sobre a analítica do poder de foucault

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83 FOUCAULT UM PENSAMENTO DESCONCERTANTE Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 83-103, outubro de 1995. Sobre a analítica do poder de Foucault ANTÔNIO C. MAIA RESUMO: Compreender a forma pela qual se estruturam as relações soci- ais, em especial as relações desiguais de obediência e dominação que jus- tificam a autoridade e a natureza das obrigações políticas, tem sido uma tarefa constante do pensamento humano. Neste texto sustentamos que Mi- chel Foucault deu uma contribuição inegável a uma compreensão melhor desta ordem de fenômenos. Na primeira parte examinamos algumas das características do seu conceito de poder. Na segunda, privilegiamos um outro eixo de análise, acompanhando as transformações que este conceito sofreu ao longo dos anos 70 em sua obra. UNITERMOS: Foucault, conceito de poder, bio-poder, governamentalidade. Introdução oucos autores do cenário contemporâneo trilharam tantas áreas do saber como Foucault: da epistemologia das ciências humanas à éti- ca, da literatura à sexualidade, da loucura à punição. Mas, o estudo do poder foi o causador da maior repercussão. As suas investiga- ções, ao longo dos anos 70, em torno da problemática do poder, com suas características, táticas e estratégias o projetaram como o filósofo francês - ao lado de Jacques Derrida - de maior presença no cenário cultural alemão e anglo-saxão. Entretanto, esta parte de seu trabalho não foi objeto de uma or- “L’ouvre de Foucault se ré-encheine avec les grandes ouvres qui ont changé por nous ces que signifie penser” (Deleuze, 1986, p. 128) P Professor da Faculdade de Direito da UERJ e do Departamento de Direi- to e do curso de espe- cialização em Filosofia da PUC-RJ

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Sobre a analítica dopoder de Foucault

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MAIA, Antônio C. Sobre a analítica do poder de Foucault. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 83-103,outubro de 1995. F O U C A U LT

UM PENSAMENTODESCONCERTANTE

Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 83-103, outubro de 1995.

Sobre a analítica dopoder de Foucault

ANTÔNIO C. MAIA

RESUMO: Compreender a forma pela qual se estruturam as relações soci-

ais, em especial as relações desiguais de obediência e dominação que jus-

tificam a autoridade e a natureza das obrigações políticas, tem sido uma

tarefa constante do pensamento humano. Neste texto sustentamos que Mi-

chel Foucault deu uma contribuição inegável a uma compreensão melhor

desta ordem de fenômenos. Na primeira parte examinamos algumas das

características do seu conceito de poder. Na segunda, privilegiamos um

outro eixo de análise, acompanhando as transformações que este conceito

sofreu ao longo dos anos 70 em sua obra.

UNITERMOS:Foucault,conceito de poder,bio-poder,governamentalidade.

Introdução

oucos autores do cenário contemporâneo trilharam tantas áreas dosaber como Foucault: da epistemologia das ciências humanas à éti-ca, da literatura à sexualidade, da loucura à punição. Mas, o estudodo poder foi o causador da maior repercussão. As suas investiga-

ções, ao longo dos anos 70, em torno da problemática do poder, com suascaracterísticas, táticas e estratégias o projetaram como o filósofo francês - aolado de Jacques Derrida - de maior presença no cenário cultural alemão eanglo-saxão. Entretanto, esta parte de seu trabalho não foi objeto de uma or-

“L’ouvre de Foucault se ré-encheine avec lesgrandes ouvres qui ont changé por nous ces

que signifie penser”(Deleuze, 1986, p. 128)

PProfessor da Faculdadede Direito da UERJ e doDepartamento de Direi-to e do curso de espe-cialização em Filosofiada PUC-RJ

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ganização de suas premissas, nem de uma sistematização de seus resultados.Algumas causas podem ser apontadas para justificar esta situação.

Em primeiro lugar, a própria características das investigações deFoucault, cujas pesquisas avançaram impulsionadas por uma infatigável von-tade de saber, onde a curiosidade o levava constantemente a novos assuntos ediferentes domínios, deixando, em geral, de lado as reflexões de caráter maistipicamente metodológico. Um estilo de trabalho que demarcava certos domí-nios — por exemplo, medicina, práticas punitivas, emergência das ciênciashumanas nos séculos XVIII e XIX—, submetendo-os a um minudente exame,à luz de uma erudição excepcional, privilegiando sempre os dados empíricosobtidos em suas pesquisas de natureza histórico-filosóficas. Este privilégiodo material positivo pesquisado, as conclusões parciais à medida dos desdo-bramentos dos estudos, os instrumentos conceituais forjados a partir da análi-se do material examinado, davam o tom de um trabalho mais preocupado emsacudir as evidências e perturbar as nossas familiaridades do que em estrutu-rar uma obra sistematicamente integrada. Aliado a isto, uma desconfiança emrelação às generalizações e grandes sínteses contribuíram para uma situaçãona qual certos assuntos se encontram expostos de forma não muito articulada.Em relação à problemática do poder, estas características até aqui destacadasdo projeto de Foucault ensejaram uma reflexão — que embora original e pro-funda — não foi merecedora de nenhum grande trabalho de exposição e siste-matização1. O que se observa são inúmeras e esparsas referências, espalhadaspelos mais diversos textos: livros, cursos, conferências e entrevistas.

Este breve trabalho procura alinhavar considerações a respeito daanálise foucaultiana do poder. Tal problemática será enfocada a partir de doiseixos. Primeiramente, destacar-se-á certos traços de seu trabalho acerca destaquestão; em segundo lugar, serão acompanhadas algumas modificações e di-ferenciações expostas e explicitadas ao longo de suas investigações: poderdisciplinar, o bio-poder e a governamentalidade.

Antes ainda de iniciar a descrição de certos traços do conceito depoder, cabe destacar que Foucault não tem uma teoria geral do poder, a - his-tórica, podendo ser aplicada a todas as relações de poder existentes em socie-dade, em qualquer contexto. Ao contrário, ele não pretende fundar uma teoriageral e globalizante, e sim trabalhar uma analítica de poder capaz de dar contado seu funcionamento local, em campos e discursos específicos e em épocasdeterminadas. Como ele destaca: “O que está em jogo nas investigações quevirão a seguir é dirigirmos menos para uma ‘teoria’ do poder que para uma‘analítica’ do poder: para uma definição do domínio específico formado pelasrelações de poder e determinação dos instrumentos que permitam analisá-lo”(Foucault, 1979b, p. 80). O ponto de vista adotado pela analítica do poderassume uma reflexão com âmbito mais limitado a respeito desta problemáti-ca, evitando determinadas questões — como, por exemplo, a respeito da ori-gem do poder — e adotando uma perspectiva eminentemente descritiva, pro-curando identificar e explicitar os diferentes mecanismos, táticas e estratégias

1 A única exposiçãosis temat izada deFoucault a respeitodas suas reflexões so-bre poder se encontrano texto Sujeito e po-der (1982).

Agradeço a MárciaBernardes a ajuda queme deu na preparaçãodo texto para a publi-cação

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empregadas, bem como a forma de funcionamento, das relações de poder emsociedade. Como salienta o autor de Vigiar e punir:

“(...) o problema não é de constituir uma teoria dopoder que teria como função refazer o que umBoulainvilliers ou Rousseau queriam fazer. Todos osdois partem de um estágio originário em que todosos homens são iguais, e depois o que acontece? In-vasão histórica para um, acontecimento mítico paraoutro, mas sempre aparece a idéia de que, a partirde um momento, as pessoas não tiveram mais direi-tos e surgiu o poder. Se o objetivo for construir umateoria do poder, haverá sempre a necessidade deconsiderá-lo como algo que surgiu em um determi-nado momento, de que se deveria fazer a gênese edepois a dedução. Mas se o poder na realidade é umfeixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dú-vida mal coordenado) de relações, então o único pro-blema é munir-se de princípios de análise que per-mitam uma analítica do poder” (grifo meu) (Foucault,1979a, p. 154).

É importante observar com clareza as ambições de Foucault no to-cante às análises formuladas pela genealogia do poder. Em geral as dimensõese objetivos de sua empreitada não são corretamente apreciados por seus leito-res. Críticas aos resultados das investigações realizadas por Foucault a res-peito da problemática do poder, por vezes não estão atentas aos limites - porele reconhecidos de suas pesquisas. Quem destaca com precisão a forma detrabalho e o âmbito da reflexão de Foucault acerca do poder é Roberto Ma-chado:

“Mas é preciso ser menos geral e englobante. Por-que a análise de Foucault sobre a questão do poderé o resultado de investigações delimitadas, circuns-critas, com objetivos bem demarcados. Por isso, em-bora as vezes suas afirmações tenham uma ambiçãoenglobante, inclusive pelo tom muitas vezes pro-vocativo e polêmico que as caracteriza, é importan-te não perder de vista que se trata de análises parti-cularizadas, que não podem e não devem ser aplica-das indistintamente sobre novos objetos, fazendo-lheassim, assumir uma postura metodológica que lhesdaria universalidade” (Machado, 1979, p. XII).

A partir destas considerações e delimitado o escopo do projetofoucaultiano a respeito do poder, o primeiro traço que interessa destacar nestaanalítica é o abandono de uma visão tradicional do poder onde sua atuação sebasearia fundamentalmente em seu aspectos negativos: proibindo, censuran-

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do, interditando, reprimindo, coagindo, etc. Como ele afirma: “Já repeti cemvezes que a história dos últimos séculos da sociedade ocidental não mostravaa atuação de um poder essencialmente repressivo” (Foucault, 1979b, p. 79).Talvez esteja aí um dos aspectos mais ricos de sua análise. É difícil avaliar sefoi ele que inaugurou esta visão da problemática do poder, porém com certezapoucos enfatizaram tão tenazmente está idéia. Ora, chega a causar estranhezae se imaginarmos que as relações de poder se fundam exclusivamente em umcaráter negativo: como explicar o sucesso das inúmeras redes de dominaçãoexistentes em sociedade? Como explicar a relativa tranqüilidade do poderburguês em uma sociedade injusta e desigual, onde uma iníqua divisão debens e poder vem se perpetuando com certa facilidade? Talvez seja modifi-cando nossa percepção do fenômeno do poder que possamos entender melhoresta dinâmica. Assim, parece fazer mais sentido sustentar a seguinte posição:“o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente queele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produzcoisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (Foucault, 1979a, p. 8).

Por conseguinte, ao enfatizar o aspecto produtor do poder, Fou-cault se insurge contra uma visão do poder que o encara predominantementecomo uma expressão de uma operação que teria a forma de enunciação da leie do discurso da proibição, com toda uma série de efeitos negativos: exclusão,rejeição, ocultação, obstrução, etc. Com efeito, a partir desta perspectiva é alei da interdição e da censura que atravessa todo o corpo social - do Estado àfamília, do príncipe ao pai; dos tribunais à toda a parafernália da puniçõesquotidianas - como forma por excelência de exercício do poder. Para ele im-põe-se uma mudança neste enfoque, encarando o exercício do poder menosem termos jurídicos e de proibição e mais como técnicas e estratégias comefeitos produtivos. Como ele afirma, “Temos que deixar de descrever sempreos efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’,‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz realida-de, produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimen-to que dele se pode ter se originam nessa produção” (Foucault, 1977, p. 172).

Dentro desta perspectiva, Foucault propõe uma analítica do poderonde é abandonado o modelo legal: “É preciso construir uma analítica dopoder que não tome o Direito como modelo” (Foucault, 1979b, p. 87). Destaforma, procura-se fugir de uma tradição onde se utiliza o modelo formal ecentralizador do Direito como parâmetro à compreensão das relações de po-der, modelo este que tem se revelado insuficiente para dar conta da incessante,fluida e matizada movimentação das relações políticas e de poder. Ademais,esta concepção jurídica do poder ainda guarda influência — bem maior que acorrentemente admitida — da representação de poder estruturada quando daconsolidação dos Estados Nacionais na Europa, sob o regime monárquico.Como salienta Foucault: “No fundo, apesar das diferenças de época e de obje-tivos, a representação do poder permaneceu marcada pela monarquia. No pen-samento e na análise política ainda não cortaram a cabeça do rei” (Foucault,

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1979b, p. 86).Ao afastar-se do modelo legal - afinal o poder não é algo de que se

tenha propriedade, que se “troque” ou “venda” — Foucault aponta para umanova percepção deste fenômeno. Assim, o poder não deve ser conhecido comoalgo detido por uma classe (os dominantes) que o teria conquistado, alijandodefinitivamente a participação e a atuação dos dominados2; ao contrário, asrelações de poder presumem um enfrentamento perpétuo. Desta maneira, ofuncionamento do poder é melhor compreendido através da idéia de que seexerce por meio de estratégias e que seus efeitos não são imputáveis a umaapropriação mas a manobras táticas e técnicas. Como ele explica uma dasmais esclarecedoras passagens de Vigiar e Punir sobre a dinâmica do poder:

“Ora, o estudo desta microfísica supõe que o podernela exercido não seja concebido como uma propri-edade, mas como uma estratégia, que seus efeitos dedominação não sejam atribuídos a uma ‘apropria-ção’, mas a disposições, a manobras, a táticas, a téc-nicas, a funcionamentos; que se desvende nele antesuma rede de relações sempre tensas, sempre em ati-vidade, que um privilégio que se pudesse deter; quelhe seja dado como modelo antes a batalha perpétuaque o contrato que faz uma cessão ou uma conquistaque se apodera de um domínio. Temos, em suma, queadmitir que esse poder se exerce mais do que se pos-sui, que não é ‘privilégio’ adquirido ou conservadoda classe dominante, mas o efeito conjunto de suasposições estratégicas - efeito manifestado e às vezesreconduzido pela posição dos que são dominados”(Foucault, 1977, p. 29).

A perspectiva aberta pela analítica do poder vai impor, também,um deslocamento sensível, em relação às análises tradicionais sobre esta no-ção, no que concerne ao papel do Estado. Ora, para Foucault, “uma sociedadesem relações de poder somente pode ser uma abstração” (Foucault, 1982, p.222), isto implica que qualquer agrupamento humano vai estar semprepermeado por relações de poder, posto que a existência deste tipo de relação écoexistente à vida social. Desta perspectiva, o Estado parece perder um certoprivilégio que a análise política lhe tem garantido. Isto se dá na medida emque a instituição estatal, via de regra percebida como o foco originador dasrelações de poder, na analítica do poder vai ter seu papel redimensionado. OEstado não detém a prerrogativa de ser o centro constituidor das relações depoder. O fenômeno da dominação, com as inúmeras relações de poder que pres-supõe, preexiste ao Estado. O que se observa é que a partir da consolidação doEstado Nacional, como forma por excelência de organização política, paulati-namente com o alargamento das funções, há uma captura de focos de poder peloaparelho do Estado. Como assevera: “É certo que nas sociedades contemporâ-

2 Refutando a perspec-tiva que veria numaoposição dominantesX dominados, o eixocentral da articulaçãodas relações de poderFoucault propõe o se-guinte: “que o podervem de baixo; isto é,não há, no princípiodas relações de poder,e como matriz geral,uma oposição bináriae global entre os do-minadores e os domi-nados, dualidade querepercute de alto abaixo e sobre gruposcada vez mais restri-tos até as profundezasdo corpo social. Deve-se, ao contrário, suporque as correlações deforças múltiplas quese formam e atuamnos aparelhos de pro-dução, nas famílias,nos grupos restritos einstituições, servemde suporte a amplosefeitos de clivagemque atravessam o con-junto do corpo social.Estes formam, então,uma linha de forçageral que atravessa osafrontamentos locaise os liga entre si; evi-dentemente, em troca,procedem as redistri-buições, alinhamen-tos, homogeneizações,arranjos de série, con-vergências, dessesafrontamentos locais.As grandes domina-ções são efeitos he-gemônicos continua-mente sustentadospela intensidade des-tes afrontamentos”(Foucault, 1979b, p. 90).

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neas o Estado não é simplesmente uma das formas especificas de exercício dopoder - mesmo se for a mais importante - mas, de um certo modo, todas asformas de relações de poder devem a ele se referir. Todavia isto não se dáporque elas se derivam do Estado; mas porque as relações de poder vem sen-do paulatinamente colocadas sob o controle do Estado” (Foucault, 1982, p. 224).

A pesquisa de Foucault impõe um deslocamento em relação ao Es-tado ao identificar a existência de uma série de relações de poder na sociedadeatual que se colocam fora do Estado e que não podem de maneira alguma seranalisadas em termos de soberania, de proibição ou de imposição de uma lei.Eis que: “entre cada ponto do corpo social, entre homem e mulher, entre mem-bros de uma família, (...) entre cada um que sabe e cada um que não sabe,existem relações de poder” (Foucault, 1980a, p. 187). Tais relações, obvia-mente, não podem ser percebidas como projeções do poder do Estado. Darconta destas relações é uma das preocupações desta analítica, pois sem entendê-las dificilmente se poderá alterar efetivamente o jogo do poder na sociedade.Mas não se negligencia o papel do Estado, apenas este papel é deslocado emrelação às análises tradicionais. Como esclarece:

“Situar o problema em termos de Estado significacontinuar situando-o em termos de soberano e sobe-rania, o que quer dizer, em termos do Direito. Des-crever todos esses fenômenos do poder como depen-dentes do aparato estatal significa compreendê-loscomo essencialmente repressivos: o exército comopoder de morte, polícia e justiça como instânciaspunitivas, etc. Eu não quero dizer que o Estado não éimportante; o que quero dizer é que as relações depoder, e, conseqüentemente, sua análise se estendemalém dos limites do Estado. Em dois sentidos: em pri-meiro lugar porque o Estado, com toda a onipotên-cia do seu aparato, está longe de ser capaz de ocu-par todo o campo de reais relações de poder, e prin-cipalmente porque o Estado apenas pode operar combase em outras relações de poder já existentes. OEstado é a superestrutura em relação a toda umasérie de redes de poder que investem o corpo, sexua-lidade, família, parentesco, conhecimento, tecnolo-gia e etc.” (grifo meu) (Foucault, 1980a, p. 122).

Um segundo aspecto, ainda em relação ao Estado, reside no fato doabandono de qualquer modelo centralizador. Ou seja, o poder não deve serpensado como fundamentalmente emanado de um ponto (em geral, identifica-do com o Estado). Deve-se ter, pois, em mente, na procura de uma compreen-são da dinâmica das relações de poder, a idéia de uma rede. Rede esta quepermeia todo o corpo social, articulando e integrando os diferentes focos depoder (Estado, escola, prisão, hospital, asilo, família, fábrica, vila operária

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etc.) que se apóiam uns nos outros.Ao lado deste deslocamento da análise tradicional, é estabelecido

também um dos princípios da analítica do poder: “o poder é um feixe de rela-ções mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado” (Foucault,1979a, p. 248). Com efeito, esta assertiva conduz a uma forma diferente deperceber o poder, pois através deste modelo relacional abre-se a possibilidadede compreender com mais acuidade a dinâmica, fragmentada, móvel e, às ve-zes contraditória, do poder em funcionamento na sociedade. Ora, dentro destaperspectiva o poder só pode ser concebido como algo que existe em relação,envolvendo forças que se chocam e se contrapõe. Deve-se frisar esta caracte-rística pois ela é absolutamente essencial à compreensão foucaultiana de po-der. Afinal, “o poder é uma relação de forças ou antes, toda relação de força éuma ‘relação de poder’” (Deleuze, 1986, p. 77). A partir desta idéia temos umdos princípios da analítica do poder: deve se ter sempre em mente o reconhe-cimento de uma pluralidade de correlações de forças3 - constitutivas das rela-ções de poder - que atravessam todo o corpo social. Assim, este aspecto rela-cional informa toda a perspectiva foucaultiana, como ele explica:

“O que caracteriza o poder que estamos analisandoé que traz à ação relações entre indivíduos (ou entregrupos). Para não nos deixar enganar; só podemosfalar de estruturas ou de mecanismo de poder namedida em que supomos que certas pessoas exercempoder sobre outras. O termo ‘poder’ designa relaci-onamentos entre parceiros (e com isto não mencionoum jogo de soma zero, mas simplesmente, e por orame referindo em termos mais gerais, a um conjuntode ações que induzem a outras ações, seguindo-seuma às outras)” (Foucault, 1982, p. 217).

É dentro dessa natureza relacional, inerente ao funcionamento dopoder, que as relações se encontram menos envolvidas em confronto face - à -face, que possivelmente paralisaria ambos os lados imersos em um antagonis-mo constante. Há nas relações de poder um enfrentamento constante e perpé-tuo. Como corolário desta idéia teremos que estas relações não se dão ondenão haja liberdade. Na definição de Focault a existência de liberdade, garan-tindo a possibilidade de reação por parte daqueles sobre os quais o poder éexercido, apresenta-se como fundamental. Não há poder sem liberdade e sempotencial de revolta. As relações de poder não são relações de constrangimen-to físico absoluto (logo a escravidão ou relação com um homem acorrentadonão caracteriza uma relação de poder). Como ele explicita:

“O poder é exercido somente sobre sujeitos livres eapenas enquanto são livres. Por isto, nós nos referi-mos a sujeitos individuais ou coletivos que são en-carados sob um leque de possibilidades no qual inú-meros modos de agir, inúmeras reações e comporta-

3 Como destaca Foucaultem uma das páginasmais esclare-cedorassobre este assunto:“Parece-me que sedeve compreender opoder, primeiro comouma multiplicidadede correlações de for-ça imanentes ao do-mínio onde se exer-cem e constitutivas desua organização; ojogo que, através delutas e afrontamentosincessantes as trans-forma, reforça, inver-te; os apoios que taiscorrelações de forçaencontram uma nasoutras, formando ca-deias ou sistemas ou,ao contrário, as defa-sagens e contradiçõesque as isolam entre si;enfim, as estratégiasem que se originam ecujo esboço geral oucristalização instituci-onal toma corpo nosaparelhos estatais, naformulação da lei, nashegemonias sociais”(1979b, p. 88).

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mentos observados podem ser obtidos. Onde os fato-res determinantes saturam o todo não há relação depoder; escravidão não é uma relação de poder poiso homem está acorrentado (Neste caso fala-se de umarelação de constrangimento físico). Conseqüentemen-te, não há confrontação face a face entre poder e li-berdade, que são mutuamente excludentes (a liber-dade desapareceria sempre que o poder fosse exer-cido), mas uma interação muito mais complicada.Nessa relação, a liberdade pode aparecer como con-dição para exercício do poder (simultaneamente suapré-condição, já que a liberdade precisa existir parao ‘poder’ ser exercido e, também, seu apoio uma vezque sem a possibilidade de resistência, o poder seriaequivalente à determinação física)” (Foucault, 1982,p. 221).

Um outro aspecto interessante reside no papel desempenhado pelaviolência nesta concepção de poder. Sem descartar a importância da utiliza-ção do recurso à violência por aqueles que exercem o poder — não esquecen-do que o que se oferece à análise são as relações de poder — Foucault vaiafirmar que a violência pode ser um instrumento utilizado nas relações depoder mas não um princípio básico da sua natureza4. A atuação do poder se dáde formas muito mais sutis, não se exercendo basicamente em aspectos nega-tivos — o poder reprime, obstaculiza, etc., ou através da violência física. Di-ferentemente, o poder tem um aspecto produtivo fundamental. Deste modo, oexercício do poder deve ser compreendido como uma maneira pela qual certasações podem estruturar o campo de outras possíveis ações. Como afirma:

“Em si mesmo o poder não é violência nem consenti-mento o que, implicitamente, é renovável. Ele é umaestrutura de ações; ele induz, incita, seduz, facilitaou dificulta; ao extremo, ele constrange ou, entre-tanto, é sempre um modo de agir ou ser capaz deações. Um conjunto de ações sobre outras ações”(Foucault, 1982, p. 220).

Assim, as relações de poder se dão em um campo aberto de possibi-lidades onde, embora constate-se o fato de encontrar-se todo o tecido socialimerso em uma ampla rede de relações de poder, não temos como corolário aexistência de um poder onipresente, esquadrinhando todos os recantos da vidaem sociedade levando a uma situação na qual não haveria espaço a resistênci-as e alternativas de transformação. A capacidade de recalcitrar, de se insurgir,de se rebelar e resistir são elementos constitutivos da própria definição depoder. Desta forma, “digo simplesmente: a partir do momento em que há umarelação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisio-nados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições

4 Este aspecto do con-ceito de poder deFoucault se encontraexplicitado em Thesubject and power(1982, p. 220), textofundamental à com-preensão desta noção.Como esclareceFoucault: “Quer istodizer que se deve pro-curar o caráter própriopara as relações depoder na violência,que deve ter sido suaforma primitiva, seusegredo permanente eseu último recurso,que em sua análise fi-nal, aparece como suanatureza real quandoela é forçada a tirarsua máscara e mos-trar-se como realmen-te é? De fato, o quedefine uma relação depoder é que ela é ummodo de agir que nãoatua direta e imedia-tamente sobre os ou-tros. Ao invés, eleatua sobre suas ações:uma ação sobre outraação, sobre açõesexistentes ou sobreaquelas que podemsurgir no presente e nofuturo. Uma relaçãode violência age sobreum corpo ou sobrecoisas; ela força, do-bra, destrói ou fechaa porta a todas as pos-sibilidades. O seupólo oposto pode serapenas a passividadee, ao se deparar comqualquer resistência,sua única opção é ten-tar minimizá-la. Poroutro lado, uma rela-ção de poder somentepode ser articuladacom base em dois ele-mentos que são indis-pensáveis tratando-serealmente de uma re-lação de poder: que o‘outro’ (aquele sobrequem o poder vai serexercido) seja plena-

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determinadas e segundo uma estratégia precisa” (Foucault, 1979a, p. 241).Novamente nos deparamos com um ponto fundamental da analítica do poder.Importa observar o seguinte: a possibilidade de resistência se apresenta emmúltiplos focos (da mesma maneira que o poder funciona a partir de umamultiplicidade de pontos no tecido social). Como afirma:

“que lá onde há poder há resistência e, no entanto(ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontraem posição de exterioridade (...) Não existe, com res-peito ao poder, um lugar da grande recusa - alma darevolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revo-lucionário. Mas sim, resistências no plural, que sãocasos únicos: possíveis, necessárias, improváveis,espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, ar-rastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao com-promisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; pordefinição não podem existir a não ser no campo es-tratégicos das relações de poder. (...) Elas não são ooutro termo nas relações de poder; inscrevem-se nes-tas relações como interlocutor irredutível” (Foucault1979b, p. 91).

Um outro aspecto capital da analítica do poder é a adoção do mode-lo da guerra à inteligibilidade das relações de poder. Assim, “o poder é guerra,guerra prolongada por outros meios” (Foucault, 1979a, p. 176). É em termosde confronto e de combate com suas táticas e estratégias, onde se tem “porprincípio cumular vantagens e multiplicar benefícios” (Foucault, 1980, p. 37),que melhor podemos compreender o modo pelo qual se desdobra e articula aextensa rede de poder que atravessa o corpo social. A base das relações depoder seria o confronto belicoso das forças sociais em antagonismo constan-te, já que tais relações implicam pelos próprios princípios teóricos desta no-ção (como já brevemente descrito nos parágrafos anteriores) uma rebeldia einsurgência constantes por parte daqueles que estão submetidos às relaçõesde poder.

Foucault ao utilizar-se do paradigma da guerra tenta escapar dasinsuficiências da análise tradicional do poder, onde em geral, a reflexão se dáem termos de Direito e soberania5, como já destacado anteriormente, os quais,via de regra, caíam numa perspectiva onde o poder se exerceria basicamenteatravés de aspectos negativos - proíbe, obstaculiza, constrange, etc. - e sob aforma da lei. A utilização deste modelo se inscreve na preocupação de Fou-cault de desenvolver o instrumental teórico necessário à uma nova análise dopoder. Ele constata e afirma a inexistência de ferramentas conceituais aptas acompreender a dinâmica das relações de poder6. Esclareça-se, entretanto, queFoucault não se coloca na posição de descobridor do modelo da guerra comoforma de inteligibilidade das relações sociais e de poder e, ainda mais, ele nãodeixa de mencionar a sua constante utilização — talvez a hipótese mais fre-

mente reconhecido emantido até o fimcomo uma pessoa queage; e que, em face deuma relação de poder,todo um campo derespostas, reações, re-sultados, e possíveisinvenções seja aberto.

5 Como indica Foucault“Para levar a cabo aanálise concreta dasrelações de poder,deve-se abandonar omodelo jurídico da so-berania. Com efeito,este modelo pressu-põe o indivíduo comosujeito de direitos na-turais ou poderes pri-mitivos; ele se colocacomo objetivo de darconta da gênese idealdo Estado; enfim, elefaz da lei a manifes-tação fundamental dopoder” (1974-82, cur-so 75/76, p. 361).

6 Em passagem escla-recedora Foucault co-menta este ponto:“(...) parece-me que ahistória e teoria eco-nômica forneceram(um bom) instrumen-to para as relações deprodução; que a lin-guística e a semióticaofereceram instru-mentos para o estudodas relações de signi-ficação; mas para asrelações de poder nãohá instrumentos paraestudar. Nós temosrecorrido somente amaneiras sobre o po-der baseadas em mo-delos legais, isto é: Oque legitima o poder?Ou então recorremosao modo de pensar ba-seados nos modelosinstitucionais, isto é:O que é Estado?” (gri-fos meus) (Foucault,1982. p. 209).

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qüente quando se procurou evitar o modelo legal —, todavia, ele critica a máutilização deste modelo, apontando para a necessidade de um desenvolvimen-to deste tipo de análise. Neste sentido:

“O que me parece certo é que, para analisar as rela-ções de poder, só dispomos de dois modelos: o que oDireito nos propõe (poder como lei, proibição, insti-tuição) e o modelo guerreiro ou estratégico em ter-mos de relações de forças. O primeiro foi muito utili-zado e mostrou, acho eu, ser inadequado: sabemosque o Direito não descreve o poder. O outro sei bemque também é muito usado. Mas fica nas palavras:utilizam-se noções pré-fabricadas ou metáforas(‘guerra de todos contra todos’, ‘luta pela vida’) ouainda esquemas formais (as estratégias estão emmoda entre alguns sociólogos e economistas, sobre-tudo americanos). Penso que seria necessário tentaraprimorar esta análise das relações de força”(Foucault, 1979a, p. 241).

Enfim, nesta primeira parte, foram destacadas algumas das carac-terísticas da concepção de Foucault a respeito do poder. Certamente um as-sunto como este poderia ser tratado de forma mais detalhada e exaustiva. Aquifoi merecedor apenas de uma primeira abordagem. Na segunda parte desteartigo o enfoque será distinto, procurando descrever algumas modificaçõesobservadas ao longo dos anos 70 nas investigações de Foucault.

O deslocamento da noção de poder em Michel Foucault

Nesta segunda parte a análise se dará em outro eixo, privilegiandoa dimensão temporal. Ao discutirmos alguns outros aspectos da noção de po-der de Foucault, ficará patente que certas preocupações estarão mais presen-tes em um ou outro momento da pesquisa genealógica. Assim, nossas consi-derações referir-se-ão a certas características desta discussão relacionadas aosperíodos onde se encontram mais enfatizadas. Por exemplo, segundo a nossaanálise, a questão do poder disciplinar se apresentará como absolutamentecentral de 1973 a 1975, já a discussão sobre a governabilidade será destacadaa partir de 1978 e, quanto ao bio-poder, sua problematização recairá no perío-do de 76/77. Ao acompanhar a trajetória da temática do poder ao longo dosanos 70, observando a maneira como certos aspectos serão ressaltados em umperíodo, para posteriormente cederem lugar a uma discussão um pouco distin-ta, nos parece que podemos afirmar a existência de um deslocamento na no-ção de poder de Foucault.

Ora, antes mesmo de iniciarmos a análise desta segunda parte, ondeprocuraremos detalhar este deslocamento da noção de poder — em especial apassagem para a questão da governamentalidade — poderíamos afirmar quetalvez este deslocamento seja quase um corolário da forma de Foucault traba-

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lhar. Durante toda a sua carreira ficou claro um estilo onde as pesquisas, comos conseqüentes desdobramos teóricos, avançam ao sabor do material empíricotrabalhado, animadas por uma infatigável curiosidade. Esta marca do métodode Foucault explica o caráter, em certo sentido, deslizante de seu trabalho.Ademais, as sucessivas transformações na sua obra ficam justificadas a partirde um dos cuidados principais de todo o seu trajeto filosófico, sintetizado emuma das suas últimas entrevistas: “São as coisas gerais que surgem em últimolugar. É o preço e a recompensa de todo o trabalho em que as peças teóricas seelaboram a partir de um certo domínio empírico” (Foucault, 1977, p. 76).

Por outro lado, este deslocamento/modificação no percurso de Fou-cault no tocante à questão de poder pode ser encarado como um progressivoaperfeiçoamento do arsenal teórico a partir dos domínios empíricos trabalha-dos. Ou melhor, na medida em que Foucault ia se aprofundando nas pesquisasem torno das formas pelas quais, na Civilização Ocidental, se estruturam asdiversas práticas (e as instituições que lhe eram e são correlatas) que veiculame fazem funcionar as relações de poder, foi paulatinamente desenvolvendodiferentes categorias, para dar conta do material analisado. Como destacadono parágrafo anterior, no trabalho de Foucault não há uma intuição primeiraque o analista procura comprovar através dos exemplo oriundos de sua inter-pretação histórica. Para Foucault, o dado empírico impõe a sua positividade,obrigando a uma posterior conceitualização que acompanhe sempre os avan-ços da pesquisa. Neste sentido, ao mapearmos os desdobramentos de seu tra-balho ao longo dos anos 70, destacaremos as diversas categorias utilizadaspara identificar e entender a dinâmica do funcionamento do poder. Assim,poder disciplinar, bio-poder, governamentalidade, etc., são diferentes tecnolo-gias de poder postas em funcionamento - às vezes com hegemonia de uma,mas em geral coexistindo em complexos arranjos na sociedade ocidental apartir do século XVI.

O bio-poder (poder disciplinar e bio-política)

A preocupação com a identificação e análise do processo pelo qualse dá a tomada do poder sobre os corpos, na sociedade ocidental, ocupará ocentro das pesquisas de Foucault a partir de 1972/73. A sua analítica procura-rá retraçar a trajetória das diversas tecnologias de poder que se desenvolve-ram no Ocidente a partir do final do século XVI até constituírem a sofisticadaestrutura de poder que envolve o homem contemporâneo. Estes diversos pro-cessos que acarretaram uma progressiva organização da vida social, atravésde meticulosos rituais de poder que tem como objetivo o corpo, se deramatravés do que Foucault caracterizou como bio-poder. O estudo desta proble-mática se encontrará privilegiado nos dois livros de Foucault dos anos 70,Vigiar e punir e a Vontade de saber cumprindo um dos projetos avançados notexto programático desta fase do seu trabalho: Nietzsche, a genealogia e ahistória. Desta forma, “A genealogia (...) está portanto no ponto de articula-ção do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado,

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e a história arruinando o corpo” (Foucault, 1979a, p. 22).Como Foucault afirma no início de Vigiar e punir: “(...) o corpo

também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de po-der têm alcance imediato sobre eles; elas o investem, o marcam, o dirigem, osupliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe si-nais” (Foucault, 1977, p. 28). Por conseguinte, devemos ter em mente que agenealogia do poder terá o corpo como um objeto privilegiado de análise epreocupação. Quem destaca esta questão é François Ewald, no texto que apre-senta a discussão mais profunda sobre Vigiar e punir, Anatomie et corpspolitique:

“A genealogia é física e microfísica do poder. Se eladescobre os corpos de poder, ela os vê sempre apli-cados sobre outros corpos. Sobre o que um corpopoderia agir senão sobre um outro corpo? Agenealogia adota o ponto de vista dos corpos, aque-le do supliciado, adestrado, marcado, mutilado, de-composto, obrigado, constrangido; aquele dos cor-pos que se repartem, que se separam e que se reú-nem. A lei de exercício do poder é aquela do corpo acorpo, de corpos que se aplicam sobre outros corpospara educá-los, fabricá-los; de corpos que resistema esta aplicação. A genealogia descreveu os efeitos:produção de almas, produção de idéias, de saber, demoral, ou seja, produção de poder que se reconduzsobre outras formas. O poder é ao mesmo tempo cau-sa e efeito” (Ewald, 1975, p. 1237).

A atuação do poder sobre os corpos que Foucault chamara de bio-poder tem que ser percebida nas suas especificidades. Vale dizer, sob estadenominação, Foucault designará principalmente dois níveis de exercício dopoder: de um lado, as técnicas que têm como objetivo um treinamento “orto-pédico” dos corpos, as disciplinas e o poder disciplinar; de outro lado, o corpoentendido como pertencente a uma espécie (a população) com suas leis e re-gularidades. O primeiro nível de análise se encontra tratado predominante-mente em Vigiar e punir, quanto ao outro, na Vontade de saber, veremosesboçados os princípios desta análise, que posteriormente serão retomadosnos Cursos do Collège de France de 77/78. Estes dois planos trabalhados naanalítica do poder são destacados por Pasquale Pasquino e Alexandre Fontananuma questão endereçada a Foucault na entrevista Verdade e poder:

“Ter-se-ia, por um lado, uma espécie de corpo glo-bal, molar, o corpo da população, junto com todauma série de discursos que lhe concernem e, então,por outro lado e abaixo, os pequenos corpos, dóceis,corpos individuais, os micro corpos da disciplina.Mesmo que se esteja no início de pesquisas neste

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ponto, poder-se-ia dizer como se vê a natureza dasrelações (caso existentes) as quais são engendradasentre estes diferentes corpos: o corpo molar da po-pulação e os micro-corpos dos indivíduos” (Foucault,1980a, p. 124).

Acreditamos que a identificação destes dois níveis — corpo molarda população e microcorpo dos indivíduos, como denominam Fontana ePaquino — marque também uma modificação no tratamento de Foucault notocante ao poder. Observa-se que, embora estas tecnologias de poder estejamprofundamente articuladas e entrelaçadas no mundo contemporâneo, além deterem origens distintas, elas vão sendo paulatinamente identificadas ao longodo trabalho de Foucault nos anos 70. Assim, do momento em que o corpopassa a assumir posição de relevo no seu trabalho, em 73, até a publicação deVigiar e punir em 75, o destaque residirá no poder disciplinar. A partir dapublicação da Vontade de saber em 76, abrir-se-á uma outra área de pesquisa,focalizando o corpo molar da população. Neste momento, Foucault fala dabio-política ou do bio-poder. Posteriormente este último termo será emprega-da em um sentido mais amplo, dando conta também do poder disciplinar,posto que em ambos os casos o objeto de atuação do poder é o corpo e a vidahumana (se bem que atingidos de maneira distintas). Assim, de agora em di-ante faremos neste trabalho uma pequena subdivisão: primeiramente, algu-mas observações sobre o poder disciplinar, para depois nos determos nos as-pectos da atuação do poder sobre a população. Esclareça-se que quanto a estesegundo aspecto nos referimos a ele como bio-poder, observando a terminolo-gia empregada na Vontade de saber - texto fundamental à discussão desteparticular, apesar do já exposto anteriormente quanto à utilização posteriormais ampla desta categoria.

Ao constatar que “houve, durante a época clássica, uma descobertado corpo como objeto e alvo do poder” (Foucault, 1977, p. 125). Foucaultprocurou identificar as formas e procedimentos múltiplos pelos quais se deuesta “ocupação” dos corpos pelo poder. Por conseguinte, a constituição de umarsenal teórico que possibilitasse a análise e, também, a identificação do nívelonde se dá este encontro poder/corpos7 marcará as preocupações de Foucault,especialmente no fim de 73, em 74, e tratado com mais detalhe em Vigiar epunir. O que o interessará, entre outras coisa, será destacar que mecanismos,táticas e dispositivos serão progressivamente utilizados pelo poder na épocaclássica e como alguns destes mecanismos, com certas transformações, per-maneceram até os nossos dias, integrando a enorme parafernália do poder queenvolve a sociedade contemporânea. Entre estes mecanismos se encontram asdisciplinas, isto é, “Esses métodos que permitem o controle minucioso dasoperações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhesimpõe uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1977, p. 126).

O que observa Foucault é que a partir do fim do século XVII, aolongo do século XVIII e especialmente no início do século XIX, desenvolveu-

7 No tocante a este as-pecto, e apontandopara este nível de aná-lise, que obrigaria aconstrução de uma fí-sica do poder, desta-ca Foucault: “A trans-formação da penalida-de não depende ape-nas de história doscorpos, porém, maisprecisamente, de umahistória das relaçõesentre o poder políticoe os corpos. A coerçãosobre o corpo, o seucontrole, seu assu-jeitamento, a maneirapela qual ela os dobra,os fixa, os utiliza estáno princípio da mu-dança estudada. Serianecessário escreveruma ‘Física’ do poder,e mostrar quanto elafoi modificada em re-lação a suas formas an-teriores, no começo doséculo XIX, quando dodesenvolvimento dasestruturas estatais”(citado em Marietti,1977).

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se e estruturou-se toda uma nova tecnologia de aproveitamento/utilização daforça dos corpos. Tal tecnologia se organizará basicamente em torno da disci-plina, isto é, “o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com omínimo de ônus reduzida como força política, e maximizada como força útil”(Foucault, 1977, p. 194). Ligada aos imperativos econômicos e políticos deuma nova ordem que se impunha8, as disciplinas - técnicas já conhecidas nacivilização ocidental9, como por exemplo nos conventos, nas oficinas e naslegiões romanas - passam a ser utilizadas maciçamente. Fábricas, escolas,hospitais, hospícios, prisões, etc., instituições fundamentais ao funcionamen-to da sociedade industrial capitalista, se estruturaram e tem como lógica defuncionamento as técnicas e táticas oriundas deste processo de disci-plinarização. Por conseguinte, fica claro que nesta conjuntura se articula umanova relação entre o poder e os corpos, como ele explica:

“O momento histórico das disciplinas é o momentoem que nasce uma arte do corpo humano, que visanão unicamente ao aumento de suas habilidades, nemtampouco aprofundar sua sujeição, mas a formaçãode uma relação que no mesmo mecanismo o tornatanto mais obediente quanto mais útil, e inversamen-te. Formam-se então uma política das coerções quesão um trabalho sobre o corpo, uma manipulaçãocalculada de seus elementos, de seus gestos, de seuscomportamentos. O corpo humano entra numa ma-quinaria de poder que o esquadrinha, o desarticulae o recompõe. Uma “anatomia-política”: que é tam-bém igualmente uma mecânica do poder, está nas-cendo (...) A disciplina fabrica assim corpos submis-sos, exercitados, corpos ‘dóceis’” (Foucault, 1977,p. 127).

Neste momento de sua obra, há o privilégio da análise das técnicasde poder que se centram no corpo; como que tratando-o como máquina, ades-trando-o, amplificando a sua utilização, aperfeiçoando a extração do traba-lho, integrando-o ao novo circuito da produção instaurado a partir do séculoXVIII. Neste sentido as análises de Vigiar e punir, em especial ao destacar aquestão do panoptismo, isto é: “o princípio geral de uma nova ‘anatomia-política’, cujo objeto e fim não são as relações de soberania mas as relaçõesde disciplina” (Foucault, 1977, p. 183) marcam a emergência de uma novaforma de atuação do poder sobre os corpos: o poder disciplinar. O panópticorepresenta o modelo por excelência - utilizado nas prisões, fábricas, escolas,hospitais, etc. - desta tecnologia de poder que se impõe ao longo do séculoXIX, que tem “por pura função impor uma tarefa ou uma conduta qualquer auma multiplicidade de indivíduos, desde que ela seja pouco numerosa e oespaço limitado, pouco extenso” (Deleuze, 1986, p. 79).

A atuação do poder disciplinar apresenta aspectos distintos da ma-

8 Em relação a esta novarealidade político-econômica que de-mandava a utilizaçãodas tecnologia disci-plinar. “EsclareceFoucault:” Esse triploobjetivo da disciplinaresponde a uma con-juntura histórica bemconhecida. É por umlado a grande explo-são demográfica doséculo XVIII: aumen-to da população flutu-ante, (fixar é um dosprimeiros objetivos dadisciplina; é um pro-cesso de antinoma-dismo); mudança daescala quantitativados grupos que impor-ta controlar ou mani-pular (...). O outro as-pecto da conjuntura éo crescimento do apa-relho de produção,cada vez mais exten-so e complexo, cadavez mais custoso tam-bém e cuja rentabili-dade urge fazer cres-cer. O desenvolvimen-to dos modos discipli-nares de proceder res-ponde a esses doisprocessos ou antessem dúvida à necessi-dade de ajustar suacorreção “(Foucault,1977).

9 Como destaca Foucault,em esclarecedora pas-sagem: “A disciplinaé uma técnica de exer-cício de poder que foi,não inteiramente in-ventada, mas elabora-da em seus princípiosfundamentais duranteo século XVIII. Histo-ricamente as discipli-nas existiam a muitotempo, na Idade Mé-dia e mesmo na anti-güidade. Os mosteirossão um exemplo de re-gião, domínio no inte-rior do qual reinava osistema disciplinar. Aescravidão e as gran-

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neira pela qual se articulava o poder político na Idade Média, onde “o poderfuncionava essencialmente por meio de símbolos e taxas. Sinais de lealdadeao senhor feudal, ritos e cerimonias entre outros, e taxas, na forma de impos-tos, pilhagens, guerras e etc” (Foucault, 1980a, p. 125). Diferentemente, naépoca clássica começou a se estruturar uma tecnologia de poder - que só esta-rá plenamente desenvolvida no final do século XVIII - que repousou em ou-tras bases. A tecnologia que funcionou em torno do poder disciplinar se sus-tentará mais em uma ação sobre os corpos e seus atos do que sobre os produ-tos retirados da terra. O fundamental é colocar em operação mecanismos quepossibilitem uma extração de tempo e trabalho dos corpos, relegando a umsegundo plano as velhas formas de atuação que tinham na extração imediatade bens e riquezas seu objetivo primordial. Este novo tipo de poder se exercesupondo mais um sistema minucioso de coerções materiais do que a figura deum príncipe soberano.

Por fim, para que se possa perceber melhor as características dadisciplina, cabe destacar que ela “(...) nem é um aparelho, nem uma institui-ção: ela funciona como uma rede que os atravessa sem se limitar a suas fron-teiras; é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de po-der” (Machado, 1982, p. 194). Assim, a disciplina se exerce em uma série deespaços do corpo social, tendo como princípios básicos os seguintes aspectosela é uma arte de distribuição espacial dos indivíduos; a disciplina exerce seucontrole não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento;ela é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constantedos indivíduos e ela é também um controle do tempo.

Eis que, se esta discussão sobre a relação do poder sobre os corpose a caracterização do poder disciplinar estão nitidamente presentes no períodode 74/75, com o lançamento da Vontade de saber, em 76, pode-se falar deuma mudança. Foucault não abandonará a idéia do poder disciplinar, mas aarticulará com uma outra tecnologia, que será destacada nas análises dos anossubseqüentes, o bio-poder, que se distinguirá do poder disciplinar em algunsaspectos, entre eles o fato de que esta nova forma de poder considerará “umaoutra função (...) gerar e controlar a vida dentro de uma multiplicidade desdeque ela seja numerosa (população), e o espaço estendido ou aberto” (Deleuze,1986, p. 79).

Embora o objetivo das análises ainda seja o corpo, agora é o corpo-molar da população, que será ressaltado. Assim, dentro da nossa análise,destacaríamos a ênfase dada por Foucault no seu trabalho, dos anos 76 a 78,na análise desta tecnologia própria às sociedades ocidentais: o bio-poder. Comoele afirma, no final da Vontade de saber (distinguindo o poder disciplinar dobio-poder):

“O segundo, que se formou um pouco mais tarde,por volta da metade do século XVIII, centrou-se nocorpo-espécie, no corpo transpassado pela mecâni-ca do ser vivo e como suporte dos processos biológi-

des empresas escra-vistas existentes nascolônias espanholas,inglesas, francesas eholandesas, etc., erammodelos de mecanis-mos disciplinares.Pode-se recuar até aLegião Romana e látambém encontrar umexemplo de discipli-na. Os mecanismos dedisciplina são, portan-to, antigos, mas exis-tiam em estado isola-do, fragmentado, até oséculo XVII e XVIII,quando o poder disci-plinar foi aperfeiçoa-do como uma novatécnica de gestão doshomens. Fala-se, fre-qüentemente, das in-venções técnicas doséculo XVIII - as tec-nologias químicas,metalúrgica, etc. - maserroneamente, nada sediz da invenção técni-ca dessa nova manei-ra de gerir os homens,controlar suas multi-plicidades, utilizá-lasao máximo e majoraro efeito útil de seu tra-balho e sua atividade,graças a um sistema depoder suscetível decontrolá-los. Nas gran-des oficinas que come-çam a se formar, noexército, na escola,quando se observa naEuropa um grandeprocesso de alfabeti-zação, aparecem essasnovas técnicas de po-der, que são uma gran-de invenção do sécu-lo XVIII” (Foucault,1979a, p. 105).

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cos; a proliferação, os nascimentos e a mortalidade,o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade,com todas as condições que podem fazê-los variar;tais processos são assumidos mediante toda uma sé-rie de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população (...) A velha potência da morteem que se simbolizava o poder soberano é agora,cuidadosamente, recoberta pela administração doscorpos e pela gestão calculista da vida” (Foucault,1979b, p. 131).

Desta forma, a partir da articulação da existência de um novo obje-to à atuação do poder - a população, com suas regularidades: taxa de natalida-de, mortalidade, longevidade, etc. 10 - estrutura-se toda uma nova tecnologiado poder. Esclareça-se, contudo, que esta nova tecnologia não implica o aban-dono da idéia e utilização do poder-disciplinar; pelo contrário, as duas - po-der-disciplinar e bio-poder - se integram para um controle/gestão mais efetivodos corpos. Apenas uma nova área e forma de atuação do poder nas socieda-des ocidentais é posto a nu pela análise de Foucault com a noção de bio-poder.A preocupação da análise desta realidade é marcante nos anos de 76 a 78. Setemos somente uma breve descrição do bio-poder no capítulo quinto da Von-tade de saber, os cursos do Collège de France neste período fornecem indi-cações sobre esta problemática.

Entretanto, pode-se observar que a questão do bio-poder parece tersido a menos trabalhada por Foucault: à exceção dos textos já mencionados, éescassa a referência a esta discussão11. Contudo, ainda poderíamos afirmar aexistência de uma mudança de ênfase no trabalho de Foucault, posto que onível de atuação do poder focalizado - diferentemente do poder disciplinar - seapresenta em outro plano. Neste momento o objeto de análise é a forma depoder que “se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenô-menos maciços de população” (Foucault, 1979b, p. 129).

Cabe precisar, entretanto, o seguinte: Foucault não afirma que foino século XVIII que pela primeira vez, a população surgiu como objeto deatuação do poder12. Já na antiguidade clássica, em Roma, observou-se a exis-tências de políticas públicas visando à regulamentação da dinâmica da popu-lacional, através de leis estimulando casamento, isenção de impostos parafamílias numerosas, etc. Porém, no século das luzes, a população começa aser estudada, analisada e esquadrinhada por uma série de políticas que temcomo suporte as ciências do homem que se constituem neste século, como ademografia e a medicina social. Tais políticas procuram estabelecer um con-trole e gestão mais efetivo dos membros de uma população, diferenciando-sedas políticas que até então tinham como escopo atingí-la, as quais, em geral,caracterizavam-se por uma atuação dispersa, sem continuidade e deixandovários recantos deste conjunto intocados. Precisando as origens e característi-cas desta tomada de corpo-molar da população como objeto de poder,

10 Este novo processo deatuação do poder sedará, como dizFoucault, com “a en-trada dos fenômenospróprios à vida da es-pécie humana na or-dem do saber e dopoder no campo dastécnicas políticas”(Foucault, 1979b,p.133). Como ele afir-ma em outra passa-gem, a população vaipassar a ser, na se-gunda metade do sé-culo XVIII, um objetoprivilegiado de atua-ção do poder: “Ostraços biológicos deuma população tor-nam-se fatores rele-vantes para a admi-nistração econômica etorna-se necessárioorganizar ao seu redorum aparato que vaiafirmar não apenas asua sujeição mas tam-bém o crescimentoconstante de sua uti-lidade” (Foucault,1980b, p. 172).

11 Como já afirmado, al-guns traços do bio-po-der são expostos nofinal da Vontade desaber. No tocante aoscursos do Collège deFrance, as referênci-as não são muito nu-merosas também. OCurso 75/76 tratou,resumidamente, daquestão da utilizaçãodo modelo guerreirocomo possibilidade deinteligibilidade dasrelações de poder. Em76/77 não houve cur-so. É no curso de 78/79 que basicamentetemos algumas infor-mações já que, no cur-so de 78/79, Foucaultprivilegiou a análiseem termos da Gover-namentalidade e noestudo da racionalida-de liberal. Assim, nocurso de 77/78, há

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Foucault afirma:“Qual é a base para esta transformação? Generica-mente, pode-se dizer que ela se relaciona com a pre-servação e conservação da ‘força de trabalho’. Mas,indubitavelmente, o problema é mais amplo. Ele in-discutivelmente se refere aos efeitos político-econô-micos da acumulação de homens. O grande cresci-mento demográfico do século XVIII na Europa Oci-dental, a necessidade de coordenação e de integra-ção ao aparato de produção e a urgência de controlá-lo, com mecanismos de poder mais sofisticados eadequados, possibilitaram a emergência da ‘popu-lação’, (com suas variedades numéricas de espaço ecronologia, longevidade e saúde), emergisse não sócomo problema, mas como um objeto de observação,análise, intervenção, modificação, etc. Um projetode tecnologia da população começa a ser desenha-do: estimativas demográficas, o cálculo de pirâmi-des etárias, diferentes expectativas de vida e níveisde mortalidade, estudos das recíprocas relações en-tre crescimento da população e crescimento da ri-queza, medidas de incentivo ao casamento e procri-ação, desenvolvimento de formas de educação e trei-namento profissional” (Foucault, 1980b, p. 171).

Possivelmente esta discussão do bio-poder seja melhor percebidase encarada como uma espécie de transição entre as pesquisas de Vigiar epunir e uma temática que marcará os seus últimos anos de trabalho: a questãodo governo. Esta perspectiva se abre a partir do que Foucault afirma no iníciodo Curso do Collège de France, de 77/78:

“o curso tratou da gênese de um saber político quecolocou, no centro de suas preocupações, a noçãode população e os mecanismos suscetíveis de asse-gurar a sua regulação. Passagem de um ‘Estadoterritorial’ a um ‘Estado de população’. Sem dúvidanão se trata de uma substituição mas de uma mu-dança de acentuação, e da aparição de novo proble-ma e de novas técnicas. Para seguir esta gênese, foiassumido como fio condutor a noção de governo”(Foucault, 1974-82, p. 445).

Neste instante fica nítida aquela que parece ser a modificação maisradical dentro da genealogia do poder. Como já destacamos anteriormente, éclara a passagem, nesta data da discussão sobre o poder para outros termos,analisados até o final da obra de Foucault a partir da questão do governo.Esclareça-se, antes mesmo de nos determos com um pouco mais de atenção

uma esclarecedorapassagem acerca des-ta questão da popula-ção, objeto do bio-po-der: “Assim, começaaparecer (...) o proble-ma da população. Estanão á concebida comoum conjunto de sujei-tos de direito, nemcomo um grupo debraços destinados aotrabalho; ela é anali-sada como um conjun-to de elementos quede um lado se aproxi-ma do regime geraldos seres vivos (a po-pulação depende en-tão da espécie ‘huma-na’: noção nova à épo-ca, distinta da noçãode ‘gênero humano’)e de outro, pode darlugar às intervençõesconcentradas (por in-termédio das leis, mastambém das mudan-ças de atitude, da ma-neira de fazer e de vi-ver que podem serobtidas pelas ‘campa-nhas’)” (Foucault,1974-82, curso 77/78,p. 447-448).

12 Como explica Fou-cault: “Certamente oproblema da popula-ção sob a forma: ‘se-remos nós muito nu-merosos, não suficien-temente numerosos? ,há muito tempo colo-cado, há muito tempoque se dá a ele solu-ções legislativas di-versas: impostos so-bre os celibatários,isenção de impostospara as famílias nu-merosas, etc. Mas, noséculo XVIII, o que éinteressante, em pri-meiro lugar, é umageneralização destesproblemas: todos osaspectos do proble-mas população come-çam a ser levados emconta (epidemias, con-dições de habitat, de

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sobre este tema, que governo não deve ser entendido da maneira usual comouma burocracia ou grupo de pessoas à frente da gestão da coisa pública, ou aatividade exercida por aqueles que conduzem a máquina estatal (entre outrossignificados), mas sim no seguinte sentido:

“Esta palavra (Governo) deve ser compreendida nosentido mais amplo que tinha no século XVI. ‘Gover-no’ não se referia apenas a estruturas políticas ou aadministração dos Estados; antes, designava o modopelo qual a condução de indivíduos ou grupos deve-ria ser orientada: o governo das crianças, das al-mas, dos bens, das famílias, dos doentes. Ele cobrianão apenas as formas legitimamente constituídas desujeição política ou econômica mas também manei-ras de agir destinadas a atuar sobre as possibilida-des de ação das outras pessoas. Governar, neste sen-tido, seria estruturar o possível campo de ações dosoutros” (Foucault, 1982, p. 221).

A governamentalidade

Talvez no seu texto mais importante de 1978, o debate com os his-toriadores acerca de Vigiar e punir, publicado no livro L’impossible prison,Foucault marca a significação da questão do governo na sua obra. Assim,“para dizer as coisas claramente: meu problema é saber como os homens segovernam (eles mesmos e os outros)” (Foucault, 1980a). Por conseguinte, opoder passa a ser trabalhado em uma outra perspectiva; é o governo de si e ogoverno dos outros - que obviamente pressupõem e estão inscritos nas rela-ções de poder - que constituirá o cerne do trabalho de Foucault até a suamorte.

Um texto central nesta perspectiva é a ‘Governamentalidade’, de1978. Esta aula no Collège de France lança os princípios deste tipo de análi-se que lida com “o problema de como ser governado, por quem, até que ponto,com qual objetivo, com que método, etc.” (Foucault, 1979a, p. 278). Comefeito, Foucault faz o inventário do surgimento, a partir do século XVI, detoda a literatura - estreitamente vinculada ao príncipe de Maquiavel, quer poroposição, quer por recusa - que trata da arte de governo. Esta teoria não seresumiu a mero exercício acadêmico, pois “a teoria da arte de governar esteveligada desde o século XVI ao desenvolvimento do aparelho administrativo damonarquia territorial: aparecimento dos aparelhos de governo” (Foucault,1979a, p. 285). Por outro lado, a arte do governo rompe com a tradição dateoria jurídica da soberania - fundamentada no governo do território, e afir-mando que “o governo é uma correta disposição das coisas” (Foucault, 1979a,p. 282).

Entretanto, nos parece importante frisar que a arte de governar searticula em torno de um tema importante à análise política: a Razão de Esta-

higiene, etc.) e a se in-tegrar no interior deum problema central.Em segundo lugar, vê-se a este problemanovos tipos de saber:aparecimento da de-mografia, observa-ções sobre a reparti-ção das epidemias,inquéritos sobre asamas de leite e as con-dições de aleitamen-to. Em terceiro lugar,o estabelecimento deaparelhos de poderque permitiam não so-mente a observação,mas a intervenção di-reta e manipulação detudo isto. Eu diria queneste momento come-ça algo que se podechamar de poder so-bre a vida, enquantoantes só havia vagas in-citações descontínuaspara modificar uma si-tuação que não se co-nhecia bem” (Foucault,1979a, p. 234-275).

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do, e aí, não no sentido moderno do termo, mas naquele relacionado à raciona-lidade da atuação estatal. Assim este tema, pesquisado por Foucault no finaldos anos 70, não deve ser confundido com a idéia de razão de Estado, comoaquilo que justifica o desrespeito das regras formais do jogo político em nomede um interesse superior, onde está, em geral, presente o arbítrio e a violência.O sentido dado por Foucault se articula com uma noção de arte de governo,tematizada freqüentemente ao longo do século XVII e início do XVIII. Comoele explica esta distinção:

“Esquematicamente se poderia dizer que a arte degovernar encontra, no final do século XVI e no iní-cio do século XVII, uma primeira forma de cris-talinização, ao se organizar em torno do tema de umarazão de Estado. Razão de Estado hoje entendida nãono sentido pejorativo e negativo que lhe é dado (li-gado à infração dos princípios do Direito, daeqüidade, ou da humanidade por interesses exclusi-vos dos Estados), mas no sentido positivo e pleno: oEstado se governa segundo as regras racionais quelhe são próprias, que não se deduzem nem das leisnaturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoriaou da prudência: o Estado, como a natureza, tem suaracionalidade própria, ainda que de outro tipo. Porsua vez, a arte de governo em vez de fundar-se emregras transcendentais ou em um ideal filosófico-moral, deverá encontrar sua racionalidade naquiloque constitui a sua racionalidade própria” (Foucault,1979a, p. 286).

Esta discussão de Foucault a respeito da Governamentalidade ocorreno momento em que se dá a mudança mais drástica no projeto genealógico. Sedurante os anos 70 as preocupações estiveram concentradas em reflexões decaráter eminentemente político, de 78 até a sua morte em 84 a ética ocupará,basicamente, a sua atenção. Neste sentido as pesquisas sobre a gover-namentalidade marcam uma transição: do governo dos outros - e aqui incluí-das todas as investigações sobre o poder - para o governo de si. Assim, é ocontinente da Ética, o tema dos dois últimos livros de Foucault, O uso dosprazeres e O cuidado de si. Com efeito, o estudo da Antigüidade não privile-giará os mecanismos de constrangimento, nem as insidiosas técnicas utiliza-das à submissão dos corpos e almas. As pesquisas acerca da maneira como noséculo IV a.C., na Grécia, e no século I e II d.C., em Roma, as condutas sexu-ais eram objeto de ponderações de natureza ética, se encontram em um cená-rio bem diferente das problematizações anteriores de Foucault. Há a passa-gem de um exame das práticas empregadas no governo de si. Não se estudammais os efeito do poder no processo de subjetivação dos sujeitos, mas sim astécnicas usadas no governo de si. Talvez esta passagem para um universo tão

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diferente de investigações explique o fato de que Foucault não se deteve pormuito tempo nas investigações atinentes à Governamentalidade. Além do textojá mencionado acerca desta questão, temos poucas referências. Os anais do Cur-so do Collège de France do ano de 77/78 destacam também esta investigação:

“Em seguida foi analisado, a respeito de alguns deseus aspectos, a formação de uma ‘governamen-talidade política., isto é, a maneira pela qual um con-junto de indivíduos se encontra implicado, de ma-neira cada vez mais marcada, no exercício do podersoberano. Estas transformações importantes são as-similadas nas diferentes ‘artes de governo’ que fo-ram redigidas, no fim do século XVI. Ela é ligadasem dúvida à emergência da ‘Razão de Estado’. Sepassa de uma arte de governar cujos princípios erampedidos emprestados das virtudes tradicionais (sa-bedoria, Justiça, liberdade, respeito às leis divina eaos costumes humanos) ou das habilidades comuns(prudência, decisões refletidas, cuidado de estar cer-cado dos melhores conselheiros) para uma arte degovernar cuja racionalidade tem princípios e seudomínio específico de aplicação no Estado. A ‘Ra-zão de Estado’ não é o imperativo a partir do qual sepode ou se deve ‘balançar’ todas as outras regras;[ a razão do Estado] é a nova matriz de racionalida-de segundo a qual o príncipe deve exercer sua sobe-rania governando os homens. Se está longe da virtu-de soberana da justiça, longe também desta virtudeque é aquela do herói de Maquiavel” (Foucault, 1974-82, p. 446).

Por fim, deve-se observar que este nosso trabalho procurou apenasalinhavar algumas considerações sobre as problematizações foucaultianas arespeito do poder. O tema merece uma atenção e tratamento mais cuidadoso.

Fica aberto o caminho para uma pesquisa mais minudente e o con-vite à leitura de um dos pensadores mais instigantes de nosso século.

Recebido para publicação em junho/1995

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MAIA, Antônio C. About the Foucault’s analytic of power. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.Paulo, 7(1-2): 83-103, october 1995.

ABSTRACT: To understand the way social relations are structured, in parti-

cular the unequal relations of obedience and domination which justify both

autority and the nature of of political obligation, has been one of the constant

efforts of human thought. In this paper we sustain that Michel Foucault has

offered a decisive contribuition to a better understanding of these social

phenomena. In the first part, we examine some characteristics of Foucault’s

concept of power. In the second, we followed the transformations which this

concept suffered along the seventies in his work.

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UNITERMS:Foucault,concept of power,bio-power,governmentability.

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