sociedade e política no brasil pós 64- bernardo sorj

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  • SOCIEDADE POLTICA NO BRASIL PS-64

    Bernardo Sorj Maria Hermnia Tavares de Almeida

    Organizadores

  • Bernardo Sorj Maria Hermnia Tavares de Almeida

    Organizadores

    SOCIEDADE POLTICA NO BRASIL PS-64

    Rio de Janeiro 2008

    Esta publicao parte da Biblioteca Virtual de Cincias Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.bvce.org

    Copyright 2008, Bernardo Sorj, Maria Hermnia Tavares de Almeida Copyright 2008 desta edio on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da ltima edio: 1984

    Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicao para uso comercial sem a permisso escrita dos proprietrios dos direitos autorais. A publicao ou partes dela podem ser reproduzidas para propsito no-comercial na medida em que a origem da publicao, assim como seus autores, seja reconhecida.

    ISBN 978-85-99662-63-2

    Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Piraj, 330/1205 Ipanema Rio de Janeiro RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: [email protected]

  • I

    SUMRIO

    Apresentao ..................................................................................... 1 Bernardo Sorj, Maria Hermnia Tavares de Almeida

    Introduo (quase um prefcio) ...................................................... 2 De Castello a Figueiredo: uma incurso na pr-histria da "abertura" ......................................................................................... 8

    Sebastio C. Velasco E. Cruz, Carlos Estevam Matins O eleitorado, os partidos e o regime autoritrio brasileiro ......... 91

    Fbio Wanderley Reis As foras armadas e a poltica ..................................................... 132

    Ren Armand Dreifuss, Otvio Soares Dulci Desenvolvimento, urbanizao e mudanas na estrutura do emprego: a experincia brasileira dos ltimos trinta anos ....... 182

    Vilmar Faria Processos sociais e formas de produo na agricultura brasileira ........................................................................................................ 245

    Bernardo Sorj, John Wilkinson O sindicalismo brasileiro entre a conservao e a mudana .... 279

    Maria Hermnia Tavares de Almeida Movimentos sociais urbanos: balano crtico............................. 313

    Ruth Cardoso Processos sociais no Brasil ps-64: as cincias sociais ............... 351

    Otvio Guilherme Velho

    1

    Apresentao

    Em outubro de 1982 realizou-se em Manchester, Inglaterra, o Congresso Internacional de Americanistas. Na oportunidade organizamos um painel sobre "Transformao Sociais no Brasil ps-64", que procurou apresentar uma viso dos diferentes aspectos que a temtica abriga. Obviamente, no pretendamos dar conta da multiplicidade de questes que poderiam ser levantadas, menos ainda da diversidade de vises possveis. Ainda que o grupo tenha se restringido a uma perspectiva fundamentalmente "sociolgica", certos temas centrais, como, por exemplo, o das classes dominantes, no foram includos. Malgrado esta e outras limitaes, acreditamos que o livro constitui pelo menos um esforo no sentido de apresentar uma viso do conjunto e relativamente coerente das transformaes em curso nas ltimas duas dcadas na sociedade brasileira. Nosso objetivo e desejo que possa tornar-se referncia e incentivo para novos e melhores estudos, capazes de proporcionar uma imagem sinttica da complexa estrutura social brasileira.

    Bernardo Sorj Maria Hermnia Tavares de Almeida

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    Introduo (quase um prefcio)

    Fernando Henrique Cardoso

    Existem momentos nos quais, quase revelia da conscincia, o pensamento social registra uma mutao. Parece que isto ocorreu no

    Brasil. De repente, depois de anos de crtica ao autoritarismo, excluso social e explorao econmica da maioria da populao, os textos dos cientistas sociais comeam a falar do "novo".

    Obviamente, a dura crtica feita ao "modelo de crescimento dependente associado", aos efeitos sociais perversos do "capitalismo selvagem", concentrao exponencial da renda enfim ordem vigente no foi descabida, nem em vo. Ela constitui um exemplo de como pde a intelectualidade brasileira buscar padres de integridade intelectual e poltica em plena vigncia de um regime autoritrio. Mas , hoje, insuficiente.

    Os textos que este livro rene so os produtos de um outro tipo de situao e de preocupao. No fundo, o que eles dizem que, a despeito de tudo, deu-se, como escrevi acima, uma mutao na sociedade e na forma de atuao dos grupos, classes e movimentos que lhe do vida. Mutao no implica juzo de valor: no se discute aqui se "antes" (de 1964) da urbanizao acelerada? da nova industrializao?) era melhor ou pior. Se o futuro ser cheio de ventura ou no. E este o encanto do livro: ele constata, aponta tendncias, reconhece transformaes e, vez por outra, desilude os

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    que pensam que toda mudana estrutural aponta para a esperana. Mas no h dvida: o pas no mais o mesmo. Da

    fenomenologia crtica das fases do autoritarismo, feita por Carlos Estevam Martins e Sebastio Cruz, anlise das mudanas dos padres de produo intelectual feita por Otvio Velho, no fica pedra sobre pedra da herana relativa anterior viso do Brasil.

    No cerne deste processo (do ngulo sociolgico, pois o livro no trata da economia) esto as grandes mudanas na estrutura social: a urbanizao e o sistema de empregos, como as descreve Vilmar Faria. E o livro reconhece o que custou mais a aceitar: a estrutura

    agrria tambm mudou. Capitalizou-se a economia; a grande unidade de produo exerce seus efeitos; a nova tecnologia afeta o modo de os homens produzirem e se relacionarem, como Sorj e Wilkinson o demonstra.

    Nada disso to novo assim, dir-se-. Por certo. E na dcada anterior o mesmo Faria, no que diz respeito s cidades, Brando Lopes e Caldeira Brant (para limitar-me a exemplos de autores prximos tradio intelectual dos escritores desta antologia) j haviam apontado as grandes transformaes estruturais.

    verdade. Eu prprio andei sempre tentado pretenso confessada melhor do que modstia encobridora de desvarios de auto-imagem a escrever um livro com o ttulo de Grande Indstria e Favela, para descrever a nova sociedade. Mas o que prprio desta antologia ser uma espcie de "Plataforma da Nova Gerao". No um autor quem sintetiza; so vrios que, sem plano adrede, martelam

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    na mesma tecla. No s a descoberta do novo: a generalizao de sua conscincia.

    Certamente, pelas revistas de cincias sociais deste Brasil afora, ou nas centenas de papers que os congressos e reunies cientficas produzem, ver-se-o as mil facetas da nova realidade. Em alguns setores, o novo rebenta com mais impacto. s vezes ele vem revestido de um referencial erudito que quase o esconde, como no trabalho de Fbio Wanderley sobre o eleitorado e os partidos. Mas s arrancar o vu do especialista para ver o ponto marcado: mesmo em pleno regime autoritrio (pasmem!) prosseguiu o processo de formao da cidadania; os partidos impostos, sem deixarem de s-lo, acabam por ter algo a ver com partidos, no sentido de permitir uma escolha, um corte poltico, do eleitorado. Tal como Bolivar Lamounier e eu prprio, em outros trabalhos (e alguns outros mais) insinuamos, ou dissemos. Conta menos a verificao relativa desinformao da massa, do que a outra: a de que, apesar disso, os partidos se constituem.

    Com menos espanto, o leitor ver que Dreifuss e Dulci

    escalpelam sem preconceitos o papel das Foras Armadas na poltica brasileira. Menos espanto porque Dreifuss j havia passado o bisturi no tumor do golpe de 1964. Expe, agora, as mazelas de uma instituio que por sua doutrina nova encalhou na poltica e dela parece no poder sair at que venha tona a discusso crucial: qual o papel razovel e legtimo das Foras Armadas num pas como o nosso? Os autores insinuam que h um movimento no pensamento

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    militar que busca consonncia com a atual fase de abertura poltica. Haver a contrapartida de um pensamento poltico capaz de devolver sentido e limite presena militar na sociedade? At que ponto a relao entre Foras Armadas e sistema produtivo, por um lado, e entre elas e a vida poltica, por outro (via SNI), coloca limites democratizao em curso? Tero os polticos e os militares capacidade e fora para redefinir tudo isso?

    bvio que nesta altura a reflexo sobre o "novo" raspa o fundo do poo. Mudou a estrutura da sociedade; mudaram as relaes entre os homens, pois tambm outro o modo de produzir. Teriam mudado suficientemente as instituies e os comportamentos coletivos?

    Os captulos escritos por Maria Hermnia Tavares e Ruth Cardoso vo direto a esta questo. O "novo sindicalismo" e os "movimentos sociais urbanos" so aqui examinados com propriedade, fazendo avanar a interpretao. Num e noutro caso reconhece-se que houve a referida mutao; mas sem iluses. Nem o novo sindicalismo quebrou a estrutura sindical herdada do Estado Novo, nem os movimentos sociais so suficientemente fortes para

    reformar o Estado e revivificar os partidos. Mas ambos criam novos atores, instauram novo discurso ideolgico e abrem novos espaos de participao. Eis a a questo. Ela , alis, dupla: o "novo" se imbrica num contexto antigo sem o revolucionar. E ao mesmo tempo se

    especifica. Explico-me: certo que os movimentos sociais urbanos brasileiros tm algo de semelhante ao grass-root movimento

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    americano. A luta pela negociao direta entre trabalhadores e patres tambm lembra a Amrica. Mas no so a mesma coisa. No apenas porque o contexto outro, mas porque cultural e politicamente estas formas de mobilizao criam dimenses distintas das que prevalecem na Amrica ou nos pases altamente industrializados da Europa. este o cerne da temtica terica do "novo Brasil". A estrutura da sociedade, a forma de movimentos sociais e os valores que norteiam a ao (todas processando-se no contexto do "desenvolvimento dependente associado") tm muito em comum com o que ocorre nas sociedades altamente industrializadas de democracia avanada. Mas no so a mesma coisa. Por qu? De pouco valeria referir apenas "herana histrica" ou aos traos restantes do passado "colonial-exportador". E nisto que os captulos deste livro inovam: eles tratam os diversos aspectos da sociedade brasileira em sua singularidade; esta no consiste apenas no recozimento de influncias culturais externas no fogo brando da tradio brasileira, nem na refrao de um raio laser convergente que homogeneiza todas as sociedades pelas virtudes da comum industrializao. Por certo, estes fenmenos existem. Mas o que conta como desafio a conceituao no plano positivo de uma estrutura nova e definitiva. Estrutura que no um "fenmeno discreto", apenas brasileiro, pois existe com fora de legalidade prpria nas outras sociedades que se esto industrializando na periferia.O desafio tentador. Nas pginas deste livro a outra grande questo (ao lado da forma da estrutura da sociedade, das classes), a

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    questo do Estado, tratada apenas indiretamente, nos captulos sobre as Foras Armadas, os sindicatos e os movimentos sociais. Mas basta para exemplificar o mesmo terna: preciso encontrar a "positividade" da perspectiva de anlise do Estado e de seu emaranhado na nova sociedade. No suficiente analisar por referncia s formas estatais antigas prevalecentes nos pases dependentes ou s formas modernas, prevalecentes nos pases altamente industrializados. Existe um blend especfico que tem de ser caracterizado em si mesmo, embora ele exista tambm como refrao.

    esta dialtica sem finalismos e sem o agente privilegiado da Histria a dar-lhe substncia que precisa ser recuperada. E nesta direo que este livro se orienta. Talvez sem o fazer completamente e sem que cada pgina dele reflita o movimento metodolgico que assinalei. Mas com fora e criatividade.

    So Paulo, 7 de fevereiro de 1983

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    De Castello a Figueiredo: uma incurso na pr-histria da "abertura"

    Sebastio C. Velasco E. Cruz1 Carlos Estevam Matins

    O sistema de poder instaurado a partir do golpe de Estado de 64 apresenta duas caractersticas aparentemente contraditrias. Por um lado, o sistema distingue-se pela durabilidade. J l se vo 18 anos de continuidade ininterrupta, no se tendo produzido, nas vrias oportunidades sucessrias, um nico caso de alternncia entre governo e oposio. O movimento poltico-militar que derrubou o presidente Joo Gou1art demonstrou possuir aquela qualidade que Maquiave1 punha acima de tudo: a capacidade de conservar o poder conquistado e ampli-lo. Por outro lado, porm, registra-se o fenmeno da mutabilidade. Longe de ter permanecido sempre idntico a si mesmo, o regime sofreu diversas transfiguraes, ora regredindo na direo do Estado de exceo, ora progredindo na direo oposta.

    So coisas diferentes, claro est, o que vem durando e o que vem mudando. O duradouro tem sido a permanncia no poder da

    1 Agradecimentos ao Social Science Research Council e Fundao Ford, que proporcionaram recursos para o projeto "Transio de Regime Autoritrio e Empresariado: Brasil, 1974-198.... Entre fevereiro e agosto, trabalhei no CESAP - rgo da S.B.I. - no desenvolvimento do referido projeto.

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    coalizao que, desde 64, assumiu o controle do Estado. O mutvel tem sido a forma assumida pelo Estado, vale dizer, o regime poltico propriamente dito. Esses dois aspectos o quem e o como longe de se antagonizarem, se comp1ementam: as mudanas (do regime) viabilizaram a conservao (do poder). Por essa razo, talvez, o discurso oposicionista corrente costuma atribuir pouca importncia s transformaes ocorridas no plano ''meramente'' institucional.

    Preferimos, no entanto, abordar a questo de um outro ngulo: sem perder de vista a existncia da continuidade, procuraremos enfatizar as descontinuidades. Admitindo que o autoritarismo possa ser tratado como uma varivel, suscetvel de assumir diferentes valores ao longo do tempo, foroso reconhecer que o regime, apesar de ter-se tornado agudamente autoritrio em diversos momentos, no s nunca chegou a atingir os graus extremos de intensidade registrados em outros pases capitalistas perifricos (Chile, Argentina) como at mesmo assumiu, em certas oportunidades, caractersticas prximas s da normalidade republicana, tal como essa expresso contemporaneamente entendida. As idas e vindas do regime foram, ademais, facilitadas pelo fato de que nunca se chegou a implantar um conjunto plenamente estruturado de instituies autoritrias, respaldado por uma ideologia inambgua, frontalmente avessa a compromissos com o credo liberal-democrtico. Por certo, tais limitaes no impediram os surtos de prticas extremamente violentas que ultrapassaram os nveis de prepotncia admitidos pelo marco institucional. Tal ocorreu todas as vezes que os agentes diretos

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    da represso conseguiam apelar com xito para a chamada "excusa da necessidade". No obstante, tambm verdade que, na ausncia de uma congruente cobertura normativa e valorativa, as prticas toleradas em situaes crticas tenderam a tornar-se exorbitantes face ao refluxo do movimento conjuntural que as engendrara. Essas e outras caractersticas do mesmo gnero foram o que levou um especialista do porte de Juan Linz concluso de que "o caso brasileiro constitui uma situao autoritria mais do que um regime autoritrio"2.

    Com efeito, de 64 aos dias de hoje passamos por sucessivos arranjos institucionais, cada qual combinando, em dosagens diferentes, elementos avulsos de autoritarismo, militarismo, corporativismo, liberalismo e democracia. O fato de que esses arranjos se sucederam, sem conseguirem se estabilizar, sugere que o nosso objeto de estudo, longe de ser uma ordem estabelecida que se reproduz a despeito das circunstncias, , antes, um processo que avana de um ponto de equilbrio instvel a outro igualmente precrio. H uma dinmica a ser captada e, para tanto, precisamos recorrer a algumas hipteses preliminares:

    1. Os momentos de intensificao do autoritarismo como, por exemplo, a edio do AI-2, em 65, ou a do AI-5, em 68, no

    2 Juan J. Linz, "The Future of an Authoritarian Situation or the Institutionalization of an Authoritarian Regime: The Case of Brasil", in Alfred Stepan (ed.) Authoritarian Brazil, New Haven e Londres, Yale University Press, 1973.

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    decorrem em linha direta do golpe de 64. Apesar de sua inegvel importncia, o movimento de maro no pode ser erigido em principal fator explicativo das ecloses autoritrias posteriores como se, no interior daquele, estas j estivessem dadas, tal qual bombas de ao retardada. Ao impor um pesado silncio sobre as mediaes que nos conduziram a sucessivas catstrofes, as anlises supostamente unificadoras soterram toda uma trama histrica complexa que, no seu tempo, alm de ter sido sofrida, foi tambm tecida pelos que participaram das lutas empreendidas nas diversas conjunturas. Torna-se necessrio, por conseguinte, recuperar as determinaes especficas e a dinmica interna desses processos parciais que redundaram em recrudescimentos do autoritarismo.

    2. O esquema maniquesta credita oposio apenas as mudanas positivas, de sentido democratizante, e a isenta de qualquer responsabilidade no que diz respeito s mudanas negativas, de sentido autocratizante. Pensamos, ao contrrio, que a oposio parte integrante do sistema poltico, no podendo a histria deste ser indiferente s concepes e aos comportamentos daquela.

    3. A tese de que as caractersticas do regime devem-se apenas ao golpe e aos golpistas de 64 tem tambm o inconveniente de obscurecer o avano de processos mais profundos de natureza estrutural. O capitalismo contemporneo, requerendo a crescente participao do Estado na produo de mais-valia e na reproduo da fora de trabalho, exige a reformulao das esferas pblica e privada, assim como a dos mecanismos, institucionais e ideolgicos, que as

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    articulam entre si. A proeminncia que em todo o mundo vem sendo adquirida pela burocracia estatal (civil e militar), pelos meios eletrnicos de comunicao de massa, pelo discurso tecnocrtico, pelos direitos sociais, pelos valores atinentes segurana do Estado, necessariamente coloca em crise os partidos polticos, o parlamento, o conceito de lei, os processos autnomos de formao da opinio pblica, as liberdades civis e os direitos polticos do cidado. Tudo isso faz parte da problemtica do capitalismo contemporneo que, no caso brasileiro, complicada pela questo do desenvolvimento na periferia do sistema mundial. Nem tudo, portanto, decorre do golpe de 64.

    Os que tentaram impedir a posse do vice-presidente Joo Goulart tiraram de seu fracasso em 61 a lio que os levou vitria em 64. Compreenderam que, para ter xito, o novo golpe a ser tentado precisava contar com uma base social de apoio que fosse a mais ampla e diferenciada possvel. Levada prtica, essa diretriz resultou na montagem de uma complexa coalizo que inclua praticamente todas as faces das classes dominantes (do rural ao urbano, do arcaico ao moderno, do nacional ao estrangeiro, do produtivo ao parasitrio) juntamente com ponderveis parcelas da pequena-burguesia, das profisses liberais e da nova classe mdia burocratizada, com suas respectivas representaes no plano poltico-partidrio. A contra face militar dessa coalizao era tambm complexa, nela agregando-se legalistas histricos (como o prprio Castello) e conspiradores incansveis (Ademar de Queirs, Silvio

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    Heck, Albuquerque Uma, Cizeno Sarmento etc.). No podia ser maior a desproporo entre as foras reunidas

    nessa coalizo e as que foram derrotadas. Quando finalmente ocorreu o confronto decisivo, os situacionistas da vspera viram-se, de repente, reduzidos a mais completa impotncia.

    A compreenso do ps-64 requer a anlise dessa coalizo vitoriosa. Para simplificar ao extremo, vamos aqui consider-la apenas em sua dimenso militar, assumindo por hiptese que os interesses scio-econmicos dela participantes so representados, de forma especfica, pelas diversas fraes ou correntes militares. Numa segunda operao simplificadora, reduziremos a variedade dos agrupamentos castrenses a apenas quatro categorias: os sorbonistas, a linha dura, os nacionalistas de direita e as chefias que se impem em nome da unidade e do princpio burocrtico constitutivo da corporao.

    As origens histricas do sorbonismo remontam Revoluo de 32, resistncia contra Vargas e o Estado Novo, aliana com os Estados Unidos na frente antifascista da Segunda Guerra. Sua contrapartida na poltica civil e na esfera ideolgica encontrava-se na cpula da UDN e nos porta-vozes do pensamento liberal. Em conjunto, essas foras se opunham ao socialismo em geral e, mais especificamente, ao movimento nacional-popular (setores do PTB, PCB, esquerda militar) e ao seu companheiro de viagem, o clientelismo, seja na verso tradicional (PSD), seja na verso populista (PSP e peleguismo petebista).

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    O sorbonismo no se confundia com o mero conservadorismo ou como mero reacionarismo. Muito mais do que isso, ele se definia como um dos grandes plos de atrao do sistema poltico brasileiro, passando a apresentar-se como alternativa real de poder especialmente depois que o governo Kubitschek consolidou seus suportes materiais ao aprofundar, tornando-se praticamente irreversvel, o modelo de desenvolvimento dependente-associado. Graas presena sorbonista, o movimento de 64 continha a possibilidade de transcender os limites de um simples golpe de Estado e de se configurar positivamente, como redirecionamento cosmopolita-modernizante que abandonaria os rumos tomados pela Revoluo de 30 para inaugurar um novo ciclo da histria brasileira.

    Credenciando-se como a fora poltico-ideolgica mais qualificada para dirigir a coalizo golpista, o sorbonismo assumiu de fato o controle do Estado em 64, integrando maciamente o governo presidido pelo marechal Castello Branco. Outras posies importantes do aparelho estatal, como o cargo de ministro do Exrcito, foram distribudas entre os representantes dos demais setores da coalizao vitoriosa. Mas o governo propriamente dito a direo poltica do Estado ficou com os sorbonistas.

    Junto com o poder, os sorbonistas tinham em suas mos um problema de difcil soluo: a composio da coalizao vitoriosa, na qual ocupavam a posio hegemnica, tinha sido adequada para viabilizar o golpe, mas mostrava-se incompatvel com o programa de governo que pretendiam executar. Interesses que precisavam ser

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    contrariados como os do latifndio e os da burguesia economicamente parasitria ou atrasada em termos tecnolgicos e organizacionais encontravam-se instalados no esquema situacionista, enquanto que outros interesses, suscetveis de participar de um pacto desenvolvimentista, encontravam-se aguerridamente entrincheirados na oposio. Assim sendo, a coalizo vitoriosa no era apenas heterognea: era tambm fortemente contraditria e, mais importante do que isso, essencialmente incapaz de unificar setores dominantes e dominados num projeto policlassista que, sendo consensual entre seus defensores e majoritrio face a seus oponentes, pudesse ser implantado conforme o ideal sorbonista, vale dizer, dentro da lei e da ordem.

    Parece absurdo falar de lei e de ordem com referncia a um governo que se instalou pela fora. Inegavelmente editou-se, com base no poder constituinte das insurreies armadas, o Ato Institucional que suspendia as garantias de inamovibilidade e estabilidade no emprego pblico (Art. 7) e outorgava ao presidente da Repblica a faculdade de revogar mandatos eleitorais e cassar direitos polticos pelo prazo de dez anos (Art. 10). Inegavelmente, houve uma grande quantidade de intervenes arbritrias em diversos setores da sociedade (especialmente nos sindicatos), cerca de sete mil pessoas foram prejudicadas com a perda de posies ou direitos adquiridos e nmero muito maior foi atingido, de uma ou outra forma, pela represso policial generalizada que se desencadeou com o golpe.

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    Todavia, tambm inegvel que a ditadura que assim se manifestava era comparativamente branda. Por um lado, no foram extraordinariamente elevadas nem em nmero, nem em custo pessoal as baixas registra das durante o perodo de expurgo. Recorde-se que a linha dura reclamava cerca de cinco mil cassaes de direitos polticos e obteve menos de quatrocentas. Por outro lado, a presena dos traos caractersticos do Estado de exceo foi notavelmente sbria.

    Para comear, decidiu-se manter a Constituio de 46, a fim de demonstrar, como dizia o intrito do Ato, "que no pretendemos radicalizar o processo revolucionrio". Enquanto instituies, a liberdade de imprensa, as associaes representativas e os partidos polticos no foram diretamente atingidos, ao passo que, quanto aos sindicatos, no houve necessidade de inovaes legislativas, dada a vigncia do estatuto corporativo no revogado pela democracia de 46. O calendrio eleitoral tampouco foi alterado. O Congresso nacional foi mantido em funcionamento, tendo em vista, como esclarece o Ato, "reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investi da a Revoluo vitoriosa".

    Alm dessas, outras restries do pleno poder merecem ser destacadas:

    1. Embora a expresso "guerra revolucionria" seja utilizada e a necessidade de "drenar o bolso comunista" seja reconhecida, o Ato no modifica a antiga lei de segurana nacional, elaborada pelo Congresso em 1953.

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    2. Havia dois artigos fortemente discricionrios: o 7 e o 10, j citados. Surpreende, no entanto, a curta durao conferida vigncia de ambos. O 7 expiraria no prazo de seis meses e o 10, que era o mais draconiano de todos, vigoraria somente durante 60 dias.

    3. O Ato foi editado sem numerao (no se cogitava de uma srie) e estaria automaticamente revogado, quanto ao resto de seus artigos, em menos de dois anos (31 de janeiro de 66), expirando juntamente com o mandato presidencial. Este, por sua vez, no era um novo mandato, mas o do presidente Jnio Quadros, a ser apenas completado por seu terceiro titular. O detentor do mandato seguinte deveria ser escolhido atravs de eleies diretas, em conformidade com as normas da Constituio de 46.

    Em praticamente todas as reas de atuao, o governo Castello Branco manteve-se fiel ao que poderamos chamar de ideal sorbonista: o de promover via integrao institucional, o modelo de civilizao realizado pelos pases centrais do sistema capitalista. Assim, tambm, na rea poltica. No entender dos sorbonistas, um regime liberal-democrtico moderno precisaria possuir, no mnimo, trs virtudes: 1) agilidade nos processos decisrios; 2) capacidade de controlar as ameaas de subverso da ordem; 3) garantir aos partidos polticos o direito efetivo de se alternarem no poder mediante livre disputa eleitoral. Evidentemente, o regime de 46 deixava a desejar em cada um desses pontos.

    Detenhamos-nos no ltimo. De 45 a 64, a UDN e seus aliados nunca tiveram a possibilidade real de competir em p de igualdade

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    com seus adversrios O PSD, o PTB e o PSP a favor dos quais o sistema poltico era estruturalmente enviesado. Para corrigir as distores que marginalizavam os udenistas e seus aliados, o governo Castello Branco empreendeu uma srie de reformas.

    Uma das mais importantes, a da administrao pblica, visava racionalizar a organizao e os mtodos de trabalho da mquina burocrtica de modo a capacit-la para o desempenho eficiente das funes que lhe correspondem no quadro do capitalismo maduro, dominado pelas grandes empresas. No plano poltico-partidrio, tal reforma tenderia a destruir as fontes de alimentao das prticas clientelistas que bloqueavam a alternncia no poder. Tratava-se de fechar as portas do tesouro e dos empregos pblicos que o Estado cartorial franqueava aos dirigentes do PSD do PSP.

    Outra grande iniciativa foi a proposta de Reforma Agrria, inspirada no conceito de imposto territorial progressivo. Tratava-se de eliminar os proprietrios incapazes de modernizar seus estabelecimentos, ao mesmo tempo em que seria gerada, por meio de apoio governamental, uma nova pequena-burguesia rural, autnoma e competitiva, a coexistir com as mdias e grandes unidades capitalistas. Atingindo os currais eleitorais do PSD, a reforma criaria bases de apoio social afinadas com o partido (sorbonista) da modernizao conservadora.

    A terceira reforma das estruturas que condicionam o comportamento eleitoral das massas populares foi a que incidiu sobre as relaes dos sindicatos com a Previdncia Social e o Ministrio do

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    Trabalho. Nesse caso, o alvo visado era o PTB. Tratava-se de lhe retirar o poder de patronage resultante da insero dos sindicatos nos aparelhos estatais. O projeto envolvia duas mudanas fundamentais. Por um lado, previa a universalizao do direito de acesso aos benefcios proporcionados pelo sistema; por outro, estipulava a completa unificao administrativa e a abolio do conceito de representao classista na gesto dos rgos assistenciais e previdencirios. Tais transformaes fariam com que essa gigantesca fonte de recursos financeiros e polticos deixasse de ser uma reserva de caa do petebismo.

    Providncias desse tipo, assim como outras que a seguir mencionaremos, testemunhavam a disposio de restabelecer um regime (reformado) de cunho liberal-democrtico. No por decorrncia de uma postura idealista. Na verdade, os sorbonistas no tinham outra escolha. Como poderiam apostar na exacerbao do poder militar se justamente a residia os seus pontos fracos, mal representados como sempre foram no seio da tropa? Seu ponto forte estava no verso da medalha: estava na sociedade civil onde predomina, como se sabe, o grande capital. Dessa vinculao provinha igualmente a extraordinria sistematicidade do programa posto em prtica pelos sorbonistas. To importante quanto isso, as transformaes em curso estavam conferindo carter estrutural e irreversvel derrota inicialmente sofrida no plano poltico pelas foras nacionalistas e populares. Introduzidas em ritmo superacelerado, as mltiplas reformas estavam sepultando o passado

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    e criando novas condies objetivas que invalidavam por completo a possibilidade de restaurao da situao deposta em 64.

    Os sorbonistas, porm, no atuavam no vazio. Pelos lados, chocavam-se com a linha dura e os nacionalistas de direita; pela frente, esbarravam com a oposio, que crescia a cada dia, na medida em que iam se dando as defeces no "campo revolucionrio"; por baixo, era indcil e instvel a base de apoio poltico-parlamentar com que contavam. Como agravante, eram as incoerncias mesmas de seu projeto que surgiam como fontes de dificuldades. Assim, no admira tenha sido to imperfeita a passagem dos planos realidade.

    Os nacionalistas de direita, ao mesmo tempo que ofereciam resistncia poltica econmico-financeira que aprofundava a experincia externa e os desequilbrios internos, davam apoio aos oficiais de linha dura, empenhados em levar adiante a represso revanchista contra a orientao legalista e reconstitucionalizante que

    o governo procurou impor, uma vez encerrada a assim chamada fase de depurao. Tendo conquistado ascendncia nas comisses de inqurito policial-militar e detendo posies no alto comando revolucionrio, as alas radicais valiam-se dessas bases de poder para desafiar a autoridade presidencial e investir contra os remanescentes da situao deposta, seja no plano federal, seja no mbito estadual, onde impunham medidas decretadas nas guas da revoluo para atender interesses facciosos da poltica local. Finalmente, deve-se pelo menos registrar um ponto crucial cuja anlise no podemos desenvolver aqui: todos esses movimentos de insubordinao

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    intramuros eram incentivados e, em certas reas civis e militares, diretamente liderados por Magalhes Pinto e Carlos Lacerda, na qualidade de candidatos inarredveis presidncia da Repblica.

    Ganhando aqui e perdendo ali, Castello Branco foi registrando pequenas vitrias na conteno dos anseios direitistas. Uma das mais importantes foi a observncia do prazo vencido a 15 de junho de 64 para a cassao de mandatos e suspenso de direitos polticos. Com o desaparecimento desse poder extinguia-se, tecnicamente, o Estado de exceo: para ressuscit-lo seria mister um novo surto revolucionrio, que outra vez suspendesse a eficcia do ordenamento jurdico. Nada menos que isso foi tentado pelas lideranas civis e por chefes militares, como o marechal Taurino de Resende, que presidia a Comisso Geral de Investigaes encarregada de coordenar os inquritos conduzidos pelos coronis da linha dura. Castello Branco resistiu. Sem dvida, assinou a ltima lista de cassaes, encabeada por Kubitschek; mas recusou-se a prorrogar a vigncia do arbtrio. Em seguida, no atendeu aos que lhe reclamavam a decretao do estado de stio. Posteriormente, rejeitou a criao de novos instrumentos para substituir os poderes cessantes outorgados pelo Artigo 7. Conforme observou na poca o jornalista Carlos Castello Branco, "a poltica de represso no atendeu aos interesses e s reivindicaes dos que a preconizavam (...) Os partidrios da linha dura so hoje pessoas frustradas e descontentes com o governo. Em cada Estado, do Rio Grande do Sul ao Acre, h queixas". Vrios governadores, com dossis ultimados pela Comisso Geral de

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    Investigaes, "foram salvos da degola pela moderao com que o presidente usou dos poderes que lhe atribuiu o Ato Institucional".3

    O enquadramento do poder militar no marco jurdico constitucional tinha sido provavelmente prematuro. Longe estavam do ponto de saciedade as frias mobilizadas para efeito de desfechar o golpe. A onda revolucionria, forada a canalizar-se quando ainda estava em plena atividade expansiva, teve de ser vrias vezes contida, sempre com grande dificuldade, durante as crises provoca das pela linha dura, cujas atividades se intensificaram a partir de outubro, to logo caducou o Artigo 7. As presses que se exerceram, de forma crescente e aparentemente orquestrada, geraram situaes crticas no Cear, no Maranho, em So Paulo e, especialmente, em Gois, onde se concentrou a resistncia de esquerda sob a liderana do governador Mauro Borges. O prprio Congresso foi colocado em posio periclitante, atingido nas pessoas do presidente do Senado e do presidente da Cmara dos Deputados. Foi contestada igualmente a autoridade do ministro da Justia (liberal de quatro costados), bem como a do Supremo Tribunal Federal, nas seguidas tentativas que visavam desvertebrar o Poder Judicirio. Em fins de novembro, com base no caso Mauro Borges, os duros reivindicaram abertamente um novo Ato Institucional para repor a Revoluo em marcha. Seu objetivo, como dizia o presidente, era o de se constiturem em "fora autnoma". No obstante, tudo foi feito mais ou menos na forma da

    3 Carlos Castello Branco, Os Militares no Poder, vol. 1. 23

    lei, inclusive a interveno federal em Gois, que se processou com o governador Mauro Borges protegido por um habeas-corpus.

    Quando comea o ms de dezembro de 64 o pior parecia j ter passado. Apesar dos arranhes, reinava a Constituio de 46 e o governo, ainda que desgastado, encontrava-se a cavaleiro da situao. Os focos de tenso remanescentes do pr-64, embora no extintos, estavam pelo menos sob controle. Para o governo, tratava-se de olhar para a frente. O grande passo seguinte, no caminho da recuperao da normalidade, seria dado se a sociedade civil, organizada nos diversos partidos polticos, conseguisse atravessar as eleies de outubro de 65 sem se chocar contra a resistncia das foras radicais.

    Tal, entretanto, no se deu. Apesar das providncias legais adotadas a fim de afastar do pleito candidatos tidos como "no assimilveis" (Sebastio Paes de Almeida, em MG; Hlio de Almeida e Lott, na GB), foi enorme a reao provocada nos crculos militares pelos resultados eleitorais, que davam oposio a vitria em 5 dos 11 estados, entre os quais os dois mais importantes Minas e Guanabara.

    Instigada alm dos limites, a direita fortaleceu-se a ponto de impor a edio do Ato Institucional n 2. S ento, e no antes, o regime mudou no sentido do autoritarismo recrudescido. A ditadura, que parecia caminhar para o recesso, estava de volta mais forte do que antes. A ressurreio inclua o retomo dos poderes para cassar mandatos e suspender direitos polticos, a extenso do foro militar aos civis, a limitao da livre manifestao do pensamento, a

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    suspenso das garantias de vitaliciedade e inamovibilidade, a extino dos partidos polticos, a outorga da faculdade de decretar interveno nos estados, de baixar decretos-leis em matria de segurana nacional e de declarar em recesso as casas legislativas. Ficavam assim anuladas no s as conquistas eleitorais realizadas pela oposio como as pretenses polticas do grupo sorbonista.

    Com efeito, o presidente Castello Branco passaria a jogar, da para diante, na defensiva. Tendo perdido toda e qualquer condio de comandar o processo de sua prpria sucesso, uma vez que, atuando na crise como mediador entre os radicais e os sorbonistas, o ministro do Exrcito, Costa e Silva, havia se tomado um candidato inarredvel, s restava a Castello Branco a possibilidade de influir na margem, introduzindo medidas restritivas ou acauteladoras. J no bojo da crise de outubro havia tentado reduzir o alcance do novo Ato, contrapondo um projeto alternativo, menos drstico, de simples reforma constitucional e procurando obter sua aprovao pelo Congresso, a fim de evitar que fosse outra vez invocado o poder constituinte da Revoluo. Essas manobras no tiveram xito, inclusive porque o Congresso se recusou a colaborar. Em compensao prevaleceu, como dado crucial para a anlise da evoluo do regime, a tese da vigncia limitada: o novo Ato expiraria a 15 de maro de 67, juntamente com a posse do prximo presidente.

    Castello Branco valeu-se do tempo que lhe restava frente do governo para elaborar uma nova Constituio, cujos dispositivos, supostamente mais ajustados aos requisitos do Estado

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    contemporneo, evitariam os impasses atribudos Carta de 46. Confirmando a mudana ocorrida na correlao de foras (derrota da esquerda, recuo do centro e ascenso da direita), foram elaboradas durante esse perodo a nova Lei de Imprensa e o Decreto-Lei 314, promulgado em maro de 67 e conhecido como Lei de Segurana Nacional. Este ltimo diploma, sem dvida um monstrengo do ponto de vista jurdico, foi justificado em funo da crescente obsolescncia da Lei 1802, de 53, que at ento regulava a matria sem ter incorporado a posterior evoluo do pensamento militar, cada vez mais voltado para as questes relativas subverso da ordem interna e a necessidade de dotar o Estado de instrumentos eficazes de autodefesa.

    A considerao do perodo Castello Branco crucial para a anlise do regime autoritrio no Brasil, no s porque nele esto postos quase todos os elementos que, exacerbados em seu grau mximo nos anos seguintes, conformariam a conjuntura que veio a desaguar na crise de 68 e na edio do AI-5, mas tambm porque nele j est claramente colocado o dilema que perpassa toda a histria desse regime, at os nossos dias de cinzenta abertura. Com efeito, se o relato extremamente sucinto que fizemos at aqui pe em tela o conflito entre castelistas e duros e sua permanente disputa pela definio do rumo a ser imprimido ao processo poltico, muitas perguntas ficariam no ar se no incorporssemos na anlise pelo menos dois outros aspectos: o papel desempenhado nessa conjuntura pelas oposies e as contradies que habitavam o projeto sorbonista.

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    No que tange oposio e aqui podemos nos referir a ela em seu conjunto, desprezando os seus muitos e profundos contrastes o ponto a destacar a sua quase total incompreenso com respeito natureza da ruptura verificada com o movimento de 64. Apesar das evidncias em contrrio que se somavam, ela continuava a mapear a realidade nos termos da situao antiga, encarando a interveno militar de abril como um episdio de curta durao, anlogo a outros vividos no passado, dos quais se distinguiria basicamente pelos seus excessos e pelo tamanho de sua incontida pretenso. Incapaz de reconhecer o carter geral, estratgico, da mudana ocorrida, ela persiste em praticar o padro tradicional de poltica, recorrendo aos mesmos expedientes, fixando-se em objetivos formulados no perodo anterior e que, cada dia mais, se revelavam fantasiosos. No outra a razo do comportamento desafiador, provocativo mesmo, dessa oposio, trao que vamos observar inclusive em grupamentos que se notabilizaram na histria brasileira pela acentuada prudncia e permanente disposio ao entendimento e s frmulas de compromisso. Essa a postura que se reflete, por exemplo, num

    lance como o do retorno de Juscelino ao Brasil e na recepo que lhe fazem. "O Sr. Juscelino regressou de Paris, na ocasio em que se faziam as primeiras apuraes da eleio e resolveu desfilar, seguido dos seus correligionrios, em cortejo motorizado, pelas ruas do Rio de Janeiro, fato considerado afrontoso Revoluo, que levou a aumentar a irritao no meio militar." Quem narra o episdio um "duro", o general Jayme Portella; ele prossegue: "O Coronel

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    Ferdinando de Carvalho, encarregado de um inqurito policial militar para apurar atividades subversivas... convocou o Sr. Juscelino para ser ouvido. A convocao do SI. Juscelino causou um rebolio em reas polticas, em geral, pois achavam desconsiderao ser ele ouvido em inqurito".4 E, no entanto, no quadro de uma crise militar grave, contestados como vinham sendo os resultados do pleito, um desfecho como esse no era de todo imprevisvel.

    Aos olhos da oposio, o governo militar afigurava-se como uma ditadura pura e simples, cujo apoio inicial fora rapidamente maltratado. Durante os primeiros tempos aps o 1 de abril, ... as vtimas eram confinadas, seno materialmente, sem dvida moralmente. Os cidados comuns as temiam como vtimas obscuramente culpadas das trs iras dos deuses, e delas se afastavam por prudncia. Mas hoje espantosa a transformao. Todos as procuram movidos por um generoso e por vezes inarticulado sentimento de reparao. Nesse movimento de aproximao aos cassados, s vtimas da ditadura militar... est a prova de que a ditadura j uma sobrevivncia no tempo. (grifos nossos) O povo brasileiro em sua imensa maioria j lhe retirou qualquer apoio... Agora a ditadura que se vai confinando de mais a mais, num crescente isolamento do povo representado por todas suas camadas.5

    4 Jayme Portella de Mello, A Revoluo e o Governo Costa e Silva, Rio de Janeiro, Guavira Editores, 1979, p. 277. 5 Mrio Pedrosa, "O Processo da Redemocratizao", Correio da Manh, 25.9.1966.

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    Carente de bases, corroda por dissenses internas a anlise no augurava ditadura um futuro auspicioso.

    O equvoco da oposio no poderia ser mais drstico. Ressalve-se, entretanto, esse fato: a incompreenso demonstrada ante a nova realidade emanada do golpe no era apangio dos derrotados. Tambm no campo de l, entre os que "fizeram a Revoluo" e/ou aplaudiram a sua vitria, o grau de percepo sobre o que se passava, em muitos casos, no foi mais apurado. Aqui tambm vamos constatar comportamentos informados por uma viso que atribua ao movimento de 64 carter e objetivos muito limitados. Observemos um homem como Lacerda, agarrando-se com unhas e dentes quimera de uma candidatura presidencial que, desde os primeiros dias aps o golpe, sentia escapar entre os dedos de sua mo. Atentemos para os seus movimentos, a intensidade, o tom desabrido de sua crtica, primeiro voltada contra figuras de ministros, depois contra o prprio Castello. Esse tipo de cena ele j havia montado inmeras vezes ao longo de sua carreira poltica, com inegvel sucesso. Entretanto, os tempos haviam mudado. Pensemos em outro tipo de gente, aqueles liberais puros que, em diferentes momentos, recusaram-se a transigir buscando manter-se fiis ao que pregavam. Num Milton Campos, abandonando a pasta da Justia dias depois das eleies de outubro de 65, ao pressentir quais seriam os prximos passos. Em Adauto Cardoso, rejeitando "o Poder Constituinte, inerente a todas revolues" e tentando em ao desesperada fazer julgar, luz dos princpios constitucionais, decises do poder

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    militar.6 Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas no mudariam a lio. Para todos esses, a cada ato de afirmao da nova ordem, mais ela parecia distanciar-se de seus "legtimos propsitos".

    Os homens fazem a histria, mas no sabem com exatido que histria fazem. O sorbonismo, tampouco, logra escapar ao crculo de giz desse lugar-comum filosfico. Escolhido, depois de venci das as resistncias de Costa e Silva, para ocupar a presidncia da Repblica, numa autntica "deciso revolucionria" a ser posteriomente referendada pelo Congresso, Castello Branco comporta-se como candidato e, nessa qualidade, encontra-se secretamente com Juscelino e a cpula do PSD que, em troca das garantias obtidas, emprestam-lhe o apoio solicitado.7 O PSD cumpriu a sua parte no acordo, e at a primeira semana de junho comps, com a UDN e partidos menores, o bloco parlamentar, de 250 deputados, que se formara para dar apoio ao novo governo. O decreto de 8 de junho, cassando o mandato e os direitos polticos de Juscelino, vai determinar o esfacelamento desse bloco, tornando precria a base de sustentao de Castello no Congresso. Mas no apenas isso: tendo como pano de fundo o compromisso antes aludido, esse ato ser vivido como uma traio e contribuir fortemente para exasperar o nimo da oposio.

    Informaes sobre o episdio da cassao de Juscelino so

    6 Como presidente da Cmara dos Deputados, Adauto Lcio Cardoso decide submeter ao plenrio a constitucionalidade das cassaes de mandatos polticos realizados em outubro de 66, da resultando o fechamento temporrio do Congresso e sua posterior renncia quele cargo. 7 Jayme Portella, op. cit., pp.203 e segs.

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    disponveis. Sabemos que Castello e a sua assessoria poltica no a desejavam. Sabemos, ademais, que Castello, pessoalmente, resistiu at o ltimo momento, cedendo apenas ante a presso incisiva de seu ministro da Guerra. No entanto, no este o aspecto que desejamos enfatizar. Mais importante, de nosso ponto de vista, a ambigidade que o seu comportamento denota o seu gesto de "candidato" (quando se tratava j de "delegado da revoluo") e a sua atitude de "chefe revolucionrio" (quando procurava vestir a fantasia de presidente constitucional).

    Essa duplicidade, vamos constat-la em todos os posicionamentos de Castello e em toda a sua obra. Lder de um movimento que galvanizou amplas parcelas da opinio pblica em nome da ordem e da defesa da democracia ameaada, ele sofreu, por assim dizer, as conseqncias da facilidade surpreendente da vitria. Senhores da situao a uma simples movimentao de tropas, os militares no Brasil assumem o poder atados, pelos apoios com que contavam e por sua prpria retrica, s instituies e s prticas da velha ordem. sob essa luz que adquire sentido a deciso de fazer eleger o novo presidente pelo Congresso. nessa perspectiva, tambm, que se compreende o carter limitado do Ato Institucional de 9 de abril de 64, cabendo sublinhar este fato: esse diploma promulgado antes da posse de Castello, pelos ministros militares que compunham ento um auto-intitulado Comando Supremo Revolucionrio. Apenas desse ngulo torna-se inteligvel a escolha de Castello para um mandato tampo de menos de dois anos e o

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    compromisso de substitu-lo atravs de eleies diretas. A essa altura, os "objetivos da revoluo" parecem tpicos e de consecuo fcil: "Fixaram a vigncia daquele diploma (o Ato Institucional) at 31 de janeiro de 1966, quando seria empossado o futuro Presidente da Repblica, pois julgavam que um perodo de um ano e dez meses seria o bastante para colocar o Pas nos eixos e entreg-lo a um novo Presidente".8

    Muito cedo, porm, comeam a surgir indcios de que tal avaliao teria sido revisada. Assim, j em abril de 64 Lacerda ouvia de um prcer da UDN a sugesto de que deveria abdicar de sua candidatura e, recusando-a, com toda razo atalhava: "Ora, se comeamos por abrir mo da candidatura da UDN, provavelmente a de Juscelino no vai existir, ento no haver candidato; ento no haver eleies".9 Em junho, como sabemos, Juscelino cassado. Pouco depois, no dia 22 de julho, a Emenda Constitucional n 9, que estabeleceu o adiamento das eleies com a prorrogao dos mandatos, era mais uma evidncia que se somava. A essa altura, com as principais lideranas da oposio alijadas e Lacerda em processo de ruptura com o governo Castello, as eleies presidenciais j se haviam transformado em uma miragem.

    A verso oficial desse episdio retrata um Castello reticente,

    8 Idem, ibidem, p. 196. 9 Carlos Lacerda, Depoimento, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, p.304. Olyrnpio Editora, 1975, pp. 85 e segs.; Daniel Krieger, Delde aI Minel, Rio de Janeiro, Livraria Jos Olyrnpio Editora, 1975, pp. 179 e segs.

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    aceitando a contragosto a prorrogao de seu mandato, rendendo-se apenas ao argumento final de que a deciso seria do Congresso.10 O prprio Castello, na poca, fez questo de externar publicamente a sua opinio:"As pessoas que me falaram sobre o assunto, sempre respeitaram o meu ponto de vista contrrio proposio do Senador Joo Agripino. Apesar da minha repetida rejeio ideia, muitos polticos trabalharam para a sua consecuo, formando-se mesmo uma corrente favorvel e pondervel no meio revolucionrio e poltico. Agora uma situao de fato. Pessoal e politicamente preferiria terminar o meu mandato a 31 de janeiro de 1966" .11

    No temos razo alguma para duvidar da sinceridade dessas palavras. Mas..., no deixa de ser curioso. No plano poltico o governo Castello aparece como um suceder de derrotas. No queria a cassao de Juscelino, mas foi obrigado a realiz-la; opunha-se prorrogao de seu mandato, mas acabou por aceit-la; convocou as eleies de outubro de 65 contra as resistncias da oficialidade "dura", mas, logo a seguir, editou o AI-2 para apazigu-la; queria um nome identificado com o seu iderio para substitu-lo na Presidncia, mas assistiu impotente ao crescimento da candidatura contrastante de seu ministro da Guerra. Os fatos so indiscutveis, mas isso no nos impede de consider-los mais detidamente, buscando apreender a sua lgica. O que Castello no conseguiu, j sabemos. Talvez conviesse

    10 Lus Viana Filho, O Governo Castello Branco, Rio de Janeiro, Livraria Jos. 11Nota divulgada no dia 24.6.64, apud Jayrne Portella, pp. 226-227.

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    atentar um pouco para os seus sucessos que no foram poucos

    nem menores e indagar, finalmente, das relaes que porventura possam existir entre o que ele fez e no fez, entre xitos e fracassos.

    Essa interrogao em si mesma iluminadora. Porque, ao contrapor as frentes principais em que se desdobrou o governo Castello, ela faz ressaltar com toda nitidez a discrepncia entre a moderao dos objetivos num plano a frente poltica e a enormidade da ambio que o inspirava nei outro o campo das reformas econmico-sociais. Como dissemos no incio deste artigo, o sorbonismo ascende ao poder munido de um amplo programa de reformas destinadas a remover os obstculos expanso do capitalismo no pas e a viabilizar a plena configurao do modelo de desenvolvimento esboado na segunda metade da dcada passada. Desde o final dos anos 50, a tarefa de elaborar esse "macroprograma de governo" foi desincumbida por agncias privadas, que reuniam tcnicos e empresrios e operavam em estreita conexo com a ESG. Para o sorbonismo, o movimento de 64 tinha, no fundamental, esse sentido: permitir a implantao desse conjunto de reformas que no podiam mais ser adiadas. Essa, talvez, a principal diferena que singularizava o sorbonismo enquanto "partido militar", distinguindo-o radicalmente dos demais grupos envolvidos na intensa atividade conspiratria que precedeu o golpe. Neste sentido, revelador o comentrio do general Portella: "... a visita do General Sarmento serviu para a constatao de um fato curioso, que tambm ao Dr. Marcondes Perraz causou estranheza. Enquanto no QG do General

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    Costa e Silva, dadas as circunstncias, atuava o Comandante por intermdio de oficiais de ligao e atravs de telefones, dando ordens e recebendo informaes, o QG do General Castello um apartamento residencial como o outro funcionava como um escritrio, em atividade que intrigou os dois visitantes e somente veio a ser esclareci da dias depois. Vrios datilgrafos trabalhavam febrilmente, com os dedos metralhando incessantemente as mquinas e a ateno concentrada em sua tarefa ... Soube-se depois que, j naquela noite, os assessores do General Castello preparavam um plano de emergncia para o Governo, esperando fazer dele o sucessor de Joo Goulart".12

    Castello assume a Presidncia em abril de 1964 para cumprir um mandato-tampo de um ano e dez meses,; no entanto, ele planeja para uma dcada. A contradio entre a exigidade de tempo e as propores do projeto. Este, o primeiro dado afixar.

    Mas no s isso. O contedo de suas polticas social, econmica, exterior no indiferente anlise. Com efeito, ao comprometer-se, antes de tudo, com a sua implementao, ao recusar-se obstinadamente a negoci-las, ao dedicar todo o seu esforo a "isolar" poltica e economia esta devendo ficar a cargo dos detentores do saber, da cincia, dos tecnocratas Castello no apenas violentou os derrotados, mas, alm disso, chocou-se com a sua prpria base, alienou apoios com que inicialmente contava. No

    12 Idem, ibidem, p. 137. 35

    por acaso que o alvo de Lacerda em suas primeiras frices com o governo foi exatamente a poltica econmica. Idem Magalhes Pinto e tantos outros. E se olhamos para a poltica exterior? Quais as condies internas necessrias para a sustentao da poltica de alinhamento automtico com os Estados Unidos, para envio de soldados brasileiros a uma repblica distante cujos anseios de libertao o pas grande do norte decidira sufocar?

    Por uma e outra razes a discrepncia entre a limitao do tempo e a amplitude do programa, de um lado, e, de outro, a orientao mesma de suas diretrizes o governo Castello foi exercido mediante o uso farto e generoso dos mecanismos que a exceo lhe facultava. Legislar por decretos em ritmo frentico. Depoimento, em verso livre, de um participante: "Reunamos num pequeno prdio aqui no centro onde funcionava o EPEA.13 ramos 15 ou 20, coordenados por Campos que sempre presidia as sesses. Discutamos horas seguidas a respeito dos mais variados temas. Depois, o Bulhes Pedreira, que no era economista, mas um homem de percepo extremamente aguda e uma memria fabulosa, o Bulhes Pedreira sentava-se mquina e dava forma jurdica ao que havia sido decidido como pontos consensuais.14 Nos dias seguintes, estava l o documento nas primeiras pginas do jornal.

    Em momentos vrios Castello foi obrigado a ceder ante a

    13 Antiga denominao do atual IPEA - Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas. 14 Entrevista a um dos autores.

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    presso da linha dura. Na anlise corrente, essas so apresentadas como efemrides de uma histria especfica, como episdio das dissenses militares. "Recuou porque no tinha fora na tropa ... ". Acreditamos poder avanar um pouco alm dessa observao banal. Quando se mobilizavam, quando exigiam, quando externavam indignao, os militares duros apelavam legitimidade revolucionria. Repugnava-lhes a ideia de que conciliao, a barganha, o respeito reverente s leis "as mesmas que se demonstraram ineptas para barrar o avano da subverso entre ns" que o compromisso com os restos do passado pudesse deter ou mesmo frear a marcha da "Revoluo". Fizemos mal quando cobrimos de ridculo essa retrica desvairada. Uma vez, pelo menos, leiamos com seriedade o diploma fundador em que ela se calcava o prembulo do Ato Institucional. O que ele reza?

    "A Revoluo vitoriosa se investe no exerccio do Poder Constituinte"; "a Revoluo vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma"; "Ela edita normas jurdicas, sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior sua vitria". "Os chefes da Revoluo vitoriosa ... representam o Povo e em seu nome exercem o

    Poder Constituinte, de que o Povo o nico titular." "Fica bem claro que a Revoluo no procura legitimar-se atravs do Congresso. Este que recebe deste Ato Institucional ... a sua legitimao." Nos quadros dessa formulao doutrinria, que postula uma relao expressiva e direta entre os chefes da Revoluo detentores de um poder incontrastvel e o povo entidade abstrata em que se

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    fundamenta a sua legitimidade a deciso de preservar em suas linhas gerais a Constituio de 46 e de manter em funcionamento o Congresso estabelece um compromisso extremamente frgil, cuja condio de vigncia a perfeita ductilidade das instituies do Estado (o Legislativo, o Judicirio) aos ditames da vontade revolu-cionria.

    em nome desses princpios que os jovens oficiais de linha dura repetidas vezes fazem ouvir a sua voz. Mas este o ponto fundamental neles tambm que se baseia o governo Castello. No apenas pela sua origem, mas pela absoluta necessidade de recurso a eles para levar a cabo as suas metas programticas. Presidente e revolucionrio, forado permanentemente a assumir este ltimo papel para vencer as resistncias que a implementao das polticas de seu governo suscitava, ante as investidas da direita os seus flancos estavam quase sempre abertos.

    Tudo isso fica mais evidente ainda quando pensamos em que condies poderia dar-se o confronto do sorbonismo com a linha dura militar e qual seria o seu significado. Nesse caso, a "inabalvel coeso das foras armadas" teria sido rompida, admitamos, para efeito de raciocnio, com a vitria de Castello. Mas no seria o mesmo Castello. A prpria Revoluo, em virtude desse fato, teria passado histria.

    Em julho de 64, como em outubro do ano seguinte e em 66, no episdio da sucesso, a correlao no seio das Foras Armadas desfavorecia o sorbonismo. Mas este no um fato militar mas

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    poltico. Em outras palavras, Castello perdeu politicamente algumas batalhas. Quando olhamos em conjunto o seu governo, quando fazemos o balano global de sua obra, a convico se afirma: perdeu as batalhas necessrias para vencer a guerra.

    Com a posse de Costa e Silva no se inicia apenas o mandato de um novo presidente. Naquele momento terminava um segundo ciclo de expanso autoritria, marcado pela seqela de expurgos, perseguies e arbitrariedades. Em contraste com esse quadro, inaugurava-se em 15 de maro de 67 um novo perodo constitucional em que as liberdades pblicas, as instituies representativas e a autoridade da magistratura ainda que gravemente restringidas e ameaadas pela legislao antes mencionada tinham sido restabelecidas.

    Juntamente com a transformao do regime, mudara tambm a estrutura da coalizo dominante. Com a reviravolta de outubro de 65, o sorbonismo entrara em processo de retrao para ser finalmente marginalizado pela linha burocrtica, pelos duros e, especialmente, pelos nacionalistas de direita que conquistaram posies de influncia junto aos centros governamentais de deciso. Embora os sorbonistas no tivessem sido expelidos na coalizo, a modificao do regime deu lugar reordenao do bloco no poder, viabilizando a permanncia da mesma coalizo, embora com o novo perfil que dava salincia aos adversrios da Sorbonne.

    Para explicar o que iria se passar no transcurso do governo Costa e Silva tem sido invocado o descontentamento popular, das

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    classes mdias, de setores do empresariado e dos demais interesses contrariados, seja pela opresso autoritria, seja pelas condies econmicas. Esquecendo que tais insatisfaes estavam presentes e eram to ou mais sentidas na conjuntura anterior, esse tipo de explicao no leva em conta justamente as duas mudanas de capital importncia que acabamos de assinalar: a reconstitucionalizao do Estado e a substituio do "partido" no poder, com a conseqente redefinio do contedo das polticas governamentais.

    Em termos de regime, o perodo que ento comeava caracteri-zava-se por aquilo que hoje se chama de abertura poltica. Ao mesmo tempo, o slogan da humanizao coloria as diretrizes da ao governamental. Estavam de volta, no mbito da poltica interna, o desenvolvimentismo e as metas de integrao nacional e promoo social, enquanto que, na poltica externa, retomava-se o fio do nacionalismo terceiro-mundista. Para explicar o que iria se passar preciso levar em conta alm das frustraes continuadas as esperanas despertadas e a autoconfiana ressurgida.

    Da vinha o nimo que organiza a Frente Ampla. Em seu

    programa, a Frente reclamava, entre outros objetivos a serem perseguidos, a retomada do desenvolvimento econmico, a preservao da soberania nacional e a restaurao do poder civil. Trs dias aps a posse do novo presidente, Lacerda reconhecia que as diretrizes traadas pelos ministros do Planejamento e do Interior eram de fato as mais apropriadas para o pas. Logo depois, Kubitschek diria outro tanto. Tendo voltado ao Brasil na leva de exilados que

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    regressavam sob as garantias dadas pelo prprio presidente da Repblica, Kubitschek no escondia sua confiana no restabelecimento das liberdades democrticas, nem sua simpatia pela poltica externa anunciada pelo governo. Antes que o ms de maro chega-se! ao fim, a ala esquerda do MDB abandona a ideia de criar uma Frente Popular e comea a negociar sua adeso Frente liderada por Lacerda: a tese de no combater o governo Costa e Silva figurava entre os pontos em tomo dos quais havia acordo. No comeo, portanto, predominava a paz.

    A trgua s seria rompida mais adiante, em fins de agosto. Lacerda, que mobilizara a direita para impor a sua candidatura contra a vontade de Castello Branco, iria agora mobilizar a esquerda para disputar com a direita a sucesso de Costa e Silva. Em passos rpidos, as posies foram se radicalizando. Por parte da Frente, a tendncia contestatria se manifestaria no pacto de Montevidu (incorporao de Goulart e dos petebistas setembro), na aproximao com Jnio Quadros e Leonel Brizola, nas posies assumidas pelos chamados parlamentares ideolgicos, que desistiram da luta dentro do MDB para se engajar nas atividades da Frente. Por parte das foras situacionistas vo crescendo os protestos da direita. Dentro em pouco a Frente seria classificada de "movimento destinado a reconstituir a situao anterior revoluo de 64", nas palavras do ministro Albuquerque Lima.

    Alguns pontos merecem ser destacados. 'Em primeiro lugar, deve-se ressaltar a relativa liberdade com que se desdobra, por mais

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    de um ano, a articulao frentista. A Portaria que acaba proibindo suas atividades de abril de 68, o que significa que s foi baixada depois que as presses exercidas pela Frente se conjugaram com a irrupo do movimento estudantil. Em segundo lugar, no se pode esquecer que a Frente consistia na busca de uma alternativa poltica construda por fora da ordem legal e do quadro constitucional vigentes: por um lado, ela ignora a proscrio das lideranas afastadas pela revoluo; por outro, ela ultrapassa as instituies representativas, dando as costas para o Congresso e, especialmente, para o MDB, vale dizer, para a organizao poltica constituda como partido da oposio (pejorativamente qualificado de "oposio consentida"). Finalmente, o comportamento do MDB introduzia um fator sutil na marcha do processo histrico: tal como acontecera antes e iria se repetir depois, as foras oposicionistas mais agressivas avanaram sem arrastar consigo o resto da oposio; ao mesmo tempo, porm e aqui est a sutileza contaram com a sua simpatia ou, pelo menos, com a sua complacncia. Embora os emedebistas temessem a reao militar que as atividades da Frente poderiam suscitar, a opo oficial do partido (21 de setembro) foi a de no se indispor com os parlamentares frentistas e com as parcelas radicalizadas da opinio pblica.

    A existncia e o desenvolvimento da Frente contriburam para aguar a combatividade do movimento estudantil que j optara, com a campanha do voto nulo em 66, pelos mtodos no-convencionais de luta poltica. Mas a fagulha que ateou fogo floresta ressequida

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    por tantos anos de excluso foi a morte do estudante Edson Lus, em 28 de maro de 68, no Rio de Janeiro, num choque entre a Polcia Militar e estudantes que simplesmente reivindicavam a melhoria de um restaurante. A partir da deflagra-se a crise que ir culminar com a edio do AI-5, em 13 de dezembro.

    No possvel relatar em poucas palavras a variedade, a quantidade e a intensidade das lutas travadas durante aqueles nove meses nos principais centros urbanos do pas. Os estudantes (universitrios e secundaristas) constituram sem dvida a vanguarda do movimento de contestao que se manifestou na forma de greves (localizadas e nacionais), comcios (organizados ou relmpagos), passeatas (isoladas ou apoiadas pela populao), choques violentos com as foras repressivas (em conflitos de rua ou invases de escolas). A simpatia da populao, o apoio da Igreja, da intelectualidade e do MDB, a influncia da rebelio de maio na Frana, a revolta gerada pela truculncia das aes policiais, tudo contribua para que a agitao estudantil batesse s portas do mundo do trabalho. Em 22 de abril eclodiria em Minas a primeira greve operria de grande vulto desde 64, com a paralisao de cerca de sete mil trabalhadores. Em meados de julho, seria a vez de So Paulo parar, com a famosa greve de Osasco. Em setembro, houve novas ameaas de greve em Minas, seguidas de outras, no Rio, por parte dos bancrios. No mesmo ms de setembro, os ministros militares representam junto ao presidente da Repblica contra os discursos pronunciados pelo deputado Mrcio Moreira Alves, considerados

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    ofensivos honra das Foras Armadas. Antes e depois, sucederam-se as manifestaes de temor por parte das lideranas empresariais, assim como os estados de prontido da tropa e as reunies de emergncia do Alto Comando e do Conselho de Segurana Nacional. Em novembro, o arcebispo de Olinda, D. Helder Cmara, lana no Nordeste o movimento "Ao, Justia e Paz", organizado para lutar contra as estruturas arcaicas entre as quais se incluam a educacional e a trabalhista (que estavam na ordem do dia) e se acrescentava, como novidade, a agrria. Bombas de verdade, mas isoladas e esparsas, j haviam explodido em vrios pontos do pas. Agora, porm, no dia 10 de novembro, a imprensa noticiava que o dissidente comunista, Carlos Marighela, tinha sido apontado como chefe do grupo responsvel por vrios assaltos a bancos. Um ms depois a Cmara dos Deputados montava uma Comisso Parlamentar de Inqurito para investigar atos terroristas em todo o pas.

    Nesse clima que se chegou etapa final do caso Marcio Moreira Alves. Em novembro nove representantes da Arena tiveram de ser substitudos a fim de que a autorizao para processar o deputado pudesse passar na Comisso de Justia. A rebeldia instalara-se tambm no Congresso e no partido do governo. A 13 de dezembro o Executivo foi derrotado em plenrio pela diferena de 75 votos. No fim do dia estava suspensa a Constituio de 67 e editado o AI-5.

    Abria-se, assim, a nova conjuntura que seria presidida pela luta armada. A guerrilha, no entanto, no fora descoberta no ano de 69.

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    Desde o princpio da dcada de 60 a ideia de reproduzir a Revoluo Cubana havia conquistado adeptos por toda a Amrica Latina. Uma vez instalada, porm, ela seguiria em cada pas um trajeto prprio, condicionado pelos processos polticos nacionais (na Venezuela, a guerrilha eclodiria quase que de imediato; na Argentina, seria um fenmeno dos anos 70). Assim sendo, a chave para entender o momentneo xito da proposta de luta armada no Brasil no deve ser buscada nos seus mritos prprios que eram parcos, alis mas na crise do movimento progressita derrotado em 64.

    De fato, o golpe determinou a dbcle das direes polticas tradicionais (do PCB e do PTB), cuja ascendncia sobre o movimento de massas e as organizaes da sociedade civil entrou em franco declnio ao mesmo tempo que a crtica ao populismo se difundia e se enraizava. Denunciava-se no tanto a ocorrncia do golpe, mas a desmoralizante ausncia de resistncia, o grau extremo de fragilidade a que se haviam condenado as foras que se julgavam a um passo da conquista definitiva do poder e que, no entanto, foram colhidas de surpresa por um golpe, alm de tudo perfeitamente previsvel, capaz de em poucas horas jogar por terra o decantado "dispositivo militar" de Jango e a grande aliana progressista que exclua apenas a pequena minoria formada por latifundirios e testas-de-ferro do imperialismo. A fortaleza rura ao primeiro sopro porque fora construda sobre iluses de classe.

    Seja como for, as lideranas tradicionais perderam o p. Sem mrtires sem heris, sem vnculos orgnicos com a sociedade, no

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    tinham meios sequer de se fazerem ouvidos. A descontinuidade se imps. A crtica assumiu o lugar da autocrtica e passou a comandar o debate, retirando de seu repertrio os critrios a partir dos quais distribuiu as responsabilidades pela derrota, formulou as denncias (contra o reformismo, contra o reboquismo, contra o cupulismo) e apontou os novos objetivos e mtodos a serem adotados.

    E um equvoco supor que a luta armada foi suscitada pelo AI-5, como simples reao a uma ao. Bem antes do AI-5, a repulsa frontal ordem de coisas vigente j tinha se difundido nos crculos oposicionistas de esquerda. Quanto mais a passagem dos anos foi patenteando a persistncia da interveno militar, tanto mais a ideia de contestao se tornava a nica a fazer sentido. A memria oposicionista recordava apenas os picos autoritrios da histria recente, enquanto que, por sua vez, a direita ressaltava a continuidade da Revoluo "que no era, mas e ser". O quadro resultante sublinhava a permanncia no poder de uma coalizo reacionria, simbolizada pelo governo militar que, tendo entrado e ficado pela fora, s sairia pela fora, independentemente do regime. Tal representao s desmoronaria a posteriori, mediante a prova da formidvel desproporo existente entre as foras confrontadas.

    At l e especialmente a partir de 67, quando a crise da sucesso e a posse de um novo general confirmam a imagem da usurpao que se auto-eterniza a ideia de contestao tende a se tornar a principal fonte de sentido, de esperana e de mobilizao. De fato, era dela que provinha o tipo de repdio que se manifestava nas

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    artes, nos palcos e nos festivais, assim como a extravasante

    insubordinao que aparecia nas ruas, nas escolas e nas greves. A ideia revolucionria estava presente em quase todas as lutas e, acima de tudo, impulsionava a atuao do movimento estudantil como destacamento avanado do protesto das classes mdias. As escara-muas com a polcia no se limitavam em si mesmas: significavam

    um preldio, um primeiro exerccio da violncia justa que, j contando com as bnos da Igreja e os auspcios da intelectualidade, haveria de comover a classe operria e derrotaria, em breve, a violncia injusta. Esse era o mote glosado nas assemblias estudantis e nos congressos da UNE. Essa era a novidade que dava o tom e o ritmo caracterstico dos comcios da poca: "Eles podem fazer 1, 2, 3, 4 Congressos de araque; podem botar 1, 2, 3, 4 governadores fantoches; podem criar 1, 2, 3, 4 Exrcitos de esbirros. Ns vamos derrubar 1, 2, 3, 4 Congressos de araque; vamos derrubar 1, 2, 3,4" e assim por diante. A redundncia afirmava a disposio de lutar at o fim, demolindo o que aparecesse, fosse o que fosse. Mais do que isso, cuidava-se evidentemente de canalizar o caudal de protesto para as organizaes que se lanariam mais adiante ao confronto militar.

    De fato, a perspectiva de luta armada era um elemento integrante dos movimentos de massa daquele perodo. Era de conhecimento geral que as vanguardas j haviam feito sua opo. Num manifesto curiosamente publicado por um rgo da grande imprensa o Jornal do Brasil Carlos Marighela preconizava a guerrilha como a nica iniciativa vlida naquela conjuntura. O

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    objetivo imediato seria o de transformar a crise poltica reinante em conflito militar generalizado, ou seja, em guerra civil. Graas s aes a serem empreendidas pelos guerrilheiros, dizia Marighela, "o poder se ver forado a transformar a situao poltica do pas em situao militar. Isso descontentar as massas que, a partir de ento, se revoltaro contra a polcia e o exrcito (...) Os lares sero violados, inocentes sero presos, as vias de comunicao sero fechadas. O terror policial se instalar e (...) dessa forma, os guerrilheiros obtero o apoio das massas e destituiro a ditadura15 A data da publicao setembro de 68 to significativa quanto o seu contedo.

    No havia dvida (nem na oposio, nem no governo) de que a perspectiva de luta armada estada presente. Em grande medida, isso o que explica a diferena flagrante entre o comportamento oposicionista de ento e o de agora. Comparativamente, vemos que hoje a oposio bastante bem-comportada: contida, no que diz e no que faz, ela avana nos espaos deixados abertos pelo poder, procurando expandi-los apenas incrementalmente. "Ocupar os espaos", "forar os limites do possvel", assim se expressa a sua sabedoria. Em 67-68, ao contrrio, valorizava-se o exerccio da insurgncia, a invaso dos espaos vedados, a ao que ignorava limites.

    O AI-5 no visou a luta armada em particular. Mais do que tudo, o que atemorizava o governo era a desestabilizao, a

    15 Jornal do Brasil.

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    incapacidade de se manter face ao alastramento do clima de sublevao. Em fins de 68 no se tratava ainda de abater um inimigo preciso, bem identificado, que desafia o poder nos seus prprios termos, isto , no plano poltico-militar. O escopo do cometimento governamental era mais amplo: tratava-se de debelar a contestao difusa, domesticar vastos setores da sociedade, neutralizar reas nevrlgicas da opinio pblica. Com o AI-5, instaurou-se o controle absoluto.

    O regime mudara de novo e, desta vez, para bastante pior. Passara a ser o que nunca dantes havia sido. As oposies, que tanto tinham falado de ditadura, viam-se agora diante de uma Ditadura com "D" maisculo. Para comear, o novo instrumento de poder por meio do qual se institucionalizava O arbtrio no tinha data prefixada para deixar de existir. Simplesmente abolia, por prazo indeterminado, os limites constitucionais antepostos ao governamental. Dali para diante, o presidente passava a ter sua disposio um formidvel arsenal de poderes excepcionais, ficando autorizado a: 1) decretar o recesso do Congresso e demais casas legislativas; 2) decretar intervenes em estados e municpios; 3) cassar mandatos eletivos e suspender direitos polticos de qualquer cidado; 4)remover, aposentar ou reformar quaisquer titulares de cargos pblicos; 5) decretar o estado de stio e fixar seu prazo de durao; 6) decretar o confisco de bens; 7) suspender garantias constitucionais referentes s liberdades de reunio e de associao; 8) estabelecer a censura da imprensa, da correspondncia, das telecomunicaes e das diverses

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    pblicas. A represso abateu-se sobre o pas, atingindo pessoas e

    instituies. O Congresso foi posto em recesso. Quatro senadores e noventa e cinco deputados tiveram seus mandatos cassados. O MDB perdeu 40 por cento de seus parlamentares. Cinco juzes do Supremo Tribunal Federal e um do Supremo Tribunal Militar foram aposentados. Cerca de quinhentas pessoas que ocupavam posies de relevo na vida social do pas (professores universitrios, jornalistas, militares, diplomatas) perderam seus direitos polticos, bem como aquelas posies que lhes permitiam influir na formao da opinio pblica. Os delegados da censura instalaram-se nas redaes dos jornais, nas emissoras de rdio e televiso, nas casas de espetculo. As foras policiais e os servios secretos passaram a atuar de forma desabrida e totalmente irresponsvel, violando a privacidade dos lares, da correspondncia e das comunicaes, cerceando discriciona-riamente o exerccio de todas as liberdades pblicas. As detenes assumiram o carter de seqestros e se multiplicaram em ondas sucessivas. Todo cidado, independentemente de classe, raa ou credo, tornara-se em princpio suspeito da prtica de delitos contra a segurana nacional. A represso abolira tudo, inclusive as discriminaes scio-culturais.

    Conseqentemente, 69 e 70 foram anos em que a luta oposicionista se reduziu faixa extremamente exgua ocupada pelas aes guerrilheiras e as atividades complementares de apoio logstico, advocacia penal, denncias no exterior e assistncia s

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    faml1ias. Pari passu, prosseguia o processo de aprofundamento do autoritarismo. O AI-5 assinalara apenas o comeo da mudana do regime. medida que se verificava a escalada da violncia com a multiplicao dos focos guerrilheiros, dos seqestros de diplomatas, dos assaltos a bancos e dos choques com guarnies militares novos instrumentos foram sendo criados para aumentar ainda mais o conjunto de poderes autocrticos do governo mil.

    Em fevereiro de 69 foi editado o AI-6, que atingia diretamente o Poder Judicirio, alterando a composio do Supremo Tribunal Federal e retirando-lhe a competncia para julgar, em grau de recurso, as decises proferidas pela Justia Militar no julgamento de civis. Ainda em fevereiro, o AI-7 suspende a realizao das eleies parciais para cargos executivos e legislativos. Em maio, o AI-I O estabelece penalidades acessrias para os atingidos pelos Atos Institucionais, em acrscimo s sanes determinadas por aqueles Atos. Em agosto, o AI-11 prorroga o mandato de prefeitos e vereadores ao mesmo tempo que, com base no AI-12, a Junta Militar autodesignada afasta o substituto constitucional do presidente da Repblica e assume o poder por conta prpria. Em setembro, a Junta baixa o AI-13 e o AI-14: o primeiro autoriza o banimento de qualquer cidado brasileiro considerado nocivo segurana nacional; o segundo introduz a pena de morte. Em outubro, o AI-17 faculta a transferncia para a reserva de militares que viessem a atentar contra a coeso das Foras Armadas. Visava-se com isso coibir os oficiais descontentes que porventura opusessem resistncia ao endurecimento

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    do regime e, em especial, tratava-se de desarticular o "partido fardado" (a direita nacionalista liderada por Albuquerque Lima), cujas pretenses hegemonia tinham ento atingido o auge.

    A lista dos instrumentos de exceo criados no perodo inclui ainda cerca de cem Atos Complementares, editados para fins de execuo dos Atos Institucionais. Ademais, cumpre recordar que a peculiaridade dos Atos consistia em que as medidas tomadas com base nos seus dispositivos, bem como os efeitos gerados por tais medidas, ficavam excludos de apreciao judicial.

    O fortalecimento autocrtico do Estado prosseguiu com a Emenda Constitucional n. 1, de outubro de 69, impropriamente chamada de Constituio de 69. Essa emenda foi promulgada pela Junta Militar durante o recesso do Congresso. Ela acentua ainda mais a preocupao com a defesa do Estado que a Carta de 67 havia introduzido e o desenvolvimento da luta armada estava justificando. A tendncia que assim se reforava fazia com que "o princpio de segurana nacional se tornasse verdadeira norma fundamental do sistema constitucional vigente, espcie de princpio de necessidade, sobre pairando sobre a eficcia de quase todas as normas constitucionais". Observe-se, alm disso, que o conceito de segurana nacional, em nome do qual a nova Carta estabelecia inmeras disposies restritivas (como a perda da imunidade parlamentar), no definido no texto da Constituio.

    O avano da prepotncia no parou a. Em janeiro de 69 foi baixado o Decreto-Lei n 9471 que punia com rigorosas penalidades,

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    aplicada sumariamente, os professores, alunos e funcionrios de qualquer estabelecimento de ensino que viessem a participar de atividades tidas arbitrariamente pelo governo como atentatrias ordem pblica. Em setembro, a Junta promulgou uma nova Lei de Segurana Nacional sob a forma do Decreto-Lei 898, que duplicava o nmero de artigos constantes na legislao anterior. Entre os novos dispositivos introduzidos, destacavam-se os que tinham por objetivo combater a luta armada: seqestros, assassinatos polticos, assaltos a instituies financeiras e atos de terrorismo em geral. Outra contribuio da nova lei foi o agravamento das penas privativas da liberdade.

    Em outubro foram editados mais dois decretos referentes luta armada e um terceiro que tomava passveis de expulso os estrangeiros considerados perigosos. Como se o resto fosse pouco, foi explicitamente abolido, com a legalizao dos decretos secretos em novembro de 71, o princpio da publicidade dos atos normativos realizados pelo governo.

    Todavia, a anlise da dimenso jurdico-institucional no consegue captar a realidade do autocratismo em toda a sua brutalidade. Para completar o quadro seria necessrio examinar, com riqueza de detalhes, tudo que se passou no campo efetivo das prticas repressivas. A, sim, que se pode ver at que ponto os rgos de segurana constituram-se como uma verdadeira "fora autnoma", situada acima da prpria ordem autoritria e poderosa o suficiente para perseguir, seqestrar, torturar e assassinar sem ter de prestar

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    contas de seus atos a ningum. Por outro lado, a histria do perodo demonstrou que nada

    podia ser mais infundado do que o prognstico feito por Marighela (e tantos outros) em 1967. Com o aumento da represso, as massas no aderiram sublevao armada. Em lugar de dar corpo aos arroubos do subjetivismo revolucionrio, a populao se amedrontou e se afastou da vida pblica. Com o "milagre econmico" correndo em paralelo s atividades revolucionrias, o presidente Mdici chegou a alcanar elevado ndice de popularidade e o partido do governo a reacionria e fisiolgica ARENA saiu-se sobejamente vitorioso nas eleies gerais de 1970.

    Com a posse de Mdici completa-se o processo de rearticulao interna da coalizo dominante, processo que se iniciara em fins de 65 com a edio do AI-2. Referido a esse fato, surge em 69 o termo "sistema", at ento inusitado no vocabulrio poltico corrente. A introduo daquela novidade terminolgica correspondia necessidade de designar uma realidade que, tendo acabado de emergir, ainda no tinha um nome. O novo pacto ou, mais precisamente, a nova estrutura de poder que estabelecia as relaes entre os setores componentes da coalizo dominante passou a ser chamado de "o sistema". O esquema hierrquico implantado em 64 foi derrubado e substitudo por uma diviso horizontal e (at certo ponto) funcional do poder. A nova estrutura desmonopolizava a funo de direo poltica, entregando-a a uma espcie de colegiado. A Junta, cuja presidncia era exercida por rodzio entre os trs

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    ministros militares, foi a primeira materializao desse novo acordo. A evoluo que produziu o "sistema" no se processou de

    modo linear. Antes de ter sido alcanado o ponto de equilbrio (coroado com a soluo Mdici) verificou-se a turbulenta irrupo dos "jovens turcos" da direita nacionalista. Conforme foi observado por Oliveiros Ferreira, a morte de Costa e Silva em simultaneidade com a intensificao da luta armada "foi a grande oportunidade estratgica aproveitada pelos ministros militares para restabelecer seu controle sobre a tropa e impedir o triunfo do 'partido fardado"'. Como a posse de Costa e Silva tinha sepultado as pretenses da Sorbonne, os nacionalistas de direita, conhecendo a congnita inaptido da linha dura para o exerccio do governo propriamente dito, superestimaram suas prprias chances e passaram a disputar o comando supremo da coalizo que ento dividiam com os burocratas e os duros. O impedimento e a morte do presidente colocaram ao alcance de suas mos o trofu que seria agarrado no fosse a pronta interveno da Junta.

    Falando em nome da coeso das Foras Armadas e atuando energicamente, a Junta conteve o movimento ascensional dos "jovens turcos" e acabou encontrando no apartidarismo de Mediei a frmula adequada para selar um novo arranjo que a todos contentasse. O acordo final, presidido por Mdici, concederia aos principais atores um espao proporcional ao peso especfico de cada qual. Ao mesmo tempo negaria a cada um em particular o direito de supremacia sobre os demais.

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    O "sistema" representa, em suma, a conciliao finalmente

    lograda entre os interesses dominantes. O novo termo destacava justamente a ideia de unidade entre elementos distintos, mas no em luta; partes diferenciadas de um mesmo todo, recompensadas de modo a funcionar em mtua colaborao. O advento do "sistema" refazia a coeso das foras situacionistas e consagrava a predominncia da solidariedade sobre os conflitos intestinos, lesivos preservao do bloco no poder. Em termos scio-econmicos, o "sistema" significava garantia de insero no 'Estado para todas as fraes das classes dominantes, fosse qual fosse, positiva ou negativa, sua contribuio para o processo de desenvolvimento nacional. O compromisso no exclua ningum: ia do latifndio s multinacionais, passando por todas as modalidades de explorao do homem pelo homem, desde as mais modernas at s mais retrgradas, incluindo as que so contrrias aos interesses da produo. O custo seria pago mediante o arrocho salarial, garantido pelo sindicalismo corporativista, a inflao e o endividamento interno e externo.

    Do ponto de vista orgnico, o "sistema" comportava uma funda diferenciao estrutural, em termos da qual definia-se uma ntida diviso de tarefas: de um lado, o aparelho administrativo do Estado, encarregado da formulao e da gesto das polticas econmica e social, que era unificado, pela cpula, por um rgo colegiado o CMN, Conselho Monetrio Nacional sob o comando do todo-poderoso czar da economia, o ministro da Fazenda Delfin Netto. Esse

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    organismo constitua o locus privilegiado de barganha e negociao, onde as demandas das diversas fraes do capital eram filtradas, hierarquizadas e. diferencialmente contempladas pela poltica estatal.16 De outro lado, os temas polticos, afetos rea de segurana nacional, eram processados em agncias especficas, no interior de uma rede que tinha como pontos focais o SNI Servio Nacional de Informaes e o Conselho de Segurana Nacional, ambas instncias integralmente militarizadas. A mediao entre esses dois segmentos do aparelho de Estado parece ter sido efetuada pela chefia da Casa Civil, na pessoa do ministro Leito de Abreu, que se desincumbia tambm do trato com o "pessoal poltico do regime" os quadros do partido oficial, a ARENA e dos governos estaduais.

    Surgindo, em outubro de 69, como soluo intermediria para a crise militar mais grave jamais conhecida pelo regime, j em meados do ano seguinte o governo Mdici havia vencido as ltimas resistncias internas, havia cimentado as suas bases de apoio e comeava a colher os dividendos polticos dos repetidos sucessos que, a partir de ento, passaram a se acumular.

    Tendo por base as reformas institucionais realizadas pelos governos Castello e Costa e Silva, beneficiada pelas condies excepcionalmente favorveis do mercado mundial, a economia

    16 Cf. Celso Lafer, O Sistel1lil Poltico Brasileiro, So Paulo, Editora Perspectiva, 1975; Maria Lcia Teixeira Werneck Vianna, A Administrao do "Milagre"; O Conselho Monetrio Nacional - 1964/1974, tese de Mestrado defendida no IUPERJ, 1982.

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    brasileira segue em sua inflexo ascendente, expandindo-se a taxas espetaculares: 8,8% em 1970; 13,3% em 1971; 11,7% em 1972; 14% em 1973. Na cadncia vertiginosa das cifras, um clima de incontida euforia toma conta do pas oficial e o regime chega a acalentar o sonho de se legitimar com base na excelncia de seu desempenho nos nmeros indicativos de seus reiterados sucessos. Nessa poca de quase total recesso poltico as sees econmicas dos grandes jornais ganham em espao e densidade. Durante alguns anos, o ndice de crescimento do PIB elevado condio de tema palpitante, ocupando manchetes e dividindo com o noticirio esportivo o apelo ateno do pblico em geral. O Brasil, que numa exploso de alegria havia conquistado o ttulo de tricampeo mundial de futebol na Copa do Mxico, estava ganhando igualmente o trofu do desenvolvimento. "So 90 milhes em ao, pra frente Brasil, salve a seleo..." essa marchinha, de autores andinos, fora transformada no hino oficioso do Brasil de Mdici, e ao assumir essa nova qualidade, o significado de sua letra sofria uma mudana sutil, e a seleo ramos todos ns, 90 milhes, homens e mulheres, trabalhando em comum na construo do futuro em que o Brasil realizaria enfim o seu destino de grandeza e glria.

    1970-73: inspirada nos princpios da guerra psicossocial, a propaganda do governo, difundida nacionalmente pela AERP Assessoria Especial de Relaes Pblicas da Presidncia da Repblica bombardeava permanentemente a populao com a mstica do "Brasil Grande", com as evidncias dos progressos

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    alcanados e o apelo agressivo dos projetos impacto, procurando explorar ao mximo o efeito ideolgico das polticas sociais (PASEP, PRORURAL, FUNRURAL, PROTERRA) e da grandiosidade de alguns empreendimentos, dos quais o da Transamaznica provavelmente ter sido o mais desastrado.

    Um pas forte, dinmico, seguro