sobreviventes do apocalipse - perse · tudo que me resta de fôlego para chegar até ele, entrar e...

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1 Sobreviventes Do Apocalipse WESLEY COELHO JAÍNE BELMONTE Primeira Edição

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Sobreviventes Do Apocalipse

WESLEY COELHO JAÍNE BELMONTE

Primeira Edição

2

São Paulo

2013

© 2013 by Wesley Coelho, Jaíne Belmonte

Todos os direitos reservados, incluindo direito de repro

dução integral ou parcial em qualquer meio.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e

incidentes são produtos da imaginação do autor, ou usados fic-

ticiamente, qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas,

estabelecimentos comerciais, eventos ou localidades é mera

coincidência.

________________________________________________

ISBN 978-85-8196-563-5

________________________________________________

Sobreviventes do Apocalipse também está na internet

www.sobreviventesdoapocalipse.com.br

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PRÓLOGO

Estou apavorado, cansado e sem nenhuma bala no pente; tem

cerca de dez canibais atrás de mim, quanto mais fujo e me canso, apa-

rece outro.

Não consigo mais correr, meus batimentos estão muito acele-

rados, tanto que sinto a camisa – grudada em meu peito suado – pul-

sando junto com o meu coração. Não aguento mais correr, desisto!

Estou pronto para desistir, mas vejo uma luz no fim do caminho: um

Celta, com a porta traseira aberta, alguns metros a minha frente. Uso

tudo que me resta de fôlego para chegar até ele, entrar e fechar a porta;

porém ao batê-la, o vidro que já estava danificado, se quebra de vez.

Estilhaços atingem meu rosto, um deles acerta o meu olho esquerdo,

me deixando momentaneamente cego de dor. Penso em escapar pela

outra porta, mas é tarde, eles me alcançaram e cercaram o veículo.

Sinto uma mão gelada, gosmenta e quase toda decomposta agarrar meu

braço. É meu fim. Sinto a criatura me puxar para fora com uma força

descomunal, não consigo reagir ao seu ataque. Olho de relance para o

rosto dele – ou para o que um dia foi um rosto –, com meu olho bom e

vejo seus dentes pretos, com alguns resíduos de carne recém-mastigada

entre eles, vindo em direção do meu pescoço, minha única opção é

gritar.

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CAPÍTULO 1

Acordo assustado e me sento repentinamente na cama, só lem-

bro que estou na parte debaixo de um beliche depois da pancada que

levo na cabeça.

– O que aconteceu Thomas? Está ficando louco?

Minha irmã que dormia na cama de cima, agora está pendura-

da de ponta cabeça entre as duas camas, me fitando com cara de pou-

cos amigos.

– Nada Julia... Tive outro pesadelo com zumbis, só isso.

Ela volta a se deitar e resmunga:

– Merda, isso que dá dormir no quarto de irmão mais novo!

O que eu posso fazer? Sei que zumbis são apenas obras de fic-

ção, mas eu não deixo de acreditar, ela não acredita em vampiros por

causa daquele tal de crepúsculo? Cada louco com sua mania!

Depois do susto, passo a noite inteira em claro, com medo de

ser "atacado" novamente. Um mês atrás, aluguei mais de 10 filmes de

zumbis após escutar as palavras de um pastor lendo algumas parábolas

do apocalipse. Depois de assistir alguns filmes como: Madrugada dos

mortos, Terra dos Mortos, e tudo mais sei-lá-o-que-dos-mortos, esses

pesadelos começaram a me atormentar.

Reflito por um bom tempo, espero realmente não estar per-

dendo a sanidade... Há um brilho tênue no quarto, o sol já deve estar

nascendo, mas antes que sua luz possa chegar até mim, adormeço.

Acordo algumas horas depois com uma voz doce chamando pe-

lo meu nome. É minha mãe, Diane, uma mulher de meia idade, muito

bonita, possui olhos castanhos escuros que combinam com seus cabelos

que tem a mesma cor, pele branca e bem cuidada, as rugas quase não

podem ser notadas. É uma pessoa muito tranquila mesmo diante de

todos os problemas que a vida lhe dá.

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– Já é quase meio dia, desça logo Thomas!

Viro-me na cama com a esperança de voltar a dormir, mas ela

me chama novamente, levanto e desço até a cozinha. Julia já está sen-

tada a mesa, enquanto minha mãe termina de preparar o almoço.

– Thomas, pode subir até seu quarto e trazer as roupas sujas pa-

ra mim?

Entre um bocejo, respondo:

– Com certeza mãe.

Há cinco anos, na véspera de natal, minha mãe saiu para com-

prar as coisas para a ceia, estava chovendo muito e na volta para casa,

acabou perdendo a direção do carro e batendo em um poste. Ela ficou

em estado grave, permaneceu em coma por dois meses e quando se

recuperou dele, os médicos afirmaram que os danos ao cérebro tinham

a deixada paraplégica. Sugerimos que nos mudássemos para uma casa

térrea, mas ela nunca aceitou. Adaptou o primeiro andar da casa, onde

ela passa a maior parte do tempo, já que não pode subir para o outro

andar, transformou a sala no seu quarto e nunca deixou de acreditar na

sua recuperação, embora os médicos afirmem que os danos causados

pelo acidente foram permanentes. Não posso culpá-la, afinal, a espe-

rança é o que mantêm as pessoas vivas, mesmo diante de todas as difi-

culdades.

Moramos numa bonita casa em uma região de classe média na

cidade de Santo André, do Grande ABC de São Paulo. No andar debai-

xo fica a cozinha, o quarto dos meus pais e a lavanderia. No segundo

andar fica meu quarto, o de Julia – que está em reforma devido a uma

infiltração –, e o quarto de hóspedes. A casa toda é muito bem arejada

e espaçosa, talvez tenha sido por isso que mamãe nunca quis deixá-la.

Chegando ao meu quarto, olho para a televisão que minha irmã deve

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ter esquecido ligada. Vou em direção dela para desligar, mas uma re-

portagem que está passando prende minha atenção.

O repórter está em uma estrada de terra acompanhado de um

homem, ambos usam trajes muito parecidos com os de astronautas,

daqueles que eu sempre via nos desenhos animados. Um símbolo de

“ao vivo” é mostrado no canto inferior da tela. O repórter começa a

narrar os fatos:

– Estamos com o Doutor Paulo a poucos metros do local em

que houve a explosão essa manhã, ele poderá nos explicar melhor e

com exclusividade tudo o que aconteceu. Então doutor, o senhor foi o

primeiro a comunicar os bombeiros do acidente?

– Sim, estava a caminho do laboratório para dar início ao meu

plantão, por volta das 4 da manhã, quando estava chegando senti um

forte cheiro de fumaça vindo do local e imediatamente liguei para os

bombeiros, mas...

– E o senhor pode explicar para o público que nos assiste o que

exatamente funcionava naquele local?

Após ser interrompido pelo repórter, o homem continua:

– Como eu disse anteriormente, lá funcionava um laboratório,

onde desenvolvíamos vacinas e lidávamos muitas vezes com material

tóxico para a população. Não faço ideia de como aquele incêndio ocor-

reu... Liguei para os bombeiros, mas esqueci de comunicá-los sobre o

alto grau de radioatividade que poderia estar emanando de lá.

Radioatividade... Está explicado o porquê dos trajes desses ho-

mens, analiso.

– Foi por isso que os primeiros homens a chegarem ao local vi-

eram a falecer? – indaga o repórter.

– Não posso afirmar, mas ouçam com atenção. – O homem tem

um acesso de tosse e logo em seguida fixa os olhos na lente da câmera

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para continuar seu discurso. – Só Deus sabe quanta radiação vazou

desse lugar após esse incidente, radiação que pode ter contaminado

milhares de quilômetros, e até estados vizinhos... E talvez, algo ainda

mais perigoso tenha escapado desse laboratório, então, por favor, me

escutem... Evacuem esse estado, aqui não é mais seguro!

– O senhor está pedindo que o Rio de Janeiro seja evacuado?

Faz ideia de quantas pessoas vivem...

– Por favor! Isso é para o próprio bem de vocês! Fujam! Fujam

daqui! Para o sul, para o norte e se possível para fora do país!

O homem tem outro acesso de tosse e cai imóvel no chão, o re-

pórter parece não saber o que fazer. O microfone em sua mão não es-

conde o quanto ele está tremendo, ele faz um sinal para a câmera e a

exibição é cortada, indo direto para os comerciais.

Desligo a tevê e sinto meu corpo ficar completamente arrepia-

do.

CAPÍTULO 2

Ainda estou atordoado com tudo que acabei de escutar e ao

terminar de descer as escadas, escuto uma conversa entre Julia e minha

mãe:

– Quando vai terminar a reforma do meu quarto? Não estou

aguentando mais o Thomas, já tem muitos dias que ele fala enquanto

dorme e, algumas vezes, começa a grunhir algumas palavras sem senti-

do que chega a dar medo.

Mamãe escuta atentamente enquanto coloca os pratos sobre a

mesa.

– Calma filha. Só peço que espere até o fim de semana que

vem, quando eles terminarão a reforma. – Se virando então na cadeira

de rodas, ela vai até a pia para buscar os talheres e continua: – e quanto

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a seu irmão, vou proibi-lo de ver esses filmes sanguinários que ele tem

assistido.

Estou parado na escada, pensando em como contar para elas o

que eu vi, sem que eu pareça tão descontrolado quanto o homem da

entrevista. De repente a campainha começa a tocar insistentemente e

meu coração dispara. Julia continua sentada na mesa folheando uma

revista. Mamãe pede para que ela vá abrir a porta, mesmo fazendo

algumas caretas, ela acata a ordem. Ao abrir a porta, uma bela surpresa:

meu pai, Charles. Ele tem cabelos castanhos escuros, olhos azuis – dos

quais sou feliz em ter herdado – e um porte físico de se invejar, apesar

de seus cinquenta anos de idade. Muitos dizem que sou uma réplica

dele quando tinha quatorze anos. Pele branca, cabelos pretos estilo

Chace Crawford, corpo esguio, porém bem definido. Ele está vestido

com seu uniforme militar verde camuflado com nosso sobrenome –

Andrade – no lado esquerdo da camisa, boina, coturno, como de cos-

tume. Já fazia três semanas ou mais que não o via. O fato de ele ser

general de divisão acaba o mantendo por tempos fora de casa, nunca

tem data para voltar. Vou até ele para lhe dar um abraço, mas vejo em

seus olhos algum tipo de urgência.

– Por que diabos vocês trocaram a fechadura? – mas antes que

expliquemos para ele que a antiga fechadura havia emperrado, ele

prossegue. – Peguem comida, água, algumas peças de roupas e levem

para o carro.

– Por quê? – pergunta minha mãe.

– Sem perguntas, apenas façam o que estou mandando!

Fazemos o que ele manda, enquanto Julia o ajuda a posicionar

a cadeira de rodas da mamãe no carro. Observo que ele não está mais

com o Chevrolet Astra de quando saiu de casa, agora está com uma S10

branca, de cabine dupla com transmissão automática e tração nas qua-

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tro rodas. O que me chama atenção no carro é o para-choque de ferro

na parte dianteira do veículo. Fico pensando o motivo que o levou a

mudar de carro e colocar esse apetrecho. Termino de pegar minhas

coisas e tenho a sensação de que o que está acontecendo agora tem

alguma ligação com aquela notícia que acabei de ver.

Passados alguns minutos já estamos todos na S10, um silêncio

reina entre nós, decido contar sobre o que vi na tevê, no entanto, Julia

é mais rápida que eu e começa a falar primeiro:

– Ok, já pode nos dizer onde estamos indo pai?

Minha irmã é alta, pele levemente acobreada, olhos e cabelos

tão negros quanto o fundo do oceano, está no auge dos seus 18 anos

enquanto eu ainda estou nos meus 14. Todas as suas características

foram herdadas de nossa avó paterna, a qual Julia era muito apegada.

Lembro-me que no velório dela, ela não parava de falar um minuto

sobre as coisas que as duas costumavam fazer juntas. Volto a prestar

atenção no que ela diz:

– Poxa, nem deu tempo de arrumar meu cabelo direito, não sei

pra que tanta pres... O que é aquilo?

Rapidamente, olho na direção em que ela está apontando e ve-

jo vários militares e bombeiros em frente a uma casa que aparente-

mente está interditada. Ele encosta o carro para ver o que está aconte-

cendo ali, talvez por pura força do hábito.

– Quero que vocês fiquem aqui! Só vou ver o que está aconte-

cendo e já volto. – Diz ele, com um tom de voz um pouco alterado.

Estou tomado pela curiosidade e mesmo um pouco hesitante

abro a porta do carro para ir atrás do meu pai, mas mamãe segura mi-

nha mão.

– Por favor, querido, fique aqui. Seu pai com certeza tem um

ótimo motivo para nos mandar ficar.

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– Não se preocupe mãe, vou tomar cuidado.

Ignoro todos os pedidos que ela me faz para ficar e corro para

onde meu pai foi. Ao chegar perto da faixa que diz "Interditado" fico

paralisado com a cena que presencio: logo após a cerca da casa, há cin-

co corpos no chão e uma poça de sangue em volta deles, aparentemen-

te três crianças e dois adultos. Reparo que é possível identificar a mar-

ca de uma bala na cabeça de cada um dos cinco mortos que estão ali.

Sinto uma mão no meu ombro e dou um pulo para o lado com

o susto repentino que levo.

– Thomas Benedito! Eu não disse para você ficar no carro? –

meu pai está com uma expressão confusa no rosto, um misto de raiva

por eu o ter desobedecido e medo. Mas medo do que exatamente? –

Vamos voltar para o carro agora mesmo, não acredito que essa coisa já

chegou a São Paulo... – Ele faz uma pausa e eu não consigo entender a

que “coisa” ele está se referindo. – Precisamos dar o fora daqui!

– Pai, o que está acontecendo?! Quem matou essas pessoas?

Não consigo esconder o desespero em minha voz e ele se torna

ainda maior quando ouço um militar responder a minha pergunta:

– Eles não eram mais pessoas normais quando chegamos aqui

garoto, por isso, nossa única alternativa, foi eliminá-los.

CAPÍTULO 3

Estamos de volta à estrada, pegamos a rodovia que leva para o

sul do país. Sinto que não posso mais guardar para mim o que estou

pensando, então decido de vez me expressar:

– Pai... – Hesito, talvez tenha medo da confirmação, mas tenho

que saber o que está acontecendo. – Não sei o que aconteceu naquela

casa, mas sei o porquê do senhor estar com tanta pressa para se afastar

daqui...

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– Já que você sabe Thomas, pode nos explicar? Seu pai parece

não estar a fim de comunicar a família dele o que está acontecendo.

A ironia na voz da minha mãe não esconde que ela está come-

çando a se estressar com tal situação, papai, porém a ignora e me res-

ponde:

– O que você sabe?

– Esta manhã eu vi na televisão um acidente no Rio de Janeiro,

em que houve um vazamento de radiação e o cara falava para as pesso-

as se afastarem do Rio, e até falava para sair do país...

– Que horas você viu isso?

– Quase meio dia, eu acho...

– Bom – ele dá um profundo suspiro, como quem se prepara

para contar uma longa história e prossegue. – Melhor deixar logo claro

para todos vocês o que está acontecendo aqui.

Julia e mamãe trocam olhares confusos, mas ficam em silêncio

para ouvir o que papai tem para contar.

– Há mais ou menos seis meses atrás, fui designado para uma

missão em um campo de pesquisas, os médicos e cientistas daquele

local estavam testando um novo tipo de vírus, que, de acordo com eles,

poderia trazer uma pessoa à vida depois que ela morresse. Porém essas

experiências estavam dando drasticamente erradas, ou pelo menos, em

partes.

– Não estou entendendo pai...

– Julia, por favor, não me interrompa querida – ele continua. –

Os mortos usados nos testes realmente voltavam à vida quando aquele

vírus entrava na corrente sanguínea, porém não voltavam como eram

antes... Elas voltavam como... Animais selvagens... Sem raciocínio pró-

prio e com uma fome voraz por carne...

Julia o interrompe soltando uma gargalhada forçada.

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– Pai, já não basta o Thomas com essas historinhas de zumbis e

você vem com essa aí?! Muito boa essa piada pai, quase nos pegou.

Papai esquece a estrada à frente, olha para minha irmã e diz

em um tom de voz bem alto:

– Não estou brincando, isso é sério! Não tiraria vocês de casa se

não fosse verdade – ela escuta em silêncio enquanto meu pai continua

a falar. – Eles aprisionaram aqueles monstros no subsolo daquele local

durante todo esse tempo porque acreditavam que acabariam encon-

trando um antídoto que reverteria aquilo e faria as pessoas voltarem ao

normal, ou que as matasse de vez. Mas essa madrugada aconteceu

aquele acidente, aparentemente um incêndio que desencadeou várias

explosões devido aos materiais altamente inflamáveis que havia lá, a

radiação se espalhou pelo ar... O mesmo vírus que transformou aquelas

pessoas se espalhou pela atmosfera, e os que já haviam sido transfor-

mados e estavam presos, escaparam. Os primeiros bombeiros a chega-

rem ao local para conter o incêndio foram atacados e totalmente dila-

cerados, só restaram os uniformes e ossos para contar a história. Além

desse vírus que está no ar, infectando a tudo e a todos, aquelas criatu-

ras também foram soltas...

– Mas, as forças armadas conseguirão contê-los, não é pai? –

engulo em seco, por medo da resposta que posso obter.

– Não estou falando de 10 ou 15 zumbis. Essas experiências es-

tavam sendo feitas há muito tempo, devia haver cerca de 600 deles só

da vez em que eu fui até aquele local e isso foi há seis meses. Essas cria-

turas se espalham rápido, um dos cientistas chegou a me falar que basta

ser mordido e pronto. Cerca de meia hora você morre e volta como um

deles. Não me surpreendo se esses 600 já tiverem se tornado seis mil! E

aquelas pessoas mortas naquela casa? Essa praga está avançando mais

rápido do que qualquer um possa acreditar! Essas experiências são um

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segredo nacional, só os mais altos do escalão do exército sabem e os

cientistas envolvidos no programa, a população não faz nem ideia de

com o que vai lidar e não preciso nem dizer o quanto isso é péssimo!

Ninguém fala nada, estamos todos em choque, exceto Julia que

parece não ter acreditado em uma palavra que ouviu, a mente de todos

está repleta de perguntas, ainda assim o silêncio nos parece mais con-

fortável.

Avistamos um posto de gasolina e paramos para abastecer, um

homem alto, careca e um pouco acima do peso, que aparenta ser fren-

tista vem em nossa direção enquanto descemos do carro.

– Thomas, avisa o nosso pai que eu fui com a mamãe no ba-

nheiro, falou?!

– Julia, seria melhor você pedir para ele, esse lugar está quase

deserto, pode ser perigoso.

– Ah, vocês dois estão viajando, estou começando a achar que o

serviço estressante o deixou louco de vez! Estou indo, não vamos de-

morar.

– Espera, não... – Mas não adianta falar, ela já me deu as costas

e caminha até os banheiros empurrando a cadeira de rodas da mamãe.

Julia sempre foi teimosa, assim como eu.

Volto para onde meu pai e o frentista estão, e percebo certo de-

sespero no rosto do homem.

– Os outros que trabalhavam aqui deixaram seus postos ontem

à noite e foram para as suas casas, disseram que iam pegar suas famílias

e procurar um lugar seguro, alguns falaram em sair do país.

– E por que eles fizeram isso? – pergunto, embora já imagine

qual seja a resposta.

– Está tudo um caos, a programação do rádio é sempre a mes-

ma, boletins de notícias mandando as pessoas se manterem o mais afas-

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tado possível do Rio e dos estados vizinhos, depois daquele acidente,

ninguém entende direito o que está acontecendo... E eles nunca nos

dão uma explicação.

– E por que você não foi atrás da sua família, como os outros fi-

zeram? – pergunta meu pai.

– Não tenho família, senhor.

Nossa conversa é interrompida por um grito vindo do banheiro

do posto, corremos desesperados até lá, já penso no pior. Meu pai abre

a porta do banheiro com um chute e encontra Julia encolhida ao lado

da pia, apontando para um ratinho que passeia tranquilamente por ali.

– Você está ficando louca? Esse escândalo todo por causa de

um rato? – papai é um misto de raiva, mas também de alívio por ela

estar bem.

– Esse bicho nojento passou por cima do meu pé! Preciso de ál-

cool agora mesmo! Não quero pegar nenhuma doença.

– Em meio a "canibais” que estão soltos por aí devorando pes-

soas, você está preocupada com um ratinho? – estou muito irritado e

não consigo esconder isso. – Cadê a mamãe?

– Canibais? Você é um lunático Thomas!

– Parem de brigas meninos, será que vocês não conseguem fi-

car uma hora sem brigar? – a voz é da nossa mãe, que vem saindo de

um dos banheiros com certa dificuldade para se ajeitar na cadeira de

rodas.

– Olha, não quero interromper a discussão familiar, mas o ga-

roto aí falou canibais? Do que ele estava falando?

– Não temos tempo para ficar dando explicações, vamos encher

alguns galões de combustível e sair daqui o quanto antes. Temos um

longo caminho pela frente – responde meu pai, saindo do banheiro e

indo em direção as bombas de combustível.

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– Desculpe moço, nem nós sabemos direito o que está aconte-

cendo, tudo está muito confuso, mas seria melhor o senhor sair daqui

também, não deve ser seguro ficar sozinho por aqui. – Olho nos olhos

do homem enquanto falo e tenho um leve pressentimento que logo

iremos nos encontrar novamente.

– Para onde vocês vão? Desculpe a pergunta.

– Meu pai ainda não disse. E você?

– Ainda vou decidir se fico aqui ou volto para Minas Gerais.

Aliás, qual é mesmo seu nome garoto? – pergunta ele, enquanto vai

andando atrás do meu pai para ajudá-lo com o combustível.

– Thomas e o seu?

– Fred. Quem sabe a gente se encontra por aí Tho... Como é

mesmo seu nome?

– Thomas. Adeus Fred.

CAPÍTULO 4

Saímos do posto e seguimos pela estrada. Fico pensando no

homem que estava lá, talvez pudéssemos tê-lo chamado para vir co-

nosco, mas não o conhecíamos. Como saberíamos que ele não é um

ladrão? Um assassino? Talvez não. Ele parecia ser uma boa pessoa, mas

não podemos nos basear por aparências, afinal de contas, elas sempre

nos enganam.

– Charles, precisamos voltar.

– Depois de tudo que eu falei você pensa em voltar Diane? Não

podemos...

– Mas querido, essa coisa ainda está no Rio e outra, só pegamos

duas peças de roupa, se pretendemos ir para tão longe, temos que pegar

mais coisas e até mais alimentos, porque nunca se sabe...

Papai fica em silêncio por um tempo, parece estar analisando

as palavras que acabou de ouvir, ele sabe que elas fazem sentido, não

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devíamos ter saído daquele jeito, nem telefone celular nós pegamos.

Por fim, ele responde:

– Tem razão, não estamos tão longe de casa, levaremos só umas

duas horas para voltar, mas me prometam que quando chegarem a casa

pegarão tudo o que é preciso o mais rápido que puderem, não podemos

perder tempo! Não sabemos em qual velocidade esse vírus “corre”.

– Mas pai, talvez a mamãe esteja certa – falo. – Aquelas coisas

ainda estão no Rio, até chegarem aqui, se bem que... As pessoas mortas

naquela casa... – Falo baixo, para que só meu pai me escute.

– Você também está se esquecendo de um detalhe muito im-

portante... E as pessoas que morreram depois de ter tido contato com

esse ar repleto de vírus mortais? Essa hora eles já devem ter voltado do

mundo dos mortos.

– Ou talvez não pai! – Julia continua incrédula com tudo isso.

Meu pai faz um cara de desapontamento, balança a cabeça e faz

um retorno proibido na estrada para voltarmos para Santo André.

CAPÍTULO 5

Saímos da rodovia Anchieta há alguns minutos, estamos termi-

nando de passar por São Bernardo do Campo e chegando bem perto de

casa e tudo que eu consigo ver pelas ruas é o caos completo. Faz pouco

tempo que saímos daqui, mal posso acreditar no que meus olhos veem.

Há vários carros parados pelas ruas, muitos foram deixados para trás

com as portas abertas, tenho um mau pressentimento, mas deve ser

apenas minha imaginação me pregando alguma peça.

Julia acabou cochilando com a cabeça encostada no ombro da

mamãe. Meu pai decide cortar caminho por uma rua que tem várias

casas margeando os dois lados da avenida, mas há algo de estranho

nesse local, parece que estamos entrando em uma cidade fantasma,

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está tudo muito silencioso e parece ter sido abandonado pelos morado-

res. Em um dos lados vemos um pequeno mercado com a placa de

“aberto” pendurada na vidraça; minha mãe dá a ideia de comprarmos

alimentos enlatados para “nos prevenir” caso as coisas se tornem difí-

ceis. Descemos do carro e quando meu pai aciona o alarme, tudo co-

meça... Escutamos grunhidos que arrepiam meu corpo inteiro, e ao

longe vejo quatro silhuetas – de pessoas que parecem estar bêbadas

vindas em nossa direção –, percebo que os barulhos vêm delas e é aí

que minha ficha cai:

– Merda! Zumbis pai, são zumbis, precisamos sair daqui agora

mesmo!

Meu pai corre para ligar o carro e o barulho do motor ligando

faz com que aquelas coisas venham em nossa direção com mais veloci-

dade. Como se eles fossem atraídos pelo som.

– Julia, me ajude aqui com a cadeira de rodas. Julia, rápido!

Mas ela está totalmente paralisada olhando para os bichos, não

é preciso de nenhum especialista para dizer que ela entrou em estado

de choque, começo a balançá-la de um lado para o outro.

– Para com isso! Você não pode ficar aí parada assistindo essas

coisas virem nos matar. Anda Julia, reage!

Mas não adianta, é como se ela não escutasse uma palavra do

que eu digo. Desesperado, meu pai sai do carro e me ajuda a colocar na

carroceria a cadeira de rodas da mamãe que não para de tremer, em-

purro Julia para dentro também, e quando estou pronto para entrar,

algo me impede. Um grito, uma voz feminina que vem de uma das

casas.

– Thomas, o que você está fazendo? Entre nesse carro agora

mesmo! – a voz é da minha mãe, que está chorando apavorada.

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– Não mãe, alguém precisa de ajuda. Eu alcanço vocês, vou fi-

car bem! Eu juro!

Falo isso e em seguida saio correndo na direção da casa de onde

veio o grito. Pego um pedaço de madeira que encontro no chão. Na

cabeça, preciso acertar na cabeça. É o único pensamento que eu tenho.

Um deles se aproxima de mim e dou o golpe mais forte que consigo.

Ele cai no chão, mas continua se mexendo, acerto ele mais duas vezes,

e sangue coagulado espirra em mim, é nojento, mas no fundo há uma

pequena diversão nisso. Outro zumbi se aproxima, mas não tenho

tempo de reação, ele está muito perto, no momento que ele vai me

agarrar mais sangue esguicha em mim. Meu pai acertou um belo tiro

na cabeça do morto-vivo com uma Desert Eagle, mesmo estando a

quinze metros de distância.

– Vá para o carro agora! – berra ele, correndo até mim e acer-

tando os outros dois zumbis.

Ouço novamente o grito dela, agora tenho certeza de onde

vem o som: uma casa pintada de rosa claro, com um belo gramado no

quintal. Meu pai berra novamente, não dou atenção para ele, pois mi-

nha prioridade é tentar achar a garota em perigo.

Abro a porta da casa e vejo a garota de aparentemente uns 15

anos de idade, de pele clara e cabelos escuros. Está atrás de uma mesa,

e há uma zumbi tentando atacá-la. Mesmo com a estranheza do mo-

mento, não consigo deixar de reparar nos lindos olhos verdes e mar-

cantes que aquela garota possui.

Nenhuma delas percebe minha presença na casa, dou alguns

passos para chegar mais perto, então a zumbi me vê, esquece a garota e

vem em minha direção. Ela tropeça em alguma coisa que está no cami-

nho, o meu taco passa alguns centímetros de sua cabeça, perco o equi-

líbrio devido ao erro. Caído no chão, jogo o bastão nela enquanto ela se

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levanta, para eu tentar ganhar tempo. Pego a garota pelas mãos e aju-

do-a se levantar, mesmo hesitante, ela vem comigo. Levo-a para a ou-

tra parte da casa, que acredito ser a cozinha, fecho a porta em seguida.

– Espere aqui! – ordeno. Ela obedece sem questionar.

Procuro nas gavetas da pia alguma coisa que me ajude nesse

momento; pego uma faca de açougueiro e um espeto tridente de aço

inox, imagino que as pessoas que moravam nessa casa adoravam um

churrasco nos fins de semana.

– Que belas armas! – exclamo feliz da vida, mas algo me traz de

volta ao mundo perigoso que estou; além dos arranhões e batidas que

vêm da porta, ouço mais tiros que não parecem ser da mesma arma que

meu pai estava usando.

Abro a porta e ataco novamente o monstro com o Tridente.

Acerto bem em seus olhos e ela desaba no chão.

– Me ajuda? – peço a garota, pois os tiros lá fora se tornaram

mais constantes e não sei quem é que está atirando agora.

– Não! – ela responde.

– Não se preocupe, vamos conseguir. – Indecisa, ela se levanta

chorando, não sei o motivo, mas esse não é o momento de interrogar a

garota. Entrego o espeto para ela e começamos a encarar a porta, digo

em seguida:

– É agora, três... Dois... Um!

Abro a porta e imediatamente acerto a faca no crânio de outro

deles, que se racha ao meio. Como chegaram aqui tão rápido? Conti-

nuo correndo enquanto ele cai inativo no chão. A garota faz o mesmo

com outro zumbi, mas não coloca força suficiente e o tridente passa de

raspão, arrancando a orelha do bicho. Ela golpeia a segunda vez e erra

de novo. Nunca fiz isso antes, mas decido arriscar, atiro a faca e ela

entra perfeitamente na nuca do zumbi. Volto até eles e removo a faca.

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Seguro firmemente na mão da menina fazendo-a sair correndo da casa

junto comigo. Vemos o carro mais à frente e meu pai na carroceria da

S10 com um fuzil IA2 atirando em outros zumbis que se aproxima-

vam. Graças a Deus que é ele. Como sempre ele está preparado para

tudo.

– Muito obrigada, você salvou minha vida. – Ela agradece.

Um sorriso malicioso se forma em meus lábios enquanto res-

pondo:

– Você bem que poderia me dar um beijo como recompensa,

não é mesmo?!

Mas sou interrompido pelo meu pai, que está muito nervoso.

– O que você está esperando, Thomas Benedito? Entre logo

nesse carro!

Entro no carro e a garota entra na parte de trás e se senta ao la-

do de Julia.

– Quantos deles tinham lá fora? – pergunto.

– Uns 13 talvez, não sei ao certo, mas tenho certeza de uma

coisa, foi uma péssima ideia voltarmos para cá. Como eu suspeitava,

esse vírus se espalha rápido.

– Então não vamos ir para casa mais?

– Pode esquecer, nosso rumo é outro, vamos para minha base

militar em Curitiba, agora mesmo!

CAPÍTULO 6

Seguimos em frente, deixamos as mulheres sentadas no banco

de trás e eu estou ao lado de meu pai, ele não falou nada desde o ocor-

rido, mas só de olhar o seu semblante, tenho certeza que está muito

bravo comigo. Um dos sinais que aprendi foi: meus pais, quando estão

com raiva de mim, me chamam pelos meus dois nomes. O segundo

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deles, o que menos gosto; mas nunca disse nada para ninguém, pois

ganhei esse nome em homenagem ao meu avô materno, já falecido.

Voltamos para a via Anchieta, que nos conduz para o litoral de

São Paulo, de lá seguiremos por cerca de três horas até chegarmos à

rodovia Régis Bittencourt, que nos conduzirá para o sul do país. Se não

houver nenhum imprevisto, chegaremos lá dentro de seis horas.

Vejo um congestionamento formado na estrada.

– O que está acontecendo? – pergunto.

– Acho que as pessoas estão indo para o sul, como foi pedido

nos noticiários. – Responde meu pai.

Meu pai pega um contorno que na placa diz: Rodovia Caminho

do Mar.

– Para onde estamos indo? – pergunto.

– Vamos por essa rodovia, para pegarmos uma estrada mais va-

zia e também porque preciso de um descanso, já estou no volante há

mais de 12 horas. Por essa estrada conheço um lugar bom para descan-

sarmos.

Passamos pelo contorno, e meu pai acelera o carro, que começa

a ganhar velocidade. A pista está completamente vazia, árvores e rios

ladeiam a pista.

– Charles, você vai pegar a Estrada velha de santos?

– Sim querida, ela mesma.

– Mas ela não está proibida para carros?

– Sim. Agora ela é só usada para grupos de passeios. Só podem

descer pedestres, ciclistas e carros autorizados. Mas desde um desaba-

mento que houve no verão do ano passado, a estrada foi interditada.

Está em reformas e, infelizmente, está abandonada.

– Nossa. Essa estrada é um marco para a história do Brasil. –

Relembra minha mãe.

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– E por que fecharam essa estrada? – pergunto.

– Alguns dizem que a estrada foi fechada por causa das cente-

nas de acidentes que aconteciam nela, Mas na verdade, a estrada foi

abandonada quando a construção da Rodovia Imigrantes foi concluída.

– Explica minha mãe. No horizonte, o sol começa a se esconder atrás

das árvores.

– Eu adorava essa estrada. Tem muitas cachoeiras, nascentes –

olho para o meu pai, vejo um brilho em seus olhos enquanto ele re-

lembra suas histórias. – Passei muitas horas trilhando, até chegar a

cachoeiras. Sempre uma melhor que a outra. De três a quatro horas

trilhando, para no final ser recompensado com águas límpidas e refres-

cantes.

Ouvindo as histórias dele, sinto uma imensa vontade de co-

nhecer esses lugares, mas acho que nunca terei oportunidade.

Alguns minutos depois, vejo uma cerca finalizando a rua com

uma placa no meio dizendo: proibida a passagem. Um pouco depois da

cerca vejo um mirante.

– Pai...

– Nem precisa dizer nada, filho. – Ele encosta o carro perto da

cerca e sai. – Esperem um pouco aqui, já volto.

Ele vai até a carroceria da caminhonete, pega um alicate de

pressão e segue até o portão e corta a corrente.

– Será que não teremos problemas? – A Garota parece preocu-

pada.

– Tomara que não. – Minha mãe responde.

Olho para trás e vejo que Julia ainda parece estar desconectada

desse mundo.

Meu pai entra novamente no carro.

– Pronto. Problema resolvido.

Passamos pela cerca e seguimos por alguns metros, nos apro-

ximamos de uma casa, igual às casas que vi em filmes de época, com

acabamento todo em pedra.