sobre a escrita -...

15
Sobre a Escrita de Stephen King Memorias do Of icio TRADUÇÃO: Thatyane Furtado

Upload: truongnhi

Post on 30-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Sobre a Escritade

Stephen King

Memorias do Of icio

Tradução:

Thatyane Furtado

Ficha catalográfi ca elaborada de acordo com as normas internacionais da se-gunda edição do Código de Catalogação Anglo-Americano (Anglo-American

Cataloging Rules – AACR2).

K52s King, Stephen

Sobre a Escrita: memórias do ofício/Stephen King. Tradução de Thatyane Furtado. Campinas, SP, 2015.

200 p.

1. King, Stephen, 1947. 2. Authors, American: 20thcentury: Biography. 3. King, Stephen, 1947: Authorship. 4. Horror tales: Authorship. 5. Authorship. I. Title.

Copyright © 2000 Stephen King

® Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser re-produzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer siste-ma ou banco de dados sem permissão do autor.

A honestidade é a melhor política.

— Miguel de Cervantes

Mentirosos prosperam.— Anônimo

4

Primeira apresentação

No começo dos anos noventa (pode ter sido em 1992, mas é difícil lembrar quando você está se divertindo), eu me juntei a uma banda de rock-and-roll composta principalmente por escritores. A Rock Bottom Remainders era criação de Kathi Kamen Goldmark, um publicitário editorial e músico de São Francisco. O grupo incluía Dave Barry na guitarra solo, Ridley Pearson no baixo, Barbara Kingsolver no teclado, Robert Fulghum no bandolin e eu na guitarra rítmica. Havia também um trio de “chick singers” à la Dixie Cups, composta (normalmente) por Kathi, Tad Bartimus e Amy Tan.

O grupo fora projetado como um acordo pontual – nós iríamos fazer dois shows no American Booksellers Convention, conseguir algumas risadas, recapturar nossa juventude desperdiçada por três ou quatro horas e então se-guiríamos por caminhos separados.

O que não aconteceu, pois o grupo nunca fragmentou-se completa-mente. Nós descobrimos que gostávamos demais de tocar juntos para parar, e com uma dupla de músicos “quebra-galho” no saxofone e na bateria (mais, nos primeiros dias, o nosso guru musical, Al Kooper, no coração do grupo), nós tocávamos muito bem. Você teria pagado para nos ouvir. Não muito, não como os preços do U2 ou E Street Band, mas talvez o que os veteranos cha-

5

Sobre a eScriTa

mavam de “dinheiro de estalagem”. O grupo saiu em turnê, escrevemos um livro sobre isso (minha esposa tirava as fotos e dançava sempre que o espírito a levava, o que acontecia com bastante frequência), e continuamos tocando de vez em quando, às vezes como The Remainders, às vezes como Raymond Burr’s Legs. O pessoal vem e vai – o colunista Mitch Albom substituiu Bar-bara no teclado, e Al não toca mais com o grupo porque ele e Kathi não se dão bem –, mas o núcleo permaneceu Kathi, Amy, Ridley, Dave, Mitch Al-bom e eu... além de Josh Kelly na bateria e Erasmo Paolo no saxofone.

Nós fazemos isso pela música, mas também pelo companheirismo. Nós gostamos uns dos outros, e gostamos de às vezes termos chance de con-versar sobre o nosso trabalho real, o trabalho diário que as pessoas estão sem-pre nos dizendo para não abandonar. Nós somos escritores e nunca questio-namos uns aos outros sobre onde conseguimos as nossas ideias; nós sabemos que não sabemos.

Uma noite, enquanto estávamos comendo comida chinesa antes de um show em Miami Beach, eu perguntei a Amy se havia qualquer outra per-gunta que ela nunca ouvira durante as sessões de perguntas e respostas que se seguem a quase todas as conversas de escritores – aquela pergunta que você nunca chegou a responder quando estava frente a frente com um ataque ao autor partindo de um grupo de fãs enquanto fingia não vestir sua calça uma perna de cada vez como todo mundo. Amy parou, pensou sobre isso cuidado-samente, e então disse:

— Ninguém nunca perguntou sobre a linguagem.

Eu tenho uma imensa dívida de gratidão para com ela por ter dito aquilo. Naquela época, eu vinha jogando com a ideia de escrever um peque-no livro sobre a escrita há mais ou menos um ano, mas me contive por não confiar nas minhas próprias motivações – por que eu queria escrever sobre a escrita? O que me fazia pensar que eu tinha qualquer coisa que valia a pena ser dita?

A resposta fácil é que alguém que tenha vendido tantos livros de ficção quanto eu deve ter algo que valha a pena ser dito sobre escrevê-los, mas a res-posta fácil nem sempre é a verdadeira. Coronel Sanders vendeu um inferno de

STephen King

6

frango frito, mas não tenho certeza se alguém quer saber como ele fez isso. Se eu ia ser presunçoso o suficiente a ponto de dizer às pessoas como escrever, senti que deveria ter um motivo melhor do que a minha popularidade. Colocado de outra maneira, eu não queria escrever um livro, mesmo um pequeno como este, que me fizesse sentir nem como um literário pomposo, nem como um idiota transcendental. Já existe o suficiente desses livros – e desses escritores – no mer-cado, obrigada.

Mas Amy estava certa: ninguém nunca pergunta sobre a linguagem. Eles perguntam sobre a de DeLillo e a de Uplike e a de Styron, mas nunca a de um romancista popular. Ainda assim, muitos de nós proletários também nos importamos com a linguagem, de nossa maneira humilde, e nos preo-cupamos apaixonadamente com a arte e o ofício de contar histórias no papel. O que se segue é uma tentativa de escrever, breve e simplesmente, como eu cheguei ao ofício, o que eu sei sobre isso agora, e como isso é feito. Isso é sobre o trabalho diário; é sobre a linguagem.

Este livro é dedicado a Amy Tan, que me disse de uma maneira muito simples e direta que estava tudo bem em escrever sobre isso.

7

Segunda Apresentação

Este é um livro curto porque a maioria dos livros sobre escrita está cheia de besteiras. Autores ficcionais, incluindo a presente companhia, não entendem muito sobre o que fazem – não entendem por que funciona quando é bom, nem por que não funciona quando é ruim. Eu percebi que quanto menor o livro, menor é a quantidade de besteiras.

Uma notável exceção à regra da quantidade de besteiras é The Ele-ments of Style, de William Strunk Jr. e E. B. White. Há pouca ou nenhuma besteira detectável nesse livro. (É claro que ele é curto; com oitenta e cinco páginas é muito mais curto do que este). Neste momento eu direi a você que cada aspirante a escritor deveria ler The Elements of Style. A regra 17, no capí-tulo intitulado Princípios da Composição, é “omita palavras desnecessárias”. Eu tentarei fazer isso aqui.

8

Terceira Apresentação

Uma regra da estrada, não diretamente especificada em outro lugar deste livro: “O editor está sempre certo”. O corolário é que nenhum escritor ou escritora irá acatar a todos os conselhos de seu editor ou editora; pois todos pecaram e estão aquém da perfeição editorial. Posto de outra forma, escrever é humano, editar é divino. Chuck Verrill editou este livro, assim como tantos outros romances meus. E, como de costume, Chuck, você é divino.

— Steve

C.V.

11

Terceira Apresentação

Fiquei aturdido com as memórias de Mary Karr em The Liars’ Club. Não apenas pela sua ferocidade, sua beleza e sua deliciosa compreensão da língua vernácula, mas por sua totalidade – ela é uma mulher que se lembra de tudo sobre os seus primeiros anos.

Eu não sou assim. Eu vivi uma infância estranha e imprevisível, criado por uma mãe solteira que se mudava constantemente nos meus primeiros anos, e que – eu não tenho certeza quanto a isso – pode ter terceirizado meu irmão e eu para uma de suas irmãs por algum tempo, pois ela era econômica ou emo-cionalmente incapaz de lidar conosco por um tempo. Talvez ela estivesse ape-nas perseguindo o nosso pai, que acumulara contas de todo tipo e então fugira quando eu tinha dois anos e meu irmão David, quatro. Se foi assim, ela jamais teve sucesso em encontrá-lo. Minha mãe, Nellie Ruth Pillsbury King, foi uma das primeiras mulheres liberais da América, mas não por escolha própria.

Mary Karr apresenta sua infância sob panorama quase inquebrável. A minha foi uma paisagem embaçada em que cada memória ocasional apare-ce como árvores isoladas... do tipo que te olha como se desejasse te agarrar e te comer.

Stephen King

12

O que se segue são algumas dessas memórias, além de várias ima-gens instantâneas dos poucos dias mais coerentes da minha adolescência e juventude. Isto não é uma autobiografia. É, ao invés, um tipo de curriculum vitae – minha tentativa de mostrar como um escritor é formado. Não como se faz um escritor, eu não acredito que escritores possam ser feitos, seja pelas circunstâncias nem por obstinação (ainda que eu tenha acreditado nisso um dia). O equipamento vem com a embalagem original. No entanto, isso não é de forma alguma um equipamento raro; eu acredito que um grande número de pessoas tem ao menos algum talento para escrever e contar histórias, e que esse talento pode ser fortalecido e afiado. Se eu não acreditasse nisso, escrever um livro como este seria um desperdício de tempo.

É assim que isso era para mim, só isso – um processo de crescimento desarticulado em que ambição, desejo, sorte e um pouco de talento, todos de-sempenham um papel. Não se preocupe em ler nas entrelinhas, e não procure por uma sentença mais direta. Não há linhas – apenas imagens instantâneas, em sua maioria fora de foco.

–1–

Minha memória mais antiga é de imaginar que eu era outra pessoa – imaginar que eu era, na verdade, o Menino Forte do Circo Ringling Brothers. Isso aconteceu na casa da minha tia Ethelyn e do tio Oren em Durham, Maine. Minha tia lembra-se disso claramente e diz que eu tinha dois anos e meio de idade, ou talvez três.

Eu havia encontrado um bloco de concreto em um canto da garagem e consegui pegá-lo. Então, arrastei-o lentamente pelo chão liso de cimento da garagem, mas na minha mente eu vestia um colã de pele (provavelmente pele de leopardo) e carregava o bloco de concreto pelo centro do ringue. A multi-dão estava em silêncio. Um ponto brilhante de luz branca azulada marcava o meu notável progresso. Suas faces maravilhadas contavam a história: nunca tinham visto uma criança tão incrivelmente forte. “E ele só tem dois anos!”, alguém murmurou com incredulidade.

13

Sobre a eScrita

Sem que eu soubesse, porém, vespas haviam construído um pequeno ninho na metade inferior do bloco de concreto. Uma delas, talvez irritada por ter sido realocada, voou e me picou na orelha. A dor foi eletrizante, como uma inspiração de puro veneno. Era a pior dor que eu já sentira em minha curta vida, mas só se manteve em primeiro lugar por alguns segundos. Quando soltei o bloco de concreto em cima de um dos meus pés descalços, esmagando todos os cinco dedos, esqueci completamente a vespa. Não consigo lembrar se fui levado até o médico, e nem minha tia Ethelyn se lembra disso (tio Oren, a quem o Bloco de Cimento Maléfico certamente pertencia, está morto há quase vinte anos), mas ela se lembra da picada, dos dedos esmagados e da minha reação.

— Como você gritou, Stephen! — Ela disse. — Naquele dia você certa-mente estava com a voz excelente.

–2–

Cerca de um ano depois, minha mãe, meu irmão e eu estávamos em West De Pere, Wisconsin, não sei por quê. Outra irmã da minha mãe, Cal (uma WAAC rainha da beleza durante a 2ª Guerra Mundial), morava em Wis-consin com seu alegre marido que adorava uma cerveja, e talvez a minha mãe tenha se mudado para ficar perto deles. Se foi por isso, eu não me lembro de ter visto muito os Weimers. Nenhum deles, na verdade. Minha mãe tinha um emprego, mas eu também não consigo lembrar qual era o seu trabalho. Eu gostaria de dizer que ela trabalhava em uma padaria, mas acho que isso veio depois, quando nos mudamos para Connecticut para vivermos perto de sua irmã Lois e o marido dela (sem cervejas para Fred, nem muito no quesito alegria também; ele era um pai com corte de cabelo estilo militar que tinha orgulho de dirigir seu conversível com a capota aberta, Deus sabe porquê).

Houve uma corrente de babás durante nosso período em Wisconsin. Eu não sei se elas saíam porque David e eu éramos difíceis de lidar, ou se encontraram trabalhos que pagavam melhor, ou porque minha mãe insistia em padrões elevados que elas eram incapazes de atingir; tudo que eu sei é que

Stephen King

14

houve muitas delas. A única de que me lembro com alguma clareza é Eula, ou talvez fosse Beulah. Ela era adolescente, era tão grande quanto uma casa, e ria muito. Eula-Beulah tinha um senso de humor maravilhoso, mesmo aos quatro anos eu podia reconhecer isso, mas era um senso de humor perigoso – parecia haver um potencial trovão escondido em cada tapinha, cada bunda balançante e gargalhada explosiva. Quando vejo essas sequências de câmera escondida, em que as babás da vida real de repente tomam fôlego e espancam a criança, penso nos meus dias com Eula-Beulah.

Ela era pior com meu irmão David do que comigo? Não sei. Ele não está em nenhuma dessas imagens. Além disso, ele tinha menos risco de ser pego pelos perigosos ventos do Furacão Eula-Beulah; aos seis anos, ele estava na primeira série, e consequentemente longe da gama de artilharia pela maior parte do dia.

Eula-Beulah estaria no telefone, rindo com alguém e acenando para mim. Ela me abraçaria, faria cócegas em mim, me faria rir e então, ainda rin-do, iria atingir a parte de cima da minha cabeça com força suficiente para me derrubar. Então faria cócegas em mim com seus pés descalços até que nós dois estivéssemos rindo novamente.

Eula-Beulah era propensa a peidar – do tipo que é alto e fedorento ao mesmo tempo. Às vezes, quando ela estava aflita, iria me jogar no sofá, cobrir meu rosto com a parte de trás da sua saia de lã, e soltar. “Pá!”, gritaria com grande alegria. Era como ser enterrado sob fogos de artifício de metano. Eu me lembro da escuridão, da sensação de sufocamento, e me lembro de rir. Porque, ainda que o que estava acontecendo fosse um tanto horrível, também era um tanto engraçado. De diversas formas, Eula-Beulah me preparou para a crítica literária. Depois de ter noventa quilos de pum da babá na sua cara enquanto ela gritava Pá!, The Village Voice detém poucos terrores.

Eu não sei o que aconteceu com as outras babás, mas Eula-Beulah foi demitida. Isso aconteceu por causa dos ovos. Uma manhã, Eula-Beulah me fez um ovo frito de café-da-manhã. Eu o comi e pedi outro. Eula-Beulah me fez um segundo ovo, e então perguntou se eu queria mais um. Ela tinha algo nos olhos que dizia, “Você não se atreveria a comer outro, Stevie”. Então eu pedi mais um.

15

Sobre a eScrita

E outro. E assim por diante. Parei depois de sete, acho – sete é o número que está cravado na minha mente, de forma bem clara. Talvez tenhamos ficado sem ovos. Talvez eu tenha chorado. Ou talvez Eula-Beulah tenha se assustado. Não sei, mas provavelmente foi bom que a brincadeira tenha acabado no sétimo. Sete ovos são bastante para uma criança de quatro anos.

Eu me senti bem por um tempo, e então vomitei por todo o chão. Eula-Beulah riu, passou as mãos pela minha cabeça, me empurrou para den-tro do armário e trancou a porta. Pá! Se ela tivesse me trancado no banheiro, talvez tivesse salvado seu emprego, mas ela não o fez. Por mim, eu realmente não me importava de ficar no armário. Era escuro, mas cheirava ao perfume Coty da minha mãe, e havia uma reconfortante faixa de luz que entrava por debaixo da porta.

Eu rastejei até o fundo no armário com os casacos e vestidos da mi-nha mãe roçando pelas minhas costas. Comecei a arrotar – longos e baru-lhentos arrotos que queimavam como fogo. Não me lembro de ficar doente do estômago, mas devo ter ficado, pois quando abri minha boca para deixar sair outro arroto ardente, ao invés, vomitei novamente, dessa vez sobre todos os sapatos da minha mãe. Esse foi o fim para Eula-Beulah. Quando minha mãe chegou em casa do trabalho naquele dia, a babá estava adormecida no sofá e o pequeno Stevie estava trancado no armário, adormecido com ovos fritos meio-digeridos e secos em seu cabelo.

–3–

Nossa estadia em West De Pere não foi nem longa nem bem-sucedida. Fomos despejados do nosso apartamento no terceiro andar quando um vizinho viu meu irmão, então com seis anos, rastejando pelo telhado e chamou a polícia. Eu não sei onde minha mãe estava quando isso aconteceu, nem onde estava a babá da semana. Tudo que sei é que eu estava no banheiro, com os pés des-calços no aquecedor, esperando para ver se meu irmão iria cair do telhado ou voltaria para o banheiro. Ele voltou. Agora ele tem cinquenta e cinco anos e