio.- Mas quando é que será o funeral? - perguntou Elfrida.- Pensamos que no final da próxima semana. Nessa altura, já todas aspessoas de Creagan poderão, com um pouco de sorte, chegar lá. A nevenão pode durar sempre. Mais cedo ou mais tarde derreterá.- Temos de colocar um anúncio num jornal qualquer.- Mister McKenzie também se encarrega disso. -E informar os locais.- Telefonarei a Peter Kennedy.- Santo Deus! Que altura tão inconveniente para morrer.- Exactamente o que eu pensei, mas depois obriguei-me a cair em mim e adeixar de ser tão pouco cristão.- Pois é. Bem, acho que não será preciso mais nada.- Não, Elfrida. Não é tudo.- Há mais?- O testamento de Billicliffe estava desactualizado. A mulher morrera eele tinha de fazer outro. Tornou-me seu único beneficiário. Não, não

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digas uma palavra antes de eu terminar. Significa que me deixou a casa,o carro, a cadela e a fortuna. Quanto a esta, depois de pagas todas ascontas e despesas, andará nas duas mil e quinhentas libras. Todas assuas economias. Vivia só da pensão.412A casa dele? Ele deixou-te a casa dele? Que gesto mais comovente. Umaternura. Que bondade! Ele não tem mesmo mais nenhuma família? Nenhumparente?- Ninguém.Pobre homem solitário. Oh, Oscar, e nós que o evitávamos tanto.Nem me digas nada.Chegávamos a esconder-nos atrás do sofá da sala para o caso deele aparecer.- Nem me lembres.Que tencionas fazer com a casa?- Não sei. Ainda não tive tempo para pensar. Vendê-la, suponho. Mas,primeiro, terá de ser esvaziada de toda a tralha de Billicliffe e,provavelmente, fumigada. (- Que tal é?- Tu viste. Um cochicho.- Não, refiro-me ao número de quartos. Tem cozinha? Casa de banho?- Acho que, na gíria dos agentes imobiliários, duas em cima, duas embaixo, cozinha e casa de banho, provavelmente acrescentadas depois daguerra, nas traseiras.- Para que lado está voltada? Oscar reflectiu naquele aspecto.- A frente fica para norte e as traseiras para sul.- E tem jardim?- Sim, acho que dispõe de um bocado de terreno. Não me recordo bem.Mistress Ferguson, a mulher do guarda-florestal, costumava cultivarbatatas e alho-porro. E havia uma macieira...Elfrida ficou calada durante momentos, digerindo toda aquelainformação. Por fim, surpreendentemente, perguntou:- Porque não vais viver para lá?Oscar olhou para ela com total incredulidade.- Viver lá? Sozinho?- Não, tolo, eu vou contigo.- Mas tu achaste a casa horrível.- Nenhuma casa é impossível. Não há sítio que não possa ser melhorado,alargado, redecorado. Tenho a certeza de que, quando o guarda-florestalvivia lá, era um lugar bem querido. As próteses auditivas, os pêlos decão, os cinzeiros cheios de beatas e os copos lambuzados é que tornavamtudo tão repugnante. Não tem nada a ver com os tijolos e a argamassa.- Mas eu tenho uma casa. Esta.- Só tens metade. O que não é muito seguro. Se vendesses a tua Parteficavas com setenta e cinco mil libras que podias aplicar na casa domajor Billicliffe e viver lá feliz da vida o resto dos teus dias.- Referes-te a eu vender isto aqui? Sair de Creagan?413perguntou este.- Oh, Oscar, não fiques tão horrorizado. Olha que até é uma excelenteideia. Sam quer a casa e Hughie McLellan está nitidamente ansioso porse ver livre da sua metade. Sei que adoras isto aqui, e eu tambem, mastens de reconhecer que é enorme, tem pouca mobília depois de Sam,Carrie e Lucy partirem, voltaremos a ficar sozinhos aqui às voltas comoduas ervilhas dentro de um tambor. E mais uma coisa, eu penso semprenisto como uma casa de família, não para um par de velhotes como nós.Deve ter gente nova a morar aqui, crianças a crescer...- Sam não tem filhos.- Pois não, mas poderá voltar a casar novamente...Elfrida não terminou a frase. No silêncio que se seguiu, olhousignificativamente Oscar nos olhos.- Não estás a pensar em Carrie, pois não? - perguntou este.

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- E porque não?- Não deves armar em casamenteira.- É impossível não o fazer. Parecem feitos um para o outro.- Não parecem nada. Ele está sempre a ser gentil, mas Carrie mostra-sealheada e brusca.- Acontece que está a passar uma fase de vulnerabilidade. E ontemestiveram imenso tempo fora, quando foram buscar a árvore de Natal.Carrie disse que andaram a explorar Corrydale, mas eu não acredito quetenham passeado duas horas sem falar.- Nada mais aconteceu além de as circunstâncias os juntarem.- Talvez. - Elfrida suspirou. - Provavelmente tens razão. Mas tirandoCarrie, esta é precisamente a casa certa para um homem como Sam Howard.O homem de negócios, o gerente de uma fábrica de lanifícios reactivada,um membro importante da comunidade. Estou mesmo a vê-lo a recebercolegas de trabalho do Japão e da Alemanha, a proporcionar ao seupresidente uma semana de golfe. Além disso, e isto é o mais importante,Sam deseja mesmo esta casa. Penso que se sente bem aqui, como seestivesse no seu lar. Não achas que seria melhor vendê-la a ele do quea um desconhecido qualquer? E tu meteres setenta e cinco mil libras nobolso?- Elfrida, eu não sou homem de meios. Se vendesse a minha parte da Casada Quinta, teria de amealhar esse dinheiro para os tempos de velhice ede senilidade. Não poderia ser suficientemente louco para enterrar essaquantia no casebre do major Billicliffe e ficar sem nada de parte.- Não sei quanto precisaríamos de gastar para dar um jeito lá. Muito -respondeu Oscar. Elfrida, porém, não desistiu.- Então imagina que vendo a minha de Hampshire, e servimo-nos dessedinheiro para...414Nem penses - disse Oscar firmemente.- Porque não?Porque é a tua casa. É tudo o que tens no mundo e em nenhumacircunstância te deves desfazer dela. Aluga-a, se encontrares alguémque queira lá viver, mas nunca a vendas._ Oh, está bem. - Elfrida parecia resignada e Oscar sentiu que tinhasido um pouco bruto. - Foi uma boa ideia enquanto durou, mas creio quetens razão. - Depois voltou à carga. - Seja como for, é tudo muitoexcitante e não admira que estejas corado. Uma coisa é certa, temos deir dar uma vista de olhos à pobre casa, inspeccioná-la de alto a baixo.E resgatar o carro antes que morra de frio no meio da neve. E a cadela.Que faremos com ela? - De repente desatou a rir. - Que faremos com anossa cadela de Baskerville, a uivar pela noite fora e a atirar-se comtodo o seu peso contra portas trancadas?- Para ser sincero, prefiro Horace. Talvez consiga subornar CharlieMiller para que fique com a cadela. Falarei com Rose...O telefone começou a tocar no patamar de cima. Elfrida exclamou:- Raios. Porque serão os telefones tão incomodativos?- Deixa tocar. Fazemos de conta que não estamos.- Gostaria de ter essa força interior, mas não é o caso.Pôs-se de pé e saiu da cozinha. Oscar ouviu-a correr escadas acima e otoque cessou quase logo a seguir.- Está? - perguntou Elfrida com voz alterada.Enquanto esperava que Elfrida voltasse para junto de si, Oscar deixouseficar sentado a matutar naquelas suas ideias loucas e a desejarpoder concretizá-las. Mas se, de facto, vendesse a casa a Sam, a somarecebida seria o seu único capital, o seu seguro contra uma velhiceempobrecida. Claro que iriam dar uma vista de olhos à casa deBillicliffe, nada mais natural. Talvez até nem fosse má ideia darem-lheuma limpeza e uma pintura. Ainda assim, seria um lugar acanhado eescuro para viver, depois da grandiosidade espaçosa da Casa da Quinta.Sentiria umas saudades insuportáveis das salas arejadas e ensolaradas,da noção de espaço, da deliciosa e sólida sensação de segurança. Seria

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realmente duro vendê-la - mesmo a um amigo como Sam - e deixá-la parasempre.Elfrida, no piso de cima, continuava ao telefone. Ele conseguia ouvir omurmúrio da sua voz, embora não distinguisse as palavras. De vez emquando calava-se por instantes, para depois continuar. Não fazia ideiade quem estava no outro lado da linha. Esperava que não fossem notíciassinistras ou perturbadoras.Terminara o seu gim tónico. Levantou-se para ir passar o copo por águae foi então que se lembrou das duas caixas com copos que tinham ficadono porta-bagagens do carro. Saiu da cozinha, foi até ao vestíbulo,abriu a porta e enfrentou o frio gélido que reinava no exterior.Percorreu o carreiro coberto de neve, abriu o portão, dirigiu-se para osítio415onde o seu velho carro estava estacionado e abriu o porta-bagagens. Ascaixas eram de difícil manejo e pesadas, o que o obrigou a levar uma decada vez. Depois de pousar a segunda em cima da mesa da cozinha, foifechar a porta. Quando ia a fazê-lo, ouviu o tinido que o telefonefazia quando o auscultador era pousado. Deteve-se ao fundo das escadasa olhar para cima, esperando ver Elfrida aparecer. Ao ver que não ofazia, chamou:- Elfrida.A companheira não lhe respondeu. Desceu simplesmente as escadas, comuma expressão facial que ele não foi capaz de decifrar. Só sabia quenunca lhe vira os olhos tão brilhantes nem um aspecto tão juvenil.Emitia um brilho que nada tinha a ver com a luz do meio-dia que lhebrilhava através da flamejante cabeleira ruiva.- Minha querida...- Oscar - exclamou, chegando ao último degrau e lançando-lhe os braçosao pescoço, apertando-o contra si. - Aconteceu-me algo de absolutamentemaravilhoso.- Queres contar-me?- Sim, mas acho melhor sentarmo-nos.Oscar levou-a pela mão até à cozinha, onde se sentaram, cada um no seulado da mesa.- Era Jamie Erskine-Earle. Para me falar do meu pequeno relógio. Comosabes, ele disse que ia mostrá-lo a um colega de Boothby, não é? Poisbem, o colega está em Londres, mas, com este tempo, nem pensar em Jamiepoder ir para sul. No entanto, mandou-lhe um fax, com uma descriçãopormenorizada do relógio e umas quantas fotografias. E o colega, sejalá quem for, ligou de Londres esta manhã. Disse que o relógio é umapeça muito especial. Uma peça mesmo muito rara. É francês e foi feitopor um tal J. F. Houriet, por volta de mil oitocentos e trinta. A suadescrição oficial refere-o como um cronómetro tourbillon em prata.Imagina só, Oscar, fui dona de um tourbillon de prata durante todosestes anos e nunca tive a menor ideia disso. Depois, quis saber como éque tinha chegado às minhas mãos e Jamie disse-lhe que eu o herdara deum velho padrinho marinheiro, mas que não fazia ideia de onde é que eleo fora buscar. Seja como for, Jamie disse que é um pequeno tesouro eque sem dúvida devia ter um seguro. Então enchi-me de coragem eperguntei-lhe, «É valioso?» Ele respondeu, «Sem dúvida», Aí eu quissaber quanto valeria e ele disse que, num leilão... possivelmente...Adivinha, Oscar!- Impossível. Não me faças sofrer mais. Conta.- Entre setenta e oitenta mil libras - gritou-lhe Elfrida alegremente.- Não ouvi bem. Não pode ser verdade.- Ouviste muito bem o que eu disse e é verdade. Jamie disse que ocolega afirmou que se tratava de uma peça preciosa para qualquercoleccionador.416adoras a palavra preciosa? Se for para um leilão derelógios importantes e cronómetros marítimos da Boothby, até é possível

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qUe o número chegue mais alto.-Não sei o que dizer.E eu a afiançar, durante todo este tempo, que quem me livrariada miséria na minha velhice seria o meu pequeno quadro... Em vez dissoo meu verdadeiro tesouro era o relógio. Não é uma sorte ninguém o terfanado de cima da minha lareira na Poulton's Row?- Eu diria algo mais importante do que isso. Sobretudo, por nuncatrancares a porta da frente. Foi sempre um lindo objecto que tivesteali. Não estás a pensar em vendê-lo, pois não? Não deves desfazer-tedele.- Oh, Oscar, claro que vou vendê-lo! Então não vês? com esse dinheiropodemos transformar Billicliffe Villa na mais desejável dasresidências. Construir um jardim de inverno, um salão de baile...- Elfrida.- ... e comprar um microndas.- Elfrida, escuta. Se venderes o relógio, esse dinheiro é teu.- Oscar, escuta. Pertence a nós. E terminaremos os nossos dias numaencantadora vivenda ensolarada, tal como esta casa está sempre. E sequiseres cultivaremos batatas, alhos-porros, teremos Rose Miller mesmoao lado, e um hotel rural de quatro estrelas mesmo ao pé. Quem poderiadesejar mais? Não é tremendamente, maravilhosamente fantástico?- Claro que é. Mas, minha querida, temos de ser práticos. Racionais.- Detesto ser racional. Quero ir dançar para o meio da rua. Gritar aboa-nova de cima dos telhados.Oscar reflectiu na ideia, como se fosse perfeitamente viável. Depoisdisse:- Não.- Não?- Pelo menos por enquanto. Eu preferia que não se contasse nada aninguém, até eu ter oportunidade de apanhar Sam sozinho e explicar-lhea situação. Ele deve saber que estamos a pensar em vender a nossametade. Não ter de procurar outra casa será um grande alívio para ele.Neste momento tem bastante com que se preocupar, sem precisar de aindater de procurar onde viver. Não ficará connosco eternamente, Portanto,pô-lo-ei ao corrente antes que se vá embora e nunca mais voltemos a vêlo.Poderá precisar de tempo para reflectir sobre o assunto, talvezarranjar dinheiro. Não sabemos. Mas acho que deve ser a primeira pessoaa saber.- Sem dúvida. Tens toda a razão. Quando é que falas com ele?- Tentarei que vá comigo até ao pub hoje à tarde.- E os outros? Carrie e Lucy? - Depois de falar com Sam.417- E se a casa de Billicliffe vier a revelar-se um perfeito desastre?- Nesse caso, teremos de repensar o assunto.- Estou ansiosa por ir vê-la. Nós dois. Mas hoje à tarde não podemos irpor causa da neve. As estradas estão horrivelmente escorregadias. Eamanhã estamos impossibilitados por causa dos preparativos da festa.- E domingo?- Véspera de Natal!- É um dia tão bom como os outros. Vamos no domingo.- Está bem. Talvez devêssemos pedir a Sam que nos levasse no carrodele. Evitaríamos assim a possibilidade de ir parar a uma vala. -Reflectiu na questão e teve uma ideia ainda melhor. - Já sei. Iremostodos, inclusive Carrie e Lucy.Oscar ficou pensativo.- Isso representa estarem lá cinco pessoas, cada uma com a sua opiniãoe ideias.- Tanto melhor. Tenho a certeza de que Sam será maravilhosamenteprático. Falará de pormenores ligados à construção civil e saberá comoacabar com a humidade. E acabo de ter outra ideia brilhante. Já quevamos a Corrydale de manhã, e se não estiver a nevar ou a chover, quetal fazermos um piquenique ao almoço? Um piquenique de Inverno? Farei a

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minha «Sopa com Todos». Oscar, temos chave para entrar na casa doBillicliffe?Oscar ainda não pensara nesse pormenor.- Não.- Então como é que podemos lá ir?- Rose Miller deve ter uma chave, ou saber de alguém -que a tenha. voutelefonar-lhe. Tenho de lhe contar da morte do velhote, provavelmenteaté já sabe. E preciso de ligar a Peter Kennedy.CarrieForam até Buckly pela estreita estrada secundária que serpenteava aolongo da costa. A paisagem em redor não poderia ser mais invernosa:colinas brancas, céu cinzento percorrido por nuvens impulsionadas porumvento que soprava dos mares do Árctico, e, por todo o lado, vastasplanuras cobertas de neve. Quando o carro chegou ao cume de uma colinabaixa, Carrie avistou, mais abaixo, o braço de mar, com a maré aencher, a escura floresta de coníferas na margem mais afastada e oaglomerado de casinhas brancas acima de uma ponte de atracação sem usoe em ruínas.Era a primeira vez que passava por ali.- Que nome tem o estuário? - perguntou.- É o Loch Fhada. Um santuário de aves - respondeu Sam.Enveredaram pela estrada costeira. A praia era rochosa e nadahospitaleira. O mar, que corria para a areia impulsionado pelaenchente, estava cinzento como o céu por cima e lançava jactos degotículas para o ar. Mais ao fundo, um grupo de focas descansava numbanco de areia. No preciso instante em que Carrie olhou, um bando depatos veio de leste e pousou numa poça de água isolada, que a maré aencher ainda não cobrira.Na ponta mais afastada do braço de mar, uma ponte estendia-se sobre aágua e, para além desta, era terreno selvagem, um vale estreito eprofundo coberto de arbustos, fetos e água estagnada, que se estendiamcolinas acima. Ao chegarem à estrada principal, viraram para norte; oslimpadores de neve tinham andado por ali, por isso a neve estava escuradevido à lama levantada por camiões e tractores. Entre a estrada e omar havia terra agrícola. Rebanhos amontoavam-se na várzea rodeada demolhes de pedregulhos, pequenas quintas com chaminés a deitarcorajosamente fumo tresandando a turfa. Um tractor atravessava um campoarrastando consigo um atrelado carregado de feno, e de uma porta saiuuma mulher que veio deitar pedacinhos de pão ao seu bando de gansosbarulhentos. Ao fundo, via-se um homem a andar pela berma da estrada,uma figura solitária, com a cabeça baixa para melhor arrostar a421força dos elementos. Trazia um cajado comprido e a seu lado seguia oseu cão-pastor. Ao passarem por ele, parou para lhes dar mais espaço eacenou-lhes com a mão calejada.- Faz lembrar - observou Carrie -, uma personagem de um quadro deBreughel.Carrie recordou as quintas no Sul de Inglaterra, muito arborizadas everdejantes, e a pequena propriedade que seu pai tinha na Cornualhaonde as vacas leiteiras pastavam em condições climatéricas comoaquelas.- Não consigo imaginar o que é trabalhar numa quinta com um tempodestes. Parece mais uma questão de sobrevivência do que qualquer outracoisa - comentou.- Estão sempre preparados para o mau tempo. Os invernos foram sempreduros. Além disso, são de uma cepa resistente.- Nem podiam deixar de ser.Iam a caminho para conhecer a fábrica de lanifícios, onde residia ofuturo de Sam. Carrie, naquele momento, desejava nunca ter feito asugestão com tanto à-vontade. «Gostaria de conhecer a sua fábrica»,dissera, sem fazer ideia de que ele se mostraria tão entusiasmado com a

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perspectiva. Isso fora antes de tudo o que acontecera depois, e naquelamanhã, claro, era demasiado tarde para recuar, para dar algumadesculpa, para fazer de conta que, afinal, não estava particularmenteinteressada.Demasiado tarde. Demasiado tarde para apagar o acesso de sinceridade eespontaneidade que tivera, a verdade que procurara sempre guardar sópara si mesma, escondida e esperançosamente insuspeita. Disse de sipara si que não conseguia perceber como tudo aquilo viera à baila,sabendo perfeitamente o que precipitara o derrube das defesas, o abrirdo seu próprio coração malogrado.Fora Corrydale. O lugar. A neve iluminada pelo sol, o cheiro perfumadodos pinheiros, os céus azul-escuros, as montanhas ao fundo do estuárioreluzente. O calor do sol baixo a atravessar-lhe o tecido acolchoado docasacão, o estalar da neve fresca sob os pés, o deslumbramento, oprazer de encher os pulmões de ar puro e frio. Áustria. Oberbeuren. EAndreas: o lugar e o homem, indivisíveis. Andreas ali, naquele momento,a caminhar ao seu lado, a falar incessantemente, naquele seu tom de vozbaixo e brincalhão. Andreas. A fazerem planos, a fazerem amor. A ilusãoera tão forte que teve a sensação de sentir o cheiro refrescante alimão da loção de barbear que ele usava. E mesmo sentindo a presençadele tão fortemente, sabia que não passava da sua imaginação delirante.Porque Andreas desaparecera. Voltara para Ingá e os filhos, deixandoCarrie com uma tal sensação de dor e perda que a privara imediatamentede toda a possibilidade de permanecer fria e racional.Sam, ao falar da mulher, do casamento desfeito e do fim do seu 422trabalho em Nova Iorque, apenas acentuara ainda mais a sua tristeza, equando o ouvira proferir aquela palavra horrível, «rejeitada», dirigirapara ele aquela espécie de raiva de que nunca se julgara capaz, aspalavras de fúria tinham-se soltado e as lágrimas haviam rompido odique. Um choro que a deixara envergonhada e humilhada, e quandotentara fugir da sua própria humilhação, Sam puxara-a contra si eabraçara-a, mantendo-a apertada, como teria feito com uma criançainconsolável.Naquele momento pensava que, num livro, num filme, aquele momento teriasido o fim. O abraço final, depois de bobinas de antagonismo eincompreensão, a câmara a recuar de modo a fazer um plano geral,subindo até ao céu para mostrar um bando de gansos em voo ou qualqueroutro símbolo significativo, enquanto o emocionante tema musical seouvia, a ficha técnica rolava e ficava a pairar a sensação agradável deum final feliz.A vida, porém, não parara no final da história. Continuara. O abraço deSam, os braços dele à sua volta, o contacto físico, a proximidadeconfortara-a, mas não derretera aquele seu gelo. Ela não mudara.Continuava a ser Carrie, trinta anos, o amor da sua vida desaparecidopara sempre. Talvez quisesse ficar mesmo assim, com o coração congeladocomo a paisagem invernosa que a rodeava. Talvez quisesse ficar mesmoassim.Elfrida dissera, com tristeza, «O mundo está cheio de homens casados».O melhor era não ficar perto de outra pessoa. Quanto mais perto seficava, maiores eram as probabilidades de se vir a sofrer.McTaggart, de Buckly.A fábrica ficava nos arredores de uma pequena cidade, separada daestrada principal por um muro de pedra e um imponente portão-duplo emferro forjado, com largueza suficiente para permitir a passagem de umcavalo e uma carroça. No alto via-se um aro decorativo, coroado por umemblema ornado, de aparência vagamente heráldica.Naquela manhã, o portão encontrava-se aberto, e no lado de láespraiava-se uma área espaçosa, com canteiros circulares altos paraflores, de paredes feitas de pedras arredondadas. A neve cobria tudonaquele momento, mas Carrie calculou que, no Verão, florissem ali unsbelos gerânios, lobélias e outras plantas aprovadas pelo município.A neve apresentava-se virgem de pegadas e trilhas de pneus. Eles eram,

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sem sombra de dúvida, os primeiros visitantes do dia. Carrie viu afábrica pela primeira vez através do pára-brisas e percebeuimediatamente o que levara as autoridades ambientalistas aconsiderarem-na digna de figurar entre os edifícios protegidos. Haviauma chaminé industrial, evidentemente, que se erguia em toda a suaimponência por detrás do telhado cor de piche, assim como outrasconstruções mais utilitárias423e armazéns, porém o edifício principal era simultaneamemteimpressionante e agradável de ver.Construído com a pedra local, a sua fachada era longa e agradávelmentesimétrica. O frontão central tinha um relógio de torre no alto. Porbaixo deste via-se uma única janela no primeiro piso, e depois maisabaixo, uma imponente porta dupla, no cimo da qual havia uma elegantebandeira semicircular em vidro. As alas, uma de cada lado do frontão,tinham uma fiada dupla de janelas, todas formalmente envidraçadas. Otelhado inclinado era em ardósia, entremeado de clarabóias e aqui eali, as paredes de pedra eram suavizadas pelo verde-escuro e brilhantede trepadeiras.Sam parou em frente da porta grande e desceram para o chão coberto deneve. Carrie deteve-se por um momento, olhando em seu redor, e Sam foisepôr ao seu lado, com as mãos enfiadas nos bolsos da sua Barbour.Passado um bocado, perguntou:- Que tal?- Acho o edifício muito bonito.- É como lhe disse, nem pensar em deitar tudo abaixo e começar de raiz.- Estava à espera de uma fábrica escura, satânica. Isto parece mais umaescola pública com excelente manutenção. Só faltam recintos de jogoscom as respectivas infra-estruturas.- Os edifícios originais da fábrica ficam nas traseiras, mais perto dorio. Este bloco foi erguido em mil oitocentos e sessenta e cinco,portanto é relativamente novo. Foi concebido para ser uma espécie defachada. Escritórios, salas de venda, salas de reuniões, esse tipo decoisa. Havia até uma sala de leitura para os empregados, um bom exemplodo paternalismo vitoriano. No primeiro andar, o espaço era destinadoaos produtos acabados, e no seguinte, nos sótãos, armazenava-se a lã. Épreciso ter em conta que o negócio já vinha desde meados do séculodezoito. O rio, evidentemente, foi a razão que levou a que a fábricaoriginal fosse implantada neste local específico.- Tudo parece em ordem. Custa a acreditar que tenha havido uma cheiafatídica - observou Carrie.- Pois, então, prepare-se. Vai ficar em estado de choque.Tirou uma chave avantajada do bolso, introduziu-a no buraco dafechadura, virou-a e empurrou a porta aberta. Desviou-se para queCarrie passasse, entrando num vestíbulo quadrado e de tecto alto.Reinava a maior devastação.Estava vazio. A marca da altura atingida pela água da cheiaultrapassava mesmo o metro e meio. Acima desta, o lindo papel de paredeaveludado sobrevivera, mas, em baixo, toda a cor se desvanecera e opapel pelara, despegando da parede aos bocados. Também no soalho, detábuas nuas, houvera muitos danos: as velhas tábuas tinham apodrecido424e partido; viam-se buracões que mostravam as fundações profundas. Noar, sobrepondo-se a tudo, prevalecia o cheiro deprimente a bolor ehumidade.Esta era a área de recepção destinada aos visitantes, ou novosclientes, onde era importante dar uma boa impressão. Acho que estavatudo muito bem mobilado e alcatifado, com retratos de vários fundadoresMcTaggart pendurados nas paredes. Como pode ver, a cornija de gessosobreviveu, no entanto, a cheia destruiu irremediavelmente tudo oresto, que teve de ir para o lixo.-Quanto tempo demorou a água a descer?

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- Cerca de uma semana. Assim que foi possível, instalaram-se secadoresindustriais, na tentativa de secar as coisas, mas já não se veio atempo de salvar o que quer que fosse aqui.- O rio já tinha tido alguma cheia antes?- Uma vez. Há cerca de cinco anos. Depois disso, construíram umabarragem e uma comporta para controlar o nível da água. Mas, desta vez,a chuva foi implacável e, para piorar ainda mais a situação, coincidiucom uma enorme maré cheia e o rio simplesmente galgou as margens.- É quase impossível imaginar.- Eu sei. Venha ver... cuidado, veja onde põe os pés, não quero quecaia por um destes buracos nas tábuas.Ao fundo do vestíbulo havia outra porta, que Sam abriu. Carrie seguiuo.Era um pouco como passar pela divisória de baeta verde de um casarãocom alojamento para empregados, pois ia dar a um espaço de pisolajeado, grande como um armazém e com um tecto de vidro que deixavapassar a luz. Estava vazio, fazia eco e reinava nele um friotrespassante. Aqui e ali notavam-se vestígios da indústria que aliimperara, como era o caso dos suportes firmados no chão, onde antestinham ficado os teares e, ao fundo, uma escada sem corrimão conduzia auma galeria superior.Reinava uma sensação de morte e triste desolação.- O que havia aqui? - perguntou Carrie.A sua voz ecoou no tecto alto e nas paredes despidas e manchadas.- Isto é uma sala de tecelagem. Fergus Skinner, o encarregado dafábrica na altura da cheia, contou-me parte do que aconteceu. Nessanoite, estiveram a trabalhar aqui até às onze porque, apesar da água játer começado a entrar, estavam esperançados de que não subisse muitomais. Não foi o que aconteceu, e eles passaram o resto da noite alevantar tudo o que puderam do chão. Uma tarefa desesperada que depouco ou nada valeu. Salvaram tudo o que foi possível: os aparelhos defiação, embora já estivessem muito danificados; as velhas máquinas demadeira de lavar lã e as cardadoras sobreviveram. Financeiramente, odesastre pior reflectiu-se nos produtos acabados, encomendas no valorde milhares de libras, embalados e prontos para enviar. Foi essa aPerda que, verdadeiramente, acabou com a McTaggart.425- O escritório ficava no rés-do-chão?- Infelizmente, sim. Fergus contou-me que ainda foi até lá no meio daágua, que na altura já lhe chegava à cintura, para ver se conseguiasalvar alguma coisa, mas os computadores já estavam submersos e osdocumentos flutuavam pelo corredor fora, na sua direcção...- Que aconteceu no dia seguinte? Os trabalhadores?- Foram todos dispensados. Sem alternativa. Mas quando as águasbaixaram, uma centena de homens apareceu por aqui para tentar salvar oque fosse possível. Metade da maquinaria teve de ser arrancada aosbocados, incluindo as lançadeiras de tear electrónicas alemãs,recentemente instaladas. De nada valeu toda essa tecnologia moderna eextremamente cara. O que sobreviveu foi parte das máquinas mais antigase menos sofisticadas, teares que tinham sido comprados em segunda-mão ejá tinham quarenta ou cinquenta anos. Os engenheiros desmontaram acardadora e limparam-na antes que ganhasse ferrugem, portanto essa podeser aproveitada. E havia algumas máquinas especializadas, vindas deItália. Neste momento estão armazenadas e tencionamos mandá-las paraMilão, a fim de serem renovadas e postas de novo a funcionar.Carrie, apesar de fascinada e atenta, começara a sentir frio. Ahumidade gélida insinuou-se através das solas das suas botas e fê-latremer. Sam reparou e ficou cheio de remorsos.- Carrie, desculpe. Quando começo a falar nisto, esqueço-me de tudo oresto. Quer ir embora? Já lhe chega, não?- Não. Quero ver tudo. Quero que me mostre tudo e me diga o que vaifazer, quais são os novos planos e onde tudo vai ficar. Neste momentoestou completamente avassalada pela perspectiva de fazer o quer que

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seja. É assustador. Como ter entre mãos uma missão impossível.- Nada é impossível.- Ainda assim... ser o responsável por isso...- É verdade, mas disponho dos recursos de uma enorme multinacional naretaguarda. Isso faz uma diferença dos diabos.- Mesmo assim. Eles escolheram-no para este trabalho. Porque terá sido?Sam sorriu e ficou imediatamente não só com um ar juvenil como tambémtransbordante de confiança. Sabia do que estava a falar. Pisava terrenoconhecido.Respondeu:- Imagino que, basicamente, tenha sido por ser nado e criado noYorkshire. E filho de peixe sabe nadar. Agora venha ver o resto, antesque congele...Quando a visita terminou e saíram, finalmente, para o exterior, Carrieestava gelada até aos ossos. Ficou sobre a neve, esperando que Samfechasse e trancasse a porta da fábrica. Depois ele virou-se e viu-a,encolhida426dentro do seu casacão grosso cinzento, com as mãos enfiadas até aofundo dos bolsos.Parece enregelada, Carrie.- E estou.Desculpe. Não a devia ter deixado ficar ali dentro tanto tempo.Eu gostei. Os meus pés é que congelaram.- Espero não tê-la aborrecido.- De modo nenhum. Estou fascinada. Sam consultou o relógio.- São onze e meia. Voltamos já para Creagan ou prefere tomar antes umabebida reconfortante? Está com ar de quem apreciaria um Whiskey Mac.- Um café bastará.- Como quiser. Venha daí, entre no carro que não tardamos a aquecer.Afastaram-se então da fábrica deserta, rolando sobre as pedrasarredondadas e passando o magnífico portão; depois viraram à direita edesceram a estrada até Buckly, percorrendo ruas estreitas eserpenteantes até chegarem a uma pequena praça com uma estátua que eraum memorial de guerra. Viam-se poucas pessoas na rua, no entanto, aslojas pequenas tinham as luzes acesas e decorações natalícias nasmontras. A seguir atravessaram uma ponte de pedra que unia as duasravinas de um rio caudaloso, e, pouco depois, Sam parou em frente de umestabelecimento de ar sombrio que tinha as palavras DUKE's ARMSescritas em letras arredondadas a dourado. Carrie não se mostrou muitoentusiasmada.- Tenho a certeza - disse-lhe Sam -, de que em Buckly há lugares maisanimados, mas por acaso só conheço este. E é, no seu estilo bempróprio, uma raridade.- Não me parece nada divertido.- Faremos com que fique.Apearam-se, atravessaram o passeio e Sam empurrou a porta, que deixoupassar um cheiro quente a cerveja. Carrie seguiu-o, devagar. O interiorrevelou-se escuro e gasto, mas gloriosamente superaquecido. Na lareiraantiquada crepitava um fogo de carvão e sobre a cornija estavapendurado um peixe enorme, dentro de uma estrutura de vidro. Pequenasmesas vacilantes tinham bandejas para copos de cerveja e cinzeiros.Dava a impressão de que só ali estavam outros dois clientes, ambos emsilêncio, homens e idosos. O proprietário, ao balcão do bar, olhavaatentamente para um pequeno televisor a preto e branco, cujo volume desom se resumia a um murmúrio. Ouvia-se o tiquetaque de um relógio e, nafogueira, um pedaço de carvão tombou com um baque quase inaudível. Oambiente era tão sombrio que Carrie perguntou a si mesma se não seriamelhor darem simplesmente meia volta e saírem de mansinho.427Sam, porém, tinha outras ideias.- Venha - disse, fazendo com que a sua voz soasse audivelmente na sala.

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- Sente-se aqui, perto da fogueira. - Afastou uma cadeira da mesa. -Tenho a certeza de que haverá café se quiser um, mas não preferiaexperimentar um Whiskey Mac? É a bebida mais quente do mundo.Parecia mais tentador do que o café.- Está bem.Carrie sentou-se, tirou as luvas, desabotoou o casaco e estendeu asmãos para o fogo. Sam foi até ao balcão, onde o homem se afastou datelevisão com esforço para receber o seu pedido. A partir daí, comoacontece muito nos pubs rurais, puseram-se a conversar, falando em vozbaixa como se trocassem segredos.Carrie tirou o chapéu de pele e pousou-o em cima da cadeira ao seulado. Passou os dedos pelo cabelo e reparou no velho sentado por baixoda janela. Os olhos remansosos exprimiam a mais total desaprovação, oque fez com que Carrie deduzisse que o Duke's Arms não era frequentadopor mulheres. Tentou sorrir-lhe, mas ele limitou-se a mastigar adentadura, desviando a atenção para a sua cerveja.A conversa ao balcão continuou. Sam estava de costas para ela, naclássica posição de homem à vontade no seu bar do costume, com um péapoiado no varão de metal e um cotovelo sobre o balcão lustroso. Obarman foi tomando nota do pedido de Sam com toda a calma, parando devez em quando para tomar conhecimento do que iam dizendo na televisão.Carrie encostou-se às costas duras da cadeira e esticou as pernas,ficando a observá-los. Pensou que naquela manhã é que ela vira, pelaprimeira vez, o outro lado de Sam, o homem que viera do meio da neve,apenas três ou quatro dias antes, que fora obrigado pelo mau tempo aficar e tornara-se, sem esforço aparente ou bonomia forçada, parteintegrante de uma casa de gente diversificada. Absorvido com a mesmafacilidade com que o seria um velho convidado compenetrado.Lembrou-se de o ver encarregar-se, sem que lhe pedissem, de uma sériede tarefas muito pouco excitantes, como carregar enormes cestos delenha, encher o cesto de carvão, passear o cão, trinchar um faisãoassado e até estripar um salmão que Élfrida, num momento de loucura,não resistira a comprar ao homem que vendia peixe fresco na parte detrás da sua carrinha. Sam tirara neve à pazada sem se queixar,empurrara carrinhos de supermercado, repusera o estoque de vinho naadega de Oscar e comprara a árvore de Natal. Melhor ainda, montara-a noseu suporte de madeira e, por fim, conseguira desenredar e pôr afuncionar a gambiarra de Natal que todos os anos era uma dor de cabeça.Oscar mostrara-se particularmente grato por este nobre esforço.A um outro nível completamente diferente, provara ser uma ajudapreciosa quando Élfrida resolvera vender o seu quadro, fazendo aparecer428Sir James Erskine-Earle não se sabia de onde, qual coelho tirado de umacartola. O facto desse projecto ter dado em nada aborreceu Samconsideravelmente, como se a falta de valor da pintura fosse, de certomodo, da sua responsabilidade.Era um homem a quem era difícil resistir. Ele e Oscar (que não sedeixava enganar) tinham ficado logo amigos e companheiros, ao ponto dadiferença de idades não prejudicar minimamente. Quando ficavamsozinhos, não lhes faltavam assuntos dos quais falar, pois Oscargostava de partilhar recordações dos seus tempos de rapaz, quando iapassar o Verão com a avó a Corrydale. Como conhecia bem a zona, não sóas pessoas como também a terra, pôde transmitir muitas informações aSam, contando-lhe também uma série de anedotas sobre o distrito ondeSam iria viver e trabalhar.Saltava à vista que Oscar apreciava a companhia de outro homem, talvezum desconhecido, mas a quem se apegara instantaneamente. Estavafascinado pelo progresso da carreira de Sam, pela meninice passada noYorkshire, os anos vividos em Londres e em Nova Iorque, tendo agorapela frente o desafio de pôr um negócio defunto de novo em pé. Aorelembrar o velho McTaggart e os robustos tweeds que tinham saído dosseus teares, sentia-se espantado com os excitantes planos já traçados

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pela Sturrock & Swinfíeld, a maquinaria caríssima encomendada na Suíça,as maravilhas da tecnologia moderna, as perspectivas de mercado para osartigos de luxo, além do programa de reciclagem para os trabalhadores -o bem mais precioso de McTaggart.De vez em quando, num momento de lazer, deambulavam juntos até ao clubede golfe, ou passavam pelo pub de Creagan para uma conversa pacataentre homens.Também Elfrida estava embevecida pelo seu hóspede. Mas enfim, nuncafora capaz de resistir aos encantos de um homem atraente, sobretudo umque ria das suas observações espirituosas e era capaz de preparar ummartini seco impecável. Quanto a Lucy confidenciara certa noite aCarrie, quando esta subira ao sótão para lhe dar as boas-noites, queachava Sam quase tão bonito como Mel Gibson. Divertida, Carrieperguntara-lhe:- Nesse caso simpatizas com ele, não é?- Sim, simpatizo. É bonito e está-se à vontade ao pé dele. Normalmentesinto-me tímida na companhia de homens, como, por exemplo, os pais dasminhas amigas, mas Sam é uma espécie de tio que já se conhece há muitotempo ou um velho amigo.E fora assim que tudo se passara. E era assim que tudo teria ficadoPara Carrie, se não tivessem sido os acontecimentos traumatizantes dodia anterior.E aquela manhã.Nada, realmente, nada acontecera. Mas o facto de ter acompanhado Sampelas salas imponentes e frias da fábrica, os corredores que faziam429eco, os armazéns vazios e as salas de tinturaria, levara-a a tomar conciência, pela primeira vez, do alter ego de Sam. Este pareceu mudarperante os seus olhos. Cresceu em estatura ao descrever-lhe adevastação provocada pela cheia, falou com confiança e autoridade,explicou os planos para o futuro e citou números que lhe puseram acabeça à roda. Uma vez ou duas tentou explicar-lhe pormenores técnicosligados à fiação e à tecelagem, que ela mal entendeu, pois era um poucocomo se ele falasse numa língua estrangeira. Irritada pela sua própriaignorân cia, sentiu-se inferiorizada e também confusa, porque Sam, devolta ao seu próprio mundo, mostrava-se estranhamente transformado.Deixara de ser o amável hóspede dos últimos dias para assumir ocomando, um homem que não se podia deixar de respeitar e que ninguémdesejaria ter como inimigo.Sam regressou, finalmente, para junto dela, trazendo duas bebidas edois pacotes de amendoins.- Desculpe.- Pousou tudo em cima da mesa e puxou de uma cadeira. -Estive na conversa.- De que falavam?- Futebol. Pesca. Do tempo. De que mais poderia ser? - Trouxera umacaneca de cerveja para si. Ergueu-a e os olhos de ambos encontraram-se.- Slàinte.- Não conheço o dialecto.- É «bota abaixo» em gaélico.Carrie tomou um gole da sua bebida e pousou apressadamente o copo.- Caramba, que forte!- Nada melhor que isso para aquecer quando se está na montanha em plenoInverno. Isso ou ginja.- Como é que vai estar o tempo?- Vem aí um degelo. Por isso é que o nosso amigo está colado aotelevisor. O vento está a mudar para sudoeste e há correntes de ar maisquentes en route1.- Não iremos ter um Natal branco?- Será mais branco molhado do que branco gelado.- Isso significa que o Sam vai desaparecer instantaneamente?- Não. - Sam sacudiu a cabeça. - Convidaram-me para o Natal, portantofico. Seja como for, não tenho mais lado nenhum para onde irMas a vinte

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e seis ou vinte e sete terei de descer à terra e fazer as malas para meir embora. - Sorriu melancolicamente. - Será um pouco como chegar aofim das férias e voltar para a escola.- Não importa. Vem por aí muita alegria e animação. Como a festa deElfrida, por exemplo.- Terei de estar presente. Prometi que seria eu a preparar o martiniseco.-Não o faça demasiado forte. Não queremos nenhum comportamentoindecoroso, como Lady Erskine-Earle e Artur Snead a dançarem o HighlandFlings juntos.Isso seria desastroso.-Quando... quando for para Inverness, ficará por lá?Não. Tenho de estar em Londres na semana seguinte. A sedeabre durante dois dias antes do Ano Novo e David Swinfield marcou umareunião para essa altura. Depois, creio que irei novamente à Suíça.regressarei por volta de doze de Janeiro.- Lucy e eu vamos dia três. Temos reservas no voo da manhã. Mordiscou olábio, reflectindo no assunto. - Não estou nada ansiosa para que essedia chegue. Acho que Lucy vai ficar desconsolada, e não sei o que lhedizer para a animar. Só sei que não queria estar no lugar dela, deixartoda esta alegria e liberdade para voltar a encafuar-se dentro daqueleapartamento, junto de uma mãe que não ficará especialmente satisfeitapor vê-la.- Não pode ser assim tão mau.- Mas pode crer que é, Sam.- Lamento. vou comprar-lhe um esplêndido presente de Natal. Que achaque ela gostaria de receber?Carrie achou graça.- Ainda não fez as suas compras?- Tem de reconhecer que mal tive tempo. Amanhã de manhã irei aKingsferry tratar do assunto.- Amanhã? Será um pesadelo. Multidões nos passeios, bichas nas lojas.- Em Kingsferry? Duvido. Além disso, estou acostumado a comprar ospresentes na Regent Street ou na Quinta Avenida na véspera de Natal. Aconfusão e a barulheira dão-me um certo gozo. E ouvir a miudagem aberrar pelo Tannoy fora: «Eu vi a mamã a dar um beijinho ao Pai Natal.»E haverá tempo para estar no meio dessa mesma confusão.Carrie riu.- Isso para mim seria um pesadelo, mas compreendo o seu ponto de vista.E, vendo bem, com todos esses anos de experiência, a rua principal deKingsferry não parecerá minimamente alarmante. Não terá dificuldade emabrir caminho por entre a multidão.- Ainda não me disse o que hei-de comprar para Lucy.- Que tal um pequeno par de brincos em ouro? Algo bonito, mas nãodemasiado vistoso, para quando tirar os que agora traz - sugeriuCarrie.- Que Rory lhe ofereceu. Duvido que alguma vez os queira tirar.- Mesmo assim. Será agradável saber que tem outro par.- Verei.Sam ficou calado. Gerou-se um momento de silêncio entre os dois quelhes soube bem. Lá fora, na rua, um carro passou, e algures, uma431gaivota piava desalmadamente do cimo de uma chaminé açoitada pelovento. Sam pegou num dos pacotes de amendoins, abriu-o com rapidez edestreza, deitou alguns na palma da mão e ofereceu-os a Carrie.- Não sou grande apreciadora de amendoins - confessou ela. Sam comeualguns e atirou de novo o pacote para cima da mesa.- Simpatizo com Lucy. Uma destas manhãs concluí que a vida na Casa daQuinta é um pouco como estar num cruzeiro com mais alguns passageiros,maravilhosamente afastado de todo o stress e das tensões do dia-a-dia.Tenho a sinistra sensação de que seria perfeitamente capaz de me deixarandar a meio gás durante semanas, sem fazer o que quer que fosse.

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- Se pensar nisso, suponho que chegará à conclusão de que, para si,tudo o que aconteceu representou uma certa perda de tempo.Sam franziu a testa.- Uma perda de tempo?- Bem, o que o trouxe a Creagan foi inspeccionar a casa de HughieMcLellan, talvez comprá-la. Tudo isso foi por água abaixo. Portanto,agora vai ter de procurar algum outro lugar para morar.- Isso é o que menos me preocupa, neste momento.- Eu não estou a favor de ninguém. Por um lado, agrada-me a ideia deMister Howard, director da fábrica, viver na Casa da Quinta, um lugaradequadamente digno para um homem importante. Por outro, parece-me sero lar indicado para Elfrida e Oscar viverem felizes o crepúsculo da suavida.- Não considero Elfrida no crepúsculo da vida. Diria antes que está apassar pelo meio-dia. Mas tudo tem a ver, como acontece com a maioriadas coisas, com uma detestável questão de dinheiro. Talvez tenha sidouma desilusão, mas nunca uma perda de tempo. Que isso nunca lhe passepela cabeça.Carrie pegou no copo e tomou mais um gole da bebida ardente erevigorante. Pousou-o sobre o tampo de madeira da mesa cheio de marcase olhou para Sam. Nunca uma perda de tempo. Aconteceu então algo deextraordinário, pois, de repente, foi como se ela o visse de verdadepela primeira vez. Percebeu que aquela sua nova visão dele chegavademasiado tarde, pois ele iria embora e tudo terminaria, e o maisprovável era nunca mais voltar a vê-lo.Talvez fosse o calor da fogueira ou o efeito do Whisky Mac, mas o certoé que, de repente, sentiu-se perigosamente emocionada e bastanteinsegura de si mesma. Reflectiu no modo como os feridos, resultantes dealgum acidente pavoroso, ficam ligados a todo o tipo de tubos emáquinas, enquanto os entes queridos ficam à sua cabeceira, pegandolhesna mão, falando, esperando por algum indício de entendimento ououtro sinal. Depois, o milagre. A pálpebra que estremece, o meneio dacabeça. O começo da recuperação.432No dia anterior, em Corrydale, depois da torrente de palavras quejorrara e das lágrimas de raiva que vertera, Sam abraçara-a emantivera-a apertada contra si até parar de chorar. Mas ela não sentiranenhuma emoção, nenhuma atracção física à sua proximidade, apenas umagratidão relutante pelo seu consolo, e vergonha por se comportar comouma tola.Naquele momento, porém... talvez fosse o começo da recuperação, oderretimento da frieza de que se armara. Amar. Ser amada novamente...- Carrie.- Podemos falar?- Sobre o quê?- Nós dois. - Carrie não respondeu. Passado um bocado, Sam, talvezencorajado pelo seu silêncio, prosseguiu: - Tenho a impressão de quenos encontrámos e começámos a conhecer-nos em má altura. Estávamos osdois, por assim dizer, numa espécie de limbo. Talvez precisemos de umpouco de espaço para pôr em ordem os nossos vários problemas. Alémdisso, nenhum dos dois está livre. A Carrie responsabilizou-semoralmente por Lucy e eu continuo casado com Deborah. Sam observou areacção de Carrie com expressão simultaneamente ansiosa e grave. Comoera óbvio, a maneira como Carrie reagisse tinha a maior importânciapara si.- Que é que está a querer dizer-me, Sam?- Que talvez devêssemos dar algum tempo a nós próprios. A Carrieregressa a Londres, volta a tomar posse da sua casa e assume o novoemprego. Eu entro em contacto com o advogado de Deborah, em NovaIorque. Tenho quase a certeza de que nesta altura ela já iniciou oprocesso. Não sei quanto tempo levará, mas como não há filhos, tudoserá mais rápido e sem grandes complicações. Questões simplesmente

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materiais. O apartamento, o carro, o dinheiro.- É mesmo isso que deseja? O divórcio?- Não. - Era completamente sincero. - Não o quero. Do mesmo modo quenão quereria uma amputação cirúrgica. Mas tenho de me livrar do passadopara poder embarcar num novo futuro. Livrar-me de uma série deempecilhos emocionais.- Deborah ficará bem?- Espero que sim. E também desejo que seja feliz. Dispõe do apoio deuma família muito amiga e dedicada.- Terá de ir a Nova Iorque?- Provavelmente.- Irá ser penoso?- Terminar algo que já foi bom, tende a ser doloroso. Mas depois detudo terminado, a mágoa desaparece.- Sei do que fala - observou Carrie.433Sam prosseguiu:- Eu ficarei a viver e a trabalhar aqui em Buckly. A Carrie estará emLondres. A centenas de quilómetros de distância. Mas também sei queterei de andar de um lado para outro entre Londres e aqui, parareuniões, conferências e coisas do género. Por isso pensei que... nospoderíamos ver de novo. Ir a um concerto, jantar fora. Começar de novo.Como se este tempo nunca tivesse acontecido.Começar de novo. De fresco. Os dois. Carrie declarou:- Eu jamais quereria que este tempo não tivesse acontecido.- Ainda bem. Tem sido extraordinário, não tem? Mágico. Como diasroubados a uma outra vida, um outro mundo. Quando chegarem ao fim e eume for embora, ficarei cheio de saudades.Carrie tinha a mão pousada sobre a mesa, entre os dois, e a luz dafogueira reflectia-se nas faces facetadas do seu anel de diamantes esafira, arrancando-lhe reflexos.Sam perguntou, sem curiosidade:- Quem lhe deu esse anel?- Andreas.- Estava esperançado de que tivesse sido alguma tia idosa mas dedicada.- Não. Foi Andreas. Estávamos juntos em Munique. Ele viu-o num estojode veludo na montra de uma loja de antiguidades e entrou para mocomprar.- Deve andar sempre com ele - observou Sam. - Fica muito bem na suamão. Como é que eu a encontro em Londres, Carrie?- Na Overseas. Bruton Street. Vem na lista telefónica. E a partir deFevereiro volto a morar na Ranfurly Road.- Já não vou a Fulham desde que vendi a minha casa na Eel Park Common eparti para Nova Iorque. Talvez apareça por lá. Para matar saudades.Mostrar-me-á então onde mora.- com certeza. Farei o jantar.- Nada de promessas. Nem de compromissos.- De acordo.- Portanto ficamos assim?- Ficamos assim.- Óptimo - disse Sam.Então, como que para firmarem o combinado, ele cobriu a mão de Carriecom a sua e esta virou a sua para cima, envolvendo-lhe o pulso com osdedos. As bebidas chegaram ao fim, os amendoins ficaram esquecidos etalvez fosse altura de se retirarem, mas ambos estavam relutantes emfazê-lo. Deixaram-se, pois, ficar, enquanto o barman assistia a umconcurso televisivo ao mesmo tempo que ia polindo lentamente copos comum pano. E os dois idosos, com as cabeças afundadas na gola dos seussobretudos coçados, continuaram sentados, velhos e silenciosos como umpar de tartarugas a hibernar. Pareciam ignorar que, enquanto passavamali o resto da manhã, todo o mundo mudara.434

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SamNesse final de tarde, eram seis e meia, Sam encontrava-se, mais umavez, num pub, mas dessa vez emCreagan e na companhia de Oscar.«Vamos tomar um copo», sugerira Oscar.Estavam sozinhos na sala de estar da Casa da Quinta. Os outros andavamocupados noutros sítios: Carrie e Elfrida às voltas na cozinha, aprepararem o jantar, comida para a festa que teria lugar no diaseguinte, assim como os preparativos demorados para a ceia de Natal.Rory aparecera a meio da tarde com uma braçada enorme de ramos deazevinho cheio de bagas vermelhas, e ele e Lucy tinham-se lançado nasdecorações, tarefa que ainda decorria. Tinham ido ao fundo do quintalarrancar algumas pernadas compridas de hera verde-escura, e envolvertodo o corrimão, do sótão ao vestíbulo, com ela estava a custar-lhes umgrande esforço e a exigir-lhes muita concentração. Rory fora convidadopara o jantar e aceitara, o que dava mesmo jeito, pois tudo pareciaestar a levar bastante tempo.O pub de Corrydale era bastante mais alegre do que o Duke'Arms deBuckly, embora Sam achasse que recordaria sempre aquele lugar simplóriocom grande afecto e algum sentimento. Ali, as festividades da temporadajá pareciam ter começado e havia caras desconhecidas no bar. A umcanto, já se via um grupo muito animado: jovens, elegantemente trajadosde tweed, e as respectivas namoradas, com sotaque londrino. Saltava àvista que vinham de alguma casa de campo de família nas redondezas,aonde iriam passar o Natal e o fim de ano. Estavam, pensou Sam -esquecendo que em tempos também ele se comportara com igualtempestuosidade - a fazer um barulho excessivo e embaraÇante.Mas o ambiente era de grande animação. As lareiras crepitavam e oespaço estava todo enfeitado com Bambis de cartão e Pais Natal cobertosde partículas brilhantes, habilmente intercalados de azevinho.Abrir caminho até ao bar levou algum tempo, assim como obter a atençãodo barman frenético, mas Oscar pedira finalmente dois 437Famous Grouse, um para Sam com gelo e outro para si, com um pouco deágua da torneira. A seguir, tiveram de passar em revista o lugar embusca de um sítio onde se pudessem sentar. Por fim, instalaram-se numamesa desocupada que ficava a um canto escuro, longe da lareira. Nãoimportava. Havia calor suficiente.Oscar saudou, «À nossa!,» tomou um gole e foi directo ao assunto:- Achei que seria mais fácil conversarmos aqui do que em casa.Normalmente ou é o telefone que toca ou aparece alguém a perguntaralguma coisa. Não quis que fossemos incomodados.- Oscar, olhe que tudo isto me está a parecer altamente sinistro.- De sinistro nada tem, meu caro, apenas ligeiramente complicado E euqueria falar consigo a sós.- Que aconteceu?- O que aconteceu é que o major Billicliffe morreu. Certamente já lheconstou... sabe quem era o major Billicliffe, não sabe?- O velho feitor que se encontrava hospitalizado.- Exactamente.- Lamento.- Lamentamos todos, mas por razões diferentes. Seja como for, faleceu.Penso que estava doente há muito tempo, há mais tempo do que qualquerum de nós suspeitava. Para atalhar, Sam, ele deixou-me a casa que tinhaem Corrydale.- Mas isso são notícias maravilhosas!- Não estou tão certo. Aquilo está em muito mau estado.- Carrie e eu passámos por lá quando fomos buscar a árvore de Natal.Pareceu-me um pouco abandonada e completamente coberta de neve, masdiria que é uma bela propriedade. E, claro, com uma vista fantásticados campos e das árvores até à água.- Além da casa - continuou Oscar -, também me deixou o seu automóvel ea sua labrador, assim como uma pequena quantia de dinheiro.

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Sam fez uma careta.- No que se refere ao carro, não vejo grandes perspectivas. Deu-me aimpressão de que nunca mais volta a pegar. Quanto à cadela, penso quetem estado com Charlie Miller. Talvez o convença a ficar com ela.- Pois é.- Oscar, são óptimas notícias. Que pensa fazer com a casa? Vendê-la? Ouentão podia transformá-la num sítio para alugar nas férias que lheproporcionasse um dinheirito, como eles dizem.- Sim - retorquiu Oscar -, podia. Mas Elfrida e eu estamos a pensar napossibilidade de ir viver para lá. Sei que parece um pouco estranho etudo depende da reacção de Elfrida quando vir realmente como aquilo é.Sabe, ela nunca foi a Corrydale. Antes de vocês chegarem, reconheço quepouco fazíamos. Mantínhamos uma certa discrição. Além disso, ela sabiaque, estranhamente, eu tinha um certo receio em voltar a um lugar onde,há muito tempo, fora tão feliz.438Compreendo.Claro que, quando cá chegámos, passámos logo por lá para irbuscar a chave da Casa da Quinta, mas estava escuro e frio, sentíamonOSfatigados e como o velho Billicliffe não era o mais agradável dosanfitriões, não descansámos enquanto não nos viemos embora. Quandoadoeceu e fui vê-lo, estava ele de cama, tudo parecia ainda pior. Demodo que a impressão que temos do local é tão má que temos de pensarmuito bem antes de nos decidirmos, e dar uma boa vista de olhos atudo.- Gostariam de ir viver para lá? - perguntou Sam. - Não é muitoisolado?- Nem por isso. Um pouco afastado da estrada, mas com vizinhos à volta.A casa de quinta, os Miller, e Rose, que foi empregada da minha avó.Uma pequena comunidade. A casa deve precisar de umas boas obras eteremos de reflectir nisso, mas a ideia é viável.- Pareceu-me um pouco negligenciada, mas o telhado não estava a cairnem havia janelas partidas. Que espaço teriam? - perguntou Sam.- Antigamente todas as casas de quinta tinham a mesma concepção, duasdivisões em cima, duas em baixo. Depois da guerra acrescentaram-lhespequenas cozinhas e casas de banho.- Haverá espaço suficiente para vocês dois?- Penso que sim. Aqui entre nós, não temos muitos tarecos.- E a Casa da Quinta?- Por isso é que quis falar consigo. Se mudarmos para Corrydale,Elfrida e eu queremos que fique com a nossa parte. Isso significa quepode entrar em contacto com Hughie e dizer-lhe que deseja comprar ambasas partes.- Se mudarem para Corrydale?- Sim.- E se Elfrida não quiser viver lá? E se vocês mudarem de ideia depoisde verem bem aquilo por lá?- Nesse caso, teremos de repensar o assunto. Mas olhe que não tenhovontade nenhuma de que isso aconteça. Claro que será preciso gastaralgum dinheiro para tornar a casa segura, seca e quente. Pintá-la e,provavelmente, substituir as janelas. Esse tipo de melhorias. Mas, aquientre nós, não teríamos problemas em fazê-lo. E se eu receber setenta ecinco mil pela minha parte da Casa da Quinta, então é que não haverámesmo nenhuma dificuldade financeira.- Setenta e cinco mil, Oscar?- Foi a soma que mencionou.- Não. Foi a soma que Hughie mencionou. O que acaba de me dizer mudatudo.- Não compreendo.- Estou convencido de que o seu primo Hughie está a precisar439muito de dinheiro. E depressa. Foi por isso que não descansou enquanto

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não me meteu a chave na mão e se mostrou tão ansioso por evitar adespesa acrescida de uma fatia para um agente imobiliário.Pessoalmente, acho que a Casa da Quinta vale muito mais do que cento ecinquenta mil libras. Portanto, tem de se pôr em campo, Oscar. Antes decontinuarmos a falar neste assunto, precisa de mandar fazer umaavaliação independente. Depois disso, é consultar um advogado paratratar da escritura. É possível que lhe digam, estou convencido disso,que a casa vale bastante mais do que cento e cinquenta mil libras.Pessoalmente oferecer-lhe-ia mais cinquenta mil. Se calhar, mais. Oscarficou de boca aberta.- Duzentas mil libras?- No mínimo. E outra coisa, Oscar. Pode resolver-se a pô-la no mercadoaberto.- Não. Quero vendê-la a si.- Um negócio privado?- Sim.- Nesse caso, a lei obriga-me a fazer-lhe uma oferta bem acima do preçoavaliado. - Sam sorriu. - Tudo indica, portanto, que o Oscar vai sairsemuito bem.- Estou estupefacto. De que lado está o Sam?- Do seu e do de Elfrida. Vocês têm aqui uma propriedade maravilhosa, eeu não podia ter mais vontade de a comprar. Mas não ficaria bem com aminha consciência se o negócio não fosse feito da forma mais isenta.- Dispõe dessa quantidade de dinheiro?- Disponho. E mesmo que assim não fosse, tenho a Sturrock & Swinfíeldpor trás de mim, sólida como uma rocha. Trabalhar para uma grandemultinacional tem as suas vantagens.Oscar sacudiu a cabeça, completamente siderado pela evolução dosacontecimentos.- Bem, diabos me levem! - exclamou. Sam riu-se.- Não se entusiasme de mais. Pelo menos até inspeccionar bem essa suaoutra propriedade.- Refere-se à casa do Billicliffe. Elfrida achou que podíamos ir todosaté lá no domingo de manhã e dar uma olhada. E emprestar uma certapomposidade à ocasião. Fazer um piquenique. Se chover ou nevar, serádentro de casa. Tenho de descobrir quem tem a chave. Telefonarei aRose. Ela deve saber.- Tem a certeza de que nos quer a todos lá? Não se deve deixarinfluenciar. A decisão deve ser sua e de Elfrida. Devem-no a vocêsmesmos.- Claro que devem vir. Elfrida precisa de si para bater nas paredes ever se há caruncho na madeira.440- Isso é pôr demasiada tentação na minha frente. Poderei fazer de contaque não há.-Não creio que fosse capaz disso - redarguiu Oscar. - O Sam éum bom homem.- Um santo. E para o provar e fechar o negócio, deixe-me oferecer-lhemais uma dose. Assim, parecerá que somos os dois homens gastadores emerecemos brindar um ao outro.LucySexta-feira, 22 de DezembroEu adoro estar aqui porque as coisas que desejamos acontecem, eacontecem na altura absolutamente certa. O dia de hoje foi, todo ele,cheio de acontecimentos inesperados. Ainda estáterrivelmente frio, e ventoso também, o que ainda torna o frio maisintenso, mas ainda assim isso faz parte do que vai acontecendo. Deixoude nevar, mas ainda se vê neve por todo o lado, e as ruas são metadeneve meio derretida, metade lixo congelado. Para se ir às compras, temde se andar pelo meio da rua. Seja como for, esta manhã estava eu aembrulhar os meus presentes de Natal quando a fita se me acabou. Fuicomprar mais um bocado e aproveitei para levar Horace a dar um passeio.

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Fomos até à praia e quando voltámos para casa e para o calor, soubemesmo bem. À tarde, Rory apareceu com montes de azevinho que surripioudo jardim do hotel (o hotel está fechado) e passou a tarde toda aajudar-me nas decorações. Pusemos azevinho à volta dos quadros (dospoucos que existem) e num jarrão grande no patamar. Depois fomosapanhar hera e arranjámos um bocado de cordão verde para prendê-la pelocorrimão, de cima a baixo. A hera tinha uns insectozitos, mas passadoum bocado já lá não estavam, se calhar foram fazer pequenos habitáculosacolhedores pela casa toda. A hera deita um cheiro forte, mas é umagradável odor natalício. Levámos muito tempo, tanto tempo que Elfridaconvidou Rory para ficar para o jantar, para assim podermos terminartudo. Enquanto o fazíamos, Elfrida e Carrie estiveram na cozinha afazer os preparativos para os próximos dois dias. Havia sconesquentinhos para o chá, feitos por Carrie. Por volta das seis da tarde,ainda elas estavam metidas na cozinha, Oscar e Sam foram até ao pubtomar uma bebida, e quando voltaram, Rory e eu já tínhamos terminado eOscar disse que estava tudo muito bonito. Sam sugeriu que puséssemosuma gambiarra de luzes ao longo da hera, mas como não tínhamos445nenhuma, ofereceu-se para a trazer de Kingsferry quando lá fosse àscompras no dia seguinte.Acho que ele é a pessoa mais generosa que eu conheço. O jantar foiespaguete à bolonhesa com queijo, e depois empadas de carne e leitecreme.Então, durante o jantar, quando estávamos todos a falar, Oscarmandou-nos calar e escutar. Portanto assim fizemos.Contou-nos que tem uma outra casa. O major Billicliffe, que era feitorem Corrydale, morreu no hospital em Inverness e deixou tudo o quepossuía no seu testamento a Oscar, o que inclui a tal casinha na quintaCorrydale.Nunca lá fui, mas claro que Sam e Carrie já lá estiveram, no dia em queforam buscar a árvore de Natal. E Elfrida também já lá foi, só uma vez,embora fosse escuro.Seja como for, o que Oscar pretende fazer é vender a sua parte a Sam,que a quer comprar, e ele e Elfrida irão morar nessa tal outra casinha.Custa-me pensar que vão sair daqui, mas Elfrida diz que isto é umbocado grande de mais para eles, e eu até compreendo porque, quando nosformos embora, ficará muito vazio. Diz que, entre os dois, têm dinheirosuficiente para tornar a pequena casa do major Billicliffe muitobonita, e como têm vizinhos, não estarão sozinhos nalguma emergência.Mas nada será decidido até irmos a Corrydale dar uma vista de olhos. Demodo que iremos no domingo de manhã, Sam irá a guiar no seu Range Rovere faremos um piquenique. Eu perguntei se Rory também podia ir e Elfridarespondeu, É claro.» Vamos de manhã cedo, para podermos voltar antes doescurecer, e com um pouco de sorte haverá sol e teremos um piquenique asério. Neste momento, já são dez da noite e estou muito cansada. Esperoque todos nós gostemos da nova casinha. De certa maneira, penso queserá maravilhoso Elfrida e Oscar viverem no campo. E isso significa queele regressará a Corrydale, que era a casa da avó quando era pequeno.Como uma roda que completa um círculo. Ele é muito querido e desejomesmo que a casinha seja perfeita para eles, para quando eu voltar paraLondres poder pensar nos dois lá, juntinhos.Os meus presentes estão mesmo bonitos, todos embrulhados. Assim que osterminei, fui pô-los ao pé da árvore de Natal, na sala de jantar. Já láencontrei alguns e depois de lhes dar uma boa olhada, vi que eram deCarrie para todos nós. com um pouco de sorte, haverá muitos mais.A Festa de ElfridaNessa manhã, Sam foi o primeiro a descer. Eram oitohoras e todas as outras pessoas ainda dormiam. Na cozinha, pôs achaleira ao lume e depois abriu a porta das traseiras para deixarHorace ir ao quintal. O tempO mudara por completo. O barman do Duke'sArms tivera razão - pelo menos o seu televisor -, o ar matinal perderao seu frio mordente. Durante a noite, o vento de norte amainara, virara

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para oeste e, ao cimo do quintal, os pinheiros sussurravam ao sabor dabrisa mais amena. A luz dos candeeiros de rua permitiu a Sam ver que aneve começara a derreter nalguns sítios, revelando faixas de erva rijaE aos tufos, enquanto o ar cheirava deliciosamente a musgo e a terramolhada.Quando Horace, finalmente, voltou para dentro na sua companhia,deparou com Lucy, completamente vestida, a preparar umas torradas.-Ora viva! Que fazes?- Estou acordada desde as sete. Estive a ler e depois ouvi barulho cáem baixo e levantei-me. Vai a Kingsferry?- vou. Queres vir? vou fazer as compras de Natal antes que hajademasiada gente. Sempre poderás ajudar-me a carregar os embrulhos.As ruas estavam molhadas, porém a camada de gelo desaparecera. Alémdisso, o céu nublado começara a aclarar gradualmente. Ao atravessarem aponte, sobre a maré cheia, viram as águas profundas do estuário, cor deardósia escura, a penetrar terra adentro a ocidente, em direcção àscolinas que ainda não se tinham libertado da sua camada de neve e,provavelmente, ficariam assim até ao fim do Inverno. A leste, aspequenas ondas agitadas eram sopradas para terra pelo vento marítimo, eum par de gaivotas rasava a orla costeira onde o gado das Terras Altaspastava.- Faz lembrar um pouco um quadro antigo, não faz? - observou Lucy. -Sabe, daqueles que as pessoas com casas enormes costumam pendurar nasala de jantar.- Sei precisamente ao que te referes. Não são propriamente alegres,mas enfeitam.- Irá gostar de viver aqui em cima, na Escócia?449- Penso que sim. Acho que irei gostar mesmo muito de viver aqui.- Gostaria de vir cá no Verão. Ver como é. Rory diz que isto por aqui émuito divertido. Fazem windsurf. E Tabitha contou-me que há floressilvestres incríveis nas dunas e que todos os jardins de Corrydal seenchem de rosas.- Nesta altura do ano, custa a acreditar.- Vai mesmo viver na Casa da Quinta?- Se Oscar quiser vender-ma.- É muito grande para uma pessoa só.- Talvez utilize todas as salas em rotação.- Tenciona mudar tudo, transformá-la numa casa assustadoramente nova emoderna?- Não sei, Lucy. - Recordou o apartamento em Nova Iorque, que ficarairreconhecível depois de Deborah e o seu decorador de interioresterminarem o seu trabalho. - Preferia que ficasse tal como está.- A minha avó adora o que ela chama de renovar salas. A sala de estardo apartamento dela é toda em rosas e azuis e tem montes de bibelôs emlouça.- O apartamento é grande?- Sim, é. Bastante grande. E tem uma bela vista para o rio. Mas o meuquarto fica nas traseiras, e como dá para o pátio interior, não há nadapara ver. - Logo a seguir, receando dar a entender que se queixava,acrescentou: - Mas eu gosto dele, é todo para mim.- É bom ter um espaço só para nós.- Pois é. - Ficou calada por instantes, depois confessou: - Para dizera verdade, neste momento não estou a pensar em Londres. Normalmente,fico muito contente por voltar para o liceu e rever as minhas amigas,mas desta vez não tenho saudades absolutamente nenhumas.- Eu sinto o mesmo. No dia a seguir ao dia dos presentes tenho devoltar para Inverness e deitar de novo as mãos ao trabalho.- Mas o Sam voltará para vir morar permanentemente aqui.- Tu também podes voltar. Ficarias com Elfrida e Oscar.- Mas não seria na Casa da Quinta. E a casinha, se eles forem mesmoviver para lá, talvez não disponha de nenhum quarto suplementar.

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- Não creio que um pormenor insignificante como esse atrapalhasse. Elapunha-te na banheira, no sofá ou numa tenda no jardim.- No Verão isso até deve ser bastante divertido.Naquele momento tinham acabado de avistar as luzes de Kingsferry, assimcomo o pináculo da igreja e a torre da câmara municipal.- Já sabe o que vai oferecer a cada uma das pessoas? - perguntou Lucy.- Não faço ideia - retorquiu Sam. - Espero ter inspiração. Entraram narua principal na altura em que o relógio da torre batia as nove horas everificaram que a manhã já estava movimentada.450AS lojas tinham aberto, os carros passavam, as pessoas compravam pãofresco e jornais, e uma carrinha estacionada descarregava caixas defrutas e legumes, ramos de azevinho e árvores de Natal minúsculas. Oparque de estacionamento nas traseiras da igreja já estava meio lotadO.no entanto Sam ocupou um espaço, pagou o respectivo bilhete e saíram osdois a pé.Uma das ocupações preferidas de Lucy era fazer compras. Às vezes, emLondres, ia com a mãe e começava com muito entusiasmo, mas depois deduas horas a cirandar pelas lojas superaquecidas, à espera de queNicola se resolvesse sobre que par de sapatos levar ou que cor de bâtonescolher, fartava-se, queixava-se do calor e pedia licença para voltarpara casa.Fazer compras com Sam, no entanto, era completamente diferente.Entravam e saíam das lojas, sem dúvida, mas tomavam decisões rápidas enunca perguntavam o preço. Sam pagava tudo com o seu cartão de créditoe Lucy começara a desconfiar de que ele era tremendamente rico.As compras iam-se empilhando dentro de sacos de plástico: um casaco decaxemira verde-mar para Elfrida, umas luvas forradas a pele paraMistress Snead. Na livraria, escolheu uma caneta de tinta permanenteMont Blanc e uma agenda de secretária no melhor cabedal italiano paraOscar.Lucy reparou nuns rolos de papel dourado. Perguntou:- Já tem papel com que embrulhar todos os seus presentes?- Não.- Não será melhor arranjar algum? E também fita e cartões?- Escolhe tu. Em Nova Iorque, quando se compra algo, a vendedorapergunta, «Quer que embrulhe?» e se nós respondemos que sim, leva oobjecto e já o entrega pronto. Há anos que não embrulho um presente e,além disso, não tenho jeito nenhum.- Eu encarrego-me disso - ofereceu-se Lucy -, mas terá de ser o Sam aescrever os cartões.Afastou-se e, passado um bocado, voltou com seis rolos de papel, algunssaquinhos com cartões vermelhos decorados com azevinho e um novelo defita vermelha e dourada.Naquele momento já havia muito que carregar, porém, Sam ainda estavalonge do fim. Numa mercearia à moda antiga que cheirava um pouco à caveda Fortnum & Mason, e tinha ARMAZÉM ITALIANO escrito em letras douradasno alto da porta, passou muito tempo a escolher todo o tipo deiguarias: salmão fumado, ovos de codorniz, um frasco de caviar, caixasenormes de chocolates Bendick e um queijo stilton em pote de barro.Naquela altura, o homem que estava ao balcão, capaz de reconhecer umbom cliente quando o via, tornara-se grande amigo de Sam. Decidiramentre os dois, depois de alguma discussão, por uma dúzia de garrafas declarete especial, quatro de champanhe e uma de conhaque.451Tudo isto, reunido em cima do balcão, constituía um conjuntoimpressionante.- Como é que levaremos tudo isto para casa? - perguntou Lucy. Noentanto, o merceeiro informou que procederia à entrega na sua carrinha.Sam deu-lhe então a morada da Casa da Quinta e, mais uma vez,apresentou-lhe o seu cartão de crédito. Depois de tudo terminado ohomem foi-lhes abrir pessoalmente a porta, o que fez com uns certos

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floreados, desejando-lhes Feliz Natal.- Aquilo - comentou Lucy -, foi muito mais agradável do que andar àsvoltas num supermercado. Quem é que ainda falta? Certamente já deve tercomprado presente para todos.- Carrie?- Pensei que os chocolates eram para ela.- Não me parece que chocolates sejam um presente muito excitante, poisnão?- E que tal uma jóia preciosa? Ao fundo da rua há um joalheiro. Sei,porque Rory levou-me lá para furar as orelhas e comprar-me uns brincosespeciais.- Mostra-me.No entanto, antes de chegarem ao joalheiro, Sam reparou na pequenagaleria de arte, que ficava no outro lado da rua.- Deixa-me ir dar uma olhada - disse.Atravessaram então para o outro lado e puseram-se a ver a montra. Lucyachou que não havia nada de especial para admirar: um jarro azul ebranco com uns ramos secos e um pequeno quadro a óleo, emoldurado emdourado, sobre um pequeno cavalete. A pintura mostrava rosas num jarrode prata. Três cor-de-rosa e uma branca. E havia uma espécie de lençoem cima da mesa, assim como se via um bocado de cortina.Sam nada disse durante um grande bocado. Lucy olhou para ele eapercebeu-se de que, por alguma razão, a atenção dele fora atraída pelapequena natureza-morta.- Gosta? - perguntou Lucy.- Hum? Do quê? Ah, sim, gosto. É um Peploe.- Um quê?- Samuel Peploe. Um pintor escocês. Entremos.Abriu a porta e Lucy foi atrás dele. No interior, depararam com umasala surpreendentemente espaçosa, com as paredes cobertas de quadros.Viam-se vários objectos espalhados: esculturas e potes feitos à mãodeveras esquisitos, com ar de que deixariam passar água se fossemcheios. A um canto, havia uma secretária à qual se encontrava um homemnovo espantosamente franzino, que envergava um blusão larguíssimotricotado à mão. Tinha o cabelo abundante todo despenteado, a barba adespontar-lhe no queixo, e quando eles apareceram levantou-se com ar dequem estava muito fatigado.452- Viva.Sam cumprimentou:- Bons dias. O quadro que tem na montra...- Oh, sim, o Peploe.- É um original?- com certeza. Não negoceio com imitações. Sam manteve a calma.- Posso vê-lo?- Se quiser.Aproximou-se da montra, tirou-o do cavalete e trouxe-o para junto deSam, colocando-o de baixo das luzes do tecto. Sam pousou os sacos deplástico que carregava.- Posso? - perguntou, segurando na moldura pesada com cuidado. Enquantoo examinava reinou o maior silêncio, e o jovem, aparentemente demasiadoexausto para ficar de pé por mais tempo, recostou-se à secretária ecruzou os braços.Depois disso, nada mais de especial aconteceu. Lucy, farta de esperar,foi ver os outros quadros pendurados nas paredes (na maioriaabstractos) e as peças de cerâmica e de escultura. Havia uma, chamadaRacionalidade Dois, que consistia em dois bocados de madeira atados porum ferro enferrujado. Reparou que custava quinhentas libras e concluiuque, se um dia precisasse de arranjar rapidamente dinheiro, aquelaseria uma maneira tão eficaz como qualquer outra.Os dois homens puseram-se a conversar.- Qual a proveniência deste quadro? - quis saber Sam.

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- Uma casa antiga. Local. Num leilão. A idosa morreu. Fora amiga dePeploe quando este ainda era vivo. Não sei mesmo se o quadro não foi umpresente de casamento.- Foi muito astuto em adquiri-lo.- Não fui eu. Comprei-o a um negociante. É admirador do trabalho dePeploe?- A minha mãe tinha um. Agora está comigo. Armazenado em Londres.- Nesse caso...Lucy meteu-se na conversa e perguntou:- Para quem é, Sam?Sam, que aparentemente se esquecera dela, pareceu reparar na suapresença e pousou o quadro em cima da secretária.- Lucy, isto vai demorar algum tempo. Não hás-de querer ficar por aí àespera. - Apalpou o bolso de trás à procura da carteira, puxou dela etirou-lhe de dentro três notas de dez libras. - Ainda não comprámos asgambiarras de luzes para o corrimão. Ao lado do merceeiro há uma casade artigos eléctricos. Vais até lá e compras as que achares necessáriase depois voltas aqui. Deixa as compras aí... não tem graça nenhumaandares carregada. E se vires mais alguma coisa que aches que fazfalta, compra também. Okay?453- Okay. - respondeu Lucy.Meteu o dinheiro no bolso (trinta libras!), enfiou os sacos das compras debaixo da cadeira e saiu. Percebia perfeitamente que Sam não aqueria ali por dois motivos: primeiro, para que não ficasse a saber opreço do quadro, e segundo, ainda não comprara o presente para ela e,claro que não o podia fazer à sua frente.Saiu de novo para a rua e seguiu pelo mesmo caminho por onde viera.Esperava que Sam não lhe comprasse nenhum pote bamboleante mas tinha acerteza absoluta de que ele não o faria. Imaginou se o Samuel Peploenão seria para oferecer a Carrie. E trinta libras dariam paraquilómetros de luzinhas.Depois de alguma discussão e de um certo regateio, Sam e o jovemcabeludo chegaram a um acordo, que terminou com a compra do Peploe porSam. Enquanto o quadro ficou a ser embrulhado e os papéis a sertratados, Sam saiu, atravessou a rua e encontrou, sem grandedificuldade, a joalharia com a montra cheia de molduras em prata epequenos relógios ornamentados. Entrou e mostraram-lhe uma série debrincos, escolhendo um par de pequenos botões de margarida em ouro. Arapariga que o atendera colocou-os dentro de uma caixinha e esta dentrode um envelope dourado; ele pagou, enfiando o embrulho dentro do bolsodo casaco. Voltou à galeria de arte, onde já estava tudo pronto. Oúnico problema residia no facto de o jovem não trabalhar com cartões decrédito, pelo que Sam teve de lhe passar um cheque.- Em que nome ponho?- No meu.- E como é que se chama?- com certeza. - Apresentou-lhe um cartão. - Tristam Nightingale.Sam passou o cheque, cheio de comiseração pelo jovem. Um homem quecarregasse com um nome como aquele pouco encanto podia ter. Quandoassinava o seu próprio nome, Lucy reapareceu com mais uma caixa paracarregar para o carro.- Arranjaste as luzes? - perguntou-lhe.- Sim. Quatro fiadas. Acho que chegam, não?- com fartura. Pediremos a Rory que nos ajude a instalá-las. Entregou ocheque e pegou no embrulho pesado. - Muito obrigado.Tristam Nightingale pousou o cheque em cima da sua secretária. Eenquanto eles pegavam nos restantes embrulhos, trotou até à porta eabriu-a.- Um Feliz Natal para todos - desejou, à saída.- Para si também - retribuiu Sam que, assim que se afastaram osuficiente para não serem ouvidos, acrescentou: - Mister Nightingale.

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- Quem?- Chama-se Tristam Nightingale. Os pais deviam ser uns sádicos. Nãoadmira que deteste o mundo.454- Que nome pavoroso. Embora nesta altura já se deva ter habituado aele. Sam, para quem é o quadro?- Carrie. Não lhe digas.- Claro que não. Foi terrivelmente caro, não?- Sim, foi, mas quando as coisas são assim caras, uma pessoa não dizque custaram muito, mas sim que foram um bom Investimento.- Acho que é um presente lindo. E quando ela for viver de novo para aRanfurly Road, pode pendurá-lo na sala de estar.- Foi essa a minha ideia.- Assim lembrar-se-á da Escócia, Corrydale, tudo.- Também pensei nisso.- Voltará a vê-la?- Não sei. - Sam sorriu para Lucy. - Espero que sim.- Eu também espero que sim - disse Lucy. Passado um bocado: - Foi umamanhã esplêndida. Obrigada por me ter trazido consigo.- E eu agradeço-te por teres vindo. Foste uma tremenda ajuda.Às cinco e meia dessa tarde, a Casa da Quinta estava pronta para afesta de Elfrida.A porta da entrada apresentava-se engalanada com uma coroa de azevinhoe a luz de cima iluminava claramente um cartão pregado com um pionésque dizia É FAVOR ENTRAR. Elfrida esperava, assim, evitar o toque dacampainha, o ladrar de Horace e a correria constante escada abaixo eescada acima para ir receber os convidados. Mal se abria a porta, aárvore de Natal aparecia em toda a sua grandiosidade, iluminada e cheiade embrulhos aos pés. Ao fundo do vestíbulo a escada subia, entrançadade azevinho e hera, cheia de luzinhas coloridas.Mais acima, o patamar fora transformado em bar, nele se encontrando amesinha da janela - transferida para a sua nova localização por Oscar eSam - que exibia uma toalha branca que mais não era senão um dosmelhores lençóis de linho de Mistress Snead, e nela viam-se,impecavelmente alinhadas, garrafas, um balde com gelo e fileiras decopos reluzentes.Tudo aquilo custara algum tempo e esforço; assim, logo que os Sneadchegaram para se encarregar dos últimos preparativos, como aquecerem asminipizas e enfiar os palitos nas salsichas quentes, todosdesapareceram para fazer a barba, tomar banho, mudar de roupa e, de umamaneira geral, enfeitarem-se para a noite que se avizinhava. De detrásde portas fechadas vinha o barulho de torneiras a correr, o zunido demáquinas de barbear eléctricas e o perfume agradável de essências debanho.Horace, que se esgueirara até ao andar de cima à procura de outracompanhia que não a dos Snead, não encontrou ninguém, portanto dirigiuse455para a sala de estar e instalou-se confortavelmente em frente à lareiraacesa.Oscar foi o primeiro a emergir. Fechou a porta do quarto e deteve -se,por momentos, a saborear a transformação que o Natal emprestara à suacasa, preparado e pronto para a chegada dos convidados. Reparou nadisposição impecável dos copos que, de tão lustrosos faziam lembrarbolhas de sabão, no verde e dourado das garrafas de champanhe metidasnum balde de gelo, no linho branco engomado dos guardanapos e datoalha. A cortina da janela do patamar estava corrida, ocultando anoite, e os três pisos da escada apresentavam-se entretecidos deverdura, azevinho com bagas vermelhas e luzes brilhantes. Lá se forapensou, o desolado solstício de Inverno, tudo o que prometera aElfrida. Pareceu-lhe que a Casa da Quinta, normalmente tão minimalistae austera, porém naquele momento vestida e adornada com tanto requinte,era um pouco como uma tia altiva, velha mas imensamente amada que

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pusera os seus melhores atavios e jóias para uma ocasião especial,acabando por não ficar nada mal.Também Oscar fizera um esforço e pusera o seu velho smoking preferido ea sua melhor camisa de seda. Elfrida escolhera-lhe a gravata einsistira para que calçasse os seus sapatos de quarto em veludo pretodebruado a dourado. Mal conseguia recordar-se da última vez em que sevestira a rigor, mas o toque da seda contra a pele sabia-lhe bem,pusera um pouco de água-de-colónia e alisara a farta cabeleira branca.Elfrida, que ele deixara ao espelho, ainda em robe e a enfiar as suasargolas, dissera-lhe que tinha um ar gostoso.As vozes do casal Snead chegavam da cozinha, assim como outros sons deactividade culinária. Mistress Snead apresentara-se, não com o seu fatode treino do costume mas com o seu melhor vestido de noite, preto comlantejoulas no corpete. Também fora arranjar o cabelo para a ocasião, edecorara o seu novo penteado com um laço de cetim preto.Oscar, enquanto tomava banho, fazia a barba, vestia e tagarelava comElfrida, não se permitira rememorar o seu último Natal na Granja, aprodigalidade daqueles tempos e a hospitalidade numa escala que custavaa acreditar - refeições copiosas, demasiados convidados, demasiadospresentes, árvore demasiado grande. Gloria conseguia sempre lidar comtudo aquilo, temperando as dimensões enormes de tudo com a sua alegriae generosidade de espírito.Oscar não se permitira recordar, mas agora que se encontrava nummomento raro de solidão, fê-lo. Tudo parecia ter sido já há muito tempo- mal conseguia acreditar que ainda só se passara um ano - e era umpouco como recordar um período passado noutra existência. Pensou emFrancesca, recordou-a a correr pela majestosa escadaria da casa daGranja abaixo com o cabelo solto, envergando um vestido de veludo pretooferecido pela mãe. Dava a impressão de andar sempre acelerada, como seo tempo fosse tão precioso que não houvesse um momento a perder.456Ainda não há muito, a lembrança da filha teria despedaçado Oscar dedor, mas naquele momento sentia-se apenas grato, pois Francesca fariasempre parte da sua vida, da sua existência. E porque, não obstantetudo o que acontecera, ele arranjara maneira de sobreviver. E mais,via-se rodeado e apoiado por amigos.Ouviu a porta da cozinha abrir-se, no piso de baixo, e Mistress Snead adar ordens a Arthur. A seguir, este subiu as escadas, trazendo umtabuleiro cheio daquilo que Mistress Snead designava de canapés:pequenas tostas cobertas de patê e outras delícias, assim como frutossecos. Arthur vestia as suas melhores calças de flanela cinzenta e oseu blusão de jogar bowling no clube, com o bolso do peito enfeitadocom um emblema dourado.Ao chegar ao último degrau, reparou em Oscar.- Ora bem, aí está o senhor, Mister Blundell, todo elegante! A minhamulher disse-me para trazer isto para a sala de estar. A comida quentevem mais tarde. A única coisa é que Horace esgueirou-se de lá parafora. Deve estar ao pé da lareira. Não o quero a comer isto.- É uma questão de colocar tudo fora do seu alcance, Arthur. AcompanhouArthur até à sala grande, que estava aquecida e tinha um ar acolhedor,apresentando-se estranhamente arrumada e limpa. Todas as luzes estavamacesas e o fogo ardia vigorosamente. Elfrida enchera jarras de azevinhoe crisântemos brancos, mas o melhor de tudo era o enorme vaso cheio delírios stargazer que Lucy lhe oferecera como presente de Natal. Arthurfora entregá-los a meio da manhã, todos embrulhados em papel celofane eatados com um laço cor-de-rosa enorme, e Elfrida por pouco não desataraa chorar, tão emocionada e deliciada ficara. Encontravam-se naquelemomento sobre uma mesinha ao lado do sofá, com as pétalas exóticas aabrirem lentamente com o calor da sala, libertando o seu perfumeintenso, quase tropical.Colocaram os frutos secos e as tostas bem fora do alcance de Horaceque, junto da lareira, fingia dormir profundamente. Oscar não sabia se

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devia mandar o cão novamente para baixo, mas resolveu deixá-lo, poisparecia todo regalado. Depois de disporem os pratos a uma alturasegura, Oscar e Arthur voltaram para junto do bar, onde encontraramSam, muito elegante no seu fato escuro e invejável camisa às riscasazuis e brancas.- Conhece Sam Howard, não é verdade, Arthur?- Creio que ainda não tive o prazer. Muito gosto.- Arthur vai ser o nosso barman, Sam.- Tenho a certeza de que sabe abrir uma garrafa de champanhe, Arthur -observou Sam.- Bem, não é que tenha grande prática, já que prefiro cerveja. Mas natelevisão, como acontece no Grand Prix, põem-se para lá a sacudir agarrafa e a molharem-se uns aos outros como se aquilo fosse umamangueira. Acho sempre um terrível desperdício.457Sam riu.- É divertido, mas também concordo consigo. Um terrível desperdício.Mas na verdade não tem problema. Não se quer rolhas a saltarruidosamente e a bater no tecto ou litros de espuma. - Tirou uma dasgarrafas do balde de gelo. - Basta retirar o arame, dão-se uns toquesna rolha... assim. E não se anda à volta com ela. Segura-se na garrafaassim... - Demonstrou a arte subtil e a rolha deslizou suavemente com omais suave dos sons, e o líquido dourado foi despejado para ò copo queo aguardava sem que uma única gota se perdesse.- Bem, realmente foi impecável - declarou Arthur. - Nunca imaginei quepodia ser feito com tanta calma.Elfrida, depois de ajeitada a última pestana, ficou a olhar para o seureflexo no espelho comprido do guarda-fato. Vestira umas calças pretasde seda e uma blusa preta em tecido transparente, sobre a qual colocaraum casaco comprido de seda verde. Os brincos pendentes e as longasfiadas de contas eram no mesmo tom esverdeado do casaco, a sombra dosolhos era azul, o bâton escarlate e o cabelo tinha um tom cor de fogoacabado de aplicar. Esperava que todos os amigos acabados de fazer emCorrydale não a achassem demasiado extravagante.Ao sair do quarto, deparou com Arthur Snead pronto para assumir as suasfunções no bar improvisado.- Arthur! Que elegante! Onde está Mistress Snead?- A acabar uns aperitivos na cozinha, Mistress Phipps. Não tarda aí.Espero que não se ofenda, mas acho que está com um ar de arrasar. Se aencontrasse na rua não a reconhecia.- Oh, obrigada, Arthur. Já estão todos presentes e prontos?- Lá dentro, ao pé da lareira. Os convidados devem estar mesmo achegar.- É suposto entrarem sozinhos, mas se não o fizerem, não se importa deir lá abaixo abrir-lhes a porta?- com certeza, Mistress Phipps. E agora que tal uma bela taça debolhinhas? Os outros já se serviram. Coragem de holandês, disse MisterBlundell. Não que eu ache que seja precisa muita coragem neste tipo decelebração.Serviu-lhe uma taça de champanhe e Elfrida foi juntar-se aos outros,levando-a na mão. A sala, tal como eles, parecia maravilhosamentesofisticada e glamorosa, qual ilustração de uma revista lustrosa. Lucyarranjara maneira de pentear o cabelo ao alto e, com as longas pernascobertas por meias pretas, o pescoço elegante e os brincos, parecia terdezassete anos. Quanto a Carrie, estava deslumbrantemente bonita, comum brilho na pele e nos olhos escuros que Elfrida já não lhe via háanos. Pusera um vestido preto sem mangas, simples como uma T-shirt, mascom uma saia que caía suavemente das ancas esguias até aos tornozelos.Nos pés viam-se-lhe umas sandálias que não eram458mais do que duas tiras de material reluzente, com saltos muito altos, eas únicas jóias que trazia era o seu anel de safira e um par de brincos

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de diamantes.Elfrida, ao vê-la, não pôde deixar de pensar como é que algum homemconseguia deixar de se apaixonar por ela, porém Sam estava a comportarsecom discrição e parecia encarar a aparência sensacional de Carriecom toda a naturalidade. O que, talvez, fosse bom sinal. Elfridaqueria, acima de tudo, que Carrie voltasse a ser feliz, no entantoOscar tinha razão. Era demasiado cedo para conjecturas e para armar emcasamenteira. Só havia que sentir satisfação com o que até aliacontecera. Que era, antes de mais nada, o facto de Sam ter surgido donada. E ele e Carrie parecerem, finalmente, ter feito amizade.Todos conversavam e foi Oscar, de pé ao pé da lareira, que viu Elfridaaparecer à porta. Os olhos de ambos encontraram-se e, por um instante,foi como se só ali estivessem os dois, sozinhos na sala fortementeiluminada. Depois, ele pousou a sua taça e aproximou-se, estendendo-lhea mão.- Estás absolutamente maravilhosa - disse-lhe.- Pensei que parecia um pouco como uma velha actriz batida. O que nãodeixa de ser verdade, claro. Mas feliz. - Beijou-o cuidadosamente naface, de maneira a não deixar nenhuma marca de bâton. E tu, Oscar? -Compreendiam-se perfeitamente. - Estás bem?Oscar acenou afirmativamente com a cabeça. No piso de baixo, alguémtocou à campainha por engano. Horace pôs-se de pé num salto, desatounuma cacofonia de latidos, correu para fora da sala e precipitou-sepelas escadas abaixo.Elfrida desatou a rir.- Lá se foram os meus cuidadosos planos - declarou.- Eu vou - disse Lucy imediatamente. (Era provável que esperassedeparar com os Kennedy, ansiosa para que Rory ficasse atónito perante asua nova imagem de rapariga mais crescida.) Desapareceu atrás de Horacee logo a seguir ouviram-se vozes.«Somos os primeiros?» «Chegámos demasiado cedo?» E Lucy a responder,«Claro que não. Estão à vossa espera. Dêem-me os vossos casacos. Façamo favor de subir.»Finalmente, a festa de Elfrida começara.Às oito menos um quarto da noite já tudo terminara. As famílias Rutleye Erskine-Earle haviam-se retirado ao som de despedidas eagradecimentos que soaram pela rua deserta. Somente os Kennedy ficarammais um pouco, visto também terem chegado mais tarde, directamentevindos da festa que se realizava anualmente no lar de idosos. Peter,que vinha com o seu colarinho alto, anunciou que estava cheio de chá epãezinhos, mas isso não o impediu de se deliciar com um bom copo e deentrar numa outra sala cheia de amigos um pouco menos geriátricos.459Naquele momento, instalara-se um certo langor. Sam avivara o fogo etodos se tinham deixado cair nos sofás, gratos por aliviarem o peso dospés. Rory e Lucy estavam na cozinha, a ajudar Mistress Snead e Arthurnas últimas arrumações. Barulhos animados e muita risada chegava aliacima, e era óbvio que, no andar de baixo, a festa continuava.Elfrida, enfiada no meio dos almofadões com uma grande sensação dealívio, observou:- Custa-me a acreditar que já tenha acabado. Andámos o dia todoatarefados e, quando mal se dá por isso, são oito da noite e osconvidados começam a olhar para o relógio e a dizer que são horas de irembora.- É sinal de que a festa foi boa - disse Peter. E acrescentou: Quandouma pessoa está a divertir-se, o tempo voa.Sentara-se na ampla poltrona ao pé da lareira e a mulher instalara-seem cima do tapete, confortavelmente encostada aos seus joelhos.- Gostei de Lady Erskine-Earle - comentou Carrie. - Fazia lembrar umadorável pónei das Terras Altas, toda vestida de caxemira e pérolas.Tabitha riu-se.- Não é mesmo uma estrela?

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- Ela e Mistress Snead conversaram imenso.- Isso porque pertencem ambas à comissão de fundos da igreja. E aoInstituto Feminino. Elfrida, convidar os Snead foi uma benesse semtamanho. Quando o casal Snead está presente, não há que recear pausasincomodativas.- Não é em vão que Arthur é comerciante - salientou Oscar. Nunca perdeuma oportunidade. Quando não estava a fazer de mordomo ou de convidado,encontrava tempo para também cuidar um pouco de negócios. Encomendaspara o Ano Novo: crisântemos para Emma Erskine-Earle e seis pêrasabacatepara Janet Sinclair. A propósito, acho Janet um encanto. Aindanão a conhecíamos. Apenas o doutor, por ter vindo ver Carrie.- E mais - disse Carrie a Oscar -, é arquitecta. Trabalha três dias porsemana num escritório em Kingsferry.- Além disso -, acrescentou Peter -, é extremamente eficiente. Desenhouuma ala nova para o lar da terceira idade e fez um óptimo trabalho. Opior é que agora o resto da casa parece um pouco sombria.- Pousou o copo, ajeitou-se na poltrona como se o peso da mulher lhepudesse ter provocado alguma cãibra e olhou para o relógio. - Querida,meu amor, temos de ir andando.- Oh, não vão - implorou Elfrida -, a não ser que tenha mesmo de ser.Esta é a melhor parte da festa. Conversar com os amigos que ficam.Fiquem para o jantar na cozinha. Acabaremos com o que ficou, há sopa emais salmão fumado. Oferta de Sam. E um stilton delicioso.- Têm a certeza? - perguntou Tabitha, nitidamente tentada. - Sevoltarmos para Manse, só haverá ovos mexidos.460- Claro que devem ficar.Foi então que Carrie assumiu o comando.- Nesse caso, agora quem manda sou eu. - Levantou-se do sofá.vou ver o que está a acontecer na cozinha e arranjar algo paracomermos. Não, Sam, você fica a conversar, já fez a sua parte por estanoite.Elfrida ficou agradecida.-Querida, és um amor. Se precisares de ajuda, é só chamares. - Estádescansada.Saiu da sala e fechou a porta atrás de si. No patamar, a única coisaque restara da festa de Elfrida era a mesinha com a cobertura branca.Todas as garrafas e copos tinham sido levados. Via-se que os Snead,Rory e Lucy tinham trabalhado no duro.O telefone começou a tocar. Carrie olhou para o aparelho com algumaestupefacção, pois, por alguma razão, era a última coisa que esperaraque acontecesse. Atendeu.-Está?- Quem fala? - Era uma voz feminina, perfeitamente nítida, apesar dese ter notado uma pequena hesitação na linha,- É Carrie.- Carrie. Fala Nicola. Da Florida.- Não estava nada à espera. Como estás?- Óptima. Excelente. Que estão a fazer aí em casa?- Acabámos de dar uma festa. Estamos todos aqui sentados a recuperar.- Lucy está aí?- Sim, lá em baixo, a ajudar nas arrumações. Tem-se divertido imenso.Que tal está a Florida? Muito sol?- Sempre. E tudo maravilhoso.-Aguenta aí. vou chamar Lucy. - Carrie pousou o auscultador em cima damesinha e desceu à cozinha, onde viu que as lavagens e as arrumações játinham chegado ao fim, e que Mistress Snead estava naquele momento avestir o seu casaco, imitação de carneiro da Pérsia, e Ia apertar osbotões prateados. Arthur deliciava-se com uma última cerveja, enquantoRory estava encostado ao lava-loiça e Lucy sentada à mesa.Mistress Snead ainda estava com a energia toda.- Bem, devo reconhecer que correu tudo muito bem - dizia. Soltou um

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pequeno soluço e Carrie reparou que o laçarote do cabelo tombaraligeiramente, o que lhe dava um ar extravagante. - Aqui está Carrie.Dizia ainda agora que foi uma festa muito agradável. Boa companhia,também.- Eu também gostei muito - concordou Carrie. - Lucy, tens de correrrapidamente lá acima para falares com a tua mãe, que está ao telefone.461Lucy ergueu a cabeça de supetão. Os seus olhos encontraram os de Carriee esta viu neles uma expressão de alarme.- A mamã?- Sim. Da Florida. Vai depressa porque custa uma fortuna. Lucylevantou-se da mesa, olhou primeiro para Rory, depois paraCarrie, a seguir saiu da cozinha e subiu as escadas. Carrie fechoudiscretamente a porta depois dela sair.- Engraçado isso - comentou Arthur. - Da Florida, que fica tão longe.- Lá ainda não é noite. São cinco horas de diferença, sabes - informouMistress Snead com ar importante. Abotoado o casaco, descalçou ossapatos de cerimónia em camurça e substituiu-os por botas fortes,pronta para o breve percurso entre as duas casas. - Devo dizer que Lucyajudou imenso. Tratámos de tudo num instante, não foi Rory? Arturguardou as garrafas vazias na copa, e deixei uns restos de salsichas noprato de Horace. Poderá comê-los amanhã ao jantar.Carrie estava grata.- Foram maravilhosos. Vocês é que fizeram a festa. Arthur terminou acerveja e pousou o copo vazio.- Não posso deixar de concordar com a minha mulher. Um grupo muitojeitoso de clientes. E diga ao seu amigo que lhe fico muito agradecidopor me ter ensinado a abrir uma garrafa de champanhe. Uma autênticaarte, essa. Quando voltarmos a ter outra festa no clube de bowling, jápoderei mostrar a minha habilidade.- Oh, Artur, és impossível.- É como eu sempre digo, o dia é bom quando se aprende alguma coisa.Mistress Snead agarrou nos seus pertences, a sacola e o saco deplástico onde guardara os sapatos finos.- Então boas noites, Carrie.- Boas noites, Mistress Snead. E um bom Natal.- Igualmente. E diga a Mistress Phipps que na terça-feira cá estareicomo de costume.Depois de partirem, de braço dado, para o meio da noite, e da porta dastraseiras se fechar nas suas costas, Rory perguntou:- Porque telefonou a mãe de Lucy?- Não faço ideia, Rory. - Tirou o avental de Elfrida do gancho e atou-oà frente do vestido preto. - Se calhar foi só para lhe desejar FelizNatal.- Ainda não é Natal.- Talvez tenha querido falar-lhe antes disso. Elfrida convidou os teuspais para ficarem para o jantar, por isso vim cá abaixo tratar dascoisas.- Precisa de ajuda?- Acho que já fizeste a tua parte.462-Não me importo. Prefiro isso a conversas de treta. - Pareceu-me quete sais muito bem nisso.- Quando se conhece as pessoas não custa tanto. O que quer queeu faça?- Bem, se estás a falar mesmo a sério, talvez possas pôr a mesa. Somosoito. Os talheres estão naquela gaveta e os pratos no louceiro. hásalmão fumado no frigorífico. Penso que está todo às fatias. Talvezseja boa ideia colocá-lo num prato e depois será preciso passarmanteiga nalgum pão.Carrie foi à copa gelada e regressou de lá com uma panela enorme cheiacom a última sopa que Elfrida fizera. Acendeu o lume, pôs a chama no

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mínimo e colocou-lhe a panela em cima, para aquecer lentamente.Atrás dela, Rory adiantou:- Lucy falou comigo. Carrie voltou-se para ele.- Que dizes?- Lucy. - Foi colocando os talheres na mesa. - Falou comigo. SobreLondres, tudo. O divórcio dos pais. A avó. Sobre o facto de não estarcom vontade nenhuma de voltar.- Oh, Rory. - Este não olhou para ela, limitou-se a continuar a colocaros talheres. - Lamento.- Lamenta o quê?- É que, de certo modo, sinto-me responsável. Culpada, talvez, porquenão devia ter ficado tanto tempo na Áustria, perdendo, de certo modo,contacto com a minha família. Todos estavam bem, excepto Lucy. Sóquando voltei é que me dei conta de quão difícil a vida deve ser paraela. Não é que alguém a trate mal... Pode até dizer-se que até não lhefalta nada. Mas tem saudades do pai. E nunca a encorajaram a contactarcom o avô, o meu pai. Há muita amargura. Não é nada bom viver assim.- Ela não poderia ir para um colégio interno? Ao menos, estaria numambiente diferente.Carrie ficou surpreendida com tanta percepção num jovem apenas comdezoito anos.- Talvez devesse, Rory. Mas, sabes, eu sou apenas uma tia solteirona.Não me atrevo a fazer demasiadas sugestões, para não me ostracizaremtambém. - Reflectiu no que acabara de dizer. - E o colégio onde anda ébom. Tem uma directora esplêndida, de quem ela gosta muito.- Mas são só raparigas - contrapôs Rory, que já acabara de pôr a mesa.- Onde está o salmão fumado?- No frigorífico, que está na copa.O rapaz foi buscá-lo. Carrie tirou um pão escuro da caixa do pão463depois foi de novo até ao fogão para mexer a sopa. Quando Rory voltou,arranjou-lhe espaço na mesa e foi buscar um prato oval grande para nelese colocarem as delicadas fatias róseas. Rory abriu o celofane com umafaca e começou a separar cuidadosamente as fatias de salmão fumado e acolocá-las em camadas sobrepostas. Carrie tirou dois frutos da fruteirae começou a cortá-los em gomos.Rory foi trabalhando, atento e atarefado, enquanto Carrie o observava,reparando no cabelo louro claro inverosímil, no brinco na orelha, nasfeições imberbes, juvenis mas acentuadas, bem a caminho da virilidade.Quando estivera a ajudar os Snead, provavelmente na lavagem da louça,arregaçara as mangas da camisa de algodão escura, o que deixara àmostra os antebraços bronzeados e as mãos fortes e hábeis. Carriecompreendia perfeitamente por que razão Lucy gostava tanto dele. SóespeRrava que a sobrinha, então com catorze anos, não se apaixonasse,pois eram ambos demasiado novos para o amor: Rory queria ir para auniversidade. e um namorico adolescente naquela altura da vidaresultaria, de certeza, numa desilusão amorosa.- Tens sido muito simpático com ela, Rory. A maioria dos rapazes da tuaidade simplesmente não se ralariam - disse-lhe.- Sinto pena dela.- Gostaria de saber porquê.Parece muito só.Mas é um amor. Um amor de menina.- Não conseguiu resistir a umapequena provocação. - E compraste-lhe uns brincos para as orelHasfuradas. RHory olhou para Carrie e sorriu.Ora, Carrie, isso foi apenas um pequeno empurrão. Fosse como fosse,ela queria furá-las. Que tem isso? Faz parte do crescimento. viroU-seum pouco para observar o prato com o salmão impecavelmente disposto. -Pronto, já está. Será suficiente?Tem de ser. O resto fica para o dia de Natal. Como é que Lucyestará?...Talvez seja melhor ir ver. Vem também. Já trabalhaste muito. Não, eu

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ficarei aqui a tomar conta de tudo. Gosto muito de cozinHa e Costumavafazer bonecos de gengibre com a minha mãe. Vá ter com os outros, que euponho manteiga no pão. Como sobraram algumas pizas, vou metê-las noforno. Quer que abra uma garrafa de vinho ou algo do género?Por fim, Carrie livrou-se do avental de Elfrida, que pendurou, e deixouRory entregue ao resto das tarefas. Saiu da cozinha e subiu as escadas.O patamar estava vazio. O auscultador repousava no descanso. Não haviasinal de Lucy. Hesitou por instantes, sentIHo um baque de apreensãoinexplicável. De repente, o telefone HH a tocar.Carrie atendeu.- Está?- Quem fala? É da Casa da Quinta? Quero falar com Carrie.Inconfundível. Carrie sentiu um sobressalto.- Sim, mãe - disse -, sou eu. Como está?- És tu? Oh, graças a Deus! Minha querida, Nicola já falou para aí?- Já. Telefonou da Florida há cerca de vinte minutos. Mas queria falarcom Lucy.- Ela contou-te?- Contou-me o quê?- Oh, minha querida, ela casou com Randall Fischer. Esta manhã. Tiveramuma espécie de cerimónia relâmpago numa igreja chamada Capelinha dosAnjos ou algo do género, e casaram! Nem sequer chegou a dizer-me queficara noiva, que tencionavam dar esse passo. Eu não fazia a menorideia. Até receber o telefonema dela da Florida.Carrie disse a si mesma que precisava de manter a calma, caso contrárioa situação descambaria.- Ela ligou para si antes de falar com Lucy?- Sim. Queria tomar providências.- Que tipo de providências?- Relacionadas com Lucy, evidentemente.«Oh, Deus», pensou Carrie. «Lá vamos nós outra vez.»- Diz que vai de lua-de-mel e só volta a Londres no fim do mês.Tenciona cancelar o voo de regresso. Adiá-lo. E conta que eu esteja emLondres para poder pôr Lucy novamente no colégio. Mas eu planeei ficarem Bournemouth até ao fim de Janeiro e não vejo porque hei-de ser eu aalterar todos os meus planos. Isto é de mais, Carrie. Não estousimplesmente disposta a isto. Já lho disse, «Não estou disposta aaturar isto, Nicola.» Mas tu sabes como ela pode ser egoísta e máquando não leva a sua avante. E agora, claro, está enfeitiçada poraquele homem e não vê outra coisa à frente!- Ela tenciona ficar a viver na América?- Acho que sim. Quando se casa com um americano, imagino que isso acabepor acontecer.- Então, e Lucy?- Oh, Lucy terá de fazer o que lhe disserem. O problema imediato ésaber quem é que fica com ela até a mãe voltar.Carrie não respondeu à pergunta. Apenas se deixou ficar com oauscultador na mão, ciente da onda de impaciência e ira que começara asubmergi-la em relação à mãe e à irmã. Já se sentira assim muitas vezese não seria a última, mas não se lembrava de alguma vez ter ficado tãofuriosa. Pensou em Randall Fischer e amaldiçoou-o mentalmente portamanha falta de tacto, imaginação e sentimentos. Certamente quepoderia ter convencido Nicola a informar minimamente a família, antesde465marchar com ela até à Capelinha dos Anjos e enfiar-lhe uma aliança nodedo, não era? Uma raposa que se esgueirasse para dentro de umacapoeira, lançando o pânico e fazendo voar penas, não teriadesencadeado mais problemas. Sabia que, se fizesse algum comentário,este poderia não ser benevolente, precipitando finalmente uma disputainútil que nada resolveria.- Carrie?

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- Mãe, penso que será melhor eu depois ligar para ti.- Falaste com Lucy?- Não, ainda não. É a primeira vez que ouço a feliz notícia.- Estás a ser sarcástica?- Não.- Tens o meu número de telefone aqui de Bournemouth?- Tenho. Depois telefono para ti.- Quando?- Um dia destes, talvez amanhã.- Não demores muito. Estou preocupadíssima.- Tenho a certeza.- Oh, e, querida, vais ter um bom Natal, não vais?- Encantador - respondeu-lhe Carrie.Pousou o auscultador e ficou parada por um momento, dando tempo a simesma para acalmar, recompor-se e encarar os factos. Nicola era agoraMistress Randall Fischer. Casara com ele na Florida, na Capelinha dosAnjos. Carrie tentou visualizar a cerimónia: céus azuis e palmeiras,Randall Fischer de fato branco e Nicola numa fatiota qualquer adequadaa semelhante evento. O casamento teria sido testemunhado por amigos?Algum velho amigalhaço de Randall teria vindo de longe para levarNicola pelo braço? A mulher do velho amigalhaço teria feito de dama dehonor, indo de vestido até aos pés e bouquet de orquídeas preso aocorpete? E depois da cerimónia, teriam ido os quatro até ao clube localfestejar com quem porventura estivesse presente? Tudo era possível. Ocerto era que os pormenores não interessavam, estava feito e não erapossível voltar atrás, e eram tantas as complicações inerentes àsituação que Carrie mal sabia por onde começar. Lucy. Lucy era aprimeira. Lucy que recebera a alegre notícia que a mãe lhe dera pelotelefone, pousara o auscultador e desaparecera. Para onde? Lucy nãogostava muito de Randall Fischer e rebelara-se, naturalmente, contra asugestão de ir passar as duas semanas do Natal para a Florida, na suacompanhia.Mas aquilo? Se Nicola levasse a sua avante, seria para sempre. Lucytinha catorze anos, seria afastada das suas raízes, levada para outropaís, outra cultura, toda uma vida nova e provavelmente detestada. Derepente Carrie ficou apreensiva. Onde estava Lucy? Teria desaparecidoabruptamente, corrido silenciosamente pelas escadas abaixo, aberto aporta da frente e desaparecido, dirigindo-se para o mar, a praia, as466dunas, o frio mordente? Se houvesse algum penhasco por perto, Carrienão tinha a menor dificuldade em imaginar a jovem a atirar-se do altodeste e a esmagar-se nas rochas mais abaixo.Tremendo de ansiedade, tentou recuperar a serenidade, afastar asimagens horrendas da mente e raciocinar com sensatez. Respirou fundo esubiu ao sótão onde Lucy dormia. A luz do patamar encontrava-se acesa,mas a porta estava firmemente fechada. Carrie bateu na madeira. Nãohouve resposta. Entreabriu a porta com suavidade. Reinava a maiorescuridão.- Lucy? - A sua voz deixava transparecer a ansiedade que sentia.O vulto por baixo da coberta azul e branca não se moveu nem respondeu,mas Carrie sentiu-se aliviada porque, ao menos, ela estava ali e nãofugira de casa, para o meio da escuridão...- Lucy. - Entrou no quarto, fechou a porta atrás de si, aproximou-se dacama e sentou-se na beira desta. - Lucy.- Vai-te embora.- Querida, é Carrie.- Não quero falar.- Querida, eu sei. A avó telefonou de Bournemouth e contou-me.- Não quero saber que te tenha contado. Não faz a menor diferença.Agora está tudo estragado. Tudo. É sempre a mesma coisa. Elas sãosempre assim.- Oh, Lucy... - Carrie pousou a mão na colcha para reconfortá-la, mas

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Lucy deu um safanão aos ombros e esquivou-se ao gesto hesitante.- Preferia que te fosses embora e me deixasses sozinha. Falava com vozentrecortada, chorosa. Estivera a chorar e naquelemomento sentia-se irada e ressentida. Carrie compreendeu, mas não tinhavontade de a deixar assim.- Para ser sincera, acho que a tua mãe não devia ter feito o que fez, emuito menos dar-te a notícia pelo telefone, esperando que ficassesencantada. Mas, se calhar, temos de tentar ver o ponto de vista dela...Lucy atirou imediatamente a colcha para trás e virou-se para Carrie.Tinha o rosto inchado e manchado por ter estado a chorar, o cabelo, quepenteara ao alto com tanto esmero, desmanchara-se e caia-lhe àsmadeixas para a cara. A raiva e a tristeza desfeavam-na - e Carrieapercebeu-se, desesperada, de que aquela raiva não só era dirigidacontra a mãe mas também contra si, já que eram todos adultos e nãohavia um único que merecesse confiança.- Claro que tinhas de concordar com ela - gritou Lucy a Carrie. -Afinal é tua irmã. Pois bem, eu odeio-a. Odeio-a por causa de tudo istoe porque eu nunca fui importante para ela. Agora, ainda menos. E nãovou viver para a América, Florida, Cleveland ou seja lá onde for. Eodeio Randall Fischer, não quero falar no assunto, basta que me deixemem paz! Portanto, vai-te embora!467Virou as costas a Carrie e tapou de novo a cabeça com a colchaenterrando o rosto na almofada já encharcada. Recomeçou a chorar,soluçando, inconsolável.Carrie tentou de novo, com brandura:- Os Kennedy vão ficar todos para o jantar.- Não quero saber - disse, mal se ouvindo debaixo da colcha.- Se quiseres trago-te o jantar aqui acima.- Não quero jantar, só quero que te vás embora! Impossível. Carrieficou mais um instante, mas depois, certa de quenão valia de nada insistir, levantou-se, saiu do quarto e voltou afechar a porta.Sentia-se completamente despedaçada, sem saber o que fazer a seguir.Deteve-se no patamar, ouvindo as vozes dos outros, que continuavam nasala de estar, reunidos em volta da fogueira. Soaram gargalhadasgeneralizadas. Desceu as escadas e, quando ia a chegar ao patamar, otelefone tocou pela terceira vez naquela noite.Nada poderia piorar ainda mais. Atendeu.- Está?- Carrie. És tu, Carrie?- Sim, sou eu, Nicola.- Sou eu outra vez. - Falava com voz esganiçada, cheia de fúria eindignação. - Há dez minutos que estou a tentar ligar. Lucy desligou-meo telefone na cara. Estava a dizer-lhe...- Eu sei o que estavas a dizer-lhe.- Desligou-me o telefone. Não pude terminar o que dizia. Quero falaroutra vez com ela. Vai chamá-la. Não tem o direito de me cortar apalavra desta maneira!- Acho que tem todo o direito. Pensou que estavas a ligar-lhe para lhedesejares Feliz Natal e afinal era só para lhe dizeres, sem mais nemmenos, que tinhas casado com Randall Fischer e esperavas que elaficasse encantada.- Devia ficar. Um pai novo adorável, uma casa nova linda, um sítioparadisíaco para viver. Se tivesse vindo comigo teria visto com os seuspróprios olhos. Porque tem de estar sempre contra tudo o que eu faço?Tenho feito tudo por ela! Não será altura de ela começar a pensartambém nos outros? Ela quer que eu seja feliz ou não? Ao menos...- Nicola...- com a mãe é o mesmo. Essa até está ressentida por eu ficar um poucomais, a fim de podermos ter uma lua-de-mel.- Nicola, eu não fico ressentida com nada. Estou contente por ti.

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Sinceramente. Mas tu tens uma filha, que já não é nenhuma criança. Nãopodes esperar que aceite de mão beijada o facto de a vida dela ir ficarde pernas para o ar.- Não quero ouvir nada disso. Não percebo o motivo de tanta confusão.Vai-ma chamar.468- Não, não vou. Não posso. Ela está lá em cima no quarto, embrulhada nacolcha e lavada em lágrimas. Tentei falar-lhe, mas está demasiadoperturbada para conversar sequer comigo. Além disso, existem outrosaspectos práticos. Depois do Ano Novo voltamos para Londres e Lucyprecisa de ir para o colégio. Quem é que estará lá para tomar contadela? A mãe diz que quer continuar em Bournemouth.-Não podes fazer ao menos isso por mim?- Não tenho casa onde ficar.- Bem, podes ir para o apartamento da mãe e ficar lá com Lucy, para queela volte às aulas.- Nicola, tenho um emprego novo à minha espera.- Oh, pois, é a tua carreira. A tua grande carreira. Isso foi sempremais importante para ti do que nós. Sempre pensei que, ao menos por umavez...- Eu sempre pensei que, por uma vez, tu pensasses nos outros e nãoapenas em ti, como é costume.- O que estás a dizer não é justo. É a primeira vez em anos, desde queMiles se foi embora e me deixou, que penso em mim mesma. Randall, esseao menos sabe dar-me o valor. Tenho finalmente alguém na vida que meaprecia!Carrie desistiu de ser simpática.- Ora, deixa-te de tretas.- Não estou disposta a escutar-te! - exclamou Nicola profundamenteultrajada, o que levou Carrie a abrandar.- Nicola. Pronto, desculpa. Assim não chegamos a parte nenhuma. Tenho oteu número de telefone da Florida. Tentarei arranjar uma solução edepois ligo para ti.- Diz a Lucy que me telefone.- Não me parece que haja a menor possibilidade disso nos próximostempos. Mas tenta não fazer disso um bicho de sete cabeças. Descansaque tentarei mesmo resolver o assunto.Nicola acabou por dizer, de má vontade:- Está bem.- E tem um Feliz Natal.Nicola, como sempre, não percebeu a ironia. Respondeu:- Tu também. E desligou.O que Carrie desejava, acima de tudo, era voltar ao dia anterior, ondeainda nada daquilo acontecera. Estar na fábrica vazia e deserta,sozinha com Sam Howard; percorrer os armazéns vazios, seguir a suafigura alta escadas acima, atravessar os passadiços. Queria regressarao Duke's Arms, com a lareira acesa, a bebida reconstituinte, os doisvelhos e o murmúrio da televisão do barman. E não ter ninguém com quemse preocupar senão consigo mesma e com o homem sentado à sua frente, afalar do seu futuro ténue e incerto.469Mas agora vivia aquele momento e tudo mudara. Passou uma mão pelocabelo, endireitou os ombros, virou-se e abriu a porta da sala deestar. No lado de lá encontrou-os ainda a todos sentados nos mesmossítios, nas mesmas posições, como se nada de especial se pudesse terpassado. Reparou que Rory fora para junto deles, pois, depois determinadas as suas tarefas culinárias na cozinha, subira ao piso decima para ver o que acontecera e saber porque ninguém aparecia para arefeição informal e improvisada. Naquele momento, encontrava-se sentadono tapete, de pernas cruzadas em frente da mãe, com um copo de cervejana mão.Conversavam tranquilamente, mas quando Carrie abriu a porta e entrou,

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calaram-se e as cabeças voltaram-se como se o seu aparecimentoestivesse a tardar ou fosse inesperado.- Aqui estou. - O que era banal, fechando a porta atrás de si.Desculpem tê-los feito esperar - disse Carrie.- Que se passa, querida? Tantos telefonemas. Rory disse que a mãe deLucy ligou da Florida. Espero que não tenha havido nenhum problema -perguntou Elfrida.- Não, está tudo bem. - O que por um lado era verdade, mas, por outro,não. - É apenas mais uma crise de família, mas como é a minha, porfavor não se preocupem demasiado.- Carrie, a situação não parece nada bem. Conta-nos.- Não sei por onde começar - desabafou esta.Sam, que se encontrava sentado ao fundo da sala, levantou-se da cadeirae aproximou-se dela, perguntando-lhe:- Que tal uma bebida?Carrie sacudiu a cabeça em sinal negativo, sem saber muito bem seestava muito empalidecida ou ruborizada pelo esforço a que a situaçãoinsuportável a obrigara. Sam colocou uma cadeira ao lado da de Elfrida.Carrie sentou-se nela com alívio e sentiu Elfrida pegar-lhe na mão.- Querida Carrie, conta-nos o que se passa. Ela assim fez.- Acabei de falar com Nicola ao telefone. A mãe de Lucy. Alargou-sesobre a questão, para esclarecimento dos Kennedy. - Minha irmã. Foipara a Florida com um indivíduo chamado Randall Fischer. Casaram-seesta manhã. Não sabíamos de nada. Ela telefonou para falar com Lucy efoi então que lhe deu a notícia. Lucy nem a deixou acabar, desligou-lheo telefone e neste momento está metida na cama a chorar desalmadamentee a jurar que nunca gostou de Randall Fischer e que jamais irá para aAmérica. A seguir, ligou a minha mãe a dar a novidade. Ao que parece,Nicola adiou a vinda e está decidida a ter uma lua-de-mel com Randallantes de voltar para Londres. A minha mãe está histérica com isso,porque quer ficar em Bournemouth até ao470fim de Janeiro e recusa-se a voltar só por causa de Lucy. Depois,Nicola voltou a telefonar para me dizer que Lucy lhe desligara otelefone na cara. Ainda por cima, tivemos mais uma daquelas diferençasde opinião fraternas e por pouco não nos envolvemos numa discussãoarrasadora. Elfrida não se conteve:- Parece impossível! Carrie prosseguiu:- Portanto a crise está instalada e também é a longo prazo. Imediata,pois não há ninguém em Londres para cuidar de Lucy e pô-la de novo nocolégio. Excepto, claro, aqui a parva. Claro que se for necessário ofarei, e instalar-me-ei no apartamento da minha mãe até ela ou Nicolavoltarem para Londres. Mas o problema a longo prazo é completamentediferente, ou seja, tem a ver com o futuro de Lucy. Nicola casou com umamericano e é natural que queiram viver nos Estados Unidos. Penso queela adora a perspectiva. Lucy, por outro lado, nunca quis ir para lá,nem mesmo de férias. Não aprecia muito Randall e, para ser sincera, nãome parece que também tenha um amor especial pela mãe.Todos escutavam atentamente e com preocupação crescente. Mas quandoCarrie se calou, ninguém falou. A certa altura Tabitha fê-lo:- Deus nos valha! - disse, o que foi inadequado mas simpático.- Ela não é obrigada a viver na América - arriscou Elfridaesperançosamente. - E que tal ficar como aluna interna no colégio ondeanda?- É um externato, Elfrida. E as férias ainda estão a decorrer.- E a tua mãe?- Sabes tão bem como eu que a minha mãe jamais cederá, só se forobrigada. Nem sequer tentará.- Talvez o pai de Lucy...- Nem pensar. A esposa número dois nem sequer concordaria em pensar napossibilidade.- Mas...

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- Isto é ridículo.Uma nova voz meteu-se na conversa, discussão ou o que porventura fosse.Era Rory Kennedy. Carrie virou a cabeça para olhar para ele e viu quedeixara de estar sentado confortavelmente no tapete; erguia-se emfrente de todos eles, de costas para a lareira e com os olhos azuis afaiscar de indignação. Ninguém o interrompeu, tal foi a surpresa.- É ridículo. Vocês estão a andar aos círculos, a partirem do princípiode que Lucy voltará para Londres, como se nada tivesse acontecido. Masela não pode ir. Ela contou-me que se sente muito infeliz por lá. E oque acabou de acontecer só lhe torna as coisas ainda mais impossíveis.471Não tem amigos, não dispõe de um lar como deve ser e nunca se sentiuamada. O que a faria verdadeiramente feliz era ficar aqui, com Elfridae Oscar. Em Corrydale. Disse-me que nunca tinha sido tão feliz comoaqui. Nem sequer quer pensar em voltar para Londres. Portanto, não amandem para lá. Mantenham-na aqui. Pode ficar com Elfrida e Oscar, e osmeus pais estarão aí para o que for preciso, assim como Clodagh e eu.Ela fará amizade com os nossos amigos e pode ir para o externato emCreagan. O pai pode tratar disso com Mister Mclntosh. Hão-de arranjarlhelugar. Isso é o que eu acho que deverão fazer. Penso que, se adeixarem voltar para Londres sem qualquer tipo de plano para o futuro,será um crime. As adolescentes infelizes fazem coisas terríveis eestúpidas. Todos nós sabemos. Lucy pertence muito mais a todos vós doque à mãe. Portanto, é aqui que deve estar. Penso que têm a obrigaçãomoral de fazer o que é certo para ela. Que é ficar em Creagan.Calou-se, de faces muito vermelhas devido ao calor da fogueira e àpaixão com que exprimira os seus sentimentos. Por um momento, a salaficou sob o efeito de um silêncio atónito e todos os adultos o fitavamsem fala, mas respeitosamente espantados. Rory, sentindo que talveztivesse ido longe de mais, mostrou-se um pouco atrapalhado, deu umpequeno piparote no tapete com o pé e desculpou-se.- Desculpem - disse. - Não queria falar despropositadamente.Silêncio, de novo. A certa altura, Peter Kennedy afastou suavemente opeso de Tabitha de cima dos joelhos, levantou-se e aproximou-se dofilho.- Não falaste despropositadamente - disse-lhe, pousando uma mão noombro do rapaz. - Penso que tens razão. Muito bem dito, Rory.Lucy, deitada a olhar para o tecto inclinado do seu quarto, sentia-seexausta por ter estado a chorar e começava a ter remorsos pelo modocomo falara com Carrie. Não tinha o hábito de ter birras e não sabia oque fazer a seguir. As coisas só voltariam à normalidade depois depedir desculpa a Carrie, de esta a abraçar e lhe dizer que perdoava,mas não tinha coragem de sair da cama, pentear o cabelo, lavar a cara edescer ao encontro de todos. Os Kennedy ainda ali estavam, jantariamtodos, o que ainda piorava mais a situação.Sentia dores de cabeça, estava esvaída e, no entanto, tremendamenteesfomeada. Lembrou-se na satisfação que tivera em desligar o telefonena cara da mãe que lhe falava dos Estados Unidos a dizer que acabara decasar com Randall Fischer, que ela tinha um novo pai, que iriam sertodos muito felizes para sempre, em bom estilo e com o calor bemaventuradoda corrente do golfo da Florida, sempre presente. Ao ouvir amãe a divagar, lírica de satisfação e tão insensível aos sentimentosdos outros como sempre, limitara-se a pousar o auscultador no descanso,incapaz de escutar uma palavra mais.472Naquele momento, sozinha e desolada, disse a si mesma que fora umacobarde. Devia ter aproveitado a conversa para dar a conhecer à mãetoda a força da sua indignação e choque. Devia ter-lhe ditoimediatamente que estava aterrorizada só com a perspectiva de sair dasua terra, obrigada a viver num país estrangeiro e aceitar que a suaexistência fosse virada de pernas para o ar.Mas agora era demasiado tarde.

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Ansiava por ser mais velha, chegar aos dezoito e tornar-se adulta, como peso da lei britânica a apoiá-la. Aos dezoito anos não seria obrigadaa sair de onde estava, poderia ficar onde se sentia segura e à vontade,construir uma vida e um futuro para si mesma. Mas os catorze anos eramuma idade desgraçada: demasiado crescida para que a empurrassem de umlado para o outro sem se queixar, como se fosse um objecto, e demasiadonova para ser independente. Antes, as coisas já não eram nada boas. Apartir dali tinham-se tornado - ou estavam prestes a tornar-se -impossíveis.Por cima da sua cabeça ficava a clarabóia. Do lado de lá do vidro, aescuridão tornara-se opaca devido ao reflexo da luz dos candeeiros darua, mais abaixo. Mas conseguia ver uma estrela e imaginou a clarabóiaa abrir lentamente, deixando entrar uma lufada de ar enregelante acheirar a maresia e ela a ser levantada da sua cama, como que por umaforça irresistível, voando através da abertura e vendo o planeta aficar para trás, as estrelas a aumentar de tamanho a cada segundo...Seguiria em direcção à Lua como um foguete e nunca mais voltaria.Ouviu um som. Passos na escada. Carrie. Devia ser Carrie. Se fosse,Lucy tinha muito medo de, sem querer, recomeçar a vociferar, edetestava a sensação de parecer que perdia o controlo das suas emoções.Bateram à porta. Deixou-se ficar deitada com a cabeça em cima daalmofada encharcada. Ficou calada.- Lucy?Não se tratava de Carrie. Era Oscar. Lucy ficou embaraçada por ele irvê-la assim toda amarrotada, desalinhada e com a cara manchada delágrimas. Porque subira ele ali acima? Porque teriam eles deixado quefosse ele a vir buscá-la? Certamente Carrie poderia tê-lo feito, ouElfrida.Não respondeu.- Não te importas de que entre? - perguntou Oscar.Então, ao ver que ela não respondia, atravessou a distância entre aporta, que deixou escancarada, e a cama, na beira da qual se sentou. Oseu peso era estranhamente reconfortante, apertando-lhe a colcha emvolta do corpo, e ela ajeitou-se de modo a dar-lhe mais espaço,soltando um longo e entrecortado suspiro.- Não, não me importo.- Como te sentes? - perguntou-lhe Oscar, como se fosse um médicobondoso e ela uma enferma de longa data.473- Horrível - respondeu-lhe.- Carrie foi lá abaixo contar-nos o que aconteceu.- Fui horrorosa com ela.- Não nos disse nada disso, apenas que estavas perturbada. O que nãoadmira, depois de receberes semelhante notícia pelo telefone. Como nãopodemos ver a cara da outra pessoa, parece que nos sentimos impotentese distantes, não é?- Se eu gostasse dele não seria tão mau - retorquiu Lucy. - Refiro-me aRandall, claro.- Talvez venhas a apreciá-lo.- Não. Não creio. - Fitou Oscar, viu os olhos de pálpebras descaídas,que lhe davam aquela expressão meiga e vagamente entristecida ao rosto,e pensou que era possível gostar das pessoas instantaneamente tal comolhe acontecera em relação a ele. E que jamais se sentiria tãopróxima de Randall como sucedera em relação a Oscar.- Fui horrível com Carrie - confessou com os olhos a voltarem a encherse-lhe de lágrimas. - Gritei com ela e disse-lhe que se fosse embora,quando ela estava a ser tão querida comigo. Estou cheia de remorsos.Fungou sentidamente e sentiu a boca tremer como a de um bebé,mas Oscar limitou-se a tirar um lenço de linho, impecavelmente engomadoe a cheirar a água-de-colónia, do bolso da sua linda jaqueta de veludoe entregou-lho. Lucy aceitou-o, agradecida, e assoou-se.Depois disso sentiu-se um pouco mais aliviada. Confessou:

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- Normalmente não grito com as pessoas.- Eu sei que não. E o pior ainda é que, quando estamos muitoalterados, desabafamos logo com aqueles que nos são mais queridos.- É mesmo?Estava espantada por nunca se ter dado conta disso.- Sempre.- Não consigo imaginar o Oscar a gritar com quem quer que seja.Oscar esboçou aquele seu sorriso raro e meigo que parecia semprealterar-lhe o comportamento por completo. Observou:- Havias de ver.-É que... sinto-me péssima porque sei que devia estar contente. mAsfoi um...- Eu sei. Um choque.- Se fosse alguém que eu já conhecesse, vivesse em Inglaterra,«esse caso não seria tão mau. Mas não quero que me obriguem a ir viverpara a América, frequentar a escola de lá e tudo o resto. Londres não égrande coisa, mas ao menos sei onde estou. E não posso ficar com a avóporque a ela tudo faz confusão e quer fazer as suas coisas,sair com as amigas, jogar brídege. Quando ela faz essas jogatinas lá emcasa, nem sequer quer que eu entre para cumprimentar as pessoas.174detesta quando Emma lá vai porque diz que faz demasiado barulho. Eunão poderia ficar com ela, Oscar.- Pois não.Ele tinha a mão pousada na colcha, Lucy devolveu-lhe o lenço, que elerecebeu, pegando-lhe depois na mão. Sentiu-a quente e segura sobre osseus dedos, um contacto físico, uma espécie de segurança que fazia comque sentisse menos dificuldade em falar. Disse:- Não sei o que irá acontecer. Isso é o pior. Não faço ideia do queirei fazer. Ainda não tenho idade suficiente para tomar uma atitude.- Não me parece que precises de tomar seja que atitude for. Penso queoutros o devem fazer por ti - observou Oscar.- Quem?- Eu, por exemplo.- O Oscar?- Tem calma, escuta. Faço-te uma sugestão. Estivemos todos a conversarlá em baixo e tivemos uma ideia. Imaginemos que, depois do Ano Novo,não voltas para Londres com Carrie? Ficas aqui com Elfrida. vou eu aLondres com Carrie e faço uma visita à tua avó, que está emBournemouth.Lucy ficou alarmada.- Que é que lhe vai dizer?- vou sugerir-lhe que fiques em Corrydale com Elfrida e eu até a vidada tua mãe se resolver definitivamente. Só por enquanto.- Mas, e a escola? Tenho de voltar às aulas!- Claro que tens, mas que tal pedirmos a tua transferência do liceupara o daqui de Creagan? Peter Kennedy é amigo do director e falará comele para que te arranjem um lugar numa aula adequada. É um liceuexcelente e tenho a certeza de que a tua actual directora não levantaráobjecções.- Miss Maxwell-Brown?- É esse o seu nome?- Eu não posso sair do liceu assim sem mais nem menos.- Não estou a sugerir que o faças. Pedes apenas dispensa até ao fim doliceu. Muitas crianças o fazem, se os pais vão para o estrangeiro ououtras circunstâncias o exigem. Tenho a certeza de que Miss Maxwell-Brown não verá nenhum inconveniente em te deixar ausentar por umperíodo, mantendo o teu lugar reservado para quando esta pequena crisepassar e todos sabermos qual será o melhor passo a dar.- Quer dizer... - Lucy achou que tinha de compreender tudo muito bem,porque aquilo que Oscar lhe sugeria parecia quase demasiado bom paraser verdade. - Quer dizer que depois do Ano Novo não voltaria para

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Londres? Ficaria aqui consigo e com Elfrida?- Se for da tua vontade. A decisão tem de ser tua.Lucy ficou calada por um instante, reflectindo em tudo aquilo. 475Parecia-lhe que toda a situação estava recheada de escolhos. Um delestinha a ver com Elfrida.- A minha avó não aprova Elfrida - disse ela a Oscar sem maisdelongas.Oscar riu-se.- Posso imaginar. Mas tenho a certeza de que me aprovará a mim.Apresentar-me-ei como professor, organista de igreja, com antecedentesImpecáveis e uma reputação imaculada. Será ela capaz de resistir a tal?Lucy respondeu com um rasgo de humor:- Não, se isso representar ver-se livre de mim.- E a tua mãe?- Essa também não se ralará. Foi sempre assim. Agora que arranjouRandall, ainda menos se preocupará.- Portanto não levantará objecções?-Creio que não.- Carrie vai telefonar a ambas amanhã. Pode delinear os nossos planos.Afinal de contas, para começar, será só até à Páscoa. Depois disso,teremos de voltar a pensar no assunto.- Eu não mudarei de ideias, Oscar. Nunca quererei ir viver para aAmérica.- Não vejo porque tenhas de o fazer. Uma visita ocasional, talvez,seria interessante e educativo; é sempre bom conhecer outro país esaber como outros vivem. Mas estou convencido de que, basicamente,poderás ficar onde te sentires melhor.- Nunca me senti tão feliz em casa como aqui.- Nesse caso, porque não fazermos por isso? Ficas comigo e com Elfridaem Creagan, durante o tempo que quiseres. Frequentas o liceu loccal.Finalizas o liceu. Depois disso, deves abrir um pouco as asas.Talvez um internato co-educativo onde possas tirar um curso. Conheçovários estabelecimentos formidáveis onde tenho a certeza de queadorarás andar. Como tenho ligação com outros professores, podereiinformar-me, mandar vir prospectos para depois ser mais fácil escolher.Podemos IrVisitá-los. Para que tu mesma faças a tua opção.- Foi nisso mesmo que Rory falou quando estivemos a conversar.- É um rapaz sensato. Preocupa-se muito contigo. Foi ele que nosespevitou quando Carrie nos deu a notícia do casamento da tua mãe.Vocês têm de fazer alguma coisa», declarou. Claro que tinha razão.-Mas, Oscar...-Que foi?- O Oscar e a Elfrida não quererão que eu fique a viver convoscodurante dois anos!- Porque não?- Porque são idosos. Como a avó. Ela diz sempre que não aguenta Porser avó.Oscar riu.- Oh, Lucy, os avós são uma invenção maravilhosa. Em todo o mundo,pelas razões mais variadas, são os avós que criam os netos, divertindosemuito com isso e fazendo um bom trabalho. Cá por mim, acho quegostaria muito.- Mas vocês querem mesmo que eu fique? De verdade!- Mais do que tudo.- Eu não estorvarei?- Jamais.- Imaginem que se mudam para a casinha em Corrydale e deixam esta casapara Sam?- E então?- Não terão espaço para mim.- Ainda não vimos a casa. E se for necessário, redesenhamo-la. Passará

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a haver uma divisão especial chamado o QUARTO DE LUCY.- Oscar, não sei porque são tão bons.- Porque te adoramos. Talvez precisemos de ti. Talvez seja egoísmo meu,mas o certo é que não quero que vás. Preciso de uma pessoa jovem porperto. Acostumei-me ao som da tua voz, aos teus passos na escada, àabertura intempestiva das portas. E ao riso. Detestaria que te fossesembora. Provavelmente ir-me-ia abaixo.- Quando cheguei a Creagan, depois de eu e Carrie virmos de avião deLondres, vinha terrivelmente nervosa porque já sabia o que acontecera àsua filha... - desabafou Lucy.- Francesca.- Carrie contou-me sobre Francesca e eu tinha receio de o perturbar...de lhe fazer lembrar a sua filha e entristecê-lo novamente.- Fazes-me lembrar ela, mas não fico triste por isso.- Como é que ela era?- Como tu, acho. Cabelo louro comprido e sardas no nariz. Usavaaparelho nos dentes. Era dois anos mais nova que tu. Andava sempreocupada, nunca sossegava, excepto quando eu me sentava na minhapoltrona com ela ao colo e líamos em voz alta um ao outro.- O meu pai e eu costumávamos fazer isso. Quando era pequena e aindaestávamos todos juntos. Líamos The Borrowers. E quando ele me queriaarreliar, chamava-me Arietty. E punha Badedas no banho e a casa todaficava a cheirar a pinho. Que mais gostava Francesca de fazer?- Tudo. Tinha um pónei, uma velha bicicleta, um porquinho-da-índia numagaiola e um quarto cheio de livros. Quando chovia costumava ir para acozinha fazer biscoitos, que ficavam sempre queimados ou mal passados,mas eu nunca me queixava e jurava que eram deliciosos. E ouvíamosmúsica juntos, tocávamos piano em dueto...- Ela tocava bem piano? .- Nem por isso.- Era boa na escola?- Nem por isso.- Em que é que ela era verdadeiramente boa?- A viver.Os olhos de ambos encontraram-se, ambos calados pela enormidade do queOscar acabara de dizer. Era como se este tivesse falado sem pensar e apalavra pairasse entre eles como uma mentira. Francesca fora boa aviver, mas agora estava morta, a sua jovem vida terminada com ocarácter definitivo de um acidente de carro fatal.Lucy não sabia o que dizer. Para seu horror, viu que os olhos de Oscarse enchiam de lágrimas e a sua boca tremia. De repente, tapou os olhoscom um gesto abrupto. Tentou falar, mas as palavras não lhe saíram; emvez disso, um som rasgou-lhe o peito, vindo das suas profundezas, umsoluço do mais absoluto desespero.Lucy raras vezes vira um adulto chorar, descontrolado pela dor maisavassaladora. Ficou a olhar para Oscar sem saber o que fazer para oconsolar, mas de repente viu-o sacudir a cabeça, negar a sua própriafraqueza, lutando, de certo modo, para controlar a emoção insuportável.Passado um bocado, para seu imenso alívio, viu-o tirar o lenço dobolso. Depois assoou-se e fez um esforço para lhe sorrir,tranquilizador.- Desculpa - pediu.- Não tem importância, Oscar. Eu não me importo. Compreendo.- Sim, penso que compreendes. A morte faz parte da vida. Tenho de melembrar disso, mas de vez em quando a realidade escapa-se-me.- Viver é importante, não é? E recordar?- Mais importante do que tudo o mais. - Voltou a guardar o lenço. - Noprimeiro dia, aquele em que chegaste, sentámo-nos na igreja a falar doNatal e do solstício de Inverno, lembras-te? Foi a primeira vez querecordei Francesca sem me deixar ir abaixo de desolação. Lembro-me deter tido exactamente a mesma conversa com ela cerca de um ano antes. Delhe tentar explicar o significado da estrela de Natal e a teoria

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científica do tempo. Ela ouviu, mas não ficou convencida. Não queriaficar convencida. Gostava da história tal como era:No solstício de Inverno gélido com o vento frígido a gemer, A Terramantém-se firme como ferro. A água parece pedra.«Era assim que ela queria que o Natal fosse, e para Francesca não seriamágico de nenhuma outra forma. Porque os cânticos, a escuridão e ospresentes, tudo fazia parte de um tempo em que a vida ganhava asas e omundo inteiro subia até às estrelas.- É assim que este Natal irá ser - declarou Lucy.- Fica connosco.-Gosto muito de si, Oscar.478- Há muito amor à tua volta. Nunca te esqueças disso.- Não esquecerei.- Agora queres ir até lá abaixo, para junto dos outros, e jantar? Se éque nos deixaram alguma coisa.-Preciso de me pentear e lavar a cara.- Nesse caso... - Oscar largou-lhe a mão com uma palmadinha, levantouseda cama e dirigiu-se para a porta. Ela ficou a vê-lo ir. Antes desair do quarto, voltou-se para ela com um último sorriso reconfortante.- não te demores muito, queridinha.Véspera de NatalNaquele clima setentrional instável, uma pessoa não sabia muito bem comque contar quando acordava de manhã, porém aquele dia amanheceuespantosamente límpido e ameno, qual dia roubado à Primavera. O degeloderretera a neve das ruas e dos campos, e apenas as colinas exibiamainda a sua cobertura branca, com os cumes a brilhar à luz do solbaixo, que se espojava na terra sem encontrar nuvens de permeio. Um solque, por não soprar a menor brisa, conseguia mesmo transmitir um poucode calor. Os pássaros cantavam nas árvores desfolhadas e, no quintal daCasa da Quinta, as primeiras gotas de neve derretida trespassavam aerva rude e mal cuidada que crescera por baixo do arbusto de lilases.Em Corrydale, no quintal de Rose Miller, havia uma mesa carregada desobras, migalhas para as aves, com um saco cheio de nozes pendurado aoalto. Pombos e estorninhos esvoaçavam em volta, esfomeados, enquantochapins e tordos debicavam as sementes e os bocados de gordura que Roseespalhara ao longo de um bocado de cordel. Pairavam e pousavam, paralogo a seguir se escapulirem para a segurança de algum espinheiropróximo, cujos ramos cheios de galhos tremiam e balançavam sob o pesode asas esvoaçantes e penas agitadas.Como o dia estava excelente e as estradas limpas, Oscar e Elfridatinham-se metido no carro e ido a Corrydale sozinhos. Os outros,Carrie, Sam, Lucy e Rory Kennedy, chegariam mais tarde, pois Carrieapercebera-se de que teria de esperar até ao meio-dia para telefonar àirmã na Florida. Falara já com Dodie, toda repimpada no seu quarto dehotel em Bournemouth, e a conversa correra melhor do que alguma dasduas se atrevera a desejar. Dodie ficara nitidamente aliviada por selivrar da responsabilidade exclusiva de Lucy e falara até muitoafavelmente da hospitalidade e generosidade de Elfrida, esquecendoconvenientemente que, em tempos, não tivera uma única palavra amável adizer sobre a prima extravagante e teatral do ex-marido.«Oscar vai visitar-te a Bournemouth», prometera-lhe Carrie. «Diz quegostava de te conhecer e, se quiseres, falar sobre o assunto.» Dodie483tampouco levantara objecções à sugestão e dissera que teria muito gostoem convidá-lo a tomar chá na sala de estar dos residentes do PalaceHotel.Agora faltava tratar de Nicola, comunicar-lhe os planos sugeridos paraa filha e encorajá-la a concordar com eles. Elfrida, depois de ouvirCarrie falar com Dodie, toda doçura e compreensão, tinha a certeza deque esta também faria um bom trabalho com Nicola. Objecções, se ashouvesse, seriam simbólicas. Nicola pouco se importava com o que

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pudesse acontecer fosse a quem fosse, desde que o caminho por siescolhido permanecesse regular e livre de qualquer tipo de escolho.Carrie também se oferecera para tratar das coisas necessárias para opiquenique e depois levá-las. Elfrida ainda começara a fazer sugestõessobre sopa quente e pãezinhos de fiambre, porém Carrie e Sam puseram-nacarinhosamente fora da cozinha e mandaram-na, mais a Oscar, seguir oseu caminho, o que a fez sentir-se liberta de toda e qualquerresponsabilidade e preocupação. Naquele momento, sentada na sala deestar de Rose, Elfrida observava as aves. O quintal de Rose não tinhaflores nem legumes, excepto umas quantas couvezinhas-de-bruxelas aapodrecer; no entanto, os canteiros estavam impecavelmente revolvidos,prontos para a época de plantio. O quintal estendia-se colina abaixo,abrangendo uma faixa de terra rectangular e estreita. Ao fundo do mesmoficava uma cerca de madeira e algumas faias retorcidas, e a seguir osterrenos marinhos que se estendiam até ao braço de mar azul e àscolinas na margem mais afastada. Elfrida estava muito interessadanaquela prospecção, pois sabia que a vista de que se desfrutava da casado major Billicliffe seria quase idêntica. Naquele dia, com o arlímpido de Inverno, as cores tão definidas e brilhantes e os ramosrendilhados das árvores tão negros, não podia imaginar nenhuma paisagemmais bonita.Atrás dela, Oscar e Rose estavam sentados um de cada lado da lareira dacasa, onde um monte de turfa incandescente ardia, e bebiam o café que adona da casa lhes preparara. Rose falava. Pouco mais fizera desde achegada de Elfrida e Oscar, combinada para as onze e meia da manhã.-... e, claro, o pobre senhor deixou a casa em mísero estado. BettyCowper, a mulher do tractorista, fez o que pôde por ele quando a mulherlhe morreu, mas tem três filhos e um homem de quem cuidar, de modo quevia-se bem aflita para ter tudo em ordem. Mal soubemos da morte dele,eu e ela fomos até lá e fizemos o melhor que pudemos para limpar acasa. A maior parte da roupa só estava boa para a fogueira, mas comohavia algumas peças que ainda se podiam aproveitar para dar, guardámolasem malas. Parece que ele não possuía nada de valor, mas deixámostudo o que eram enfeites, objectos pessoais, livros e outras coisas dogénero onde estavam, para que façam deles o que quiserem.- Fez muito bem, Rose.- Betty deu a melhor limpeza possível à casa, esfregou o chão dacozinha e da casa de banho, que estava num estado horrível. Umdesastre. Pobre homem solitário! É triste pensar que morreu sozinho,sem família.484Disse que o funeral será no fim da semana? Depois confirme, está bem?Gostaria de estar presente.- com certeza... e será uma cremação. Mas podemos levá-la connosco nocarro até Inverness.- Não foi por culpa dele que aquela casita ficou tão miserável. Mascertamente os senhores alterarão as coisas ao vosso gosto, e semandarem vir homens das obras, eles deitarão aquilo abaixo e farãomuito pó.- Ainda não resolvemos se vamos morar lá ou não - lembrou Oscar.- E porque não? - exclamou Rose com grande indignação. O majorBillicliffe jamais vos teria deixado a casa se não soubesse que podiamlá morar. Imaginem! A oportunidade de voltar a Corrydale e morar cádepois de todos estes anos!- Pode não ter espaço suficiente, Rose. É que, sabe, talvez uma pessoajovem venha viver connosco.Rose deixou escapar um assobio de troça, inesperadamente rude.- Não me diga que vão ter um bebé!- Não, Rose, não é isso. Lembra-se de lhe ter dito que estávamos àespera de visitas pelo Natal? Uma delas, Lucy, de catorze anos, é umadelas. A mãe acaba de se casar na América, e Lucy em vez de voltar paraLondres, vai ficar a viver com Elfrida e comigo uns tempos, e

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frequentar o liceu de Creagan.- Mas isso será esplêndido - retorquiu Rose. - Para nós será muito bomtermos outra jovem por aqui. Poderá fazer amizade com os filhos deBetty Cowper. São um tanto novos, mas muito animados. E isto aqui emCorrydale é um paraíso para as crianças. Têm a quinta toda para andarde bicicleta sem que precisem de ter medo de serem atropelados poralgum camião.Elfrida terminou a sua observação das aves e voltou para junto de Rosee Oscar, sentando-se numa cadeira de costas arredondadas e pegando nasua chávena de café.- Talvez possamos alargar um pouco mais a casa do major Billicliffe.Construir um quarto extra, por exemplo. Teremos de ver - disse.- Precisarão de uma autorização dos serviços de planeamento advertiuRose prudentemente. Os anos que já tinha haviam-lhe ensinado todos ostruques das autoridades locais. - tom Cowper construiu uma estufa sempermissão e não tardou que tivesse de a deitar abaixo. E onde está atal menina?Elfrida explicou:- Chegam mais tarde. Lucy, Carrie, a tia, que é minha prima. RoryKennedy e Sam Howard. Este foi um hóspede repentino. Apareceu lá naCasa da Quinta e depois não se pôde ir embora por causa da neve. Aestrada para Inverness ficou obstruída.- E de quem se trata?- Vai dirigir a fábrica McTaggart, em Buckly.- Quem diria! Vão ter um óptimo grupo para o Natal. Quando Oscar metelefonou a dizer que vinham cá hoje fazer um piquenique, pedi485a chave a Betty e fui até lá acender a lareira, para o caso da casaestar demasiado fria para vocês. Mas com um dia assim podemperfeitamente fazer o piquenique no quintal. Dá a impressão de que obom Deus queria que vissem o sítio no seu melhor.- É verdade - concordou Elfrida. - Parece mesmo que foi isso.Rosie era velha e franzina, porém esperta e vivaz que nem um pássaro.Vestia uma saia de tweed, uma blusa com um alfinete de peito nocolarinho e uma camisola vermelha Shetland, e os seus olhos escuros ebrilhantes pareciam ver tudo sem a ajuda de óculos. Usava o cabelo,fino e branco, preso atrás da cabeça num pequeno coque, e o únicoindício de velhice estava nas mãos, gastas e deformadas pela artrite. Asua casa apresentava-se tão arrumada, colorida e confiante como elaprópria: nos tampos lustrosos dos móveis abundavam bibelôs, recordaçõese fotografias, e sobre a lareira via-se uma fotografia aumentada doirmão, em uniforme da marinha, que se afogara no mar quando o Ark Royalse afundara durante a Segunda Guerra Mundial. Nunca casara. Dedicaratoda a sua vida a Mrs. McLellan, da Casa de Corrydale. Mas não eraminimamente sentimental, e o facto de a grande casa ter sidotransformada num hotel e já não pertencer à família era algo queaceitara perfeitamente.- E que irão vocês todos fazer amanhã? - perguntou. Elfrida riu-se.- Não sei bem. Abrir presentes, imagino. Temos a árvore de Natal nasala de jantar e cearemos lá.- Ceia de Natal! Lembro-me das festas de Natal em Corrydale nos velhostempos, com a mesa enorme posta com a toalha e os guardanapos de renda,mais os candelabros. Nessa noite havia sempre festa na casa, comamigos, primos e parentes, e todos se vestiam a rigor, de fraque e fatocomprido. Na véspera de Natal era o mesmo. Muito formal. Depois da ceiade Natal, o grupo metia-se em automóveis e ia à igreja de Creagan paraa missa da meia-noite... e também havia transporte para o pessoal emais alguém que quisesse ir. Nem imaginam a sensação que causavam aoentrarem pela coxia adentro, assim todos aperaltados, e MistressMcLellan, com a barra do seu vestido de tafetá a varrer o chão e o seucasaco de marta posto. Na frente. O povo adorava ver aquilo. Muitoelegantes e festivos. E os homens com os seus melhores sobretudos. Deve

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lembrar-se disso, Oscar.- Não, não me recordo. Nunca passei nenhum Natal em Corrydale.- Quando Hughie veio para cá, as tradições foram todas por água abaixo.Não creio que ele tenha alguma vez ido à igreja, nem mesmo na vésperade Natal. Não deixa de ser triste que fosse ele, uma pessoa tãoindiferente, a tomar conta do lugar e deixar que tudo se esboroasse porentre os seus dedos. - Suspirou fundo e abanou a cabeça ao lembrar-sedas iniquidades do irremediável Hughie. - Mas tudo isso pertence486ao passado. E o Oscar? Irá à missa da meia-noite, não irá? Nem precisade carro, basta atravessar a rua.Elfrida não olhou para Oscar. Terminara o seu café, de modo que pousoua chávena e o pires em cima da mesinha ao lado da sua cadeira.- Não, Rose, não irei. Mas talvez os outros... «Oh, Oscar», pensouElfrida tristemente.Porém, nada disse. O seu afastamento, o seu retraimento eram umproblema pessoal que só ele poderia resolver. Era um pouco, reflectiuElfrida, como se tivesse tido uma zanga com um velho amigo. Como setivessem sido ditas palavras que jamais deviam ter sido pronunciadas eenquanto um deles não estendesse a mão reconciliadora, o impassepermaneceria. Talvez no ano seguinte. Mais doze meses e ele sentir-seiasuficientemente fortalecido para ultrapassar aquele últimoobstáculo.- Eu irei de certeza. A igreja à noite é muito bonita e, além disso, écomo a Rose diz, basta atravessar a rua. Os outros farão o queentenderem, mas creio que Lucy quererá ir e Carrie também, de certeza.E a Rose? Também irá lá estar! - disse Elfrida à laia de declaração.- Não perderia a oportunidade por nada deste mundo. O meu sobrinho,Charlie, disse que me levava até Creagan.- Então vemo-nos por lá.Oscar lembrou-se de algo. Ou talvez quisesse mudar de assunto.- Rose, o major Billicliffe deixou-me um outro bem sobre o qual não mesinto muito entusiasmado. A cadela.- Ele deixou-lhe Brandy?- Receio que sim.- Não a quer?- Não, acho que não.- Nesse caso, Charlie ficará com ela. Afeiçoou-se muito à cadela, quelhe faz companhia quando está a trabalhar no barracão. E os filhosteriam um desgosto enorme se ela se fosse embora.- Tem a certeza? Não será melhor falar com ele primeiro?- Eu falarei com Charlie - disse-lhe Rose num tom que não preconizavanada de bom para o sobrinho caso este contrariasse os seus planos. -Ele ficará com a cadela, pode crer. E agora, que tal mais uma chávenade café?Eram, no entanto, horas de partir. Puseram-se todos de pé e Rose tiroua chave de dentro de um velho bule de chá às flores que estava em cimada cornija da lareira. Entregou-a a Oscar. Depois acompanhou-os até àporta.- Porque não deixam o vosso carro aqui e vão a pé até à casa do majorBillicliffe? É só um pulo e lá não têm muito sítio para estacionar. -Não estorva?- E porque haveria de estorvar?Aceitaram, pois, a sugestão, detendo-se apenas junto do carro paraabrir a porta do carro a Horace, que ficara fechado lá dentro durante o487tempo em que tinham estado a conversar com Rose, não fosse dar-se ocaso de se pôr a perseguir algum coelho ou faisão, ou fazer algum outrodisparate. Saltou, ligeiro, para o chão e ficou imediatamente encantadocom os cheiros do local.- Para um cão - observou Elfrida -, isto deve ser um pouco como entrarna secção de perfumes da Harrods. Eau d'autre chien. Ele vai comprar um

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frasco e passar um pouco atrás das orelhas.No alto, gralhas crocitavam nos ramos despidos e Elfrida, ao espraiar oolhar para o céu, avistou o rasto rectilíneo branco deixado por umavião de passageiros que sulcava o céu azul. Ia tão alto que mal sevia, apenas o jacto, no entanto dirigia-se para noroeste, vindo,segundo calculava, de Amesterdão.- Já te passou pela cabeça, Oscar, que dentro daquele ponto minúsculo,há gente a comer nozes, a ler revistas e a mandar vir gim tónico?- Para te dizer a verdade, nunca me ocorreu.- Para onde irão?- Califórnia, Pólo Norte?- Passar o Natal ao Pólo Norte. Ainda bem que não tenho de o ir passarà Califórnia.- A sério?- Prefiro ir fazer um piquenique para a casa do major Billicliffe.Temos de lhe arranjar um nome novo. Não podemos continuar a chamar-lhea casa do major Billicliffe, agora que ele já não existe.- Costumava ser a casa do guarda-florestal. Mas penso que, com o correrdo tempo, passará a ser conhecida pela casa de Oscar Blundell. Fazsentido?- Oscar, tudo o que dizes faz sentido.Momentos depois, tinham percorrido os cerca de duzentos metros queseparavam as duas casas e detinham-se em frente do portão aberto quedava para a nova propriedade de Oscar. Era uma casa gémea da de Rosemas não tão atractiva, além do carro enferrujado parado em frente daporta não contribuir para favorecer as primeiras impressões. Elfrida,com Oscar a seu lado, recordou a primeira noite escura em que, exaustosda longa viagem, tinham finalmente encontrado a casa do majorBillicliffe para lhe pedirem a chave da Casa da Quinta. Tanta coisaacontecera depois disso que ela tinha a impressão de terem passadoanos.Subiram o carreiro, com as solas pisando os seixos, até Oscar meter achave na fechadura, dar-lhe a volta e rodar a maçaneta de metal. Aporta abriu-se e ela seguiu atrás de Oscar, fazendo figas, entrando napequena sala de estar.Lá dentro estava frio e húmido, mas- nada tão mau como se recordavaElfrida, e como temia. A janela, ao fundo, estava inundada de sol, eBetty Cowper e Rose tinham, entre as duas, esfregado, limpado,esvaziado cinzeiros, sacudido tapetes, polido mobília, despachadogrande quantidade de lixo e esfregado soalhos. O cheiro dominante era ode sabão azul-e-branco e desinfectante. A escrivaninha de tampo rolantefora fechada e o carrinho que o major Billicliffe designava de bar fora488limpo de garrafas vazias e copos usados. Até os cortinados imundostinham sido lavados e passados a ferro, e na lareira havia um monte dejornais e pauzinhos prontos a arder. Também havia um balde de metalcheio de carvão e uma pilha de troncos cortados a um canto da lareira.- Comecemos pelo princípio - sugeriu Oscar.Despiu o casaco e ajoelhou-se para chegar um fósforo aceso ao monte dejornal e de galhos. Ao fundo da sala estava a porta contra a qual apobre Brandy se atirara, a uivar de frustração, pregando um sustotremendo a Elfrida. Esta foi abri-la cautelosamente e deparou com umapequena cozinha feia e gelada, feita de pedra leve e com janelas decaixilhos de alumínio utilitárias. Havia uma tina de barro, uma tábuapara secar a loiça, um frigorífico minúsculo e um fogão a gás. A mesapequena estava coberta com uma toalha de plástico e o chão era forradoa linóleo, já muito gasto. Pouco mais havia. Uma porta meio envidraçadaà sua esquerda deitava para um pequeno espaço acimentado onde se via umcarrinho de mão estragado, uma forquilha e um vaso com terra seca comrestos de gerânios. Não havia sinal de canalização para água quente ouqualquer tipo de aquecimento e o ambiente era enregelante.Elfrida voltou para junto de Oscar, que empilhava carvão em cima das

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chamas. Ficou a vê-lo juntar um ou dois troncos. Depois perguntou:- Como se aqueceria o major Billicliffe?- Provavelmente não o fazia. Não sei. Acabaremos por descobrir.- Pôs-se de pé e sacudiu o pó das mãos contra a parte de trás dascalças de veludo canelado. - Anda. Vamos dar uma vista de olhos por aí.Não levou muito tempo. Atravessaram a pequena passagem que conduzia àdivisão seguinte: a sala de jantar do major Billicliffe, onde Oscar selembrava de ver as camisas do velhote penduradas nas costas dascadeiras. Mas também ali Betty e Rose tinham andado atarefadas: tudoestava limpo e nos seus lugares. As velhas caixas de cartão e as pilhasde jornais tinham desaparecido, a mesa apresentava-se decentementepolida, assim como as suas quatro cadeiras.Daquela divisão subia uma escada que conduzia aos dois quartos do pisode cima. Subiram-na e inspeccionaram-nos. No do major Billicliffe,somente um par de malas de cabedal, firmemente fechadas, evidenciavam apresença do seu anterior ocupante. Elfrida deduziu que contivessem assuas roupas mais respeitáveis. A cama encontrava-se coberta por umacolcha de algodão lavada e os tapetes haviam sido lavados.- Podíamos mudar-nos já amanhã - observou Elfrida, acrescentandoapressadamente, não se fosse dar o caso de Oscar a levar a sério- ... se quiséssemos.- Não, minha querida, não me parece que o queiramos fazer.O segundo quarto era mais pequeno, e a casa de banho, ainda que nãoexactamente a desgraça que Rose profetizara, muito espartana. . ? 489e pouco propícia a demorados banhos de imersão em água perfumada. Abanheira, sobre pés, estava cheia de manchas e de ferrugem, o lavatóriorachado e o linóleo levantado nas pontas. Num varão estava uma toalha,no fio, pendurada, e havia um sabão Lifebuoy no lavatório. O melhor quea casa de banho tinha, à semelhança da cozinha, era a vista. Elfridaabriu a janela a muito custo e ficou a olhar para fora. Estava tudomuito quieto e calmo, no entanto, conseguia ouvir o movimento dasárvores ao sabor de alguma brisa misteriosa que não se sentia soprar.De repente, dois maçaricos passaram em direcção à água, entoando o seucanto melancólico e solitário. Mais abaixo, estendia-se o quintal, aoabandono: erva crescida a esmo, ervas daninhas por tudo o que erasítio, dois tubos de metal enferrujados, com um pedaço de cordaestendida entre eles. Saltava à vista que tudo aquilo se encontrava aoabandono há anos, no entanto, Elfrida não se sentia deprimida nemdesencantada. A vista, a mesma vista que ela admirara da janela deRose, estava ali. Os campos inclinados, o azul deslumbrante da água eas colinas distantes. Achou que, para uma casa que não transbordavapropriamente de boas recordações, transmitia uma boa sensação. Foranegligenciada, mas não irremediavelmente. Precisava apenas, comoqualquer ser humano, de um pouco de risos e algum carinho, para quevoltasse a encher-se de vida. O que havia a fazer antes de mais nadaera, sem dúvida, tomarem medidas para se manterem aquecidos.- Vou até lá fora. Inspeccionar o meu reino - disse Oscar por detrás deElfrida.- Fazes bem. Quando vires aquele mato todo não caberás em ti deorgulho.Ouviu-o descer as escadas e assobiar a Horace. Aguardou. Logo a seguirviu-o aparecer por baixo da janela onde ela estava, mais o cão, depoisde saírem pela porta da cozinha. Elfrida viu-o deter-se, sob a luz dosol, e abarcar com o olhar o que se estendia à sua roda. Depois, comHorace nos seus calcanhares, foi até ao fundo da sua extensão deterreno. Quando chegou ao fim, junto da cerca balouçante que constituíao marco de delimitação, apoiou um cotovelo sobre um dos postes e alificou, a observar as aves-marinhas na costa do estuário.Elfrida pensou: «Tenho de lhe comprar uns binóculos.» Depois reparouque tinha um ar confortável, de quem estava bem consigo mesmo. Umprovinciano que regressara, finalmente, à sua terra. Sorriu, fechou a

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janela, saiu da casa de banho e atravessou a passagem estreita queconduzia ao quarto mais pequeno para uma segunda vista de olhos: Lucyteria de ficar ali. Mirou-o profissionalmente, verificando se haveriaespaço para ali colocar uma secretária para os trabalhos escolares.Haveria, caso substituíssem a enorme cama de casal em carvalho fumadopor uma cama de solteiro. O único senão era estar voltado para norte,pelo que não teria muita luz. Talvez se pudesse fazer alguma coisa paraminorar esse aspecto...490Ouviu o som de um carro que se aproximava e, ao espreitar pela janela,viu o Discovery de Sam a sair da estrada principal aos solavancos, paradepois dar a curva e parar diante do portão aberto. A porta de trásabriu-se e Lucy saltou para fora.- Elfrida!Parecia muito feliz, como se tudo, pelo menos uma vez na vida,estivesse a correr-lhe optimamente. Sentindo-se ridiculamente contente,Elfrida virou-se e saiu do quarto, descendo as escadas estreitas acorrer para abrir a porta da entrada e abrir os braços.Antes que Elfrida pudesse proferir palavra, Lucy atirou-se para o meiodeles já a transmitir informações no meio da maior excitação.- Oh, Elfrida, está tudo bem. Carrie conseguiu falar com a minha mãe.Ela ficou terrivelmente admirada e pediu para lhe explicarem tudo pelasegunda vez, antes de finalmente perceber o que todos nós queremosfazer. E Carrie foi maravilhosamente persuasiva, dizendo-lhe que elatinha de pensar nela mesma e em Randall e ter uma lua-de-melfantástica, sem precisar de voltar para Inglaterra a correr. E a mãedisse que eles querem ir passar a lua-de-mel ao Taiti, depois dar umpulo a Cleveland para verem a outra casa de Randall, portanto irãoprecisar de montes de tempo. E que a achava muito simpática por mereceber e eu poder ficar consigo.Elfrida, apesar de aliviada e deliciada, conseguiu manter o espíritoprático.- E o liceu? Refiro-me ao de Londres.- Oh, a minha mãe tratará de tudo isso. Telefonará a Miss Maxwell-Browna explicar e pedir-lhe-á que reserve o meu lugar para o próximo Verão,no caso de eu querer voltar nessa altura. Também queria falar consigo,mas a Carrie respondeu-lhe que já tinha saído, portanto ela ficou detelefonar noutra altura para conversarem. Elfrida, não é um amor decasa? Que está o carro velho a fazer ali?- A enferrujar.- E o vosso?- Ao pé da casa de Rose.- Pensámos que o tinham metido numa garagem e comprado antes aquele.- Pensaste agora uma coisa dessas! - Anda?- Não faço ideia.- Rory pô-lo-á a funcionar. Oh, Elfrida, ele recebeu uma carta. Vaipara o Nepal em meados de Janeiro. Não é formidável? O único senão énão estar cá durante a minha permanência, mas volta em Agosto para sepreparar para a Universidade. Elfrida, esta é que é a sala de estar? Eolhem, vocês já acenderam o fogo da lareira! Que acolhedor. Onde estáOscar?- Lá fora no quintal.- Como é que vou ter com ele?491- Vais até à cozinha, sais pela porta...Lucy saiu imediatamente para o quintal, chamando por Oscar. Nessemomento apareceu Carrie, carregada com um enorme cesto de compras deonde irrompiam termos e garrafas. Então, endireitando-se, levantou umpunho fechado em sinal de vitória.- Está feito! - disse para Elfrida. - Convenci Nicola, falei-lhe combons modos e está tudo okay. A aprovação parental foi conseguida. Lucypode ficar, ir para a escola em Creagan, e Nicola diz que estará

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disponível para contribuir para as despesas domésticas, comida ealojamento.- Nunca pensei nisso - admitiu Elfrida.- Pois não, já calculava. E agradecer-te-á com a sua presença, assimque voltar a este país. Penso que isso significa vir até ao Nortenalgum carro fantástico, com Randall Fischer ao volante, para exibir oseu novo-riquismo e dar uma mirada em ti e em Oscar.- Carrie, não sejas mazinha.-O mais certo é mostrar-se condescendente. -Não importa. Conseguimos oque queríamos. Oh, foste óptima. Abraçaram-se, triunfantes. Depois,Carrie afastou-se e adoptou uma eXpressão séria.- Elfrida, tens a certeza de que não será demasiado esforço para ti?Elfrida sacudiu a cabeça.- Estou convencida de que não.- Estás a arcar com um grande peso. -Não digas isso. Nunca.- Como é a casa?- Fria. Foi por isso que acendemos o fogo.- Posso bisbilhotar? -Claro.- Esta é que é a cozinha?- Horrível, não achas?- Mas ensolarada! Oh, olha, Oscar está além... - Saiu para o quintalpela porta da cozinha. - Oscar!Elfrida pegou no cesto, levou-o para a cozinha e colocou-o em cima damesa. Nesse momento, Sam apareceu, carregando uma caixa de cartão.Parecia muito pesada.- Isso é tudo para o piquenique? - perguntou Elfrida, algo espantada.- Vai ser um banquete. Onde é que ponho?- Aqui, ao lado do cesto. Onde está Rory?- A ver o que se passa com o velho carro do major Billicliffe. Aliparado dá um aspecto horrível. A chave da ignição estará por aí?- Não faço ideia.- Podemos destravá-lo e empurrá-lo para fora do caminho. A vossapropriedade recém-adquirida ficará com melhor aspecto. - Chegou-se àjanela e ficou a olhar para o quintal, onde Oscar, Carrie e Lucy tinhamcomeçado a voltar para casa. Observou: - Que vista maravilhosa! É umaboa casa, Elfrida. Transmite uma sensação de solidez.492Elfrida sentiu-se enternecida, como uma mãe a quem elogiam um filho.- Também é o que eu acho.O piquenique da véspera de Natal em Corrydale, o primeiro que alifaziam, foi uma festa memorável. Começou com um copo de vinho ao pé dalareira, ao calor dos troncos incandescentes, mas a pouco e pouco foiavançando para fora de portas, já que o dia estava tão bonito que eraquase um sacrilégio não o aproveitar. Rory e Lucy foram os primeiros asair para o quintal, seguidos pelos restantes, um a um, que se sentaramnas cadeiras da cozinha ou almofadões do sofá, ou no tapete grosso queRory trouxe do carro de Sam. O ar estava frio, mas o sol incidia sobretodos eles, além do abrigo proporcionado pela casa os proteger dequalquer aragem.Carrie e Sam tinham feito um trabalho esplêndido. Haviam trazido sopaquente com umas gotas de xerez, que serviram em tigelas, pãezinhosfrescos com fatias grossas de presunto barrado de mostarda inglesa, umaquiche de bacon e ovo, pernas de galinha, salada de tomate, maçãsverdes rijas e pedacinhos de queijo cheddar. Para finalizar, café bemquente, servido de um termo.Elfrida, sentada num almofadão e com as costas apoiadas à parede, virouo rosto para o sol e fechou os olhos.- Nunca na vida tive um piquenique tão bom. Obrigada, Carrie. O vinhodeixa-me completamente toldada. De cabeça virada. Não tenho dificuldadenenhuma em me imaginar em Maiorca.Oscar riu.- Desconta o facto de ainda não teres despido o casacão.

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Rory e Lucy, depois de acabarem de comer e partilharem entre si um sacode batatas fritas e uma barra de chocolate, tinham desaparecido dentrode casa, afim de irem inspeccionar cada canto. A certa altura, voltarampara junto dos outros.- É uma gracinha, Oscar - comentou Lucy.- O único problema - disse Rory com ar prático -, é terem de fazeralguma coisa para solucionar o problema do aquecimento. E um autênticoÁrctico.- Rory, tem estado vazia e a neve só parou de cair agora. Vamos, éDezembro. Calor é algo que não existe em Dezembro - protestou Carrie.- Não - disse Oscar firmemente. - Rory tem razão. O aquecimento será anossa prioridade. Aonde é que vocês dois vão agora?- Pensámos em levar Horace a dar um passeio até à água e à praia.Oscar acabou de beber o seu café.- Vou convosco.- Comera o seu piquenique sentado no degrau da porta dacozinha. Pousou então a caneca do café e estendeu uma mão a Rory, que opuxou, ajudando-o a pôr-se de pé. - Nada como um pouco de exercíciodepois de um banquete. Quem vem mais?493- Eu - disse Carrie.- Eu cá não - respondeu Elfrida firmemente. - Porque não ficas aquisentado mais um bocado? Está-se tão bem.- Se o fizermos, não tarda a escurecer e depois já não podemos dar opasseio. E o Sam?- Eu fico com Elfrida. Gostaria de dar uma vista de olhos à construçãoda casa.Mostrar a casa do major Billicliffe a Sam Howard foi completamentediferente de o fazer a Oscar. com este, Elfrida limitara-se a ir dedivisão em divisão, acabando por concluir prazenteiramente que não eratão acanhada nem tão decrépita como tinham receado. Mas Sam erainfinitamente mais prático e meticuloso, tal como ela suspeitara. Deupancadinhas nas paredes, abriu torneiras, inspeccionou caixilhos dejanelas e fichas de electricidade, e não fez comentários quando ela lherevelou os horrores da casa de banho feita de pedra leve. Às tantasterminaram e voltaram para a sala de estar. O fogo começara aesmorecer, de modo que ele deitou-lhe mais troncos sobre as brasas eespevitou-as com um atiçador. Sam dissera tão pouco, fizera tão poucasobservações que Elfrida começou a recear que, mentalmente, tivessecondenado a herança de Oscar e estivesse prestes a comunicar-lhe que aconsiderava imprópria para habitação humana.- Que acha, Sam? - perguntou-lhe Elfrida nervosamente.- Penso que tem grandes possibilidades. E a localização é perfeitamenteexcepcional... Só um momento, preciso de ir buscar algo ao carro. Háelectricidade? Talvez se pudesse acender uma luz ou duas. Começa aficar um pouco escuro cá dentro.Depois de ele sair, Elfrida acendeu as luzes. Do candeeiro do tectojorrou uma luzinha fraca. A lâmpada estaria a dar as últimas ou seriamais um exemplo do estilo de vida parcimonioso do major Billicliffe?Havia um candeeiro ao pé da lareira e outro sobre a escrivaninha.Depois de ligados, as coisas melhoraram um pouco. Quando Sam voltou,Elfrida reparou que trouxera um bloco de notas amarelo e umaesferográfica.Sentaram-se no sofá ao lado um do outro.- Agora vejamos - principiou Sam, colocando os óculos que tirou dobolso. - Vamos ao cerne da questão. Vocês dois tencionam viver nestacasa tal como está ou pretendem fazer algumas alterações?- Isso depende - respondeu Elfrida cautelosamente.- De quê?- De quanto custarão.- Suponhamos... - começou a desenhar um plano no bloco. Suponhamos,para começar, que deitam abaixo a cozinha e a casa de banho existentes.São feias, pouco práticas e não recebem luz do sul. Depois, penso eu,

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deviam acabar com a parede que divide os quartos lá494de cima... é só tábua e estuque e não me parece que suporte o que querque seja. Ficariam assim com um quarto amplo. Sugiro ainda quetransformem a sala de jantar numa cozinha, criando talvez uma pequenaárea para refeições voltada a sul. As paredes que dão para sul e paraoeste podiam ser envidraçadas... aproveitariam a vista toda e o sol.Ficariam também com um canto abrigado onde se sentarem lá fora. Umpequeno terraço. bom para as tardes quentes de Verão.- Que havemos de fazer com a escada?- Mudá-la para a parede do fundo.- E coisas como frigoríficos e máquinas de lavar? Acho que lhes dão onome de electrodomésticos.- Incorporá-los numa cozinha adaptada. Já há chaminé, portanto é sóinstalar um Rayburn. Terão assim calor permanentemente, Inverno eVerão, e se forem atingidos por alguma onda térmica elevada, o que émuito pouco provável nesta parte do mundo, bastará abrirem as portas eas janelas.- Isso substituiria o aquecimento central?- Estou convencido de que sim. Esta casa está muito bem construída, ecomo é de pedra, assim que a isolarem como deve ser, permaneceráaquecida. E têm a lareira na sala de estar. Quanto aos quartos, podempôr aquecedores eléctricos e aquecerem igualmente a água através daelectricidade. E muitíssimo eficaz, mas se houver algum corte deenergia, sempre terão o Aga.- E a casa de banho?- Nova. - Fez o esboço. - Sobre a casa de jantar.- Lucy também teria de se servir dela.- Sem problema.- O quarto pequeno onde ela vai ficar é terrivelmente escuro.- Assim que vocês se livrarem da velha casa de banho e da passagem, elaficará com mais uma janela na parede que deita para sul.Elfrida ficou a olhar, pensativa, para as sugestões simples que Samacabara de lhe desenhar no bloco, atónita perante a rapidez com queresolvera todos os dilemas. No que se referia à área aberta de lazer,agradava-lhe bastante. Imaginou-se sentada nela com Oscar, tal comoestava naquele momento, ao pé do fogo da lareira, com o conforto de umacozinha moderna mesmo ao fundo.- E o vestíbulo? - aventurou-se a perguntar.- Livre-se dele. Não passa de uma zona cheia de correntes de ar. Mas selhe puser vidros duplos e uma porta de entrada nova, ficarácompletamente isolado.Elfrida mordiscou a unha do polegar.- Em quanto ficará isso tudo?- Para lhe ser sincero, não sei.- Custaria... custaria mais de oitenta mil libras?Sam riu-se, ficando com o rosto enrugado de divertimento.495- Não, Elfrida, não creio que seja preciso esse dinheiro todo, afinalde contas não vai reconstruir, apenas adaptar. O telhado parece sólido,o que é o mais importante. Não há sinais de humidade. No entanto, achoque devia chamar um especialista para lhe dar uma vista de olhos. Etambém é melhor rever toda a instalação eléctrica. Apesar de tudo isto,penso que dezoito mil libras deverão ser mais do que o suficiente. -Tirou os óculos e olhou para ela. - Dispõe dessa quantia?- Não, mas espero vir a dispor. Jamie Erskine-Earle vai vender aquelemeu relógiozinho. Não chegámos a contar-lhe, mas tudo indica que sejauma raridade. Uma peça de coleccionador. Vale muito dinheiro. Portantodisse-lhe que vendesse.- Oitenta mil?- Foi o que ele disse. No máximo oitenta e cinco.- Nesse caso não tem problemas. Estou muito satisfeito por si! Não há

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que hesitar, Elfrida.- Teremos de arranjar um arquitecto, e pedir autorização e coisas dogénero.- Que tal a mulher do médico, Janet Sinclair, ela é arquitecta.Entregue-lhe o trabalho. Vale mais, porque é da localidade e conhece osbons profissionais ligados ao ramo da construção.- Quanto tempo levará?- Imagino que seis meses. Não sei.- Teremos de ficar na Casa da Quinta até podermos mudar para cá.- Evidentemente.- Mas, e o Sam? Quer a Casa da Quinta para si.- Posso esperar. E certamente não estão a contar que vos ponha na rua,pois não?- Mas como vai trabalhar em Buckly, onde é que morará?- Não se preocupem comigo.Elfrida teve então uma ideia brilhante que, ao seu jeito impulsivo,partilhou imediatamente com Sam.- Pode viver connosco. Na Casa da Quinta. O Sam, Lucy, Oscar e eu. Jáestá instalado num quarto de lá. Pode perfeitamente lá continuar.Sam voltou a rir-se.- Elfrida, esse é o tipo de sugestão na qual deve reflectir muito bem.- Porquê?- Porque pode mudar de ideias. E tem de falar nisso a Oscar. Ele poderánão gostar da ideia.- Oh, Oscar adorará tê-lo lá em casa. E eu também. Será um novotrabalho para mim, ter hóspedes. Sabe, fui muita coisa nos meustempos... actriz, embora nada de especial, empregada de mesa quando nãotinha trabalho, senhora de reputação não muito respeitável, fizalmofadas decorativas. E agora serei hospedeira. Por favor, diga quesim.496Estranhamente, sinto que a Casa da Quinta já lhe pertence, apesar deainda não ser sua. Como se fosse suposto, desde sempre, o Sam virocupá-la. Portanto, é lá que deve ficar.- Obrigado - agradeceu Sam. - Nesse caso, aceito, sujeito, como éevidente, à aprovação de Oscar.Quando os passeantes voltaram, o sol começara a baixar no horizonte.Oscar e Carrie foram os primeiros, juntamente com Horace, que vinhaansioso por uma bebida refrescante.- Que tal foi? - quis saber Elfrida, procurando uma taça adequada a umcão no armário.- Perfeito - respondeu Carrie, desapertando o lenço. - É um lugarparadisíaco. E as aves que estavam na praia! Patos, cormorões,gaivotas. E vocês ficaram bem?- Sam é brilhante. Praticamente traçou a planta da casa. Tens de virver, Oscar. Quase não precisamos de fazer nada. Basta deitar algumaspartes abaixo, erguer outras, livrarmo-nos de uma parede e arranjar umAga. Não fiques de boca aberta, Oscar, é tudo muito simples. Alémdisso, pediremos a Janet Sinclair que seja a nossa arquitecta. E Samdiz que devemos mandar rever e substituir a instalação eléctrica, masacha que não há nada de verdadeiramente estragado em lado algum. Vemver...Só hora e meia depois é que Rory e Lucy, finalmente, apareceram, alturaem que Oscar já tomara conhecimento de todas as ideias de Sam, ficaraconvencido e dera a sua aprovação. Carrie também concordou com tudo.- Sabem, sempre adorei a ideia de um piso térreo com um espaço aberto,sobretudo em se tratando de uma casa pequena. E o novo prolongamentosignifica a entrada de grande quantidade de luz. Sam, você é esperto. Érealmente muito esperto. Onde é que ficou a saber tanto sobre derrubarparedes e desenhar plantas?- Nos últimos dois meses não tenho feito outra coisa senão lidar complanos, projectos, elevações e plantas de arquitectos. Seria muito

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burro se não tivesse ficado com algumas noções...Naquele momento já pouca luz havia. Carrie consultou o relógio de pulsoe disse que eram horas de regressar a Creagan. Lucy ainda tinha deacabar de pôr a mesa para o jantar de Natal e Carrie iria preparar umprato abundante e satisfatório para comerem naquela noite.- Vais à missa da meia-noite, Elfrida?- Estou a pensar nisso. Oscar não quer ir, mas eu vou.- Eu também. Lucy e Sam, igualmente. Faremos uma refeição tardia, casocontrário será uma noite muito longa.- Jogaremos às cartas. Encontrei uns baralhos na gaveta do fundo daestante. Quem sabe jogar à canasta com três baralhos? - perguntouOscar.- Está a falar do «samba», não é? - perguntou Sam. - Eu sei. Era agrande loucura em Nova Iorque quando lá estive.497- Eu não sei jogar - informou Lucy.- Não te importes - disse-lhe ele. - Podes fazer par comigo.Por fim, depois de arrumarem o que restara do piquenique, encontraremos respectivos chapéus e luvas, aprontaram-se para partir. O primeirogrupo foi no carro de Sam. Elfrida, Oscar e Horace ficaram para trás,afim de fecharem tudo e seguirem mais tarde, no entanto, saíram para sedespedir dos outros.Eram só quatro da tarde, mas o crepúsculo já se instalarainsidiosamente e uma lua nova, delicada como uma pestana, pairava porcima deles no céu de safira. O topo coberto de neve das colinastornara-se quase luminoso na peculiar penumbra, e a maré vazanteesvaziava o estuário, revelando faixas de praia e bancos de areia.Maçaricos ainda voavam, rasando a costa, porém as outras aves já setinham calado, terminados os cantos daquele dia.O volumoso Discovery desapareceu caminho acima, com as luzes daretaguarda a brilhar. Oscar e Elfrida ficaram à porta até deixar deouvir o ruído do motor, depois viraram-se e voltaram para dentro.Elfrida desabafou:- Não tenho vontade de ir embora. Não quero que o dia de hoje termine.- Nesse caso, ficaremos mais um pouco.- Se tivesse algum chá por aí, preparava-te uma chávena.- Quando voltarmos, tomamos uma.Oscar deixou-se cair pesadamente no sofá onde, ainda há pouco, Samestivera sentado. Ao acompanhar os jovens, caminhara mais do quetencionara, de modo que sentia-se exausto. Elfrida deitou o últimobocado de lenha na lareira e depois sentou-se em frente dele,estendendo os dedos enregelados para a fogueira.- Viremos morar aqui, não é, Oscar? - perguntou.- Se quiseres.- Quero. E tu também?- Sim. Admito que tinha as minhas reservas, mas agora que voltei a vera casa e Sam apresentou todas aquelas ideias e possibilidades, pensoque é exactamente aquilo que devemos fazer.- Que excitante. Um recomeço. Arquitectos, construtores e tudo a ficarcomo novo. Um dos meus cheiros preferidos é o da cal líquida. E logo aseguir, o da tinta fresca.- E quanto a mobília?- No princípio, podemos servir-nos do que aqui está. Talvez demos umavista de olhos por aí, escolhamos algumas peças em segunda-mão. Aprimeira prioridade é pôr esta casa como a queremos. Quente, arejada eluminosa. com um Aga e uma cozinha bonita. O aquecimento é extremamenteimportante. Não consigo imaginar como o major Billicliffe conseguiuaqui viver tanto tempo sem morrer de hipotermia.- Ele era da velha guarda. Um casaco grosso de tweed, umas ceroulascompridas em lã e fora com esses disparates de sentir frio.498- Tu nunca serás assim, pois não, Oscar? Se começasses a usar ceroulas

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compridas de lã, eu não suportaria.- Não. com um pouco de sorte jamais farei semelhante coisa. As sombrasalongaram-se. Atrás da janela, as árvores despidas desvaneceram-se nomeio da escuridão. Elfrida suspirou.- Acho que são horas de irmos. Não devo deixar tudo nas costas deCarrie...Oscar, porém, disse:- Espera. Quero falar.- Sobre o quê?- Nós.- Mas... - Elfrida ia a dizer, «não temos feito outra coisa durante odia todo senão falar de nós», mas Oscar interrompeu-a.- Escuta apenas. Escuta apenas o que tenho para te dizer.A sua voz transmitia uma tal seriedade e compenetração que Elfridalevantou-se da sua poltrona e foi sentar-se no velho sofá, a seu lado,e Oscar agarrou-lhe na mão. O gesto trouxe-lhe à lembrança um outro,igual, na altura sentados à mesa da cozinha da Granja, após a morte deGloria e Francesca, sem que nenhum dos dois encontrasse palavras parase reconfortarem um ao outro.- Estou a escutar - disse-lhe Elfrida.- Estamos prestes a dar um novo passo. Juntos. Um verdadeirocompromisso. Remodelar esta casa. Gastar uma quantia considerável e virviver para cá. Também se prevê que, a curto prazo, Lucy também venhapara aqui. Não achas que talvez tenha chegado a altura de casarmos? Desermos marido e mulher? Sei que é apenas uma formalidade, pois nem quetentássemos poderíamos ser mais casados do que já somos. Mas selaria anossa união... não em termos morais, mas como uma afirmação da nossaconfiança no futuro.Elfrida deu-se conta de que os seus olhos se tinham, estupidamente,marejado de lágrimas.- Oh, Oscar... - Retirou a mão e pôs-se à procura do seu lenço. «Osvelhos», dissera uma vez a si própria, «ficam horrorosos quandochoram.» - ... não precisas de fazer isso. Elas morreram ainda hápoucos meses. Muito pouco tempo para chorar e recuperar. Além disso,não tens de te preocupar comigo, pois não sou esse tipo de mulher.Terei imenso prazer em ficar contigo o resto da vida, só não quero quete sintas na obrigação de casar comigo.- Não tem nada a ver com nenhuma obrigação. Amo-te e respeito-te talcomo as coisas estão, e não creio que nenhum de nós se preocupe com oque os outros possam pensar ou dizer. Por mim, manteria a situação talqual está. Mas agora temos de pensar em Lucy.- Que diferença tem para ela a maneira como nós vivamos?- Oh, minha querida Elfrida, pensa um pouco. Até aqui, as pessoas deCreagan aceitaram-nos com grande bondade; até mesmo499condescendência. Nenhuma alma nos atirou alguma pedra, nem mesmo umgrãozinho de areia. Mas no que diz respeito a Lucy, é diferente. Elavai para a escola local. As crianças nem sempre são caridosas. Podemcomeçar a correr boatos e os pais dela ficarem com má impressão, apesardos tempos que correm. Não gostaria que nada disso incomodasse Lucy. Etambém temos de pensar no novo marido de Nicola. Nada sabemos sobreele, mas pode acontecer que seja um desses indivíduos inabaláveis, depadrão moral determinado e inflexível. Nicola há-de cá vir com ele devisita. Não queremos dar a nenhum deles uma razão válida para levaremLucy para Cleveland, Ohio, contra a sua vontade.- Queres dizer que poderia não querer que ela morasse connosco, apenasporque vivemos em pecado?- Exactamente.- Então, para bem dela, devemos casar-nos.- Em termos simples, é isso. -Mas Gloria...- Gloria, de entre todas as mulheres, compreenderia. - Ainda se passoutão pouco tempo, Oscar.

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- Eu sei.- Tens a certeza?- Tenho, absoluta. É que uma coisa é certa, tu ajudaste-me a começar denovo, tu é que não só tornaste uma fase dolorosa suportável e possível,como também alegre. Acho que espalhas alegria à tua volta. Não podemosvoltar atrás. A vida, para nós dois, nunca mais será como era, mas tuprovaste-me que vale a pena vivê-la. Disse-te, faz muito tempo, quetinhas o condão de me fazer rir. E levaste-me a amar-te. Agora nãoposso imaginar a minha existência sem ti. Por favor, casa comigo. Senão estivesse tão mal das minhas articulações, ajoelhava-me.- Detestaria que o fizesses - confessou Elfrida encontrando,finalmente, o seu lenço de mão e assoando-se. - Mas gostaria muito,muito, de casar contigo. Obrigada por mo pedires.Pôs o lenço de lado e Oscar pegou-lhe na mão mais uma vez.- Muito bem. Estamos noivos. Damos a notícia ou guardamo-la para nós?- Guardemo-la para nós. Desfrutemos secretamente dela. Só por enquanto.- Tens razão. Há tanta coisa em curso! Deixemos o Natal passar e depoisdamos um pulo a Kingsferry, eu compro-te um anel de noivado comdiamantes e depois disso anunciamos ao mundo a nossa felicidade.- Tenho de ser sincera - confessou Elfrida -, não sou grandeapreciadora de diamantes.- Então que gostarias que te oferecesse?- Águas-marinhas?Oscar riu-se e deu-lhe um beijo. Poderiam ter ficado ali sentados no500meio da penumbra o resto do dia, mas o último dos troncos já ardera e acasa, desaparecido o sol, voltara a esfriar. Eram horas de partir. Noexterior, o ar gelara rapidamente e era de novo Inverno. Do nortesoprava um vento que fazia estremecer os ramos sem folhas da enormefaia que se erguia em frente do portão.Elfrida, com as mãos bem no fundo dos bolsos do seu casaco, olhou emvolta. A Lua nascia, a primeira estrela espreitava, tremeluzente.- Voltaremos - disse ela, sem se dirigir a ninguém em particular.- Claro - confirmou Oscar, fechando a porta da frente. Pegou-lhe entãono braço e, com Horace no seu encalço, percorreram o carreiro cobertode pedrinhas no meio da penumbra intensamente azulada do cair da noite.Véspera de Natal. O pior foi a minha mãe ter ligado ontem, no meio dafesta de Elfrida, a dizer que casou com Randall Fischer. Acho que foi anotícia mais horrível que já me deram, pois só pensei que, ou teria deir viver para a América e perder todos os meus amigos, ou ficar a morarcom a minha avó em Londres. Além disso, sem me ajustar nem ser desejadaem nenhum dos lugares. Foi um verdadeiro horror. Fiquei completamentehistérica, ao ponto de me sentir doente e tratar Carrie muito mal, masagora já passou.Seja como for, já está tudo resolvido e, por enquanto, ficarei aqui emCreagan com Oscar e Elfrida e irei ao liceu local. Rory é que lhesdisse que eu devia ficar cá e estou muito contente por nós dois termosconversado enquanto ele preparava a televisão, pois assim ficou a saberexactamente o que eu sentia, ao contrário das outras pessoas. Acho queele é o melhor amigo que eu tenho. Vai para o Nepal no mês que vem eestá entusiasmadíssimo com isso. Terei muitas saudades dele, mas tenhoa certeza de que, quando voltar, em Agosto, voltarei a vê-lo. Seja oque for que tenha acontecido nessa altura, farei questão em vê-lo eentão já terei quinze anos. Os quinze soam muito mais a adulto do queos catorze.Portanto, hoje de manhã, acordei com a certeza de que tudo vai correrbem, e foi como se me tirassem um peso enorme de cima. Carrie telefonouà minha avó a falar-lhe dos planos e ela concordou com tudo. Maistarde, ligou para a Florida, afim de falar com a minha mãe e também aconvenceu. Na verdade, não levou muito tempo. E depois falei eu com aminha mãe e fiz o possível por não parecer demasiado contente, não sefosse dar o caso de ela mudar de ideias.

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Depois Rory apareceu, Sam levou-nos a Corrydale e fizemos um piqueniquetodos juntos. Sempre quis lá ir para conhecer o lugar.501Era lindo, e o dia estava perfeito, sem nuvens ou vento, e com umatemperatura muito agradável. A casinha de Oscar é um amor, construída aum canto da antiga propriedade, com mais algumas por perto, magníficasárvores enormes e uma longa vista da água até às outras colinas. Estavatremendamente silencioso; só se ouvia o cantar das aves e nada de ruídode trânsito ou qualquer outro. A casa não é muito grande, está em mauestado e faz um frio pavoroso lá dentro, mas Oscar já tinha acendido alareira, o que a tornou muito acolhedora. Só tem dois quartos e o queserá para mim é um pouco sombrio, mas Elfrida diz que ficará melhordepois de lhe fazerem algumas alterações. Sam teve uma série de ideiasóptimas e quando forem postas em prática, ficará esplêndida. Tem umquintal, cheio de ervas daninhas, e também uma espécie de terraço, quefoi onde comemos o nosso piquenique. Elfrida diz que vivem outrascrianças por perto, de uma família de apelido Cowper, e como andam naescola local, pode ser que vá de boleia com elas.Voltámos no carro de Sam, deixámos Rory em Manse e depois seguimos paracasa. Carrie preparou-nos um prato enorme chamado tortilha para ojantar. Tinha batatas, alhos-porros, ovos, bacon e outras delícias.Enquanto isso, acabei de pôr a mesa para o jantar de Natal, coloquei asvelas, os estalinhos e os pratinhos com chocolates e dobrei osguardanapos. No meio da mesa está uma taça com azevinho que lhe dá umar mesmo festivo, e quando acendermos a lareira parecerá exactamentecomo um cartão de Natal.Depois, jogaremos às cartas para preencher o longo serão, antes deirmos todos à missa da meia-noite, excepto Oscar, que diz que não querir.Não sei daqui a quanto tempo é que poderão mudar-se para Corrydale, porcausa de todo o trabalho que é preciso fazer na casa. Adoraria passar oVerão lá, mas Elfrida diz que depois se verá. Entretanto, está-semaravilhosamente aqui. Além disso, Sam vem morar para cá até tudo ficarresolvido. Custa-me a acreditar que num dia me possa sentir tãomiserável e desesperada e no outro tão completamente feliz. Quandovoltar a escrever no meu diário, o Natal já terá passado.Elfrida concentrou-se a abrir a sua mão cheia de cartas e, ao mesmotempo, a escolher a que iria lançar. Tinham-se-lhe acabado os dois e ostrês e encontrava-se naquele momento na posição incómoda de tentardescobrir se Carrie tinha, ou não, um par delas na mão e, se assimfosse, um par de quê? O monte de cartas descartadas era demasiadogrande para se estar descansado, aproximavam-se do fim do jogo e seCarrie desse uma boa cartada naquele momento, Elfrida e Sam seriamderrotados.- Decide-te, Elfrida - incentivou Oscar, cansado da longa espera.- Sê corajosa. Deita uma que não queiras.Portanto, ela cerrou os dentes e atirou o oito de copas, à espera deque Carrie lançasse um brado de alegria e atacasse. A jovem, porém,limitou-se a abanar a cabeça, o que fez com que Elfrida soltasse umsuspiro de alívio e relaxasse.- Estou que não me aguento dos nervos. Se não tivesse de ir à igreja,tomava mais uma bebida avantajada.Eram já dez e meia e estavam na última mão. Até ali, Sam e Elfridaencontravam-se em vantagem em termos de pontos, mas a tensão manter-seiaaté a última carta ser virada. Elfrida jogara «samba» há muitotempo, quando Jimbo ainda era vivo e às vezes ficavam a jogar pelanoite fora com alguns amigos. No entanto, esquecera-se já de algumasregras e só depois de começar a jogar é que se recordara dos velhostruques e contra-senhas. Oscar e Sam eram jogadores experimentados e apar de todas as nuances do jogo, porém Carrie e Lucy eramprincipiantes. Carrie apanhou rapidamente o fio à meada; quanto a Lucyfazia par com Sam, que lhe ia explicando tudo com gentileza e

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paciência,e no fim da primeira mão já a deixava tomar opções sem se aborrecerquando não eram as mais indicadas.Carrie tirou duas cartas do baralho, inseriu-as entre as que tinha namão e depois conseguiu completar um «samba». Oscar deixou escapar umsom de aprovação. Ela atirou então o quatro de espadas.- Se pegar naquela, Sam, estrangulo-o com as minhas próprias mãos.- Não posso.Lucy observou:- Já só faltam quatro cartas.- Quando essas desaparecerem, o jogo terminou - esclareceu-a Sam. -Pega em duas, Lucy, e vê o que nos calhou.No patamar, o telefone tocou.- Malfadado telefone. Quem estará a ligar a uma hora destas! exclamouOscar.- Eu vou - disse Elfrida.Mas Oscar já pousara as suas cartas e pusera-se de pé. Saiu da sala efechou a porta. Elfrida ouviu-o dizer, «Casa da Quinta».Seguiu-se o silêncio, enquanto falavam no outro lado da linha, e, porfim, um murmúrio em resposta. A seguir, voltou para junto dos outros,sentou-se no seu lugar na bancada da janela e pegou nas suas cartas.- Que era? - perguntou Elfrida, curiosa.- Nada de especial. Engano.- Queres dizer que se enganaram no número? Oscar olhou fixamente paraas cartas.- Se era número errado, porque é que respondeu? - perguntou Sam.503Lucy, sentada com a cabeça de lado, tentando decidir-se sobre quecarta jogar, desatou a rir com a velha piada.No final acabaram-se as cartas e ninguém ganhou. Mas Sam puxou o blocode notas para si e depois de juntar os números todos, anunciou que elee Elfrida eram os vencedores em termos gerais e que esperava que Oscartivesse um bom prémio para lhes oferecer.-Nem pensem em semelhante coisa - informou-os Oscar com dignidade. -Tiveram imensa sorte e calharam-vos as melhores cartas. Nada teve a vercom perícia. - Dito isto, pousou as suas cartas na mesa e levantou-se,declarando: - vou levar Horace a dar um passeio. Elfrida ficou a olharpara ele, algo atónita. Oscar levava frequentemente Horace ao quintalantes de todos se irem deitar, mas nunca para um passeio.- Passeio? Mas aonde é que vais? Lá abaixo à praia? - Não sei. Apenassinto que preciso de um pouco de ar fresco e de esticar as pernas.Horace pode perfeitamente ir comigo. Não devo estar de volta antes devocês irem para a igreja, mas deixem a porta aberta e ainda estarei apé quando voltarem. Divirtam-se. Canta bem, Lucy. - Cantarei -prometeu-lhe ela. l Elfrida tinha uma expressão intrigada.-Engraçado! Seria de crer que hoje tivesses feito exercício quebastasse para a semana toda.- Oh, deixa-o estar, Elfrida - disse Carrie, juntando as cartas ecomeçando a distribuí-las em três baralhos separados, um azul, outrovermelho e o terceiro às flores.- Dá-me uma ajuda, Lucy. Podes ficar com o das flores. Acho este jogouma maravilha. Há um momento subtil em que se deixa de jogar samba»para se passar à canasta. O apuramento final, no entanto, é um bocadocomplicado. Terá de mo passar ao papel, Sam, para eu não me esquecer. -com certeza.As cartas foram separadas, empilhadas e guardadas. Elfrida deu umavolta pela sala a afofar almofadas e a apanhar jornais do chão. O fogoda lareira estava baixo, no entanto deixou-o aceso e colocou a guardaem frente das cinzas incandescentes.- Acho que devíamos ir andando. Deve ir muita gente e haveremos dequerer arranjar lugar sentado.- É como ir ao cinema - observou Lucy. - Fará frio dentro da igreja?

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Deverei levar o meu casaco vermelho? - Sim, sem dúvida, e as tuas botasquentes.Elfrida, sozinha no seu quarto, escovou o cabelo, retocou o bâton e pôsum pouco de perfume. A seguir, tirou o seu casaco de tecido muitogrosso do guarda-fato, vestiu-o, abotoou-o até acima e depois enfiou oseu gorro tipo abafador de bule na cabeça. Por fim, sentou-se na beirada cama e calçou as botas forradas a pele. Umas moedas para a colecta,um lenço para o caso de se emocionar com os cânticos e um par de luvas.Tudo pronto. Viu-se ao espelho. Elfrida Phipps, prestes a tornar-seMrs. Oscar Blundell. Achou que estava com um ar estupendo. Aqui vou eu,Deus. E obrigada.Saiu do quarto e desceu à cozinha, afim de verificar se estava tudopronto para a manhã do dia de Natal e se não deixara a chaleira aolume, como lhe acontecia muitas vezes. Foi então que deu de caras comHorace, no seu cesto.Ficou com uma expressão confundida.- Horace, pensei que Oscar te tinha levado a dar um passeio. Horaceolhou para ela e abanou a cauda.- Deixou-te ficar? Horace fechou os olhos.- Onde é que ele foi? Horace não lhe soube dizer.Elfrida voltou a subir ao andar de cima e entrou na sala de estar.- Oscar? - A divisão, porém, estava vazia e todas as suas luzesapagadas. De Oscar, nem sinal.Encontrou Sam no patamar, a vestir o seu sobretudo azul-marinho.- Oscar desapareceu.- Foi dar um passeio com Horace.- Não, Horace está na cozinha, no seu cesto. Que mistério!- Se calhar escapuliu-se até ao pub.- Que ideia!- Não se preocupe. Ele já é crescidinho.- Não estou preocupada. - E não estava, evidentemente. Apenas intrigadae sem saber aonde ele fora.Lucy desceu as escadas a correr, vinda do seu sótão.- Estamos todos prontos, Elfrida. É preciso levar dinheiro para acolecta?- É. Tens algum?- Umas cinquenta. Chega?- Aos montes. Onde está Carrie?- A acabar de se arranjar.- Bem, nós as duas vamos andando, Lucy, para ver se arranjamos um bancopara nós. O Sam fica à espera de Carrie e depois vai com ela, não é?- com certeza.Elfrida e Lucy desceram as escadas apressadamente e, ao chegarem aovestíbulo, Sam ouviu-as abrir e fechar a enorme porta da frente.Ficou no patamar da casa vazia, à espera de Carrie. Do lado de lá daporta fechada do quarto chegavam sons: gavetas a ser abertas, a portade um armário a ser fechada. Não sentia impaciência. Ao longo da505vida aguardara a chegada de inúmeras mulheres sentado em bares, de péem vestíbulos de teatros e cinemas, a fazer tempo nalgum pequenorestaurante italiano. Esperara, mais vezes do que conseguia recordarse,por Deborah, que não era capaz de ser pontual em nada. Portanto,naquele momento, na casa que um dia seria sua, esperava por Carrie.- Oh, Sam. - Carrie saíra do quarto, fechara a porta e ficara um poucoconstrangida por vê-lo ali. - Tem estado à minha espera? Desculpe. Nãoconseguia encontrar o meu lenço de seda. - Vestia o seu casacoacolchoado e trazia o chapéu de pele e as botas altas reluzentes. Olenço diáfano, todo em rosas e azuis, vinha suavemente enrolado emvolta do pescoço esguio, e, embora tudo aquilo já lhe fosse ternamentefamiliar, sabia que nunca a vira tão bonita. - Onde estão os outros? Jáforam?- Sim, já foram - retorquiu Sam.

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Então, pousou as mãos nos seus ombros, atraiu-a a si e beijou-a. Eraalgo que ansiava fazer desde a primeira noite em que ela lhe abrira aporta e o vira na soleira, sob a neve que tombava. Quando, por fim, sesepararam, Sam viu que ela sorria e que os seus olhos escuros nunca lhetinham parecido tão brilhantes.- Feliz Natal - disse-lhe.- Feliz Natal, Sam. São horas de ir.Elfrida e Lucy atravessaram a rua. A praça, iluminada pelos candeeiros,já estava cheia de carros, que chegavam com pessoas para a igreja. Eraevidente que iria estar presente uma congregação muito numerosa. Vozeschamavam, vizinhos cumprimentavam-se, pondo-se a caminhar a par.- Elfrida!Pararam e viram Tabitha, Rory e Clodagh mais atrás, acabados de descerde Manse.- Viva! Pensei que era cedo, mas vejo que não. Nunca vi tanta gente.- Eu sei, é divertido, não é? - Tabitha vestia um casaco de lã emxadrez e enrolara um cachecol vermelho ao pescoço. - É sempre assim. Aspessoas vêm de quilómetros em redor... Só é pena que tenhamos tido umrevés. Alistair Heggie, o organista, ficou com gripe, portanto nãoiremos ter música de órgão como deve ser.Elfrida ficou horrorizada.- Quer dizer que teremos de cantar sem acompanhamento? Não é possível!- Não é bem assim. Peter telefonou a Bill Croft, o homem dastelevisões, e ele veio dar uma ajuda. Instalou uns megafones e haverámúsica gravada. Não é tão bonito, mas remedeia.506- Oh, que desilusão..- Pobre Peter.- Não há outra solução. com um pouco de sorte ainda arranjamos um bancopara nós.Atravessaram a rua até aos portões verdes e ao carreiro que ficava aseguir, o qual conduzia à ampla escadaria de pedra e às portas duplasda igreja, naquela noite completamente escancaradas. A luz jorrava dointerior, incidindo sobre as pedras arredondadas do chão e Elfridaconseguia ouvir a música gravada que vinha de dentro. Um coro. A cantarmúsicas de Natal.Deus vos conserve felizes, homens de bem,Que nada vos desalente.Parecia um pouco mecânico e metálico. «Só um pouco», pensou Elfrida,assim como um pickup portátil num piquenique. Impróprio e, de certomodo, inadequado.Pois Jesus Cristo é o nosso...Silêncio. Ou o gravador avariara ou alguém desligara inadvertidamente aelectricidade.- Oh, não! - exclamou Rory. - Não me digam que o megafone apanhougripe.De repente, chegou até eles a onda avassaladora de um órgão a tocar.Acordes e ondas de música monumentais encheram a igreja, derramaram-separa o exterior através das portas abertas e ressoaram no ar,desaparecendo na noite.Elfrida deteve-se abruptamente. Olhou para Tabitha, que a fitou com osolhos muito abertos e inocentes. Durante um instante prolongado,nenhuma delas falou. De repente Elfrida perguntou:- Peter telefonou a Oscar? Há cerca de um quarto de hora atrás? Tabithaencolheu os ombros.- Não faço ideia. Venham, meninos, tentemos encontrar sítio para nossentarmos.Depois de uma pequena hesitação, Elfrida foi atrás deles. Encontrou umhomem simpático, de barbas, à entrada, que a cumprimentou, «Boa noite,Mistress Phipps» e entregou-lhe um livro de hinos. Elfrida aceitou-oautomaticamente, sem sequer olhar para ele ou agradecer-lhe. Entrou naigreja e viu que já se encontrava quase cheia com as pessoas ainstalarem-se nos seus lugares, inclinando-se para conversar com

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vizinhos ou quem estava sentado ao lado. A música retumbava à suavolta, enchendo o vazio das arcadas altas, ecoando ao longo da extensanave. Começou a caminhar ao longo da coxia central, alcatifada em tonsde vermelho e azul. Caminhar pela música dentro era como entrar num maralteroso de som.Uma mão tocou-lhe no braço. Deteve-se. Era Lucy.- Elfrida, estamos aqui. Guardámos lugar para si, Sam e Carrie. Nãoprestou atenção. Manteve-se imóvel.A árvore de Natal, ricamente decorada e cheia de luzes coloridas e507tremeluzentes, erguia-se no meio do transepto, entre o púlpito e abancada de leitura. Por trás, contra a parede norte da igreja, erguiamseos tubos do órgão. O assento do organista encontrava-se rodeado pordivisórias de madeira de carvalho, de modo a que o organista não fossevisto da assembleia sentada. Elfrida, porém, estava de pé. E era alta.Uma luz, vinda do alto, incidia sobre ele, e assim podia ver claramentea sua cabeça, o seu perfil, a farta cabeleira branca que a exuberânciainconsciente da sua própria actuação desalinhara.Beethoven. Hino da Alegria.E Oscar Blundell a tocar com toda a sua alma. Reconciliado. De volta.De volta aonde pertencia.Fim