sobre fronteiras e margens na literatura: a poética do ... · fronteiriço, periférico e/ou...
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Sobre fronteiras e margens na literatura: a poética do portunhol selvagem na fronteira
Brasil-Paraguai
Josué Ferreira de Oliveira Júnior (UNIOESTE/CAPES)
Resumo: A comunicação visa à reflexão sobre as reverberações da fronteira como signo que
enseja significativas e renovadas (re)leituras no campo da crítica literária e das artes em geral
na atualidade. E isso, em parte, sustentada pela emergência, cada vez maior, de artefatos
culturais e artísticos, de experiências literárias e de textualidades contemporâneas diversas,
cuja marca se traduz no atravessamento e/ou na superação das fronteiras que tornavam outrora,
mais ou menos, identificáveis os diferentes campos da atuação artística, seus meios de
produção e as ferramentas de abordagem teórico-críticas. Também pelo crescente interesse por
expressões artístico-literárias advindas das fronteiras e margens da nação, que reclamam, por
assim dizer, um modo de ler também marginal-fronteiriço, promovendo, dentre outros
aspectos, o descentramento do discurso teórico-crítico, bem como a sua renovação. O trabalho
se volta, então, para uma fronteira bem específica: a do Brasil com o Paraguai, e para o
portunhol selvagem, de Douglas Diegues, como uma experiência literária paradigmática, no
contexto da literatura contemporânea, ao assumir como projeto estético-político a superação
das fronteiras geográficas, linguísticas e as da própria literatura até o limite do possível. A
reflexão se dará com base nas teorias pós-coloniais e na crítica decolonial.
Palavras-chave: Fronteiras da/na literatura; Literatura marginal; Pensamento fronteiriço.
Abstract: The communication aims at reflecting about the border’s reverberations as a sign
that enables significant and renewed (re)readings in the field of literary criticism and arts
nowadays. And this, in part, sustained by frequent emergence of cultural and artistic artifacts,
of literary experiences and various contemporary textualities, whose mark is translated in the
crossing and/or in the overcoming of the borders that once made more or less identifiable the
different fields of artistic acting, their means of production and the tools of theoretical-critical
approach. Also by the growing interest in artistic-literary expressions coming from the borders
and marge of the nation which claim a way of reading also marginal-border, promoting among
other aspects the decentering of the theoretical-critical discourse. The work turns to a very
specific borderland: that of Brazil with Paraguay, and to the wild portunhol by Douglas
Diegues, as a paradigmatic literary experience in the context of the contemporary literature, by
assuming as an aesthetic-political project the overcoming of geographical, linguistic and
literary boundaries to the limit of what is possible. The reflection is based on postcolonial
theories and decolonial criticism.
Keywords: Borders of/in the Literature; Marginal Literature; Border Thinking
Fronteiras e margens se constituem como signos que guardam entre si certa semelhança
e/ou proximidade semânticas, muito embora tragam, também, diferenças singulares. Distam,
pode-se dizer, daquilo que ocupa uma posição de centralidade numa área ou tema
determinados, constituindo-se, assim, como a divisa, a beira, o contorno, as bordas externas
desta mesma área ou tema. Ao estabelecer uma diferenciação mínima entre elas, podemos dizer
que fronteira pode ser entendida como a linha divisória entre duas coisas dispostas uma à frente
da outra, entre diferentes campos do saber, e/ou os limites entre os territórios de dois estados;
já a margem, assumiria em relação a ela uma feição um pouco menos rígida, podendo ser
entendida como o contorno, isto é, o espaço situado na borda externa de algo.
Vale observar, portanto, que ambos os termos apontam para noções ligadas à
localização espacial, e à posicionalidade de sujeitos e objetos numa dada superfície ou
território, de onde advém outras noções e desdobramentos de sentidos que além de apontar para
a posicionalidade, lança luz também sobre as condições, as formas de adesão e pertencimento
a um determinado espaço e/ou território. É o que se pode dizer, por exemplo, dos adjetivos
fronteiriço, periférico e/ou marginal, quando usados após substantivos tais como: sujeitos, arte
e/ou literatura. Daí, importa indagar o que significa quando dizemos que alguém é um sujeito
fronteiriço, marginal e/ou periférico; ou ainda, o que significa, quando por vezes, nos
assumimos como sendo sujeitos marginais-periféricos. O mesmo pode ser perguntado sobre a
literatura. O que se entende por literatura marginal, periférica e/ou fronteiriça? De que modo a
caracterizamos? E por aí vai.
Tais questionamentos nos colocam diante de alguns dos problemas que queremos aqui
trazer à baila, a fim de refletir sobre uma produção artística que traz em si características muito
próprias e particulares, e que reclama leituras e abordagens outras; mais adequadas do ponto
de vista teórico-crítico, facilitando, desse modo, uma melhor compreensão dos desvios de
norma destes mesmos artefatos simbólicos como elementos de sua significação e sentidos
enquanto experiência artístico-literária.
Assim, dando continuidade às reflexões iniciadas acima, pode-se dizer, com certa
tranquilidade, que um sujeito marginal é aquele que vive à margem, quase sempre privado das
condições desejáveis para uma sobrevivência minimamente digna, alguém que se situa,
portanto, à margem do sistema político; já o periférico se caracteriza como um morador da(s)
periferia(s) das grandes cidades, ou ainda, um cidadão das nações periféricas, numa clara
alusão à questão colonial como processo histórico que produziu, dentre outros aspectos, uma
divisão dicotômica do mundo entre centro e periferia. O fronteiriço, por sua vez, corresponde
àquele espaço habitado por sujeitos que vivem nos limites dos estados-nações, um espaço onde
as marcas de identidade e as línguas nacionais se cruzam, por vezes, tornando confusas e
complexas as formas de adesão e pertencimento desses sujeitos não à fronteira em si, mas aos
espaços-territórios que elas conformam, constituindo-se, assim, no que Glória Anzaldúa (1981)
denomina como sendo uma “herida abierta”. Uma vez que para ela:
Fronteiras são construídas para definir os lugares que são seguros e inseguros,
para nos distinguir deles. Fronteira é um lugar vago e indeterminado, criado
pelos resíduos emocionais de um limite não natural. Ela está em um constante
estado de transição. O proibido e o não permitido são seus habitantes. Os
atravessados moram aqui: o estrábico, o perverso, o estranho, o problemático,
o mestiço, o mulato, o meia-raça, o meio morto, enfim, aqueles que
atravessam, passam, ou vão pela fronteira do ‘normal’. (ANZALDÚA, 1981,
p. 3, Tradução nossa).1
Pode-se dizer a partir daí que a fronteira vai se constituindo como um conceito de
destacada complexidade, seja por trazer em si um histórico de violências implícitas, ligadas a
uma herança colonial, seja por constituir-se como um lugar-espaço de passagens e
atravessamentos, habitada, de acordo com Anzaldúa (1981), por sujeitos atravessados, e/ou
como traduz Diegues, “Por la gente simples que increiblemente sobrevive de teimosia, brisa,
amor al imposible, mandioca, vento y carne de vaca.” (DIEGUES, 2007, p. 3) Está eivada por
questões políticas, de modo que seu espectro de significações se expande de maneira
extraordinária para diferentes campos do saber, constituindo-se, assim, num importante
paradigma de leitura que encerra em si uma forma de pensar e conceber o mundo, ao seu modo,
marginal-fronteiriço. Por isso mesmo Walter Mignolo vai dizer que as “Borders are not only
geographical but also epistemic.” (Tlostanova e Mignolo, 2012, p. 62) Sua significação e
sentidos se expandem para além das questões meramente ligadas à localização, para assumir a
forma de um pensamento fronteiriço (border thinking), ou um pensar desde a exterioridade;
expressão máxima de um projeto que se assume como uma opção decolonial.
Tal complexidade se nota, inclusive, nos artefatos artístico-literários e nas experiências
textuais que delas emergem, uma vez que está-se a falar de obras que não apenas advêm das
fronteiras e margens da nação, mas que retiram também delas sua significação e sentidos,
elevando-as a um patamar outro. Estas obras, dentre as quais destaco a estética do portunhol
1Borders are set up to define the places that are safe and unsafe, to distinguish us from them. A border is a dividing
line, a narrow strip along a steep edge. A borderland is a vague and undetermined place created by emotional
residue of an unnatural boundary. It is in a constant state of transition. The prohibited and forbidden are its
inhabitants. Los atravessados live here: the squint-eyed, the perverse, the queer, the troublesome, the mongrel,
the mulato, the half-breed, the half dead; in short, those who cross over, pass over, or go through the confínes of
the ‘normal”. (ANZALDÚA, 1981, p. 3)
selvagem, na figura de Douglas Diegues, provocam como resultado direto o questionamento
de conceitos e de noções teórico-críticas há muito cristalizados por uma teoria e crítica ainda
presas às concepções normativas do estético e do literário, na medida em que interferem, como
defende a professora Rejane Piveta de Oliveira, “[...] nos processos de produção, recepção e
circulação da obra literária, deslocando posições canônicas acerca do conceito, da função e da
relação da literatura com a sociedade. (OLIVEIRA, 2011, p. 31) A autora está justamente
pensando sobre uma literatura marginal e periférica localizada e/ou produzida nos subúrbios e
favelas das grandes cidades, em especial a cidade de São Paulo, mas sobretudo, tomando como
referência um grupo de escritores e poetas da década de 70 do século passado, que fez frente
de resistência “[...] às formas comerciais de produção e circulação da literatura, conforme o
circuito estabelecido pelas grandes editoras.” (Ibdem., p. 31). Interessa-nos, também, aqui,
destacar esta atitude, reconhecível na obra e no projeto estético de Douglas Diegues, expresso,
por exemplo, em sua opção pelas publicações cartoneiras; mas sobretudo lançar luz sobre a
localização - o espaço a partir do qual sua obra emerge -, como forma de estabelecer um vínculo
outro com os processos de leitura e reflexão críticas sobre artefatos artístico-literários
excêntricos, que se traduz no necessário deslocamento do olhar e na ressignificação das noções
de arte, literatura e crítica literárias, através da opção por uma teoria e crítica, também,
excêntricas, ou, fora do eixo, como defende o Professor e crítico fronteiriço Edgar Cézar
Nolasco (2012).
Voltando à questão da literatura precedida pelos referidos adjetivos, diria, citando um
verso de Paulo Leminski (1987) que: “Marginal é quem escreve às margens”. Seguindo essa
mesma lógica, poderíamos dizer, então, que periférica e/ou fronteiriça, corresponde, pois, à
literatura que emerge das/nas periferias e das fronteiras, respectivamente. Ressalta-se aqui,
ainda, um espectro de abordagem que aponta para a questão da localização, muito embora esta
adquire, no contexto da crítica e da teoria literárias, sentidos outros que tendem para as noções
de valor estético, desse modo acusando o status de uma determinada obra e/ou autor em relação
ao cânone, por exemplo. A esse respeito vale atentar para a reflexão desenvolvida por Hugo
Achugar (2006), ao pensar sobre a condição periférica que, segundo ele, atingiria o campo
intelectual na América Latina, ressaltando a importância de se ter consciência do lugar de onde
se está pensando e/ou escrevendo. Para o autor, se esta é, por um lado, a condição que nos cerca
como sujeitos latino-americanos, por outro, lembra, também, que “Periferia não qualifica nem
desqualifica um pensamento, mas o situa.” (ACHUGAR, 2006, p. 90) Tal compreensão esvazia
tais termos daquela conotação um tanto negativa, por vezes utilizada para se referir a obras
situadas à margem do sistema literário, ou abordadas como artefatos menores, carentes de uma
significação que lhes assegure um lugar de prestígio, por não cumprirem, de certa maneira, os
critérios necessários para a sua assunção ao lugar sacralizado do literário. Chamo atenção aqui
para o que disse, Myriam Ávila, em interessante livro a respeito da poesia de Douglas Diegues.
Segundo ela: “A poesia de Douglas não reconhece obstáculos colocados pela lógica, pela
coerência e pelo bom gosto.” (ÁVILA, 2012, p. 29) Sua análise parece ir ao encontro do que
escrevera Ángel Larrea, misterioso escritor do prefácio intitulado “A língua mestiça de
Diegues”, à entrada do livro de sonetos selvagens: Dá gusto andar desnudos por estas selvas
(2002). Segundo Larrea, “Douglas Diegues não faz distinção entre a realidade e a ficção, a
fantasia e a existência, o natural e o sobrenatural. (Diegues, 2002, p. 7) Não deixa de ser curioso
o fato de que Ángel Larrea seja uma espécie de heterônimo que assume, de acordo com Myrian
Ávila (2012), nesta obra, uma “função teatralizante”, uma vez que, como dá conta esta autora,
“Antes da publicação do livro, os sonetos que o compõem já haviam sido divulgados no espaço
virtual como autoria do citado Larrea. No livro, Larrea perde a autoria, mas recebe o encargo
de apresentar o poeta em seu nome civil e de comentar os sonetos um a um no fim do volume.”
(Ávila, 2012, p. 13) Faz-se necessário notar, ainda, que estes sonetos selvagens, podem ser
encontrados e lidos tanto no blog, mantido por Diegues, quanto no Sonetário Brasileiro2, criado
por Glauco Mattoso e Elson Froés, que juntamente com as edições cartoneiras constituem uma
interessante forma de resistência ao mercado editorial. Tais aspectos corroboram, pode-se
dizer, para a materialização de uma obra, e/ou de uma fazer literário entre “fronteiras e
deslocamentos”, Diniz (2008). A vista disso, e tendo em mente que sua obra ganha cor e vida
a partir do amálgama entre o português o espanhol e o guarani, como elementos que estão na
base de seu portunhol selvagem, pode-se dizer que sua poesia consiste, de uma só vez, na
dessacralização das noções de pureza linguística, bem como no questionamento dos conceitos
de literatura nacional, de obra literária assim concebida pelo moderno conceito de literatura e
do literário.
Nesse sentido, vale ressaltar que a literatura marginal-fronteiriça se traduz nos termos
de uma atitude profanadora, na desobediência e no desvio da norma como expressão de sua
força estética e política. Ganha destaque justamente num momento em que se avoluma um
2Disponível em: <http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/nsonetario.htm>. Acesso em: 06 Dez. 2017.
conjunto variado de formas de escrita que fogem aos padrões e aos meios de divulgação e de
leituras convencionados, deslocando, ao seu modo, concepções normativas tanto do literário
quanto da crítica, que carecem, ainda, de ferramentas de leituras outras, mais adequadas à
abordagem da vária e complexa textualidade contemporânea. Esta foi, por exemplo, a tônica
dos dois últimos encontros da ABRALIC, nos anos de 2016 e 2017, cujas mesas redondas e
simpósios giraram em torno dos temários “Experiências literárias” e “Textualidades
contemporâneas”. Como justificativa às chamadas dos referidos encontros, os organizadores
afirmam que:
em lugar de concepções normativas do estético e do literário, que reduzem
drasticamente o horizonte de leituras, impedindo a renovação do repertório
teórico e crítico, a ABRALIC abraça a pluralidade atual de valores e de
interesses como uma alternativa a ser radicalizada. Na circunstância presente,
um conceito monocromático de ‘literatura’ não dá conta da diversidade e da
intensidade das múltiplas ‘experiências literárias’ que transformam o cenário
das letras no mundo todo. (ABRALIC. 2017, p. 11).
Esse quadro, aponta, inclusive, para um contínuo e ininterrupto processo de
questionamento da literatura e do literário como campos de atuação dotados de autonomia e/ou
regidos por regras e instituições próprias, que obedecem a uma lógica interna e a um modo
muito peculiar de referir-se a si mesma e de autodenominar-se como tal. Estas mesmas
prerrogativas encontram seu limite atestado diante de um conjunto de artefatos que estariam a
meio caminho do literário como ideal a ser alcançado; de textualidades que se situam no espaço
intersticial entre a literatura e a não literatura, desse modo, produtores do que Josefina Ludmer
(2007) vai chamar de “literatura pós-autônomas”. Isto é, textos que não apenas relativizam o
caráter autotélico da literatura, mas, também, asseveram sua condição de fragilidade conceitual
e sistêmica, requerendo, desse modo, outros tipos de abordagens que se apresentem como rotas
alternativas às concepções normativas do estético e do literário.
Vale notar ainda, na esteira das reflexões empreendidas por Diniz (2008) ao se propor
pensa sobre “a literatura entre fronteiras e deslocamentos”, que ela, a literatura, tem plasmado
outras formas, espaços e linguagens distintas, outros meios e suportes, como o corpo, o papel
e a imagem, tornando-se mais performática e efêmera, relativizando, assim, a primazia do papel
e diminuindo a distância entre escrita e oralidade. O que requer não apenas novos leitores,
capazes de ler e responder a outras textualidades em suportes diferenciados, mas, também, uma
forma outra de leitura e de abordagens críticas de um objeto que, cada vez mais, se traduz na
conjunção de diferentes códigos, linguagens e materialidades. Assim, mais do que demarcar as
fronteiras da literatura, tarefa insana e nunca de todo concluída, é preciso lê-la entre fronteiras
e deslocamentos. Nesse sentido, ao pensarmos sobre fronteiras e margens na literatura, estamos
lançando luz sobre um universo que se expressa pelas vias da pluralidade de significações e
sentidos, também, sobre um conjunto de obras que não apenas emergem de locais ditos
marginais e/ou fronteiriços, mas que trazem, também em si, uma atitude e uma forma de
expressão que se quer marginal e fronteiriça. Trata-se, por isso mesmo, de termos que vêm se
constituído ao longo dos anos como importantes elementos de abordagem nos campos da teoria
e da crítica literárias, dada a emergência de artefatos culturais e artísticos, e/ou de experiências
literárias e de textualidades contemporâneas diversas, cuja marca se traduz no atravessamento
e/ou na superação das fronteiras que tornavam outrora, mais ou menos, identificáveis os
diferentes campos da atuação artística, seus meios de produção, bem como as ferramentas de
abordagem destes mesmo objetos pela teoria e crítica literárias. Mas, sobretudo, pela
emergência de uma poética e de uma literatura marginal, advindas, não só dos morros,
subúrbios e/ou dos espaços periféricos das grande cidades, mas, também, dos mais longínquos
e afastados rincões que compõem, portanto, as fronteiras-margens desta nação continental;
como é o caso aqui da poética do portunhol selvagem, na figura de Douglas Diegues, cujo locus
enunciativo é o chão fronteiriço que constitui os limites entre Brasil e Paraguai. É, pois, a partir
dessa consciência que nos voltamos então para Diegues e a seu portunhol selvagem.
O portunhol selvagem se caracteriza como um já mais ou menos (re)conhecido(?)
movimento literário, formado por um grupo de escritores transfronteiriços - Jorge Kanese,
Douglas Diegues, Xico Sá, Ronaldo Bressane, Joca Terron, Celestino Bogardo, Fabián Severo,
dentre outros -, oriundos do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai e criadores de uma literatura
que se constitui, também, a partir de uma trans-língua: o portunhol selvagem.
O movimento vem ganhando força nos últimos anos, de modo que é possível encontrar
já diversos estudos, artigos e entrevistas sobre o tema - dentre os quais destaco aqui alguns dos
mais recentes: Bancescu (2012); Locane (2015); Degli Atti (2013); Kaimoti (2011) -,
abordando-o sob distintas perspectivas, mas ressaltando, todavia, o caráter fronteiriço,
marginal e transgressor de um fazer artístico-literário que vem se fazendo notar pelo caráter
corrosivo que lhe é intrínseco, sobretudo, no que diz respeito à maneira desconcertante com
que lida com antigas e sacralizadas convenções em torno das línguas, da literatura, do literário
e da própria noção de fronteira. Isto porque Diegues e outros desses autores, bem como a
literatura que produzem se constituem ambos “entre fronteiras e deslocamentos” Diniz (2008).
Esta condição, ao seu modo marginal, provoca, com renovado vigor, o reposicionamento do
olhar sobre as já cristalizadas noções de língua, literatura e fronteira como elementos
fundadores dos Estados-nações modernos, obrigando-nos a lançar mão de perspectivas de
análise outras, fundadas na e a partir das fronteiras como resposta político-ideológica e
epistêmica àquela(s) que sacralizou(aram) a tríade língua, literatura e nação como elementos
constitutivos e harmônicos.
Nesse sentido, não se trata apenas da literatura própria de uma região fronteiriça, mas
de um fazer literário que se constitui a partir da rasura, do apagamento e da desintegração das
fronteiras como elemento de diferenciação e de separação dos territórios, das línguas e das
literaturas nacionais, por exemplo. O que significa dizer que está na gênese do Portunhol
selvagem como língua falada pelos habitantes da fronteira e/ou por aqueles que por ela
transitam; ou ainda do Portunhol como língua que emerge fundamentalmente do amálgama
entre português, espanhol e guarani; e sobretudo do portunhol selvagem como língua poética
que se constitui concomitantemente à invenção de uma literatura a qual dá nome, a
desobediência consciente às normas e às convenções que visam à manutenção e a pureza de
corpos e de espaços recortados por fronteiras limitadoras, bem como a desobediência e o
desprezo pela(s) gramática(s) normativa(s) como elemento regulador e salvaguardador da
pureza linguística. Tais fatores se evidenciam, por exemplo, na fala de Joca Reiners Terron, na
introdução de uma seleção de poesia mundial traduzida para o portunhol selvagem ao indagar:
“[...] como conocer onde empieza el portugués y termina el catellano, si lo único que sei és que
el portuñol és infinito.” (TERRON, apud LOCANE, 2015, p. 44) Esta indagação revela, de um
lado, a natureza selvagem de uma língua e de uma literatura que não se comportam bem diante
dos limites e das convenções que norteiam as noções de língua e de literatura como instituições
legitimadoras de uma identidade nacional coesa e monolíngue, além de revelar, de outro, a
fragilidade desses projetos que estão nas bases da constituição dos Estados-nações latino-
americanos, pós-conquista da independência política ao longo do século XIX, elegendo o
Espanhol e o Português, por exemplo, como línguas nacionais e oficiais. Este fazer literário
implica de pronto no esfacelamento da noção de literatura nacional, escrita numa língua
reconhecida como sendo a língua oficial de um determinado Estado e a partir da qual se
estabelece a mediação entre os atores nacionais, a medida em que aponta não só para a co-
existência de outras línguas e culturas brigando por espaço e por legitimidade, mas, também,
pela própria profanação dessas convenções como resposta desde as margens a estes projetos
hegemônicos.
Tais questões se tornam evidentes quando se lança luz sobre a própria biografia de
Douglas Diegues e sua produção literária marginal-fronteiriça, como é o caso das obras que
têm guiado as reflexões que aqui fazemos: Uma flor na solapa da miséria (2007) e Dá gusto
andar desnudos por estas selvas (2002). Filho de pai brasileiro e mãe paraguaia falante
hispano-guarani, nasceu no Rio de Janeiro e criou-se na fronteira Brasil-Paraguai, entre as
cidades de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, onde forjou sua identidade fronteiriça e seu falar
periférico.
Sua obra, vasta e significativa, é em todos os aspectos reveladora de um fazer literário
“entre fronteiras e deslocamentos”, além de marginal por natureza. Não só porque se constitui
a partir de um locus de enunciação e de uma língua periféricos e transfronteiriços, mas também,
pelo modo como ganha corpo desde os blogs, o facebook até às publicações cartoneras, como
forma de salvaguardar a liberdade no que diz respeito à criação literária e de resistir às pressões
do mercado editorial3. Projeto que Diegues levou a termo com a criação da editora cartonera
Yiyi Jambo, em Assunción no ano de 2007, por onde inclusive lançou Uma flor na solapa da
miséria (2007). Segundo Bancescu,
La utilización de estos medios de difusión, paralelos a los mecanismos
tradicionales de consagración, desafía desde el margen a la industria
tradicional del libro y pone de manifiesto, además, el hecho de que es el autor,
y no las instituciones, el que sirve como activista de esta nueva geografía,
operando como ‘agente doble’ [...] al servicio de las aventura de sus propias
obras y como productor de la red de discursos, movilizaciones y agencias con
que lo periférico busca materializarse. (BANCESCU, 2012, p. 152).
Tal postura assevera o caráter marginal de sua obra como resposta criativa ao
mercado editorial e aos projetos hegemônicos baseados na ideia de alta e baixa literatura. Dá
gusto andar desnudo por estas selvas (2002) e Uma flor na solapa da miséria (2007) compõem
sua produção de “sonetos selvagens”, identificados por Glauco Mattoso como
“Shakespereanos”, uma vez que “respetan la forma de tales versos (tres cuartetos y un dístico),
3De acordo com Locane, “Puesto que editoriales como Planeta no aceptan publicaciones en la lengua que los
convoca [...], Douglas Diegues fundó un editorial especializada, Yiyi Jambo, que suele funcionar como espacio
de encuentro. (LOCANE, 2015, p. 42)
pero a través de una apropiación ilegal de los patrones de rima y métrica.” (BANCESCU, 2012,
p. 151). É possível observa nestas obras, com uma clareza extremada, a condensação de tais
valores transmutados num projeto estético-político que modifica, por si só, o estatuto da arte e
da literatura, assim como postulados pelo projeto moderno. A primeira é editada e lançada pela
Travessa dos Editores, no estado do Paraná, e a segunda, como já dito, pela Yiyi Jambo. Para
além do que já fora dito até aqui, vale voltar os olhos sobre o texto “Portunhol selvaje”, escrito
por Diegues como pórtico à entrada de Uma flor na solapa da miséria (2007). Segundo ele:
U portunhol salbaje es la língua falada en la frontera du Brasil com u Paraguai
por la gente simples que increiblemente sobrevive de teimosia, brisa, amor al
imposible, mandioca, vento y carne de vaca. Es la lengua de las putas que de
noite vendem seus sexos en la linha de la fronteira. Brota como flor de la bosta
de las vakas. Es una lengua bizarra, transfronteriza, rupestre, feia, bella,
diferente. Pero tiene una graça salvage que impacta. Es la lengua de mia mãe
y de la mãe de mis amigos de infância. Es la lengua de mis abuelos. [...] El
portunhol salbaje es una música diferente, feita de ruídos, rimas nunca bistas,
amor, sangre, árboles, piedras, sol, ventos, fuegos, esperma. (DIEGUES,
2007, p. 3).
Este fragmento, embora curto, é por si só capaz de dar mostras do caráter babélico,
indisciplinado e transgressor que preside a construção de um fazer poético que, não bastasse
ser escrito em uma interlíngua: o portunhol, imprime nela a natureza selvática que germina
destes espaços transfronteiriços. De posse de um ímpeto constante de liberdade e
desobediência, Diegues dá materialidade a um eu lírico que flutua, aos modos de El astronauta
paraguayo - título de outra de suas obras -, delirante e louco a divagar absoluto por um mundo
que se constitui aberto, impossível de ser de todo apreendido, ou pelo menos um mundo onde
os limites só servem para ser quebrados, dilapidados, dinamitados através do riso, da ironia
ácida e do banal, elementos que dão o tom e a cor nos sonetos selvagens que aí se podem ler.
É, pois, o que pode ser, de alguma forma, evidenciado no soneto a seguir:
le gustaba escalar la planície com su muleta de alumínio
parecia un idiota cruzando la tarde sin sentido
bebia de la imundície sin problemas
porque desde crianza estaba acostumado a beber de la imundície
terrena
Sabia como convivir com la imundicie que produce el hombre.
había ainda en sus ojos un resto de brilho feliz de infância perdida
escalando la planicie de los dias
com su muleta de alumínio non precisaba más nin nombre
Parecia que había salido de algun libro de Manoel de Barros
un personagem de carne gosma esperma escama sangre osso
mystério
escalar una montanha del lado brasileiro era escalar una planície
del lado paraguayo
escalar una montanha del lado paraguayo era escalar una planície
del lado brasileiro
em ambos los lados de la frontera que implacabelmente apodrece
ninguém consigue escalar planícies tan bién como ele (DIESGUES, 2007, 10).
O texto acima se constitui como um de seus mais representativos sonetos selvagens,
publicado no livro Uma flor na solapa da miséria (2007), e selecionado por Italo Moriconi
para integrar o artigo “Poesia oo: uma mostra”, escrito para a revista Margens/Margenes de
2007. Nele Diegues constrói um eu-lírico capaz de dar vida a uma personagem errante,
atravessada pela condição fronteiriça e pelo escalar, de forma ininterrupta, “la planicie de los
dias”. Trata-se de uma personagem comum, fadada a tarefas banais e sem importância,
cruzando tardes sem sentido, num lugar-espaço esquecido e, igualmente, sem importância,
como o são, também, a passagem dos dias ali (dias plainos). Um sujeito que se assemelha às
coisas e ao espaço que o cerca, e que embora pareça ter saído de “algun libro de Manoel de
Barros”, é, também, uma personagem, “de carne gosma esperma escama sangre osso” e
“mystério”, elementos que o aproximam ainda mais da crua realidade e das coisas materiais,
mas não sem ignorar o mystério que o habita apesar da espessa camada de simplicidade que o
conforma.
Inominada, “[...] non precisaba más nin nombre”, e materializada num soneto sem
título, que inicia como se o leitor já soubesse de quem o eu lírico está falando e termina como
que em aberto, sem ao menos um ponto final, a personagem em questão funciona como um
eco. Um signo vazio capaz de ser preenchido por inúmeras outras personagens reais que, como
ela, perambulam pelos dois lados de uma fronteira inventada para recortar espaços que não
trazem em si, nenhuma marca, nenhum corte natural de interrupção e/ou de divisão,
funcionando como um contínuo que desafia todas as tentativas de delimitação de tempos, de
espaços e de corpos recortados por fronteiras imaginárias. Tais tentativas se frustram, todavia,
diante de uma personagem e de uma literatura que se constituem no apagamento, ou na tentativa
de superação de todas as fronteiras possíveis: a linguística, a geográfica, a de gênero textual e
de outras tantas fronteiras que podem aqui ser elencadas. fator que pode ser observado em todos
os níveis de composição destes sonetos selvagens, isto é, no conteúdo, na estrutura, no léxico
e, também, nos diferentes suportes por meio dos quais os mesmo ganham materialidade. Vale
atentar, por exemplo, no soneto acima citado, para a oscilação na grafia de palavras como
planície/planicie - imundície/imundicie - implacabelmente como senha para a composição de
um portunhol em sua versão selvagem. Grafias que extrapolam a escolha entre vocábulos desta
ou daquela língua envolvidas na composição de sua literatura, ficando, por exemplo, como é o
caso de implacabelmente no espaço intersticial, entre uma e outra língua, ou em nenhuma delas.
Nesse sentido, e à guisa das considerações finais, há que ressaltar que a estética do
portunhol selvagem não só se constitui a partir de um locus marginal-fronteiriço, mas, também,
se mostra consciente de seu lugar e de sua condição, igualmente marcados e atravessados pelas
inúmeras fronteiras-margens, reais e imaginárias, retirando daí o seu vigor e a força de sua
expressão poética. Deve-se ressaltar, ainda, o fato de que tais obras, e/ou a poética do portunhol
selvagem, tornam imperativa a emergência de uma teoria e de uma crítica também marginal-
fronteiriça-selvagem. Provocam não apenas o deslocamento e a reordenação do olhar crítico,
relativizando conceitos e valores há muito cristalizados, mas também, a emergência de novas
categorias e classificações capazes de abarcar um conjunto de obras, experiências literárias
e/ou textualidades contemporâneas que extrapolam as concepções normativas do estético e do
literário.
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