"só dez por cento é mentira" análise discursiva - manoel de barros

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Beatriz GilNº 39800 | Discurso dos Média – Ciências da Comunicação | outubro de 2014 “Só dez por cento é mentira” ANÁLISE DISCURSIVA

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Análise discursiva do documentário "Só dez por cento" acerca da vida e obra do poeta brasileiro Manoel de Barros

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S dez por cento mentira

ndiceIntroduo1O que um documentrio?3Anlise Discursiva Gnero Audiovisual Documentrio4Manoel de Barros - Biografia6Anlise discursiva A poesia de Manoel de Barros.6 S dez por cento mentira Sinopse.8 Anlise discursiva Documentrio S dez por cento mentira..8Concluso..15Bibliografia..16

IntroduoO presente trabalho tem como foco primordial a anlise discursiva do documentrio S dez por cento mentira do diretor Pedro Cezar, a respeito da obra e vida do poeta brasileiro Manoel de Barros. A escolha desta anlise incidiu na crena pessoal de que este, alm da sua incontornvel importncia no crculo literrio, tambm um autor que se diferencia profundamente pela sua unicidade e distintas linhas discursivas, que percorrem no apenas a sua obra mas, mais que isso, se estendem a toda a sua personalidade, espelhada na sua poesia. Desta forma e sob tal complexidade, medida que o presente trabalho se foi estruturando, detetou-se a necessidade de, antes de mais, se analisar o gnero audiovisual em questo nas suas linhas gerais, o documentrio, bem como algumas das suas caractersticas discursivas prprias: a sua materialidade (estratgias narrativas usadas; tcnicas; etc) e a sua comunicabilidade (modos de produo de sentido). Foi realizada ainda uma breve resenha do documentrio enquanto gnero cinematogrfico que busca, ao longo da sua histria, o seu lugar neste mbito e meio, e algumas asseres acerca dos seus primrdios que vieram a resultar naquilo que hoje definimos como documentrio. Posteriormente, foram recolhidos dados acerca da biografia do autor, de modo a contextualiza-lo luz da sua histria pessoal e profissional, bem como uma anlise, com base em algum referencial terico pesquisado, da sua obra potica: as suas especificidades, marcas distintivas, escolhas aparentemente inusitadas de linhas discursivas, resistncia ao lugar-comum que o levou, ao longo da sua carreira, a criar o seu prprio idioleto manuels, etc.Por fim, intenta-se ento numa anlise do documentrio S dez por cento mentira, que se pretende o mais profunda e cuidada possvel. Procura-se no apenas reafirmar a importncia do autor e da sua peculiar obra, mas tambm compreender como transmitida, atravs da camara, a noo da sua grandeza humana e sensvel. A sua capacidade criadora intentada por acesso a diversas estratgias do diretor, no apenas apelando a intervenientes familiares e amigos diretos de Manoel de Barros, depoimentos de leitores contagiados, mas tambm estendendo-se a recursos semiticos que reforam toda a sua ideologia.

O que um documentrio?Um documentrio integra distintos processos de formao de sentido: engloba no seu mago a obra em si, a audincia qual se destina, e a formao histrica que capta. Deste modo o gnero documentrio tem percorrido, desde a sua gnese, um longo caminho de afirmao enquanto gnero audiovisual com caractersticas e elementos prprios.Teorizado por Dziga Vertok, fortemente influenciado pelo construcionismo, o documentrio era o tipo de cinema-verdade, na medida em que a lente da camara seria mais fiel realidade que o olho humano, exatamente o que se torna, em 1929, evidente com o seu Homem da camara de filmar, considerado o primeiro filme no ficcional da histria cinematogrfica.Atualmente, e no centro do debate, encontra-se a indefinio de fronteira entre o gnero fico e no-fico, conceituando-se que o documentrio um gnero hibrido, que pretende combinar os dois, estando o jornalismo na arraia extrema da no-fico e o cinema fantstico na orla oposta.Por definio, o documentrio aquele que tem carater de documento, no entanto, essa parece ser uma noo que no vai plenamente ao encontro da assero de Ana Carolina Freitas, terica do campo do cinema, ao afirmar que o documentrio no tem de informar, educar; no jornalismo, mostra maneiras de ver o mundo. Esta tambm a teoria de Ferno Ramos Rosa, que considera que o objetivo primrio deste gnero cinematogrfico o de representar o mundo; representao do mundo que est intrinsecamente relacionada com o olhar subjetivo e ideolgico do realizador. Nesta medida, o realizador pretende demonstrar o seu ponto de vista relativamente a determinado assunto em observao sendo, segundo Joo Moreira Salles, esta a caracterstica vital de qualquer documentrio: um documentrio ou autoral, ou no nada. A grande distino do documentrio prende-se precisamente com os seus percursos de produo, que tm uma liberdade alcanada ao no terem, inequivocamente, que respeitar um roteiro pr-estabelecido, sendo que na maioria das vezes, s no culminar do processo de edio e montagem este aufere o seu produto final, nem sempre condizente com o planeado. Um documentrio parte sempre de um conhecimento anterior, do seu realizador, repetidamente reforado atravs das estruturas das falas dos actantes e do ideal transmitido. por intermdio dessas estruturas, escolhidas pelo autor, que a obra ganha o seu prprio e distinto discurso hermenutico.De acordo com Penafria, este gnero o argumento encontrado: as personagens agem espontaneamente e de forma imprevisvel, ganhando o cunho de personagens reais do mundo existente, e destarte que o espetador convidado a participar no processo, criando empatia: o ato de ser atravs dos olhos de outrem. Para este efeito, em consonncia com as estruturas previamente apontadas, explorada a isotopia percetiva da audincia que vivencia a experiencia de que possvel atravs da imagem-camara, atingir diretamente a circunstncia do mundo, extraordinria e intensa, que conforma a imagem. Um documentrio retira da filmagem in loco (no local da ao) a sua aparente aproximao ao gnero jornalstico, no obstante, o que apresentado, apesar de fatual, deve ser entendido como uma construo de dada realidade, e no um espelho da mesma. Esta premissa aponta ainda para a importncia da camara, que ganha intensidade de imagem-real, por intermdio da competncia de exercer uma presena em ausncia: porquanto, o espetador granjeia a capacidade de aprender a vida, o mundo em seu transcorrer, no pingar do seu presente, conforme surge para o sujeito que sustenta a camara. O discurso documental mosqueado por linhas de sobriedade intrinsecamente relacionadas com o real que, num duplo movimento, compe o seu sentido ltimo: os movimentos esttico e comunicacional.

Anlise discursiva Gnero Audiovisual DocumentrioDe acordo com Ferno Ramos Rosa, o documentrio comporta dois conceitos-base: a proposio assertiva, que considera proposies afirmativas narrativas que asseguram a relao entre o retratado e a verdade do acontecimento no seu contexto de origem; e a indexao, que toma em linha de conta a dimenso pragmtica que perpetra o saber social do espetador relativamente ao assunto retratado e ao facto de este estar consciente de que aquilo que est a visualizar uma obra cinematogrfica no-ficcional. Quais as estratgias discursivas usadas para garantir a autenticidade do relato?O realizador pretende captar o mximo daquilo que est a ser filmado, conferindo um certo grau de transparncia, o que permite que o espetador se entrose na narrativa e a admita como algo verdadeiro, sem nada a esconder. Usando a apresentao de imagens e documentos comprovativos, bem como reconstituies devidamente datadas, o documentrio passa ento a ter, para o observador, um cunho axiomtico.A recorrncia frequente a trilhas sonoras introduzem-se com o papel de uma semitica que exponencia a componente dramtica do retratado, explorando a sensibilidade. da maior relevncia o papel da sonoplastia escolhida, que vastas vezes combina melodias, sons do quotidiano e vozes-off, com a inteno de, por um lado acentuar a capacidade emptica da audincia, e por outro consolidar o cunho de verdade da obra apresentada. A posio do narrador, caso exista, tambm ela relevante na tentativa de uma aproximao ao espetador. No sendo obrigatrio, uma presena comum, pois ele quem aqui ganha a presena omnisciente, que conduz a ao e a explica, mas que tambm reporta para o gnero que por excelncia factual e fidedigno, o jornalismo, que sempre composto por um jornalista que narra o acontecimento. Outras questes essenciais para uma anlise discursiva profunda do gnero documental, que sero mais frente exploradas no captulo que se refere dissecao discursiva do documentrio S dez por cento mentira, so: A camara objetiva (est no lugar de um publico hipottico) ou subjetiva (encontra-se no lugar do actante e/ou actantes da obra)? Esta questo estar relacionada com o posicionamento ideolgico do realizador. Qual o angulo usado para a captao flmica? Picado (personagem filmada de cima para baixo), contrapicado (personagem filmada de baixo para cima) ou plano (personagem filmada ao mesmo nvel da camara)? O angulo poder correlacionar-se com a importncia dada s personagens, tanto ao nvel da narrativa apresentada, como ao nvel histrico e documental. Como realizada a composio das personagens? So personagens nas quais so enfatizadas com mais relevncia caractersticas psicolgicas, fsicas ou emocionais? So realizados, por intermdio de introduo de reconstituies ou imagens documentais, cortes na continuidade temporal? Ou a ao decorre aludindo sempre ao mesmo regime espcio-temporal? Quais os planos usados para a filmagens? De detalhe (evidenciado uma particularidade no cenrio e/ou personagem), geral (pretende-se mostrar a ao num espao amplo), mdio (a personagem filmada com enfase no tronco), ou prximo (personagem focada principalmente do trax para cima)? Quais os valores dramticos (pontos-chave) da obra? Porqu? Qual a importncia dada aos dilogos? O que dizem os dilogos? Para quem se dirigem, para outro actante, ou diretamente para audincia?

Manuel de Barros BiografiaCriador do idioleto manuels, Manoel Wenceslau Leite Barros, poeta do sc.XX, nasce em Dezembro de 1916, no Mato Grosso do Sul, Cuiab, Brasil. Filho de um fazendeiro, Manoel de Barros passa a sua infncia num internato religioso, em Campo Grande, onde tem o seu primeiro, mas decisivo, contato com os escritos do padre Antnio Vieira, que vieram a influenciar profundamente a carreira do poeta. Em 1940, bacharela-se em Direito, no Rio de Janeiro e parte para Nova Iorque, onde cursa cinema e pintura, no Museu da Arte Moderna. O seu percurso guia-se ainda, ao longo da sua juventude, por perodos que passa na Bolvia, Peru, Frana, Itlia e Portugal. Em 1960, Manoel herda o Pantanal do seu pai (fazenda de gado) e regressa a Cuiab, onde conhece Stella, companheira de toda a vida e toda a poesia.Poemas concebidos sem pecado a sua primeira obra publicada, datada de 1937, numa tiragem reduzida de 20 exemplares, manufaturados em cadernos, por amigos do autor.O seu caminho pela poesia traa-se timidamente no crculo literrio, uma vez que Manoel de Barros no o frequenta, nem to-pouco o aprecia, por considera-lo uma esfera elitista. Ganha em 1960 o Prmio Orlando Dantas, mas apenas dez anos mais tarde descoberto pela crtica, com o seu Arranjos para assobios.Granjeado com uma parafernlia invejvel composta por mais de dez prmios literrios (incluindo os prestigiados Prmio Orlando Dantas (1960); Prmio Jabuti da Literatura (que conquista duas vezes - 1989 e 2002), Prmio Nestl da Literatura Brasileira (2006) e o Prmio Associao Paulista de Crticos de Artes (2005), a sua obra completa abrange mais de trinta ttulos e , atualmente, o poeta brasileiro mais vendido no mundo, e o mais aclamado pela critica literria.

Anlise discursiva A poesia de Manoel de BarrosA poesia de Manoel de Barros tudo menos trivial ou corriqueira. De aparncia surrealista, a sua obra conhecida pela sua natureza tctil, na qual se busca ao mximo uma aproximao ao que da dimenso natural. Este trao no entanto, no motiva - muito pelo contrrio - um discurso da ordem do concreto, mas antes perscruta a busca pelo estado coisal, onde os seres so fecundados pela natureza.Diante deste quadro, a poesia tomada como um inuntensilio, ou seja, o poeta utiliza na sua obra aquilo que o homem, partida, rejeita (molas partidas; latas velhas; pedras; etc.), inaugurando aquilo que o prprio denomina a teologia do traste. O ser humano converte-se numa coisa, e a coisa humaniza-se, numa hierarquia inexistente entre o utensilio e o homem. D-se portanto um desregramento, seno mesmo uma abolio dos sentidos culturalmente estabelecidos e socialmente considerados, atravs da desautomatizao do olho do poeta perante tudo aquilo que compe o mundo. O uso permanente de neologismos e o modo como os emprega, remete a sua obra para o regime da oralidade: Manoel combina palavras de forma inslita, as chamadas contiguidades anmalas (me horizonto; abelhas novembras; bocagemente; etc.), e explora a sinestesia semitica, onde a interpretao do sentido do que escrito realizada precisamente na supresso das palavras do seu sentido literal.Manoel de Barros entende que, para a sua poesia, a preciso emprica intil e na sonoplastia textual (dialtica entre som e palavra) que se clama grande parte da sua ode ao absurdo: falo fluentemente absurdez.Tambm a estrutura sinttica dos poemas vem corroborar a sua tese: h poemas em forma de entrevista; poemas com notas de rodap que redirecionam para outros poemas, etc. Neste sentido, pode inclusive alegar-se que o poeta exerce uma metalinguagem da poesia: pensando a poesia como forma, enquanto a escreve. Para o autor, o poema surge quando o poeta morre; o que sobrevive a criao e no o criador, endereando um espao de negatividade que louva os homens que nada alcanaram socialmente, os escolhidos para serem ningum os poetas que s aps o despojamento do seu ego criador podem, enfim, exercer em plenitude a virtude do intil com vista a tornarem-se vagabundos profissionais.

S dez por cento mentira SinopseCom argumento e realizao de Pedro Cezar, S dez por cento mentira uma obra cinematogrfica que pretende extrapolar o regime convencional do gnero documentrio. No se restringindo a uma mera apresentao biogrfica do poeta brasileiro Manoel de Barros, prope-se antes a uma reflexo que procura ser uma voz que se aproxime da simplicidade e afetividade do personagem e que se afaste da soberba e da pretenso de uma anlise terica sobre poesia.Com recurso a entrevistas com o autor, apresentao de trechos da sua obra, intervenientes autoproclamados leitores contagiados, depoimentos de familiares e amigos e uma linguagem visual inventiva, a obra antes mais uma ria ao caracter nico, revolucionrio e progressista de Manoel de Barros, o poeta brasileiro que mais vende no mundo e que, data da produo do documentrio tinha 93 anos de vida, mas uma jovialidade interior que d dez a zero mais pandegueira criana.Consagrado com o prmio de Melhor Documentrio Longa-Metragem do II Festival Paulnia de Cinema 2009 e Melhor Filme Documentrio Longa-Metragem no V Fest Cine Goina 2009, S dez por cento mentira um original mergulho cinematogrfico que respira e inspira sentidos nas entrelinhas, vidos por serem desvelados, refletidos e apreciados.

Anlise discursiva Documentrio S dez por cento mentiraA anlise discursiva do documentrio S dez por cento mentira ser realizada primeiro aludindo a questes do foro mais tcnico e, posteriormente numa incurso aprofundada dos valores dramticos do mesmo, bem como das personagens que o compe.Ao longo da maioria do documentrio, a camara apresenta-se objetiva, toma o lugar do espetador englobando-o, estando aqui bem patente qual a inteno do realizador: a identificao da audincia com o actante, que esta se sinta parte de um todo que est a ser apresentado numa relao intimista, um quase-tudo familiar.As personagens so sempre filmadas em plano, o olhar do espetador est ao mesmo nvel que o do actante, num jogo que convida a assistir a um fenmeno do qual no apenas participa, mas onde tambm tratado e visto em equidade, desfazendo-se toda e qualquer barreira hierarquizante entre quem fala e para quem fala. curioso observar que no apenas Manoel de Barros quem apresentado como uma personagem robustamente constituda de atributos psicolgicos e emocionais, tambm esses aspetos so valorizados em alguns dos outros intervenientes, compondo-se deste modo uma aparente comparao equitativa entre todos eles. Cria-se uma certa noo de hierarquia no que respeita a Palmiro e Bernardo, que se situam na raia superior dos que menos reverencias tm por parte da sociedade generalizada e instituda tica e profissionalmente: os vagabundos, meliantes, que o poeta considera serem os verdadeiros visionrios.Com recurso a apresentao de fotografias de infncia do autor, a narrativa exposta entrecortadamente com irrupes temporais que vo endereando o espetador para diferentes momentos cronolgicos. Estes parecem querer romper com a noo de temporalidade escatolgica (continua e estvel) e enfatizar a prpria crena do autor de que a nossa data maior o quando, que desvirtua a importncia da historicidade da existncia, tema muito explorado na obra do poeta. Alm das oscilaes temporais, so notrias tambm as variaes de espao, que podem ser compreendidas com teor semelhante ao anterior, ou personalidade viajada de Manoel, por ter vivido em vrias partes do mundo ao longo da sua vida.Ainda no que respeita a componentes tcnicas com valor semntico e interpretativo, relevante avaliar o modo como o realizador explora a multiplicidade de planos cinematogrficos. Consegue transmitir, em cada um deles, a proximidade ou afastamento inerente a cada cenrio ou personagem. Manoel de Barros a pea central de toda a narrativa, exibido na maior parte do documentrio enquadrado em planos detalhe e prximos que enfatizam a ideologia do realizador: abertamente manifestando a sua admirao pelo poeta.S dez por cento mentira est repleto de valores dramticos, no se evidenciando nenhum ponto em que a narrativa atinge o seu clmax, ao longo do documentrio existem alguns momentos centrais. A encetar, o realizador resgata uma das questes mais debatidas e medulares no circuito literrio potico: Para que serve a poesia?; a resposta de Manoel to original quanto a sua obra:A poesia a virtude do intil. Porque o intil no serve para mais nada, no, s presta para poesia. [a poesia] como uma coisa intil que est jogada por a, e a voc tem que a descobrir. [] Poesia uma coisa que a gente no descreve.Ao dizer isto, Manoel de Barros demonstra em absoluto a sua ideologia potica: no apenas encara a poesia como algo em bruto que preciso retirar do mundo e dar vida, como entende que esta no pode ser descrita, mas sentida, e que s atravs deste envolvimento afetivo possvel encontra-la e ger-la. Esta premissa aponta para uma inexorvel existncia potica, o autor contem em si mesmo a chave para a criao, a viso iluminada que permite aceder poesia. A assuno do intil vem da herana filosfica platnica, que separa mundo inteligvel (aquele que da ordem do imutvel, povoado pelas ideias) de mundo sensvel (mera cpia do mundo inteligvel, alicerada no no saber verdadeiro, mas na sua imagem-cpia). Na era moderna, o mundo sensvel aquele que mais valorizao aufere, sobrepondo-se a techn ao logos, e neste ponto que a poesia se torna produto do intil, pois no est relacionada com uma tcnica, mas com uma ideia. Esta no parece ser, no entanto, a noo absoluta do poeta, uma vez que este tambm se refere poesia enquanto artesanato ao qual se chega ao fim quando se lhe d forma, conectando-se deste modo o ideal e o concreto.Este argumento reforado diversas vezes ao longo do documentrio aludindo a referncias como ser vagabundo profissional e o nome que o prprio d ao espao fsico reservado para a criao da sua poesia: lugar de ser intil, onde cria um universo to absurdo quanto palpvel.Os depoentes so uma parte integrante da maior relevncia, apresentados num cenrio artificial, que reporta ao surrealismo da poesia de Manoel, estes substanciam o documentrio ao dar-lhe credibilidade atravs dos seus testemunhos.Bianca Ramanedo, atriz e jornalista, comento ao longo da pea diversos trechos poticos, deslindando-lhes os sentidos, como o caso de: as coisas no querem mais ser vistas por pessoas razoveis, frase de Manoel de Barros que Bianca interpreta como se as coisas pedissem socorro aos homens, atravs do olhar, para que os homens as salvem da pobreza da descrio, remetendo s ilimitadas funes que objetos do quotidiano tm mas que as pessoas, geralmente, ignoram. Surge aquele sujeito [Manoel de Barros} dizendo: olha, levanta a pedra, vai ver o que tem em baixo, acrescenta Joel Pizzini, cineasta e vido leitor da poesia de Manuel.Jaime Lebovitcht, ator e ensasta da obra do poeta, o interveniente que vem dar luz questo que reside no prprio ttulo do documentrio: s dez por cento mentira, trecho que ganha a sua forma completa em:

Tenho uma confisso a fazer:Noventa por cento do que escrevo inveno,S dez por cento mentira.

Jaime assere que Manoel faz todo o tipo de traquinagem com a cronologia e com os fatos. Nas suas memrias inventadas ele diz que namora e faz npcias com dezenas de mulheres e que j morreu dezassete vezes [] o tipo de poeta capaz de inventar, criar frases, que nenhuma outra pessoa se daria liberdade de escrever, e se os fatos no correspondem vida, meu caro, pior para os fatos. Quem for buscar verdades na obra de Manoel de Barros, s vai sair com beleza. Assim assinala que a preocupao do poeta, a sua vinculao, no reside na realidade dos fatos, mas apenas na sua verossimilhana. O seu verdadeiro compromisso com a capacidade criadora ideolgica, que no mais das vezes fruto de inveno. Deste modo, natural a associao com a infncia de Manoel, que afirma inclusive que s teve infncia, e com o local onde cresceu:A poesia nasce do no existir, voc tem de inventar. Ento aquele nucleozinho onde agente vivia s tinha mentiroso, porque precisava viver e contar coisas, de inventar coisas [} a comunidade l no tinha assunto: no tinha rdio, no tinha televisor, no tinha coisa nenhuma, no tinha nem vizinho, ento tinha que conversar com os patos, com as galinhas inaugura-se desde tenra idade a sua necessidade de inventar coisas, para matar o cio e a falta de assunto generalizada. Inventar os fatos que continham verdade que, para ele, a verdadeira-verdade, a do seu mundo ntimo, a beleza da poesia que no obedece, nem tem a pretenso de obedecer realidade o que vem de dentro de ns, do fundo, que a verdade nossa. A minha poesia inventada mas absolutamente verdade.Para aumentar o mundo parece ser ento essencial que se invente, no sentido da inveno-criao: que se confiram formas ao que imaterial, que se moldem as formas j existentes no material, que se desregulem os usos quotidianos do mundo. Palavra potica tem que chegar ao grau de brinquedo, para Manoel de Barros a infncia tem um papel to preponderante na poesia que chega a afirmar que a criana erra na gramtica e acerta na poesia.Pedro Cezar, teve algumas dificuldades em realizar o documentrio. Inicialmente porque Manoel se recusava a ser filmado, uma das suas caractersticas, e posteriormente porque no queria apenas fazer um documentrio sobre poesia, procurava explorar e elasticar o conceito de documentrio retirando-lhe conotao documental (de estudo), queria mostrar que poesia no chata, e queria que fossem abarcados como audincia no apenas aqueles que fossem j admiradores de Manoel de Barros. Ele contorna ento as linhas discursivas comuns no gnero documentrio e tenta mold-lo at, tal como o poeta faz, que esta chegue ao grau de brinquedo. Seguindo este princpio, o realizador procurou materializar os desobjetos idealizados pelo poeta contratando um ator para o papel de um faz-tudo que, supostamente, teria criado essas mesmas peas. Na realidade essas peas so da autoria do artista plstico brasileiro Marimba, que, sendo leitor vido da obra de Manoel, criou para o documentrio o prendedor de silncios; o esticador de horizontes; o aparelho de ser intil, entre outros. Em regime de cenrio artificial so retratados os depoentes externos ao ncleo intimo do poeta, j os familiares e intervenientes dotados de cariz verossimilhante ao poeta (os vagabundos profissionais), so entrevistados nos ambientes privados, como o caso de Ablio, o irmo do poeta que julga que Manoel nasceu com uma disfuno lrico-afetiva e que este talvez seja o ultimo poeta do mundo em tempo integral [] porque ele no pensa nada a no ser poesia [], medida que foi amadurecendo e envelhecendo, ele foi-se desligando cada vez mais da praxis e cada vez mais voltado para a poesia, convico partilhada pelo prprio escritor, que chega mesmo a denominar a sua relao com a poesia como obsessiva.Todo o documentrio parece querer reforar continuamente a ideia da grandeza lrica de Manoel de Barros e da inevitabilidade da poesia na sua vida, como um fado sentencial no qual o destino, enquanto figura simblica, decidiu tudo.Palmiro um des-heri, trabalhador do Pantanal durante vinte e sete anos, este criou uma relao de amizade pueril com Manoel. De falas curiosas e simplrias, esta personagem alude ao lado mais rudimentar e modesto do poeta: toda a vida ele [Manoel de Barros] foi brincalho comigo, s contava historinhas, ele falava tanta coisa. Palmiro, a par com Bernardo, representa o suporte originrio tanto da personalidade afetiva do poeta, como da sua identidade criadora. Bernardo foi tambm um trabalhador da fazenda, no qual Manoel de Barros condensa tudo aquilo que ele julga estar certo no ser humano, o catalisador da humanidade ltima. No falava, no sabia escrever ou ler, mas continha a sabedoria lrica que fazia com que o poeta o tivesse como o seu alter-ego, o que ele gostaria de ser na sua essncia, e acerca dele escreve recorrentemente: bernardo quase arvore/silencio dele to alto que os passarinhos ouvem de longe/e vm pousar em seu ombro; bernardo desregula a natureza/seu olho aumenta o poente; (pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?) . interessante observar ainda como ao longo do documentrio se vo fazendo tantas aluses noo de destino que une os vrios actantes, como se fosse permanentemente sentenciado: tudo isto, todos ns, estvamos infalivelmente fadados a encontrarmo-nos no caminho; e mais, que cada um deles faz parte do rol de sujeitos que no podiam ser de outra forma, individualmente. De Manoel de Barros dito que a poesia lhe aconteceu devido ao atrevimento do seu pai que ludibriou a realidade ao posar para uma fotografia em cima de uma caixa velha, para dar a iluso de ser mais alto que a sua esposa, me do poeta. Deste modo, Joo [pai de Manoel] mostrou para a posterioridade quem era o chefe da famlia. Como castigo, seu filho Manoel nasceu com uma anomalia incurvel: Manoel de Barros nasceu poeta. J a filha de Manoel, Marta Barros, pintora surrealista e ilustradora, afirma acerca da sua arte, correlacionando-a com a poesia do seu pai: eu acho que tem um casamento entre o meu trabalho e a obra dele, que ele botou um nome [], ele fala que eu ilumino, que so iluminuras.O surgimento de Manoel de Barros enquanto figura de incontornvel importncia e prestgio no crculo literrio deu-se tarde, em grande parte devido sua averso em aparecer em frente a camaras, fotos, ou at mesmo em eventos da raia literria, e este assume a sua surpresa quando, num repente, aps uma publicao acerca dele, comea a receber solicitaes de editora. O realizador aproveita o mote para, uma vez mais, aludir ao caracter modesto do poeta e da sua obra, da qual a sua esposa, Stella, s teve conhecimento, por intermdio de terceiros, nas vsperas do seu casamento com Manoel.Manoel no pretende ser explicado, no encontra qualquer sentido da racionalidade na sua poesia:

O rio que fazia volta atrs de nossa casaEra a imagem de um vidro mole que fazia volta atrs de nossa casa.Passou um homem e disse: Essa volta que o rio faz por trs de sua casa, se chama: enseada.No era mais a imagem de uma cobra-de-vidro que fazia volta atrs de casaEra uma enseada.Acho que o nome empobreceu a imagem.

bvia no apenas a necessidade de rejeitar lugares-comuns ou recusa em aceitar a coerncia racional assumida, mas tambm a sua frtil recorrncia ao lugar da infncia, que lhe deu a conhecer os escritos do Padre Vieira, que tanto influenciou a sua vida e escrita. Adriana Falco, escritora e roteirista, uma outra leitora contagiada a testemunhar, corrobora o ambiente de consagrao do autor acrescentando que acha a simplicidade da poesia do Manoel de uma profundidade enorme, difcil teorizar sobre ela. Bateu [a poesia],bateu. No bateu, esquece, encontrando assim a natureza inexplicvel e irracionalizvel da obra do poeta:

Poderoso para mim no aquele que descobre ouro.Para mim poderoso aquele que descobreAs insignificncias (do mundo e as nossas).Por essa pequena sentena me elogiaram de imbecil,Fiquei emocionado e chorei.Sou fraco para elogios.

O realizador, alm de explorar, ao longo de todo o documentrio, a fragilidade afetiva da obra de Manoel de Barros, tambm o eterniza ao mostrar a sua fragilidade pessoal, mostrando um Manoel emocionado ao afirmar que no tem qualquer fortuna critica, apenas leitores eu sinto que sou amado por todas as pessoas que me leem.Tal como inicia o documentrio, Pedro Cezar tambm o termina com uma questo fatdica: Como o senhor gostaria de ser lembrado?, Evidente que seu eu pudesse ter a minha marca da perenidade, eu s poderia t-la atravs da poesia [] seria como poeta. E nem a morte escapa poesia de Manoel, que acerca dela teoriza:

O tempo s anda de ida.A gente nasce cresce amadurece envelhece e morre.Pra no morrer tem que amarrar o tempo no poste.Eis a cincia da poesia:Amarrar o tempo no poste.

Com esta sentena, Manoel de Barros sobrevive ao tempo, torna-se imortal por ser poeta, amarra o tempo no poste e prossegue. Alcana o maior e mais profundo estdio da existncia: a da perenidade ideolgica, potica e filosfica.Pedro Cezar avana e recua numa dana perfeita entre o real, o pretendido, o que no dito mas que est l, o que para ser visto na sua ausncia mas que carrega a sua indiscutvel admirao pelo poeta. Desde a escolha dos cenrios, ao jogo semitico cromtico, sonoplastia, o realizador faz uma ode ao Poeta, espelha no seu documentrio aquilo que podia ser dito mesmo na total carncia de palavras, mas que Fausto Wolff, escritor e jornalista, exprime perfeitamente, no culminar da obra cinematogrfica:

A histria do mundo, ela feita por generais, mas ela corrigida por poetas, que vm antes, sabem antes.

Para que serve a poesia? Para que existam, talvez de dez em dez mil anos, indivduos como Manoel de Barros, que ousam aumentar o mundo, que lhe recordam da sua humanidade, que corrigem a histria e, no final de tudo, ainda tm o descaramento lrico de afirmar: eu no sou biografvel.Em S dez por cento mentira fica terminantemente comprovado que Manoel de Barros alcanou a liberdade interior de dizer que no biografvel, precisamente pelo mesmo princpio que faz dele, sem qualquer hesitao, merecedor de toda e qualquer intentada biografia, sabendo-se, A priori, que aquilo que ele , aquilo que representa, jamais figurar num livro ou filme, porque pertence dimenso que sobreviveu herana de Plato: a do mundo inteligvel que no s povoado por ideia, mas talvez o seja, mais ainda, por comoes.

Concluso

O presente trabalho pretendeu incorrer numa anlise profunda do documentrio de Pedro Cezar S dez por cento mentira, tendo em conta no apenas as suas caractersticas tcnicas, mas tambm os seus valores simblicos. Neste sentido, foi necessrio aprofundar a sustentao terica do mesmo atravs de bibliografia extensa e que fosse capaz de esclarecer algumas questes que se foram mostrando relevantes para uma anlise cuidada e atenta aos detalhes.Aps pesquisa, foi compreendido que para a anlise discursiva deste gnero, era necessrio primeiramente compreender afinal, de que gnero tratamos, o documentrio: quais as suas especificidades e qual o modus operandis a ter em conta para a sua singular cadeia discursiva.Posteriormente tornou-se essencial que, a par com o gnero cinematogrfico, se discorresse acerca do autor em questo, iniciando com uma breve biografia do mesmo, e atravessando os pontos mais peculiares da sua obra. S aps estes passos foi possvel ento ir ao encontro da complexidade existente no documentrio em si, repleto de entrelinhas e teias discursivas que requerem um esforo de interpretao acrescido devido ao seu cariz lrico, que por si s, j contm um intrincado tecido discursivo. Foi necessrio observar em detalhe cada parte do documentrio, pens-lo e relacion-lo com matrias que, aparentemente, no teriam correlao. No entanto, um dos mais essenciais ensinamentos retirados do presente trabalho foi precisamente a crena e convico de que, na realidade, nos lugares aparentemente sem inter-correlao, que, na maioria das vezes, se encontram as linhas invisveis que deslindam o sentido ultimo das coisas.

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