sobre o ente e a essência sobre o céu e o...

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1 TOMÁS DE AQUINO, Sobre o ente e a essência * <Prólogo> Segundo o Filósofo em Sobre o céu e o mundo I, “um pequeno erro no princípio é grande no final” 1 . Ora, como diz Avicena no princípio de sua Metafísica, “o ente e a essência são aqueles que são primeiramente concebidos pelo intelecto” 2 . Logo, para que não haja erro por ignorá- los, para que apareça o que há de difícil sobre eles, cumpre dizer o que é significado pelo nome “essência” e pelo nome “ente”; de que modo {isso que é significado por tais nomes} 3 é encontrado em diversos e de que modo está vinculado às intenções lógicas, isto é, ao gênero, à espécie e à diferença. De fato, devemos receber o conhecimento dos simples partindo dos compostos e chegar aos anteriores partindo dos posteriores. Logo, cumpre proceder partindo da significação de “ente” para a significação de “essência”. 1º Capítulo Portanto, tal como o Filósofo diz em Metafísica V 4 , cumpre saber que há dois modos de dizer o ente por si. De um modo, o ente por si é aquilo que é dividido por dez gêneros; de outro modo, aquilo que significa a verdade da proposição. Ora, há diferença entre eles porque, do segundo modo, pode ser chamado de “ente” tudo aquilo a respeito de que se pode formar uma proposição afirmativa, mesmo que aquilo nada ponha na coisa. Segundo esse modo, as privações e as negações são ditas “entes”. Com efeito, dizemos: “a afirmação é oposta à negação”; “a cegueira está no olho”. Mas, do primeiro modo, não pode ser dito “ente” senão aquilo que põe algo na coisa, donde, do primeiro modo, a cegueira, e os que são do mesmo modo dela, não são “entes”. Portanto, o nome “essência” não é tomado de “ente” dito do segundo modo: com efeito, deste modo, alguns que não têm essência são ditos “entes”, como é patente nas privações. Ora, “essência” é tomada de “ente” dito do primeiro modo. Donde o Comentador dizer, no mesmo lugar, que “ ‘ente’, dito do primeiro modo, é aquilo que significa a essência da coisa” 5 . E uma vez que, como se disse, o “ente” dito desse modo é dividido pelos dez gêneros, é preciso que “essência” signifique algo comum a todas as naturezas pelas quais entes diversos são colocados em gêneros e espécies diversos, assim como “humanidade” é a essência de homem e assim por diante. * TOMÁS DE AQUINO, De ente et essentia. In: Sancti Thomae de Aquino Opera Omnia iussu Leonis XIII edita [= Leonina]. Tomus XLIII, Cura et Studio Fratrum Praedicatorum. Roma: Santa Sabina, 1976, p. 369-381. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira. 1 De caelo I 9 (271 b 8-13); ainda, AVERRÓIS In De anima III comm. 4: “com efeito, um erro mínimo no princípio é causa de um erro máximo no final, como Aristóteles disse” (ed. Crawford, p. 384, l. 32). 2 Cf. AVICENA, Metaph. I, cap. 6: “Dizemos, então, que o ente e a coisa e o necessário são tais que são imediatamente impressos na alma pela impressão primeira” (ed. Venetiis 1508, f. 72 rb A); certamente falta ali a palavra “essência”, mas pouco abaixo segue-se: “Com efeito, qualquer coisa tem a certeza pela qual é aquilo que é... Qualquer coisa tem a certeza própria que é sua quididade” (ibidem f. 72 va C). 3 Advirta-se que se trata de acréscimo do tradutor todo texto que aqui aparecer entre {}. (N. do T.). 4 Metaph. V 9 (1017 a 22-35). 5 AVERRÓIS, Metaph. V comm. 14: “Mas deves saber que, universalmente, este nome ‘ente’ que significa a essência da coisa é diverso de ‘ente’ que significa o verdadeiro” (ed. Venetiis 1552, f. 55 va 56).

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    TOMS DE AQUINO,

    Sobre o ente e a essncia*

    Segundo o Filsofo em Sobre o cu e o mundo I, um pequeno erro no princpio grande no

    final1. Ora, como diz Avicena no princpio de sua Metafsica, o ente e a essncia so aqueles

    que so primeiramente concebidos pelo intelecto2. Logo, para que no haja erro por ignor-

    los, para que aparea o que h de difcil sobre eles, cumpre dizer o que significado pelo nome

    essncia e pelo nome ente; de que modo {isso que significado por tais nomes}3

    encontrado em diversos e de que modo est vinculado s intenes lgicas, isto , ao gnero,

    espcie e diferena.

    De fato, devemos receber o conhecimento dos simples partindo dos compostos e chegar aos

    anteriores partindo dos posteriores. Logo, cumpre proceder partindo da significao de ente

    para a significao de essncia.

    1 Captulo

    Portanto, tal como o Filsofo diz em Metafsica V4, cumpre saber que h dois modos de dizer o

    ente por si. De um modo, o ente por si aquilo que dividido por dez gneros; de outro modo,

    aquilo que significa a verdade da proposio. Ora, h diferena entre eles porque, do segundo

    modo, pode ser chamado de ente tudo aquilo a respeito de que se pode formar uma

    proposio afirmativa, mesmo que aquilo nada ponha na coisa. Segundo esse modo, as

    privaes e as negaes so ditas entes. Com efeito, dizemos: a afirmao oposta

    negao; a cegueira est no olho. Mas, do primeiro modo, no pode ser dito ente seno

    aquilo que pe algo na coisa, donde, do primeiro modo, a cegueira, e os que so do mesmo

    modo dela, no so entes.

    Portanto, o nome essncia no tomado de ente dito do segundo modo: com efeito, deste

    modo, alguns que no tm essncia so ditos entes, como patente nas privaes. Ora,

    essncia tomada de ente dito do primeiro modo. Donde o Comentador dizer, no mesmo

    lugar, que ente, dito do primeiro modo, aquilo que significa a essncia da coisa5. E uma vez

    que, como se disse, o ente dito desse modo dividido pelos dez gneros, preciso que

    essncia signifique algo comum a todas as naturezas pelas quais entes diversos so colocados

    em gneros e espcies diversos, assim como humanidade a essncia de homem e assim por

    diante.

    * TOMS DE AQUINO, De ente et essentia. In: Sancti Thomae de Aquino Opera Omnia iussu Leonis XIII edita [= Leonina]. Tomus XLIII, Cura et Studio Fratrum Praedicatorum. Roma: Santa Sabina, 1976, p. 369-381. Traduo: Carlos Eduardo de Oliveira. 1 De caelo I 9 (271 b 8-13); ainda, AVERRIS In De anima III comm. 4: com efeito, um erro mnimo no princpio causa de um erro mximo no final, como Aristteles disse (ed. Crawford, p. 384, l. 32). 2 Cf. AVICENA, Metaph. I, cap. 6: Dizemos, ento, que o ente e a coisa e o necessrio so tais que so imediatamente impressos na alma pela impresso primeira (ed. Venetiis 1508, f. 72 rb A); certamente falta ali a palavra essncia, mas pouco abaixo segue-se: Com efeito, qualquer coisa tem a certeza pela qual aquilo que ... Qualquer coisa tem a certeza prpria que sua quididade (ibidem f. 72 va C). 3 Advirta-se que se trata de acrscimo do tradutor todo texto que aqui aparecer entre {}. (N. do T.). 4 Metaph. V 9 (1017 a 22-35). 5 AVERRIS, Metaph. V comm. 14: Mas deves saber que, universalmente, este nome ente que significa a essncia da coisa diverso de ente que significa o verdadeiro (ed. Venetiis 1552, f. 55 va 56).

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    Posto que aquilo pelo que a coisa colocada no gnero adequado, ou na espcie, isso que

    significado pela definio que indica o que a coisa , segue-se, ento, que o nome essncia

    seja intercambiado pelos filsofos6 com o nome quididade,7 e isso tambm o que o Filsofo

    frequentemente nomeia o que era ser algo 8, ou seja, isso pelo que algo qualquer tem o

    ser algo determinado 9. dito tambm forma, segundo o que, por forma, significada a

    certeza de qualquer coisa, como diz Avicena no livro II de sua Metafsica10. Isso, por outro

    nome, tambm dito natureza, tomando natureza segundo o primeiro modo daqueles

    quatro assinalados por Bocio no livro Sobre as duas naturezas, a saber, segundo o que se diz

    natureza aquilo que pode ser tomado de algum modo pelo intelecto11, com efeito, a coisa

    no inteligvel seno por sua definio e essncia; e, assim, tambm o Filsofo diz em

    Metafsica V que toda substncia natureza12. V-se, no entanto, que o nome natureza,

    tomado desse modo, signifique a essncia da coisa segundo o que est ordenada para a

    operao prpria da coisa, dado que nenhuma coisa seja destituda de operao prpria; o nome

    quididade, porm, tomado do fato de que {aquilo pelo que a coisa colocada no gnero

    adequado, ou na espcie,} seja significado pela definio. Mas se diz essncia segundo o que,

    nela e por ela, o ente tem ser.

    Mas, posto que ente seja dito absoluta e primeiramente a respeito das substncias13, e a

    respeito dos acidentes pelo posterior e como se de acordo com a determinao14, ento, tem-

    se, ainda, que h essncia prpria e verdadeiramente nas substncias, mas, nos acidentes, h

    de certo modo e de acordo com a determinao. De fato, entre as substncias, algumas so

    simples e outras compostas, e de cada uma delas h essncia; mas nas simples de modo mais

    verdadeiro e mais nobre, segundo o que, ademais, tm mais nobre ser: com efeito, so causa

    daqueles que so compostos, ao menos a substncia primeira simples que Deus. Mas uma vez

    que as essncias dessas substncias so mais ocultas para ns, ento, cumpre comear pelas

    essncias das substncias compostas, dado que a disciplina seja mais convenientemente

    realizada partindo do que mais fcil.

    6 Por exemplo, AVICENA, Metaph. V, cap. 5, passim, igualmente, AVERRIS, Metaph. VII, passim. 7 Toms sugere algo que se perde no portugus, a saber, que o vocbulo latino quiditas (quididade) seja uma derivao que faz referncia questo quid est? (o que ?) de modo a nomear quilo que serve de resposta para essa questo. (N. do T.). 8 A expresso , que lemos s dezenas nos Segundos analticos II 4-6 (91 a 25-92 a 25) ou em Metafsica VII, cap. 3-6 (1028 b 34-1032 a 29), foi vertida pelos tradutores latinos por quod quid erat esse, como em Tiago de Veneza, como se encontra em sua traduo dos Segundos analticos (AL IV. 1-4) e da Metafsica Vetustissima (AL XXV.I.I), mas no em Guilherme de Moerbeke, como, por exemplo, na nova traduo da Metafsica. 9 Nessa passagem, Toms sugere um modo de se ler a expresso latina que verte a expresso grega citada na nota anterior, a saber, que quod quid erat esse (o que era ser algo) fosse entendida como hoc per quod aliquid habet esse quid (isso pelo que algo qualquer tem o ser algo determinado). (N. do T.). 10 Metaph. I cap. 6: qualquer coisa tem a certeza prpria que sua quididade (f. 72 va) e II cap. 2 esta certeza ... a forma (f. 76 ra). 11 De persona et duabus naturis cap. 1: H natureza daquelas coisas que, quando so, podem ser tomadas de algum modo pelo intelecto (PL 64, 1341 B). 12 Metaph. V 5 (104 b 36): A natureza dos existentes dita, de outro modo, natureza substncia (ms. P, fol. 195 vb; ms. V, fol. 39 r). 13 O ente dito a respeito das substncias quando se diz Scrates ente; a respeito dos acidentes, quando se diz branco ente. (N. do T.). 14 de acordo com a determinao: secundum quid, ou seja, de acordo com aquilo pelo que algo qualquer tem o ser algo determinado . (N. do T.).

  • 3

    2 Captulo

    Portanto, nota-se a forma e a matria nas substncias compostas tal como nota-se a alma e o

    corpo no homem. Ora, no possvel dizer que apenas uma daquelas duas seja dita essncia.

    Com efeito, est claro que, isolada, a matria da coisa no seria a essncia, porque a coisa tanto

    cognoscvel quanto ordenada na espcie ou no gnero pela sua essncia: ora, nem a

    matria princpio de cognio nem algo determinado para o gnero ou para a espcie

    segundo ela, mas { determinado} segundo seja algo em ato. Nem, ainda, unicamente a forma

    pode ser dita a essncia da substncia composta, embora alguns15 procurem asseverar isso. Com

    efeito, patente do que foi dito que essncia aquilo que significado pela definio da

    coisa: ora, a definio das substncias naturais no contm unicamente a forma, mas contm

    tambm a matria, com efeito, de outro modo, as definies naturais e as matemticas no

    difeririam. Tambm no pode ser dito que a matria seria posta na definio da substncia

    natural tal como um acrscimo para a essncia dela, ou como um ente fora da essncia dela,

    visto que este o modo das definies prprio para os acidentes, que no tm uma essncia

    perfeita donde ser preciso que {os acidentes} recebam em sua definio o sujeito que est fora

    do gnero deles. Portanto, patente que a essncia compreende tanto a matria como a forma.

    Ora, no pode ser dito que a essncia signifique a relao que h entre a matria e a forma ou

    algo acrescentado a elas, pois este seria necessariamente um acidente e estranho coisa e

    tampouco a coisa seria conhecida por aquela relao, tudo que convm essncia16. Com efeito,

    pela forma que ato da matria, a matria feita ente em ato e este algo. Por conseguinte,

    aquilo que sobrevm no d matria o ser em ato simplesmente, mas d, em ato, o ser tal;

    assim como tambm o fazem os acidentes, tal como a brancura faz o branco em ato. Por

    conseguinte, tambm quando tal forma adquirida, no se diz que {o ente} seja gerado

    simplesmente, mas {que seja gerado} de acordo com a determinao.

    Portanto, resta que, nas substncias compostas, o nome essncia significa aquilo que

    composto a partir de matria e de forma. E concorda com isso a palavra de Bocio no

    comentrio das Categorias, em que diz que ousia significa o composto17; com efeito, entre os

    gregos, ousia o mesmo que essncia entre ns, como ele mesmo diz no livro Sobre as duas

    naturezas. Avicena tambm diz que a quididade das substncias compostas a prpria

    composio de forma e de matria18. Tambm o Comentador diz sobre o livro VII da Metafsica:

    a natureza que as espcies tm nas coisas gerveis algo intermedirio, isto , composto a

    partir de matria e forma19. Tambm a razo concorda com isso, posto que o ser da substncia

    composta no unicamente da forma nem unicamente da matria, mas do prprio composto.

    Ora, a coisa dita ser de acordo com a essncia. Por conseguinte, preciso que a essncia, pela

    15 Cf. TOMS DE AQUINO, Super Metaph. VII 9: V-se essa opinio em Averris e em alguns de seus seguidores. Com efeito, Averris diz em Metaph. VII comm. 21: A quididade do homem ... a forma do homem, e no o homem que unido a partir de matria e forma (fol. 81 ra 31-33). 16 tudo que convm essncia, ou seja, convm essncia (a) que ela no seja nada de estranho ou acidental para a coisa e (b) que a coisa seja conhecida por ela. (N. do T.). 17 Essa afirmao atribuda a Bocio por ALBERTO MAGNO, Super Sent. I d. 23 a. 4 (Borgnet 25, 591 a); ibid. BOAVENTURA dub. 1; o prprio TOMS DE AQUINO, q. 1 a. 1; mas no se encontra em Bocio. {Embora a edio crtica latina parea ter razo quanto ao comentrio das Categorias, o mesmo no acontece com a referncia ao Sobre as duas naturezas: cf. PL 64, c. 1344C. (N. do T.)}. 18 AVICENA, Metaph. V cap. 5: a quididade ... composta desde forma e matria: com efeito esta a quididade do composto, e a quididade esta composio (fol. 90 ra F). 19 AVERRIS, Metaph. VII comm. 27 (fol. 83 va 42-44).

  • 4

    qual a coisa denominada ente, no seja unicamente forma nem unicamente matria, mas

    ambas, por mais que apenas a forma, a seu modo, seja a causa de tal ser. Com efeito, vemos

    que seja assim em outros que so constitudos a partir de vrios princpios: a coisa no

    denominada unicamente a partir de um desses princpios, mas { denominada} desde aquilo

    que abarca ambos {os princpios}; como patente nos sabores: pois a doura causada a partir

    da ao do quente que digere o mido, e, por mais que, desse modo, o calor seja a causa da

    doura, o corpo, no entanto, no denominado doce pelo calor, mas pelo sabor, que abarca o

    quente e o mido20.

    Mas uma vez que o princpio de individuao a matria, talvez a partir disso fosse visto se

    seguir que a essncia, que abarca em si a matria e, simultaneamente, a forma, seja unicamente

    do particular e no do universal: disso se seguiria que os universais no teriam definio, se

    essncia for aquilo que significado pela definio. Donde cumpre saber que no a

    matria tomada de qualquer modo que princpio de individuao, mas unicamente a matria

    assinalada; e digo matria assinalada aquela que considerada sob dimenses determinadas.

    Ora, essa matria no posta na definio que do homem enquanto homem, mas seria

    posta na definio de Scrates se Scrates tivesse definio: na definio de homem posta a

    matria no assinalada. Com efeito, no se pe na definio de homem este osso e esta carne,

    mas osso e carne absolutamente, os quais so a matria no assinalada do homem.

    Portanto, patente, assim, que a essncia de homem e a essncia de Scrates no diferem

    seno segundo o assinalado e o no assinalado; donde diz o Comentador sobre o livro VII da

    Metafsica: Scrates no nada alm da animalidade e da racionalidade que so sua

    quididade21. Assim, ainda, a essncia do gnero e da espcie diferem segundo o assinalado e o

    no assinalado, por mais que seja diverso o modo de designao de cada um: uma vez que a

    designao do indivduo com relao espcie se d pela matria determinada pelas dimenses,

    mas a designao da espcie com relao ao gnero se d pela diferena constitutiva que

    tomada a partir da forma da coisa. Ora, essa determinao que se d na espcie com relao ao

    gnero, no se d por algo existente na essncia da espcie que no se daria de nenhum modo

    na essncia do gnero; ou melhor, tudo o que se d na espcie tambm se d no gnero como

    no determinado. Com efeito, se animal no fosse o todo que homem, mas fosse sua

    parte, no seria predicado a ele, visto que nenhuma parte integral22 seria predicada a seu todo.

    20 Ou seja, (a) o quente e o mido so os princpios da doura, pois a doura , segundo Toms, o resultado da digesto do mido pelo quente. Assim, uma vez que, para haver doura, (b) o quente digere o mido, pode-se dizer que (c) o calor isto , o quente, a causa da doura. O corpo que doce, porm, no dito doce por causa do calor. O corpo dito doce por causa do sabor, que aquilo que abarca tanto o quente como o mido, princpios da doura. Do mesmo modo, (a) a matria e a forma so os princpios do ser da substncia composta, pois o ser da substncia composta o resultado da atualizao da matria pela forma. Assim, uma vez que, para haver o ser da substncia composta, (b) a forma atualiza a matria, pode-se dizer que (c) a forma a causa do ser da substncia composta. A substncia composta, porm, no dita ser unicamente por causa da forma. A substncia composta dita ser por causa de sua essncia, que abarca tanto a forma como a matria, princpios do ser da substncia composta. (N. do T.). 21 AVERRIS, Metaph. VII comm. 20: ... que so sua quididade: assim no mss XIII s., tal como em Vat. lat. 2081, fol. 74 vb e Ottob. Lat. 2215, fol. 91 vb; ed. Venetiis 1552: ... suas quididades (fol. 80 ra 23). 22 A expresso parte integral designa algo que, embora seja parte de um todo, tomado como se, por si, fosse algo independente desse todo. (N. do T.).

  • 5

    Ora, ser possvel ver de que modo isso acontece23 se for inspecionado sob que condies feita

    a distino do corpo segundo o que sustentado como parte do animal, e segundo o que

    sustentado como gnero. Com efeito, no pode ser gnero do mesmo modo pelo qual parte

    integral. Portanto, este nome corpo pode ser tomado de muitos modos. Com efeito, segundo

    o que est no gnero da substncia, chamado corpo a partir disto: que tem tal natureza que

    nele podem ser designadas trs dimenses, pois as prprias trs dimenses designadas so o

    corpo que est no gnero da quantidade. Ora, nas coisas, acontece que aquilo que tem uma

    perfeio tambm se estenda perfeio ulterior: assim como patente no homem, que tanto

    tem a natureza sensitiva como, ulteriormente, a intelectiva. De modo semelhante, ainda,

    tambm a esta perfeio {do corpo} que ter tal forma de modo que nela possam ser

    designadas trs dimenses pode ser acrescentada outra perfeio, como a vida ou algo desse

    modo. Portanto, este nome corpo pode significar certa coisa que tem tal forma a partir da

    qual se segue nela a designabilidade de trs dimenses a modo daquilo que prescinde, a saber,

    de modo que no se siga a partir daquela forma nenhuma perfeio ulterior, mas, se algo diverso

    for acrescido a ela, estar alm da significao de corpo assim dito. E, desse modo, corpo

    ser a parte integral e material do animal, uma vez que, assim, a alma estar alm daquilo que

    significado pelo nome corpo, e ser superveniente ao prprio corpo, de modo que a partir

    destes dois, a saber, de alma e corpo, o animal ser constitudo tal {animal} como a partir de

    partes.

    Este nome corpo pode tambm ser tomado de modo a significar certa coisa que tem tal forma

    a partir da qual trs dimenses podem ser designadas nela, qualquer que seja aquela forma,

    quer alguma perfeio ulterior possa provir dela, quer no. Desse modo, corpo ser gnero

    de animal, porque no haver nada para tomar em animal que no esteja contido

    implicitamente em corpo. Com efeito, a alma no uma forma diversa daquela pela qual

    aquelas trs dimenses poderiam ser designadas na coisa; e, por isso, quando se disse que o

    corpo aquilo que tem tal forma a partir da qual nele podem ser designadas trs dimenses,

    entendeu-se, ento, qualquer forma que fosse: a alma, a petreidade ou qualquer outra. E, assim,

    a forma do animal est contida implicitamente na forma do corpo, na medida em que corpo

    gnero dela.

    E tal tambm o vnculo de animal a homem. Com efeito, se animal nomeasse

    unicamente certa coisa que tem tal perfeio de modo que possa sentir e se mover pelo

    princpio nela existente prescindindo de outra perfeio, ento, qualquer outra perfeio que

    fosse superveniente estaria vinculada a animal a modo de comparte e no tal como

    implicitamente contida na noo animal, e, assim, animal no seria gnero. Ora, gnero

    segundo o que significa certa coisa a partir de cuja forma pode provir o sentido e o movimento,

    seja qual for aquela forma: quer seja unicamente alma sensitiva, quer seja simultaneamente

    alma sensitiva e racional.

    Portanto, assim, o gnero significa indeterminadamente tudo aquilo que h na espcie; com

    efeito, no significa unicamente a matria. Ainda, de modo semelhante, tambm a diferena

    significa o todo, e no significa unicamente a forma; e tambm a definio significa o todo, ou,

    ainda, a espcie {significa o todo}. Ora, {significam o todo}, no entanto, de modos diversos24:

    uma vez que o gnero significa o todo de modo que {significa} certa denominao que determina

    23 Cf. TOMS DE AQUINO, Super Sent. I d. 25 q. 1 a. 1 ad 2, referindo-se a Avicena; veja-se AVICENA, Metaph. V cap. 3 (fol 88 ra A). 24 Em Super Sent. II d. 3 q. 1 a. 5 arg. 4, Toms de Aquino faz referncia a Avicena; cf. AVICENA Metaph. V cap. 5 (fol. 89 va D).

  • 6

    aquilo que material na coisa sem a determinao da forma prpria, donde o gnero ser

    tomado a partir da matria por mais que no seja matria ; como patente uma vez que

    dito corpo a partir disto que tem tal perfeio de modo que trs dimenses possam ser

    designadas nele, perfeio que, certamente, est vinculada materialmente perfeio ulterior.

    De fato, a diferena, inversamente, tal como certa denominao tomada desde a forma

    determinada, para alm disso que a respeito da primeira inteleco dela h a matria

    determinada; como patente quando se diz animado, a saber, aquilo que tem alma. Com

    efeito, no se determina o que , se corpo ou algo diverso: donde Avicena25 dizer que o gnero

    no inteligido na diferena tal como parte da essncia dela, mas unicamente assim como o

    ente exterior essncia, assim como tambm a respeito da inteleco das afeces h o sujeito.

    E, por isso, tambm o gnero no predicado diferena falando por si, como o Filsofo diz em

    Metafsica III e em Tpicos IV26, a no ser, talvez, assim como o sujeito predicado afeco.

    Ora, a definio ou a espcie compreende ambas, a saber, a matria determinada que o nome

    gnero designa e a forma determinada que o nome diferena designa.

    E, a partir disso, patente a razo pela qual27 o gnero, a espcie e a diferena esto vinculados,

    na natureza, proporcionalmente matria e forma e ao composto, por mais que no sejam o

    mesmo que esses: uma vez que nem o gnero a matria, mas tomado desde a matria de

    modo que significa o todo; nem a diferena a forma, mas tomada desde a forma de modo que

    significa o todo. Donde dizemos que homem seja animal racional, e no {que homem seja} a

    partir de animal e racional assim como dizemos que ele seja a partir de alma e corpo. Com efeito,

    o homem dito ser a partir de alma e corpo assim como, a partir de duas coisas, h uma terceira

    coisa constituda que no nenhuma daquelas: com efeito, o homem nem alma nem corpo.

    Ora, se o homem for de algum modo dito ser a partir de animal e racional, no ser assim como

    uma terceira coisa a partir de duas coisas, mas tal como uma terceira inteleco a partir de duas

    inteleces. Com efeito, a inteleco de animal se d sem a determinao da forma especial,

    que exprime a natureza da coisa desde aquilo que material com relao perfeio ltima;

    ora, a inteleco da diferena racional consiste na determinao da forma especial: a partir

    dessas duas inteleces constituda a inteleco da espcie ou da definio. E, por isso, assim

    como a coisa constituda a partir de alguns no recebe a predicao daquelas coisas a partir das

    quais constituda, assim, tambm a inteleco no recebe a predicao daquelas inteleces

    a partir das quais constituda; com efeito, no dizemos que a definio seja o gnero ou a

    diferena.

    Ora, ainda que o gnero signifique toda a essncia da espcie, no preciso, porm, que haja

    uma nica essncia das diversas espcies das quais h o mesmo gnero, posto que a unidade

    do gnero procede da prpria indeterminao ou indiferena {da essncia da espcie}, mas

    {procede} no de modo que aquilo que significado pelo gnero seja uma nica natureza em

    nmero nas diversas espcies, qual sobrevenha outra coisa que seja a diferena que determina

    aquilo {que significado pelo gnero} assim como a forma determina a matria, que una em

    nmero, mas {a unidade do gnero procede da prpria indeterminao ou indiferena} porque

    o gnero significa alguma forma no, porm, determinadamente esta ou aquela que exprime

    determinadamente a diferena, a qual no outra {forma} alm dessa que ser significada pelo

    gnero de modo indeterminado. E, por isso, o Comentador diz em Metafsica XI que a matria

    25 AVICENA, Metaph. V, cap. 6: O gnero ... predicado diferena de modo a ser dela concomitante, no parte de sua quididade (fol. 90 va B). 26 Metaph. III 8 (998 b 24) e Topic. IV cap. 2 (122 b 20). 27 Cf. AVICENA, Metaph. V cap. 5 (fol. 89 v D-E).

  • 7

    prima dita una pela remoo de todas as formas, mas o gnero dito uno pela comunidade

    das formas significadas28. Donde patente que, pela adio da diferena, removida aquela

    indeterminao que era a causa da unidade do gnero, as espcies permanecem diversas pela

    essncia.

    E, como foi dito, posto que a natureza da espcie indeterminada com relao ao indivduo

    assim como a natureza do gnero com relao espcie, da h que, assim como aquilo que o

    gnero, na medida em que era predicado espcie, implicava na significao dele por mais

    que indistintamente tudo que est determinadamente na espcie, do mesmo modo, ainda,

    tambm preciso que aquilo que a espcie, segundo o que predicada ao indivduo, signifique

    tudo aquilo que est essencialmente no indivduo, embora indistintamente. E, desse modo, a

    essncia da espcie significada pelo nome homem, donde homem ser predicado a

    Scrates. Ora, se a natureza da espcie fosse significada prescindida a matria designada que

    o princpio de individuao, ento, {a natureza da espcie} estaria vinculada {ao indivduo} a

    modo de parte; e , desse modo, significada pelo nome humanidade. Com efeito,

    humanidade significa aquilo de onde o homem homem. Ora, a matria designada no

    aquilo de onde o homem homem, e, assim, no est contida de nenhum modo entre aqueles

    a partir dos quais o homem tem o ser homem. Portanto, visto que a humanidade na sua

    inteleco inclua unicamente aqueles a partir dos quais o homem tem o ser homem, patente

    que a matria designada excluda ou prescindida da significao; e, uma vez que a parte no

    predicada ao todo, h da que humanidade nem predicada a homem nem a Scrates.

    Donde Avicena dizer que a quididade do composto no o prprio composto do qual

    quididade, por mais que a prpria quididade seja tambm composta; assim como a humanidade,

    por mais que seja composta, no o homem29. Pelo contrrio: {para que a humanidade seja o

    homem,} preciso que seja recebida em algo que a matria designada.

    Mas, como foi dito, posto que a designao da espcie com relao ao gnero se d pela forma

    enquanto a designao do indivduo com relao espcie se d pela matria, ento, preciso

    que o nome que significa aquilo de onde tomada a natureza do gnero prescindida a forma

    determinada que perfaz a espcie signifique a parte material do todo, assim como o corpo a

    parte material do homem; ora, o nome que significa aquilo de onde tomada a natureza da

    espcie, prescindida a matria designada, significa a parte formal. E, ento, a humanidade

    significada como certa forma, e dita30 aquilo que a forma do todo; certamente no como se

    acrescida s partes essenciais, a saber, a forma e a matria, assim como a forma da casa

    acrescida s partes integrais dela: mas, antes, a forma que o todo, a saber, a forma que

    tambm faz a complexo com a matria, ainda que prescindidos aqueles pelos quais a matria

    naturalmente designada.

    Portanto, patente, desse modo, que este nome homem e este nome humanidade

    significam a essncia do homem, mas de modos diversos, como foi dito: uma vez que este nome

    28 AVERRIS, Metaph. XI (=XII) comm. 14: [Aristteles] tinha a inteno de declarar a diferena entre a natureza da matria no ser e a natureza da forma universal, e maximamente daquilo que o gnero... Ora, esta comunidade, que inteligida na matria, pura privao, dado que no seja inteligida seno segundo a ablao das formas individuais dela (fol. 141 va-vb). 29 AVICENA, Metaph. V cap. 5: A quididade aquilo que tudo que forma existente em conjunto com a matria... o composto ainda no esta inteno, porque {a inteno} composta a partir de forma e de matria: com efeito, esta a quididade do composto, e a quididade esta composio (fol. 90 ra F). 30 Cf. TOMS DE AQUINO, Super Sent. I d. 23 q. 1 a. 1; de um modo um pouco diverso, ALBERTO MAGNO, De IV coaequevis tr. 4 q. 20 a. 1: Ora, digo forma do todo aquela forma que predicvel a todo composto, assim como homem a forma de Scrates (Borgnet 34, 460 a-b).

  • 8

    homem significa aquela {essncia} como todo, a saber, enquanto no prescinde da designao

    da matria, mas contm aquela {designao} implicitamente e indistintamente, assim como foi

    dito que o gnero contm a diferena eis por que este nome homem predicado aos

    indivduos. Mas este nome humanidade significa aquela {essncia} como parte, porque no

    contm na sua significao seno aquilo que do homem enquanto homem, e prescinde de

    toda designao; donde {o nome humanidade} no ser predicado aos homens individuais. E

    em razo disso, s vezes se acha o nome essncia predicado coisa; com efeito, dizemos que

    Scrates seja certa essncia; e, s vezes, isso negado, assim como dizemos que a essncia de

    Scrates no Scrates.

    3 Captulo

    Portanto, visto o que teria sido significado pelo nome essncia nas substncias compostas,

    cumpre ver de que modo {este nome} estaria vinculado noo de gnero, de espcie e de

    diferena. Ora, posto que aquilo a que convm a noo de gnero ou de espcie ou de diferena

    predicado a este singular assinalado, impossvel que a noo universal, a saber, de gnero e

    de espcie, seja conveniente essncia segundo o que significada a modo de parte, como pelo

    nome humanidade ou animalidade. Donde Avicena dizer que a racionalidade no a

    diferena, mas o princpio da diferena31; e, pela mesma razo, humanidade no espcie,

    nem animalidade gnero. De modo semelhante, ainda, no pode ser dito que a noo de

    gnero ou de espcie seja conveniente essncia segundo o que certa coisa existente fora dos

    singulares, como sustentavam os Platnicos, uma vez que, assim, o gnero e a espcie no

    seriam predicados a este indivduo; com efeito, no pode ser dito que Scrates seja isto que

    separado dele, nem, ainda, esse separado seria de proveito para o conhecimento daquele

    singular. E, por isso, resta que a noo de gnero ou de espcie seja conveniente essncia

    segundo o que significada a modo de todo, como pelo nome homem ou animal, na medida

    em que contm implcita e indistintamente tudo isto que h no indivduo.

    Ora, assim tomada,32 a natureza ou essncia pode ser considerada de dois modos. {1:} De um

    modo, segundo a noo prpria, e essa sua considerao absoluta: e desse modo nada

    verdadeiro a respeito dessa natureza ou essncia a no ser aquilo que a ela conveniente em

    conformidade com esse modo, donde haver uma falsa atribuio quanto a tudo o mais que a

    ela for atribudo. Por exemplo, ao homem, naquilo que homem, convm o racional, o animal

    e outros que entram em sua definio; ora, o branco e o negro, ou o que quer que seja de modo

    que no diz respeito noo humanidade, no conveniente ao homem naquilo que

    homem. Por conseguinte, se for perguntado se essa natureza assim considerada poderia ser

    dita una ou vrias, nem uma nem outra deve ser concedida, posto que uma e outra est fora da

    inteleco humanidade, e uma e outra pode ser o caso para ela {i.e., para a humanidade}.

    Com efeito, se a pluralidade dissesse respeito inteleco humanidade, jamais {a

    humanidade} poderia ser una, ainda que, no entanto, seja una segundo o que h

    {humanidade} em Scrates. De modo semelhante, se a unidade dissesse respeito noo

    humanidade, ento seria una e a mesma {a humanidade} de Scrates e de Plato, e no

    poderia multiplicar-se em vrios33. {2:} De outro modo, {a natureza ou essncia} considerada

    31 AVICENA, Metaph. V cap. 6: A diferena no tal qual a racionalidade e a sensibilidade... Portanto, mais conveniente que estes sejam o princpio das diferenas, no as diferenas (fol. 90 rb A). 32 Isto , tomada na medida em que contm implcita e indistintamente tudo isto que h no indivduo. (N. do T.). 33 Nesse trecho, Toms de Aquino busca declarar o que constitui a noo prpria ou a considerao absoluta de uma natureza. Para faz-lo, delimita tal constituinte quilo que puder ser

  • 9

    segundo o ser que tem nisto ou naquilo: e, assim, algo predicado a ela por acidente em razo

    daquilo em que h {tal natureza ou essncia}, assim como se diz que o homem branco

    porque Scrates branco, embora isso no seja conveniente ao homem naquilo que

    homem.

    Ora, esta natureza {considerada segundo o ser que tem nisto ou naquilo} tem um duplo ser: um

    nos singulares e outro na alma, e, segundo cada um deles, os acidentes se seguem dita

    natureza; ademais, nos singulares tem ser mltiplo segundo a diversidade dos singulares. E, no

    entanto, nenhum destes {dois modos de} ser devido prpria natureza segundo sua primeira

    considerao, a saber, a absoluta. Com efeito, falso dizer que a essncia de homem, enquanto

    desse modo34, tenha ser neste singular, uma vez que, se ser neste singular fosse conveniente ao

    homem enquanto homem, jamais seria fora deste singular; de modo semelhante, ainda, se

    fosse conveniente ao homem enquanto homem no ser neste singular, jamais seria nele:

    mas verdadeiro dizer que o homem, no enquanto homem, tem o ser neste ou naquele

    singular ou na alma. Portanto, patente que a natureza de homem absolutamente considerada

    abstrai de seja qual for o ser, no entanto, de modo que no se d que prescinda de algum deles

    {i.e., de algum dos homens}. E essa natureza assim considerada {i.e., absolutamente} a que

    predicada a todos os indivduos.

    No entanto, no pode ser dito que a noo universal seja conveniente natureza assim tomada

    {i.e., absolutamente}, posto que a unidade e a comunidade dizem respeito noo universal;

    ora, nem uma nem outra convm natureza humana segundo sua considerao absoluta. Com

    efeito, se a comunidade dissesse respeito inteleco de homem, ento, em qualquer um que

    fosse encontrada a humanidade, seria encontrada a comunidade; e isso falso35, uma vez que

    em Scrates no encontrada nenhuma comunidade, mas tudo que h nele individuado. De

    modo semelhante, ainda, no pode ser dito que a noo de gnero ou de espcie seja o caso

    para a natureza humana segundo o ser que {a natureza humana} tem nos indivduos36, uma vez

    que, nos indivduos, no encontrada a natureza humana segundo a unidade de modo que seja

    uno o que conveniente para todos, o que exigido pela noo universal. Portanto, resta que

    a noo de espcie seja o caso para a natureza humana segundo aquele ser que tem no intelecto.

    Com efeito, a prpria natureza humana, no intelecto, tem um ser que abstrado de tudo o que

    individualizante; e, por isso, tem uma noo uniforme para todos os indivduos que so fora

    da alma, na medida em que igualmente semelhana para todos e conduz ao conhecimento de

    todos enquanto so homens. E a partir disso que tem tal relao com todos os indivduos, o

    intelecto chega noo de espcie e atribui a ela; donde o Comentador dizer, no princpio do

    Sobre a alma, que o intelecto quem, na universalidade, age pelas coisas37; Avicena tambm

    incondicionalmente atribudo a tudo que se disser possuidor de tal natureza. Assim, os dois argumentos relatados, a respeito da inteleco e da noo, ilustram um nico ponto: que a unidade ou a pluralidade no cabem noo prpria ou considerao absoluta da natureza do homem. De algum modo, o exemplo supe que apenas seria possvel conceder a pluralidade como um predicado da inteleco humanidade se a pluralidade fosse uma caracterstica definidora da prpria humanidade. O mesmo, proporcionalmente, concludo a respeito da predicao da unidade noo humanidade. (N. do T.). 34 Isto , enquanto absolutamente considerada. (N. do T.). 35 Afinal, se a comunidade fosse algo prprio quilo mesmo que inteligido (e no prpria inteleco/ato intelectual), ento, haveria a comunidade em qualquer indivduo inteligido, o que seria contraditrio. (N. do T.). 36 Isto , segundo o ser que tem nisto e naquilo. (N. do T.). 37 AVERRIS, De anima I comm. 8 (p. 12 lin. 25).

  • 10

    diz isso em sua Metafsica38. E por mais que essa natureza inteligida tenha uma noo universal

    segundo o que comparada s coisas fora da alma, posto que a similitude una de tudo, no

    entanto, segundo o que tem ser neste intelecto ou naquele certa espcie inteligida particular.

    E, por isso, patente a falha do Comentador, em Sobre a alma III39, que quis concluir a unidade

    do intelecto em todos os homens a partir da universalidade da forma inteligida; uma vez que a

    universalidade daquela forma no segundo este ser que tem no intelecto, mas segundo o que

    referida coisa enquanto similitude das coisas; assim como, ainda, se houvesse uma esttua

    corporal que representasse muitos homens, consta que aquela imagem ou espcie da esttua

    teria um ser singular e prprio segundo o que viesse a ser nesta matria, mas teria a noo de

    comunidade segundo o que seria o comum que representa a muitos.

    Posto que convm que, segundo sua considerao absoluta, a natureza humana seja predicada

    a Scrates e que a noo de espcie no convm quela {natureza} segundo a considerao

    absoluta dessa natureza ora, {a noo de espcie} diz respeito aos acidentes que se seguem

    natureza humana segundo o ser que {esta} tem no intelecto , ento, o nome espcie no

    predicado a Scrates de modo a dizer Scrates espcie, o que aconteceria necessariamente

    se a noo de espcie fosse conveniente a homem segundo o ser que {a natureza humana}

    tem em Scrates, ou segundo a considerao absoluta dela {i.e., da natureza humana}, a saber,

    enquanto {Scrates} homem; com efeito, tudo o que convm ao homem enquanto

    homem predicado a Scrates.

    E, no entanto, ao gnero convm ser predicado por si {a Scrates}, como sustentado em sua

    definio. Com efeito, a predicao algo concludo pela ao do intelecto que compe e que

    divide, tendo fundamento na prpria coisa a unidade daqueles dos quais um dito a respeito

    do outro. Por conseguinte, a noo de predicabilidade pode ser encerrada na noo daquela

    inteno que o gnero, {predicabilidade} que, de modo semelhante, concluda pelo ato do

    intelecto. Mas aquilo a que o intelecto atribui a noo de predicabilidade ao comp-lo com outro

    no a prpria inteno gnero, mas, antes, aquilo a que o intelecto atribui a inteno

    gnero, assim como o que significado por este nome animal.

    Assim, ento, fica patente sob que condies a essncia ou natureza est vinculada noo de

    espcie, uma vez que a noo de espcie no diz respeito queles que so convenientes

    essncia ou natureza segundo a sua considerao absoluta, nem diz respeito aos acidentes que

    a ela se seguem segundo o ser que ela tem fora da alma, como a brancura e a negrura, mas {a

    noo de espcie} diz respeito aos acidentes que se seguem essncia ou natureza segundo o

    ser que ela tem no intelecto. E de tal modo40 convm ainda essncia ou natureza a noo de

    gnero ou de diferena.

    4 Captulo

    Agora resta ver por qual modo h essncia nas substncias separadas, a saber, na alma, na

    inteligncia e na causa primeira. Ora, por mais que todos concedam a simplicidade da causa

    primeira, alguns, no entanto, se esforam a fim de introduzir a composio de forma e matria

    nas inteligncias e na alma. V-se que o autor dessa posio tenha sido Avicebron, o autor do

    38 AVICENA, Metaph. V cap. 2 (fol. 87 v). 39 AVERRIS, De anima III comm. 5 (sobretudo nas p. 399-413). 40 Isto , segundo o ser que a natureza ou essncia tem no intelecto. (N. do T.).

  • 11

    livro Fonte da vida41, mas isso incompatvel com o que geralmente dizem os filsofos, posto

    que nomeiam tais substncias de separadas da matria e provam que elas sejam afastadas de

    toda matria. A demonstrao disso potssima, desde que se entenda o que h nelas. Com

    efeito, vemos que as formas no sejam inteligveis em ato seno em virtude da substncia

    inteligente, segundo o que so recebidas nela e segundo o que agem por meio dela. Por

    conseguinte, preciso haver total imunidade da matria em qualquer substncia inteligente, de

    modo que nem tenha a matria como parte de si, nem, ainda, seja assim como a forma impressa

    na matria, como se d com as formas materiais.

    E no possvel que algum diga que no qualquer matria que impede a inteligibilidade, mas

    apenas a matria corporal. Com efeito, se isso {i.e., o impedimento da inteligibilidade} se desse

    unicamente em razo da matria corporal, dado que a matria no seja dita corporal seno

    segundo o que se mantm sob a forma corporal, ento, seria preciso que a matria tivesse isso,

    a saber, o impedir a inteligibilidade, a partir da forma corporal; e isso no pode se dar, posto

    que at mesmo a prpria forma corporal inteligvel em ato tal como tambm as outras

    formas segundo o que abstrada da matria. Donde no h de nenhum modo na alma ou na

    inteligncia a composio a partir de matria e forma, pois, desse modo, a essncia seria tomada

    nelas como nas substncias corporais. Mas h ali a composio entre forma e ser; donde se diz

    no comentrio da nona proposio do livro Sobre as causas que a inteligncia aquilo que tem

    forma e ser42: e, ali, toma-se forma pela prpria quididade ou natureza simples.

    E fcil de se ver de que modo isso se d. Com efeito, em todos os vinculados entre si de modo

    que um causa de ser do outro, aquele que tem a noo de causa pode ter ser sem o outro,

    mas no se d o inverso. Ora, entre a matria e a forma encontra-se uma tal vinculao, pois a

    forma d ser matria, e, por isso, impossvel haver matria sem alguma forma; no entanto,

    no impossvel haver alguma forma sem matria, com efeito, a forma, naquilo que forma,

    no tem dependncia com a matria. Mas se forem encontradas algumas formas que no

    podem ser seno na matria, isso acontece para elas segundo o que so distantes do primeiro

    princpio que o ato primeiro e puro. Donde aquelas formas que so maximamente prximas

    do primeiro princpio so as formas subsistentes por si sem a matria, com efeito, como foi dito,

    no segundo todo o seu gnero que a forma carece de matria; e as formas desse modo so

    inteligncias, e, por isso, no preciso que as essncias ou quididades daquelas substncias

    sejam algo que no a prpria forma.

    Portanto, a essncia da substncia composta e da substncia simples diferem nisto: que a

    essncia da substncia composta no a forma unicamente, mas abarca a forma e a matria;

    ora, a essncia da substncia simples a forma unicamente. E, a partir disso, so causadas outras

    duas diferenas. Uma que a essncia da substncia composta pode ser significada como todo

    ou como parte, o que acontece em razo da designao da matria, como foi dito. E, por isso, a

    essncia da coisa composta no predicada de qualquer modo prpria coisa composta; com

    efeito, no pode ser dito: o homem sua quididade. Mas a essncia da coisa simples que

    sua forma no pode ser significada seno como todo, dado que nada h ali alm da forma, como

    se um recipiente da forma; e, por isso, de qualquer modo que for tomada, a essncia da

    substncia simples predicada prpria {coisa simples}. Donde Avicena dizer que a quididade

    41 Cf. Cl. BAEUMKER, Avencebrolis (Ibn Gebirol) Fons vitae ex arabico in latinum translatus, Monasterii 1895; sobretudo no tr. IV De inquisitione scientie materie et forme in substantiis simplicibus. Ao qual muitos seguem, diz Toms em Super Sent. II d. 3 q. 1 a. 1. 42 De causis prop. 9 comm.: E a inteligncia aquilo que tem yliatim, visto que ser e forma (ed. H.-D. Saffrey, p. 57 b; ed. A. Pattin, 90).

  • 12

    do simples o prprio simples43, posto que no h algo diverso a receb-la. H uma segunda

    diferena, posto que as essncias das coisas compostas, disso que so recebidas na matria

    designada, so multiplicadas segundo a diviso dela {i.e., da matria designada}, donde

    acontece que algumas so iguais em espcie e diversas em nmero. Mas dado que a essncia

    simples no seja recebida na matria, no pode haver ali tal multiplicidade; e, por isso, preciso

    que naquelas substncias no sejam encontrados vrios indivduos da mesma espcie, mas

    tantos so ali os indivduos quantas so ali as espcies, como Avicena diz expressamente44.

    Portanto, nas essncias desse modo45, por mais que sejam unicamente formas sem matria, no

    h, no entanto, simplicidade de todos os modos, nem so ato puro, mas tm a mistura de

    potncia. E isso patente assim: com efeito, tudo o que no diz respeito inteleco da essncia

    ou da quididade, advm de fora e faz composio com a essncia, uma vez que nenhuma

    essncia pode ser inteligida sem aqueles que so partes da essncia. Ora, toda essncia ou

    quididade pode ser inteligida sem que algo seja inteligido a respeito de seu ser: com efeito,

    posso inteligir o que o homem ou a fnix e, no entanto, ignorar se, acaso, {algum deles} tem

    ser na natureza das coisas; portanto, patente que o ser algo diverso da essncia ou quididade.

    A no ser, talvez, que haja alguma coisa cuja quididade seja seu prprio ser, e essa coisa no

    pode ser seno una e primeira, uma vez que impossvel que seja feita a plurificao de algo a

    no ser por meio da adio de alguma diferena, assim como a natureza do gnero

    multiplicada nas espcies; ou por meio disso que a forma recebida em diversas matrias, assim

    como a natureza da espcie multiplicada em diversos indivduos; ou por meio disso que o uno

    absoluto e algo diverso em algum recebido, assim como se houvesse certo calor separado, ele,

    a partir de sua prpria separao, seria diverso do calor no separado. Ora, se for sustentada

    alguma coisa que seja unicamente ser, de tal modo que o prprio ser seja subsistente, esse ser

    no receberia a adio da diferena, uma vez que, se recebesse, no seria ser unicamente, mas

    ser e, alm disso, alguma forma determinada; e muito menos receberia a adio da matria,

    uma vez que, se recebesse, no seria ser subsistente, mas material. Donde resta que tal coisa

    que seria seu ser no pode ser seno una; donde ser preciso que em qualquer outra coisa alm

    dela seu ser seja diverso de sua quididade ou natureza ou forma; donde ser preciso que, nas

    inteligncias, alm da forma haja o ser, e, por isso, foi dito que a inteligncia forma e ser.

    Ora, tudo o que convm a algo, ou causado a partir dos princpios de sua natureza, assim como,

    no homem, o ser capaz de rir, ou advm desde algum princpio extrnseco, assim como a luz no

    ar a partir da influncia do Sol. Ora, no pode se dar que o prprio ser seja causado a partir da

    prpria forma ou quididade da coisa, digo, tal como a partir de uma causa eficiente, posto que,

    assim, alguma coisa seria causa de si mesma e alguma coisa produziria a si mesma no ser: o que

    impossvel. Portanto, preciso que toda coisa que tal cujo ser algo diverso de sua natureza

    , tenha o ser a partir de algo diverso. E posto que tudo o que por algo diverso reduzido

    quilo que por si assim como causa primeira, preciso que haja alguma coisa que seja causa

    de ser para todas as coisas na medida em que ela unicamente ser; de outro modo, ir-se-ia

    ao infinito nas causas, dado que toda coisa que no unicamente ser tenha a causa de seu ser,

    como foi dito. Portanto, patente que a inteligncia forma e ser, e que tem o ser a partir do

    primeiro ente que unicamente ser, e este a causa primeira que Deus.

    Ora, tudo o que recebe algo desde outro em potncia no que se refere a esse outro, e isso que

    nele recebido seu ato; portanto, preciso que a prpria quididade ou forma que a

    43 AVICENA, Metaph. V cap. 5 (fol. 90 ra F). 44 AVICENA, Metaph. V cap. 2 (fol. 87 va A). 45 A saber, nas essncias simples (N. do T.).

  • 13

    inteligncia seja em potncia no que se refere ao ser que recebe desde Deus, e aquele ser

    recebido a modo de ato. E desse modo encontra-se a potncia e o ato nas inteligncias, no

    entanto, no a forma e a matria, a no ser por equivocidade. Por conseguinte, tambm

    sofrer, receber, ser sujeito e todos {os nomes} que, assim como esses, se v serem

    convenientes s coisas em razo da matria, convm por equivocidade s substncias

    intelectuais e s substncias corporais, como o Comentador diz em Sobre a alma III46. E posto

    que, como foi dito, a quididade da inteligncia a prpria inteligncia, ento, sua quididade

    ou essncia o mesmo que ela , e seu ser recebido de Deus aquilo pelo que {ela} subsiste na

    natureza das coisas; e, em razo disso, alguns47 dizem que as substncias desse modo so

    compostas de pelo que e o que 48, ou, como diz Bocio, de o que e ser49.

    E posto que a potncia e o ato so sustentados nas inteligncias, no ser difcil encontrar uma

    multiplicidade de inteligncias, o que seria impossvel se no houvesse nenhuma potncia nelas.

    Donde o Comentador dizer em Sobre a alma III50 que, se a natureza do intelecto possvel fosse

    desconhecida, no poderamos encontrar a multiplicidade nas substncias separadas. Portanto,

    h distino delas entre si segundo o grau de potncia e de ato, de modo que a inteligncia

    superior, que mais prxima do primeiro {intelecto}, tem mais ato e menos potncia, e assim

    por diante.

    E isso se completa na alma humana, que tem o ltimo grau nas substncias intelectuais. Por

    conseguinte, o intelecto possvel dela est vinculado s formas inteligveis assim como a matria

    primeira que ocupa o ltimo grau no ser sensvel s formas sensveis, como o Comentador

    diz em Sobre a alma III51: eis por que o Filsofo a compara tbua na qual nada est escrito52. E

    uma vez que aquela que mais tem potncia entre as substncias intelectuais, eficientemente

    produzida to prxima das coisas materiais que atrai as coisas materiais para participarem de

    seu ser, a saber, de modo que a partir de alma e corpo resulta um ser em um composto, por

    mais que aquele ser, na medida em que da alma, no seja dependente do corpo. E, por isso,

    depois dessa forma que a alma, so encontradas outras formas, com mais potncia e, medida

    que o ser delas no se d sem a matria, mais prximas da matria. No ser delas encontra-se

    ordem e grau at as primeiras formas dos elementos, que so maximamente prximas da

    matria, donde tampouco tm alguma operao se no segundo a exigncia das qualidades

    ativas e passivas e de outras qualidades pelas quais a matria disposta para a forma.

    5 Captulo

    Tendo visto isso, fica, ento, patente de que modo a essncia encontrada em diversos. Com

    efeito, encontra-se nas substncias um trplice modo de ter a essncia. Pois h algo tal como

    46 AVERRIS, De anima III comm. 14 (p. 429 lin. 23-28). 47 Cf. ALEXANDRE DE HALES, Glosa in librum II Sent. d. 3 n. 7 (ed. Quaracchi 1952, p. 27-28); ALBERTO MAGNO, Super Sent. II d. 3 a. 2: Partes que os nossos doutores chamam o que e pelo que , e que se v Bocio chamar o que e ser (Borgnet 27, 48 a). 48 Portanto, no vocabulrio de Toms, quod est (o que ) equivale a essncia, enquanto quo est (pelo que ) equivale a ser. (N. do T.). 49 Cf. BOCIO, De hebdom.: H diferena entre o ser e aquilo que ... Para todo composto, um o ser, outro, o prprio (PL 64, 1311 B-C). 50 AVERRIS, De anima III comm. 5: E a no ser que houvesse este gnero de entes que conhecemos na cincia da alma, no poderamos entender a multiplicidade nas coisas abstratas, do mesmo modo, a no ser que conheamos esta natureza do intelecto, no poderemos entender que as virtudes que movem abstratamente devem ser inteligncias (p. 410 lin. 667-672). 51 AVERRIS, De anima III comm. 5 (p. 387 lin. 27-32). 52 ARISTTELES, De anima III 3[9] (430 a 1).

  • 14

    Deus, cuja essncia seu prprio ser, donde serem encontrados alguns filsofos53 que dizem

    que Deus no tem quididade ou essncia, posto que sua essncia no algo diverso de seu ser.

    Disso se segue que ele no est num gnero, uma vez que preciso que tudo que est num

    gnero tenha a quididade alm de seu ser, j que, segundo a noo de natureza, naqueles dos

    quais h gnero ou espcie, a quididade ou natureza do gnero ou da espcie no sofre

    distino, mas o ser diverso nos diversos.

    E no preciso, se dissermos que Deus unicamente ser, que caiamos no erro daqueles que

    disseram que Deus seja aquele ser universal pelo qual qualquer coisa formalmente54. Com

    efeito, esse ser que Deus com condies tais que nada pode ser adicionado a ele, donde, por

    sua prpria pureza, um ser que se distingue de todo ser; em razo disso, se diz no Comentrio

    para a nona proposio do livro Sobre as causas55 que a individuao da primeira causa, que

    unicamente ser, se d pela pura bondade dele. Ora, o ser comum, assim como no inclui alguma

    adio em sua inteleco, tambm no inclui em sua inteleco que a adio seja prescindida,

    uma vez que, se assim fosse, nada poderia ser inteligido como o ser no qual algo seria

    acrescentado ao ser.

    Ainda, de modo semelhante, por mais que seja unicamente ser, no preciso que lhe faltem as

    demais perfeies e nobrezas. Melhor: tem todas as perfeies que h em todos os gneros, em

    razo do que dito absolutamente perfeito, como o Filsofo e o Comentador dizem em

    Metafsica V56; mas as tem de modo mais excelente que todas as coisas, porque nele so um,

    mas nos outros elas tm diversidade. E isso se d porque todas aquelas perfeies convm a ele

    segundo seu ser simples, pois Deus tem todas as perfeies em seu prprio ser assim como

    algum que pudesse produzir eficientemente operaes de todas as qualidades por uma

    qualidade teria todas as qualidades nessa nica qualidade.

    A essncia encontrada nas substncias criadas intelectuais de um segundo modo: nelas, o ser

    algo diverso de sua essncia, mesmo quando a essncia se d sem a matria. Por conseguinte,

    o ser delas no absoluto, mas recebido, e, por isso, limitado e finito capacidade da natureza

    recipiente. Mas a natureza ou quididade delas absoluta, no recebida em alguma matria,

    donde se diz no livro Sobre as causas que as inteligncias so infinitas inferiormente e finitas

    superiormente57; com efeito, so finitas quanto ao seu ser, que recebem do que superior, no

    entanto, no so feitas finitas pelo inferior, posto que as formas delas no so limitadas

    capacidade de alguma matria que as receba. Donde, como foi dito58, no ser encontrada, em

    53 Sobretudo Avicena, por exemplo, na Metaph. VIII cap. 4: Tudo que tem quididade causado, e, fora o ser necessrio, todos os demais tm quididade... para os quais no se d que [ele] seja seno algo extrnseco; portanto, o primeiro no tem quididade (fol. 99 rb B). 54 Cf. TOMS DE AQUINO, Suma de Teologia I, q. 3, a. 8, resp.: Diz-se que essa tenha sido a opinio dos seguidores de Amaury; esses erros de Paris foram condenados no ano de 1210 (Chartularium Univers. Paris. I, p. 71). 55 Yliatim, isto , seu ser infinito, e sua individualidade a pura bondade (ed. Saffrey, p. 57; cf. ed. Pattin, 91). 56 ARISTTELES, Metaph. V 18 (1021 b 30-33) traz: so ditos perfeitos... de algum modo universal (na rabo-latina), o que Averris expe no comentrio 21: E esta a disposio do primeiro princpio, isto , Deus (fol. 62 ra 12). 57 De causis, prop. 16 comm.: E certamente a virtude daquela no feita infinita seno quanto ao inferior, no ao superior (ed. Saffrey, p. 92; ed. Pattin, 131). 58 Supra, cap. 4, Mas dado que a essncia simples no seja recebida na matria, no pode haver ali tal multiplicidade; e, por isso, preciso que naquelas substncias no sejam encontrados vrios indivduos da mesma espcie, mas tantos so ali os indivduos quantas so ali as espcies, como Avicena diz expressamente.

  • 15

    tais substncias, a multiplicidade de indivduos em uma nica espcie a no ser na alma humana,

    em razo do corpo ao qual est unida. E embora a individuao dela dependa ocasionalmente

    do corpo quanto sua incoao, uma vez que o ser individuado no adquirido para ela a no

    ser no corpo do qual ela ato, no preciso, no entanto, que perea a individuao subtrado

    o corpo, porque, visto que tenha um ser absoluto a partir do qual o ser individuado adquirido

    para ela, disto que feita forma deste corpo, aquele ser sempre permanece individuado. Eis por

    que Avicena diz que a individuao e a multiplicao das almas depende do corpo quanto a seu

    princpio, mas no quanto a seu fim59.

    E uma vez que, nessas substncias {criadas intelectuais}, a quididade no o mesmo que o ser,

    elas so ordenveis no predicamento; e em razo disso nelas se encontra o gnero, a espcie e

    a diferena, por mais que as diferenas prprias delas nos sejam ocultas. Com efeito, tambm

    nas coisas sensveis so desconhecidas as prprias diferenas essenciais; donde serem

    significadas pelas diferenas acidentais que surgem desde as {diferenas} essenciais assim como

    a causa significada por seu efeito; assim como, por bpede, se pe a diferena do homem. Ora,

    os acidentes prprios das substncias imateriais nos so desconhecidos, donde as diferenas

    delas no poderem ser significadas por ns nem por si nem pelas diferenas acidentais.

    No entanto, cumpre saber isto: que no se toma do mesmo modo o gnero e a diferena nas

    substncias imateriais e nas substncias sensveis, porque, nas substncias sensveis, o gnero

    tomado daquilo que na coisa material, a diferena, porm, daquilo que nela formal; donde

    Avicena dizer no princpio de seu livro Sobre a alma que forma, nas coisas compostas a partir

    de matria e forma, a diferena simples daquilo que constitudo a partir dela60, mas no

    de modo que a prpria forma seja a diferena, mas porque o princpio da diferena, como ele

    diz em sua Metafsica61. E dito que esta diferena uma diferena simples porque tomada

    daquilo que parte da quididade da coisa, a saber, da forma. No entanto, dado que as

    substncias imateriais sejam quididades simples, nelas a diferena no pode ser tomada daquilo

    que parte da quididade, mas {tem de ser tomada} de toda a quididade; donde Avicena dizer

    no princpio do Sobre a alma que apenas tm diferena simples as espcies das quais as

    essncias so compostas a partir de matria e forma62.

    Semelhantemente, nelas63 tambm o gnero tomado de toda a essncia, ainda que de um

    modo diverso. Com efeito, uma substncia separada convm com outra na imaterialidade, e elas

    diferem entre si no grau de perfeio segundo o afastamento da potencialidade e a aproximao

    do ato puro. E, por isso, o gnero tomado nelas daquilo que as acompanha enquanto so

    imateriais, tal como se d com a intelectualidade ou algo que tal; ora, de que as acompanhe um

    grau de perfeio, nelas se toma a diferena, que ns, porm, desconhecemos. E no preciso

    que essas diferenas que no diversificam a espcie sejam acidentais porque so segundo uma

    perfeio maior ou menor, com efeito, o grau de perfeio no diversifica a espcie ao receber

    a mesma forma tal qual o mais branco e o menos branco ao participar da mesma noo de

    brancura, mas diversifica a espcie o grau diverso de perfeio nas mesmas formas ou naturezas

    59 AVICENA, De anima V cap. 3: Portanto, a singularidade das almas... comea a ser unicamente com o corpo.... depois as almas so, sem dvida, separadas dos corpos (ed. Van Riet, p. 107 lin 75 e p. 109 lin. 96); cf. cap. 4: Que a alma no deixa de ser (p. 113-126). 60 AVICENA, Deanima I, cap. 1 (p. 19, lin. 25-26). 61 AVICENA, Metaph. V cap. 6 (fol. 90 rb A); cf. supra, cap. 3, Donde Avicena dizer que a racionalidade no a diferena, mas o princpio da diferena.... 62 De anima I cap. 1 (p. 19 lin. 22-24). 63 Isto , nas substncias imateriais (N. do T.).

  • 16

    participadas, assim como, por meio de alguns que so intermedirios entre os animais e as

    plantas, a natureza procede por graus das plantas aos animais, segundo o Filsofo em Sobre os

    animais VII64. E tambm no necessrio que a diviso das substncias intelectuais sempre se

    d por duas diferenas verdadeiras, pois impossvel que isso acontea em todas as coisas,

    como o Filsofo disse em Sobre os animais XI65.

    Nas substncias a partir de matria e forma, a essncia encontrada de um terceiro modo:

    nelas, o ser tanto recebido como finito em razo de que {tais substncias} tm o ser desde

    outro e de que, por sua vez, a natureza ou quididade delas seja recebida na matria assinalada.

    Donde serem finitas tanto quanto ao superior como quanto ao inferior, e, em razo daquela

    diviso da matria assinalada, possvel nelas a multiplicao dos indivduos numa espcie. E

    foi dito acima66 sob que condies, nelas, a essncia est vinculada s intenes lgicas.

    6 Captulo

    Resta ver agora de que modo h essncia nos acidentes; com efeito, j se disse67 sob que

    condies h {essncia} em todas as substncias. Posto, como se disse, que essncia aquilo

    que significado pela definio, preciso que {os acidentes} tenham essncia do mesmo modo

    que tm definio. Ora, eles tm uma definio incompleta, posto que no podem ser definidos

    a no ser que se ponha um sujeito na definio deles; e isso assim porque no tm um ser

    absoluto por si separado do sujeito, mas assim como o ser substancial resulta da forma e da

    matria quando h composio, assim o ser acidental resulta do acidente e do sujeito quando o

    acidente advm ao sujeito. E tambm por isso nem a forma substancial tem uma essncia

    completa nem a matria {tem uma essncia completa}, posto que tambm na definio da

    forma substancial preciso que seja posto aquilo de que forma, e, assim, a definio dela se

    d pela adio de algo que est fora do gnero dela, tal como tambm na definio da forma

    acidental; donde tambm se pe o corpo na definio de alma68 dada pelo filsofo natural69,

    que considera a alma unicamente enquanto forma do corpo fsico.

    Mas h uma grande diferena entre as formas substanciais e acidentais. Porque, assim como a

    forma substancial no tem um ser absoluto por si sem aquilo a que advm, assim tambm no

    tem um ser absoluto por si aquilo a que {a forma substancial} advm, ou seja, a matria; donde

    aquele ser no qual a coisa subsiste por si ser o resultado da conjuno delas, e o uno por si ser

    eficientemente produzido a partir delas, visto que da conjuno delas resulta certa essncia.

    Donde, por mais que, considerada em si, no tenha a noo completa da essncia, a forma , no

    entanto, parte da essncia completa. Mas aquilo a que o acidente advm o ente completo em

    si, que subsiste no seu ser, ser que certamente precede naturalmente o acidente superveniente.

    E, por isso, o acidente superveniente no causa, a partir de sua conjuno com aquilo a que

    advm, aquele ser no qual a coisa subsiste, pelo qual a coisa ente por si; mas causa certo ser

    segundo, sem o qual a coisa subsistente pode ser inteligida ser, assim como o primeiro pode ser

    inteligido sem o segundo. Donde, a partir do acidente e do sujeito, no seja produzido

    64 ARISTTELES, De hist.. animal. VIII cap. 1 (588 b 4-12) na traduo de Escoto, De animal. VII: A natureza graduada aos poucos, do no animado aos animais (ms. Vat. Chigi E. VIII. 251, fol. 28 ra). 65 De part. animal. I cap. 2 (642 b 5-7); na traduo de Escoto, De animal. XI. 66 No 3 captulo. 67 Supra, cap. 1: Posto que aquilo pelo que a coisa colocada no gnero adequado, ou na espcie, isso que significado pela definio que indica o que a coisa ...; cap. 2: Com efeito, patente do que foi dito que essncia aquilo que significado pela definio da coisa . 68 A saber, que lida em ARISTTELES, De anima II 1 (412 b 5). 69 Isto , o filsofo que estuda a fsica (grega). (N. do T.).

  • 17

    eficientemente o uno por si, mas o uno por acidente. E, por isso, da conjuno deles no resulta

    certa essncia assim como da conjuno da forma com a matria; visto que o acidente nem tem

    a noo de essncia completa nem parte da essncia completa, mas assim como ente de

    acordo com a determinao, assim tambm tem essncia de acordo com a determinao.

    Mas posto que aquilo que dito maximamente e verdadeirissimamente em qualquer gnero

    causa daqueles que so depois naquele gnero, assim como o fogo que se d no pice do

    aquecimento causa do calor na coisa aquecida, como se diz em Metafsica II70: por isso, tendo

    a substncia, que o primeiro no gnero do ente, verdadeirissimamente e maximamente a

    essncia, preciso que ela seja causa dos acidentes que participam da noo de ente

    secundariamente e como que de acordo com a definio. O que acontece, porm, de vrios

    modos. Com efeito, porque as partes da substncia so a matria e a forma, ento, alguns

    acidentes acompanham principalmente a forma, outros, a matria. Ora, encontra-se alguma

    forma cujo ser no depende da matria, como a alma intelectual; a matria, porm, no tem o

    ser seno pela forma. Donde, nos acidentes que acompanham a forma, h algo que no tem

    comunicao com a matria, tal como o inteligir, que no se d por rgo corporal, assim como

    o Filsofo prova em Sobre a alma III71; h outros, porm, a partir daqueles que acompanham a

    forma, que tm comunicao com a matria, tal como o sentir. Mas nenhum acidente

    acompanha a matria sem a comunicao da forma.

    No entanto, encontra-se certa diversidade nesses acidentes que acompanham a matria. Com

    efeito, alguns acidentes acompanham a matria segundo a ordem que ela tem quanto forma

    especial, assim como o masculino e o feminino nos animais, dos quais a diversidade est

    reduzida matria, como se diz em Metafsica X72; donde, removida a forma animal, os ditos

    acidentes no permanecem seno equivocamente. Outros, porm, acompanham a matria

    segundo a ordem que ela tem quanto forma geral; e, por isso, removida a forma especial

    quanto a isso, permanecem nela, assim como a negrura da pele73 est no etope a partir da

    mistura dos elementos e no a partir da noo de alma, e, por isso, permanece nele aps a

    morte.

    E posto que cada coisa individuada a partir da matria e colocada no gnero ou na espcie

    por sua forma, ento, os acidentes que acompanham a matria so acidentes do indivduo, de

    acordo com os quais mesmo os indivduos da mesma espcie diferem entre si; os acidentes,

    porm, que acompanham a forma so propriamente afeces ou do gnero ou da espcie,

    donde serem encontrados em todos que participam da natureza do gnero ou da espcie, assim

    como o ser capaz de rir acompanha a forma no homem, porque o riso acontece a partir de

    alguma apreenso da alma do homem.

    Cumpre saber ainda que os acidentes s vezes so causados a partir de princpios essenciais

    segundo um ato perfeito, assim como o calor no fogo que sempre quente; s vezes, porm,

    segundo uma aptido apenas, mas o complemento se d a partir de um agente exterior, assim

    como a diafaneidade do ar que abarcada pelo corpo lcido exterior; e, nestes, a aptido um

    acidente inseparvel, mas o complemento que advm a partir de algum princpio que exterior

    70 Metaph. II 2 (993 b 24). 71 De anima III 1 [7] (429 a 18-b 5). 72 Metaph. X 11 (1058 b 21-23), na traduo Mdia: Porm, o masculino e o feminino do animal so propriamente afeces e segundo a substncia, verdadeiramente na matria e no corpo (ms. P, fol. 217 ra; ms. V, fol. 89 r). 73 O exemplo de Avicena, em Sufficientia I cap. 6 (fol. 17 rb).

  • 18

    essncia da coisa, ou que no interior constituio da coisa, separvel, assim como o

    mover-se e o que desse modo.

    Tambm cumpre saber que, nos acidentes, o gnero, a diferena e a espcie so tomados de

    um modo diverso do das substncias. Com efeito, posto que nas substncias a partir de forma

    substancial e matria produzido aquilo que uno por si, resultando da conjuno delas certa

    natureza una que propriamente colocada no predicamento da substncia, ento, os nomes

    concretos que significam o composto nas substncias so ditos propriamente estar no gnero

    tal como espcies ou gneros, como homem ou animal. Ora, desse modo, no h forma ou

    matria no predicamento se no por reduo, assim como se diz que os princpios esto no

    gnero. Mas o uno por si no se faz a partir de acidente e sujeito; donde no resulta da

    conjuno deles alguma natureza para a qual possa ser atribuda a inteno gnero ou

    espcie. Donde os nomes acidentais ditos concretamente, como branco ou msico, no

    serem postos no predicamento tal como espcies ou gneros a no ser por reduo, mas

    unicamente de acordo com o que so significados abstratamente, como brancura e msica.

    E posto que os acidentes no so compostos de matria e forma, ento, o gnero no pode ser

    tomado neles a partir da matria, nem a diferena da forma, assim como nas substncias

    compostas, mas preciso que o gnero primeiro seja tomado a partir do prprio modo de ser

    de acordo com o qual o ente, dito de vrios modos de acordo com o anterior e o posterior,

    dito a respeito dos dez gneros dos predicamentos, assim como a quantidade dita a partir

    daquilo que a medida da substncia, a qualidade de acordo com o que a disposio da

    substncia, e assim por diante, segundo o Filsofo em Metafsica IX74.

    As diferenas, porm, so tomadas neles a partir da diversidade dos princpios desde os quais

    so causados. E posto que as afeces prprias so causadas a partir dos princpios prprios do

    sujeito, ento, o sujeito posto na definio deles75 no lugar das diferenas se forem definidos

    abstratamente, de acordo com o que esto propriamente num gnero, assim como se diz que

    aduncidade a curvatura do nariz. Mas se daria o inverso se a definio deles fosse tomada

    de acordo com o que so ditos concretamente. Com efeito, assim, o sujeito seria posto na

    definio deles tal como um gnero, posto que, ento, seriam definidos ao modo das

    substncias compostas nas quais a noo de gnero tomada desde a matria, assim como

    dizemos que adunco o nariz curvo. Se d tambm algo semelhante se um acidente for

    princpio de outro, assim como o princpio da relao a ao, a afeco e a quantidade; e, por

    isso, em Metafsica V76, o Filsofo divide a relao de acordo com elas. Mas uma vez que os

    princpios prprios dos acidentes nem sempre so manifestos, ento, s vezes tomamos as

    diferenas dos acidentes a partir dos efeitos deles, assim como as diferenas das cores que so

    causadas desde a abundncia ou escassez de luz a partir das quais as diversas espcies de cor

    so causadas so ditas77 saturadas ou esmaecidas.

    Assim, portanto, fica patente de que modo h essncia nas substncias e nos acidentes, e de

    que modo nas substncias compostas e nas simples, e sob quais condies so encontradas em

    todas elas as intenes lgicas universais, com exceo do primeiro, que est no pice da

    74 Metaph. IX 1 (1045 b 27-32), onde certamente disse: como dissemos nos primeiros discursos, a saber, IV 1 (1003 a 33 - b 10). 75 Isto , dos acidentes (N. do T.). 76 Metaph. V 17 (1020 b 26 ss.). 77 Por exemplo, ARISTTELES, Metaph. X 9 (1057 b 8-9).

  • 19

    simplicidade, ao qual, em razo de sua simplicidade, no convm a noo de gnero ou de

    espcie, e, consequentemente, nem a definio. Esteja nele o pice e a consumao desse

    discurso. Amm.

  • 20

    Thomae de Aquino De ente et essentia

    Quia parvus error in principio magnus est in fine, secundum philosophum in I caeli et mundi, ens autem et essentia sunt quae primo intellectu concipiuntur, ut dicit Avicenna in principio suae metaphysicae, ideo ne ex eorum ignorantia errare contingat, ad horum difficultatem aperiendam dicendum est quid nomine essentiae et entis significetur et quomodo in diversis inveniatur et quomodo se habeat ad intentiones logicas, scilicet genus, speciem et differentiam. Quia vero ex compositis simplicium cognitionem accipere debemus et ex posterioribus in priora devenire, ut, a facilioribus incipientes, convenientior fiat disciplina, ideo ex significatione entis ad significationem essentiae procedendum est.

    CAPITVLVM 1 Sciendum est igitur quod, sicut in V metaphysicae philosophus dicit, ens per se dicitur dupliciter, uno modo quod dividitur per decem genera, alio modo quod significat propositionum veritatem. Horum autem differentia est quia secundo modo potest dici ens omne illud, de quo affirmativa propositio formari potest, etiam si illud in re nihil ponat. Per quem modum privationes et negationes entia dicuntur; dicimus enim quod affirmatio est opposita negationi et quod caecitas est in oculo. Sed primo modo non potest dici ens nisi quod aliquid in re ponit. Unde primo modo caecitas et huiusmodi non sunt entia. Nomen igitur essentiae non sumitur ab ente secundo modo dicto, aliqua enim hoc modo dicuntur entia, quae essentiam non habent, ut patet in privationibus; sed sumitur essentia ab ente primo modo dicto. Unde Commentator in eodem loco dicit quod ens primo modo dictum est quod significat essentiam rei. Et quia, ut dictum

    TOMS DE AQUINO, Sobre o ente e a essncia*

    Segundo o Filsofo em Sobre o cu e o mundo I, um pequeno erro no princpio grande no final78. Ora, como diz Avicena no princpio de sua Metafsica, o ente e a essncia so aqueles que so primeiramente concebidos pelo intelecto79. Logo, para que no haja erro por ignor-los, para que aparea o que h de difcil sobre eles, cumpre dizer o que significado pelo nome essncia e pelo nome ente; de que modo {isso que significado por tais nomes}80 encontrado em diversos e de que modo est vinculado s intenes lgicas, isto , ao gnero, espcie e diferena. De fato, devemos receber o conhecimento dos simples partindo dos compostos e chegar aos anteriores partindo dos posteriores. Logo, cumpre proceder partindo da significao de ente para a significao de essncia.

    1 Captulo Portanto, tal como o Filsofo diz em Metafsica V81, cumpre saber que h dois modos de dizer o ente por si. De um modo, o ente por si aquilo que dividido por dez gneros; de outro modo, aquilo que significa a verdade da proposio. Ora, h diferena entre eles porque, do segundo modo, pode ser chamado de ente tudo aquilo a respeito de que se pode formar uma proposio afirmativa, mesmo que aquilo nada ponha na coisa. Segundo esse modo, as privaes e as negaes so ditas entes. Com efeito, dizemos: a afirmao oposta negao; a cegueira est no olho. Mas, do primeiro modo, no pode ser dito ente seno aquilo que pe algo na coisa, donde, do primeiro modo, a cegueira, e os que so do mesmo modo dela, no so entes. Portanto, o nome essncia no tomado de ente dito do segundo modo: com efeito, deste modo, alguns que no tm essncia so ditos entes, como patente nas privaes. Ora, essncia tomada de ente dito do primeiro modo. Donde o Comentador dizer, no mesmo lugar, que ente, dito do primeiro modo, aquilo que

    * TOMS DE AQUINO, De ente et essentia. In: Sancti Thomae de Aquino Opera Omnia iussu Leonis XIII edita [= Leonina]. Tomus XLIII, Cura et Studio Fratrum Praedicatorum. Roma: Santa Sabina, 1976, p. 369-381. Traduo: Carlos Eduardo de Oliveira. 78 De caelo I 9 (271 b 8-13); ainda, AVERRIS In De anima III comm. 4: com efeito, um erro mnimo no princpio causa de um erro mximo no final, como Aristteles disse (ed. Crawford, p. 384, l. 32). 79 Cf. AVICENA, Metaph. I, cap. 6: Dizemos, ento, que o ente e a coisa e o necessrio so tais que so imediatamente impressos na alma pela impresso primeira (ed. Venetiis 1508, f. 72 rb A); certamente falta ali a palavra essncia, mas pouco abaixo segue-se: Com efeito, qualquer coisa tem a certeza pela qual aquilo que ... Qualquer coisa tem a certeza prpria que sua quididade (ibidem f. 72 va C). 80 Advirta-se que se trata de acrscimo do tradutor todo texto que aqui aparecer entre {}. (N. do T.). 81 Metaph. V 9 (1017 a 22-35).

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    est, ens hoc modo dictum dividitur per decem genera, oportet quod essentia significet aliquid commune omnibus naturis, per quas diversa entia in diversis generibus et speciebus collocantur, sicut humanitas est essentia hominis, et sic de aliis. Et quia illud, per quod res constituitur in proprio genere vel specie, est hoc quod significatur per diffinitionem indicantem quid est res, inde est quod nomen essentiae a philosophis in nomen quiditatis mutatur. Et hoc est quod philosophus frequenter nominat quod quid erat esse, id est hoc per quod aliquid habet esse quid. Dicitur etiam forma secundum quod per formam significatur certitudo uniuscuiusque rei, ut dicit Avicenna in II metaphysicae suae. Hoc etiam alio nomine natura dicitur accipiendo naturam secundum primum modum illorum quattuor, quos Boethius in libro de duabus naturis assignat, secundum scilicet quod natura dicitur omne illud quod intellectu quoquo modo capi potest. Non enim res est intelligibilis nisi per diffinitionem et essentiam suam. Et sic etiam philosophus dicit in V metaphysicae quod omnis substantia est natura. Tamen nomen naturae hoc modo sumptae videtur significare essentiam rei, secundum quod habet ordinem ad propriam operationem rei, cum nulla res propria operatione destituatur. Quiditatis vero nomen sumitur ex hoc, quod per diffinitionem significatur. Sed essentia dicitur secundum quod per eam et in ea ens habet esse.

    significa a essncia da coisa82. E uma vez que, como se disse, o ente dito desse modo dividido pelos dez gneros, preciso que essncia signifique algo comum a todas as naturezas pelas quais entes diversos so colocados em gneros e espcies diversos, assim como humanidade a essncia de homem e assim por diante. Posto que aquilo pelo que a coisa colocada no gnero adequado, ou na espcie, isso que significado pela definio que indica o que a coisa , segue-se, ento, que o nome essncia seja intercambiado pelos filsofos83 com o nome quididade,84 e isso tambm o que o Filsofo frequentemente nomeia o que era ser algo 85, ou seja, isso pelo que algo qualquer tem o ser algo determinado 86. dito tambm forma, segundo o que, por forma, significada a certeza de qualquer coisa, como diz Avicena no livro II de sua Metafsica87. Isso, por outro nome, tambm dito natureza, tomando natureza segundo o primeiro modo daqueles quatro assinalados por Bocio no livro Sobre as duas naturezas, a saber, segundo o que se diz natureza aquilo que pode ser tomado de algum modo pelo intelecto88, com efeito, a coisa no inteligvel seno por sua definio e essncia; e, assim, tambm o Filsofo diz em Metafsica V que toda substncia natureza89. V-se, no entanto, que o nome natureza, tomado desse modo, signifique a essncia da coisa segundo o que est ordenada para a operao prpria da coisa, dado que nenhuma coisa seja destituda de operao prpria; o nome quididade, porm, tomado do fato de que {aquilo pelo que a coisa colocada no gnero adequado, ou na espcie,} seja significado pela definio. Mas se diz essncia segundo o que, nela e por ela, o ente tem ser.

    82 AVERRIS, Metaph. V comm. 14: Mas deves saber que, universalmente, este nome ente que significa a essncia da coisa diverso de ente que significa o verdadeiro (ed. Venetiis 1552, f. 55 va 56). 83 Por exemplo, AVICENA, Metaph. V, cap. 5, passim, igualmente, AVERRIS, Metaph. VII, passim. 84 Toms sugere algo que se perde no portugus, a saber, que o vocbulo latino quiditas (quididade) seja uma derivao que faz referncia questo quid est? (o que ?) de modo a nomear quilo que serve de resposta para essa questo. (N. do T.). 85 A expresso , que lemos s dezenas nos Segundos analticos II 4-6 (91 a 25-92 a 25) ou em Metafsica VII, cap. 3-6 (1028 b 34-1032 a 29), foi vertida pelos tradutores latinos por quod quid erat esse, como em Tiago de Veneza, como se encontra em sua traduo dos Segundos analticos (AL IV. 1-4) e da Metafsica Vetustissima (AL XXV.I.I), mas no em Guilherme de Moerbeke, como, por exemplo, na nova traduo da Metafsica. 86 Nessa passagem, Toms sugere um modo de se ler a expresso latina que verte a expresso grega citada na nota anterior, a saber, que quod quid erat esse (o que era ser algo) fosse entendida como hoc per quod aliquid habet esse quid (isso pelo que algo qualquer tem o ser algo determinado). (N. do T.). 87 Metaph. I cap. 6: qualquer coisa tem a certeza prpria que sua quididade (f. 72 va) e II cap. 2 esta certeza ... a forma (f. 76 ra). 88 De persona et duabus naturis cap. 1: H natureza daquelas coisas que, quando so, podem ser tomadas de algum modo pelo intelecto (PL 64, 1341 B). 89 Metaph. V 5 (104 b 36): A natureza dos existentes dita, de outro modo, natureza substncia (ms. P, fol. 195 vb; ms. V, fol. 39 r).

  • 22

    Sed quia ens absolute et per prius dicitur de substantiis et per posterius et quasi secundum quid de accidentibus, inde est quod essentia proprie et vere est in substantiis, sed in accidentibus est quodammodo et secundum quid. Substantiarum vero quaedam sunt simplices et quaedam compositae, et in utrisque est essentia, sed in simplicibus veriori et nobiliori modo, secundum quod etiam esse nobilius habent. Sunt enim causa eorum quae composita sunt, ad minus substantia prima simplex, quae Deus est. Sed quia illarum substantiarum essentiae sunt nobis magis occultae, ideo ab essentiis substantiarum compositarum incipiendum est, ut a facilioribus convenientior fiat disciplina.

    CAPITVLUM II In substantiis igitur compositis forma et materia nota est, ut in homine anima et corpus. Non autem potest dici quod alterum eorum tantum essentia esse dicatur. Quod enim materia sola non sit essentia rei planum est, quia res per essentiam suam et cognoscibilis est et in specie ordinatur vel genere. Sed materia neque cognitionis principium est, neque secundum eam aliquid ad genus vel speciem determinatur, sed secundum id quod aliquid actu est. Neque etiam forma tantum essentia substantiae compositae dici potest, quamvis hoc quidam asserere conentur. Ex his enim quae dicta sunt patet quod essentia est illud, quod per diffinitionem rei significatur. Diffinitio autem substantiarum naturalium non tantum formam continet, sed etiam materiam; aliter enim diffinitiones naturales et mathematicae non differrent. Nec potest dici quod materia in diffinitione substantiae naturalis ponatur sicut additum essentiae eius vel ens extra essentiam eius, quia hic modus diffinitionis proprius est accidentibus, quae perfectam essentiam non habent. Unde oportet quod in diffinitione sua subiectum recipiant, quod est extra genus eorum. Patet ergo quod essentia comprehendit materiam et formam.

    Mas, posto que ente seja dito absoluta e primeiramente a respeito das substncias90, e a respeito dos acidentes pelo posterior e como se de acordo com a determinao91, ento, tem-se, ainda, que h essncia prpria e verdadeiramente nas substncias, mas, nos acidentes, h de certo modo e de acordo com a determinao. De fato, entre as substncias, algumas so simples e outras compostas, e de cada uma delas h essncia; mas nas simples de modo mais verdadeiro e mais nobre, segundo o que, ademais, tm mais nobre ser: com efeito, so causa daqueles que so compostos, ao menos a substncia primeira simples que Deus. Mas uma vez que as essncias dessas substncias so mais ocultas para ns, ento, cumpre comear pelas essncias das substncias compostas, dado que a disciplina seja mais convenientemente realizada partindo do que mais fcil.

    2 Captulo Portanto, nota-se a forma e a matria nas substncias compostas tal como nota-se a alma e o corpo no homem. Ora, no possvel dizer que apenas uma daquelas duas seja dita essncia. Com efeito, est claro que, isolada, a matria da coisa no seria a essncia, porque a coisa tanto cognoscvel quanto ordenada na espcie ou no gnero pela sua essncia: ora, nem a matria princpio de cognio nem algo determinado para o gnero ou para a espcie segundo ela, mas { determinado} segundo seja algo em ato. Nem, ainda, unicamente a forma pode ser dita a essncia da substncia composta, embora alguns92 procurem asseverar isso. Com efeito, patente do que foi dito que essncia aquilo que significado pela definio da coisa: ora, a definio das substncias naturais no contm unicamente a forma, mas contm tambm a matria, com efeito, de outro modo, as definies naturais e as matemticas no difeririam. Tambm no pode ser dito que a matria seria posta na definio da substncia natural tal como um acrscimo para a essncia dela, ou como um ente fora da essncia dela, visto que este o modo das definies prprio para os acidentes, que no tm uma essncia perfeita donde ser preciso que {os acidentes} recebam em sua definio o sujeito que est fora do gnero deles. Portanto, patente que a essncia compreende tanto a matria como a forma.

    90 O ente dito a respeito das substncias quando se diz Scrates ente; a respeito dos acidentes, quando se diz branco ente. (N. do T.). 91 de acordo com a determinao: secundum quid, ou seja, de acordo com aquilo pelo que algo qualquer tem o ser algo determinado . (N. do T.). 92 Cf. TOMS DE AQUINO, Super Metaph. VII 9: V-se essa opinio em Averris e em alguns de seus seguidores. Com efeito, Averris diz em Metaph. VII comm. 21: A quididade do homem ... a forma do homem, e no o homem que unido a partir de matria e forma (fol. 81 ra 31-33).

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    Non autem potest dici quod essentia significet relationem, quae est inter materiam et formam vel aliquid superadditum ipsis, quia hoc de necessitate esset accidens et extraneum a re nec per eam res cognosceretur, quae omnia essentiae conveniunt. Per formam enim, quae est actus materiae, materia efficitur ens actu et hoc aliquid. Unde illud quod superadvenit non dat esse actu simpliciter materiae, sed esse actu tale, sicut etiam accidentia faciunt, ut albedo facit actu album. Unde et quando talis forma acquiritur, non dicitur generari simpliciter, sed secundum quid. Relinquitur ergo quod nomen essentiae in substantiis compositis significat id quod ex materia et forma compositum est. Et huic consonat verbum Boethii in commento praedicamentorum, ubi dicit quod usia significat compositum. Usia enim apud Graecos idem est quod essentia apud nos, ut ipsemet dicit in libro de duabus naturis. Avicenna etiam dicit quod quiditas substantiarum compositarum est ipsa compositio formae et materiae. Commentator etiam dicit super VII metaphysicae: natura quam habent species in rebus generabilibus est aliquod medium, id est compositum ex materia et forma. Huic etiam ratio concordat, quia esse substantiae compositae non est tantum formae nec tantum materiae, sed ipsius compositi. Essentia autem est secundum quam res esse dicitur. Unde oportet quod essentia, qua res denominatur ens, non tantum sit forma neque tantum materia, sed utrumque, quamvis huiusmodi esse suo modo sola forma sit causa. Sic enim in aliis videmus, quae ex pluribus principiis constituuntur, quod res non denominatur ex altero illorum principiorum tantum, sed ab eo, quod utrumque complectitur, ut patet in saporibus, quia ex actione calidi digerentis humidum causatur dulcedo, et quamvis hoc modo calor sit causa dulcedinis, non tamen denominatur corpus dulce a calore, sed a sapore qui calidum et humidum complectitur.

    Ora, no pode ser dito que a essncia signifique a relao que h entre a matria e a forma ou algo acre