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Você projetou o Brasil no cenário internacional da dança contemporânea. A que atribui essa presença da tua dança no mundo e a aceitação do público?É sempre delicado responder esse tipo de pergunta. Acho que o público pode dizer melhor do que eu. Mas, depois de 22 anos de Companhia [de Dança Deborah Colker], percebo sinais claros no público do mundo inteiro, como um respeito muito grande pelo meu trabalho, que – não há como negar, embora pareça autoelogio – é um trabalho criativo, no sentido de que surpreende as pessoas. É inesperado. A cada espetáculo, trago muitas novidades, e o público fica se perguntando “o que ela vai aprontar agora? Qual é a próxima?”. Esse respeito pela criatividade está unido ao respeito pelo profissionalismo de altíssimo nível.
Então, é um trabalho experimental, criativo, ousado, diferente e, ao mesmo tempo, de qualidade, profissional, impecável, feito com cuidado estético e artístico. É um trabalho muito sólido. A Companhia hoje é considerada uma das grandes companhias de dança contemporânea do mundo. Fazemos parte das temporadas dos maiores teatros do mundo. Já abrimos o Festival de Edimburgo [Escócia]; estamos indo este ano para Cannes [França]; levamos todos os nossos espetáculos para o Barbican Centre, em Londres [Inglaterra], que é um palco internacional; levamos todos também para a Maison de la Danse, em Lyon [França]; fomos para todas as cidades da Alemanha, incluindo Berlim; estivemos no Joyce Theatre e no New York City Center, em Nova York [EUA], um teatro que recebe as grandes companhias do mundo. Enfim, fomos para os cinco continentes e, em todos eles, sempre fomos muito bem recebidos.
Temos uma quantidade enorme de críticas boas – do mundo inteiro e bem diversificadas. Criamos um público fiel. Em Londres, por exemplo, estivemos duas semanas com ‘Tatyana’ no Barbican – o que configura uma temporada. Estivemos em três turnês pelo Rei no Unido, nas quais chegamos a percorrer até 13 cidades. Então, somos muito respeitados. Posso dizer que sou uma artista internacional, assim como minha companhia de dança.
Como eu projeto o Brasil no cenário mun
dial? Com um outro olhar; não com o olhar da mulata gostosa, do futebol, do charme e da simpatia. Mas com o olhar do trabalho, da experimentação profissional, com um olhar científico. Porque o meu trabalho faz uma investiga ção entre a relação do espaço e do movimento, questiona a física do movimento, a geometria, o peso, a matemática, a gravidade. Por exemplo, a afirmação de um palco vertical com uma parede [em ‘Mix’, 1995]; depois essa parede em movimento [em ‘Rota’, 1997], a superposição do plano vertical, isso tudo exige uma pesquisa muito séria, muito sedimentada. Então, tenho muito orgulho de representar o Brasil de uma maneira que a gente escolheu; e não do folclore e do clichê brasileiros. Tanto é que quando fui escolhida para dirigir o Cirque du Soleil, fui a primeira brasileira a fazêlo, a primeira mulher, a primeira pessoa da América Latina. Fui a primeira brasileira – e única até hoje – a ganhar o prêmio Laurence Olivier, que é o Oscar das artes cênicas, em 2001.
Como o público brasileiro recebe as suas propostas arrojadas e inovadoras? A gente leva todos os nossos espetáculos para o Brasil inteiro. Normalmente, são dois caminhões viajando. Os meus cenários e os equipamentos de luz são grandes e, onde eu for, faço meu espetáculo da mesma maneira: seja no Rio, em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Pirapora, Araraquara, Paquetá, no interior da Bahia, de Minas. Com isso, a gente ganha o respeito do público. Estamos agora com o espetáculo ‘Belle’, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, que tem capacidade para 1.250 pessoas. O teatro lota de quinta a domingo. E é uma temporada popular; não tem convidados! É galera. Dá um prazer enorme. Eu não danço nesse espetáculo, mas, quando entro em cena para agradecer, as pessoas gritam. São fãs. Fazem parte da companhia, respeitam nosso trabalho.
A gente vive num momento de insegurança, e o que me protege hoje é meu público. A Petrobras está vivendo esse momento delicado, mas é uma patrocinadora maravilhosa desde que comecei; é minha parceira. E, quando começo um processo de investigação e de pesquisa, é no escuro; não posso
garantir nada a ninguém, e é um trabalho que dura, no mínimo, dois anos. Mas a Petrobras nunca me cobrou nada, porque sabe que trabalho duro, buscando um trabalho autoral e brasileiro. Agora, o meu grande parceiro é o público. E esse eu não vou perder.
Você começou como bailarina do grupo Coringa, com a uruguaia Graciela Figueiroa, que propunha muito mais do que a expressão artística pela dança. O Coringa era um grupo de resistência, de questionamento, de terapia corporal e de formação de pessoas de diferentes áreas. O que ainda há do Coringa em você? A Graciela foi a minha mentora, a primeira pessoa com quem trabalhei e com a qual entendi o que é a dança contemporânea e o que é ser um artista contemporâneo – é ser um artista de agora, é descobrir quem é você a cada momento, é se questionar a todo instante. Ontem já não é mais contemporâneo; é hoje. É uma busca constante, na qual você é o investigador que determina qual vai ser o desafio, a pesquisa e o caminho a serem descobertos. Além disso, a Graciela é madrinha de minha filha Clara, hoje com 31 anos. Ela assistiu a meus dois partos. Eu sou quem sou porque segui o conselho da Graciela: fazer aquilo que você acha da maneira que você acha. Essa liberdade criativa é muito importante. O comprometimento é sempre com você mesma, com suas escolhas, com a sua afirmação do que é arte, do que é a dança para você política, social, psicológica e artisticamente.
Sou movida a não ter medo de entrar num processo de criação, de experimentar coisas. Para todo trabalho, coloco um desafio desconhecido. Então, o que há do Coringa em mim é esse compromisso comigo mesma, com minha escolha, com minha liberdade, com ser sincera com aquilo em que acredito, com o que quero dizer agora. E outra coisa: ter constantemente um trabalho experimental. Eu não trabalho com fórmula. Apesar de ser um trabalho qualificado e profissional, ele não deixa de ser experimental nunca.
Na tua opinião, o que mudou na dança, no mundo, nas últimas décadas? Como você vê hoje a dança no país?Bom, eu posso afirmar que faço parte dessa mudança e que influenciei muita gente no
EntrEvista DEBORAH COLKER
Referência na cena brasileira e mundial da dança contemporânea, a bailarina e coreógrafa Deborah Colker está em constante movimento: ensaiando, dançando, criando, dirigindo, viajando, se apresentando, imaginando, experimentando, construindo, refletindo... Talvez por entender a dança como um organismo vivo, que respira e se comunica o tempo inteiro.
À frente há 22 anos da Companhia de Dança que leva seu nome, Deborah Colker diz não ter fórmula para trabalhar: “O importante é experimentar e buscar caminhos”. E é com essa ousadia e “liberdade criativa” – mas também com alto nível de profissionalismo –, que ela conquistou o público de cinco continentes e foi a única brasileira a ganhar o prêmio Laurence Olivier – o Oscar das artes cênicas – em 2001 e a ser convidada a dirigir um espetáculo do Cirque du Soleil, em 2009.
Nesta entrevista ao sobreCultura, Deborah fala do compromisso que tem com sua arte, da necessidade permanente de testar novos trilhos e de seus próximos projetos e desafios.
Entrevista concedida a Alicia Ivanissevich |sobreCultura | rJ |
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sentido de provar que a dança não é um espetáculo que se ensaia numa sala e se pula para o palco. Dança não é só coreografia; dança é ideia, é uma composição estética, é cenário, é figurino, é música, é dramaturgia, é entender como se estabelece uma relação com o público. Então, esse compromisso da dança mudou. A ideia de que a dança deve buscar um público, mas não apenas de dança; um público. A dança começa a perceber que é uma via de duas mãos: ela precisa de dinheiro, de patrocínio, mas precisa conquistar o público.
É importante entender também, tanto para quem faz dança como para quem investe em dança, que há muitos estilos e perfis. Tem espaço para todo mundo. Mas não se pode comparar uma companhia como a nossa, com 18 bailarinos e 22 anos de existência, com um grupo de três bailarinos, que tem um público de 100 pessoas. Não é menos nem mais importante. É diferente. Não pode ser comparado. Às vezes, existe uma confusão econômica, estética e artística com relação aos grupos de dança no país. Não pode. Não dá para comparar uma boa pizza com um bom sushi. São diferentes, tem preços distintos.
Existe algo na sua criação como coreógrafa que identifique como nitidamente brasileiro? Meu trabalho é brasileiro. Sou brasileira de duas gerações. Eu me criei e estudei no Brasil. E só experimentei aqui. Bebo de uma fonte brasileira – eu diria mais, carioca. A maneira e a liberdade como misturo as técnicas e a estética não é algo tipicamente europeu, nem americano. Eu sou pop, mas o meu pop é totalmente brasileiro. Meu espetáculo ‘Belle’ pode não ser pop, mas eu sou uma pessoa pop, dadas as coisas às que eu me atrevo, as que eu faço, das quais eu participo. Eu tenho uma companhia contemporânea com uma técnica clássica muito forte, o que é raríssimo não só no Brasil como fora dele. Ao mesmo tempo, tenho espetáculos como ‘Velox’, em que há uma parede onde os bailarinos saltam, ou como ‘Tatyana’, em que os bailarinos entram e saem nas pontas, ou como ‘Rota’, onde há uma roda gigante, ou como em ‘4
por 4’, em que danço entre 90 vasos de porcelana, trabalhando e estudando a construção do espaço, e que começa comigo no piano, com quatro bailarinas dançando nas pontas ao som de Sonata de Mozart. Começa assim, mas vai para um lugar totalmente diferente. Então, meu trabalho é muito original. Não é possível identificálo com nenhum outro. E é um trabalho brasileiro.
Outro dia, o Guy Darmet, que criou e dirigiu a Maison de la Danse por décadas, disse pra mim: “A Deborah Colker é a Deborah Colker”. Não dá para me formatar. O meu trabalho é representado pela minha companhia. Não sou clássica, nem quero ser. Nem quero me apropriar de mímica nem de pantomima. Quero falar de uma forma pessoal, contemporânea, quero escolher o que é importante em cada história. E, apesar de ser muito difícil montar um espetáculo meu, no ano passado, montaram o ‘Nó’ na Ópera de Toulouse [França]. E, em Berlim [Alemanha], a Komische Oper montou ‘Casa’.
A tua Companhia de Dança tem 22 anos de existência e vem desenvolvendo atividades não apenas para profissionais como também para pessoas de outras áreas e até crianças. Qual é a filosofia que move a Companhia? O que quer passar para os seus alunos? Na verdade, a filosofia tanto da escola quanto da companhia é a mesma: é conectar a dança com o mundo contemporâneo. É trazer para a dança tudo o que acontece no mundo artístico: as artes plásticas, a arquitetura, a filosofia, a fotografia, a música, a literatura, a poesia. Quanto mais a gente quebrar essas fronteiras, se aproximar e beber dessas fontes, mais rico será para ambos os lados. É uma filosofia de trabalho em que o conhecimento é muito importante para a respiração do corpo. Para um corpo respirar bem, ele precisa ter conhecimento dele mesmo, precisa ter conhecimento artístico, da vida, da rua, da cidade. Então, é essa ideia de ver a dança como um organismo vivo, que se conecta, que está interagindo o tempo inteiro.
A minha filosofia como artista é científica. Nós somos cientistas da arte. Estamos buscando caminhos experimentais. Estamos
experimentando coisas agora que só vamos sedimentar daqui a 10 anos. Assim como os cientistas que especulam possibilidades, que buscam respostas, o que me interessa não é quem está no trilho do trem, mas quem está buscando trilhos novos.
Quantas pessoas trabalham na sua Companhia hoje?São 18 bailarinos, dois assistentes, vários professores, seis pessoas na produção e no setor financeiro, uma pessoa responsável pela documentação, um assessor de imprensa, um consultor jurídico. Contamos também com fisioterapeuta e ortopedista. No Centro de Movimento Deborah Colker, tem a escola e a companhia de dança. Temos uma colônia de férias maravilhosa e uma revista de artes para crianças.
A sua participação na cena artística brasileira transcende a dança: você tem incursões pelo teatro, pela TV, pelo circo, pelo cinema e até pelo desfile de escolas de samba do Rio. Existe alguma abordagem ou atividade que ainda não experimentou e à qual gostaria de se dedicar?Adoraria dirigir uma ópera. Seria um grande desafio. Nunca fiz. Mas até 2017 não posso fazer mais nada, porque estou envolvida com outros projetos até o pescoço.
Você já está trabalhando no seu próximo projeto? Poderia nos adiantar o que pretende fazer no próximo ano?Está muito cedo para falar. Mas tenho um novo desafio, que é trabalhar com um autor nacional, um poeta superrigoroso, o João Cabral de Melo Neto. A gente chamou o professor Antonio Secchin, catedrático da ABL [Academia Brasileira de Letras], que escreveu um livro sobre João Cabral e nos deu três aulas sobre ele. Já estamos em contato com a família de João Cabral. Ele era apaixonado por dança flamenca e escreveu Cão sem plumas quando era embaixador em Barcelona [Espanha]. Começamos a estudar Cão sem plumas, a fazer algumas improvisações, a pensar qual é o caminho que a gente vai escolher para mergulhar no rio Capibaribe, para entender como o João Cabral trata o cão sem plumas, que somos nós, os seres humanos.
MOviDa a MOviMEntO
MIx ROTA BELLE