sobre fronteiras e permeamentos eduardo ferraz felippe

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Resenha: LaCapra, Dominick. History, Literature,Critical Theory. Ithaca, Nova York: CornellUniversity Press, 2013.

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  • Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 15, n. 29, p. 674-678, jul./dez. 2014 | www.revistatopoi.org 674

    Sobre fronteiras e permeamentos

    Eduardo Ferraz Felippe*

    LaCapra, Dominick. History, Literature, Critical Theory. Ithaca, Nova York: Cornell University Press, 2013.

    Mais conhecida por aqueles que lidam

    com discusses que tangenciam histria, filosofia e literatura, a obra de Dominick LaCapra ainda no obteve uma traduo de flego no Brasil. Por mais que entendamos essa lacuna como uma entre muitas, o agora professor emrito da universidade de Cor-nell prope uma obra que impe problemas destacveis para a historiografia e ala sua reflexo a uma das mais necessrias do ce-nrio universitrio contemporneo. Pode-se conceber que as variaes propostas em seus diversos livros, desde as abordagens voltadas histria intelectual, do incio da dcada de oitenta do sculo passado, at aquelas direcionadas anlise de alguns ficcionistas contemporneos, tenham sido variaes de um problema central da historiografia: os limites e possibilidades da histria intelectu-al. Seus livros dialogam entre si ao mesmo tempo que apresentam uma distino sen-svel entre eles; girando sobre seus prprios passos, LaCapra permanece em dilogo com um temrio vivo desde os primeiros livros,

    enquanto joga luzes a um novo horizonte de sentido.

    Em tempos de predominncia do estru-turalismo, LaCapra comeou sua carreira acadmica ao interrogar-se acerca da tese hegemnica da submisso do intelectual ao edifcio da histria. Nesse instante, percebeu a necessidade de reforma e deslocamento da histria intelectual de seu lugar de sinopse de ideias e sistemas de grandes pensadores ou da autoconsiderao enquanto histria da filoso-fia. LaCapra dialoga com o cnon ocidental, discutindo e ampliando-o, por meio da crtica aguda a autores contemporneos seus, como Derrida e Foucault, at autores que o mar-caram, como Marx e Benjamin. Inicialmente aposta em uma perspectiva interdisciplinar, de modo que seu ataque s teorias totalizan-tes no implicou o embarque em propostas ps-modernas pouco atentas historicidade do texto. J em Soundings in Critical Theory (1989) o marxismo, a psicanlise e o ps-es-truturalismo so articulados historiografia em sua dimenso crtica e autocrtica. Desse modo, o caminho da histria intelectual, em sua diferenciao frente histria social, se bi-furca com o caminho da historiografia, sendo a dupla face de uma mesma proposta intelec-tual sustentada pelo professor de Cornell.

    * Doutor em Histria Social pela Universidade de So Paulo (USP), professor da Escola SESC de en-sino mdio e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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    A interdisciplinaridade do incio da car-reira pode ser detectada nas suas considera-es sobre os limites da noo de contexto que impe a autores como Flaubert e Bau-delaire. Essa questo ser alvo de uma ava-liao especfica de Hayden White em The context in the text: Method and Ideology in Intellectual History em seu The Content of Form: Narrative Discourse and Histo-rical Representation (1990) em que dialo-ga com a obra prvia do autor de History, Literature, Critical Theory. O problema do contexto j est presente no incio na tese de livre-docncia de LaCapra, ao ponderar que Durkheim no deve ser compreendido so-mente como uma metodologia de pesquisa, mas um texto a ser lido e articulado dentro do contexto. A partir dele, critica algumas anlises que o submetem a esse contexto pela utilizao de argumentos firmes, postos em contradio com algumas consideraes do prprio Durkheim. Essa perspectiva de um ataque ao historicismo na leitura dos textos enfatiza sua perspectiva dialgica de relacionamento com o passado. No se trata de recusar completamente os protocolos de anlise, e sim complement-los e super-los.

    Longe est LaCapra de um subjetivismo relativista que apresenta os textos como des-ligados do contexto. Afirma, de modo in-cisivo, em seu History and Criticism (1985), manter uma distncia preventiva do chama-do fetichismo de arquivo (p. 92). A ques-to central para LaCapra a recusa explcita de um empirismo radical, utilizado muitas das vezes como recusa a se ler os textos, como pondera em Rethinking Intellectual History (1983) (p. 14). A noo de leitura

    como interpretao central em toda a sua trajetria intelectual, especialmente aquela enfatizada na dcada de 1980. O historiador deve evitar uma acumulao neopositivista de informao com o fito de empreender lei-turas novas que no se resumam a descobrir novas fontes.

    Esse percurso levou Dominick LaCapra a entrar em contato com as propostas do linguistic turn; contudo, no se deve afir-mar, pelo menos de modo to imediato, que LaCapra deve ser considerado um histo-riador derrideano. Creio que LaCapra no concordaria plenamente com a noo de que no h nada fora do texto; pelo contrrio, h uma leitura apropriativa e altamente seleti-va voltada a criticar oposies binrias sus-tentadas por opes historiogrficas pouco atentas ao texto. Transcender a anlise bi-nria no implica o desconhecimento da sua importncia em processos histricos ou no presente, em outro vis, considera que pe-riodizao histrica um tema destacvel ao historiador. A desconstruo incorporada, mas no adotada de forma plena; Derrida e Heidegger esto entre outros autores, como Marx, Freud e Bakhtin, que, por fim, valori-zam a intertextualidade como procedimento de escrita, tendo como centro a dimenso retrica dos textos. A estratgia da histria intelectual combina investigao emprica com vozes do presente e do passado, que in-cluem o autor e suas fontes em uma tempo-ralidade marcada por deslocamentos, conti-nuidades e rupturas.

    J em seu History, Literature, Critical Theory (2013), Dominick LaCapra continua sua explorao acerca das relaes comple-

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    xas entre histria e literatura, entendendo a histria como processo e representao. Trata-se, como sempre fez questo de dei-xar claro, da incorporao atenciosa da obra de Hayden White, especialmente de seu livro mais famoso, Metahistria (1973). Em termos gerais, seu livro se divide entre um ensaio inicial, trs captulos de anlise especfica de alguns autores contemporne-os, como W. G. Sebald e J. M. Coetzee, e termina com um eplogo acerca da questo da violncia em Slavoj iek. Um motivo recorrente do livro a questo do sagrado, a relao problemtica estabelecida com o sacrifcio e sua virulenta manifestao como violncia poltica e social.

    O foco da discusso acerca da histria est na questo da violncia, com ateno particular a tema que j se dedicou anterior-mente: a soluo final. Em termos gerais, o autor est atento ao contato entre o subli-me, o sagrado, o ps-secular e a questo da redeno absoluta, assim como as poss-veis implicaes da procura pela violncia e, por vezes, sacrificial ou as prticas quase--sacrificiais envolvendo transgresso radical, vitimizao e a expiao (p. 1). Por diversas vezes, LaCapra deriva o argumento para a reflexo acerca do que chama de ps-secu-lar, a poca atual. O termo provm de sua leitura de Hans Blumenberg, especialmen-te de duas obras, The Legitimacy of modern age (1986) e Work on Mith (1985). LaCapra destaca que, para Hans Blumenberg, a des-continuidade entre o mundo pr-moderno e o mundo moderno fundamenta o termo legitimidade da poca moderna. Esse ar-gumento torna-se mais claro quando prope

    a aproximao entre Blumenberg e Jrgen Habermas em seu Notes on a Postsecular society (2008), por meio de uma aborda-gem que valoriza a tradio filosfica e a so-ciologia.

    Em seu livro mais recente, a questo do trauma e do genocdio nazi o disparador da escrita e dos paradoxos nela enredados. A leitura feita de Coetzee e Sebald, as solues narrativas levantadas por Jonathan Littell, o fechamento da proposta com Slavoj iek, a conexo com a violncia, tem no tpico do trauma o porto onde se ancoram afirmativas e de onde partem novos rumos. Est posta, de modo inexorvel, a questo da narrativa em nossa lida com o passado. A abordagem do trauma, mormente sua expresso narrati-va, tem sido acompanhada por um paradoxo ou um duplo enlace: o indizvel ainda clama por um discurso sem fim (p. 33). Por vezes um processo de intensificao, por outras um ato de abrandamento, as semelhanas e diferenas entre os testemunhos e todas as tentativas de representar as experincias traumticas e eventos so determinadas por meio da forma com que esse paradoxo ne-gociado na narrativa.

    O temrio do trauma ganhou tessitura consistente em seus argumentos ao longo das dcadas de 1990 e 2000. A empreitada mais significativa nessa direo foi Writing History, Writing Trauma (2001). A adapta-o de conceitos psicanalticos para a an-lise histrica est associada ao emprego da crtica sociocultural e poltica para elucidar o trauma e seus efeitos na cultura. Writing History, Writing Trauma (2001) tambm marca a tentativa explcita de LaCapra de se

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    diferenciar de Hayden White, por mais que concorde em muitos aspectos, especialmen-te os dedicados narrao. Atento leitura que White faz de Roland Barthes, LaCapra enfatiza o vnculo entre o autor de Metahis-tria e o livro Escrever, verbo intransitivo, es-pecialmente no debate levantado quando da publicao do livro Probing the Limits of Re-presentation: Nazism and the Final Solution (1992), de Saul Friedlnder.

    Especialmente J. M. Coetzee (Elisabeth Costello e Desonra) e W. G. Sebald (Anis de Saturno) so os ficcionistas atrelados s principais consideraes de LaCapra. Alm da semelhana por pseudnimos, a esco-lha por emigrarem de suas terras natais, e a ateno dada pelo primeiro ao segundo, destaca-se a sofisticao da questo da lin-guagem e a combinao entre anlise crtica de outros autores (especialmente de Kafka e Flaubert) com uma autorreflexo profun-da ou um dilogo interno, nos termos de Mikhail Bakhtin. LaCapra percebe que o Holocausto representa para Sebald aquilo que o apartheid e o colonialismo significam para Coetzee: a questo do mal e o abusivo tratamento de humanos e no humanos. A presena da pesquisa de arquivo, notria em W. G. Sebald, mas tambm presente em J. M. Coetzee, e a questo da memria esto coligadas ao problema do realismo, especial-mente do traumtico realismo, em relao tcnica formal de ambos.

    O tema do trauma, enquanto modali-dade do sublime, permite a LaCapra outros voos associados aos limites e s possibilidades da narrativa. Na verdade, um deslocamento. Passa a estar em jogo o tema da dimenso

    tica do historiador. Para tanto, a entrada em cena do romance de Jonathan Littell e as questes postas por Saul Friedlnder auxi-liam no entendimento da questo. Especial-mente atento s preocupaes do autor de As Benevolentes (2006), de modo destacado por sua ateno ao discurso dos agressores, LaCapra considera que entender os agresso-res importante epistemologicamente, eti-camente e politicamente. Antes, lembra-nos do valor do reconhecimento emptico ao inveterar em acontecimentos extremos. H um duplo caminho sendo percorrido por ve-redas nem sempre coincidentes ao longo do livro: por um lado, admitir a nossa prpria possibilidade de envolvimento no crime, posto que nenhum de ns est plenamente cnscio em suas respostas e, por outro lado, propiciar nossa autocompreenso por meio da tentativa de imputar sentido a Max Aue, personagem principal, como um homem qualquer.

    Littell discorda de que seu romance deveria ser chamado de um novo Guerra e paz. A leitura que fez de Maurice Blanchot e Georges Bataille, duas de suas preferncias, fundamenta a zona cinzenta da escrita na qual todo escritor repousa o espao lite-rrio que necessita para criar e lapidar o seu Max Aue. A natureza da relao entre agres-sor e vtima em As benevolentes confusa e marcada pela ambiguidade do personagem central. O que constitui a verdade roma-nesca para Littell permanece em sombras, mas h a busca por ir alm de uma verdade histrica sem necessariamente transcend--la ou falsific-la. As benevolentes transcen-dem a verdade histrica (...) em sua tentativa

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    de amalgamar ou reverter a relao entre agressor e vtima (p. 116).

    O ltimo captulo e o eplogo deslocam a ateno para a obra de Slavoj iek. Ao destacar sua recente exposio miditica, o gosto pelo choque e a presena do paradoxo em sua escrita, LaCapra vai tecendo, com calma e sem grande densidade, seu aprovei-tamento e crtica da obra de iek. O r-pido exemplo quando avalia que o autor de Violncia proporciona sempre a overdose do antdoto por vezes o extremo (p. 154). Sem deter-me em demasia no argumento, LaCapra destaca a busca pelo sublime de iek, com sua particular mistura de Lacan e Marx. Enfatiza que a violncia intrnseca linguagem, especialmente quando pergun-ta se os humanos excedem os animais em sua capacidade de violncia? (p. 120). Sua rpida anlise de iek concluda com a ponderao de que para iek a essncia do humano o monstruoso, o excesso inumano que marca a incurso do real a possuir uma sada poltica... (p. 125)

    O texto de LaCapra merece leitura aten-ta. Tendo sido a coletnea de alguns escritos publicados anteriormente, esse livro tem a

    marca de um fechamento, no concluso, de uma carreira de um professor dedicado a pensar Teoria da Histria e Historiografia. Se esse novo livro d pouca ateno a alguns temas da dcada de 1980, como a questo da retrica, to presente em Rethinking In-tellectual History (1983), marca o desaguar de suas reflexes sobre o trauma e algumas ponderaes acerca da importncia do subli-me para a escrita da Histria.

    Sem a preocupao de detalhamentos excessivos acerca da Histria, fico ou fi-losofia, como fez por vezes Hayden White, LaCapra termina por reafirmar o valor do texto, em sua singularidade e historicidade. Evita cair, desse modo, em consideraes, por vezes descomedidas, do carter ino-vador de alguns projetos intelectuais que, apenas com o ttulo, propem a reformula-o de um campo. De forma sutil, LaCapra coloca interrogaes identidade do his-toriador sem excessivo alarde, sem dema-siado estrondo; contribui, enfim, para no-vas reflexes para a Histria sem reduzi-la completamente ao seu nvel discursivo, no somente nas ctedras de teoria ou histria da historiografia.