sobre o roubo da história de jack goody

Upload: rosenilson-santos

Post on 09-Jan-2016

224 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Interessante resenha sobre O Roubo da História de Jack Goody

TRANSCRIPT

  • Resenha

    O roubo da histria de Jack Goody: uma leitura da Histria das Relaes Internacionais Rodrigo Corra Teixeira i

    Resenha de: GOODY, Jack. O roubo da histria: como os ocidentais se apropriaram

    das ideias e invenes do Oriente. So Paulo: Ed. Contexto, 2008. 368 pginas.

    O roubo da histria uma das mais polmicas obras sobre o eurocentrismo, colocando ques-

    tes historiogrficas importantes para a compreenso dos sistemas internacionais no trans-

    curso da histria mundial, particularmente em relao emergncia das potncias hegem-

    nicas europeias na modernidade.

    O autor Jack Goody, que nasceu em Londres em 1919, um antroplogo de formao, que

    se tornou etnohistoriador e africanista.

  • 64 Conjuntura Internacional Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 63 - 68, 1o sem. 2013

    obra tem uma estrutura muito equili-

    brada no que se refere diviso em partes e captu-

    los. Dividida em trs partes, a primeira (Uma

    genealogia sociocultural) enfatiza a validade da

    concepo europeia de um tipo equivalente do

    rabe isnad, uma genealogia sociocultural, que

    surge da Antiguidade, progride para o capitalismo

    por intermdio do feudalismo e coloca a sia na

    posio de desptica ou atrasada. Em sua segunda

    parte (Trs perspectivas acadmicas) o autor exami-

    na trs grandes eruditos (Needham, Elias, e Brau-

    del), que embora tenham tentado falar da Europa

    em relao ao mundo, sempre privilegiaram os

    europeus. J na terceira parte (Trs instituies e

    valores), Goody interpreta as pretenses de vrios

    europeus de se apresentarem como guardies de

    algumas estimadas instituies, como um tipo

    especial de cidade, de universidade, de democracia,

    e de certos valores, como o individualismo, e at

    mesmo de algumas emoes, como o amor (amor

    romntico).

    As principais influncias intelectuais de Goo-

    dy formam um painel bastante ecltico, pois vai de

    marxistas a liberais, de evolucionistas a culturalis-

    tas, de catlicos a budistas, gerando um erudito

    dilogo entre, Marx, Weber, Freud, Lvi-Strauss,

    Marshall Sahlins, Talcott Parsons, Edward Shils,

    Meyer Fortes, Eric Wolf, Gordon Childe, E. P.

    Thompson, Perry Anderson, Sidney Mintz e

    Edward Said, entre outros. Diante disto, decep-

    cionante constatar que a edio brasileira no

    apresenta nem ndice remissivo, nem ndice ono-

    mstico.

    O "roubo" (ou "apropriao") se deu

    com os europeus escrevendo sobre sua histria e

    a do restante da humanidade a partir de seu pon-

    to de vista, criando uma nfase numa suposta

    excepcionalidade do Ocidente no tocante a cria-

    o de valores (democracia, liberdade, igualdade

    de direitos), instituies (universidades) e mesmo

    sentimentos ("amor romntico" e individualis-

    mo). Ao mostrar que democracia, capitalismo,

    liberdade e at o amor no so invenes especi-

    ficamente ocidentais ou conquistas de um pro-

    cesso histrico supostamente exclusivo, que ex-

    clui o Oriente, denuncia-se os limites de con-

    fundir a trajetria da humanidade com a narrati-

    va histrica criada pelo ponto de vista europeu.

    O objetivo do autor relatar que a Eu-

    ropa encobre a histria do mundo que no seja

    europeu, e devido a isso, no tem interpretado

    bem sua prpria histria, pois imps seus concei-

    tos e perodos histricos, comprometendo nossa

    viso da sia tanto acerca do passado quanto

    para o futuro. Goody ainda afirma que a cincia,

    a tecnologia e a economia do Japo, dos "tigres

    asiticos", da China e da ndia talvez estejam

    perto de, novamente, retomar a hegemonia

    mundial.

    O etnocentrismo dos estudiosos ociden-

    tais est em projetar no passado da Europa a

    atual superioridade ocidental, de modo que essa

    A

  • Conjuntura Internacional Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 63 - 68, 1o sem. 2013 65

    superioridade, que considerando a histria como

    um todo no passa de conjuntural, parea per-

    tencer essencialmente cultura ocidental. A Eu-

    ropa controla a histria do mundo desde o sculo

    XIX, mas a China, os rabes e outros povos asi-

    ticos tambm tiveram conquistas valiosas.

    Esse controle nitidamente percebido

    nas concepes de tempo e espao. Antes da

    escrita o tempo era contado atravs de fenme-

    nos naturais, como a projeo do sol, as faces da

    lua e as quatro estaes. O clculo do tempo foi

    apropriado pelo Ocidente, no qual as datas so

    descritas antes e depois de Cristo. Nesse caso, as

    eras relativas Hgira, aos hebreus e ao ano chi-

    ns no so mencionadas na historiografia aca-

    dmica e muito menos usadas internacionalmen-

    te.

    Devido s representaes grficas, que

    surgiram junto com a escrita, as concepes de

    espao seguiram as definies europeias. A proje-

    o de Mercator, que coloca a Europa no centro

    do mundo, uma das vises de superioridade da

    Europa, por exemplo. Sem dvida, cada povo

    tem noes de espao distintas, mas o fato que

    tais concepes grficas mapeiam de modo preci-

    so os objetos no espao, permitindo um estudo

    mais avanado do ponto de vista geopoltico. O

    mapeamento foi desenvolvido pelos homens

    babilnicos e mais tarde pelos gregos e romanos,

    embora tal conhecimento tenha desaparecido na

    Europa durante a idade das trevas. Apesar disso,

    muitos avanos continuaram ocorrendo no

    mundo rabe, na Prsia, ndia e China.

    O Roubo da histria no somente de

    tempo e espao, mas tambm dos perodos hist-

    ricos. A ideia linear de contagem do tempo pas-

    sou a dominar com a colonizao europeia, mu-

    dando a cultura de muitos povos ao intitular a

    palavra progresso como sinal de educao e de

    cultura. A noo da linearidade est presente em

    todas as sociedades, mas a idia de progresso

    um conceito especificamente prprio da cultura

    europia. Depois do advento do iluminismo, o

    mundo comea a ser regido pela ideia do pro-

    gresso, inclusive no que tange evoluo histri-

    ca. A linha evolutiva Antiguidade-feudalismo-

    capitalismo, por exemplo, faz a histria inclinar-

    se apenas para a Europa, tomando assim uma

    direo nica.

    Um exemplo disso, segundo o autor,

    que nenhum historiador alegou at agora que o

    capitalismo industrial se desenvolveu espontane-

    amente em qualquer lugar exceto na Europa e

    sua extenso americana (GOODY, 2008,

    p.109). A viso hegemnica privilegia a Europa,

    no sentido de que os europeus tiveram sua pri-

    mazia econmica com o feudalismo, o que levou

    Revoluo Industrial. A questo central saber

    quais processos levaram os eruditos europeus a

    considerarem o feudalismo europeu o nico a

    levar ao desenvolvimento do capitalismo. Sem

    dvida, o feudalismo europeu foi nico, mas

    como so todas as formaes sociais. Isso no d

  • 66 Conjuntura Internacional Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 63 - 68, 1o sem. 2013

    Europa o direito de dizer que foi o seu feuda-

    lismo que deu surgimento ao processo capitalista.

    No centro das discusses conceituais de

    Goody esto trs grandes historiadores. O pri-

    meiro Joseph Needham, que estudou a cincia

    da China e surpreendeu a muitos ao dizer que ela

    teria sido igual ou mesmo superior a do Ociden-

    te, pelo menos at o sculo XVII. O outro o

    alemo Norbert Elias, que disserta sobre o pro-

    cesso civilizatrio. Por ltimo, o francs Fernand

    Braudel, erudito que discorre em seus estudos

    sobre vrias formas de capitalismo no mundo,

    mas acredita que foi somente na Europa que

    surgiu o desenvolvimento puramente verdadeiro

    do capitalismo.

    Segundo Goody, Needham errou quan-

    do disse que o renascimento aconteceu somente

    na Europa e foi restrito esfera da arte. Ne-

    edham passou muitos anos documentando o

    crescimento da cincia chinesa, mas seu maior

    objetivo foi tentar explicar que apesar de toda

    vantagem oriental sobre o Ocidente, quem reali-

    zou a ruptura para a cincia moderna foram os

    Ocidentais e no os orientais. Esse paradoxo

    conhecido como o problema de Needham. At

    a Renascena, para o historiador, os chineses e

    sua cincia estavam frente da Europa Ociden-

    tal. At meados de 400 da Era Crist a Europa e

    a China estavam praticamente no mesmo pata-

    mar. Depois disso a Europa decaiu e a China

    continuou a crescer avanando at o sculo XV.

    Nesse mesmo sculo, a Europa deu um salto

    repentino, em funo do nascimento da cincia

    moderna, que vista como tendo surgido com a

    Renascena, a Reforma e a ascenso do capita-

    lismo.

    Ao tratar da viso de Norbert Elias, Go-

    ody trata de como a histria sempre acompa-

    nhada das civilizaes, sempre carregada de uma

    viso etnocntrica, na qual a luta ganha pelo

    Ocidente. A concepo de civilizao de Elias

    est ligada a fatores sociais e psicolgicos. Em

    seus estudos, ele mencionava que depois da Ida-

    de Mdia os homens comearam a censurar suas

    maneiras levando ao que ele considera sociog-

    nese dos sentimentos de vergonha e delicadeza e

    de forma mais geral o comportamento civiliza-

    do (apud GOODY, 2008, p.180). Com o pas-

    sar do tempo, essa vergonha tornou-se culpa.

    Esse sentimento deu origem passagem do feu-

    dalismo para o absolutismo.

    Mesmo havendo importantes mudanas

    direcionadas ao comportamento europeu na

    Renascena, no se deve desconsiderar outras

    sociedades, como, por exemplo, a China, que foi

    uma sociedade civilizada:

    L tambm o desenvolvimento dos costumes, o uso de intermedirio (pauzinho hashi) entre a o alimento e a boca, os rituais complicados de sauda-o e limpeza corporal, as restries da corte em contraste com a objetividade dos camponeses, co-mo, por exemplo, na cerimnia do ch, tudo isso apresenta paralelo com a Europa da Renascena (GOODY, 2008, p.198).

    No captulo acerca de Norbert Elias,

    Goody volta questo de que as concepes de

  • Conjuntura Internacional Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 63 - 68, 1o sem. 2013 67

    Antiguidade, feudalismo e civilizao tem sido

    apresentadas como sendo exclusividade da Euro-

    pa, excluindo o resto do mundo do caminho

    para a modernidade e para o capitalismo. Algu-

    mas questes so levantadas, como: O que teria

    de fato acontecido na Europa para que ela tivesse

    inventado o capitalismo? Ou seria essa afirmao

    dos historiadores mais um exemplo do roubo da

    histria?

    Braudel menciona, por exemplo, que

    um dos problemas da China ao no conseguir

    avanar mais, cedendo espao para a Europa, foi

    que ela no possua um sistema monetrio com-

    plexo, que para ele era necessrio para a produ-

    o e operao cambiais, enquanto a Europa

    possua esse tipo de sistema. Essa alegao in-

    trigante por que as civilizaes martimas sempre

    tiveram fortes ligaes umas com as outras. O

    Ocidente, dessa forma, ostenta possuir no saber

    cientfico, tecnolgico e econmico uma superio-

    ridade sobre o resto do mundo. No entanto,

    estas vantagens so relativamente recentes,

    sendo discutvel que tenham ocorrido antes do

    sculo XVII ou mesmo antes da Revoluo In-

    dustrial.

    Assim, por exemplo, desde o incio da

    Idade Mdia, na Europa, at o sculo XVI ou

    XVII, a China esteve frente do Ocidente, no

    que diz respeito tecnologia e economia. Basta

    lembrar que foi do Oriente que vieram as inova-

    es que Francis Bacon, no sculo XVI, conside-

    rava centrais para a sociedade moderna: a bsso-

    la, o papel, a plvora, a prensa, a manufatura e

    mesmo a industrializao da seda e dos tecidos

    de algodo.

    Segundo o esquema conceitual marxista,

    foi a dissoluo do escravagismo antigo que pro-

    duziu as condies necessrias para o estabeleci-

    mento do feudalismo medieval e a dissoluo

    deste que gerou as condies necessrias para o

    surgimento do capitalismo e da modernidade na

    Europa. De acordo com esse esquema, onde no

    se encontraram tais condies, o capitalismo no

    surgiu espontaneamente. assim que, para os

    historiadores europeus, se pretende explicar por

    que a sia no teria conhecido o capitalismo,

    antes de ser presa do colonialismo e do imperia-

    lismo. A regio teria ficado, por milnios, atolada

    na estagnao daquilo que Marx chamava de

    "modo de produo asitico". Ora, essa estagna-

    o mesma jamais passou de um mito.

    Goody questiona, dessa forma, os histo-

    riadores que aplicaram a noo de feudalismo a

    realidades geogrficas e histricas distintas da

    Europa Ocidental, mas apesar deste cuidado, ele

    prprio realiza alguns anacronismos quando

    interpreta como antiguidades, capitalismos, re-

    nascimentos e processos de modernizao fen-

    menos que ocorreram em outras regies do

    mundo e no apenas na Europa. Apesar disto,

    chama a ateno para as representaes do cha-

    mado Oriente em discursos ocidentais.

    A ideia do relativismo cultural, desen-

    volvida principalmente pela Antropologia,

  • 68 Conjuntura Internacional Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 63 - 68, 1o sem. 2013

    importante tambm para a Histria das Relaes

    Internacionais. Pois se no podemos avaliar valo-

    res, no mnimo prudente supor que toda cultu-

    ra tem algo de nico para contribuir ao fundo

    comum da sabedoria humana, tanto na moral

    quanto em outros campos, por mais difcil que

    seja de demonstrar. Assim, toda cultura contribui

    para a histria do mundo, da humanidade e, por

    conseguinte, para a Histria das Relaes Inter-

    nacionais. Torna-se necessrio superar a concep-

    o de estrangeiro, constitudo enquanto outro,

    apenas como uma variante do eu (s h ho-

    mens e no homens, europeus e no europeus,

    etc.). No se pode reduzi-lo a sua diferena e ao

    meu discurso sobre ele, preciso reconstitu-lo

    em sua humanidade: sua existncia precede,

    perpassada e ultrapassada por ele.

    Recebido em 26 de maro de 2013

    Aprovado em 05 de abril de 2013

    i Professor do Departamento de Relaes Internacionais da PUC Minas. Membro do Grupo de Pesquisa das Potncias Mdias (Middle Power Research Group) - PUC Minas.