sobre inventários e outros instrumentos de salvaguarda2007_antonioarantes

SOBRE INVENTRIOS E OUTROS INSTRUM ENTOS DE SALVAGUARDA DO PATRIMNIO CULTURAL INTANGVEL: ENSAIO DE ANTROPOLOGIA PBLICA1

ANTONIO A. ARANTES2 Departamento de Antropologia

Universidade Estadual de CampinasTributo memria de Roberto Cardoso de Oliveira

1. IntroduoInventrios so procedimentos bastante utilizados e teis em

polticas voltadas preservao do patrimnio tangvel e intangvel.Sem o conhecimento sistemtico e comparativo das realidades que constituem o alvo dessas aes, torna-se impossvel estabelecer metas, prioridades, procedimentos e realizar o monitoramento crtico das consequncias das aes de salvaguarda. No entanto, embora sejam prticas correntes em vrias reas do conhecimento e de atuao profissional, especialmente entre arquitetos e folcloristas, eles provocam polmica entre antroplogos, especialmente quando se tra ta de inv en tariar perfo rm ances, canes, narra tivas ou conhecimentos tradicionais.

Instrumentos de pesquisa e ao elaborados para uso de agentes de polticas pblicas e de atores sociais que no possuem n ecessa riam en te fo rm ao em an tro p o lo g ia p recisam ser su fic ien tem en te claros e p recisos, m as no sim plistas ou simplificadores das realidades a serem registradas. Alm disso, esses procedimentos de investigao devem ser suficientemente sensveis e maleveis para que possam ser aplicados a uma populao que , social e culturalmente, heterognea ao extremo como a do Brasil

Anurio Antropolgico/2007-2008, 2009: 173-222

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(problema inescapvel quando se trata de criar as ferramentas de uma poltica de mbito nacional). Por outro lado, mtodos etnogrficos, por sua vez, envolvem operaes intelectuais complexas que so informadas por teorias e procedimentos que suscitam, eles prprios, opinies divergentes entre especialistas. Assim, o assunto deste ensaio to polmico quanto estrategicamente relevante para a elaborao de polticas pblicas e implementao de aes de salvaguarda do patrimnio cultural; mas sua importncia prtica, a meu ver, justifica aceitar o desafio que lhe inerente.

Assim, abordo a controversa questo da m etodologia de inventrios do patrim nio cultural imaterial e alguns de seus desdobramentos prticos. A reflexo tem como ponto de partida a Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Intangvel, aprovada pela Conferncia Geral da UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura, em 17 de outubro de 2003 (a partir de agora, chamada de Conveno de 2003)3 e o Decreto 3551, de 4 de agosto de 2000, que institui o registro do patrimnio cultural brasileiro e cria o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial (de ora em diante referido como Decreto 3551).

D iscu to tam bm aspectos conceituais de diversas aes desenvolvidas no Brasil e em o u tro s pases com vistas implementao de aes de salvaguarda. Por se tratar de uma prtica recen te , a in da em co n stru o , a experin c ia acum ulada internacionalmente torna-se muito relevante para estas reflexes. Ressalvados alguns pases pioneiros (como o Japo e o Brasil, entre outros) as medidas que vm sendo implementadas derivam em grande medida de perspectivas, se no compartilhadas, construdas com base em debates e trocas em fruns internacionais. E verdade que m etodologias e estratgias de ao variam em razo de discordncias ou preferncias tericas dos especialistas, assim como de acordo com as caractersticas dos contextos singulares em que

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so implementadas e, sobretudo, segundo as prioridades polticas a que devero responder em cada pas, regio ou localidade. Essa variao um aspecto importante desta realidade porque uma poltica s sustentvel e, portanto, efetiva quando ocorre mediao adequada entre os parmetros estabelecidos por consensos ou convenes internacionais e as condies, demandas e possibilidades existentes nos contextos nacionais e, sobretudo, locais onde o patrimnio realmente se nutre ou se extingue. Mesmo assim, em reunies nacionais e internacionais de especialistas e agentes pblicos de preservao, algumas questes tericas, tcnicas e ticas revelam- se recorrentes. Essas so as questes que balizam o presente ensaio.O desejo contribuir para a construo de parmetros que permitam identificar os desafios que se colocam salvaguarda do patrimnio cultural intangvel e avaliar suas consequncias do ponto de vista dos modos de vida por ela afetados.

A base concreta deste estudo provm de minha experincia na construo da metodologia para o Inventrio Nacional de Referncias Culturais, adotada pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional em 2000, e no projeto-piloto desenvolvido no sul da Bahia.4 Esta experincia foi enriquecida no perodo em que atuei junto aos tcnicos do IPHAN na implantao do Departamento do Patrimnio Imaterial e como presidente daquela instituio (2004-2006), em discusses esclarecedoras de que tenho tido a oportunidade de participar com colegas de profisso em reunies tcnicas no Brasil e no exterior, e em oficinas para a realizao de inventrios que ministrei em algumas cidades brasileiras, em Madagascar e em Moambique.2. Perspectivas abertas pela Conveno de 2003

A Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial pe em marcha uma compreenso terica sofisticada do patrimnio cultural e de seu significado, tanto para o presente quanto para o

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futuro. Um bom exemplo disto a definio de salvaguarda como garantia da viabilidade de prticas vivas e passveis de mudanas s quais grupos humanos especficos atribuem valor patrimonial, noo que se ope quela usualmente adotada no mbito da preservao de bens culturais. Mais do que lidar com colees de objetos e lembranas congeladas no tempo, importa aqui considerar os processos sociais a eles associados, bem como as condies de sua produo.

A perspectiva assumida pelas consideraes preliminares do documento que a salvaguarda do patrimnio imaterial responde a um desejo universal e [...] a uma preocupao comum a todos os povos, funcionando como uma mola propulsora da diversidade cultural e "um fator capaz de aproximar os seres humanos, garantindo intercmbio e entendimento entre eles. Estes pontos de vista se coadunam com a ideia de que o patrimnio concerne a todos e a cada um de ns e que, portanto, salvaguard-lo - assim como a diversidade cultural e a criatividade - uma misso para a qual a com unidade internacional e os governos nacionais deveriam contribuir de maneira cooperativa, ultrapassando interesses locais e constrangimentos imediatos.

A Conveno de 2003 atribui papeis especficos para os Estados- membros enquanto agentes do processo de salvaguarda em nvel nacional e internacional. Eles tm a prerrogativa de tomar parte nos rgos gestores dessa poltica, notadamente a Assembleia Geral e o Comit Intergovernamental.5 Nos termos do seu Artigo 13, o pas que ratifica o acordo torna-se tambm responsvel por salvaguardar, desenvolver e promover o patrimnio cultural intangvel presente em seu prprio territ rio. Como pr-condio, o Artigo 11 estabelece que cada Estado-membro ir identificar e definir os vrios elementos de patrim nio cultural imaterial presentes em seu territrio. J o Artigo 12 refora especificamente a responsabilidade de assegurar a identificao de tais elementos por meio de inventrios

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regularmente atualizados. O Artigo 15, por sua vez, incentiva que se busque a mais ampla participao possvel das comunidades, grupos e, quando apropriado, dos indivduos, que criam, mantm ou transmitem esse patrimnio. Adicionalmente, espera-se que os pases-membros proponham a incluso de itens culturais existentes em seus territrios na Lista Representativa do Patrimnio Cultural Intangvel da Humanidade e que requeiram a adoo de medidas especficas para os que necessitam de salvaguarda urgente.6

As instituies nacionais de preservao enfrentam grandes desafios na implementao de tais princpios, entre eles o fato de que nem todas as prticas reconhecidas como patrimnio pelas com unidades locais ou nacionais encaixam -se nos padres estipulados pela Conveno e pelas recomendaes e declaraes nela incorporadas.7 Da perspectiva da Declarao Universal dos Direitos Humanos - que talvez o ponto de referncia moral mais im portante da Conveno de 2003 - pode se questionar, por exemplo, se a prtica da circunciso feminina, praticada e altamente valorizada em muitas sociedades como smbolo de identidade tnica, deveria ser reconhecida internacionalmente e proclamada como um item do patrimnio cultural intangvel.

Um outro tipo de desafio est relacionado ao que eu chamaria de poltica de representao e tomada de decises, que efetivamente impulsiona os programas de salvaguarda e as rotinas criadas pela Conveno. Uma vez que nem todos os grupos sociais conseguem o mesmo acesso s entidades governamentais de seus pases, alguns acabam sendo mal representados - ou sequer chegam a s-lo - pela burocracia estatal nos corpos diretores da Conveno. Alm disso, como permitir que comunidades desterritorializadas, imigrantes ou na dispora, vivendo como minorias nos pases em que se encontram, tambm possam se beneficiar desse instrumento legal e se fazerem representar no mosaico do patrimnio? Como fazer com que, no Comit Intergovernamental, as decises sejam efetivamente pautadas

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pelo desejo universal e [...] a preocupao com um com a diversidade cultural, em detrimento dos interesses e das motivaes particularistas das comunidades nacionais e de seus representantes?

Isto leva a questionar a representatividade dos elementos includos nas listas de salvaguarda em pelo menos dois sentidos: do que seriam eles representantes? e que contribuio se espera que ofeream ao patrimnio comum da humanidade?8 O dilema da representatividade revela uma tenso inerente ao campo do patrimnio como um todo: de um lado, os valores atribudos localmente a determinada prtica cultural - de acordo com o que ela significa para seus guardies e praticantes; de outro, os valores reconhecidos na arena da preservao.

A complexidade da questo torna-se patente quando se leva em considerao que os contextos locais (incluindo-se os estratos socioculturais hegemnicos e minoritrios) no so, de forma alguma, homogneos e, consequentemente, um item cultural pode assumir - mesmo localmente - diversos significados. Prticas associadas a cultos de ancestrais, por exemplo, so louvadas por certos grupos tnicos por constiturem aspectos essenciais de seu sistema ritual, repositrios de conhecimentos e fundamentos da viso de mundo que d sentido a suas vidas. Podem ser, portanto, consideradas por seus praticantes como contribuies ao patrimnio comum da humanidade. No entanto, do ponto de vista das elites crists hegemnicas em certos pases, as mesmas prticas podem ser vistas como manifestaes de ignorncia, atraso ou mesmo perigo quando, por implicarem contato com sangue, tornam-se associadas disseminao da AIDS, devendo por isso ser extintas. H muitos exemplos dessa natureza e todos eles sugerem, como j argumentei em outro trabalho,9 que a produo do patrimnio - que por si mesmo um artefato cultural - na esfera pblica global depende da mediao de interesses e vises de mundo conflitantes.

Este um problem a incontornvel a ser enfrentado pelos inventrios. Primeiramente, porque eles constituem, por assim dizer,


o estgio de triagem do processo de salvaguarda, no qual algumas prticas, conhecimentos e formas de expresso sero identificados como possveis alvos e beneficirios de polticas pblicas, enquanto outros no o sero. Em segundo lugar, porque eles norteiam tambm o embasamento da produo do patrimnio em pelo menos dois sentidos: os inventrios inauguram o estabelecimento de relaes especficas e contnuas entre agncias governamentais e com unidades culturais; e eles fornecem as evidncias e os argumentos que legitimam os processos jurdico-administrativos de listagem e classificao de certos itens culturais como pertencentes ao patrimnio.

As presses polticas relacionadas ao reconhecim ento da representatividade dos itens culturais em seus respectivos contextos nacionais, ao acesso desigual aos mecanismos de tomada de deciso, bem como ao desenho e implementao das polticas de salvaguarda so contem pladas pela Conveno de 2003 que enfatiza a participao comunitria. Este aspecto - essencial preservao do patrimnio - estimulado pelo Artigo 15, acima mencionado, e viabilizado por um mecanismo prtico do Artigo 9 que, embora tmido, muito im portante: refiro-me ao credenciam ento de organizaes no-governamentais para atuarem como consultoras junto ao Comit Intergovernamental.3. Inventrios em contexto

Os artefatos e as obras de arte, comumente reunidos sob a chancela da cu ltu ra m ateria l, vm sendo, h m uito tem po, alvo de classificaes, tipologias e taxonomias por parte dos colecionadores. Quando bens de famlia so inventariados e avaliados, por exemplo, para serem transmitidos a herdeiros, essas mesmas categorias costumam ser utilizadas. No mbito da preservao urbana e arquitetnica, os inventrios tambm assumem papel central enquanto ferramentas de identificao de monumentos, edifcios,

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paisagens e stios que meream ser objeto de proteo por se lhes atribuir valor patrimonial. A elaborao de listas de artefatos sem dvida um procedimento bem estabelecido na gesto de museus e de outras instituies dedicadas conservao e promoo de testemunhos e documentos da histria cultural.

Mas o esprito que anima a Conveno de 2003 suscita uma abordagem completamente nova do inventrio, pois ela almeja proteger os processos em que as culturas so produzidas, dentro das formaes sociais s quais pertencem. No apenas os objetos, mas tambm as experincias sociais que os criam e os nutrem ;10 no somente valores patrimoniais atribudos por agncias externas (instituies de preservao, acadmicos ou a burocracia estatal), mas tambm aqueles atribudos pelas culturas locais e perpassados por dinmicas culturais. isto que parece estar em jogo, a partir do momento em que a salvaguarda passa a ser concebida como garantia de viabilidade" de prticas sociais vivas e mutveis. Produtos e processos de produo devem ser considerados em levantamentos culturais e em planos de ao de salvaguarda. Assim sendo, convm tecer algumas consideraes conceituais sobre o patrimnio como parte da dinmica cultural. A esse respeito, proponho seguir sete eixos de reflexo.

1. As culturas no so conjuntos de elementos relativamente independentes, com o parecem sugerir alguns levantam entos realizados para a elaborao de polticas de salvaguarda, ecoando a noo de trao cultural utilizada por difusionistas e evolucionistas nas ltimas dcadas do sculo XIX. Criticando essas perspectivas, Bronislaw Malinowski escreveu, j em 1929, que o pesquisador

evolucionista ou difusionista, levado a considerar cada elemento da cultura como exgeno ao contexto no qual foi encontrado. Pois o evolucionista se interessa por um fato, sobretudo, enquanto sobrevivncia de um estgio passado, enquanto o difusionista toma-o, principalmente,

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como uma importao mecanicamente transportada de outra regio geogrfica. Um o situa no tempo passado, outro, em um lugar distante.Mas ambos removem o fato para longe das condies em que existe agora.12

Como se sabe, o argumento de Malinowski tornou-se amplamente aceito entre os tericos da cultura. Ele implica, no que concerne discusso que nos interessa aqui, que prticas sociais, conhecimentos e formas de expresso - a que se atribua ou no valor patrimonial - so criadas, apropriadas, amalgamadas, desenvolvidas, acalentadas ou esquecidas por povos particulares, em lugares e momentos especficos. Alm disso, ressalta que as prticas culturais e seus produtos pertencem a modos de vida e constituem o presente histrico de seres humanos reais; no so fragmentos de eventos passados, reminiscncias de uma era dourada da histria da cultura. Independentemente de sua origem (ou originalidade), grau de desenvolvimento e sofisticao, eles fornecem o embasamento que d sentido a experincias compartilhadas. O significado de tais prticas e produtos est fundado nos contextos sociais em que eles se form aram e se transform aram , em outras palavras, so indissociveis de inter-relaes sistemticas com outras prticas e instituies locais, e s fazem sentido como parte de uma totalidade.

Estas ideias conduzem a outro ponto essencial para a realizao de inventrios. A identificao de referncias culturais e sua incluso nas listas de patrimnio precisam levar em conta as prticas com as quais elas se interconectam, assim como os recursos (materiais, simblicos e intelectuais) que so necessrios sua produo, reproduo e mudana, em tempos/espaos especficos, convm salientar que as interconexes dos vrios aspectos de uma cultura no resultam em uniformidade nem em homogeneidade.

2. O princpio formulado por Malinowski de que as instituies sociais encontram sua razo de ser nos contextos etnogrficos em


]que ocorrem reforado e aprofundado pela noo de totalidade formulada por Mareei Mauss, o celebrado autor do Ensaio sobre a ddiva. Sua teoria sobre as trocas sociais, publicada no incio dos anos 1920, introduziu a ideia de que os fatos sociais articulam os diversos nveis da experincia humana: os fatos que estudamos so todos, permitam-nos a expresso, fatos sociais totais. [...] Todos esses fenmenos so ao mesmo tempo jurdicos, econmicos, religiosos, e mesmo estticos, morfolgicos etc..13 Do ponto de vista da realizao de inventrios, isto implica que a reconstituio de qualquer fato social deve partir dessa preocupao holstica e, particularmente, considerar sua dimenso psicossocial.

3. Da deriva outra tese, tambm formulada por Mareei Mauss, que foi tem atizada por Claude Lvi-Strauss em sua clssica introduo obra daquele autor, publicada em 1950. Segundo esta concepo, os fatos sociais totais esto enraizados na experincia concreta individual, logo, afetam a subjetividade e o sentimento tanto quanto a histria.

O fato social no chega a ser total pela simples reintegrao dos aspectos descontnuos: familial, tcnico, econmico, jurdico, religioso [...]. E preciso tambm que ele se encarne em uma experincia individual [...] que permita observar o comportamento de seres totais e no divididos em faculdades, [...] em um sistema de interpretao que simultaneamente considere os aspectos fsico, fisiolgico, psquico e sociolgico de todas as condutas. [...] Se nos ativermos a este estudo do concreto que, por isso, completo, deveremos necessariamente perceber que o que verdade no a orao ou o direito, mas o melansio de tal ou qual ilha, Roma, Atenas.'4

4. As realidades sociais no devem ser representadas como instantneos estticos, mas como realidades em movimento, processos que se desenrolam no tempo. Em primeiro lugar, porque

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im plicam durao , continu idade; em segundo lugar, p o rq u e so p ro d u to s do agenciam ento hum ano, estando sujeitas a tran sfo rm aes e sendo indissociveis das condies de sua p roduo sim blica e m ate ria l. D a se co n c lu i que, sendo as c u ltu ra s fen m en o s histricos, as listas produzidas em levantam entos de patrim nio sero necessariam ente datadas e abertas.

5. Inv en t rio s re su lta m inev itavelm ente d a seg m en tao da realidade social em fluxo, o que acarre ta o seu encaixe em sistem as de classificao que so inevitavelm ente perp assad os por vieses cu lturais.15 C om efeito, as sociedades no constroem necessariam ente teorias abstratas a respeito de suas prprias prticas, nem se referem a aspectos da vida social a partir de categorias abstratas com o religio, arte, econom ia, cerim nias pblicas etc. - tal qual o pensam ento ocidental vem fazendo h sculos. Pares de categorias n itidam ente opostas, com o m aterial e im aterial, sagrado e profano, religio e d ivertim ento, poltica e econom ia nem sem pre fazem sen tido do pon to de vista das diversas cosm ologias e vises de m undo. Olabiyi Yi a rgum en tou de m odo eloquente quan to inadequao dessas oposies no que concerne s polticas de patrim nio , a p artir da tica das trad ies de pensam ento africanas.

E preciso se render evidncia de que essas categorias aristotlicas no so universais filosficos e de que elas combinam mal com o postulado de base dos filsofos da tradio africana, para quem tudo est em tudo [...] ou o imaterial est no material [...] [e] os mortos nunca esto realmente m ortos.16

De m odo sim ilar, as habilidades artsticas e o saber-fazer no se encon tram dissociados de perform ances rituais, assim com o as rezas e os encan tam en to s no se separam das atividades nas quais as pessoas se engajam cotid ianam ente. Enfim, nem todos os povos reificam os p ro d u to s de suas prticas com o bens pertencen tes a


proprietrios individuais, como objetos confeccionados para a fruio esttica ou para se obterem vantagens em transaes comerciais.

6. As culturas se recriam e se transformam historicam ente e os modos pelos quais as instituies, os valores e as atitudes se perpetuam ao longo do tempo no so simples mecanismos de tra n sm iss o de in fo rm ao de um a g erao a o u tra . O conhecimento, as formas de expresso, as crenas e o sentido de pertencim ento so alguns dos ingredientes enraizados na prtica social; eles so aquilo que confere e s tru tu ra social sua configurao singular.

Assim, a transm isso de tecnologias, linguagens, cdigos e informaes um meio particular atravs do qual um grupo social reproduz e, ao mesmo tempo, modifica sua estrutura e organizao. O pressuposto de que cabe aos especialistas e aos intrpretes locais transmitirem a todos e a cada um dos indivduos das novas geraes seu saber e suas tcnicas no de forma alguma um consenso universal. Existem, no raro, regras preferenciais e interdies que ordenam socialm ente o aparentem ente simples processo de transmisso de informaes, e integram-no s complexas, codificadas e ritualizadas prticas de iniciao e de sucesso.

7. O patrimnio, tangvel ou intangvel, uma construo cultural produzida por negociaes entre agentes sociais locais e instituies de preservao. As prticas e as instituies culturais patrimonializadas nem sempre so vistas como patrimnio em seu contexto de origem, e somente adquirem esta condio a pleno direito graas ao reconhecimento por parte de agncias institucionais especficas (nacionais ou multilaterais). Assim, a listagem de itens culturais depende do que eu chamaria, em uma abordagem dialgica, de processos de traduo cultural de mo dupla, envolvendo tanto os valores atribudos por guardies, praticantes e membros das comunidades culturais, quanto os implementados por observadores

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e analistas culturais, com vistas construo de taxonomias e definio de prioridades para a formulao de polticas pblicas.

De acordo com a abordagem holstica, sistmica e processual que subjaz ao presente ensaio, crucial que tais levantamentos explicitem os vnculos prticos e simblicos existentes entre o patrimnio e as condies socioambientais e territoriais, bem como seu enraizamento sociopsicolgico, ou seja, suas implicaes para a auto-estima, a identidade pessoal e a identificao social de grupos e indivduos.Por esta razo, os inventrios precisam levar em conta no apenas o que indicado por parmetros legais e administrativos, mas tambm o que empiricamente constatado pela pesquisa de campo.

A perspectiva adotada pela Conveno de 2003 consistente com a apresentada neste ensaio. Em seu Artigo 2, pargrafos 1 e 2, ela define como objeto de salvaguarda

as prticas, representaes, expresses, conhecim entos e tcnicas - junto com os instrum entos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes so associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivduos reconhecem como parte in tegrante de seu patrim nio cultural.

Em relao aos domnios da produo cultural, o documento enumera os seguintes, sem inteno de exaustividade: a) tradies e expresses orais, incluindo o idioma como veculo do patrimnio cultural imaterial; b) expresses artsticas; c) prticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e prticas relacionados natureza e ao universo; e) tcnicas artesanais tradicionais .

Fica claro que tais definies adotam a mais ampla concepo possvel da matria, j que incluem no somente uma vasta gama de prticas, como tambm os artefatos (materiais) e os recursos socioambientais a elas associados.

Conforme o esprito da Conveno de 2003, os inventrios devem identificar e documentar os itens culturais reconhecidos por grupos


sociais especficos com o seu patrim n io, e pelas institu ies de preservao, com o passveis de salvaguarda ou proteo, nos term os da legislao ex isten te .17 Desse m odo, a im plem entao de inventrios requer ferram entas e procedim entos que ofeream respostas a d e q u a d a s ta n to s d em an d as su b jacen tes s c o n cep es que fundam entam esse regim e ju rd ico-adm inistrativo , q uan to experincia h istrica acum ulada, s dem andas atuais, s restries e s possibilidades prprias aos contextos locais e nacionais em que os planos de ao de salvaguarda sero desenvolvidos.18

Aquele docum en to tam bm sugere que os inventrios devam ser razoavelm ente densos em term os de detalhes h ist ricos e e tn o grficos, alm de m ultivocais, pois so instrum entos de im portncia estratg ica em pelo m enos dois planos de m ediao: 1. em relao a d iferenas sociais e a desigualdades existentes no p lano local, e 2. em face dos desvos polticos ex isten tes en tre as esferas local, nacional e in ternacional. A consequncia p r tica e reflexiva destas m ediaes - se elas forem efetivas - que o inventrio tende a se to rn a r pa rte da realidade inventariada, com o um novo nvel de in terpre tao e de p rtica cultural que vem se som ar quilo com o que o e tngrafo e o agente local j lidam , ou seja, a realidade da vida local.

Para a tingirem seus propsitos, os inventrios p recisam adotar um a abordagem , que eu qualificaria de contextuai, em pelo m enos dois sentidos. Prim eiro, tendo em vista que os elem entos cu ltu ra is no so destacveis da vida social e da h istria das com unidades q ue os en g e n d ra ra m , os inventrios devem a r tic u la r os vrios fenm enos escolhidos para identificao s diversas esferas relevantes de in terao social e aos gneros culturais p raticados localm ente pelas com un idades cu ltu ra is co nsid erad as .19 S egundo, em um sen tido socio lg ico e h ist rico m ais am plo, p reciso que eles a tendam s vicissitudes e s dem andas culturais e polticas existentes localm ente.

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Estas questes indicam que no se devem considerar os problem as m etodolgicos apenas em term os tericos. E claro que problem as de teoria social e de epistem ologia precisam ser equacionados nos term os dos respectivos cam pos de conhecim ento; m as questes de poltica de rep resen tao e de tom ada de d ec iso devem ser en fren tadas politicam ente em arenas concretas. Este ser o p rin c ipal desafio elaborao de inventrios que alm ejem fornecer base segura construo de planos de ao de salvaguarda que sejam realistas e socialm ente sustentveis.

4. O papel das comunidades culturaisU m a vez estejam em jogo na salvaguarda do patrim nio , com o j

se m encionou, a alim entao de prticas sociais correntes e a garantia da p lena capacidade de os agentes as atualizarem de acordo com suas necessidades e m otivaes cam biantes, e considerando que um de seus principais desafios no congelar essas criaes poticas e in telectuais que so expresses de engenho e arte da hum anidade, to rn a-se necessrio enfatizar o papel de com unidades, g rupos e indivduos na construo do patrim nio im aterial.

A im portncia do reconhecim ento por parte de um grupo social de que d eterm inada prtica, conhecim ento ou form a de expresso pertence a seu patrim nio um tem a diretam ente relacionado a dois aspectos da conveno de 2003. Um deles a definio do p a tr im n io c u ltu ra l im ateria l com o algo cap az d e g e ra r um sentim ento de identidade e continu idade . O u tro a transm isso de gerao a gerao , o que to rna possvel a persistncia, ou seja, o seu e n ra iza m e n to nas p r ticas sociais c o rren te s de g ru p o s sociais especficos.

Estas perspectivas im plicam que a salvaguarda do patrim nio - enquanto poltica pblica - in terfere em processos sociais que 1. tm lugar no p resen te, no no passado; 2. so desenvolvidos por coletividades reais e particulares, no por entidades sociais ou naes


abstratas; e que, 3. diversamente dos monumentos feitos de tijolo, pedra e cal, o patrimnio imaterial patrimnio vivo. Em termos mais amplos, ela se refere questo da permanncia e da mudana das prticas sociais, ou seja, construo do que no campo da preservao se designa como continuidade histrica das prticas patrimoniais. A complexidade do assunto interpretada de forma convincente por Marshall Sahlins, segundo o qual

a histria ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significao das coisas. O contrrio tambm verdadeiro: esquemas culturais so ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados so reavaliados quando realizados na prtica.20

Os resultados das aes de salvaguarda apresentam, por esta razo, sempre um alto grau de imprevisibilidade.

Um ponto a ser considerado aqui que memria social21 e patrimnio preservado no so sinnimos. Ambos concernem reproduo da vida social por meio da criao de marcos afetivos e cognitivos que fornecem referncias com partilhadas para a continuidade e a mudana histricas. Mas a principal diferena entre eles reside no fato de que, enquanto a memria social se refere normalmente a agncias, atores ou redes sociais localizados e relativamente de pequena escala, o patrimnio cultural, no sentido estrito do termo, resulta de complexas - e em geral tensas - negociaes envolvendo mediadores culturais oriundos de diferentes meios sociais e culturais. So exemplos de tais intermedirios os representantes e guardies das comunidades culturais; o pessoal tcnico-adm inistrativo que trabalha junto s instituies de preservao; consultores independentes, especialistas e ativistas polticos; empresrios e profissionais de marketing interessados em desenvolver oportunidades de negcios baseadas no patrimnio


enquanto recurso econmico. O que quer que seja classificado e protegido como patrimnio por uma instituio governamental ser permeado, de um modo ou de outro, por essas negociaes.

Por este ngulo, os inventrios delineiam as fronteiras do universo a partir do qual alguns itens culturais sero selecionados para proteo oficial; eles constroem o pano de fundo sobre o qual se decide que manifestaes devem ser indicadas como candidatas proteo institucional, quais no devem, e por qu. Mas inventrios cu ltu ra is re su ltam ra ram en te de in icia tivas das p r p ria s comunidades culturais. As prticas, o conhecimento e as formas de expresso classificados pelas agncias de preservao como patrimnio cultural imaterial esto normalmente difusos na vida cotidiana e em atividades cerimoniais. No so necessariamente sistematizados e sua transmisso, assim como suas constantes mudanas e adaptaes s circunstncias histricas, so reguladas pela prtica e pelo direito costumeiro, segundo as lgicas prprias organizao social dessas comunidades.

Isto no significa, contudo, que no sejam possveis dilogos e n eg o ciaes en tre agen tes locais e ex te rn os acerca de inventrios. Celebraes coletivas, perform ances culturais e atividades especializadas podem ser - e muitas vezes so - reconhecidas localmente como atividades que tm um comeo, um desenvolvimento previsvel e um fim, sendo iluminadas por narrativas que lhes conferem significado e razo de ser especfica, constituem assuntos de conversa e mesmo de disputas. Alm disso, h um nmero crescente de intelectuais entre as populaes indgenas de todos os continentes que maneja bastante bem os vrios cd igos in te lec tu a is e p o lticos p re sen te s em tais negociaes. Diferenas culturais parte, os dilogos e as disputas no campo dos direitos culturais esto crescendo e se tornando cada vez m ais p ro fu n d o s, so fisticados e estra teg icam en te bem articulados.


Embora o dilogo intercultural sobre questes de patrimnio seja vivel em termos culturais, intelectuais e jurdicos - em vista dos dispositivos vigentes - a natureza da arena onde essas negociaes acontecem e as relaes de poder envolvidas restringem muitas vezes a implementao efetiva das disposies da Conveno sobre a partic ipao de com unidades, grupos e o rganizaes no- governamentais na salvaguarda de seu patrimnio.

E desejvel que o processo de tomada de deciso nessas situaes traduza o reconhecimento convergente: 1. dos valores atribudos a determinados itens culturais; 2. dos direitos das comunidades de terem seu patrimnio protegido; e 3. do comprometimento das instituies de preservao em prover os meios materiais, legais e administrativos necessrios para que essa proteo se torne efetiva. Mas isto nem sempre ocorre.

A preservao cultural, assim como qualquer outra prtica social, tem sua prpria histria. No Brasil, por exemplo, fato que as discusses sobre patrimnio ficaram mais intensas e apaixonadas medida que os itens cuja preservao era proposta se tornaram menos ortodoxos, passando a incluir, alm de artefatos de valor histrico e artstico, elementos culturais intangveis - e no apenas os relacionados cultura erudita, mas tambm, em nmero cada vez maior, os que dizem respeito a culturas indgenas e populares. Ainda assim, a elaborao de polticas pblicas nesse setor tende a ser perpassada por valores e concepes elitistas sobre as culturas nacionais e, como a experincia mostra, este vis tem favorecido perspectivas ideolgicas que priorizam referncias culturais brancas, catlicas e coloniais.22

A meu ver, nossa responsabilidade - enquanto profissionais crticos e especialistas dedicados s questes do patrimnio - ajudar a refinar e a regular o equilbrio poltico nessas negociaes. A Conveno de 2003 pode produzir, por inmeras razes, consequncias muito positivas sobre o posicionamento estratgico das


comunidades culturais em face da perspectiva elitista subjacente aos critrios comumente adotados pelas instituies de salvaguarda.A Conveno fortalece, em primeiro lugar, a autoridade intelectual das comunidades culturais na interpretao de seus modos de vida, ou seja, legitima o saber local. Em segundo lugar, ela incentiva o papel de protagonistas (ou, ao menos, de participantes ativos) dessas com unidades nos processos de salvaguarda, encorajando sua autodeterminao no que se refere definio de estratgias polticas e de prioridades relativas ao seu prprio desenvolvimento cultural.Os grandes desafios que se apresentam so traduzir tais princpios para os cdigos e as estruturas de poder locais (nacionais) - e vice- versa - e criar maneiras eficientes de implement-los. A incluso de informaes em inventrios oficiais e, mais especificamente, em listas e registros de patrimnio implica a assuno, pelas autoridades pblicas, de que uma parte reclama seus direitos e que estes lhe so devidos; pressupe tambm dar publicidade a esses direitos. Assim, ao realizarem inventrios, os agentes envolvidos se deparam com a necessidade incontornvel de negociar objetivos e parmetros ou, em outras palavras, de identificar os grupos sociais relevantes, estabelecendo com eles dilogo e colaborao.

As dificuldades e as negociaes relativas inscrio de stios associados a grupos afro-brasileiros e a povos indgenas (sejam eles territrios fsicos, sejam eles lugares sagrados ou ambos) so exemplos de disputas em torno da afirmao de direitos garantidos pela Constituio brasileira. Passo a elas, a seguir, no intuito de tornar mais claro o meu argumento.5. Referncias no-hegemnicas enquanto patrimnio nacional

Criado em 1937, nas fissuras do regime populista e nacionalista do Perodo Vargas,23 o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN) vinha privilegiando em suas aes, at muito recentemente, obras de arte anteriores s primeiras dcadas do sculo

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XX, assim como artefatos, bens naturais e edificaes de valor histrico, esttico ou paisagstico excepcional.24 Apesar disto, culturas no-hegemnicas tambm foram includas em seu campo de interesse, particularmente por seu valor etnogrfico. O exemplo clssico o do tombamento de um conjunto de objetos religiosos afro-brasileiros, apreendidos pela Polcia Federal, no Rio de Janeiro, quando o candombl era uma prtica religiosa clandestina. Este foi o prim eiro item inscrito no Livro do Tombo A rqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico, em 1938.25

No entanto, a ampliao da base social das referncias culturais nas listas do patrimnio nacional no foi uma questo seriamente debatida at a dcada de 1980, quando um conceito mais abrangente, o de patrimnio cultural, passou a prevalecer nesse campo. Nesse perodo houve um crescimento significativo dos movimentos sociais que reivindicavam direitos civis e culturais. As agncias brasileiras de preservao (nos planos federal, estadual e municipal) comearam a enfrentar paulatina e progressivamente demandas com vistas proteo e valorizao das artes e dos ofcios cultivados pelas classes populares, em particular de populaes afro-brasileiras e naes indgenas. O que tem claramente estado em jogo a plena incluso dessas camadas da sociedade no processo poltico formal e o gozo de seus direitos de cidadania. Tais demandas estimularam uma reviso crtica dos valores que ao mesmo tempo fundamentavam e eram promovidos pelas polticas pblicas de patrimnio.

Em 1984 e 1986, respectivamente, a casa de culto de candombl denominada Terreiro da Casa Branca e as trincheiras remanescentes do quilombo de Palmares foram inscritos, em meio a muita polmica, nos Livros de Registro do Patrimnio Nacional.26 Alm da dificuldade de questionar as ideologias conservadoras enraizadas na instituio nacional de preservao, o tombamento de terreiros de candombl suscitou duas outras questes polticas, ento apresentadas em roupagens tcnicas.


Uma delas refere-se ao tema da excepcionalidade esttica. Uma vez que essas edificaes no se enquadravam nos parmetros estabelecidos pela histria da arte e da arquitetura, que critrios poderiam justificar a escolha do que preservar? A outra dizia respeito dinmica cultural. Aps serem tombadas como monumentos nacionais, essas edificaes no poderiam ser modificadas, exceto para trabalhos de conservao e restauro, conduzidos segundo parmetros estabelecidos internacionalmente. No entanto, os stios de candombl so espaos cheios de vida e, diferentemente de outros espaos religiosos, sua configurao muda continuamente, de acordo com as prticas desenvolvidas e as demandas de seus praticantes.Aos olhos do poder pblico, o registro dessas estruturas, plenas de dinamismo, poria em xeque vises mais conservadoras e bem estabelecidas acerca da preservao de monumentos e stios. No tocante a quilombos, os objetos eleitos pela instituio de preservao, at aquele momento, eram runas arqueolgicas vazias.Por isso, nenhuma controvrsia adicional foi suscitada quando de sua classificao como monumento.

A C onstitu io brasileira de 1988 consolidou de m aneira significativa uma abordagem democrtica de questes relacionadas aos direitos culturais, conservao do meio ambiente e proteo da sociobiodiversidade. Da perspectiva do patrimnio cultural, ela foi inovadora em diversos sentidos.27 Primeiro, consagrou a ideia de que a nao uma realidade plural, internamente diversificada e socialmente heterognea. Segundo, incluiu no domnio do patrimnio tanto bens culturais materiais como imateriais. Terceiro, destacou no apenas a qualidade excepcional, histrica, esttica e etnogrfica do patrimnio, mas tambm os significados a ele atribudos pelos diversos grupos que constituem a comunidade nacional, reconhecendo a relao desse campo com questes efetivamente candentes, como a construo da identidade, da ao e da memria desses grupos.


Levar em conta referncias culturais significou reconhecer a existncia de sujeitos para os quais tais referncias fizessem sentido, dessa forma, os beneficirios legtimos dos direitos previstos pelo novo cdigo jurdico deixaram de ser somente as elites, com suas obras de arte notveis, e passaram a incluir uma entidade social politicamente bem-vinda, mas difcil de ser interpretada em termos prticos pelos que implementam as polticas pblicas: os diversos grupos que formam a sociedade brasileira. Dentre eles, a lei menciona especificamente as populaes indgenas e os brasileiros afro-descendentes. Consolida-se assim o caminho para reivindicaes culturais baseadas na percepo e na afirmao da diferena social e poltica, e nos direitos culturais a ela associados.

Segundo a lei, so declarados como patrimnio nacional todos os documentos e stios relacionados aos territrios de quilombos, e reconhece-se o direito de posse da terra s comunidades que historicamente construram vnculos culturais com esses stios. A concepo institucional de quilombo, predominante antes da reforma constitucional de 1988, era a de stio arqueolgico, e isto justificou em 1986 o j mencionado tombamento do quilombo de Palmares. A mesma abordagem foi implementada em 2002, ou seja, aps a reforma constitucional e deliberadamente em conformidade com o novo texto jurdico, quando outro quilombo,28 juntamente com os registros documentais sobre ele disponveis, foi inscrito como patrimnio nacional. Novamente se tratava de runas vazias e documentos de arquivo, artefatos que no ameaavam os cnones estabelecidos da preservao.

Duas dcadas se passaram desde que essas mudanas ocorreram e alguns passos relativos preservao de terreiros foram dados. Um inventrio antropolgico de monumentos e stios da populao afro-descendente foi realizado em Salvador,29 entre 1982 e 1987, com o intuito de indicar dentre os mais de 2.000 stios identificados os que seriam passveis de proteo em vista de sua singularidade


histrica e cultural (e no em virtude de sua excepcionalidade esttica). Alm disso, formularam-se normas mais flexveis de conservao que pudessem contemplar a dinmica prpria da realidade viva dos terreiros de candombl. Em decorrncia dessas mudanas, seis outros bens30 foram tombados de 1984 a 2005 - tanto por seu valor etnogrfico quanto histrico - e outros mais esto em vias de integrar o patrimnio nacional. Um decreto federal de 200331 instituiu em seu Artigo 2 uma definio mais complexa de quilombo, a saber:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste decreto, os grupos tnico-raciais, segundo critrios de auto- atribuio, com trajetria histrica prpria, dotados de relaes territo riais especficas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida.

Com base nessa definio, a Fundao Palmares reconheceu oficialmente, at a presente data, mais de 1.000 comunidades de quilombo com direito posse da terra. Em 2005, foi criado pelo Iphan e pela Fundao Palmares um Grupo de Trabalho para elaborar procedimentos adequados implementao dos direitos assegurados pela Constituio - tanto os direitos territoriais, quanto os benefcios relativos sua proclamao como patrimnio nacional.

O assunto ainda muito polmico. A interpretao predominantemente aceita na arena da preservao pode ser questionada sob o argumento de que a importncia dos quilombos no se deve tanto - ou no apenas - ao testemunho de eventos histricos passados, mas ao fato de que eles territorializam identidades e abrigam redes sociais reconstrudas na dispora por populaes cuja organizao social foi despedaada pelo domnio colonial. Nesse sentido, quilombos e terreiros so realidades estruturalmente semelhantes. Ambos promovem prticas e experincias sociais, nutrem vnculos com o territrio e do continuidade a histrias locais, em termos de crenas e valores referentes


Me-frica, codificados pelo parentesco ou pela afiliao religiosa ou, s vezes, por uma combinao de ambos. Este , por exemplo, o caso da centenria Irmandade da Boa Morte, cuja liderana constituda por uma rede de venerveis mes-de-santo, figuras-chave de terreiros e quilombos existentes na cidade e regio de Cachoeira, na Bahia. A meu ver, a construo dessas instituies sociais e das prticas que lhes so subjacentes so fatos relevantes da histria cultural e merecem proteo em nome do interesse pblico. Trata-se efetivamente de algo que pertence a um patrimnio imaterial amplamente compartilhado.

A implementao relativamente recente de uma poltica relacionada ao patrimnio cultural imaterial abriu novas perspectivas para a soluo de problemas advindos do confronto entre a Constituio e a ideologia inerente prtica institucional de preservao. Ela tem contribudo para lanar as bases de uma abordagem integrada do espao (territrio) e do lugar (stio apropriado socialmente).32 De fato, o lugar um dos quatro domnios explicitamente cobertos pelo instrumento jurdico adotado no Brasil para a salvaguarda do patrimnio imaterial, e a metodologia de inventrios compreende protocolos especficos para esta categoria de bens, assim como para usos sociais e representaes simblicas associadas a estruturas edificadas. Trata-se de uma estratgia prtica que visa induzir a implementao de uma abordagem integrada do patrimnio.

A afirmao feita por Ya, anteriormente citada, tambm vlida*no caso do Brasil: no novo continente, assim como na Africa, quando

o ponto de vista da comunidade levado em considerao, percebe- se que um fato relevante de cultura que o imaterial esteja no material.6. Salvaguarda de prticas culturais e proteo a direitos intelectuais

As questes discutidas neste ensaio conduzem a um outro ponto da agenda, qual seja, definir quem o detentor dos direitos de

SOBRE INVENTRIOS E OUTROS INSTRUMENTOS DE SALVAGUARDA DO1 9 O PATRIMNIO CULTURAL INTANGVEL: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA PBLICA

propriedade intelectual associada ao patrimnio imaterial. As formulaes ainda provisrias adotadas pela Organizao Mundial da Propriedade Intelectual - OMPI, particularmente no que se refere aos conhecimentos tradicionais, so mais explcitas sobre este tpico do que a Conveno da UNESCO de 2003. Um de seus documentos mais recentes, por exemplo, define como beneficirios da proteo aos direitos de propriedade intelectual:

com unidades (indgenas e tradicionais), assim com o indivduos reconhecidos como integrantes dessas comunidades e populaes que geram , preservam e transm item conhecim ento em um contexto tradicional e intergeracional, que so associados ao mesmo e que se identificam com este, enquanto detentores desse conhecimento, atravs de uma forma de custdia, guarda, posse coletiva ou responsabilidade cultural. Essa relao pode ser expressa, formal ou informalmente, por meio de prticas costumeiras ou tradicionais, protocolos ou leis.33

Pode se argumentar que a ideia de tradio presente nesta definio seja um tanto vaga e discutvel, particularmente no caso de pases de passado colonial e bastante urbanizados, como o Brasil, onde s vezes a transmisso do que ali considerado patrimnio envolve relativamente poucas geraes e faz referncia a diversas fontes tnicas, populares e acadmicas - altamente reflexivas. O mesmo pode ser afirmado sobre originalidade, noo que em m uitos contextos associada tradio, e frequentem ente contradiz os processos culturais fundamentais de fuso, mistura ou m estiagem p r p rio s da d inm ica cu ltu ra l. Is to acon tece especialmente com grupos tnicos que foram privados de suas instituies e prticas sociais em razo da explorao colonial - e, em alguns casos do etnocdio - e que lutam nos dias de hoje para restaurar expresses de sua singularidade cultural. Continuidade histrica a expresso adotada na legislao patrimonial brasileira34


para dar conta da profundidade temporal dos itens identificados como patrimnio nacional; diferentes noes podem ser mais adequadas para outros contextos nacionais.

De qualquer maneira, parece evidente que tanto no esprito das formulaes da UNESCO, quanto no da OMPI as prticas e os critrios estabelecidos pelas com unidades cu ltu rais sejam considerados to vlidos e legtimos quanto os externos (tcnicos, acadmicos), no que diz respeito incluso de itens culturais no processo de salvaguarda, e tambm identificao de seus legtimos detentores, coletivos ou individuais, para efeitos de proteo de direitos de propriedade intelectual. Assim, em termos prticos, o panorama aqui delineado, em consonncia com o que se tornou uma forte tendncia poltica mundial, indica e justifica a necessidade de se obter consentimento informado da comunidade cultural antes de se realizarem inventrios e se dar incio a processos de salvaguarda.

A partir do conhecimento produzido por meio de inventrios, as bases de dados devem armazenar sistematicamente informaes sobre o patrimnio, tornando-as acessveis s agncias responsveis por criarem, implementarem e avaliarem programas de salvaguarda e por garantirem sua proteo jurdica. Essas bases devem tambm ser acessveis ao pblico em geral, assim como s comunidades culturais, retroalimentando o processo de constante inveno e recriao cultural. Contudo, isto pode levar divulgao de informaes culturais que, mesmo no sendo necessariamente sagradas e/ou secretas, tampouco so destinadas a se tornarem pblicas. Portanto, o acesso s bases de dados outro tpico que deve ser regulado em comum acordo.

Em geral, a populao no tem acesso pesquisa realizada em seu territrio e sobre os seus prprios modos de vida. No entanto, a construo da identidade social e os sentimentos de pertencimento Lm se tornado cada vez mais reflexivos.35 Sendo este o caso, a repatriao em lngua local das informaes produzidas por

SOBRE INVENTRIOS E OUTROS INSTRUMENTOS DE SALVAGUARDA DO1 9 8 PATRIMNIO CULTURAL INTANGVEL: ENSAIOS d e ANTROPOLOGIA PBLICA

acadmicos e especialistas, assim como a divulgao de fontes bibliogrficas e de documentao relevante reunida por meio de inventrios, deve ser uma das grandes prioridades dos programas de salvaguarda. Alm da elaborao de inventrios, a produo de etnografias precisa ser estimulada como um modo de aprimorar o conhecimento sobre as realidades abarcadas pelas polticas de salvaguarda e sobre as consequncias dessas mesmas polticas sobre a vida local.

A salvaguarda da cultura imaterial torna-se mais efetiva quando com plem entada por um sistema jurdico internacional justo, desenhado para proteger os direitos de propriedade intelectual associados ao conhecimento e s expresses culturais tradicionais. Entendo por sistema justo aquele que responde s especificidades e s vicissitudes da natureza varivel e sui generis do patrimnio e que respeita crenas, valores, modos de transmisso e de repartio de benefcios praticados por seus criadores e guardies.

Muitos pases esto engajados no desenvolvimento de medidas legais e administrativas para proteger a sociobiodiversidade e o conhecimento tradicional a ela associado. Porm, a proteo dos direitos de propriedade intelectual na rea do patrimnio no um tema que deva ser enfrentado exclusivamente por legislaes nacionais. Existem diversas questes que podem - e de fato devem- ser resolvidas por meio de acordos bilaterais ou multilaterais. Tal o caso, por exemplo, de questes referentes a grupos tnicos e a naes cujos territrios foram divididos por fronteiras internacionais, dos quais existem vrios exemplos em quase todos os continentes.No somente a proteo a prticas e a artefatos, mas tambm - e sobretudo - o amparo aos direitos intelectuais deve constituir uma preocupao de mbito global, j que os pases so inevitavelmente permeados por fluxos transnacionais de pessoas, signos e capital. A salvaguarda do patrimnio e da diversidade cultural tema que tem contribudo de modo eficiente para a consolidao de uma emergente

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esfera pblica cultural global.36 Este fato acarreta novos limites, demandas e parmetros que - com efeitos positivos e negativos - esto se impondo ao poder regulador dos Estados sobre os processos culturais e comerciais dentro de seus territrios. A proteo legal de direitos - intelectuais ou de outra ordem - precisa levar em conta esta constatao fundamental.37

Um sistema legal posto em prtica pela OMPI nesses termos pode, de um lado, fornecer parmetros normativos para a soluo de conflitos no mbito do mercado global de produtos culturais e, de outro, ajudar a construir um arcabouo conceituai e a legitimar precedentes teis para acordos pontuais e de mbito nacional. A retroalimentao entre os nveis global e local inevitvel; portanto, ela deve ser convenientemente m onitorada tanto com vistas preveno e mitigao de efeitos indesejveis, quanto ao aprimoramento dos instrumentos que se criarem.

A rgum entei enfaticam ente nas pginas an te rio res que a valorizao dos contextos locais e das particularidades histricas , sob todos os aspectos, fundamental quando se trata de planejar aes de proteo e salvaguarda do patrimnio cultural. Mas preciso no esquecer que a form ao e a dissem inao das diferenas culturais ocorrem, na atualidade, sobretudo atravs de relaes econmicas globalizadas. Claude Lvi-Strauss afirmou em 1952, em uma publicao da UNESCO,38 que nenhum a cultura est s e que sua principal contribuio para a civilizao depende do nm ero e da natureza das diferenas com que ela participa na elaborao de um a estratgia com um junto s demais. Como se no bastasse isto, tambm a necessidade de regulao das d isputas de m ercado respeitados o d ireito diferena e a tica nas transaes comerciais leva a concluir estas reflexes com um apelo para que se esteja atento ao fato de que um foco hiperlocal em questes de poltica cultural pode conduzir a um abominvel e improdutivo hiperparticularismo.

I SOBRE INVENTRIOS E OUTROS INSTRUMENTOS DE SALVAGUARDA DO2 0 0 1 PATRIMNIO CULTURAL INTANGVEL: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA PBLICA

7. Um lugar para o patrimnio imaterial em nosso futuro comum39Os projetos e os programas premiados em um concurso de melhores

prticas para a revitalizao do patrimnio cultural imaterial organizado pela Asia/Pacific Cultural Center for UNESCO - ACCU40 ilustram diversas questes levantadas neste estudo e tornam explcitas algumas referncias concretas em que apoiei meus argumentos. Por esta razo, concluo este ensaio com as observaes que fiz, na qualidade de re- sourceperson, na sesso de encerramento daquele evento. Alm disso, a referncia direta ao famoso Relatrio de Brundtland, de 1987, no ttulo do documento que preparei naquela ocasio para a ACCU e reproduzo aqui, orienta a reflexo para o futuro e em direo ao problema do manejo sustentvel da diversidade. E com esse esprito que gostaria de encerrar a presente reflexo.

As aes apresentadas no certame trazem tona as imponderveis vicissitudes enfrentadas pelos agentes de atividades de salvaguarda quando as teorias so transformadas em prticas efetivas; testemunham tambm que as comunidades culturais podem desenvolver formas criativas e eficazes de enfrentamento dessas dificuldades, quando o patrimnio cultivado como prtica cultural cotidiana e, ao mesmo tempo, como um bem a ser transmitido a geraes futuras; e, finalmente, ressaltam os valores positivos atribudos por grupos de jovens, associaes e indivduos a esse legado em constante transformao.

As experincias coletivas desenvolvidas e acumuladas pelos participantes sugerem diversos temas relevantes consolidao de uma agenda prtica para os gestores de polticas pblicas. Descrevo em linhas gerais e comento questes que parecem constituir um fundo comum de preocupaes. Meu desejo contribuir para a crtica, a consolidao e o desenvolvimento dessas estratgias e conquistas, e colaborar para o contnuo aperfeioam ento dos parmetros prticos da aplicao da Conveno de 2003.


SOBRE INVENTRIOS E OUTROS INSTRUMENTOS DE SALVAGUARDA DO 202 PATRIMNIO CULTURAL INTANGVEL: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA PBLICAI

1. DiversidadeA primeira lio ensinada por esses projetos e programas - e pelas

discusses que se seguiram s suas apresentaes nas oficinas - refere-se a diferenas quanto natureza das performances culturais a que se atribui valor patrimonial, e quanto aos significados a elas conferidos por seus praticantes.

1.1 Diversidade quanto natureza das performances culturaisAlguns programas de salvaguarda almejam a transmisso e o

desenvolvimento de linguagens artsticas extremamente codificadas.Este o caso do teatro-dana snscrito Kutiyattam, que se pratica

/em Ammannur Chachuchakyar Samaraka Gurukulam, na ndia; assim como do teatro clssico de sombras Nang Yai, apresentado no templo Wat Kanon, na provncia de Rajburi, na Tailndia; do Kurokawa-no, executado pelas trupes Kami-za e Shimo-za, e tambm pelos paroquianos do santurio shintosta Kasuga, na cidade de Kita- Akita, na provncia de Akita. Outro exemplo o teatro de marionetes Joruri, desenvolvido pela associao de fantoches Awaji em algumas cidades da provncia de Hyogo, no Japo.

Outras iniciativas focalizam rituais ou aspectos de cerimnias praticadas pelas comunidades. E o caso do festival Tanedori, realizado na ilha de Taketomi, na provncia de Okinawa, e dos intrpretes de tambor de Yatai-Bayashi, presena fundamental nos carros dashi, que se exibem no festival da cidade de Chichibu, na provncia de Saitama, no Japo. Um terceiro exemplo o stapdans, msica e dana praticadas pelo povo Nama no Richtersveld, stio do patrimnio mundial localizado na fronteira entre a frica do Sul e a Nambia.

1.2 Diversidade de sentidos atribuda s performances culturais pelos praticantes e suas comunidades

O patrimnio cultural imaterial valorizado de forma consistente nesses projetos e programas como uma referncia importante - se no crucial - para a construo de identidades sociais e individuais, de sentimentos de auto-estima e pertencimento a um determinado contexto social. Ele relevante tambm do ponto de vista da incluso social, especialm ente no que concerne aos mais velhos e s populaes migrantes. Ele sobrevive na contemporaneidade como parte da memria social de diferentes grupos, sendo ao mesmo tempo um bem simblico e econmico ao alcance dos membros da comunidade cultural e um legado para as geraes futuras.

Algumas aes dizem respeito, acima de tudo, ao valor sociolgico do patrimnio, isto , ao fortalecimento dos processos atravs dos quais sentidos de pertencimento e/ou de incluso social so construdos e reforados por essas prticas. Neste caso, um bom exemplo o festival de Tanedori, organizado na ilha de Taketomi. Esta localidade assistiu nas ltimas dcadas a um processo agudo de perda de populao, especialmente de homens jovens adultos, que deixaram sua terra natal para trabalhar e viver em outros lugares. Para os habitantes locais, o festival tornou-se uma oportunidade de reunir antigos vizinhos e parentes, assim como de reforar a socializao de migrantes, iniciando seus cnjuges e filhos na viso de mundo, na lngua e na religio dos taketomi. Significados e valores semelhantes so atribudos execuo do stapdans Nama em Richtersveld e ao desfile dos executantes de tambor na cidade de Chichibu. A participao da comunidade parece ser o objetivo principal dessas apresentaes, sem se negligenciar o alto nvel tcnico e expressivo das interpretaes.

Em outros casos, como em execues estritamente associadas aos rituais shintostas, das quais um exemplo im portante o Kurokawa-No, ou cosmologia e s artes cnicas, como acontece no teatro-dana snscrito Kutiyattam, a preocupao primordial dos praticantes parece residir nos valores estticos e espirituais que se manifestam em determinado gnero e so reforados por sua prtica.


2. Significados e prioridadesComo consequncia da lio anterior, no seria realista nem

produtivo pensar em desenvolver um conjunto homogneo de parmetros para a elaborao de polticas pblicas. A diversidade de estratgias e estilos ficou patente, sobretudo nas discusses que ocorreram aps a apresentao de cada projeto ou programa nas oficinas. Portanto, quaisquer que sejam os parmetros, eles devem ser flexveis, a fim de se adequarem tanto s caractersticas especficas das prticas culturais designadas como patrimnio cultural imaterial, quanto s singularidades dos contextos em que so transmitidas, executadas e salvaguardadas.

2.1 D iversidade de prioridades e estratgias eleitas pelas com unidades, de acordo com sua viso sobre a natureza e o significado de patrimnio e com sua percepo das dificuldades enfrentadas por essas prticas

Em relao produo e transmisso do patrimnio cultural imaterial, os seguintes problemas foram mencionados com muita frequncia: 1. insuficincia de recursos financeiros e materiais para a produo e a reproduo das atividades; 2. diminuio do nmero de jovens praticantes e de participantes de todas as faixas etrias envolvidos nas atividades de apoio; 3. declnio do interesse e falta de motivao do pblico devido ao fortalecimento de padres de sociabilidade e estilos de vida estimulados pelos meios de comunicao de massa, pela sociedade de consumo e pelas novas tecnologias de informao.

Alguns dos problemas mais srios que ameaam a recriao contnua dessas prticas parecem ter sua origem em mudanas demogrficas, dentre elas, as principais so: 1. o envelhecimento da populao; 2. os baixos ndices de natalidade; e 3. a migrao de um nmero significativo de jovens adultos, de ambos os sexos, em busca de melhores oportunidades de trabalho.


As experincias descritas e discutidas no seminrio indicam que o fato de a tecnologia da informao, a indstria do entretenimento e os meios de comunicao de massa terem se tornado poderosos produtores culturais tambm contribui para minar o desenvolvimento e a continuidade de tais prticas.

A combinao dessas tendncias pe em risco a organizao das atividades de apoio que viabilizam essas performances, assim como os padres e os valores que constituem o arcabouo sociolgico para a transm isso de conhecimentos e habilidades associados ao patrimnio. A esse respeito, muito significativo que os participantes tenham se referido diversas vezes transmisso como sucesso.

Entretanto, os projetos e os programas de salvaguarda reagem a tais dificuldades com criatividade e de maneiras diversas. No festival Tanedori, por exemplo, vital reunir um nmero cada vez maior de executantes, assim como ampliar o mximo possvel a rede que garante o apoio de bastidores necessrio s apresentaes. Isto implica captao de recursos e muito trabalho na preparao do local, da comida, da divulgao etc.

O projeto Nama, de dana e msica, tem outro foco e outra estratgia: centrado na apresentao, transmisso e promoo de uma linguagem musical hbrida e fragmentada, resultante de dcadas de dominao colonial e do apartheid, ele tem como objetivo resgatar a auto-estima de uma populao que, apesar das mltiplas origens tnicas, partilha um mesmo territrio e vises de futuro. O orgulho da comunidade e a identificao com seu territrio ocupam o centro das preocupaes deste projeto.

As prioridades do Kutiyattam, tal como desenvolvido tradicionalmente pelas famlias de Chukyar e Nambiar, do distrito de Thrissur, em Kerala, na ndia, so ainda de outra ordem. Aqui, os principais desafios so os altos custos da produo de espetculos e ensaios, e a garantia de um local de trabalho adequado para os mestres e os aprendizes. O sucesso crescente da indstria de cinema e


televiso nesse pas representa outro obstculo, na medida em que afeta o interesse e a motivao dos jovens em participar, seja enquanto pblico, seja enquanto futuros praticantes dessa arte.

J o teatro de bonecos Ningyo Joruri, que integra as atividades religiosas do santurio shintosta e por muito tempo foi mantido graas ao trabalho profissional de praticantes congregados em zas, enfrenta um tipo diferente de problema. O fim do sistema de mecenato do Perodo Meji, somado s transformaes sociais e econmicas que ocorreram aps a Segunda Guerra Mundial afetaram seriamente a viabilidade econmica dessa atividade enquanto meio de vida para seus praticantes. Alm disso, as crianas e os adolescentes voltaram-se cada vez mais para as tecnologias de informao, tornando-se gradualmente resistentes a aprender uma forma de expresso to delicada e artesanal. Ademais, o Joruri muito menos conhecido pelo pblico do que outro gnero de fantoches, aparentemente mais divertido, conhecido como Bunra-Ku.

No entanto, atividades desenvolvidas de maneira consistente em escolas, apoiadas por associaes de jovens e por outras organizaes voluntrias, to caractersticas do Japo, provaram ser benficas para o enfrentamento da hegemonia dos meios de comunicao de massa e da tecnologia de informao entre os jovens, e capazes de tornar o Joruri mais conhecido e apreciado por crianas, adolescentes e pelo pblico em geral. Um processo similar ocorreu com o Nekko Bangaku, praticado na provncia de Akita, no Japo: artistas e produtores conseguiram viabilizar meios de financiam ento e transmisso com base em associaes voluntrias.

2.2 Diferenas nas prioridades e nas estratgias adotadas em contextos particulares que podem se converter, a longo prazo, em diferentes estilos de abordagens da salvaguarda

Uma boa maneira de comear a abordar este tpico fazer uma diferenciao esquemtica entre os principais compromissos que os

SOBRE INVENTRIOS E OUTROS INSTRUMENTOS DE SALVAGUARDA DO2 0 b PATRIMNIO CULTURAL INTANGVEL: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA PBLICA

projetos de salvaguarda podem ter como alvo. Neste seminrio foi possvel detectar, de um lado, o compromisso em atingir o maior desenvolvimento tcnico e expressivo possvel dentro de um determ inado gnero de performance cultural. De outro lado, d es taco u -se a p reocupao de responder s necessidades sociopolticas, aos projetos futuros e s intenes das comunidades culturais. Eu me referiria ao primeiro como compromisso esttico e ao segundo, como compromisso social. Evidentemente, os projetos e os programas de salvaguarda no se encaixam necessariamente em apenas uma das categorias. As discusses das oficinas sugeriram que, de uma maneira ou de outra, todos enfrentam uma tenso que pode ser formulada, nos termos desse modelo, como um duplo comprometimento com os aspectos estticos, formais e tcnicos do patrimnio e tambm com a dinmica social das comunidades que o detm.

Nada seria menos adequado, do ponto de vista da elaborao de polticas pblicas, do que optar por uma frmula excludente do tipo um ou outro, ao invs de procurar uma equao que abarque um e o u tro, contem plando ambos os com prom issos. As partes interessadas devem decidir por si prprias como se posicionar entre estes dois plos, de acordo com suas necessidades, seus critrios, suas possibilidades efetivas e as circunstncias que enfrentam em determinado contexto histrico - tomando sempre o cuidado de no transform ar uma escolha contextuai em estilo, dogma ou ortodoxia.

Um exemplo de iniciativa de salvaguarda bem-sucedida, capaz de balancear aspectos sociais e aspectos esttico-religiosos do patrimnio, aquela implementada em torno do Kurokawa-no. Este ritual shintosta, cuja origem remonta h mais de 500 anos, atualmente realizado pelas trupes Kami-za e Shimo-za, bem como pelos frequentadores do santurio Kasuga, na regio de Kurokawa, da cidade de Tsuruoka. Mesmo tendo enfrentado adversidades


durante a Segunda Guerra Mundial e as profundas mudanas socio- econmicas do pas no ps-guerra, a comunidade no s conseguiu manter este ritual como lcus privilegiado para a manifestao de sua profunda devoo religiosa, como tambm formar novas razes e am algam -lo a modos de vida que passaram por rpidas transformaes.

Ao que tudo indica, no h dvidas de que o Kurokawa-no pertena a essa comunidade. Porm, nas ltimas dcadas, seus praticantes tiveram de enfrentar uma queda na motivao da comunidade local, especialmente por parte das geraes mais jovens, em funo do complexo e longo treinamento exigido pela arte No, e tem enfrentado tambm uma reduo progressiva no grau de com prom etim ento com as dem andas prticas decorrentes da produo das apresentaes. A transmisso do No (ou sucesso, como os praticantes frequentemente afirmam) teria sido posta em srio risco se os lderes comunitrios tivessem sido realmente rigorosos na observncia das regras tradicionais de transmisso e participao. Dois aspectos especialmente restritivos dessas regras so a orientao de que o No deve ser perpetuado dentro de grupos familiares, passando preferencialmente a interpretao de alguns papeis dos pais para os primognitos, e o princpio que restringe a participao das mulheres nessa arte predominantemente masculina.

O festival Ohgi, celebrao muito antiga, foi o contexto escolhido para a introduo de mudanas relacionadas a gnero e idade nos padres sociais de participao nas apresentaes. Foi organizado um comit executivo para aprimorar o Rosoko-No - literalmente, No luz de velas - e torn-lo uma atrao especial desse festival anual, que ter sua dcima quinta edio consecutiva em 2008. O comit foi transformado em um novo espao institucional, aberto a um envolvimento mais amplo dos membros da comunidade: homens, mulheres e adolescentes. Em consequncia dessa medida, houve um aumento no volume de fundos arrecadados por meio de doaes


pblicas e no patrocnio de corporaes privadas, e incrementaram- se as atividades comerciais complementares nas dependncias do santurio Kasuga.

Outros resultados extremamente relevantes foram o fortalecimento do apoio e do interesse pblico pelo N o enquanto arte, e o crescimento do pblico nas apresentaes, sem que isto interferisse nos rituais de teor predominantemente religioso, nos quais a prtica do No desempenha um papel importante. De fato, a deciso de tornar as regras de participao mais flexveis e adequadas realidade social contempornea foi vital para salvaguardar a prtica do No em seu local e contexto tradicionais, assim como a sua qualidade artstica e o seu significado para os paroquianos do santurio shintosta Kasuga.

3. Continuidade e mudanaO exemplo anterior ilustra com eloquncia de que form a

circunstncias histricas podem produzir mudanas na base social da transmisso e/ou produo do patrimnio. Tambm sugere - por mais contraditrio que possa parecer - que a continuidade de determinada prtica pode implicar mudana no gnero, na idade e no status social dos executantes e participantes. Em tais casos, o desafio, do ponto de vista da salvaguarda, encontrar o ponto de equilbrio entre continuidade e mudana, levando em considerao que em situaes concretas essas foras no so to conflitantes quanto se poderia supor.

Questes contextuais no so os nicos fatores que induzem mudana. Artistas e produtores desenvolvem novos estilos de interpretao, repertrio e habilidades tcnicas atravs da prtica contnua de sua forma de expresso; o mesmo acontece com celebraes comunitrias e rituais religiosos. Seria ingnuo supor que os gneros de performance cultural brotaram prontos dos territrios em que atualmente se encontram e que se mantiveram


inalterados ao longo do tempo. As linguagens so realidades histricas e dinmicas, assim como so cambiantes os significados atribudos s prticas culturais, aos valores e aos conhecimentos por elas transmitidos, e tambm organizao social que viabiliza suas manifestaes concretas.

O processo de m udana nos significados atribudos pelas comunidades s suas celebraes pode ser ilustrado pela transformao de um antigo ritual de semeadura da Ilha de Taketomi, em um festival em que a incluso social e o pertencimento passaram ao centro da cena, sob a liderana de uma sacerdotisa shintosta e o apoio de um nmero expressivo de mulheres e da maior parte da comunidade. Outro exemplo reside no renascimento da celebrao da comunidade Nama por meio da apresentao do stapdans que, embora seja uma forma de msica popular contempornea tocada por instrumentos modernos e cantada em africner, ainda reflete e realimenta, do ponto de vista da comunidade, o ritmo e o tom do passado.

Em todas essas situaes, a tenso entre continuidade e mudana parece ser culturalmente produtiva, ao invs de destrutiva. Para fortalecer o potencial criativo dessas foras, o protagonismo da populao local, no tocante a assuntos sociais e culturais, absolutamente essencial. Polticas de salvaguarda devem evitar a implementao de inovaes induzidas de fora e privilegiar as atividades, os princpios socioestruturais, os saberes e os fazeres, que sejam reconhecidos pelos detentores do patrimnio, como referncias contnuas sua identidade, memria e aos valores sociais. Na minha viso, este um dos fundamentos da sustentabilidade cultural.4. Protagonismo social

A sustentabilidade das estratgias de salvaguarda requer um envolvimento ativo dos detentores do patrimnio. A populao que


reivindica uma referncia cultural como sua, ou como uma expresso pblica valiosa de sua identidade, necessita desenvolver meios sustentveis para a sua recriao. Isto pressupe, entre outras coisas, propor iniciativas e conseguir os meios para implement-las; no menos importante poder prescindir de mecenato, quer de fundos pblicos, quer de patrocnios privados.

Vrios projetos e programas discutidos nas oficinas indicam que, deste ponto de vista, as melhores prticas so aquelas que ampliam, alimentam e fortalecem o enraizamento social das performances culturais e as que possibilitam a diversificao de materiais e de modalidades de apoio poltico. Os caminhos para se chegar a esse patamar certamente variam de um pas para outro e de uma cidade para outra, visto que a sustentabilidade depende do volume e da natureza de recursos disponveis e do modo como eles so socialmente distribudos. Mesmo assim, o fortalecimento poltico das comunidades e o desenvolvimento de sua capacidade de, entre outros, lidar com agncias de fomento e instituies de apoio, utilizar recursos de incentivos fiscais e administrar a contabilidade constituem instrumentos fundamentais de consolidao do protagonismo social.

Nesse contexto, convm destacar a importncia do trabalho voluntrio desenvolvido por organizaes, como associaes de preservao ou de jovens, centros comunitrios, grupos artsticos, clubes, escolas e associaes religiosas. Os projetos e os programas apresentados testemunham que essas entidades constituem, em diferentes cidades e pases, no apenas o tecido social bsico responsvel por reunir os recursos financeiros e polticos necessrios para que as atividades aconteam, mas tambm o ambiente que desperta a motivao em futuros participantes, sensibiliza a opinio pblica e dissemina a capacidade de apreciar essas formas complexas e frequentemente sutis de expresso.


5. EducaoA prtica do patrimnio cultural imaterial nas escolas - alimento

e inspirao no s para atividades extracurriculares, como tambm para as disciplinas regulares - uma maneira de sensibilizar e atrair novos praticantes e de possibilitar uma apreciao melhor informada por parte do pblico e dos participantes, especialmente quando o patrimnio j perdeu sua visibilidade e relevncia na vida pblica. Alm disso, o patrimnio imaterial permite a explorao de temas extremamente ricos, relacionados a aspectos histricos, expressivos e espirituais das culturas, que podem ser abordados por meio de atividades escolares multidisciplinares. Contribui ainda para o desenvolvimento da linguagem corporal, pode servir de base para programas de sade, e colabora para estimular os nimos em atividades fsicas e na agudeza de esprito dos estudantes.

Vrios projetos e program as apresentam casos de sucesso relacionados esfera educacional, mas dois merecem destaque: o A w aji N ingyo Joruri e o N ekko-B angaku . Nestes dois casos, associaes de preservao, apoiadas por grupos de jovens e por associaes voluntrias de crianas, conseguiram desenvolver, com periodicidade regular, atividades extracurriculares para alunos do Ensino Infantil, Fundamental e Mdio em diversas vilas e cidades do Japo.6. Direitos coletivos de propriedade intelectual

No debate sobre o Kurokawa-no, o Awaji Ningyo Joruri e o Kutiyattam, surgiram questionamentos sobre os direitos autorais das peas teatrais e estilos de representao. Estes direitos, consolidados pelo costume, tm implicaes importantes para a acessibilidade e a transmisso do patrimnio cultural imaterial que no de domnio pblico. Foi discutida tambm a necessidade de maior proteo legal de tais direitos que venha a se somar s prticas costumeiras


correntes e aos processos de salvaguarda institucionalm ente desenvolvidos.7. Universalidade e singularidade

A salvaguarda do patrimnio imaterial contm uma aparente contradio: quanto mais esses tesouros culturais esto enraizados em contextos sociais especficos, mais eles dizem respeito a todos ns, seres humanos. Kutiyattam, Nang Yai e Kurokawa-no so emblemticos nesse sentido. Essas expresses da alta cultura parecem estar profundamente incrustadas na vida das comunidades; sua importncia, porm, publicamente reconhecida, transcendeu e muito os limites de instituies, grupos sociais e localidades nos quais so praticadas e transmitidas. Elas se tornaram parte da diversidade que alimenta e enriquece a experincia humana, do mesmo modo que outras formas de expresso artstica, que foram apresentadas nessa reunio, podero vir a ser no futuro.

O reconhecimento da importncia desse patrimnio para alm das fronteiras locais, que se d por meio de sua designao como patrimnio pelos Estados nacionais e pela UNESCO, pode produzir efeitos positivos para as prticas culturais em questo. As comunidades culturais tm condies de tirar proveito - em termos simblicos, polticos ou econmicos - da legitimidade e da visibilidade proporcionadas por sua proclamao oficial como bem patrimonial. De fato, isto aconteceu em vrios projetos e programas premiados por esse concurso.8. Consideraes finais

Gostaria de encerrar enfatizando que o objetivo maior de qualquer poltica, programa ou projeto de salvaguarda do patrimnio cultural deveria ser o de contribuir para a construo de uma diversidade cultural sustentvel para o desenvolvimento humano e o entendimento


entre os povos para alm dos limites da vida com unitria. A diversidade a principal riqueza a ser salvaguardada para os nossos sucessores neste planeta e no temos o direito moral de priv-los de experincias to belas e transcendentes. Ao protegermos recursos culturais, nossa bssola deve estar apoiada no presente e se voltar para o futuro; nossas mentes devem estar em sintonia com as dos mais jovens, pois sua participao na salvaguarda do patrimnio essencial. Criar caminhos e oferecer meios para que esses tesouros sejam transmitidos aos nossos jovens contemporneos e s geraes futuras no so tarefas simples. Pobreza, analfabetismo, intolerncia, guerra e migrao forada tornam nossa misso to difcil quanto urgente.

Arjun Appadurai41 apontou que uma diversidade sustentvel depende da capacidade de os seres humanos desenharem seus futuros culturais. Nossa capacidade de aspirar a algo, para usar a expresso do antroplogo indiano, o que vincula cultura e desenvolvimento - ele se refere ao desenvolvimento humano integral, no apenas ao econmico. A vontade comum certamente o princpio vital da transmisso - modo como ns, gente de fora, tendemos a designar o processo de recriao cultural, ou de sucesso, termo preferido por vrios executantes de prticas patrimoniais neste seminrio, enfatizando a importncia das estruturas sociais locais na organizao de questes intergeracionais. De qualquer forma, a fora psicossocial do pertencimento a que rene guardies e aprendizes enquanto praticantes e militantes de uma mesma arte, enquanto indivduos que constituem o mago da continuidade histrica, enquanto guardies do patrimnio de suas cidades e aldeias e daquilo que - ou pode vir a ser- compartilhado por todos ns, seres humanos.

O patrimnio cultural uma preocupao planetria. No causa espanto que instituies como a UNESCO e o ACCU e que indivduos de mente aberta como os senhores se incumbam desta misso. No nos esqueamos desta ltima lio de nossas oficinas!


Notas1 Este ensaio foi redigido originalmente em ingls e traduzido por Ilana

Goldstein com a colaborao de Liana Driga. Ele se baseia em comunicaes apresentadas nas seguintes reunies: I Conference on Intangible Cultural Heritage and Intellectual Propeerty under the 2003 Convention, organizada por Kyushu University (Japo) e Council for Scientific and Industrial Research of India, Nova Delhi, maro de 2007. II - Culture and the State in the Lusophone Black Atlantic, organizada por Center for the Study of Brazilian Culture and Society, Kings College, University of London, Londres, janeiro de 2007.

2 Bacharel e Mestre em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo e PhD na mesma rea pela Universidade de Cambridge, Inglaterra.Tem atuado como docente e pesquisador na UNICAMP desde 1968, onde participou da criao do Departamento de Antropologia, assim como em outras instituies no Brasil, na Argentina, no Mxico, na Frana, em Portugal, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Foi presidente da Associao Brasileira de Antropologia - ABA, da Associao Latino- A m ericana de Antropologia - ALA, do Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico, Arqueolgico e Turstico do Estado de So Paulo - CONDEPHAAT e do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional -IPHAN. Nesta ltima instituio, implementou a instalao do Departamento de Patrimnio Imaterial e deu incio ao Programa Nacional de Patrimnio Imaterial. Desenvolveu diversos projetos de pesquisa acadmica e publicou livros, artigos e relatrios sobre o patrim nio cultural no contexto da experincia social contempornea e sobre temas afins. Enquanto consultor de polticas culturais, colaborou em vrios projetos desenvolvidos por entidades governamentais e no-governamentais. Entre eles, o de criao da m etodologia para o estabelecim ento do Inventrio Nacional de Referncias Culturais no Brasil, no mbito do qual supervisionou o levantamento realizado na regio de Porto Seguro e Cabrlia. Ministrou oficinas sobre mtodos de inventrio e participou de reunies tcnicas sobre patrimnio cultural no Brasil e no exterior, especialmente na


Frana, no Japo, na ndia, em Moambique e Madagascar sob os auspcios da UNESCO e da ACCU.

3 Ratificada pelo Brasil em 1 de maro de 2006 e em vigor desde 20 de abril do mesmo ano. Texto integral disponvel em portugus e em ingls no site h ttp ://u n e s d o c .u n e s c o .o rg /im a g e s /0 0 1 3 /0 0 1 3 2 5 / 132540POR.pdf (Acesso em 03/04/2008).

4 Arantes, Antonio A. et al. 2000. Inventrio Nacional de Referncias Culturais: metodologia. Cam pinas: A ndrade & A rantes Ltda.__________ . 2000. Museu Aberto do Descobrimento: inventrio dereferncias culturais. Campinas: Andrade & Arantes Ltda. 3 vols.

5 Conveno de 2003 supra Item II: Organs and Conventions.6 Conveno de 2003 supra Artigos 16 e 17, respectivamente.7 Quanto aos outros documentos mencionados pela Conveno de 2003,

refiro-me especialmente Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a Recomendao da UNESCO sobre a salvaguarda da cultura tradicional e do folclore, de 1989; a Declarao Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural de 2001.Disponveis em: http://unesdoc.unesco.org (Acesso em 11/4/2008).

8 Este assunto foi exaustivamente discutido na Reunio de Especialistas sobre as Listas Estabelecidas pela Conveno de Salvaguarda do Patrimnio Cultural Intangvel, de 2003, realizada em Nova Delhi, em abril de 2007.

9 Arantes, Antonio A. Cultural diversity and the politics of difference in safeguarding intangible cultural heritage. In: Blake, lanet (org.). 2007. Safeguarding intangible cultural heritage: challenges and approaches. Gr-Bretanha: Institute of Art and Law.

10 Emprego uma expresso utilizada por Kapila Vtsyayan em seu lcido pronunciamento na sesso de abertura da Reunio de Especialistas, supra mencionada.

11 Conveno de 2003 supra Artigo 2.3.

SOBRE INVENTRIOS E OUTROS INSTRUMENTOS DE SALVAGUARDA DO2 1 D PATRIMNIO CULTURAL INTANGVEL: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA PBLICA

12 Malinowksi, Bronislaw. Special foreword to the Third Edition In:__________ . 1968 [1929]. The Sexual Life of Savages in North-EastMelanesia. Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd. p. XXXII (traduo minha). Citao no original: The reconstructive theorist, whether evolutionary or diffusionist, is bound to regard every element of culture as extraneous to the context in which it is found. For the evolutionist is mainly interested in a fact as a survival from a past stage, while the diffusionist sees in it above all a mechanically conveyed importation from another geographical region.The one places it in a past time, the other in a distant place. But both remove the fact far from the actual surroundings where it now lives.

13 Mauss, Marcel. 2003. Sociologia e antropologia [924/1925]. So Paulo: Cosac & Naify. p. 309.

14 Lvi-Strauss, Claude. 1974. Introduo obra de Marcel Mauss In: [1950]. Mauss, Marcel. Sociologia e antropologia, vol. 2. So Paulo: EPU/EDUSP. pp. 14-15.

15 Goody, Jack. Literacy and classification: on turning the tables In:1977. The domestication of the savage mind. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 52, 73.

16 Ya, Olabiyi Babalola J. Odo lay (loge de la vie-fleuve): perspectives africaines sur le patrimoine culturel. In: 2007. Blake, Janet (org). Safeguarding Intangible Cultural Heritage: Challenges and approaches.Builth Wells, GB: Institute of Art and Law. pp. 75-76. (Traduo minha). Citao no original: Il faut se rendre lvidence que ces catgories aristotelicinnes ne sont pas des universaux philosophiques, et quelles cadrent mal avec le postulat de base des pholosophies de la tradition africaine, pourlesquelles tout est en tout [...] ou limmatriel est dans le matriel [...] [et]les morts ne sont jamais morts non plus.

17 Arantes, Antonio A. Reconsidering the social aspects of sustainability: integrated conservation and the urban environmental heritage In: Zanchetti, S. (org .). 1999. Conservation and urban sustainable development: a theoretical framework. Recife: Editora Universitria.


18 Cabe destacar uma frase curta, porm importante, do Artigo 12, item 1, da Conveno de 2003, em que se l, na verso original em ingls: in a m annergeared to its [each member State] own situation. Averso adotada pe

sobre inventários e outros instrumentos de salvaguarda2007_antonioarantes

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