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HÉLIO SOCHODOLAK O JOVEM NIETZSCHE E A LEITURA Assis, 2005

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o jovenm nietzsche

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  • HLIO SOCHODOLAK

    O JOVEM NIETZSCHE E A LEITURA

    Assis, 2005

  • HLIO SOCHODOLAK

    O JOVEM NIETZSCHE E A LEITURA

    Tese apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Assis Universidade Estadual Paulista - para a obteno do ttulo de Doutor em Histria. (rea de Conhecimento: Histria e Sociedade)

    Orientador: Dr. Hlio Rebello Cardoso Jr

    Assis, 2005

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (Biblioteca UNICENTRO - Campus de Irati PR, Brasil)

    Sochodolak, Helio S678j O jovem Nietzsche e a leitura / Helio Sochodolak.

    Assis, SP : UNESP, 2005. 243 p. Orientador : Dr Hlio Rebello Cardoso Jr Tese (doutorado) - Faculdade de Cincias e Letras de

    Assis Universidade Estadual Paulista - 2005 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 - Jovem

    Nietzsche. 2. Leitura. 3. Histria cultural da leitura. I. Ttulo.

    CDD 20 ed. 028.9

    Carmen Pegoraro CRB 9/906

  • HLIO SOCHODOLAK

    O JOVEM NIETZSCHE E A LEITURA

    Tese apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP para obteno do ttulo de Doutor em Histria (rea de conhecimento: Histria e Sociedade)

    Data da Aprovao: / /2005 BANCA EXAMINADORA Presidente: Prof. Dr Hlio Rebello Cardoso Jr UNESP/Assis Membros: Prof. Dr. Cludio DeNipoti - UEPG

    Prof. Dr. Jos Carlos Barreiro UNESP/Assis

    Prof. Dr. Jozimar Paes de Almeida - UEL

    Prof. Dr. Ricardo Gio Bortolotti UNESP/Assis

  • Ao leitor intempestivo

  • Agradeo

    Ilzanete, minha querida esposa e s minhas filhinhas Rafaela e Gabriela pela compreenso nos momentos em que precisei deixar de ser companheiro e papai para me tornar um carrancudo pesquisador.

    A meus pais: Rafael e Irene e meus irmos: Adriano, Wagner e Eva pelo apoio constante em todos os momentos de minha vida.

    Tia Zena, Tio Adilson e ao primo lvaro pela acolhida carinhosa todas as vezes que me hospedei em sua casa quando das viagens para Assis.

    Ao professor Hlio Rebello Cardoso Jr., orientador e amigo, com o qual vivenciei uma das mais profcuas experincias de leitura de minha vida.

    Ao professor Dr. Jos Carlos Barreiro e ao professor Dr. Ricardo Gio Bortolotti pelas atentas observaes e contribuies por ocasio do exame de qualificao.

    Aos colegas e alunos do Departamento de Histria e Psicologia da UNICENTRO/Irati pela compreenso e apoio constante.

  • Quem julga ter entendido algo acerca de mim, fez de mim algo sua imagem.Quem nada de mim entendeu, nega que em geral eu seja objeto de considerao. Nietzsche: Por que escrevo to bons livros. Ecce Homo. A cultura fruto de uma grande liberdade e intrepidez de sentimentos Nietzsche: Fragmento pstumo de 1875.

  • Resumo

    O jovem Nietzsche e a leitura se insere na perspectiva da histria cultural da leitura. Para tanto, procura seguir as pistas sobre as representaes do ato de ler e de escrever deixadas por Nietzsche em sua obra at 1876. No contexto da histria da leitura, o autor vivencia mudanas radicais na forma de ler e de escrever. Pondo-se contrrio a elas, defende processos alternativos e artsticos de vivenciar a leitura. Esse trabalho procura perseguir os significados da leitura em um jovem esprito filosfico.

    Palavras-chave: Jovem Nietzsche; leitura; histria cultural da leitura.

  • Rsum

    Le jeune Nietzsche et la lecture se rangent dans la perspective de l'histoire culturelle de la lecture. Cest pourquoi il poursuit les voies sur les reprsentations de l'acte lire et crire pour Nietzsche dans son oeuvre jusqu' 1876. Dans le contexte de l'histoire de la lecture, l'auteur vit les changements profondment radicaux de la forme lire et crire. En las affrontant, il dfend des processus alternatifs et artistiques pour vivre profondment la lecture. Ce travail recherche poursuivre les significations de la lecture dans un jeune esprit philosophique.

    Les mots clef: Jeune Nietzsche; lecture; histoire culturelle de la lecture.

  • Sumrio

    Introduo........................................................................................................................1. O que entendemos por jovem Nietzsche?............................................................... 2. A natureza das fontes............................................................................................. 3. A histria da leitura e a provenincia da pesquisa.................................................

    08 09 12 14

    I Captulo: Combater elementos no-livres ................................................................... 1. Aprender a ler: Os significados iniciais da leitura para o jovem

    Nietzsche............................................................................................................. 2. A defesa de uma leitura lenta como fundamento educativo e cultural................

    22 23 43

    II Captulo: Pelos caminhos da filologia........................................................................ 1. Leitura filolgica................................................................................................. 2. A filologia clssica e o clssico.......................................................................... 3. A convergncia com o historicismo.................................................................... 4. Dissonncias........................................................................................................ 5. A crise da filologia.............................................................................................. 6. Leitura filolgica tomada como problema para o jovem Nietzsche....................

    63 64 65 68 73 78 82

    Intervalo: Leitura e liberdade......................................................................................... 1. Ler como mdico para combater como soldado..................................................2. Ler em comunidade............................................................................................. 3. O estilo................................................................................................................

    99 100103109

    III Captulo: O jovem Nietzsche leitor de Schopenhauer............................................... 1. O encontro de Nietzsche com o livro de Schopenhauer...................................... 2. Os perigos de uma leitura para alm do livro.......................................................3. Intempestividade.................................................................................................. 4. Historicidade do gnio......................................................................................... 5. O heri trgico de Schopenhauer......................................................................... 6. A atualidade do mestre e as divergncias do jovem Nietzsche para com

    Schopenhauer...................................................................................................... 6.1 A promoo do ser autntico: o artista, o filsofo, o heri e o santo...................6.2 As relaes entre o Estado, a economia e a cultura............................................. 6.3 As condies ideais para o surgimento do gnio................................................ 6.4 Divergncias.......................................................................................................

    115116124130140148 155156159163165

    IV Captulo: O jovem Nietzsche leitor de Wagner....................................................... 1. O encontro e a relao inicial de Nietzsche com Wagner................................... 2. Significados da leitura de Richard Wagner para o jovem Nietzsche................... 3. Msica e palavra.................................................................................................. 4. Os perigos do wagnerianismo e o fio de Ariadne................................................ 5. A Quarta Intempestiva ou a ltima tentativa de Dionsio....................................

    172173184193206214

    Consideraes finais......................................................................................................Fontes............................................................................................................................ Referncias bibliogrficas..............................................................................................

    229238240

  • Introduo

    Existem muitas formas de suprir a nsia que sentimos em atribuir sentido

    nossa vida. Historicamente, a vivncia da leitura foi uma forma privilegiada de

    alar significados que possibilitam orientaes para a existncia.1 Nossa

    proposio a de que Nietzsche, tendo tido acesso e estmulo aos livros desde sua

    infncia, utilizou a leitura como uma poderosa ferramenta para produzir

    significados que se modificaram ao longo da fase que denominamos o jovem

    Nietzsche.

    A leitura lhe serviria, algumas vezes, para acessar um conhecimento

    universal (conhecimentos gerais), outras vezes, um conhecimento especializado, a

    filologia, que tambm poderia servir-lhe como instrumento rigoroso de leitura. Em

    outros momentos ainda, a leitura fundamentaria o convvio entre amigos

    (comunidades de leitores) que poderiam compartilhar idias e valores culturais.

    No processo de significao da leitura, pelo jovem Nietzsche, algo nos

    chamou ateno: notamos uma espcie de fio condutor que parecia resistir s

    mudanas: o objetivo de ler tendo em vistas o autoconhecimento e o combate.

    Quanto melhor podia ler, melhor podia combater! A leitura se mostraria ao jovem

    1 DARNTON, Robert. Histria da Leitura. In: BURKE, Peter. A escrita da histria: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 234.

  • 9

    Nietzsche como um caminho para a libertao de limitadores de uma autntica

    cultura. Tais elementos impediam o livre-pensamento, o exerccio da

    autenticidade, da imaginao, da criao, enfim, do ser-si-mesmo.

    Posta nossa tese de incio, trs pequenas notas se fazem necessrias a fim

    de demarcarmos nosso campo de ao e situarmos nosso leitor. A primeira

    observao diz respeito demarcao temporal de nosso trabalho, a segunda,

    sobre a natureza das fontes utilizadas por ns. E a terceira sobre a provenincia de

    nossa pesquisa a partir de alguns questionamentos sugeridos pela histria cultural

    da leitura.

    1. O que entendemos por jovem Nietzsche?

    Quando usamos o termo jovem Nietzsche, nos deparamos com o debate

    aberto pelos estudiosos de Nietzsche acerca da periodizao versus no-

    periodizao dos escritos nietzscheanos. Nesse sentido, alguns comentadores de

    Nietzsche, tais como Eugen Fink2, Jean Granier3 e Karl Jaspers4, preferem no

    trabalhar com periodizaes. O argumento mais forte entre eles que h um

    sistema na filosofia de Nietzsche e que esse s pode ser compreendido no todo.

    Por outro lado, muitos outros preferem abord-lo tal como ele prprio sugeriu em

    diversos momentos, a partir de fases ou perodos de sua vida e obra.

    2 FINK, Eugen. La Philosophie de Nietzsche. Traduit dallemand par Hans Hildebrnad e Alex Lindenberg. Paris: Les dition de Minuit, 1965. 3 GRANIER, Jean. Le problme de la vrit dans la philosophie de Nietzsche. 3 ed. Paris: Seuil, 1978. 4 JASPERS, Karl. Nietzsche: introduction a sa philosophie. Paris: Gallimard, 1950.

  • 10

    Por exemplo, em uma carta a seu amigo Overbeck em 11 de fevereiro de

    1883, escreveu ... toda a minha vida decomps-se diante dos meus olhos: esta

    vida inteira de inquietao e recolhimento, que a cada seis anos d um passo e

    nada alm disso. Da mesma forma, no primeiro livro de Zaratustra, Nietzsche

    narra trs metamorfoses: Apresento-lhes trs transformaes do esprito: como o

    esprito se transforma em camelo, o camelo em leo, e o leo, finalmente, em

    criana. Para Deleuze, que prefere no seguir esta pista em todos os seus

    trabalhos sobre Nietzsche, notadamente em Nietzsche e a filosofia5, estas

    transformaes so reconhecidas por Nietzsche como sendo as da sua vida e de

    seu pensamento.

    Em suas palavras: De acordo com Nietzsche, estas trs metamorfoses

    significam, entre outras coisas, momentos da sua obra e tambm estdios da sua

    vida e sua sade. Sem dvida, os cortes so sempre relativos: o leo est presente

    no camelo, a criana est presente no leo; e na criana h a abertura para a

    tragdia.6 A partir desta periodizao metafrica, Deleuze organiza a sua

    exposio da biografia de Nietzsche.

    Para ele, a fase do camelo, aquele que carrega, seria correspondente fase

    que Nietzsche estaria suportando os valores e ensinamentos que lhe foram

    incutidos pela famlia, pela religio e pela escola. A fase do leo, aquele que

    destri, seria correspondente fase em que Nietzsche, enfurecido com os valores,

    estaria por critic-los, e a destru-los. Por fim, a fase da criana, aquela capaz de

    5 DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962 6 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Trad. Alberto Campos. Lisboa: Ed. 70, 1990. p. 9.

  • 11

    criar livremente, seria correspondente fase em que Nietzsche edifica valores

    novos.

    Nessa mesma direo, Karl Lwith constata duas transformaes radicais

    em Nietzsche: a de jovem reverente em esprito livre e a deste em mestre do eterno

    retorno; elas levam diviso da obra em trs perodos conforme o hbito.7 Que

    seriam correspondentes fase da crena na renovao da cultura alem, fase da

    busca de um caminho prprio e em seguida a do eterno retorno. Na esteira dessa

    discusso nos inserimos entre os ltimos, sem, entretanto, seguirmos rigidamente

    a periodizao tripartite da obra de Nietzsche datada da seguinte forma: 1870-

    1876; 1977-1882; 1883-1888.

    Entendemos que nosso objeto nos estimula a alargarmos um pouco mais o

    primeiro perodo, de forma a abarcarmos tambm algumas fontes de um perodo

    anterior a 1870, fato que poderia nos classificar como dissidentes da tradio

    filosfica acerca dos estudos nietzscheanos que tomam como ponto de partida o

    momento da elaborao de O nascimento da tragdia. A esse movimento maior

    que inclui seus escritos juvenis, sejam eles apenas anotaes, cartas ou textos

    escolares, passando por sua primeira autobiografia, redigida durante os anos de

    Pforta e Bonn (1858-1865) at a publicao de Richard Wagner em Bayreuth

    (1876), chamamos de: o jovem Nietzsche. Entretanto, alertamos o leitor para o fato

    de que eventualmente, em um sentido restrito e que corroboram suas

    representaes sobre a leitura em sua fase inicial, utilizamos referncias de

    7 Cf. MARTON, Scarlett.. Nietzsche: das foras csmicas aos valores humanos. So Paulo: Brasiliense, 1990. p. 24

  • 12

    algumas obras que no se inserem nesse perodo, como o caso de Genealogia da

    moral, Aurora, Assim falou Zaratustra e Ecce Homo.

    Duas razes principais nos motivam a fazer o recorte cronolgico-temporal

    que denominamos o jovem Nietzsche. Em primeiro lugar, entendemos que a

    temtica da leitura adquire uma relevante expressividade no perodo da juventude

    de Nietzsche que ir, em outras fases, confirmar suas representaes sobre a

    leitura, como pode ser confirmado nas obras que citamos no pargrafo anterior,

    das quais utilizamos algumas passagens, principalmente na segunda parte do

    primeiro captulo. Enfim, entendemos ser este o perodo mais representativo para

    abordarmos a temtica neste momento.

    Em segundo lugar, analisar toda obra de Nietzsche, obra entendida aqui em

    um sentido amplo8, seria invivel no prazo estabelecido para a presente pesquisa.

    Tornou-se, ento, inevitvel realizar o presente recorte, o que no impede de que

    possamos, oportunamente, dar prosseguimento pesquisa sobre a leitura nas

    demais fases de nosso autor.

    2. A natureza das fontes

    8 Quando utilizamos o termo obra levamos em considerao as discusses levantadas por Foucault quando nos afirma que: A obra no pode ser considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade homognea In: FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. 6. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 27. Isto porque no h um critrio absoluto a priori para definir o que obra quer dizer. Seria somente os textos organizados pelo autor para publicao? No poderiam, tambm, fazer parte da obra: as anotaes, os esboos inacabados, as cartas, as notas, entre outros ditos e escritos? O conceito de obra para Foucault problemtico por natureza e s pode ser definido por critrios a posteriori. Assim, ao utilizarmos obra em um sentido amplo, uma vasta gama de escritos, que nem sempre foram organizados para publicao pelo nosso autor, so considerados.

  • 13

    A fim de nos aproximarmos do contato estabelecido com os livros e da

    tipologia da leitura desenvolvida pelo jovem Nietzsche, nos apoiamos em seus

    escritos juvenis, nos escritos pstumos e na obra propriamente dita at 1876,

    quando da publicao da Quarta Intempestiva. De incomensurvel valor foi a farta

    correspondncia de Nietzsche. Nela aparecem referncias sobre suas expectativas

    com relao leitura: de autoformao, de combate, de constituio de

    comunidades culturais, ou mesmo sobre as impresses de suas leituras dos textos.

    Alm disso, foram-nos teis as biografias, dentre as quais destacamos duas, a de

    Charles Andler9 e a de Curt Paul Janz10.

    Neste sentido, seguimos a senda indicada por Mazzino Montinari. Este

    organizador da obras completas de Nietzsche defende um procedimento simples e

    muito convincente para trabalhar com sua obra. Trata-se de cotejar os textos

    publicados com a correspondncia e com os escritos pstumos. Para Montinari,

    so nestes escritos, destacando-se as cartas, que Nietzsche dispunha sobre suas

    publicaes e projetos de textos, e o fez intensamente at o ltimo momento de

    sua vida. Assim sendo, ele podem servir como contraponto revelador da obra,

    sendo de extrema valia para compreenso da mesma.11 Assim, perseguimos a

    trajetria do jovem Nietzsche atravs de seus textos, incluindo aqueles que no

    foram escritos com o objetivo de serem apresentados ao pblico. Principalmente

    nestes ltimos textos, acreditamos se fazer representar o homem em toda a sua

    intensidade (o homem pra alm do livro, dir o prprio Nietzsche); l onde se

    9 ANDLER, Charles. Nietzsche: Sa vie et sa pense. Paris: Gallimard, 1958. 3 vol 10 JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche. Paris: Gallimard, 1984. 5 vol. 11 MONTINARI, Mazzino. Ler Nietzsche: o crepsculo dos dolos. Trad. Ernani Chaves. In: Cadernos Nietzsche 1. So Paulo: GEN, 1987.

  • 14

    revela aos seus amigos e familiares no somente em seus aspectos intelectuais,

    mas por completo, expressando sentimentos, emoes e valores, alm de suas

    representaes da leitura.

    3. A histria da leitura e a provenincia da pesquisa

    A terceira nota que mencionamos se refere contribuio da histria da

    leitura enquanto aproximao terico-metodolgica do tema em questo.

    Acompanhemos a seguinte reflexo de Robert Darnton:

    Consideremos a freqncia com que a leitura mudou no curso da histria - A leitura que Lutero fez de Paulo, a leitura que Marx fez de Hegel, a leitura que Mao fez de Marx. Esses pontos se sobressaem em um processo muito mais profundo, muito mais vasto - o esforo eterno do homem para encontrar significado no mundo que o cerca e no interior de si mesmo. Se pudssemos compreender como ele tem lido, poderamos nos aproximar de um entendimento de como ele compreende a vida; e dessa maneira, da maneira histrica, poderamos at satisfazer nossa prpria nsia de significado. 12

    Num olhar atento sobre a passagem acima, podemos notar algumas das

    principais questes que preocupam a historiografia cultural da leitura. Em

    primeiro lugar, a questo da variao na forma de ler dos indivduos, ou dos

    grupos sociais, ao longo da histria. Em segundo lugar, a questo da procura de

    significados no mundo que o cerca e no interior de si mesmo uma necessidade

    que motiva o ser humano leitura e representao de novos significados. Estes,

    quase sempre, dispostos igualmente para a leitura. Por ltimo, a possibilidade de,

    ao compreender como os indivduos do passado leram, compreender como eles

    12 DARNTON, Robert. Histria da Leitura. p. 234.

  • 15

    pensaram questes as mais variadas sobre a vida. Assim, talvez possamos

    satisfazer nossa prpria necessidade de significados.

    Tais consideraes nos indicam um caminho metodolgico muito frtil

    para nos aproximarmos do jovem Nietzsche. A leitura feita por ele possui

    particularidades tais como a de Paulo por Lutero, de Hegel por Marx e assim por

    diante. Como Nietzsche leu os textos? Que significados atribuiu a eles? Que

    significados estaria procurando para si e para seu tempo?

    Darnton nos aponta algumas dificuldades para a compreenso histrica dos

    leitores de outrora. Para ele, ... os documentos raramente mostram os leitores em

    atividade, moldando o significado a partir dos textos.13 Entretanto, no caso do

    jovem Nietzsche, em muitos momentos possvel perceb-lo em plena atividade

    de leitura. Disposto a comentar e acatar aquelas leituras que lhe inspirariam

    admirao ou lhe forneceriam orientaes para a vida, tal como Hlderlin, Goethe,

    Emerson, Schopenhauer e Wagner. Tambm se mostraria voraz em combater

    aquelas leituras que, em dado momento, se tornariam opressoras ou dignas de sua

    esgrima verbal, a exemplo de Antiga e a Nova F (1872) de F. D. Strauss que

    combate na Primeira Intempestiva e de A Filosofia do Inconsciente (1869) de

    Edward von Hartmann, contra o qual investe na Segunda Intempestiva. Alm

    disso, as referncias aos livros e leituras so incontveis. Elas aparecem desde a

    mais tenra juventude de Nietzsche, especialmente em sua vasta correspondncia

    destinada me, irm e aos amigos.

    13 DARNTON, Robert. Histria da Leitura. p. 203.

  • 16

    Concordamos com Darnton quando associa leitura e escrita, ao apontar

    que, na maioria das vezes, s podemos abordar os significados da leitura feita no

    passado a partir da escrita: e os documentos so, eles prprios, textos, o que

    tambm requer interpretao.14 Entendemos, pois, no ser possvel dissociar o

    Nietzsche leitor do Nietzsche escritor. Descobrir o primeiro fundamental para

    encontrar o segundo, e vice-versa.

    Para Cludio DeNipoti15 apoiando-se em Joaci Pereira Furtado16, O ponto

    central daquela preocupao , portanto, reconstruir historicamente o contexto

    da leitura, ou o locus de construo de seu sentido.17 A preocupao que

    DeNipoti se refere a discutida pelos historiadores Robert Darnton18 e Roger

    Chartier19 acerca dos procedimentos de uma histria da leitura vinculada aos ...

    problemas relativos histria cultural, j que no conjunto das caractersticas

    de uma dada cultura que a atmosfera da leitura propiciada.20 Tal concluso

    incide sobre o vnculo culturalista de uma histria da leitura no preocupada

    14 DARNTON, Robert. Histria da Leitura. p. 203. e passim. 15 DENIPOTI, Cludio. A seduo da leitura: livros, leitores e histria cultural. Paran, 1880-1930. (Tese) Curitiba: UFPR, 1998. 16 FURTADO, Joaci Pereira. Uma Repblica de leitores: as Cartas Chilenas e a histria da leitura. Histria 10, So Paulo: Unesp, 1991. p. 101-112. 17 DENIPOTI, Cludio. op. cit. p. 37. 18 Destacamos os seguintes textos de Robert Darnton a este respeito: O grande massacre de gatos e outros episdios da histria cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.; Histria da leitura, op. cit.; O beijo de Lamourette: reflexes sobre a histria cultural. So Paulo: Cia da Letras, 1992.; e Edio e seduo. So Paulo: Cia das Letras, 1992. 19 Destacamos os seguintes textos de Roger Chartier: Textos, impresses e leituras. In: HUNT, Lynn. A nova histria cultural. So Paulo: Martins Fontes, 1992.; O mundo como representao. In: Estudos Avanados 11(5): p.p. 173-191, 1991.; Textos, smbolos e o esprito francs. In: Histria Questes e Debates 24(13). Curitiba: Jul/dez. 1996, p. 5-27.; a histria cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990. Alm do que, para uma mediao no debate entre Darnton e Chartier: LACAPRA, Dominick. Chartier, Darnton e o grande massacre do smbolo. In: Ps-histria 3: p.p. 229-252. Assis: 1995. 20 DENIPOTI, Cludio. A seduo da leitura. p. 36.

  • 17

    apenas com os aspectos quantitativos que sua antecessora ou alimentadora, a

    histria do livro, tivera como foco.

    Para Darnton, a histria do livro, atinha-se, sobretudo s seguintes

    indagaes: o qu?, onde? e quando?. Ao passo que, apoiando-se inclusive

    nos dados estatsticos fornecidos pela histria do livro, a histria da leitura passou

    a se preocupar com as questes dos porqus? e dos comos?21 So perguntas

    muito complexas que exigem uma imerso no universo cultural do pesquisado,

    mas que, acima de tudo, so as mais significativas uma vez que se aproximam dos

    anseios do prprio pesquisador. Neste sentido nos aponta Hlio Rebello:

    A pergunta: o que e como liam tais pessoas em tal poca? Possui o efeito imediato de nos transportar ao lugar do sujeito nela embutido. Logo comeamos a nos interpelar, leitores que somos: o que nos move leitura? Ora, tal pergunta j desencadeia outras, pois o que nos incita a ler: um padro cultural conformado em uma poca?; e quando lemos porque isto nos apraz ou estamos procura de um antdoto para uma dvida, uma angstia, uma tristeza? 22

    So elementos cognitivos e afetivos que esto envolvidos nas formas de ler

    do passado e em nossa prpria leitura do passado. Assim, tais elementos precisam

    ser descobertos e evidenciados na forma e na motivao da leitura que se fez

    outrora. Por outro lado, no se pode descartar que tais elementos cognitivos e

    afetivos esto ligados a aspectos sociais, polticos e culturais que interferem no

    processo de leitura.

    Podemos afirmar que, da mesma forma, que as pistas encontradas e

    utilizadas na reconstruo da leitura servem para explicitar aspectos da vida e da 21 DARNTON, Robert. Histria da Leitura. p. 217. 22 CARDOSO JR., Hlio Rebello. Histria da leitura e ampliao do questionrio historiogrfico consideraes acerca do eclipse da materialidade do livro. In: Tramas de clio; convivncia entre filosofia e histria. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001. pp 31-45.

  • 18

    organizao social, no tocante a seus modos de relacionar-se com a palavra

    impressa e, portanto, com a informao23, o contrrio tambm procede, ou seja, de

    que atravs da insero social, poltica e cultural do leitor possvel reconhecer,

    ao menos em parte, seu modo de ler, o que revela a complexa e intrincada relao

    destes fatores. 24

    Convm salientar que, para Darnton, uma das formas possveis de se

    responder questo do como se leu os textos ... diz respeito s maneiras como

    a leitura era ensinada.25 Instigados por essa proposio nos interrogamos sobre

    os estmulos leitura que Nietzsche recebeu, seja quando ainda criana, no

    colegial, ou mesmo quando cursou teologia e filologia sob os auspcios de seu

    estimado professor Ritschl. Como o jovem Nietzsche se apropriou destas

    experincias? Que representaes ele fez sobre a leitura em seus escritos?

    Complementarmente, aparece a questo do leitor dos textos do jovem

    Nietzsche: para quem ele teria escrito? Que leitor tinha em mente quando

    escrevia? Mesmo que este leitor implcito no fosse o leitor real, desvel-lo

    implica em compreender a forma com que o prprio escritor lia, j que a forma de

    leitura que se pretende freqentemente fruto da projeo do prprio escritor e

    sua maneira de ler.

    Mediante instigantes questionamentos, podemos considerar que a

    complexidade da abordagem histrica do sujeito jovem Nietzsche e os

    23 Cf. DENIPOTI, Cludio. A seduo da leitura. p. 7. 24 Vale lembrar os apontamentos de Antonio Candido em Literatura e Sociedade sobre a articulao entre autor, pblico e obra. Cf. SOUZA, Antonio Candido de Mello e. A literatura e a vida social. In Literatura e sociedade. So Paulo: Nacional, 1979. 25 DARNTON, Robert. Histria da Leitura. p. 221.

  • 19

    significados de sua leitura encontram uma grande contribuio nas questes

    suscitadas pela histria cultural da leitura. Enfim, ela fornece-nos um instrumental

    interessante para argirmos as fontes existentes acerca de nosso objeto de

    pesquisa.

    Assim, no primeiro captulo, descobrimos a leitura e a msica como

    moedas supervalorizadas no meio cultural do jovem Nietzsche. Elas

    significariam, acima de tudo, instrumentos para aquisio de uma erudio

    universal. Atravs de nossas fontes, observaremos a criana lendo e produzindo

    msica, textos e poemas para obter reconhecimento da famlia e dos amigos

    diretos que tambm estavam voltados para objetivos afins. -nos possvel

    acompanhar os estmulos que lhe fizeram crescer o gosto pela leitura. Que

    apropriaes dessa experincia realizou o jovem Nietzsche? Como as representou

    em suas cartas, sua autobiografia e em alguns de seus trabalhos escolares?

    Num segundo momento o jovem Nietzsche estar preocupadssimo com a

    leitura praticada no sistema educacional, seja atravs de sua prpria experincia,

    na Escola de Pforta, ou aquela que podia observar nos estabelecimentos de ensino

    de uma Alemanha em vias de se constituir enquanto nao. Como representar

    esse processo? Como se posicionar?

    No segundo captulo, observamos que ler filologicamente parecia ao

    Jovem fillogo-filsofo ser, ao menos a princpio, a forma alternativa ao modelo

    jornalstico de leitura e escrita que estava se desenhando em seu tempo.

    Tentamos compreender como o jovem Nietzsche vivenciou a disciplina filolgica

  • 20

    e quais foram suas impresses desse mtodo como instrumental de leitura, suas

    possibilidades e limitaes.

    Descortinamos ento, no terceiro captulo, uma outra perspectiva ou

    imagem da leitura feita pelo jovem Nietzsche. Ler como mdico, significaria ler

    com o intuito de encontrar o remdio para a maladie, seja aquela que existe em si,

    seja a que acomete a cultura como um todo. De que doena se refere Nietzsche?

    No seria aquela causada por elementos que impediriam o esprito, ou gnio, de

    tornar-se livre? Plenamente criativo e capaz de transformar o conhecimento em

    algo til para a vida, assim como os gregos antigos o faziam?

    No quarto captulo procuramos perseguir a leitura do jovem Nietzsche de

    um dos seus maiores mestres, Schopenhauer. Notamos que esta leitura ir reforar

    alguns elementos j presentes no jovem Nietzsche e o permitir desenvolver suas

    idias acerca da leitura, da educao e da cultura. Schopenhauer parece responder

    a anseios muito ntimos do jovem leitor que saber utilizar seus escritos como

    ferramenta para seus objetivos.

    No ltimo momento de nossa tese, seguindo as pistas do leitor desejado

    por Nietzsche, a partir da relao intensa e apaixonada com a msica, abordamos

    o seu envolvimento com a causa wagneriana. Em Wagner a busca de um estilo, de

    uma sonoridade para a palavra, de um arrebatamento do leitor parece encontrar

    um eco perfeito. Wagner representaria uma alternativa para um novo modelo

    cultural para os alemes? O msico poderia ensinar a nao a estabelecer novas

    relaes com apalavra? Poderia ensinar a ler artisticamente?

  • 21

    Trata-se de apurar os sentidos para ouvir as ressonncias que podem ser

    abstradas dos bastidores de uma leitura intensa e voraz e tentar vislumbrar as

    funes da mesma. Tentar aproximar-se da resposta s indagaes do como? e

    do por qu? da leitura de um jovem esprito filosfico. Tarefa rdua e

    compensadora que pode nos revelar mais do que procuramos saber, afinal, muito

    provvel de que, ao querermos perscrutar a leitura do jovem Nietzsche, estejamos

    querendo saber outra coisa: afinal, porque lemos Nietzsche?

  • 22

    I Captulo

    COMBATER ELEMENTOS NO-LIVRES

  • 23

    1. APRENDER A LER: OS SIGNIFICADOS INICIAIS DA LEITURA PARA O JOVEM NIETZSCHE

    Ao analisarmos a autobiografia de Nietzsche, podemos notar evidncias

    que podem nos auxiliar a problematizar algumas questes acerca da leitura com o

    jovem Nietzsche. Desde criana Nietzsche foi intensamente estimulado leitura

    devido grande oportunidade de contato com os livros e com a leitura na casa

    paterna e na dos avs.

    Sua me o havia ensinado a ler e escrever, antes mesmo que ingressasse

    na Escola Primria de Naumburg. Uma das recordaes mais vivas de sua

    primeira infncia era a do escritrio onde seu pai preparava suas pregaes

    destinadas pequena igreja luterana da cidade de Rcken. No escritrio, estantes

    repletas de livros, muitos deles com numerosas ilustraes, as quais faziam

    daquele lugar o seu preferido na casa.26

    Por sua vez, a primeira escola em que Nietzsche estudou primava por

    uma educao tradicional com forte acentuao para o uso cannico da lngua.

    Desta feita, alm de preceitos religiosos luteranos, que era uma das tnicas da

    Escola de Naumburg, Nietzsche estudou latim e grego. A tnica de seus estudos

    era a Lngua Alem, o que no o livraria de aos quinze anos escrever ainda

    26 Cf. NIETZSCHE, F. crits Autobiographiques. 1856-1869. Trad. Marc Crpon. Paris: Presses Universitaires de France, 1994. p. 16.

  • 24

    algumas palavras com erros ortogrficos (escrevia Gedraite em lugar de Getraide

    (trigo))27.

    A esse respeito, nos alerta Janz: ... seu sentido de lngua foi definido j

    em seus primeiros anos juvenis de acordo com o modelo clssico, o que ao longo

    de sua vida o incitou a uma literatura enquanto cnon aceitvel, nunca por fontes

    dialticas ou recursos retricos do cotidiano.28 Ou seja, a lngua vai significar

    para Nietzsche desde sua infncia algo de culto, de valor a ser preservado e

    cultivado, atravs da arte literria.

    Para alm desses estmulos familiares, o crculo de amizades que

    Nietzsche freqentou na primeira etapa de sua formao tambm lhe foi muito

    proveitoso neste sentido. Dois foram os seus amigos mais prximos neste

    momento Wilhelm Pinder e Gustav Krug. Como Nietzsche freqentava

    assiduamente a casa de seus companheiros pde entrar em contato tambm com os

    estmulos que os mesmos recebiam.

    O pai de Wilhelm era muito interessado por poesia clssica e lia

    freqentemente para os meninos, entre outros textos, partes de Lvennovelle de

    Goethe. Ao que tudo indica, este foi o primeiro contato de Nietzsche com os

    textos de Goethe. Tambm, na casa dos Krug, a msica era o mtier, l se reuniam

    no s os msicos de Naumburg como todos os msicos que vinham visitar a

    cidade. Acerca destas amizades e influncias, Nietzsche se expressa com grande

    carinho nos seus escritos autobiogrficos onde agradece a Deus pelos

    27 Cf. JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche vol. 1: Infncia y juventud. Trad. Para o espanhol de Jacobo Muoz. Madrid: Alianza Editorial, 1978. p. 47. 28 Ibidem. p. 47.

  • 25

    companheiros e suas famlias e conclui com satisfao: Ah, jamais me esquecerei

    desta poca!29

    Ou seja, percebemos que desde a infncia, o jovem leitor Nietzsche

    estava em contato com um universo cultural favorvel e estimulante para a leitura

    e sua relao com a escrita. Tinha por objetivo escrever artisticamente e compor

    msicas. msica Nietzsche ir dedicar boa parte de sua juventude. sobre ela

    que ele ir escrever em sua autobiografia juvenil Minha vida:

    Deus nos deu a msica para nossos olhares se voltarem em primeiro lugar para o cu. Ela rene em si todas as qualidades, ela pode ser uma elevao, ela pode nos divertir. Com suas notas doces e melanclicas, ela pode suavizar os coraes mais selvagens. Mas sua vocao principal de dirigir nossos pensamentos para o cu, de elevar nossa alma, e mesmo nos purificar. (...)Na msica, as notas penetram mais profundamente que as palavras na poesia,e a arte musical atende os desejos mais secretos do corao.30

    Notamos aqui o reconhecimento, por parte de Nietzsche, de que a melhor

    e mais perfeita forma de arte e expresso a msica, neste momento identificada

    com a msica sacra. Este aspecto de sua formao, Nietzsche encontrar

    ressonncia posteriormente nos escritos de Schopenhauer e na obra de Wagner.

    Leituras que sero extremamente agradveis a partir do inverno de 1865, perodo

    que marca seu primeiro contato com a obra maior de Schopenhauer.

    Ao ingressar no Liceu (1858), Nietzsche fazia um balano de sua

    formao intelectual e sentimental, mostrando que jamais havia superado a morte

    do pai que marcou muito sua infncia. Sobretudo, vangloriava-se de sua produo

    artstica, seja ela musical, composta quase que exclusivamente por msicas sacras, 29 NIETZSCHE, F. Ma vie (I) Les annes de jeunesse 1844-1858. In: crits Autobiographiques. 1856-1869. p. 28. 30 NIETZSCHE, F. Sur la musique. In: crits Autobiographiques 1856-1869. p. 37.

  • 26

    ou literria, esta composta por 46 poemas listados por ele em sua autobiografia e

    divididos em perodos.

    Acerca dos poemas, desculpa-se pela insipincia do estilo ainda em vias

    de construo e reconhecia sua maior inspirao: Goethe, um modelo de

    pensamento rico, claro e profundo31. O que pode ser observado neste momento

    que Nietzsche desenvolvia, em paralelo sua capacidade de leitura, uma

    necessidade enorme de escrever e de ser lido. Assim, fazia projetos de escrever

    pequenos livretos e de encaminh-los aos seus amigos, seus leitores, alm de sua

    me e eventualmente sua irm. Prezava a quantidade e a qualidade de sua

    produo, o que lhe era muito dificultoso uma vez que em termos tcnicos, no

    dominava ainda nem a versificao nem a rima.32

    Sobre isto nos escreve Nietzsche:

    Em meu terceiro perodo potico, eu procurei conciliar os dois primeiros, quer dizer, unir graa e vigor. Eu no posso julgar ainda em que medida eu consegui. Este perodo comeou em dois de fevereiro de 1858, dia do aniversrio de minha querida me. Eu tinha o hbito de lhe remeter uma pequena coleo de poemas. Assim, dediquei-me poesia e me esforava para compor um poema a cada noite. Eu tentava escrever o mais simples possvel, mas logo desistiria. Pois um poema, para ser compreendido, deve sem dvida, ser o mais simples possvel, mas ele deve conter em cada uma de suas palavras, a verdadeira poesia. 33

    O que salta aos olhos do leitor da autobiografia juvenil de Nietzsche,

    sua motivao em compor poesias, apesar de ter sido considerada uma tarefa

    difcil de se realizar pelo prprio autor. Prope-se faz-lo num ritmo intenso e

    num estilo capaz de unir graa em vigor. Isso nos aparece como um forte

    31 NIETZSCHE, F. crits Autobiographiques 1856-1869. p. 39. 32 Cf. JANZ, Curt Paul. op. cit. p. 49. 33 NIETZSCHE, F. crits Autobiographiques 1856-1869. p. 38.

  • 27

    indicativo de seu relacionamento intenso com a leitura e com a produo literria.

    Para Nietzsche importava, neste momento, a disciplina fsica para a leitura e para

    a escrita. Horas a fio dedicadas a este processo. Bem sabemos que esta ser uma

    tnica em toda a produo do filsofo. Logo, no s leitura, mas produo

    intensiva de textos.

    Nas correspondncias do Nietzsche estudante, at mesmo em Bonn e

    Leipzig, notamos uma grande quantidade de menes aos livros, seja

    demandando-os de presente, seja comentando algum que j havia lido. Ao que

    parece, o presente mais apreciado por Nietzsche era o livro. E, para tanto,

    relacionavam, especialmente para sua me, quais desejava de presente. Da mesma

    forma, lamentava-se quando no os recebia.

    Por exemplo, em fins de setembro de 1861, de Pforta, escreve para sua

    me pedindo que lhe encadernasse alguns flios de msica e que lhe comprasse

    um livro em substituio ao que havia pedido anteriormente sem sucesso, uma vez

    que este se apresentara muito caro. Pedia ento: R. Schumann, op. 98 Requien

    para Mignon, para piano. Editorial Breitkopf & Hrtel.34 Solicitava-o como

    presente de aniversrio e na mesma correspondncia mandava seu boletim escolar

    com as excelentes notas que havia conseguido no perodo; usava-as como

    argumento para endossar o seu pedido.

    De natureza semelhante a correspondncia de outubro de 1863, que

    remete um dia aps o seu aniversrio de 19 anos sua me e irm. Nela agradece

    34 NIETZSCHE, F. Correspondncia. Trad. Felipe Gonzlez Vicen. Madrid: Aguilar, s/d. Carta 02. Franziska Nietzsche: setembro de 1861.

  • 28

    os preciosos regalos e guloseimas que elas lhe enviaram as quais foram apreciadas

    por todos os seus companheiros. Agradecia, sobretudo, ao envio de um livro,

    apesar de no ser o que tinha demandado, mas mesmo assim, estava satisfeito.

    Agradecia tambm tia Roslia que tambm lhe enviara um volume. Ou seja:

    desejava veementemente o contato com os livros: para aumentar seu

    conhecimento universal.35

    Esta idia pode ser reforada se tomarmos por base os escritos

    autobiogrficos de Nietzsche. Neles h inmeras menes a livros demandados

    sua famlia e a expectativa em receb-los principalmente na poca do aniversrio.

    Assim, por exemplo, em sete de agosto de 1859, portanto antes de completar 14

    anos, Nietzsche ressalta em sua autobiografia:

    Em alguns meses ser meu aniversrio. Eu ainda no firmei o presente que desejo receber, se as obras de Gaudy e de Kleist, se o Tristam Shandy de Stern.36

    E no dia seguinte escreve:

    Eu me decidi em comprar A vida e as opinies de Tristam Shandy e a pedir Dom Quixote para o meu aniversrio. Eu espero dispor do dinheiro necessrio daqui seis semanas.37

    E ainda prossegue alguns dias mais tarde:

    Sem dvida receberei meu Tristam Shandy na prxima semana. Eu pedi Lisbeth para procur-lo o mais rpido possvel. Eu estou muito desejoso de tomar conhecimento de seu contedo.38

    35 NIETZSCHE, F. Correspondance I Juin 1850- avril 1869. Textes tablis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari. Paris: Gallimard, 1986. Cartas 389 e 392. Franziska et Elisabeth Nietzsche: 16 e 19 de outubro de 1863. 36 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 49. 37 Ibidem. p. 50. 38 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 58.

  • 29

    Podemos notar a ansiosa espera pelo contato fsico com o livro que

    demonstra Nietzsche. Desejo do conhecimento que este comporta, o que nos

    aponta. Nesta direo revela para seus amigos, especialmente a Deussen e a

    Gersdorff em vrias oportunidades, o desejo de trabalhar como voluntrio na

    Biblioteca Imperial de Paris para estar mais prximo dos livros39. Sentia-se atrado

    por eles e revelava que no atribua a si mesmo mais do que o ttulo de rato de

    biblioteca40.

    Mesmo nas frias escolares de Pforta, quando passava alguns dias na casa

    de seu av materno, o mesmo que Nietzsche quando criana flagrou muitas vezes

    escrevendo profusamente para desabafar41, sua ocupao principal era passar as

    horas no escritrio de seu av, revolvendo livros e cadernos antigos.42 Neste

    sentido, nos aponta Janz: Livros, livros, e livros! Quando podia retirar-se com

    eles ao horto, a algum rinco sob as rvores, vivia realmente.43 Assim, o

    programa preferido de Nietzsche durante as frias escolares era visitar diariamente

    a biblioteca. A princpio, Nietzsche ir orgulhar-se de tal proeza, uma vez que a

    quantidade de livros lidos, e a sua intimidade com os mesmos significaro

    erudio, moeda valiosa entre seus amigos mais prximos.44

    39 Vale mencionar as cartas de abril de 1867 onde escreve primeiro a Deussen, depois a Gersdorff, acusando explicitamente seu desejo de trabalhar por um ano na Biblioteca Imperial de Paris. 40 Revela isto a Gersdorff em correspondncia de 6 de abril de 1867. Cf. NIETZSCHE, F. Correspondncia. Carta 20. 41 Cf. JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche vol. 1. p. 36. 42 Ibidem. p. 56. 43 Ibidem. p 55. 44 Nietzsche no manteria o mesmo posicionamento quantitativo sobre a leitura, sobretudo aps ler Schopenhauer, especialmente Parerga e paralipomena onde o filsofo tece picantes crticas erudio universitria e acadmica de modo geral.

  • 30

    O jovem Nietzsche se mostrava muito preocupado em consolidar a sua

    formao intelectual passando pela msica e pelos autores da Antiguidade bem

    como por textos de seus companheiros de Associao (primeiro a Germnia e

    depois a Franconia)45. Ou seja, Nietzsche em sua juventude teve uma relao

    muito prxima e intensa com os livros e a leitura. Tanto que sua me necessitava

    intervir de forma a evitar o sedentarismo no jovem leitor. Estimulava-o a praticar

    exerccios fsicos regulares, tais como natao e patinao.46

    Podemos notar a satisfao e a insistncia para com aquelas leituras que

    considerava de difcil compreenso:

    Eu recebi o meu Tristam Shandy. Neste momento no cesso de ler e de reler o primeiro volume. Ao fim no compreendi quase nada, ao ponto de ter me arrependido um pouco de t-lo comprado. Mesmo assim, no sou capaz de interromper a leitura e tomo nota de todos os pensamentos que me aparecem. Jamais eu havia sido confrontado com um tal conhecimento universal das cincias e uma tal anlise do corao.47

    A leitura difcil de Stern no desanima o jovem leitor. Seu desejo de

    conhecimento parece estar impresso em seu esprito como algo indelvel. Assim,

    rel o que no entendeu e segue em sua busca. No poderia ser diferente, a

    formao e os estmulos que recebera at ento o impeliam a continuar. J neste

    momento, demonstra grande maturidade na escrita como podemos observar em

    seus apontamentos autobiogrficos que incluem um elevado grau de profundidade.

    45 Em 1862 Nietzsche fundou com alguns amigos uma sociedade de autoformao, a Germnia. Nos estatutos aparecia a seguinte recomendao: Cada um livre para trazer uma composio musical, um poema ou um ensaio. Mas todos so obrigados a escrever no ano pelo menos seis ensaios.... Em 1864, ao mesmo tempo em que inicia seus estudos de teologia e filologia clssica em Bonn, adere uma Associao filolgica de nome Franconia. Porm, no ano seguinte a abandona por no concordar com seu materialismo cervejeiro Cf. SAFRANSKI, Rdiger. Nietzsche: biografia de uma tragdia. Trad. Lya Luft. So Paulo: Gerao Editorial, 2001. p. 325-327 46 Cf JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche vol. 1. p. 55. 47 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 78.

  • 31

    O que no o impedir de reclamar constantemente da dificuldade em compor em

    alto estilo os seus poemas.

    O jovem Nietzsche no se detm, naturalmente, em um conhecimento

    especfico ou especializado. Seu desejo por uma formao universal.

    Atualmente estou tomado por um imenso desejo de saber, de conhecimento

    universal. Humboldt que me indicou esta direo48, nos declara.

    Busca o conhecimento, mas seu interesse mltiplo. Ele contempla

    msica, poesia, histria, geografia, matemtica, arquitetura, artes da guerra,

    pintura, literatura, geologia, astronomia e mitologia. Enfim, mostra-se interessado

    por todo o conhecimento disponvel em seu tempo e que teve ou quis ter acesso.

    Nesta direo faz uma tentativa de organizao do conhecimento adquirido e, ao

    que parece o dispe por ordem de preferncia. Registra estes dados em sua

    autobiografia juvenil:

    I Os prazeres da natureza:

    a) Geologia;

    b) Botnica;

    c) Astronomia.

    II Os prazeres da arte:

    a) Msica;

    b) Poesia;

    c) Pintura;

    d) Teatro.

    III A imitao da ao e das prticas humanas:

    a) A guerra;

    b) A arquitetura;

    c) A marinha.

    IV A preferncia pelas cincias: 48 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 79.

  • 32

    a) Escrever em latim em um bom estilo;

    b) A mitologia;

    c) A literatura;

    d) A lngua alem.49

    Vale notar que o jovem Nietzsche, ento com 15/16 anos, em suas frias

    de vero, apresenta alguns dos conhecimentos com que entrara em contato em sua

    formao escolar at o momento. Os conhecimentos esto organizados por grupos

    seguindo uma classificao determinada por ele e escalonada segundo seus

    prprios critrios.

    interessante ressaltar que alguns conhecimentos so agrupados

    enquanto prazeres ao passo que outros, apesar de figurarem como preferncias,

    no seguem a mesma designao, o que poderia indicar uma ordem de gosto pelo

    acesso atravs da leitura ou ainda das aulas que assistira em Pforta, ou mesmo em

    Naumburg.

    Assim, entre os prazeres da natureza Nietzsche apresenta a geologia

    em primeiro lugar, seguida de botnica e da astronomia. Da mesma forma, entre

    os prazeres da arte, apresenta em primeiro lugar a msica seguida da poesia, da

    pintura e do teatro. Isto pode ser compreendido pela sua formao artstica. Bem

    sabemos do intenso estmulo com relao msica recebido por Nietzsche desde

    criana, por exemplo, quando freqentou a casa dos Krug, um ambiente altamente

    dirigido para a msica, entre outros estmulos.50 Por exemplo, no rol de suas

    produes artsticas, figuram tanto composies musicais quanto poemas. bem

    49 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 80-81 50 Acerca do desempenho musical do jovem Nietzsche ver JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche vol. 1. p. 51 et. seq.

  • 33

    verdade que os poemas superam em quantidade as composies musicais. Por

    outro lado, apesar de figurarem como prazeres seus, a pintura e o teatro no

    seriam praticados por Nietzsche, mas apenas admirados.

    O terceiro ponto da lista relacionado imitao da ao e s prticas

    humanas. A guerra pontuada em primeiro lugar, o que nos parece bastante

    revelador da formao de Nietzsche. sabido que na escola em Naumburg

    iniciara com seus amigos a confeco de um dicionrio da guerra. Este trabalho

    no veio a obter finalizao. Da mesma forma, as brincadeiras preferidas eram as

    de representaes blicas com soldadinhos de chumbo.

    Segundo o prprio Nietzsche, a Guerra da Crimia (1853-1855), entre

    Turcos e Russos era acompanhada com grande interesse e representada at o seu

    desfecho na batalha de Sebastopol onde a Torre de Malakoff foi tomada pelos

    turcos. Essas brincadeiras eram estimuladas pelo diretor e professor da escola, o

    professor Weber. Assim, os pequenos alunos, no s brincavam tendo como

    temtica a guerra, como tambm escreviam pequenos livretos de estratagemas

    onde exercitavam o seu gosto pela disputa blica alm de seu sentido de nao.51

    A arquitetura parece ter sido uma descoberta por parte de Nietzsche

    especialmente em suas viagens de frias, ao menos o que relata no vero de

    1859, quando visita seus tios, que ainda no conhecia, em Deutschental. Em seus

    registros, alm de apresentar novas leituras a que tem acesso, tal como a leitura de

    Novalis, Geibel, Redwitz e Viechoff que comenta os poemas de Schiller,

    apresenta relatos pormenorizados da arquitetura dos locais que visita com o tio. 51 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 23.

  • 34

    Muitas vezes atravs de uma aguda observao dos aspectos arquitetnicos, sente-

    se como que inebriado pelo ideal romntico de valorizao da Idade Mdia.52

    No ltimo bloco, Nietzsche apresenta sua preferncia pelas cincias do

    esprito, representadas pelo estudo do latim, escrito em bom estilo, pela mitologia,

    pela literatura e pela lngua alem colocada em ltimo lugar. O estilo da escrita

    como podemos reafirmar, figura-se como uma das grandes preocupaes de

    Nietzsche. Posteriormente ir lamentar o fato de ter escrito sua autobiografia

    juvenil por no possuir neste momento justamente um estilo de que pudesse se

    orgulhar. 53

    Ao que nos consta, ao lado da aquisio de um conhecimento universal,

    desenvolver um estilo prprio era um dos maiores objetivos que Nietzsche

    buscava em suas leituras. Isto refora a premissa de que, atravs da leitura e do

    desenvolvimento da escrita, ele tinha por objetivo, acima de tudo, descobrir e

    revelar seu prprio estilo. Reconhece ento a necessidade de imitao, e o grande

    papel que suas leituras iro desempenhar: Goethe, Schiller e Schopenhauer em

    especial. atravs da imitao que a criana aprende para poder criar por si

    mesma sem a necessidade de guias.

    Ainda acerca destas ltimas preferncias de Nietzsche, convm ressaltar

    que ele ir demonstrar j sua inclinao pela filologia e pela Antiguidade, ao

    destacar a mitologia e a literatura como cincias preferidas. Fato que ser

    52 Apresenta esta sensao ao visitar o vilarejo de Kunitzburg com o seu tio. Ver. NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 76. 53 Por exemplo em NIETZSCHE, F. Correspondncia. Carta 06. A Gersdorff: 06 de abril de1867.

  • 35

    consumado ao iniciar o estudo da teologia em Bonn e sua desistncia ao ter se

    identificado com Ritschl, seu querido professor de filologia clssica.

    Convm ressaltar que no h a presena nem espao nesta qudrupla

    relao de saberes para a matemtica, a grande dificuldade de Nietzsche durante a

    sua formao escolar, ao menos o que nos indicam os bigrafos54 e o prprio

    Nietzsche no aforismo 195 de Aurora. Todavia, a matemtica no estava de todo

    ausente dos projetos de Nietzsche neste momento, se no aparece como um dos

    saberes na taxionomia dos seus saberes preferidos, ela aparece juntamente com as

    artes, em seus projetos de formao futura e/ou aprofundamento de estudos:

    V O desejo profundo de uma formao universal que fundamente todas as outras cincias e muitas das coisas novas para mim:

    As lnguas

    1) O hebreu

    2) O grego

    3) O latim

    4) O alemo

    5) O ingls

    6) O francs, etc.

    As artes

    1) As matemticas

    2) A msica

    3) A poesia

    4) A pintura

    5) A escultura

    6) A arquitetura, etc.

    As imitaes

    7) A cincia militar

    8) A cincia martima

    9) O conhecimento das diferentes indstrias, etc.

    O saber

    1) A geografia

    2) A histria

    3) A literatura

    4) A geologia

    5) A histria natural

    6) A Antiguidade, etc.

    Sobretudo a religio que o fundamento de todas as cincias!

    54 Cf. JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche vol. 1. p. 66-67.

  • 36

    Imenso o domnio do saber, infinita a procura da verdade!55

    Nota-se que o plano de formao que Nietzsche aponta em sua

    autobiografia era abrangente e diversificado. Assim, num primeiro momento

    Nietzsche apresenta uma hierarquia de seus gostos acerca do saber pontuando as

    reas que lhe fornecem maior prazer ao conhecer, ou seja, os conhecimentos

    referentes natureza e arte.

    Num segundo momento, Nietzsche apresenta-nos um projeto de estudos

    igualmente universais que, dividido em grandes reas, inclui a matemtica no

    campo das artes e a histria no campo do saber. Mas tambm a escultura, no

    campo das artes, o conhecimento sobre as diferentes indstrias no campo das

    imitaes e outras lnguas que no aparecem a princpio no quadro de suas

    preferncias, tais como o grego, o ingls e o francs. claro, a cada grande rea e

    seus componentes, Nietzsche conclui com um enigmtico etc. Indicando que no

    se trataria apenas destes conhecimentos, mas muitos outros.

    interessante levantar a hiptese provvel que este gosto pelo

    universalismo tenha sido cravado em Nietzsche pela escola de Pforta. Acerca disto

    escreve Nietzsche a Gersdorf em 25 de maio de 1865, comentando seus

    professores em Bonn, neste caso particular Springer, um renomado professor de

    histria da literatura.

    Acredito que voc (Gersdorff) tenha inclinao e capacidade para estudar lngua e literatura alems, e o que mais importante, que ters fora de vontade para abarcar o enorme e nem sempre interessante

    55 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 81..

  • 37

    material prprio deste terreno. Para isto temos adquirido uma boa preparao em Pforta.56

    E, na mesma correspondncia, aps revelar seu desejo de abandonar o

    estudo da teologia em prol da filologia, de abandonar Bonn e estudar em Leipzig e

    de tomar partido de Ritschl em sua polmica com Otto Jahn, tece o seguinte

    comentrio onde avalia o ensino de sua antiga escola:

    J entreguei h tempo meu trabalho sobre Danae, assim fui aceito como membro provisrio do seminrio filolgico (refere-se a Leipzig). Havia apenas quatro postos para membros fixos e trs deles foram conquistados por antigos alunos de Pforta: Haushalter, Michael e Stedtefeld. Trata-se de um grande triunfo para a velha Pforta. No dia de sua festa anual, todos os antigos alunos se encontraram aqui. Enviamos um telegrama ao claustro dos professores, recebendo um retorno muito amvel.57

    Ou seja, o Jovem estudante de teologia, convertido filologia, sente-se

    muito preparado para os novos desafios, assim, mostra-se orgulhoso de ter

    freqentado uma escola com as caractersticas de Pforta. por conta deste orgulho

    que continuou a escrever sua autobiografia aps ter concludo sua formao na

    velha escola de Schiller.

    Nos escritos do ano de 1864, Nietzsche revela que seu objetivo com sua

    autobiografia deix-la como uma herana sua escola que para ele, ... exerceu

    sobre minha formao espiritual uma influncia considervel e inesquecvel...58

    Podia perceber agora que novos olhares se apresentavam ao seu esprito e um

    crculo maior da cultura poderia ser vislumbrado e poderia perseguir um novo

    56 NIETZSCHE, F. Correspondncia. Carta 09. A Gersdorff: 25 de maio de 1865. 57 Ibidem. loc. cit.. 58 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 132.

  • 38

    rumo no caminho j indicado pelas sendas abertas a partir de seus estudos

    humansticos em Pforta.

    Um aspecto do mtodo didtico de Pforta destacado por Nietzsche que

    nos salta aos olhos, inclusive pela relevncia que parece desempenhar na figura do

    leitor desejado por Nietzsche, o aspecto da constante reviso do saber, includa

    na metodologia da aprendizagem escolar. Assim, ao anunciar os horrios de sua

    escola interna, Nietzsche no deixa de destacar os momentos dedicados reviso

    do que fora aprendido. Vejamos a organizao do tempo e dos trabalhos normais

    do perodo da manh na escola de Pforta:

    As portas do dormitrio so abertas s quatro horas da manh. A partir deste momento, cada um est livre para se lavar. s cinco horas, ao som do sino, todo mundo deve ter terminado. Os supervisores dos dormitrios chamam em um tom ameaador: Vamos, vamos, saiam da cama! E eles punem aqueles que demoram em deixar as cobertas. Cada um, ento, depois de se pentear rapidamente o melhor possvel corre para o banheiro para encontrar ainda um lugar, antes que todos sejam ocupados. Dez minutos depois desse asseio rpido, voltamos aos quartos e cada um deve por ordem em suas roupas. s cinco e vinte e cinco, a primeira sirene chama para a orao e na segunda sirene ns devemos estar no oratrio. Antes que o professor chegue, todos se colocam em silncio e aguardam sentados os retardatrios. Depois o professor aparece acompanhado dos supervisores que verificam se os bancos esto todos completos. O rgo tocado e aps um curto preldio, ns entoamos um canto matinal. O professor l uma passagem do Novo Testamento que interrompida de tempos em tempos por um canto litrgico. Ento recitamos o Pai Nosso e nos dispersamos. Cada um retorna para sua cama onde se encontra um copo de leite quente e pequenos pes. s seis horas exatamente, os sinos soam chamando para as aulas. Cada um pega seus livros e vai para as salas onde ficamos at as sete horas. Trata-se de uma hora de trabalho chamada hora de reviso e, enfim, aula at o meio-dia. O fim de cada lio e de cada hora de trabalho anunciado por uma sirene. Ao meio-dia, guardamos apressadamente os livros no quarto...59

    A partir destas anotaes de Nietzsche em seu dirio, podemos ter idia

    de como era sua rotina de aluno interno no perodo da manh durante a semana, a

    59.. NIETZSCHE, F. le 9 aot. In: crits autobiographiques 1856-1869. p. 50-51.

  • 39

    qual nos parece dotada de uma grande rigidez, especialmente se a cotejarmos com

    a atualidade. Destacamos o horrio destinado reviso do contedo que se repetia

    por mais algumas horas no perodo da tarde durante a semana e aos domingos pela

    manh.

    Pelo que nos consta, essa prtica era muito valorizada pela escola que

    prezava pelo seu bom andamento. Era comum incluir um acompanhamento para

    as classes iniciais, normalmente realizado por alunos das classes mais adiantadas.

    Posteriormente, o acompanhamento era realizado por um professor responsvel

    pela orientao dos trabalhos escolares do estudante, uma espcie de orientador da

    formao.

    Isto nos parece revelador especialmente em dois sentidos. Em primeiro

    lugar, no cultivo da disciplina de leitura que se objetivava estimular nos jovens

    aprendizes. Essa prtica fora muito assimilada por Nietzsche, que no s cumpria

    com zelo as atividades rotineiras normais da escola, como tambm as de

    acompanhamento ou reviso. Podemos notar que Nietzsche no s incorporou a

    disciplina para o estudo durante o perodo escolar como tambm durante as frias

    e momentos em que no estava vinculado escola, como j pontuamos

    anteriormente.

    Em segundo lugar, os momentos dedicados reviso, onde se podia

    reforar o contedo ou fazer os deveres de Grego, Latim ou Matemtica, parecem

    terem exercido sobre Nietzsche uma marca igualmente forte. Posteriormente

    Nietzsche ir valorizar muito estes momentos. Por exemplo, em suas crticas s

  • 40

    escolas em O futuro de nossos estabelecimentos de ensino, ou ainda quando

    desenhar o perfil do leitor sem pressa e ruminante que desejava. Tambm nas

    Extemporneas ou em Aurora, reclamar do tempo cada vez menor que se

    destinava a rever, a retomar o saber apreendido.

    Ou seja, a disciplina para a leitura e a produo de textos que iro marcar a vida

    e o pensamento de Nietzsche, alm da capacidade ruminativa necessria para ler

    intensamente os textos, parecem ter sido reforados, seno cultivados, pela velha Escola

    que Nietzsche tanto se orgulhou de ter feito parte. Ele sentia-se agradecido, mas no

    deixava de formular algumas crticas no momento mesmo que conclua seus estudos

    ginasiais. Para ele, o grande inconveniente que pde sentir foi a falta de um olhar

    paternal, que pudesse orientar sua sede de novidade e de saber, uma vez que se sentia

    espiritualmente desorientado, vagando na universalidade do saber.

    Esta universalidade, posteriormente tida como algo a ser superado, fora

    ento seu objetivo dos 9 aos 14 anos, quando se insere em um grupo de leitura,

    debates e produes literrias e musicais, a Germnia, a primeira associao de

    autoformao de que Nietzsche fez parte. O Jovem ao findar seus estudos em

    Pforta avalia estas experincias sobre sua vida:

    Quando eu cheguei Pforta, eu j tinha lanado um olhar sobre quase todas as cincias e as artes, e eu possua um interesse por tudo, exceo feita s cincias racionais, especialmente as matemticas que me provocavam sempre um soberano enjo.Com o tempo eu desenvolvi uma averso por este vaguear sem planos por todos os domnios do saber. Eu queria definir os limites e penetrar profundamente em um domnio determinado. Este esforo encontrou ressonncia de forma muito agradvel em uma pequena comunidade cientfica que fundei com meus amigos diante dos mesmos interesses de encorajar nossa formao.60

    60 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869.p. 133.

  • 41

    Assim, Nietzsche avaliava que a Germania teria oferecido um

    contraponto universalidade do ensino oferecido pela Escola Mdia de Pforta.

    Reconhecia o valor da metodologia rgida, mas sentia-se perdido diante do

    universo do conhecimento e, nestes termos, reclamava uma direo para seus

    estudos. Dessa forma ele s teria uma posio mais definida com relao

    dicotomia universalidade versus especializao quando conclusse o Ginsio e

    estivesse prestes a iniciar um curso superior.

    Neste momento, sente-se inclinado pelos estudos clssicos. Lembra-se do

    grande prazer que lhe havia proporcionado a leitura de Sfocles, squilo e Plato,

    do qual destaca especialmente o Banquete.61 Assim, conclui seus tempos de Liceu

    com o intuito de: combater a propenso de tudo saber superficialmente,

    encorajar ento, meu desejo de remontar aos fundamentos de uma cincia

    singular.62 com este esprito que ingressa em Bonn, na faculdade de Teologia,

    mas aps conhecer Ritschl, inclina-se para a filologia clssica, a disciplina que

    mais lhe interessava no momento.

    Em vrias passagens de sua autobiografia Nietzsche revelou este interesse

    pelos estudos clssicos que iria procurar aperfeioar mais tarde, o que o levaria

    por mrito a ser professor de filologia clssica na Universidade da Basilia.

    Reconhece que mesmo antes de ingressar em Pforta, em termos musicais, j

    prezava pelo clssico, neste sentido escreve em 1858: Eu odiava todo tipo de

    msica moderna e tudo o que no era clssico. Mozart e Haydn, Schubert e

    61 Cf. Ibidem. p. 134. 62 Ibidem. loc. cit..

  • 42

    Mendelssohn, Beethoven e Bach So as bases da msica alem e as colunas sobre

    as quais eu me apoiei.63 Ele entende a msica, neste momento, como algo divino,

    um dom que Deus concede s pessoas para que possam voltar seu olhar para os

    cus, para alm de si. Este ser o objetivo integral da msica clssica executada

    pela esmagadora maioria dos msicos que recebem o epteto de clssicos na

    Alemanha, todos citados por Nietzsche como sendo sua base musical.

    Esta msica tem o poder para Nietzsche de conduzir o esprito humano ao

    conhecimento do Bem e do Verdadeiro, ao contrrio da msica moderna. Para ele,

    a msica moderna s possui o objetivo de divertimento, de espetculo, para tanto,

    a maioria dos compositores se esforariam para compor de forma obscura e

    enigmtica. Assim, as cabeas pensantes abortam a possibilidade de elevao que

    a msica pode proporcionar e cultivam o tdio e o esvaziamento do esprito,

    aproximando-os das bestas.64

    Novamente, em sua autobiografia, revela nas frias de 1859 quando faz

    uma estadia em Iena, que seu maior prazer era encontrar nas ruas e praa os nomes

    dos grandes espritos de sua nao: Lutero, Goethe, Schiller, Klopstock,

    Winkelman e muitos outros.65 Nietzsche revela o seu gosto pelo conhecimento

    que estava recebendo em Pforta, o conhecimento do que era clssico na cultura

    alem. E isto ir marcar sua viso de mundo neste momento, ao sentir prazer em

    identificar nas ruas o que podia ler nos livros, mas tambm orientar seu processo

    de leitura. Assim, ele revela em seus registros de 15 de agosto de 1859:

    63 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 30. 64 Ibidem. p. 37-38. 65 Ibidem. p. 46.

  • 43

    Devemos ler todos os escritores por diversas razes: no somente pela gramtica, pela sintaxe e o estilo, mas tambm pelo contedo histrico e pela viso espiritual. Devemos ler os poetas gregos, latinos e os clssicos alemes e comparar suas formas de ver. Devemos nos preocupar com a histria conjuntamente com a geografia e as matemticas em ligao com a fsica e a msica. Dessa forma, colheremos os nobres frutos da rvore da verdade, habitados por um esprito, iluminados por um sol.66

    Assim, importava para Nietzsche ler e comparar as formas de ver o

    mundo dos poetas gregos e latinos antigos com os escritores clssicos alemes, era

    preciso considerar suas concepes espirituais do mundo mas tambm as

    histricas, para alm da gramtica, da sintaxe e do estilo. Por outro lado, isto nos

    parece bastante revelador, no possvel ater-se apenas histria para

    compreender estes autores mas necessrio considerar um conjunto amplo de

    conhecimentos para que a verdade possa ser iluminada por um sol.

    preciso considerar a geografia, a matemtica, a fsica e a msica,

    atentando para suas interligaes. Esta perspectiva nos parece bastante marcante

    neste momento e indicativa da profundidade da reflexo do jovem leitor. Ler nesta

    concepo significa apontar para as mltiplas relaes que se possa fazer entre as

    variadas outras leituras e mltiplas possibilidades de compreenso dos fenmenos.

    Ao fim deste tpico, notamos que, para alm do gosto pela leitura

    desenvolvido por Nietzsche desde sua mais tenra infncia e de sua preocupao

    com a aquisio de um conhecimento universal, no final de seus estudos em

    Pforta, ele est preocupado com o desenvolvimento de um mtodo de leitura que

    lhe possa garantir o domnio de uma especialidade do conhecimento.

    Identificamos um leitor voraz preocupado com a leitura intensiva dos textos, o 66 NIETZSCHE, F. crits autobiographiques 1856-1869. p. 57.

  • 44

    maior nmero deles, diga-se de passagem. A filologia clssica ir fornecer,

    momentaneamente, a resposta a suas preocupaes de autoformao, mas que ser

    a seu tempo criticada e modificada para atender os objetivos nietzscheanos, como

    ainda veremos. Reconhecemos a questo do da autoformao e do

    autoconhecimento que a leitura e a escrita podem proporcionar como um pano de

    fundo marcado pela busca do estilo, uma constante para o jovem filsofo que j

    comea a ver a leitura como um caminho para o domnio de conceitos que

    pudessem torn-lo mais forte para a guerra contra os valores que lhe foram

    inculcados desde a infncia. Talvez seja por isso que Nietzsche revira com tanta

    nfase sua produo juvenil. Quer ver at onde foi e at onde poder chegar.

    2. A DEFESA DE UMA LEITURA LENTA COMO FUNDAMENTO EDUCATIVO E CULTURAL

    No prefcio das Conferncias sobre o futuro de nossos estabelecimentos de

    ensino (1872), Nietzsche nos revela uma importante pista sobre o tipo de leitura

    que concebia como ideal, e mais, o tipo de leitor que ele prprio almejava para

    seus textos. Certamente o leitor implcito que Nietzsche sugere tem relaes

    diretas com o tipo de leitura que ele realizava dos textos que lhe chegavam.67

    Para ele o leitor ideal deveria ter trs caractersticas essenciais. Em primeiro

    lugar, ele deveria ler sem pressa. Em segundo lugar, deveria ler sem interpor a sua

    67 A causa wagneriana cultivar no jovem Nietzsche a esperana de encontrar esse leitor. Desenvolveremos essa questo no ltimo captulo: O jovem Nietzsche leitor de Wagner.

  • 45

    cultura do texto, criando assim barreiras que pudessem prejudicar o

    entendimento do mesmo. E por fim, o leitor no deveria ler como quem procura

    um quadro de receitas e de resultados prontos e acabados.68

    Como podemos perceber, Nietzsche contraria uma tendncia em seu tempo,

    o da leitura cada vez mais apressada, a partir do volume sempre maior de

    informaes disponveis e de um aumento do universo de leitores que se operava

    como conseqncia da expanso do ensino na Alemanha comandada pela

    Prssia69.

    Ao contrrio, Nietzsche desejava um leitor que no fosse dominado pela

    pressa vertiginosa que a todos contagiava. Poucos eram os homens capazes de

    encontrar o tempo perdido para meditarem sobre a leitura e assim tornarem-se

    capazes de vislumbrar o futuro da cultura70 Para Nietzsche a leitura deveria ser

    lenta, capaz de decifrar o segredo das entrelinhas. O leitor deveria poder meditar

    um longo tempo sobre o que leu, mesmo depois de ter fechado o livro. A

    meditao fundamental para a compreenso da leitura. Do contrrio, afirma

    Nietzsche, o leitor apressado e voltado para a ao, torna-se incapaz de colher o

    68 Cf. NIETZSCHE, F. Sur lavenir de nos tablessiments denseignement. In: crits posthumes 1870-1873. Textes e variants tablis par G. Colli et M. Montinari. Traduits de lallemand par Jean-Louis Backes, Michel Haar et Marc B. de Launay. Paris: Gallimard, 1975. p 78. Prefcio 69 Acerca deste assunto gostaramos de remeter o leitor ao captulo Nietzsche e o tempo das consideraes fora do tempo de SOCHODOLAK, Hlio. op. cit. p 47-69, onde procuramos entender o momento histrico da Alemanha em que viveu Nietzsche. Observava-se um crescimento sem precedentes das escolas e da oferta de textos a serem lidos, seja de jornais, como de livros, que se popularizavam. Procuramos compreender Nietzsche a partir de suas relaes com o Estado, de sua postura na Universidade como professor e de sua convivncia com os amigos. Enfim, procuramos entender o pensador a partir das vivncias estabelecidas com o seu tempo. 70 NIETZSCHE, F. Sur lavenir de nos tablessiments denseignement. In: crits posthumes 1870-1873. Prefcio e passim.

  • 46

    verdadeiro fruto que a leitura pode proporcionar, a ponto de podermos afirmar que

    ele no entende realmente o que l. 71

    A escrita deveria acompanhar a qualidade da lentido. Numa carta enviada

    a Rohde em 22 de maro de 1873 faz a seguinte afirmao ao amigo: Eu espero

    poder te enviar em breve, para anlise, uma grande parte do meu livro sobre a

    filosofia grega que est em lenta gestao72 Essa idia parece sintetizar a

    perspectiva do jovem Nietzsche tanto da leitura, quanto da escrita: uma gestao.

    So necessrios leitores ideais para que isto possa ocorrer.73

    Nietzsche estaria defendendo um processo artstico de leitura. Com

    objetivos muito semelhantes aos de Wagner com a sua obra total para o qual,

    acima de tudo, fundamental arrebatar o leitor-espectador atravs de um total

    envolvimento do mesmo, seja nos seus aspectos visuais, como nos sonoros. Ento

    lentido e arrebatamento tornam-se atributos fundamentais para quem l e

    objetivos para quem escreve. 74

    Quem l, se o fizer com pressa, no ser capaz de envolver-se com o texto e

    utiliz-lo, sobretudo, em seu autoconhecimento. Quem escreve deve almejar faz-

    71 Cf. NIETZSCHE, F. Sur lavenir de nos tablessiments denseignement. In: crits posthumes 1870-1873. p. 79. 72 NIETZSCHE, F. Correspondance II Avril 1869-dcembre 1874. Textes tablis par Giorgio Coli et Mazzino Montinari. Trad. De Jean Brjoux et Maurice de Gandillac. Paris: Gallimard, 1986. Carta 300. A Rohde: 22 de maro de 1873. 73 Posteriormente no prefcio da Genealogia da Moral (1887) Nietzsche reitera as qualidades do leitor que almeja e, evidentemente, da forma da leitura de que partidrio. Para ele, por exemplo, a respeito de seu Zaratustra ... no o pode compreender seno o leitor a quem tenha impressionado ou entusiasmado cada uma de suas palavras: s ento gozar o privilgio alegrico donde esta obra nasceu, e sentir venerao pela sua resplandecente claridade, pela sua amplitude, pelas suas perspectivas longnquas e pela sua certeza. Cf. NIETZSCHE, F. A genealogia da moral. Trad. Carlos Jos de Meneses. Lisboa: Guimares editores, 1983. p. 16. 74 No ltimo captulo dessa tese acompanhamos como Wagner e Cosima, por um lado, tornam-se leitores ideais dos textos de Nietzsche, por outro lado, Wagner e seu drama musical fornecem a Nietzsche a chave para pensar a articulao perfeita entre msica e palavra.

  • 47

    lo como quem toca ao piano75, ou seja, deve aspirar atingir o leitor intimamente e

    arrebat-lo, como somente um artista capaz de fazer. A leitura entendida como

    arte. Para Nietzsche:

    Verdade seja que, para elevar assim a leitura dignidade de arte mister, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida (por isso h-de passar muito tempo antes dos meus escritos serem legveis) uma faculdade que exige muitas qualidades bovinas, e no de um homem de fim-de-sculo. Falo da faculdade de ruminar. 76

    Percebe-se, pois, que o leitor ideal aquele que l de uma forma lenta e

    ruminativa, ou seja, capaz de sentir o sabor e toda carga de sentimentos que a

    palavra capaz de transmitir. Enfim, um leitor-artista capaz de sorver as

    qualidades tambm artsticas do texto. A lentido parece ser uma qualidade

    bovina indispensvel ao leitor nietzscheano, qualidade que o filsofo no

    presenciou no fim do sculo XIX, especialmente na Alemanha com seus

    estabelecimentos de ensino modernos.

    A segunda caracterstica exigida por Nietzsche para o seu leitor aquela

    que possibilita um certo distanciamento de seus valores no ato de ler. Seus valores

    podem criar barreiras para a compreenso do texto, uma vez que este pode lidar

    com valores adversos aos seus. Num outro prefcio (1886), desta vez de Aurora

    (1881), Nietzsche parece explicar melhor esta qualidade desejada. Para ele:

    (...) efetivamente esta arte venervel que exige de seu admirador antes de tudo, uma coisa: manter-se afastado, ocupar o seu tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento, - como uma arte, um conhecimento de ourives aplicado palavra, uma arte que tem para executar apenas trabalho sutil e cauteloso e que no chega a lado algum se no for lentamente.(...) Quanto nossa arte, ela no ps fim facilmente ao que quer que fosse, ela ensina a ler convenientemente,

    75 NIETZSCHE, F. Correspondncia. Carta 20. A Gersdorff. 6 de abril de 1867. 76 NIETZSCHE, F. A genealogia da moral. p. 16.

  • 48

    quer dizer: lentamente, profundamente, olhando com prudncia para trs e para diante de si, com pensamentos ocultos, com as portas abertas, com os dedos e os olhos sutis77

    Assim, alm da lentido, a primeira caracterstica do leitor ideal, preciso o

    afastamento, o distanciamento com relao aos valores do tempo presente, para

    que se possa olhar com cautela para trs e para frente de si. Ou seja, preciso um

    esquecimento do eu e manter os pensamentos ocultos, para uma leitura

    conveniente. Do contrrio, como manter as portas abertas, com os dedos e os

    olhos sutis?

    Os leitores modernos, imbudos pelos valores e rudos do presente, que

    estimam mais a quantidade do que a qualidade, tornam-se incapazes de ler

    lentamente, de absorver toda a carga valorativa da autntica cultura, esta

    exemplificada por Nietzsche em inmeras vezes com a cultura grega antiga pr-

    platnica.

    No se trata de passividade na leitura, mas ao contrrio, trabalho de arteso,

    de artista, de decifrao, que nunca se obtm numa primeira vez, muito menos

    numa leitura apressada. Exige disciplina, distanciamento dos valores pessoais,

    econmicos ou polticos e domnio de certas tcnicas de leitura.78 Enfim, sem o

    distanciamento necessrio, o leitor moderno torna-se incapaz de ler e de

    compreender realmente o que l.

    Por fim, a terceira qualidade do leitor esperado por Nietzsche parece lan-

    lo ainda mais na contramo dos leitores de seu tempo, ou seja, a de ler sem 77 NIETZSCHE, F. Aurora. Trad. Rui Magalhes. Porto: Rs, 1977. p. 11. 78 Nesses termos, a filologia parece ter correspondido, ao menos por um perodo, s suas expectativas metodolgicas de leitura. Abordaremos na seqncia esta questo.

  • 49

    objetivar uma aplicao prtica e imediata para a sua leitura. Sem desejar quadros

    de resultados como o quer a barbrie alem atual79, nos aponta Nietzsche. O

    leitor deve almejar apenas meditar sobre a cultura e jamais sentir remorsos ao

    dedicar seu tempo a um assunto que no possui fins prticos imediatos. Alis, a

    cultura parece ser, no entender de Nietzsche, o avesso de objetivos prticos e

    imediatos. Da sua grande preocupao sobre o futuro dos estabelecimentos de

    ensino alemes voltados para tais objetivos sob o nome de culturais.