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Sobre objetividade e isenção no jornalismo da Primeira República DENILSON BOTELHO ** Ao percorrer as páginas dos jornais do Rio de Janeiro do início do século XX, é possível observar algo em comum em vários desses periódicos: os textos publicados, em sua maioria, não são assinados. Essa constatação empírica guarda relação estreita com as transformações vivenciadas pela imprensa nesse período. Ainda que sobrevivam os jornais cuja linha editorial explica-se, em larga medida, pelo perfil de seus proprietários, que acumulam a função de editores, cresce o número de periódicos que adquirem progressivamente uma face empresarial. Nesse jornal moderno, de grande porte, com tiragens mais elevadas, avança a divisão do trabalho de produção das notícias em editorias específicas e repórteres que vão se especializando nas seções de notícias policiais, políticas, internacionais, econômicas, esportivas, costumes e sociedade, além dos chamados faits divers. E no esforço de tornarem- se modernos, tentando adquirir maior credibilidade junto aos leitores, vários jornais deixam de identificar a autoria dos textos impressos em suas páginas. Num estudo clássico sobre a história da imprensa no Brasil, elaborado por Nelson Werneck Sodré, este momento é descrito da seguinte forma: A passagem do século, assim, assinala, no Brasil, a transição da pequena à grande imprensa. Os pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas, com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função. Se é, assim, afetado o plano da produção, o da circulação também o é, alterando-se as relações do jornal com o anunciante, com a política, com os leitores. [...] O jornal será, daí por diante, empresa capitalista, de maior ou menor porte. O jornal como Esta comunicação apresenta resultados parciais de pesquisa do projeto intitulado “Imprensa e literatura na Primeira República: Lima Barreto e a ‘indústria do jornal’”, desenvolvido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, através de Auxílio à Pesquisa Regular (Processo FAPESP 2015/06882-0). ** Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Professor de História do Brasil do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo UNIFESP, e líder do Grupo de Pesquisa História Social da Cultura: literatura, imprensa e sociedade.

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Page 1: Sobre objetividade e isenção no jornalismo da Primeira ... · dos textos publicados sem indicação da autoria. À propósito de uma conferência proferida 1 Jornal diário do Rio

Sobre objetividade e isenção no jornalismo da Primeira República

DENILSON BOTELHO**

Ao percorrer as páginas dos jornais do Rio de Janeiro do início do século XX, é

possível observar algo em comum em vários desses periódicos: os textos publicados, em sua

maioria, não são assinados. Essa constatação empírica guarda relação estreita com as

transformações vivenciadas pela imprensa nesse período. Ainda que sobrevivam os jornais

cuja linha editorial explica-se, em larga medida, pelo perfil de seus proprietários, que

acumulam a função de editores, cresce o número de periódicos que adquirem

progressivamente uma face empresarial.

Nesse jornal moderno, de grande porte, com tiragens mais elevadas, avança a divisão

do trabalho de produção das notícias em editorias específicas e repórteres que vão se

especializando nas seções de notícias policiais, políticas, internacionais, econômicas,

esportivas, costumes e sociedade, além dos chamados faits divers. E no esforço de tornarem-

se modernos, tentando adquirir maior credibilidade junto aos leitores, vários jornais deixam

de identificar a autoria dos textos impressos em suas páginas.

Num estudo clássico sobre a história da imprensa no Brasil, elaborado por Nelson

Werneck Sodré, este momento é descrito da seguinte forma:

A passagem do século, assim, assinala, no Brasil, a transição da pequena à grande

imprensa. Os pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às

empresas jornalísticas, com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário

ao exercício de sua função. Se é, assim, afetado o plano da produção, o da circulação também

o é, alterando-se as relações do jornal com o anunciante, com a política, com os leitores. [...]

O jornal será, daí por diante, empresa capitalista, de maior ou menor porte. O jornal como

Esta comunicação apresenta resultados parciais de pesquisa do projeto intitulado “Imprensa e literatura na

Primeira República: Lima Barreto e a ‘indústria do jornal’”, desenvolvido com o apoio da Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, através de Auxílio à Pesquisa – Regular (Processo FAPESP

2015/06882-0). ** Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Professor de História do

Brasil do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, e líder do Grupo de Pesquisa

História Social da Cultura: literatura, imprensa e sociedade.

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empreendimento individual, como aventura isolada, desaparece, nas grandes cidades.

(SODRÉ, 2011, pp. 405-406)

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O Brasil viveu então, ainda que tardiamente, transformações similares àquelas

experimentadas pela imprensa europeia ao longo do século XIX (BRIGGS e BURKE, 2006).

Segundo Ilka Cohen, “os jornais diários alcançaram porte expressivo graças à introdução das

rotativas, ao incremento das formas de publicidade e ao aumento da rede de distribuição

decorrente do crescimento da malha ferroviária” (2008, p. 104). Se, por um lado, o

florescimento de uma economia urbano-industrial, associado a inovações técnicas e à

ampliação do universo de leitores foram fatores decisivos (COHEN, 2008, p. 104) para o

processo de modernização da imprensa no Brasil da Primeira República; por outro lado,

O idealismo, porém, quase sempre sucumbia diante das exigências do mercado, condenando

ao desaparecimento as pequenas folhas e as revistas sem estrutura econômica segura. Nesse

particular, a questão do financiamento revelava-se decisiva. A publicidade e o sistema de

venda de assinaturas procuravam garantir o empreendimento (COHEN, 2008, p. 104).

Para examinar esse processo histórico, tomamos como objeto de análise alguns dos

jornais nos quais Lima Barreto atuou, tendo em vista que ele “sentia a transformação da

imprensa brasileira, verificava o contraste entre aquela fase do jornal de circunstância,

arrimado a uma figura de prestígio, e a nova fase, a da empresa jornalística cada vez mais

complexa e cada vez mais inserida na complexidade da estrutura social em mudança”

(SODRÉ, 2011, p. 423).

Além disso, é preciso ressaltar aqui o quanto partilho do princípio de que é mais do

que necessário operar um certo deslocamento no sentido de deixar de considerar a imprensa

apenas como fonte, para tomá-la também como objeto de investigação (BOTELHO, 2011).

Princípio esse, diga-se de passagem, já formulado por Maria Helena Rolim Capelato e

reiterado em artigo recente, nos seguintes moldes:

A análise do jornal como fonte e objeto pressupõe uma avaliação crítica desse

documento, o que implica sua desconstrução. Nesse processo, devem-se considerar as

circunstâncias históricas em que a análise foi produzida, os interesses em jogo e os artifícios

utilizados pelos seus produtores. (CAPELATO, 2015, p. 115)

No Rio-Jornal1, por exemplo, encontra-se uma boa explicação para esse fenômeno

dos textos publicados sem indicação da autoria. À propósito de uma conferência proferida

1 Jornal diário do Rio de Janeiro, fundado por Paulo Barreto (João do Rio) em 21 de março de 1918, circulou

até 1924. Sua edição diária era publicada às 18 horas, no formato standard, sendo o exemplar avulso vendido

à 100 réis. A redação e administração do jornal situava-se na rua do Ouvidor 162. Com 8 páginas e 5 colunas,

apresentava notícias curtas e variadas sobre assuntos internacionais, a cidade, crimes e outros temas.

Publicava também poesia, humor, charges e fotografias. Dentre os seus colaboradores aparecem Carlos

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por Azevedo Amaral2, Raul de Azevedo3 publica um artigo tecendo alguns comentários sobre

a imprensa e o jornalismo feito naquele momento:

Se o jornalismo é sempre o reflexo duma época, ele tem de ser hoje leve e incisivo,

convincente e brilhante.

[…] O jornal, nos dias super-civilizados deste século, reclama uma esmerada feição

artística, cuidada com carinho a parte material, bem disposta a composição, de forma a ter

o aspecto agradável e de facilitar a leitura ao público eternamente apressado.

E nada mais intuitivo… Que diríamos duma bela mulher, de formosa alma, de plástica

soberba, entrouxa em vestes de desmazelo assinalável? (AZEVEDO, 1918, p. 3)

A sugestiva e curiosa comparação entre o jornal e a mulher, procura enfatizar a

importância da aparência do jornal, indicando que seria pouco útil um conteúdo relevante

caso sua apresentação seja descuidada. Então, o argumento é de que o jornal tem que ser

apresentável, esteticamente atraente, de “esmerada feição artística”, para ser capaz de seduzir

o leitor desses “dias super-civilizados” – ainda que não fique claro de que civilização estamos

efetivamente tratando…

O artigo prossegue de forma bastante instigante:

Azevedo Amaral frisa os problemas mais graves que surgem para nós, homens de

imprensa, a necessidade de exterminar a raça dos ‘amadores’ da classe, gente que sem o

amor e a competência reclamadas pela profissão, entra pela porta larga da nossa

hospitalidade generosa, quando nós expurgamos os charlatães e os rábulas que marcham e

perturbam corporações, o carinho com que, na sua feição de hoje, tem de ser o jornal: bem

feito, leve e profundo – um paradoxo... – sugestionador, uma verdadeira obra de arte (sic);

a vantagem enorme para a empresa e para o diário, dos jornalistas que lá trabalham, num

gesto amplo de abnegação, “despersonalisarem-se” em prol do jornal, esquecido o sistema

francês, triunfante o método inglês e norte-americano, sem a vitrine das assinaturas firmando

artigos, crônicas, e quiçá notícias, para surgir a homogeneidade que traz a força, isto é,

somente o jornal em si, em bloco, dominador e poderoso (AZEVEDO, 1918, p. 3).

Pelo trecho transcrito acima, é possível perceber porque tão poucos textos são

assinados neste e em outros jornais da época: é o fenômeno da “despersonalização”, o triunfo

do método inglês e norte-americano abolindo a assinatura dos artigos, crônicas e notícias

para, pretensamente, tornar forte, objetivo e homogêneo o jornal – que adquire ares de uma

entidade isenta, neutra e imparcial. Afinal, não é mais o autor/jornalista A, B ou C quem

Malheiro Dias, Padre Séve, Celso Vieira, Raul de Azevedo, Gilka Machado, Medeiros e Albuquerque,

Albertina Berta, Lima Barreto e o próprio João do Rio. 2 Antônio José de Azevedo Amaral (1881-1942) foi médico, escritor e jornalista. Na década de 1930

destacou-se como um dos ideólogos do Estado Novo e das teses eugenistas, tendo participado do 1º

Congresso Brasileiro de Eugenismo, realizado no Rio de Janeiro, em 1929. 3 Raul de Azevedo (1875-1957) nasceu em São Luís, no Maranhão, estudou em Belém, no Pará, e transferiu-

se posteriormente para o Rio de Janeiro, onde colaborou em diversos jornais e revistas, desenvolvendo

também atividade literária.

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escreve, quem afirma é o Rio-Jornal ou os jornais que adotam essa prática. A prerrogativa

da fala, do discurso, recai sobre o jornal/empresa, não mais sobre o jornalista e autor dos

textos publicados. O texto é assim destituído de sua autoria, procurando se negar ou ocultar

o seu processo de construção e tudo o mais que envolve o seu autor.

Nota-se ainda o esforço do articulista em afirmar o profissionalismo que vai se

impondo aos jornais desse novo tempo, banindo supostamente os amadores e charlatães de

suas páginas. No jornal/empresa do início do século há de prevalecer o profissional, ainda

que dele se exija “abnegação” e anonimato, de modo a conferir força, objetividade e

homogeneidade a cada órgão da imprensa, ou aos propósitos de seus proprietários, cuja voz

passa a se ocultar sob o manto e o mito da imparcialidade em construção.

De qualquer modo, a construção desse mito é um processo problemático, cujas razões

o próprio Raul de Azevedo reconhece:

Talvez pelo jornalista estar em convivência direta e diária com o público, sabedor

dos seus gestos e defeitos, obrigado pela profissão a indagar, a perscrutar, a analisar, a

dissecar, a elogiar hoje e a condenar amanhã, conhecedor daquilo que se convencionou

chamar “fraquezas sociais”, talvez por isso mesmo é que há, não podemos negar, uma certa

prevenção escandalosamente idiota contra uma classe que, de resto, como todas as outras,

no organismo social, - médicos e padres, engenheiros e bacharéis, comerciantes e militares,

políticos e artistas, - tem bons e maus.

[...] Para traduzir, e até para transcrever, é necessário critério e gosto, ter uma

intuição clara do “seu” público, e do meio em que se exerce a atividade (AZEVEDO, 1918,

p. 3).

Pelo visto, não era tarefa fácil construir um novo jornalismo profissional, tendo que

lidar com uma prevenção que não era idiota, visto se tratar muito mais de uma precaução

diante daqueles que se põem “a elogiar hoje e a condenar amanhã”, ou que se utilizam do

gosto e da intuição até mesmo para transcrever o que ouvem. Por mais que se procure afirmar

o contrário, a imprensa e a parcialidade parecem ter sempre andado de mãos dadas.

E é possível encontrar na própria imprensa, no mesmo período, a denúncia dessa

parcialidade muitas vezes escancarada, para não dizer escandalosa. Vejamos, por exemplo,

uma charge de Oswaldo, na capa do Braz Cubas4: intitulada “Jornalomania”, um mendigo

4 Braz Cubas: semanário político, artístico e noticioso foi fundado no Rio de Janeiro em 18 de abril de 1918.

Era publicado às quintas-feiras, com 16 páginas, e vendido à 200 réis o exemplar. Com redação e

administração situadas inicialmente na rua da Quitanda 48, 1º andar, mudou-se a partir do segundo número

para a rua Buenos Aires 77. Foi inicialmente dirigido por Paulo Silveira e Gustavo Barroso, embora apenas

Silveira continue na função a partir do segundo número. Seu formato equivalia aproximadamente a ¼ do

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aparece estendendo o chapéu para um aristocrático senhor de casaca, que passa diante de uma

banca de jornal. Na legenda, lê-se: “Mendigo (monologando): - Tu me pagas, desgraçado!

Deixa aparecer o meu jornal....”5. Na banca, é possível identificar alguns sugestivos títulos

de jornal: “A-Barriga”, “O Espinafrado”, “Encrenca”, “O Fallido”, “O Furado”.

Portanto, temos um interessante contraponto ao artigo de Raul de Azevedo, no Rio-

Jornal. Enquanto o artigo argumenta que o jornal moderno é “despersonalizado” e sua força

estaria justamente nesse aspecto, a charge do Oswaldo no Braz Cubas denuncia a

“jornalomania”, ou a estratégia de defender determinados interesses através da criação de um

jornal próprio.

No mesmo semanário, cerca de um mês após a edição acima, a série de contos

“Curiosidades encrencolandezas”, cuja autoria não é identificada, já que não é assinada6, é

dedicada aos jornalistas. A descrição da atividade reforça o contraponto com a alegada

imparcialidade que alguns jornais insistem em reafirmar. “O jornalista encrencolandez

colabora eficientemente no governo Encrencolandez. É ele quem elege os presidentes,

deputados e senadores, é ele quem faz ministros e altos funcionários federais”

(CURIOSIDADES..., 1918, p. 4). Nesse lugar fictício, de nome sugestivo, se faz do

jornalismo um balcão de negócios: “O jornal é um balcão como qualquer outro”

(CURIOSIDADES..., 1918, p. 4). Ou, numa descrição mais objetiva:

Com dinheiro na mão direita, tem-se os jornais encrencolandezes na esquerda. De resto, os

pobres foliculários têm imensa razão em prostituir assim a sua inteligência, fazendo do seu

cérebro um bordel onde entra quem quer e a preço adrede estipulado, ouve os elogios mais

agradáveis: têm imensa razão, visto como a vida lhes é asfixiantemente dispendiosa”

(CURIOSIDADES..., 1918, p. 4).

Então, para que servem os jornais nesse país imaginário descrito no conto em

questão? Vejamos:

tamanho standard. Contava entre os seus colaboradores com João do Norte, Claudio França, Ricardo Pinto,

Hamilton Barata, Benevenuto, Job Venal, Azevedo Amaral, Péricles Augusto, Carlos Rubens, Max

Vasconcellos, Enéas Ferraz Filho, Lima Barreto e os diretores do periódico. 5 Braz Cubas, 23 de maio de 1918, capa. 6 Nessa edição de 20 de junho de 1918, a seção “Curiosidades encrencolandezas” não é assinada. Essa série

foi iniciada na edição anterior, em 13 de junho do mesmo ano, com o tema “Os literatos”, também sem

assinatura. Contudo, na edição de 21 de novembro de 1918, a seção “Glórias encrencolandezas” é assinada

por João Phonas.

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Um cavalheiro, por exemplo, quer ser feito deputado. É moço, não tem relações políticas. É

impossível, pois, a eleição por votos. Que fazer? Muito pouco: vai a um jornal e explica

francamente a sua aspiração ao proprietário.

- Quanto custa?

- Dez contos.

Fecham o negócio e dentro em pouco o homenzinho lá está na Câmara, muito pimpão, a

arrotar o seu prestígio e a sua ampla notoriedade. O resultado é rápido e sempre favorável.

No mesmo dia do contrato a folha rompe em elogios ao jovem político, publica-lhe o retrato

sobre legenda dignificante, dá aos seus atos mais insignificantes uma interpretação

grandiosa e patriótica. É certo. Vem o pleito e o homem é eleito mesmo. O método aplicado

é infalível, embora algumas vezes tardo de efeitos. E não é só assim com os deputados: em

tudo o processo é o mesmo. Basta dizer que uma indústria qualquer, para vingar, tem que

pagar às gazetas uma larga reclame à título de reportagem sensacional. (CURIOSIDADES...,

1918, p. 4)

O teor do texto talvez explique o anonimato. Afinal, não é muito comum encontrar

nos jornais uma avaliação crítica do jornalismo que praticam. A imprensa não costuma pautar

o assunto. E quando o faz de forma tão escancaradamente negativa, parece preocupar-se em

zelar pela ocultação da autoria, já que o preço a ser pago por tamanha franqueza, em geral, é

elevado. O caso do veto ao nome de Lima Barreto nas páginas do Correio da Manhã7, de

Edmundo Bittencourt, após a publicação de Recordações do escrivão Isaías Caminha, é

bastante emblemático nesse sentido. Expor as entranhas da redação daquele famoso diário,

ainda que no plano ficcional, custou-lhe, inicialmente, o silêncio da crítica em relação ao seu

romance de estreia. E, em seguida, a proibição de se publicar o seu nome nas páginas daquele

jornal.

O fato é que, na denúncia contida no trecho acima, prestígio e notoriedade são

mercadorias fabricadas e vendidas pela imprensa, não apenas para os que aspiram uma

carreira política, mas “em tudo”, em todas as áreas. Daí a forçosa comparação do jornal com

o bordel, já que os que ali atuam, se dispõem a prostituir suas “inteligências” em prol da

construção – ou destruição? – da reputação de alguma iniciativa.

Um ativo crítico dos meios e modos de fazer jornalismo na Primeira República foi

justamente o escritor Lima Barreto. Tendo atuado em diversos jornais e revistas do início do

século XX, não se furtou a urdir detalhada apreciação dos procedimentos da imprensa. E fez

7 O Correio da Manhã foi um dos jornais mais populares do Rio de Janeiro no início do século XX. Fundado

por Edmundo Bitencourt em 1901, o diário notabilizou-se por cultivar polêmicas e manteve, durante a

Primeira República, uma postura oposicionista insistente, a começar pelo governo Campos Sales. Era um

jornal dos mais baratos e alcançou a tiragem de 30 mil exemplares nessa época. (BARBOSA, 2000)

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isso diversas vezes através da ficção, a começar pelo seu romance de estreia, o Recordações

do escrivão Isaías Caminha, já mencionado.

Largamente inspirado no ambiente da redação do Correio da Manhã, o escritor expôs,

em 1909, as entranhas de um imaginário jornal O Globo, denunciando as engrenagens

obscuras em torno da produção de notícias e informações. Além dos interesses mesquinhos

que pautavam o noticiário, alguns de seus personagens revelavam como, algumas vezes, o

que se supunha ser informação isenta, era na verdade pura invenção e farsa (BOTELHO,

2013).

Confiante no poder da literatura como meio de comunicação capaz de se constituir

numa efetiva forma de participação e engajamento no seu próprio tempo, o escritor produziu

uma obra de ficção destinada a intervir nos rumos dos acontecimentos que testemunhou e

nos quais esteve envolvido. Isso nos permite perceber na ficção desse autor um exemplo bem

acabado da concepção dialética presente na relação entre texto e contexto, a partir da qual

opera-se a abordagem aqui empreendida do texto literário.

A forma é, inevitavelmente, uma relação. Isto é, a forma depende de sua percepção, bem

como de sua criação. Como qualquer outro elemento comunicativo, do mais localizado ao

mais geral, ela é sempre nesse sentido um processo social que (...) se torna um produto social.

As formas são, assim, propriedade comum, com diferenças de grau, é certo, de autores e

públicos, ou leitores, antes de que possa ocorrer qualquer composição comunicativa.

(WILLIAMS, 1979, p. 186-187)

Esse preceito da literatura como forma, ou processo social, ou ainda como produto

social, nos termos preconizados por Raymond Williams, indica a importância de investigar

essa relação em que o texto literário reflete o contexto em que é produzido, ao mesmo tempo

em que atua sobre ele. Ou seja, não é apenas reflexo da realidade, nem expressão artística

que guarda distanciamento do seu contexto de origem, já que inevitavelmente atua sobre os

indivíduos e participa do movimento da história.

Nesse sentido, o caso do conto “O homem que sabia javanês”, publicado

originalmente no jornal Gazeta da Tarde8, em 20 de abril de 1911, é bastante significativo.

8 O jornal Gazeta da Tarde foi criado por José do Patrocínio, em 1880, no bojo do movimento abolicionista.

A colaboração de Lima Barreto neste periódico teve início em abril de 1911, quando Vitor Silveira era o

redator.

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Posteriormente, o conto foi publicado na primeira edição do romance Triste fim de Policarpo

Quaresma (BARRETO, 1915a).

Descrevendo a conversa entre Castro, o protagonista - o homem que "sabia" javanês

- e Castelo, seu amigo, enquanto tomam cerveja num bar, Castro conta ao amigo a história

de como se tornou professor de javanês e os desdobramentos disso:

- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugindo de casa

de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal

do Commercio o anúncio seguinte: “Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas

etc" (BARRETO, 2010a, p. 72)

Julgando que não enfrentaria muitos concorrentes para esta colocação, considerou

candidatar-se à função. Meteu-se na Biblioteca Nacional e pôs-se a estudar um pouco.

"Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de

Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía

uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu"

(BARRETO, 2010a, p. 72).

Candidatou-se à vaga e foi chamado pelo doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz,

barão de Jacuecanga, a quem deveria ensinar o idioma. Indagado sobre como aprendera

aquela língua, explicou que era de Canavieiras, na Bahia, e inventou que seu pai era javanês.

Tendo sido tripulante de um navio mercante que veio à Bahia, estabeleceu-se nas

proximidades de Canavieiras como pescador, casou-se e prosperou, ensinando ao filho o

idioma.

Embora jamais tenha aprendido javanês, meteu-se a ensinar ao velho barão, cujo

genro ficou encantado e assombrado com seus supostos conhecimentos. Sendo o genro do

barão um desembargador, poderoso e bem relacionado, acabou indicado para a diplomacia,

onde se tornou adido do Ministro das Relações Exteriores. Chegou até a representar o Brasil

num Congresso de Linguística em Paris. E posteriormente tornou-se cônsul em Havana.

Há um trecho do conto em que o autor faz referência ao Jornal do Commercio9, o

mesmo em que se publicara o anúncio convocando um professor de javanês:

9 Fundado em 1827, este era o mais antigo jornal em circulação na cidade do Rio de Janeiro nesse momento.

De perfil conservador, ao contrário do Correio da Manhã, manifestava frequentemente claro apoio a quem

estava no poder, dizendo-se “o verdadeiro defensor das classes conservadoras no Brasil”. Não nutria a

aspiração de ser um jornal popular, mas sim de falar para as classes dominantes. Possuía um poderoso e

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A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commercio, um artigo de quatro colunas

sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

- Como, se tu nada sabias? interrompeu-me o atento Castro.

- Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de

dicionários e umas poucas publicações de geografias, e depois citei a mais não poder.

- E nunca duvidaram? perguntou-me ainda o meu amigo.

- Nunca." (BARRETO, 2010a, p. 72)

Portanto, o autor refere-se ao jornal como o lugar da farsa, do embuste, ainda que se

trate do tradicional Jornal do Commercio, indica a preocupação do autor em reiterar as

críticas que endereça costumeiramente ao jornalismo. O que se conclui, a partir dessa

menção, é que no jornal publica-se de tudo, inclusive as mais deslavadas mentiras. A

imprensa aparece na trama como um importante instrumento na construção da reputação do

falso professor de javanês.

Ainda que apareça como elemento secundário na trama de vários textos ficcionais de

Lima Barreto, é frequente essa referência, o que sugere a importância do tema para o autor.

Se a imposição da “despersonalização” na imprensa carioca durante a Primeira República

predominou em vários periódicos, não foi um processo desprovido de conflitos e

enfrentamentos. Considerando os jornais e revistas com os quais Lima Barreto colaborou,

pode-se perceber a formulação de uma perspectiva crítica em relação a esse procedimento. É

o caso de Argos: Revista Illustrada10, na qual há uma explícita preocupação em garantir “a

seus colaboradores absoluta liberdade de pensamento”, afirmando ao mesmo tempo que

“toda publicação deve vir devidamente assinada, não se permitindo o anonimato”

(EXPEDIENTE, 1919, p. 2).

Argos foi criada em 1904 e teve longa duração. Em 1919 era dirigida pelo médico e

jornalista Júlio Pereira Leite. Acolheu, nesse mesmo ano, a publicação de textos de crítica

moderno parque gráfico no início do século. Ao contrário dos periódicos mais populares, não destacava os

dramas cotidianos, os crimes passionais e as tragédias diárias (BARBOSA, 2000). 10 Argos foi fundado em 2 de julho de 1904, como Jornal Illustrado. Em julho de 1919 passa a circular com o

subtítulo de Revista Illustrada, política, literária, comercial e scientifica. Sua redação funcionava da rua da

Misericórdia 106, mesmo endereço da Pharmacia Santo Antonio, possivelmente também de propriedade do

diretor do periódico, Julio Leite. De tamanho aproximado de A4, apresentava de 8 a 50 páginas em média,

divididas em duas colunas, sendo o exemplar avulso vendido a 100 réis. Dividia-se basicamente em duas

partes: a primeira era noticiosa e a segunda era uma seção literária. Figuravam entre os seus colaboradores:

Aloysio Silva, Marino Machado, Heitor Telles, Mário Imperial, João Finório, Correia Dias (ilustração),

Clóvis Bevilaqua, Garção Stockler, Luiz Dinart, Mello Moraes Filho, Xavier Marques, Catharina Leite, Olga

Torres, Nestor Victor e Lima Barreto, entre outros.

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10

literária de Lima Barreto sobre os livros Socialismo progressivo, de José Saturnino de Brito11

(BARRETO, 1919a), Levanta-te e caminha, de Walfrido Souto Maior12 (BARRETO,

1919b), e Canaes e lagoas, de Octavio Brandão13 (BARRETO, 1919c). Além disso, Vida e

Morte de M. J. Gonzaga de Sá foi objeto da crítica de Nestor Victor (1919) em suas páginas.

O que se nota em Argos é o mesmo princípio que Lima Barreto adotou ao criar sua

própria revista, a Floreal, em 1907. Num “Artigo inicial” de apresentação de seu número de

lançamento, o escritor afirma tratar-se de uma revista

(...) em que cada um poderá, pelas suas páginas, com a responsabilidade de sua

assinatura, manifestar as suas preferências, comunicar as suas intuições, dizer os seus

julgamentos, quaisquer que sejam.

Não estão (é preciso dizer) no seu programa as estúpidas hostilidades

preconcebidas.

(...) Pouca gente sabe também que o nosso jornal atual é a cousa mais ininteligente

que se possa imaginar. É uma cousa como um cinematógrafo, menos que isso, qualquer cousa

semelhante a uma féerie, a uma espécie de mágica, com encantamentos, alçapões e fogos de

bengala, destinada a alcançar, a tocar, a emover o maior número possível de pessoas, donde

tudo que for insuficiente para esse fim deve ser varrido completamente.

(...) Estamos certos também que essa média entre a sensibilidade obstruída de

afastados compatriotas, o semi-analfabetismo de uns e a futilidade de outros, atualmente

representada pelo jornal diário não tem direito a distribuir celebridades e estabelecer uma

escala de méritos intelectuais.

Demais, para se chegar a eles, são exigidas tão vis curvaturas, tantas iniciações

humilhantes, que, ao se atingir as suas colunas, somos outros, perdemos a pouca novidade

que trazíamos, para nos fazermos iguais a todo mundo. Nós não queremos isso. Burros ou

inteligentes, geniais ou medíocres, só nos convenceremos de que somos uma ou outra cousa,

indo ao fim de nós mesmos, dizendo o que temos a dizer com a mais ampla liberdade de fazê-

lo. (BARRETO, 1907, p. 3-7)

Além da afirmação do princípio da autoria, da responsabilidade implícita na

assinatura de um texto, o editor da revista não perde a oportunidade de tecer as mais duras

críticas à imprensa, situada entre a sedução do escândalo e a distribuição de celebridades, ou

entre o semi-analfabetismo e a futilidade. Para fazer frente à homogeneização que iguala a

todos na mediocridade da “despersonalização”, Floreal defende a liberdade de pensamento

11 José Saturnino de Brito foi um militante socialista e, junto com Lima Barreto, participou do jornal O

Debate, fundado em 1917, no Rio de Janeiro. Sobre o autor, Lima Barreto escreveu duas vezes. A primeira foi

essa crítica publicada em Argos, intitulada “Um livro curioso”, sobre o Socialismo progressivo (Rio de

Janeiro: Livraria Schettino, 1919). A segunda vez foi outra crítica literária, intitulada “A obra de um

ideólogo”, publicada no A.B.C., em 5 de fevereiro de 1921. 12 Poeta pernambucano, nascido em 1866, que migrou para o Rio de Janeiro. 13 Octávio Brandão Rego (1896-1980), foi militante anarquista e comunista. Canaes e lagoas é um estudo

sobre a região de Alagoas, estado de origem do autor. (BATALHA, 2009, p. 36)

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pautada na coragem que cada um deve ter de assinar o seu próprio nome abaixo daquilo que

escreve e publica nos jornais.

Embora esse artigo contenha resultados parciais de uma pesquisa sobre a imprensa e

o jornalismo no Brasil do início do século XX, o princípio da imparcialidade e da isenção

invocado nesse período parece insistir em atravessar os tempos, à despeito de toda a crítica

que já recebia há cerca de um século. Não foi por outra razão que, em 2011, o maior grupo

de comunicação existente no país, divulgou seus princípios editoriais, nos quais é possível

destacar o seguinte:

O Grupo Globo será sempre independente, apartidário, laico e praticará um

jornalismo que busque a isenção, a correção e a agilidade (...). Não será, portanto, nem a

favor nem contra governos, igrejas, clubes, grupos econômicos, partidos. Mas defenderá

intransigentemente o respeito a valores sem os quais uma sociedade não pode se desenvolver

plenamente: a democracia, as liberdades individuais, a livre iniciativa, os direitos humanos,

a república, o avanço da ciência e a preservação da natureza. (PRINCÍPIOS...)

O texto em questão define o início da história desse grupo editorial com a fundação

do jornal O Globo, por Irineu Marinho, em 1925. Desde então, é público e notório o quanto

o grupo empresarial em questão tem sido partidário e desprovido de isenção. O golpe

perpetrado contra o governo de João Goulart, em 1964, é um claro exemplo não só do

partidarismo d’O Globo, como também do seu desapreço pela democracia e desrespeito aos

direitos humanos ao longo de toda a ditadura que se estendeu por duas décadas. Não foram

poucas as vezes também em que o mesmo grupo promoveu a criminalização dos movimentos

sociais e dos movimentos organizados da classe trabalhadora, evidenciando da mesma forma

o seu partidarismo e os interesses políticos e econômicos que defendeu.

Ainda assim, Ali Kamel, diretor geral de jornalismo da TV Globo, teceu o seguinte

argumento:

O jornalismo é uma forma de conhecimento, de apreensão da realidade, segundo

um método próprio que, se seguido corretamente (e não são muitos os veículos que se

esforçam por segui-lo), leva ao relato e à análise dos fatos com fidelidade. (...) Diante de

uma miríade de acontecimentos, os jornalistas são treinados para discernir que fatos têm

relevância e narrá-los e analisá-los de maneira lógica e isenta. (KAMEL, 2007)

Em 1913, Lima Barreto publicaria no jornal operário A Voz do Trabalhador14, um

artigo expressando suas afinidades com a causa dos trabalhadores e com o próprio

14 Órgão da Confederação Operária Brasileira, criado em decorrência do Primeiro Congresso Operário,

ocorrido no Rio de Janeiro, em 1906. Circulou, num primeiro momento, entre 1908 e 1909, tendo uma

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anarquismo (BARRETO, 1913). E no mesmo jornal, alguns anos antes dessa colaboração,

publica-se um ataque contra a chamada imprensa burguesa, dirigido especificamente ao

periódico A Imprensa15, num artigo intitulado “Concurso contra concurso”, que não é

assinado provavelmente por representar a posição do jornal nesse debate:

Decididamente, é preciso abrir séria campanha contra a exploração jornalística que

visa corromper cada vez mais o operariado.

Ainda agora ‘A Imprensa’ acaba de iniciar um concurso para saber “Qual o

operário mais popular e simpático dos subúrbios”.

É um recurso comercial – reclame para o jornal e imprudente caçada ao níquel dos

operários simples que têm ainda fé de todas as espécies: nos jornalistas, no Estado, na

religião e nas boas intenções dos patrões.

Com tais expedientes, o que se pretende, pois? Simplesmente mostrar que o

jornalismo se preocupa com os operários e os quer “elevar e engrossar”!

Mas é um caminho mau esse. É um pernicioso movimento que pretende despertar a

vaidade no operariado, distraindo-o [...], é preocupar conservar a passividade desse

numeroso operariado que aí se agita, numa miséria física e moral e incapaz de revoltar-se.

Os inimigos do proletário [...], esses jornalistas que não têm o menor escrúpulo em

assacar contra operários honestos as mais vis calúnias, como o fez “A Imprensa”, há pouco

tempo, insinuando que trabalhadores recebiam dinheiro para fazer propaganda – só podem

lançar mão dos meios mais ignóbeis para afastar da luta os que sofrem e trabalham.

Revoltando-nos contra essa baixa exploração, apontamos aos operários dos

subúrbios “A Imprensa”, e o seu cerebrino diretor, como um mistificador da opinião e

elemento prejudicial a nossa causa.

Para terminar, iniciamos também um concurso:

“Qual é o jornalista mais crápula, mais mistificador do Rio de Janeiro? ”

Aguardamos a resposta dos camaradas. (CONCURSO..., 1909)

O olhar do historiador se volta para o passado sempre regido pelo presente, pelas

preocupações que mobilizam a sua atenção no tempo histórico em que vive. Por esta razão,

o universo da imprensa e do jornalismo no Rio de Janeiro da Primeira República abre uma

ampla possibilidade de interlocução com os desafios que enfrentamos nas primeiras décadas

do século XXI. E se Kamel e o Grupo Globo insistem em esgrimir o argumento da isenção e

da imparcialidade, Lima Barreto e A Voz do Trabalhador funcionam como sólidos

contrapontos nesse campo, pois há cerca de um século, já nutriam plena convicção de que os

jornais defendem interesses políticos e econômicos – ainda que procurem ocultá-los através

segunda fase entre 1913 e 1915. Ao publicar seu artigo neste jornal, Lima Barreto usaria o pseudônimo Isaías

Caminha. 15 O diário A Imprensa foi fundado por Alcindo Guanabara (1865-1918), que o dirigiu entre 1903 e 1914. Seu

diretor também fez carreira política e foi aliado dos governos Campos Sales e Hermes da Fonseca.

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da omissão dos autores dos textos que publicam -, quase sempre contrários aos dos

trabalhadores e das camadas populares. Sua parcialidade, partidarismo e ausência de isenção

já eram notórias naquele tempo. Assim, uma enquete nos moldes do concurso promovido por

aquela folha operária talvez trouxesse à tona uma profusão de nomes contemporâneos

bastante conhecidos de todos nós nesses dias que correm.

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