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Sobre o Kannário e a Nação Kannariana...
Por Thais Machado e Gimerson Roque.
A Nação Kannariana de verdade!
Eu sou um fruto da sociedade. Sou o que ela me tornou. E
agora que digo o que me vem na cabeça eles não me
querem mais. Foi assim que você me criou, América.
Tupac Shakur.
Há pouco tempo assistíamos o filme Redenção, baseado na história real de Stan
'Tookie' Williams, fundador de uma gangue de Rua de Los Angeles conhecida como
Crisps. De dentro do corredor da Morte, 'Tookie', conta para a jornalista Barbara Becne,
que viria se tornar sua parceira de vida, sobre sua trajetória e as razões que nutriram sua
relação com a violência. Sua história é de redenção. Passa a escrever livros e militar
contra a violência e pela conscientização de crianças e jovens negros. É uma história
impressionante e admirável!
Outro filme referência que propormos pensar sobre o Kannário, é
Reencarnation (Reencarnado), sobre a trajetória do rapper Snoop Dog, agora Snoop
Lion, o próprio comenta sobre sua redenção em relação à vida de gangstar,
envolvimentos com mulheres, crime e violência. Snoop, também repensa as causas e os
efeitos da violência e de quando cafetão “esquecia” da mulher e filhos para se dedicar a
vida em um harém, e deixa uma mensagem de paz como redenção e liberdade!
Parece que os dois protagonistas tentam considerar como condições estruturais
das comunidades periféricas urbanas deram origem a adaptações incorporadas em um
“código de rua" e de conduta que influencia a identidade e o comportamento,
principalmente em respeito à violência. Essas adaptações ajudam a criar um ambiente
interpretativo onde a violência é responsável, e quase normativa.
As recentes polêmicas sobre Kannário e sua explosão midiática e apoteótica no
carnaval de Salvador fez com que tomássemos coragem e assim decidir de uma vez por
todas tirar do forno nossas considerações a respeito do cantor, seu público e um pouco
do que suas letras e seus discursos representam e qual proposta de mensagem é passada
pelo Príncipe do Guetho, para seus fãs kannarian@s.
Já esse nosso interesse não é tão recente assim, há pelo menos três anos temos
investido numa procura de desenvolver trabalhos, sobretudo acadêmicos sobre Kannário
(quando ainda vocalista da banda A Bronkka), o pagodão, e adeptos ao estilo musical,
foram duas etnografias, um artigo publicado ainda em 2012 e também um Trabalho de
Conclusão de Curso em 2013, além de Grupos Focais e rodas de conversas (2013-2014)
onde direta ou indiretamente o Kannário era tema proposto por nós do “Brincadeira de
Negão”1 ou pelos próprios jovens estudantes parceiros nos nossos diálogos. Onde
constatamos que há uma identificação de muitos dos jovens com o cantor e com o “sub
estilo” musical que ele se tornou um dos ícones dentro do pagodão, “o Kannário pra
mim não é uma banda, pra mim ele é um estilo dentro do pagode”.
O “sub estilo” (iniciado por Ed e Nenel, quando ainda no Parangolé em 2004)
aparece com modos de interpretar, representar e compreender os contornos de gueto, ao
passo que se mostra interessada em enunciar o favelado e essa vida na favela de uma
forma ressignificada “Não somos essa fera que esse sistema impõe pra você, aqui não
tem bicho, somos cidadãos, queremos respeito e paz, amor e união, é só enxergar, tire o
mal do seu olhar...” (Só Queremos Paz/2014).
Num é de hoje que Igor Kannário produz musicalidade na Bahia. Antes mesmo
de estourar na Bronkka, foi vocalista de outras bandas de pagode (Coisa do Samba e
Swing do P), e como ele mesmo já disse, vem se criando na musicalidade da periferia
desde sempre. Gosta de afirmar que é da Liberdade, bairro de Salvador, que é do gueto,
que é favela. Pensamos que essa afirmação da identidade e a busca por essa
identificação não seja gratuita ou irrelevante, a identidade fala muito sobre a realidade
social do sujeito, demarca fronteiras, faz distinções, serve para entender a inserção do
sujeito no mundo e sobre sua relação com o outro também. A identificação dos fãs e
seguidores com o Kannário deu origem a Nação Kannariana, há alguns anos nos
denominamos assim, e é como gostamos de ser chamados, o que provoca uma
“fidelidade musical” com suas letras e swings que quando entoados ninguém fica
parado.
De todo modo à trajetória do Kannário tem sido marcada por intensa
estigmatização, e acredito que exatamente por ser um fenômeno que contempla a
periferia e por aglutinar seu público massivamente em suas apresentações. Não é a toa
que os últimos dois anos de carreira solo dele tenham sido tumultuados e permeados de
polêmicas. Nos carnavais de 2013/2014, o Kannário não foi convidado a desfilar em
nenhum dos circuitos da folia, acreditamos que já por conta das polêmicas. Na mesma
época, em alguns dos seus shows pelos interiores ocorreram brigas, como também dois
1 Tais trabalhos foram desenvolvidos por Gimerson Roque, um dos autores deste trabalho, assim como
membro bolsista do projeto citado “Brincadeira de Negão” até o ano de 2014.
episódios de tiroteio com casos de morte2. Em meio a isso, uma efetiva e recursiva
construção dos estereótipos ligados à favela nos noticiários: o Kannário e o seu público,
portador da violência e criminalidade. É bem verdade que as brigas e as mortes
aconteceram, contudo a imprensa em questão não apenas informa e relata o
acontecimento, mas se constitui em intérprete social, capaz de influenciar as
representações e o debate público a respeito dos assuntos ligados à favela.
O Kannário é barril viu?! Barril dobrado e agora barril do bem também. Mas o
que isso quer dizer? Interessante, que muito das opiniões daqueles que evidentemente
não gostam muito do Kannário e do seu estilo, e mesmo da sua música, é de que ele
encarna e apologiza a violência. De que suas letras incentivam a criminalidade e seus
shows induzem a uma adrenalina que sempre dá no que não presta. Com toda
pertinência que tais interpretações venham ter, estão desterritorializadas da cultura de
onde são produzidos tais códigos. De outro lado, os Kannarian@s parecem compartilhar
dos significados das tantas expressões recorrentes em letras do artista. Barril pra nós
quer dizer somos “duros na queda”, quer dizer que somos forte, que somos resistente e
que somos combativos. É desse modo que a letra da música Kannário é Barril se
configura:
Tão dizendo que eu estou induzindo a malandragem
Com Tanta coisa pra se preocupar
O desemprego ou a desigualdade
Querem me calar...
Sou Kannário sou do guetho
Canto aqui a realidade...
Durante o ano passado foi possível acompanhar um pouco desse momento. No
Salvador Fest de 2014, o Kannário e sua banda faz uma aparição que demonstra muito o
anseio e as motivações desse momento. A banda entra toda de branco, e ele carrega um
pombo que simbolicamente faz referência à paz. É a partir daí que surgem canções
como Só queremos Paz e a expressão Barril do Bem. O Kannário é sem dúvida uma voz
que ecoa de um lugar da periferia. As periferias são muitas coisas e não apenas o
Kannário e sua musicalidade, é claro. Mas é interessante entender que este lugar
2 Os dois episódios aconteceram nas apresentações realizadas em Cabuçu (2014) em São Francisco do
Conde (2014).
também tem uma voz e que esta voz tenha expressão. Isto diz muito sobre a atualidade e
sobre a produção de cultura na favela que toma espaço.
É importante dá uma olhada na carreira de Igor Kannário e principalmente
nestes dois anos, como é fundamental para aqueles que se interessam, e aqueles que
fazem os estudos da cultura e das identidades, conhecer suas músicas, as mensagens de
suas letras. Vale ressaltar o quanto tais estudos ignoram largamente essas musicalidades
e como muitas vezes nossas fontes se restringem apenas à literatura, enquanto ignoram a
cultura popular. Outra coisa é olhar com atenção a postura do Kannário em seus shows e
a relação com seu público. Muitos registros nos mostraram um Kannário consciente,
preocupado com os casos de brigas e violência que se desdobravam nos shows,
trocando ideias e intervindo muitas vezes na intenção de manter a paz e que tudo possa
seguir sem brigas e violência utilizando de palavras como: “Favela não briga com
Favela” ou ainda em alguns casos prometendo interromper o show e devolver o dinheiro
se caso continuasse as brigas É notável também o quanto ele interfere nos casos de
abusos praticados pelos seguranças e policiais contra seu público. Algumas entrevistas
demonstram o quanto ele tá ligado e lamenta toda perseguição feita à sua carreira, mas
também é como se refletisse algo que quisesse aliviar a barra pesada que as
comunidades tem enfrentado diante do genocídio e extermínio recorrentes.
A representação da favela e dos favelados é a do lugar do risco contemporâneo,
a partir do qual as narrativas do medo são reiteradas no imaginário social. A produção
de representações sobre áreas de risco e a definição de políticas repressivas sobre “a
favela” são alguns destes efeitos de ordem prática. Mas há ainda uma produção de
ordem subjetiva, que afeta a formação de identidades de todos nós. A epígrafe de Tupac
e os dois filmes citados são trazidos pra ajudar a falar disso, a falar da violência como
substância na realidade periférica, como linguagem que constitui os indivíduos, dado a
violência real existente. Só que a parada na sociedade é outra, a violência é culturalizada
e naturalizada como sendo de lá e daquele povo, a significação do lugar da favela e dos
favelados é profundamente afetada não apenas pelo que acontece, mas pela forma com
que estes acontecimentos são relatados e pelas representações criadas, e assim que se
segue constituindo esses testemunhos sobre o Kannário e sobre segmentos como o dele.
Durante o carnaval de Salvador deste ano algo inusitado sobre a carreira de
Igor Kannário, mas não tão inusitado assim, nos provocou muitas reflexões. De modo
fumegante, ele transitou das páginas policiais e noticiários sensacionalistas como
bandido, para apogeu e figura mais badalada do carnaval. Há poucos meses atrás
estávamos chateados pela exposição do Kannário em um caso relacionado a apreensão
de uma quantidade de maconha que o mesmo estava portando. Além de admitir que é
usuário da cannabis, o Kannário corajosamente quis assumir sozinho o ocorrido,
tentando livrar dois amigos da punição policial, certamente consciente do tratamento
abusivo que os parceiros teriam. Nenhuma novidade quanto a impressionante
quantidade de pessoas na avenida acompanhando o trio do Kannário no carnaval. Sua
nação compareceu, isso era esperado! O contornos e os desdobramentos de sua
significativa participação no carnaval é que nos faz dar atenção para o chamado que a
hegemonia faz ao primeiro sinal e oportunidade que venha ter.
O chamado, neste caso, é o que salta à atenção do Kannário, para que ele
procure ascender a uma postura de vida e de comportamento que por princípio o
colocaria no “caminho do Bem”, seja de natureza espiritual, seja um Bem para a
humanidade ou, simplesmente, uma disposição a assumir um comportamento que
tenderia para o tão apregoado bem comum da sociedade em que vive. Eis que para isso,
deve-se apenas seguir o referencial do chamado, com o ideal de igualar-se a sua
imaculada forma de introjetar seu paradigma universal. Mas ao mesmo tempo em que
este entendimento do senso comum é partilhada como sendo a que melhor administra o
sujeito a uma vida apaziguada, lhe conferindo o direito a uma espécie de liberdade
assessorada por fora e vigiada por dentro, coerente ao nível de liberdade que a própria
sociedade poderia tolerar sem ser ameaçada em seu organismo, instaura-se, na mesma
dimensão, um assujeitamento sutil que subordina e desvia tanto o anseio quanto mais
ele adere, na espera de recompensas ou ganhos, ao modo conveniente e útil de ser.
O modo que agrega o sujeito à corporação desse esquema da sociedade, através
de uma relação dicotômica e contraditória para com o corpo de normas, o qual devolve
o abono em forma de recompensas ou castigos, é bastante peculiar do Estado e sua
fabricação da hegemonia frente aos poderes sociais estabelecidos. Por isso é tão
significativo, e espantoso ao mesmo tempo, ver o prefeito de Salvador cantando a
música lema do Kannário e de sua nação: Tudo Nosso, Nada deles. O prefeito não
caberia no grito ecoado pela favela soteropolitana através do Kannário, que ao dizer
“Tudo Nosso”, faz referência ao conjunto de bens, de valores que dizem respeito à
favela, à um legado do próprio Kannário e dos seus fãs. A música é entoada como
resposta a fase perseguida, difícil da banda. Parece querer dizer que ninguém vai
“mexer com a favela”, ninguém “vai tirar o que é nosso”, e não vamos dar pra ninguém.
O carnaval da prefeitura de salvador e das empresas envolvidas, quiseram forjar um
circuito popular, uma festa feita para “o povo”, na qual Igor Kannário ganha destaque,
na qual possa parecer o que não é de verdade, um grande negócio do capital, longe e
muito longe de ser pensado para a população. É por isso que o Estado é um grande
estimulador e reprodutor da impotência, este modo de codificar seus membros pela
relação de submissão e violação. É por medo das punições e esperança das recompensas
que o sujeito se subordina a um poder que o separa da sua própria potência de agir e
pensar livremente, almejando sua própria sujeição.
Nesse momento ouvimos o novo álbum do Kannário, com letras sobre o
consumo, com a participação de Ed City, MC Guimé, enquanto riscamos o desfecho do
texto. Estamos no ambiente da criação, da agência, da autonomia. As subjetividades
parecem fendas entre a potência e a mercadoria. Ele é criação e é reprodução de
poderes. O capitalismo produziu para si ambientes ainda mais complexos. Não apenas
os sujeitos disciplinados, mas algo fluido do controle. O Kannário, para nós estaria
ligado a sua própria potência de brotar e afirmar seus elementos criadores. Aqui de onde
fala, para a grande nação kannariana, é uma voz geradora de novos devires, um agente
dos guetos, como outros tantos antes dele. No entanto, a máquina de submeter o
conjunto das relações sociais em investimentos que a própria sociedade faz para se
manter coesa, fisga o Kannário. Será? A partir do modo como se produz e conduz
potência, não apaziguadoras, mas autênticas simbioses, que as condições de existência
poderiam encontrar seu meio de expansão e expressão dos efeitos libertadores. Tudo
nosso, nada deles, no máximo volume, para nós ainda faz muito sentido.