sobre a sática: contribuições da teoria literária alemã na década de 60

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Fragmentos,volume7nº2,p.07/27Florianópolis/jan-jun/1998 SOBRE A SÁTIRA: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA LITERÁRIA ALEMÃ NA DÉCADA DE 60 PAULO ASTOR SOETHE Universidade Federal do Paraná Introdução Dentre as discussões sobre a inserção social do discurso literário, uma vem sendo feita, mesmo que indiretamente, desde a Antigüidade Clássica: trata-se da reflexão sobre a sátira. Embora sem a perspectiva científica dos textos mais recentes, muitos dos cultores e comentadores dessa forma literária refletiram sobre o papel e responsabilidade social do literato, sobre a relação entre texto ficcional e realidade representada, sobre os próprios procedimentos de representação satírica e sobre a possibilidade de ação direta da literatura sobre a realidade. 1 Reconstituir o longo percurso histórico trilhado por essa discussão não se inclui entre as pretensões do presente artigo. Tenciona-se, sim, abordar um recorte representativo para ela, proporcionado pela teoria literária alemã na década de 60. Antes, contudo, um primeiro passo destina-se a delinear o objeto em questão.

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  • Fragmentos, volume 7 n 2, p. 07/27 Florianpolis/ jan - jun /1998 7

    SOBRE A STIRA:CONTRIBUIES DATEORIA LITERRIA ALEMNA DCADA DE 60

    PAULO ASTOR SOETHE

    Universidade Federal do Paran

    IntroduoDentre as discusses sobre a insero social do discurso literrio,

    uma vem sendo feita, mesmo que indiretamente, desde a Antigidade Clssica:trata-se da reflexo sobre a stira. Embora sem a perspectiva cientfica dostextos mais recentes, muitos dos cultores e comentadores dessa forma literriarefletiram sobre o papel e responsabilidade social do literato, sobre a relaoentre texto ficcional e realidade representada, sobre os prprios procedimentosde representao satrica e sobre a possibilidade de ao direta da literaturasobre a realidade.1

    Reconstituir o longo percurso histrico trilhado por essa discussono se inclui entre as pretenses do presente artigo. Tenciona-se, sim, abordarum recorte representativo para ela, proporcionado pela teoria literria alemna dcada de 60. Antes, contudo, um primeiro passo destina-se a delinear oobjeto em questo.

  • 8 Paulo Astor Soethe, Sobre a stira: contribuies da teoria ...

    OProteus da literatura praticamente consenso entre os tericos recentes a dificuldade de

    uma definio nica para o que seja stira. O crtico Peter Petro (PETRO,1982), por exemplo, apresenta opinies de alguns comentadores acerca dotema; bastante significativa sua observao de que muitos crticos referem-se stira como o Proteus da literatura,2 por analogia com a personagemde Homero que leva esse nome: na Odissia, Proteus um velho do marcom o poder de assumir diferentes formas quando quer escapar a perguntas.Para Leonard Feinberg, um dos citados, a stira de tal natureza que noh dois tericos que usem a mesma definio ou o mesmo composto deingredientes quando se referem a ela. Para Petro, particularmente, stiratornou-se um umbrella term, que abrange sob seu espectro de significadosvrias categorias diferentes.

    Ludger Classen antecipa essa mesma dificuldade e afirma no haverat hoje qualquer descrio abrangente e sistemtica da stira (CLAS-SEN, 1986, p. 7). Mas aponta, a despeito disso, o uso freqente e relativa-mente despreocupado do conceito para a designao de obras e procedi-mentos literrios. (id., loc. cit.)

    No muito distinta, ainda que mais abrangente e positiva, a apreci-ao de Jrgen Brummack (BRUMMACK,1971). Ele bastante claro aoafirmar que a stira no se deixa mais definir (p. 273): por um lado, aaceitao de uma definio nica no faria jus histria da forma literria;por outro, no seria possvel levar em considerao tudo aquilo que j foidenominado stira, sob pena de se comprometer a unidade terica neces-sria reflexo.

    Diferentemente de Petro e de Classen, contudo, que tm como obje-tivo central a anlise de obras em particular, Brummack prope-se a apre-sentar uma pesquisa especfica sobre o conceito e a teoria da stira. Face impossibilidade de fugir aos problemas apresentados pela abrangncia epluralidade do assunto, o terico prope-se a fazer desse dilema seu objeto.

    Sua criteriosa apresentao do percurso histrico feito pelo conceitotorna clara, entre outras coisas, a amplitude semntica do termo stira.

    (I) A palavra remete, em primeiro lugar, a um gnero histrico,definido j a partir da tradio clssica (com desdobramentos at a eramoderna) - seja pela vertente luclica (tambm denominada romana), sejapela vertente menipia (ou lucinica). Em rpidas palavras, a stira de tradioluclica caracteriza-se pela utilizao regular de hexmetros e pela finalidademoralizadora dos textos; nela o riso utilizado como meio de denncia dosvcios da humanidade. Os romanos a consideravam uma inveno sua. J atradio menipia, de origem grega, foi introduzida na literatura latina porVarro. Ele se dizia continuador do grego Menipo, que figurava comopersonagem em seus textos. Nessa tradio, h nas obras uma miscelneade diferentes metros, inclusive de prosa e verso em um mesmo texto. O riso

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    sua marca distintiva, sem assumir, no entanto, o carter exclusivamentemoralista da tradio romana.3

    (II) Em segundo lugar, o termo remete a uma determinada maneirade perceber a realidade e expresso dessa forma de percepo. Sobessa ltima perspectiva, stira pode assumir vrios significados.

    (IIa) No uso quotidiano, pode referir-se a qualquer imitao troceirae irreverente. comum, por exemplo, ouvir nos noticirios de tev quadrosdedicados stira poltica.

    (IIb) Em literatura, o termo pode referir-se a qualquer obra que pro-cure a punio ou ridicularizao de um objeto atravs da troa e da crticadireta; ou ento, a meros elementos de troa, crtica ou agresso, em obrasde qualquer tipo.

    (IIc) A partir desse ltimo significado, ainda bastante amplo, que ateoria da literatura atribui um sentido mais especfico stira, qual seja o derepresentao esttica e crtica daquilo que se considera errado (contrrio norma vigente). Isso implicaria, na obra, a inteno de atingir determinadosobjetivos sociais.

    So apresentados ainda outros significados no texto de Brummack, jem desuso:

    (III) Durante alguns sculos os termos stira e satrico serviramtambm para designar ou referir-se aos dramas satricos - peas dram-ticas semelhantes s tragdias, de origem grega e cultivadas at a pocaromana, que se caracterizavam por aproveitar detalhes grotescos das lendasantigas ou dar um tratamento grotesco a elas. Nos dramas satricos - e issoexplica a origem de seu nome - os coreutas caracterizavam-se como stiros(em grego styroi, em latim satyri).4 Assim, na verdade, o termo paradesignar especificamente drama satrico - satyra - era grafado comy, e deveria opor-se quele usado para designar a stira tal como entendidaem (I) e em (II). Havia, no entanto, para esta ltima, a coexistncia indistintadas grafias satira e satyra, o que revelava, afinal, a indefinio em tornode sua origem etimolgica.

    Mesmo hoje coexistem vrias explicaes para a origem do termoem sua acepo moderna. Uma delas liga-a aos dramas satricos daAntigidade; outras, a partir de um ponto diverso, convergem para um mesmoaspecto: a) a explicao que liga stira expresso lanx satura, porexemplo, refere-se ora a prato cheio de frutos sortidos oferecidos a Ceres,deusa das sementeiras (cf. MOISS, 1982, p. 469), ora a iguaria compostade vrios ingredientes (cf. HARVEY, 1987, p. 453); b) ao lado dessa,outra explicao baseada na expresso lex satura, refere-se a umalegislao especfica do tempo da Repblica, que abrangia ao mesmo tempomuitos temas isolados. (ARNTZEN, 1989, p. 3) A relao entre as trshipteses est em que a stira tambm seria, do ponto de vista formal, umamiscelnea, cuja variedade pode consistir nos assuntos escolhidos, ou naforma (dilogo, fbula, historieta, preceitos, versos de metros variados,combinao de verso e prosa), ou em ambos. (cf. HARVEY, loc. cit.)

  • 10 Paulo Astor Soethe, Sobre a stira: contribuies da teoria ...

    (IV) Outro dos empregos da palavra, de uso mais restrito, designoupalavras compostas construdas a partir de uma miscelnea filolgica(mixtum compositum), ou seja, vocbulos formados a partir de palavrasde diferentes origens etimolgicas.

    (V) Finalmente, um ltimo exemplo remete ainda a stira comodesignao atributiva para um gnero intermedirio qualquer. Esse sentidoestabeleceu-se por analogia com os dramas satricos, considerados porHorcio e outros comentadores um gnero intermedirio entre a tragdia ea comdia. (BRUMMACK, 1971, p. 266-267)

    De interesse deste artigo so os significados sob as rubricas (IIb) e(IIc). A stira ser abordada, portanto, como forma literria sempre realizvel,por corresponder a necessidades e possibilidades humanas permanentes,decorrentes do convvio social e da dinmica de relaes que ele estabelece.

    A stira segundo a teoria literria alem na dcada de 60Jrgen Brummack (op. cit., p. 328-330) apresenta em seu trabalho

    um breve relato sobre a situao das reflexes tericas sobre a stira nocontexto europeu. Segundo ele, a crtica especializada do sculo XVIII teriase ocupado ativamente dessa forma literria. A partir do Romantismo, po-rm, ela teria vivido um perodo de desprestgio, e em seu lugar teriam sedesenvolvido somente teorias do humor, do cmico, da ironia e do chiste.Face a essas teorias, a stira surgia como apotica e era considerada objetode segunda categoria (p. 328).

    Para Brummack, esse sculo e meio de desprestgio teria acarretadoconseqncias funestas para a correta apreciao crtica da stira. Opesquisador aponta como causa disso a apropriao que o incio do sculoXIX fizera da stira, rebaixando-a a uma forma de literatura de convenincia.Os textos publicados teriam sido bem recebidos pelo pblico leitor e integradoo patrimnio da literatura nacional; na teoria e na crtica, porm, a stirateria ficado margem, praticamente sem receber o tratamento de umaforma literria especfica, que dispusesse de problemtica, forma de in-terpretao e funo prprias (id.).

    No sculo XX, Brummack constata uma mudana dessa situao. Oforte elemento satrico presente na literatura mais recente, as mudanas noconceito de literatura e os questionamentos acerca de sua funo socialteriam despertado novamente o interesse pela stira.

    Na Alemanha, foi apenas a partir do incio dos anos 60 que a crticadedicou-se novamente aos estudos especializados sobre essa forma literria.O primeiro a reabrir as discusses e dedicar-se sua difuso foi HelmutArntzen. Durante alguns anos, segundo Brummack (op. cit., p. 329), coubea ele o papel daquele que clama no deserto.5 O prprio Arntzen explicitaseu trabalho como retomada de uma discusso interrompida:

    Desde a Aufklrung a literatura alem no produzia uma leva to abundantede textos satricos como neste sculo. Entretanto, at o presente momento

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    praticamente no se efetuou um trabalho de recepo crtica e cientficadesses textos. (ARNTZEN, 1961, p. 224)

    Ao longo dos escritos de Arntzen, percebe-se a preocupao dedeterminar as especificidades da linguagem satrica. Para tanto, propeuma interpretao singular das concepes de Friedrich Schiller sobre opoeta satrico, que no perde de vista os argumentos impostos pelasdiscusses mais recentes da teoria literria e pelo contexto scio-cultural denosso sculo.

    Para se compreender a argumentao de Arntzen, necessriorecorrer oposio schilleriana entre o poeta ingnuo e o sentimental. Emsntese, o primeiro identificado com os poetas da Antigidade, permaneceintegrado natureza e no est contaminado pela razo reflexiva; possui,portanto, uma maneira natural ou instintiva de criar. J o poeta sentimentalcaracteriza-se por um processo criativo eminentemente reflexivo, e portantomoderno; tem percepo de sua alteridade em relao natureza. SegundoMrcio Suzuki, o poeta sentimental sabe-se no mais ingnuo e puro comoa criana. Mas intui, a partir do exemplo de perfeio finita que a crianaconstitui, algo ainda mais sublime: a plenitude infinita a que o homem moraldeve aspirar.6 Por isso, nas palavras do prprio Schiller, ele sempre temde lidar com duas representaes e sensaes conflitantes, com a realidadeenquanto limite e com sua Idia enquanto infinito, e o sentimento misto quedesperta sempre testemunhar essa dupla fonte. (SCHILLER, 1991, p.64) Uma das formas de expresso desse poeta sentimental justamente aforma satrica:

    Schiller, conforme a interpretao de Arntzen, alerta para o perigo deque a stira se desqualifique ou pelo didatismo, ou pelo esteticismomeramente ldico que possa assumir. Para Schiller, tanto o elemento moralquanto o esttico precisam estar igualmente presentes. O poeta satricoprecisa evitar posies extremas e encontrar o equilbrio entre a apresentaode contradies morais - que tocam muito fundo o corao e podem por issocomprometer a liberdade dos sentimentos - e a apresentao de contradiesracionais - que interessam pouco ao corao, e que podem portanto afastaro poeta de sua ligao necessria com a natureza e o ideal.

    Para Arntzen, estas recomendaes do clssico alemo levam emconta a necessidade de que a face moral da stira esteja plenamenteintegrada sua face esttica; e de tal modo que o aspecto moral se reflitana forma esttica, e a forma se reflita no contedo moral da obra (cf.SCHILLER, op. cit., p. 65). O pesquisador volta-se definio schilleriana- segundo a qual [n]a stira, a realidade, como falta, contraposta ao Ideal,como realidade suprema - e infere da no haver stira indiferente reali-dade, j que para ela tudo igualmente significativo.

    Por isso o satirista precisa ter clara a diferena entre a realidade emprica e averdadeira realidade. Ele, no entanto, no possui a verdade, no permitemais que ela ingresse na representao sob a forma de superioridade ou deum ponto de vista que observe o mundo do alto (als Vo-

  • 12 Paulo Astor Soethe, Sobre a stira: contribuies da teoria ...

    gelschauperspektive); ele apenas constitui a contraposio [entre as duasrealidades] atravs da representao. (ARNTZEN, 1971, p. 153)

    Por si s, essa contraposio despertaria na conscincia do leitoruma realidade mais elevada, que fosse capaz de demonstrar, na prpriamultiplicidade das deficincias, o fato de no poder ser apreendida. ParaArntzen, [p]elo fato de a stira revelar que o que apenas ainda no nada, ela torna perceptvel o que poderia ser, e com isso o que seria averdadeira realidade, o concretamente real, como a histria humana nohorizonte de sua utopia. (id., p. 154)

    A admirao pela idia schilleriana de uma forma literria que seconstitui a partir da contraposio entre a realidade e o ideal marca defini-tivamente as reflexes de Arntzen. Para ele o que determina um estilo pro-priamente satrico no so apenas os recursos antigos da ironia e da pardia,do paradoxo, do chiste, da gradao e do jogo de palavras. prprio desseestilo tambm tudo o que traz em si a contradio e a negao ou o quepode auxiliar na expresso delas. (p. 159)

    Da mesma forma, ele comunga com Schiller o otimismo em relaoao homem. Para Arntzen, a prpria stira contrapartida diante do mundocontemporneo. Ele lembra, por exemplo, a impossibilidade de representaode certos horrores, referindo-se guerra moderna. Cem mil mortos algoinimaginvel, e deparar-se com tal realidade pode conduzir ao niilismo daindiferena. No entanto a stira resiste e mostra-se capaz de transformarem imagem esse horror absoluto, atravs da representao de casos isola-dos, a fim de destru-lo. Em sua nsia de destruio de um estado decoisas esttico, a stira encerra um componente de construo sempre re-novado.

    A inteno do texto satrico a destruio, mas ele mesmo, como texto, comoproduo artstica, construo; e no como jogo isolado, mas sim medidaque anuncia em sua forma de representao aquilo que deveria ser.(ARNTZEN, 1971, p. 161)

    A stira anseia, portanto, pela utopia. Mas no pela instaurao deum estado utpico em definitivo, esttico. Ao satirizar as concepes quevem a utopia como a transformao abrupta do mal em bem, a stira afir-maria a utopia como tarefa interminvel e por isso, humana (id., p. 166).Arntzen considera a stira a verdadeira histria, que no pode ser contada,porque reside ainda no futuro. (id. ib.) Ele a v como a forma literria quefala de utopia do modo mais indireto, por falar somente de um tempo que o oposto de sua realizao. Mas que o faz tambm com a maior insistncia,pois fala contra esse tempo para transform-lo e corrigi-lo.

    O pensamento desse pioneiro dos estudos contemporneos sobre aforma satrica na Alemanha, enfim, poderia ser resumido com a frase finalde seu ensaio; para ele: a stira utopia ex negativo. (id. ib.)

    Tambm Kurt Wlfel publicou no incio dos anos 60 um trabalhosobre a stira, valioso pelo levantamento histrico de recursos narrativosem textos satricos e pelas reflexes desenvolvidas a partir deles (cf.

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    WLFEL, 1960). So apresentados, por exemplo, alguns traoscaractersticos do observador satrico. Wlfel constata em textos clssicose dos sculos XVII e XVIII a presena freqente de um heri que observadistanciadamente o mundo, como palco em que flui o jogo insensato da vida,submetido temporalidade irrefrevel. Esse heri raramente interfere naao: o faz apenas quando seduzido e ludibriado pela maldade do mundo,ou porque precisa intervir em favor da correo moral em alguma situaoobservada. Pode ocorrer tambm que o narrador satrico divida sua vozentre um guia (na forma de anjo, demnio ou na personificao de algumavirtude) e um heri (que vivencia pessoalmente a narrativa). Este ltimoconstitui-se em uma figura jovial, inexperiente, carente de algum que oconduza e lhe transmita sabedoria. O guia, evidentemente, o detentor dasabedoria do prprio satirista.

    Para Wlfel, a ao desprestigiada na forma satrica. A narrativabaseia-se no desenvolvimento de descries que apresentam o mundo ignotoao heri inexperiente e nos discursos eloqentes feitos pelo guia ou comenta-dor. A stira quer, assim, alcanar a observao do mundo que julga correta,e voltar o olhar do leitor para fatos que lhe so desconhecidos ou que estoencobertos pelo manto da mentira e da hipocrisia.

    Pelo carter atento e revelador da stira, o pesquisador refere-se aela como a forma literria que desenvolveu em mais alto grau um conjuntode regras artsticas para a tcnica da perspectiva (op. cit., p. 90). Emtextos satricos, por exemplo, comum ocorrer mudanas bruscas no pontode vista assumido em relao aos objetos; o observador satrico desloca-seno espao e v no conjunto o que antes podia ver apenas parcialmente,como um pequeno detalhe. Ou defronta-se com figuras como Janus, comdois rostos que podem ser igualmente verdadeiros, dependendo do ponto deonde sejam observados.

    Tambm a alterao das propores dos mundos descritos recursofreqente em stiras e revelador de novos olhares sobre a realidade. Pode-se mencionar como exemplo a visita feita pelo protagonista das Viagens deGulliver terra dos minsculos habitantes de Lilliputt, na obra de JonathanSwift. H ainda nos textos a descrio de mquinas e instrumentos ticosfantsticos utilizados pelas personagens e que lhes permitem olhares novossobre o mundo: o espelho da verdade (que reflete a verdade sobre cadapessoa que tenha estado diante dele, no momento em que esta lhe volta ascostas) e os culos mgicos (com os quais torna-se possvel ver no apenaso espao mas tambm o tempo, desde que se esteja em um local alto) -entre outros.

    Sinal dessa importncia do olhar para o satirista a figura mitolgicade Argos, tambm chamado Panoptes. Sua imagem, a de um homem cujocorpo todo coberto por olhos, teria servido, segundo Wlfel, de emblemada corporao dos autores satricos.

    Tal questo da perspectiva do observador satrico do mundo bastante valorizada pelo pesquisador. Wlfel constata que o satirista

  • 14 Paulo Astor Soethe, Sobre a stira: contribuies da teoria ...

    tradicionalmente assume para si a perspectiva da viso do pssaro, aquelaVogelschauperspektive j mencionada acima, em citao de um dos textosde Arntzen. Essa perspectiva revela a idia de um satirista que v suasfiguras de cima, de tal modo que a localizao espacial escolhida reflita adistncia entre ele e os males do ser humano. Ou seja, o satirista assume,segundo Wlfel, a convico de sua superioridade dentro da estrutura deuma hierarquia moral.

    O sculo XIX, no entanto, ir apresentar um quadro em que as certezasde uma hierarquia moral rgida parece enfraquecer. E com isso o olhar dosatirista sobre o mundo, a perspectiva da viso do pssaro [die Vogelschau-perspektive], pode ser colocado em questo (p. 97). possvel depreenderdessa citao - pelo aposto que iguala olhar do satirista e Vogelschaupers-pektive - a principal caracterstica da stira, na opinio de Wlfel: trata-seda viso superior, adequada a uma estrutura moral rgida, que a constitui.Ainda que os textos moralizantes do incio do sculo XIX pretendam utilizarnovos recursos tcnicos com fins satricos, de resto, enchem-se os velhosodres com vinho novo (p. 96). Ou seja, teria havido transformaesprofundas nas caractersticas dos textos que se pretendiam satricos, indepen-dentemente da utilizao de recursos formais disponveis na tradio dessaforma literria. A partir do incio do Romantismo, segundo Wlfel, irprevalecer a viso do espectador sentimental do mundo, integrado e solidrioao gnero humano:

    Transformou-se decisivamente a relao entre observador e mundoobservado: ao invs de aniquilamento moral, entra em cena simpatia, aoinvs de distncia, comunicao. Intimidade substitui segregao; e ao passoque o observador da stira tinha em comum com o mundo observado apenassua espcie [a humana] (e s vezes nem mesmo esta), mas jamais seu ser, eao passo que a olhava, isso sim, de uma posio isolada, absoluta, a primeiracaracterstica do espectador sentimental justamente a identificao com osseres humanos que observa. Ele abandona a perspectiva da viso do pssaroe aborda os objetos, por assim dizer, da perspectiva do abrao. (WLFEL,op. cit., p. 97)

    Wlfel constata alteraes na forma de relacionamento entre a vozficcionalizada do literato e a realidade observada, e as v com bons olhos.Mas por restringir-se a uma nica caracterstica como elemento constituti-vo do texto satrico (a Vogelschauperspektive), deixa transparecer queem sua opinio tais transformaes comprometem a prpria existncia dastira enquanto forma literria produtiva. Seu artigo, diferentemente do deArntzen, assume um tom negativo, que parece querer anunciar a morte dastira em face da modernidade.

    Klaus Lazarowicz, por sua vez, tambm desenvolve a anlise dealguns textos satricos do sculo XVIII e formula, a partir deles, uma pro-posta de caracterizao dos traos elementares da stira (cf.LAZAROWICZ, 1963). Seu objetivo investigar se a stira pode serconsiderada de competncia da esttica. Ele pretende pr em questo aexistncia da stira autnoma, e portanto sem funo, intil do ponto de

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    vista moral e de atuao sobre a realidade (die autonome, zweck-loseSatire).

    A stira, segundo ele, atinge o estatuto de obra literria medida quelana mo de um tipo de fico prprio, a que chama mundo s avessas.Lazarowicz identifica nas obras analisadas a construo de um mundo coesoem si, cuja lei a perverso da ordem verdadeira. Isso se d de tal modoque a stira retrata direta ou indiretamente o mundo real, e ao mesmo temporepresenta o perfil dessa ordem verdadeira, ou seja, do ideal que serve aoautor satrico como parmetro de julgamento da realidade. Lazarowicz sugere,portanto, utilizar o conceito stira apenas para as obras onde for pretendidae alcanada, ao menos em princpio (mas sob qualquer hiptese, de modoclaramente identificvel) a construo artstica de um mundo s avessas.(op. cit., p. 312)

    Na opinio de Brummack (BRUMMACK, 1971, p. 339), Lazarowiczincorre no erro de generalizar o resultado de sua pesquisa. Se sua definiode stira fosse rigorosamente seguida, boa parte da produo dos autoressatricos estaria excluda. A construo do mundo s avessas apenas umentre os recursos presentes na tradio da literatura satrica, e apenas umentre aqueles disposio da produo futura. Brummack entende que osproblemas do trabalho de Lazarowicz decorrem do fato de sua anlise limitar-se a poucos exemplos, de modo que lhe falta perspectiva histrica maisampla. E tambm ao fato de o estudioso ater-se a um conceito de literaturademasiadamente restrito.

    Lazarowicz assume como fio condutor de sua reflexo o questiona-mento sobre a legitimidade da incluso da stira no rol das formas autenti-camente literrias. Sua posio de fato bastante controversa, pois parteda noo de autonomia absoluta do texto literrio, assumindo pressupostosimanentistas de modo muito pouco crtico. Brummack aponta como um dosprincipais problemas do trabalho a assimilao superficial do conceito idealistade literatura:

    Sem se dar conta, ele [Lazarowicz] reduz a esttica idealista - e da decorre apouca clareza na colocao do problema. Crtica de carter esttico significapara Lazarowicz restringir-se a um nico questionamento: ressaltar o carterdo texto literrio como obra [den Werkcharakter der Dichtung herausstellen]e perguntar-se sobre sua inteireza, coeso, coerncia interna, etc. (BRUM-MACK, op. cit., p. 340)

    Diferentemente de Arntzen, que desenvolve a partir da releitura deSchiller uma maneira prpria de entender o texto satrico, Lazarowicz atm-se a aspectos meramente formais e no leva em considerao a dinmicade relaes envolvida em sua produo e recepo. Embora admita que astira sem dvida recebe impulsos da realidade e afirme ser no mnimoprovvel que ela procure atuar sobre o real (LAZAROWICZ, op. cit., p.24), isso parece no interess-lo. Ele insiste, sim, em se diferenciar daquelesque colocam a stira no domnio da moral, e que por isso so incapazes dedizer o que ela de fato seja: ou uma obra que, como a homilia, o tratado

  • 16 Paulo Astor Soethe, Sobre a stira: contribuies da teoria ...

    moral ou o libelo poltico, se legitima sobretudo por objetivos extraliterrios,ou ento um produto literrio de forma e direito prprios. (id., grifosnossos)

    Os problemas apontados na obra de Lazarowicz no pretendem ne-gar sua importncia no quadro de revalorizao dos estudos sobre a stirana Alemanha dos anos 60. significativo, no entanto, que seus resultadosestejam condenados a apreciaes severas como a de Brummack. A crticado discurso ficcional, ainda mais daquele de carter satrico, apresenta-ocomo corpo mutilado se amputa os fatores aparentemente extraliterriosque o constituem.

    Percepo semelhante leva outro estudioso a tomar a obra de Laza-rowicz como referncia negativa. Mas tampouco as obras de Helmut Arnt-zen e de Kurt Wlfel esto livres de suas apreciaes crticas. Referimo-nos a Ulrich Gaier, autor de volumoso ensaio sobre a stira (cf. GAIER,1967).

    Gaier entende que as formas de representao da stira so capazesde imbuir-se agilmente de formas consagradas j existentes e configur-lasconforme suas necessidades. Ele considera no existir mais gnero ou formaem que a stira ainda no tenha sido escrita. Por isso, considera tambm umprocedimento infrutfero e anti-histrico a tentativa de tomar uma manifes-tao ou mtodo satrico em um tempo determinado, e procurar, a partir doexemplo isolado, estabelecer uma caracterstica que possibilitasse definir deuma vez por todas a stira como gnero. sob essa perspectiva que elecritica os trabalhos de seus antecessores. O mundo s avessas (Lazarowicz),a linguagem satrica (Arntzen) e o observador satrico do mundo (Wlfel)seriam manifestaes isoladas, generalizadas de forma indevida (GAIER,op. cit., p. 329-330, texto e notas 3 a 6). A stira por sua ligao com arealidade, no teria sido nunca abordada sem um preconceito esttico. Mesmoos crticos acima mencionados estariam preocupados primeiro em estabelecero status literrio da stira, para ento justificar o fato de se ocuparem dela.Para eles, esse status literrio implicaria a subordinao da stira a regrasinerentes linguagem e arte.

    Gaier rechaa qualquer postura estetizante e pretende ser mais prag-mtico. Estabelece dois critrios para uma definio da stira: primeiro, quese respeite a ligao com a realidade e o carter de agresso dessaforma literria; segundo, que por meio da definio seja possvel caracte-rizar as obras dos satiristas romanos como stiras, j que foram elas asobras originariamente assim denominadas.

    Para Gaier, medida que a stira se utiliza de recursos artsticos,eles no esto presentes nela enquanto tais, mas so colocados a servio daconstruo e destruio da realidade (p. 3). Da mesma forma, a stira noimplicaria a presena do ideal que garantisse a liberdade do jogo e oinfinito da substncia potica, como sugere Schiller. Tais elementos soantes frutos de uma concepo esttica especfica e mesmo identificveisem textos satricos produzidos sob sua gide. Mas marcam apenas obras do

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    perodo de vigncia dessa mesma concepo. Em realizaes satricas arcai-cas, por exemplo, ligadas a prticas de magia e a tentativas de exorcizaode divindades negativas7 , no possuam importncia nenhuma as carac-tersticas apontadas por Schiller vrios sculos mais tarde. Uma teoria abran-gente sobre a stira - e essa a preocupao de Gaier - precisa contemplartanto as obras produzidas no perodo arcaico quanto aquelas mais recentes.

    No quarto captulo de seu livro, aps apresentar a anlise das obrasde satiristas medievais e do incio da era moderna, Gaier ocupa-se em tecerconsideraes tericas e fundamentar preceitos assumidos j na introdu-o. Ele prope, para tanto, o estabelecimento de um conceito inicial a partirde exemplos retirados da histria. Esse conceito inicial de stira precisa darconta das mudanas histricas sofridas por ela, pois sem que estas sejamlevadas em considerao torna-se impossvel a definio de qualquer formaliterria. E isso vale tanto mais para a stira, que, de forma especial, reagecomo um instrumento de preciso s mudanas histricas (op. cit., p. 330).

    Embora enfatize a provisoriedade de seu conceito e a necessidade desubmet-lo sempre ao confronto com exemplos concretos, Gaier extre-mamente cuidadoso ao fazer suas proposies. Cada uma das afirmaescategricas apresentadas no captulo terico de sua obra (o quarto e ltimo)recebe fundamentao ampla e minuciosa dos pressupostos que elas impli-cam, tanto do ponto de vista histrico-literrio quanto filosfico. Na opiniode Brummack, a teoria da stira de Gaier entre todas a mais audaciosa ebem fundamentada (BRUMMACK, 1971, p. 353).

    Sua definio de stira desenvolvida em trs etapas complemen-tares: a primeira aborda as relaes entre stira e realidade; a segunda,entre linguagem e realidade; e a terceira, entre forma literria e realidade.8

    Quanto s relaes entre stira e realidade (GAIER, op. cit., cap.IV, 1, p. 329-351), os argumentos bsicos defendidos pelo crtico so osseguintes:

    a) A stira pressupe um real, que atua j antes de ser concebidodefinidamente. Atravs da voz satrica, o mesmo poder ser apreendido soba forma de uma concepo delimitada. A stira, portanto, luta em um primeiromomento contra algo que o consciente no capaz de apreender.

    b) Por ameaar a integridade e o domnio do consciente esse real sempre ameaador. A stira consiste na confrontao verbal com ele, oque se d de forma sempre indireta. Se o autor satrico obtm sucesso emrepresentar o real ameaador como um inimigo definitivo, claramente for-mulado, ele j pode considerar-se vencedor, pois transformou a essncia darealidade e a dominou.

    c) Para tornar-se capaz de enfrentar o real ameaador, o satiristaprocede sua reduo: limita-o ou define-o, por exemplo por intermdio dasindoque ou da metfora. inerente tarefa do satirista indicar que seuobjeto de ataque representante da realidade ameaadora, mais ampla.O objeto da stira, portanto, exige sua recodificao em direo realidadesuposta.

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    d) Para obter tal efeito, de forma que o olhar do leitor se volte para arealidade ameaadora, a abordagem do objeto satrico precisa serinesperada e inconstante. A alternncia de mtodos e temas tem por fimno permitir que o leitor esquea a totalidade referenciada pelo objeto. Estacaracterstica da multiplicidade e variabilidade dos procedimentos formaisj se faz presente na prpria origem da palavra (do latim satura).

    e) O leitor deve ser parte integrante da stira. O autor satricodeve entusiasmar o leitor e lev-lo a contrapor-se de forma igualmente intensa realidade ameaadora em questo.

    No que diz respeito relao entre linguagem e realidade (cap. IV, 2, p. 352-422), Gaier aprofunda a anlise dos processos lingsticos ecognitivos envolvidos na apreenso do real. (No deixa de mencionar, entre-tanto, outros recursos utilizados pela conscincia para manifestar-se, comoaes, atitudes e gestos). De forma a nosso ver bastante apropriada, o crticodispensa especial ateno relao concreta entre os indivduos e a reali-dade com que se deparam, sem jamais referir-se linguagem como ele-mento autnomo e desvinculado de quem a produz. Opondo-se noo deque a construo dos significados se d intuitivamente, como pressuporia aconcepo platnica de idia, por exemplo, Gaier procura demonstrar ocarter discursivo desse processo, como resultante da confrontao dosindivduos com a realidade.

    Para tal anlise, o crtico apresenta a distino entre quatro camposde significao9 , que ele mesmo j indicara anteriormente em seu texto (1, p. 342). Em cada um deles destacam-se formas especficas de apreensoe de confrontao com o real.

    a) O primeiro desses campos de significao engloba a realidadeligada ao desconhecido: trata-se de foras muito amplas, indefinidas emsua forma e em suas relaes, que oferecem resistncia s tentativas decompreenso a que so submetidas. Diante delas a conscincia se vameaada, j que no capaz de exercer sua funo bsica de apreensodo real. Assim, ela ora lana mo de seus recursos como meios deenfrentamento e libertao, ora limita-se mera aceitao cultual. Por suaabrangncia e por manter-se independente da conscincia e insubmissa aela, Gaier, nesse campo, atribui realidade o qualificativo substancial.

    b) Ao segundo campo de significao pertence a realidade peculiarao conhecido: a atuam decisivamente qualidades e condies passveis decomparao e ordenao. A realidade apreendida aproximada a modelospreviamente conhecidos e passa a ser vista em suas caractersticas gerais,que transcenderiam a especificidade concreta do real. A conscincia ocupa-se de submeter tal realidade, orden-la e torn-la til. Nesse campo, fala-sede uma realidade funcional.

    c) No terceiro campo, denominado amistoso, os elementos da rea-lidade so apreendidos pela conscincia atravs de relaes de dependnciaou de reciprocidade, de tal forma que sejam submetidos ordenadamente aum nico centro funcional. Face a eles, a conscincia reage para demons-

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    trar afeto ou punio, apresentar pedidos ou ordens, regulamentao oucomplacncia. Pelo carter constituinte e decisivo que a conscincia assu-me nesse campo de significao, a realidade nele chamada objetivada.

    d) O quarto campo, finalmente, compreende a realidade ligada quiloque prprio conscincia. O real apresenta-se harmnico em si mesmoe em sintonia com as condies da conscincia que procura apreend-lo.Sobre esse tipo de realidade a conscincia atua atravs da criao ou dareelaborao do que j havia criado. Por sua desconceitualizao e pelaampla abrangncia significativa que lhe conferida pela conscincia, talrealidade recebe a denominao de figural.10

    Aps discutir cada um dos quatro campos acima, Gaier destaca ofato de que a significao de um objeto no se esgota na designao que elerecebe. Pelo contrrio, pode haver, sim, em maior ou menor grau, um po-tencial de significao inexplorado, espaos vagos resultantes da discrepn-cia entre a realidade suposta e a designao atribuda a ela. So esses espa-os a serem preenchidos que conclamam o leitor ou o ouvinte a realizar asignificao.

    O material utilizado para esse preenchimento no provm do real em si, poiseste muito limitado face amplitude da designao evocada; ele provm,sim, do interior do ouvinte ou leitor, do arcabouo de suas experincias earqutipos, conhecimentos e tendncias (p. 369).

    Interessante perceber que a participao do receptor, na viso deGaier, garantida pela amplitude da linguagem, pelo potencial de signifi-cao que ela guarda em si. No h a idealizao de um real inapreensvel,maior que a linguagem. Mesmo a sensao de incapacidade momentneade apreenso do real resulta em formulao lingstica, que possibilita partilhara intuio do desconhecido. Para o crtico, portanto, a realidade sempreconcebida de modo discursivo. A apreenso do real, por partilh-losocialmente, que potencializa suas significaes. A idia de que os indi-vduos se confrontam com o real sempre em funo de agir sobre ele e deque isso se d num processo de interao tambm com outros indivduosparece constituir a todo momento o pano de fundo das reflexes de Gaier.

    Dessa forma, o indivduo que se confronta com o real - tomemos porexemplo o escritor - pode conclamar de forma mais ou menos intensa aparticipao dos leitores ou ouvintes a que se dirige. Ele pode faz-loescolhendo designaes de maior ou menor abrangncia significativa, ca-pazes de oferecer ao receptor maior ou menor possibilidade de fazer asso-ciaes ou interpretaes diversas. A atribuio de significados feita pelosreceptores, ou seja, o preenchimento dos vazios presentes na designaodada realidade suposta, que ir realizar a significao propriamente dita.

    Do mesmo modo, o escritor pode tambm orientar seus leitores atravsdo contexto em que insere o resultado de sua confrontao com o real. Ocontexto, nesse caso, constitui uma descrio da realidade suposta, queevoca ou cria determinaes adequadas a obter-se uma interpretaodefinida para ela (p. 370).

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    A utilizao dos dois recursos acima (alargamento do potencial designificao pela designao dada realidade suposta e orientao atravsdo contexto) tambm pode se dar simultaneamente. Isso ocorre, entre outros,no emprego da metonmia e da sindoque. Ao lanar mo da frmula parspro toto, por exemplo, o escritor se utiliza de uma designao que nocorresponde plenamente ao real com que se defronta. Ao mesmo tempo,sua formulao estabelece relaes e amplia o contexto em que a designaose insere. O escritor seleciona arbitrariamente uma parte do real, mutila-oem sua totalidade e apresenta-o ao leitor. O leitor, ento, levado a tomarparte no processo de significao, pois o recurso de linguagem utilizadopressupe a retransposio da designao imediata a uma realidade supostamais ampla. Para Gaier, essa forma especfica de sindoque uma dasarmas mais eficientes da stira (p. 371).

    Para tornar mais concreta a reflexo de Gaier, permitimo-nos lanarmo de um exemplo. Tomemos o uso de uma sindoque do tipo pars prototo. Da mesma forma que o autor lrico pode destacar os belos olhos azuisde sua amada para referir-se a ela, o satirista pode selecionar a barrigaexcessivamente grande de um clrigo que pretende denunciar por gula ecio. O satirista, atravs da opo pela designao jocosa dessa parteespecfica do corpo de quem ataca, pode colocar em questo no apenas apessoa atacada, mas sobretudo a incoerncia que sua figura revela, se con-sideradas as expectativas e ensinamentos da instituio que ela integra erepresenta.11 O satirista acrescenta elementos ao contexto em geral, me-dida que abre espao para a emisso de juzos de valor e evoca possveiscausas da caracterstica fsica em questo. Alm disso, lana mo de umtopos tradicional na representao satrica do clero e estabelece um di-logo intertextual que favorece sua posio. A designao escolhida - bas-tante banal e limitada - apresenta um objeto de ataque aparentemente res-trito, de fcil apreenso pela conscincia; justamente por isso, entretanto,apresenta amplos espaos vazios, que permitem ao leitor (e mesmo exigemdele) a formao de juzos de valor e mesmo reaes punitivas, decorrentesdas associaes de cunho sociolgico, tico, moral, etc. O que se caracteriza,no caso, a tentativa de desfigurao do real, sua reduo e decorrenteenfraquecimento.

    O mesmo efeito, conforme aponta Gaier, pode se dar tambm pelautilizao do grotesco, da ironia, da hiprbole e da nfase. Tanto esses re-cursos quanto a metonmia e a sindoque so necessrios para a confron-tao da conscincia face realidade ligada ao desconhecido, conforme japontado acima. O processo de reduo permite conscincia manter odistanciamento necessrio para no incorrer nem em pnico face ao amea-ador, nem em entusiasmo irracional face ao elevado e fascinante. No casoda stira, a utilizao dos recursos est predominantemente ligada ao en-frentamento do lado ameaador e negativo da realidade e predisposiopara corrigi-lo.

    Em resumo,

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    Na stira, a tarefa e o efeito dos processos lingsticos de desfiguraopossuem trs dimenses: a realidade ameaadora enfraquecida peladesfigurao e transformada pela significao; a conscincia do falanteliberta-se da ameaa a sua existncia; e o leitor ou ouvinte, pela necessidadeda recodificao, levado a efetivar em si a realidade suposta ameaadora(indicada pelo autor atravs da significao especfica), bem como a combat-la com igual intensidade. (GAIER, op. cit., p. 397)

    Outros recursos lingsticos como a comparao, a metfora e a ale-goria tambm podem integrar-se ao discurso satrico. No entanto, como noso necessariamente prprios a ele, passam a constitu-lo apenas quandoadequados a um princpio de desfigurao do real. So a capacidade deefetivar a desfigurao e o conseqente enfraquecimento do real, enfim,que constituem para Gaier a especificidade do procedimento satrico.

    O terceiro e ltimo ponto das reflexes tericas de Gaier (cap. IV, 3, p. 422-450) compreende as relaes entre forma literria e realidade.Ele retoma proposies feitas nos dois itens anteriores para demonstrar quea dico satrica se realiza nos quatro campos de significao acima propostos(desconhecido, conhecido, amistoso e prprio) e na confrontao com asquatro realidades que os mesmos compreendem (substancial, funcional, objeti-vada e figural). Essa mesma dico satrica, no entanto, encontra seu objetoltimo no confronto com a realidade substancial percebida negati-vamente, pois surge do impulso da conscincia de enfrentar uma realidadeameadora que no se deixa apreender por completo. A incurso nos outroscampos, portanto, est sempre atrelada a essa experincia de enfrentamentoe preserva os objetivos de reduo e submisso da realidade substancial.

    Para elucidar esse argumento, destacamos aqui um dos exemplosutilizados por Gaier: o uso que a dico satrica faz da exortao. O satirista,quando exorta os leitores a se prevenirem contra um comportamento qualquer,utiliza-se da combinao de dois mtodos de campos diferentes: ao mtododa instruo e legislao moral - ligado a uma realidade funcional submetidaa sistemas de dependncia, a cdigos de valorao, etc. - alia-se o mtodode distanciamento - este sim prprio do stira. O satirista afasta-se de seuobjeto de ataque, que pode se constituir em uma postura ideolgica ou umcdigo moral mais amplo, rechaando-o e abordando-o atravs docomportamento especfico que analisa. Tal combinao constitui um recursoformal bastante comum naquelas stiras em que a voz do satirista expe-semais. Seu uso ser aconselhvel ou no conforme a circunstncia histricaespecfica (rigidez moral e valores vigentes, predisposio do pblico emrelao ao objeto de ataque, credibilidade do satirista, etc.). Em caso deinadequao, o satirista expe-se ao ridculo e fracassa em sua intenosatrica, pois mesmo que sua argumentao seja impecvel, do ponto devista funcional, seu objeto ltimo, como realidade substancial, permaneceuintocado. A deciso de expor-se ou no varia de uma circunstncia histricapara outra.

    Nesse exemplo, a situao do satirista diferente daquela apresentadano exemplo dado anteriormente, da referncia ao clrigo atravs de sua

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    barriga considervel. L no havia a evidenciao direta da voz do satiristae nem a apresentao do objeto de ataque como realidade funcional. Oleitor simplesmente levado a voltar os olhos para um detalhe e eventuaisreaes e juzos de valor ficam sob sua responsabilidade. A realidadeclrigo apresentada como substancial e v-se atingida diretamente,tambm como parte de uma realidade mais ampla.

    Essa multiplicidade de recursos e de possveis combinaes formaisna stira apontada por Gaier de forma bastante conseqente. Isso ocorre medida que suas formulaes tericas buscam uma abordagem sistemticadas circunstncias histricas e das opes formais especficas a envolvidas.A prpria opo por referir-se stira como forma literria j antecipavaessa preocupao (cf. nota 8).

    Ao caracterizar a stira, portanto, Gaier distingue nela aspectos cons-tantes e a-histricos, de um lado, e aspectos variveis e histricos, de outro.

    Os primeiros, que constituem suas possibilidades atemporais, jforam quase todos mencionados at aqui. So os seguintes: a) confrontaocom um real imediato; b) percepo desse real como desconhecido e amea-ador; c) estrutura representativa do objeto satrico (ele representa umarealidade suposta mais ampla); d) recodificao do objeto satrico por partedo leitor; e) abordagem descontnua e variada do objeto, a fim de incitar oleitor recodificao; f) suposio de reaes de temor e riso por parte doleitor, capazes de engaj-lo no ataque ao objeto satrico; g) utilizao deprocessos lingsticos capazes de enfraquecer e delimitar o objeto satrico;h) criao de distanciamento do objeto satrico, quando este se apresentaimediato conscincia.

    Os mtodos empregados pelo satirista para comtemplar esses vriosaspectos, por sua vez, sofrem adaptaes ao longo do tempo e constituemos muitos aspectos variveis e histricos da forma literria.

    Para ilustrar essas adaptaes, Gaier tece alguns comentrios sobreo surgimento do romance, visto como resultado do desenvolvimento de for-mas picas j anteriormente existentes. Destaca o fato de o romance ter seconsagrado na histria da literatura no momento em que a subjetividademanifestava-se como valor dominante. A criao do universo ficcional quese pretendia autnomo s se tornou possvel a partir do momento em que oautor demonstrou-se plenamente ciente de sua prpria criao (p. 444). Oautor pico anterior ao romancista limitava-se a representar uma realidadedada, transmitida a ele pela tradio histrica: sentia-se comprometido como campo de determinao da razo, exterior a sua conscincia.12 A tradiopica j existente, portanto, teria sido conformada s experincias daconscincia individual que passava a apropriar-se funcionalmente darealidade. No romance, a apreenso do real seguiria outras prioridades:

    O ponto de vista assumido para a seleo e abordagem do mundo o valorque os episdios tm para a histria e para o interesse dos leitores. O quedetermina tal valor a conscincia do autor, que configura o mundo edetermina com isso as funes e relaes de seus elementos individuais.

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    (...) Os elementos da realidade ingressam no romance somente medida queso funcionalizados pelo literato e integrados s relaes em um sistema eem um conjunto de valores. (...) Esse mundo de iluso inteiramente fechadoem si e concebido de forma artificial, mas possui a aparncia do que se v defato. (GAIER, op. cit., p. 442-443, grifos nossos)

    Paralelamente, a stira funcionalizada ataca o real desconhecido eameaador sob a perspectiva tico-valorativa. Utiliza-se das noes de ideale de dever-ser, integra-se a um conjunto de valores que permitem delimitaro que seja moralmente condenvel, irracional, etc. Assim como o romanceno sculo XVIII pretendia criar um universo ficcional autnomo, ligado figura central do autor, tambm a stira sofre mudanas em sua forma derealizao.13

    O ataque voltado ad hominem da stira substancial alterado no sentido deque a figura contra a qual se investe assuma o carter de tipo e de quesomente figuras fictcias ou conceitos personificados sejam atacados. Emcompensao, define-se melhor o ponto de partida do ataque como um autorespecfico: a stira est baseada sobre sua personalidade, julgamento,valorao e referncias, e ele muitas vezes o nico lao de continuidadeformal e conteudstica que se apresenta na representao satricacaracteristicamente descontnua. (GAIER, op. cit., p. 446)

    Face stira produzida sob essa orientao e contexto especficos,Gaier relembra a definio proposta por Schiller: Na stira, a realidade,como falta, contraposta ao Ideal, como realidade suprema. Aqui, sim, eleadmite tal definio como adequada, mas demonstra com isso exatamentesua limitao: sua validade estende-se exclusivamente stira concebidano campo da experincia funcional de apreenso da realidade. Assim, osatrico oferece-se como possibilidade para a stira por um perodo histricodefinido, medida que adequado pela estrutura experiencial dominantenesse mesmo perodo; a estrutura experiencial substancial, no entanto, man-tm-se sempre ligada stira (p. 449).

    Gaier v como o procedimento mais adequado para o crtico literrioo estudo de obras satricas especficas, nas quais se apontem caracters-ticas prprias a cada perodo histrico, sem generalizaes apressadas quedesconsiderem a produo literria de perodos anteriores. Atravs de talpostura metacrtica, que relativiza os prprios resultados luz da histria,seria possvel atingir uma compreenso mais ampla da forma satrica e daliteratura em si, ao longo do tempo. Gaier, afinal, pretende com sua pesquisater demonstrado as limitaes da teoria esttica que havia excludo a stirada arte e da apreciao artstica por causa de sua relao com arealidade (p. 450). Ele considera tal postura historicamente condiciona-da e sem validade j para o tempo em que publicava seu trabalho.

    ConclusoAs consideraes de Helmut Arntzen, Kurt Wlfel, Klaus Lazarowicz

    e Ulrich Gaier permitem entrever tanto a complexidade das discusses quese desenvolvem a partir da stira quanto a variedade de perspectivas possveis

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    para a abordagem dessa forma literria. O avano da reflexo nos trabalhospublicados na Alemanha entre 1960 e 1967 (de Arntzen a Gaier) alerta paraos muitos elementos envolvidos na constituio do texto satrico; demonstraa importncia de se considerar os momentos de produo e recepo emque o texto se insere, de tal forma que elementos fundamentais - comoautor e inteno satrica, objeto de ataque e norma social vigente, leitor eestratgias para seu engajamento - sejam incorporados de maneirasistemtica e conseqente s anlises especficas. Esses elementosaparentemente extraliterrios so na verdade constitutivos da stira edirecionam as escolhas formais em seu processo de composio.

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    NOTAS

    1 Observe-se, por exemplo, na tradio satrica romana, o hbito cultivadodesde os tempos de Luclio: From the time of Lucilius, the satirist regularlyfelt obliged to explain his concept of his genre in a Program Satire which, inthe writings of Horace and Persius, followed the pattern set by Lucilius.Juvenal, too, faces the same problem, and he answers the potential questionof his readers in Satire 1 by covering the moral traditional themes: (1) thesuperiority of epic and the other genres of the poetry satire; (2) the styleappropriate to satire; (3) the moral responsability of the satirist. (cf.ANDERSON, 1982, p. 198)

    2 Cf. Matthew HODGART, 1969, p. 13; David WORCESTER, 1940, p. 3; LeonardFEINBERG, 1967, p. [vii]; e Ulrich GAIER, 1967, p. 329 - todos citados porPETRO, 1982, p. 5.

    3 Sobre o estabelecimento do gnero na Antigidade e para maiores detalhesna diferenciao das vertentes v. S REGO, 1989.

    4 Cf. HARVEY, 1987, p. 175-176.

    5 O primeiro texto de Arntzen de que temos conhecimento foi publicado em1960. Trata-se de um artigo sobre o estilo satrico no romance O homem semqualidades, de Robert Musil. (In: Abhandlungen zur Kunst-, Musik- undLiteraturwissenschaft, 9) Nesse mesmo ano surgiu tambm um artigo deautoria de Kurt Wlfel. O primeiro trabalho mais extenso a partilhar com o deArntzen o campo da stira na Alemanha, no entanto, de autoria de KlausLazarowicz, surgiu somente em 1963.

  • 26 Paulo Astor Soethe, Sobre a stira: contribuies da teoria ...

    6 Cf. SUZUKI, Mrcio. Apresentao. In: SCHILLER, 1991. p. 22.

    7 Explicaes antropolgicas para a origem da stira foram desenvolvidas porFred. N. ROBINSON, Mary C. RANDOLPH e Robert C. ELLIOTT (apudBRUMMACK, op. cit., p. 345). Os trs analisam prticas de magia comunsentre os povos primitivos (destinadas a matar ou ferir fisicamente osadversrios) e vem nas formulaes lingsticas desses rituais mgicos aorigem da invectiva e da stira. As evidncias encontram-se sobretudo naIrlanda. Sagas, leis arcaicas conservadas por escrito e outros documentosdemonstram o papel desempenhado pelos poetas nas comunidades primitivasdaquele pas. Eles tinham, entre outras, a tarefa de louvar ou amaldioarpessoas, e eram por isso respeitados e temidos. Decisivo para a pesquisa foia constatao de que lingisticamente as frmulas mgicas no sediferenciavam de poemas de escrnio contemporneos, escritos sem intuitossobrenaturais. Mgica e stira no se distinguiam em sua realizao formal.Gaier (op. cit., p. 433-435) remete-se ao trabalho de Elliott em seu texto e estatento origem cultual das formulaes hnicas e satricas, ao referir-se santigas procisses flicas na tica.

    8 Sugerimos aqui a traduo forma literria para o termo Schreibart. Gaieropta por falar em Schreibart e no em Gattung (gnero), porque considera,do ponto de vista histrico, que certas variaes das formas literrias soevidenciadas apenas muito casualmente atravs das denominaes degnero (op. cit., p. 422). Nota-se mais uma vez a preocupao de Gaier comestabelecer a caracterizao dos diferentes textos literrios atravs da relaoentre autor e realidade, muito mais do que atravs da forma em si, como dadofinal e autnomo.

    9 Gaier no pretende tratar do processo estrito de significao lingstica, massim da significao como conjunto de reaes identificveis na construoda realidade concebida. So sempre considerados o real em si, o indivduoque procura apreend-lo e o processo de apreenso (o contexto em queocorre e quais os procedimentos que envolve). As palavras, por exemplo,quando constituem o meio utilizado para conceber o real, caracterizam einfluenciam o objeto de que se ocupam. A significao, no entanto, envolvevrios outros aspectos (contexto, informaes prvias, etc.). Face a isso,Gaier oscila na terminologia utilizada para referir-se aos quatro campos designificao. Ora refere-se a eles como Bedeutungsbereiche, centrando-se no processo de significao em si; ora denomina-os Wirklich-keitsbereiche, privilegiando a natureza da realidade que os integra; orautiliza o termo Erfahrungsstruktur, quando pretende destacar a experinciavivida pelo indivduo que apreende a realidade.

    10 Na caracterizao desse quarto campo, Gaier aponta como sua realizaomuitos poemas modernos, caracterizados por ele atravs da seguintecitao de Paul Valry: Mes vers ont le sens quon leur prte. Celui que jeleur donne ne sajuste qu moi, et nest opposable personne. Cest uneerreur contraire la nature de la posie, et qui lui serait mme mortelle, que deprtendre qu tout pome correspond un sens vritable, unique, et conformeou identique quelque pense de lauteur.(de Commentaires de Charmes,in: VALRY, Paul. Oeuvres I, d. par Jean Hytier, Paris, 1957.

  • Fragmentos, volume 7 n 2, p. 07/27 Florianpolis/ jan - jun /1998 27

    11 Vladimir Propp (PROPP, 1992, p. 46), sobre a comicidade em figuras obesas,comenta que ela no est nem na natureza fsica das mesmas, nem na espiritual,mas sim numa correlao das duas, onde a natureza fsica pe a nu osdefeitos da natureza espiritual.

    12 Sobre o novo estatuto da subjetividade nos sculos XVIII e XIX v. LuizCOSTA LIMA, 1989, captulos I e II. A conscincia histrica demonstradapelo crtico brasileiro e por Ulrich Gaier os conduz a percepes semelhantessobre a literatura desse perodo. Decisivo para ambos o fato de a subjetivida-de libertar-se dos parmetros rgidos da razo, o que opera mudanas radicaisna prtica literria de ento.

    13 Sobre as relaes entre o romance e a stira no sculo XVIII, h um trabalhoespecfico publicado meses aps o surgimento do trabalho de Gaier por JrgSchnert (SCHNERT, 1969). No captulo II de seu trabalho (p. 8-33), Schnertapresenta algumas consideraes tericas sobre o conceito de stira, emque se destaca a sensibilidade histrica, da mesma maneira que ocorrera emGaier. Schnert tambm percebe as limitaes presentes nas obras de Arntzene Lazarowicz (p. 8-9). Sem incorrer no risco das generalizaes assumidaspor ambos, pretende oferecer com seu trabalho a anlise de textos especficos,como contribuio s reflexes poticas que a stira pode proporcionar.Supomos que o fato de Schnert no se referir a Gaier em seu trabalho deva-se a que ambos tenham produzido suas pesquisas concomitantemente, oque poderia inclusive apontar uma tendncia da crtica literria alem em finsda dcada de 60.