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SÓLON E ESQUILO: DUAS CONCEPÇÕES DE TEMPO AFINS Hermann Fránkel demonstrou, no seu valioso e sempre actual estudo «Die Zeitauffassung in der fruhgriechischen Literatur» (1), em que medida Homero nos atesta uma quase perfeita indiferença em relação ao tempo, sobretudo quando expresso pelo termo chronos. Bem mais r arcante é a noção de dia •— ^/xaq —, nota o autor, como unidade autónoma e apreensível da vivência humana, ou por esta apreen- dida, que nada permite entrever do dia próximo. Se é certo que a lírica arcaica vai desenvolver dominantes que já se adivinham no dia homérico (2), Sólon, por seu turno, desenvolve fundamentalmente uma outra noção de tempo que poderá conter alguns elementos do «dia» da épica (3), mas integrados, agora, numa perspec- tiva cujas raízes assentam em outra forma de consciência de mundo e de homem. Como político e legislador, Sólon é levado a analisar as causas da instabilidade da polis (4) e a meditar sobre o sentido da sua activi- dade de legislador (5). Legislar assenta, para ele, em dois pressu- (1) Wege und Formen frugriechischen Denkens, Mùnchen, 1968 3 , pp. 1-22. Manifesta distanciamento crítico, por vezes não muito compreensível, em relação a este trabalho, S. Accame, «La concezione dei tempo neli'età omerica e arcaica', RFIC, N.S. 39, 1961, 359-394. Sobre a noção de tempo em Homero, vide também M. Treu, Von Homer zur Lyrik Múnchen, 1968 2 , pp. 123-135. (2) A poesia iâmbica sugere-as também (Arquíloco, 122 West, 5 sq.), tal como a própria elegia lhe não é alheia (cf. e.g. Teógnis, I, 129-130). (3) De facto, a incerteza do tempo que vem e que o presente parece não deixar vislumbrar encontra expressão em Sólor, 13 West, 65 sqq. (4) Frg. 4 West. (5) Tal preocupação encontra-se particularmente patente nos fragmentos 5, 32, 36 West. Em relação à aplicação política da justa medida advogada por Sólon, nota J. Ribeiro Ferreira, Da Atenas do séc. VII às reformas de Sólon, Coimbra, Fac. de Letras, 1988, p. 35, que se trata de uma atitude estudada e racional.

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Page 1: SÓLON E ESQUILO: DUAS CONCEPÇÕES DE TEMPO AFINS...Esquilo é, essencialmente, o teólogo e dramaturgo (13) que recorre ao mito de modo a evidenciar, na sequência dramática das

SÓLON E ESQUILO: DUAS CONCEPÇÕES DE TEMPO AFINS

Hermann Fránkel demonstrou, no seu valioso e sempre actual estudo «Die Zeitauffassung in der fruhgriechischen Literatur» (1), em que medida Homero nos atesta uma quase perfeita indiferença em relação ao tempo, sobretudo quando expresso pelo termo chronos. Bem mais r arcante é a noção de dia •— ^/xaq —, nota o autor, como unidade autónoma e apreensível da vivência humana, ou por esta apreen­dida, que nada permite entrever do dia próximo.

Se é certo que a lírica arcaica vai desenvolver dominantes que já se adivinham no dia homérico (2), Sólon, por seu turno, desenvolve fundamentalmente uma outra noção de tempo que poderá conter alguns elementos do «dia» da épica (3), mas integrados, agora, numa perspec­tiva cujas raízes assentam em outra forma de consciência de mundo e de homem.

Como político e legislador, Sólon é levado a analisar as causas da instabilidade da polis (4) e a meditar sobre o sentido da sua activi­dade de legislador (5). Legislar assenta, para ele, em dois pressu-

(1) Wege und Formen frugriechischen Denkens, Mùnchen, 19683, pp. 1-22. Manifesta distanciamento crítico, por vezes não muito compreensível, em relação a este trabalho, S. Accame, «La concezione dei tempo neli'età omerica e arcaica', RFIC, N.S. 39, 1961, 359-394. Sobre a noção de tempo em Homero, vide também M. Treu, Von Homer zur Lyrik Múnchen, 19682, pp. 123-135.

(2) A poesia iâmbica sugere-as também (Arquíloco, 122 West, 5 sq.), tal como a própria elegia lhe não é alheia (cf. e.g. Teógnis, I, 129-130).

(3) De facto, a incerteza do tempo que vem e que o presente parece não deixar vislumbrar encontra expressão em Sólor, 13 West, 65 sqq.

(4) Frg. 4 West. (5) Tal preocupação encontra-se particularmente patente nos fragmentos 5,

32, 36 West. Em relação à aplicação política da justa medida advogada por Sólon, nota

J. Ribeiro Ferreira, Da Atenas do séc. VII às reformas de Sólon, Coimbra, Fac. de Letras, 1988, p. 35, que se trata de uma atitude estudada e racional.

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postos: o da existência de um princípio universal, sempre actuante, cuja manifestação é imanente ao acontecer temporal, em consonância e à imagem do qual a lei deve ser criada — esse princípio universal deno-mina-se, para Sólon, Dike — e o da visibilidade de manifestação dessa Dike aos homens, de modo que o bom legislador possa pautar-se por uma referência clara e veja, por outro lado, a sua acção corroborada aos olhos dos seus concidadãos. Ao acto presente de legislar, reformar e governar assiste, pois, a fé na manifestação futura de uma Justiça que ratificará — avfi/xagxvQoírj, frg. 36 West, v. 3 — o político perante a cidade.

Mas, justamente, tal atitude implica uma consciência de conti­nuidade temporal que vai, a partir de então, ganhar vida na literatura grega. Primeiramente M. Treu e, na sua sequência, S. Accame (6) acentuam a importância significativa do recurso, por parte de Sólon, à expressão homérica:

... xá xèóvxa xá x'èaaôfieva TCQó x'èôvxa II. 1.70,

«...o que é, o que há-de ser e o que antes foi»,

que esclarece o teor do saber de Calcas, mas que aparece alterada, na elegia do legislador, para xà yiyvópsva TIQó x'èôvxa (frg. 4 West, 15), como conteúdo do saber da Justiça. Assim, a noção de continuidade nasce fundamentalmente da relação do futuro com o presente, da fluidez denotada por yíyvo/xai e que mergulha no amanhã. As raízes do que há-de vir estão, por conseguinte, contidas no qve agora acontece. O passado, em contrapartida, parece continuar a ser sentido como um repositório de factos e dados (7).

Como suporte do acontecer temporal concebe Sólon a Dike sempre vigilante. O tempo converte-se, por essa via, em fiel executor da Justiça e lugar da sua manifestação (8) :

av/i/jMQXvgoírj xavx' ãv êv ôíxtji XQóVOV

36 West, 3.

(6) M. Treu, op. cit. pp. 276-277 e S. Accame, op. cit. p. 381. Treu comenta que o aspecto do devir, patente na versão soloniana da expressão homérica, tem paralelo na lírica arcaica sua contemporânea, como a de Alceu.

(7) Lit. «as coisas que estão antes.» (8) Sobre a justiça soloniana, nomeadamente sobre a sua relação com os

valores da arete, veja-se B. Snell, Die Entdeckung des Geistes, Gõttingen, 19754, pp. 167-168. O sentido da dike na citação aqui feita pode suscitar dúvidas: trata-se

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Sempre que, no tempo, a Justiça é ofendida, exercerá, também no tempo, a sua vingança (4 West, 16). E a sua acção a torna o tempo visível — o que o legislador não se cansa de fazer sentir à cidade, na sua obra poética (9).

Ora, de facto, o operar da Justiça só pode ser sentido como vin­gança se aceitarmos uma relação de causalidade a unir os aconteci­mentos, se aceitarmos, afinal, que o passado, o presente e o futuro se congregam como sentido, horizonte da Dike.

Essa noção de causalidade pode ser dada, no contexto das adver­tências do poeta, através da ideia de «gerar, dar à luz» de consequências funestas, que decorrem de um qualquer tipo de excesso (10), como é o caso de 6 West, 3:

ríxxei yàç xógoç iïjÎQiv,..

«pois a saciedade gera a insolência...»

de «justiça do Tempo», «julgamento do Tempo» ou «tribunal do Tempo»? As três acepções de dike estão documentadas. A primeira hipótese parece-nos de rejei­tar, dado que o passo em causa revela uma consciente aproximação da linguagem específica da actividade forense (cf. ovfifiaQTVQoírf). Quanto às duas outras hipó­teses, tem o «tribunal do Tempo» o aliciante de concordar com a perspectiva global do tempo soloniano: chronos como lugar de revelação da justiça, onde o justo se mostrará como justo e o injusto como tal há-de aparecer. Lugar esse onde a terra pode testemunhar a favor de Sólon. Não podemos, no entanto, tomar posição determinada e exclusiva sobre o assunto. A acção do tempo expressa em metáfora judicial virá a aparecer também em Anaximandro, 1 B, DK. Também M. Treu, op. cit. p. 278 alude ao tempo soloniano como veículo ou instrumento da Dike.

(9) O próprio Sólon se autodesigna como um arauto (1 West, 2), ou como um homem compelido pelo seu thymos a cumprir, na poesia, uma missão didáctica 4 West, 30). Se já Hesíodo havia sentido a necessidade de aconselhar Perses pelo mesmo meio, a sua missão é, no entanto, definida como tarefa imposta pelas Musas, nota C. Bowra, Early Greek Elegists, New York, 1969, p. 78.

(10) Cf. Esquilo, A. 764-766. Mazon, na sua edição bilingue de Esquilo, aproxima do fragmento A. 372 sqq.

A noção de metron, que o homem deve respeitar, é, de facto, advogada em moldes análogos pelo trágico, que parece fazer ecoar o tom admonitório desta elegia, mesmo na versão adoptada por Fraenkel ou Page para A. 378: VTIèQ Tò jiêXxiaxov (diferente­mente de Mazon: ftÉTQov rò fSeXnorov, que se apoia na emenda de Weil). Uma oportuna aproximação entre o ideal de justa medida esquiliano, definido como itinerário do respeito pela dike até à obtenção de sophrosyne, e o ideal do meden agan de Sólon é feita por R. H. Beck, Aeschylus. Playright Educator, The Hague, 1975, 15 sqq.

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E a conjugação significativa dos três planos temporais como horizonte da Justiça preside ao emprego da forma verbal avvoíôe (frg. 4 West, 15) — a Justiça «conhece» o presente e o passado, e o verbo tem aqui o sentido de «com-preender» (aêv-oiôs) na língua portuguesa, isto é, de saber como «domínio de». Mais uma vez o elegíaco se desviou criativamente de Homero, ao imitá-lo, pois o conheci­mento de Calcas é dado pela forma ffiô^.

O fragmento 10 West, em que o político, segundo Diógenes Laér­cio 1.49, se defende, perante concidadãos seus, da acusação insultuosa de loucura, atesta essa fé na capacidade díctica do tempo em relação à Justiça que o determina:

ôeíÇei, ôt] fiavlrjv fièv ê/j/rjv (íOLLòç %QóVOç âaxolç,

ôeí£ei âÀfjdsírjç êç jxíaov EQ^opévrjç.

«há-de um breve tempo já mostrar aos cidadãos a minha loucura, há-de mostrá-la, quando a verdade se encaminhar para o

[centro.»

No entanto, patente se torna, também, que, como agente do acto díctico, ele possui apenas a capacidade de mostrar (11) aquele princípio fundamental que o transcende e que nele pode agir ocultamente, em silêncio (aiycòoa), como o poeta diz na Eunomia, porque oculto quer agir, e nele se deixa mostrar, também por sua livre vontade.

Chronos é, assim, o lugar de revelação de um princípio transcen­dente, espontânea e livremente temporalizado. Nesse sentido entende­mos o genitivo absoluto, do fragmento acima citado, âXrjdsírjç êç fiéaov sQ^ofisvrjç. A verdade, no seu caminho, mais não parece ser, aqui, que o impulso, a dinâmica de manifestação da Dike, que há-de honrar Sólon, e a meta para onde aquela se dirige — êç jxsaov — e ple­namente se mostra o correspondente, afinal, ao tribunal do Tempo, onde o poeta crê ver confirmada a sua acção (12).

(11) Sobre a capacidade mostrativa do tempo diz Tales, 35 A, DK: âvev-QÍoxei yàq návra. Esta perspectiva tenderá, posteriormente, a vulgarizar-se. Cf. e g. Soph. OT, 613-614.

(12) W. Schadewaldt, «Lebenszeít und Greisenalter im friihen Griechentum», Hellas u. Hesperien, I, Bern, 1970, p. 126, aponta a amplitude da lei natural da Dike soloniana: «sie sendet den Donner dem Blitze nach, lásst den Hagel aus der Wolke

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À atitude de Sólon que, como político, tenta, no encadeamento dos factos, encontrar e demonstrar um sentido, se assemelha, posterior­mente, a atitude de Esquilo, movido este, no entanto, por motivos diversos.

Esquilo é, essencialmente, o teólogo e dramaturgo (13) que recorre ao mito de modo a evidenciar, na sequência dramática das suas peças, o poder actuante dos deuses no acontecer humano. Poder esse que se revela através do processo de punição e resgate e que deixa aberta ao homem, entre uma e outro, a tão característica aprendizagem pelo sofrimento e a certeza que o deus opera segundo as suas leis e por elas ajuda aquele que comete excesso a apressar a sua própria queda. A partir daí deve o homem inferir o seu estatuto e reconhecer que a infracção desse estatuto representa, por conseguinte, uma ofensa às leis divinas e arrasta consigo o consequente castigo que no tempo se seguirá inevitável.

Assim o anuncia Dânao a suas filhas (Suppl. 732-733):

... XQóVCM XOI XVQÍOM x êv rjixêqai

deovç àxítfov riç (IQOX&V ôáasi, ôíXTJV.

«...no tempo, num dia fixado, quem de entre os mortais ofender os deuses há-de receber castigo.»

Assim o antevê, tomado de receios, o Coro do Agamemnon, no longo Estásimo I, perpassado por uma sombria atmosfera de presságio :

x&v noXvxxóvcov yàç ov% 'ãoxonoi deoí, xeÀai-

fallen (Fr. 10 Diehl) und ebenso notwendig das Unheil dem Frevel entkeimen (Fr. 1.3). Sie beruhigt und glattet das Meer (Fr 11). Ais natiirliche Ordnung beherrscht und formt sie auch den zeitlichen Wandel des Menschenlebens». E acrescenta de seguida : «Der Dike schliesslich ist auch die Zeit untertan geworden, ais VoUstreckerin des Rechtes (3,16) ais Offenbarerin der Wahrheit (9), ais «Gericht» (24).

(13) Fundamental continua a ser, sobre esta matéria, o trabalho de K. Rei-nhardt, Aischylus ais Régisseur und Theologe, Bern, 1949. Nele procede também o insigne helenista a uma comparação entre a teodiceia soloniana e a de Esquilo.

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vai à' 'Eqivveç %QóVO)I

rv%t]QÒP ovt" ãvev òíxaç TtaXivxvfcëi TQij3ãt fiíov

ndsïa' ã/navQÓv ... (A. 461-466, )

«pois daqueles que provocam muitas mortes não arredam os deuses o olhar. E as negras Erínias, com o tempo, enfraquecem o que prospera sem justiça, esgotando-lhe a vida com uma sorte contrária...»

No tempo (%QóVCOí) morre só e coberto de opróbrio aquele que ignora as Erínias paternas (Ch. 295).

O tempo é, por conseguinte, tanto em Esquilo como o havia sido em Sólon, sentido como lugar de revelação e actuação do divino, lugar onde é dado ao homem conhecer e experienciar essa manifestação dos deuses ou de forças divinas — quer ela ocorra tarde, quer venha breve (Pr. 739) — como fundamento do nexo causal dos factos e destinos humanos, conjugada com o seu próprio comportamento ou com o dos seus antepassados (14).

Por isso, o passado é sempre evocado pelos coros esquilianos como tentativa de compreender o presente, conforme nota J. de Romilly(15). Por esse mesmo motivo se explica o valor expressivo do uso esquiliano de termos construídos sobre o elemento TtáÁai -, utilizados com abundância em pontos fulcrais para a compreensão do drama (16).

(14) Reconhece-o, por exemplo, o fantasma de Dário ao ver recair sobre Xerxes o cumprimento das antigas profecias que recebera: «mas sempre que alguém se apressa (a errar), o deus ajuda-o (entenda-se: no caminho da ruína). Quanto à culpa hereditária a pesar sobre o próprio destino das figuras trágicas, é por demais reconhecido que ela constitui motivo de fundo da dramaturgia esquiliana e ganha particular realce em Sete contra Tebas e Agamémnon, evocada de sobremaneira pelos Coros de ambas as peças.

(15) Le temps dans la tragédie grecque, Paris, 1971, pp. 63 sqq. (16) Damos, a título exemplificativo, algumas das ocorrências que nos pare­

cem mais significativas: náXai: A. 520, 587; Ch. 803. JtaÀmyevrjç: Eu. 173; Th. 742. naXatáç: A. 764, 1197, 1501; Ch. 650; Eu. 721, 778, 808, 883; Pers. 103, 158, 703;

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E esta evocação valorativa do passado representa, em confronto com Sólon, uma faceta nova, pois Sólon fundamenta as suas apreensões e advertências dando essencialmente relevo ao presente, como a Eunomia, sobretudo, o atesta, e mesmo que esse presente corresponda a um estádio de um processo com raízes anteriores (17).

Mais ainda, se o presente, em Esquilo, pode ser, tal como o passado, fundamento natural de ameaça de uma punição futura, ou então, se às injustiças sofridas ou iminentes se junta o convite ao bom ânimo (dágaec, Supp. 732), pois o desfecho será certo, o realce marcante que o passado agora assume pode conferir — e confere decerto — à actuali­dade uma faceta diversa e específica. Ela pode ser o tempo da rea­lização, presenciada com júbilo ou com terror, de um acto de justiça há muito esperado {Ch. 935 sqq.); pode também ser um tempo suspenso, de tensão e medo, que liga um passado marcado por excessos, pelo crime, pela ate, a um futuro que trará a reposição dolorosa das normas violadas, e pela qual é impossível não esperar. Mas, destas duas atitudes tão familiares ao teatro esquiliano — o medo e a espera — nos ocuparemos mais adiante.

Na ode dedicada à Justiça, fala o Coro das Coéforas do navreÀr/ç XQÓvoç (965) que há-de em breve franquear os portais do palácio. É o momento decisivo em que a justiça está a ponto de se manifestar aos homens e permitir que também a casa dos Atridas possa viver liberta da opressão e luto em que vive mergulhada. Tal como aconteceu outrora, com a estirpe de Príamo (Ch. 935-936):

ëfioXe fj,èv Aíxa IlQiafiíòaiç %QóVWI,

pagvôixoç noiva'

«veio a Justiça, com o tempo, sobre a raça de Príamo, e severo foi o castigo a expiar»,

é também agora, precisamente por esse movimento espontâneo da

Suppl. 265: Th. 740. 7iaXaió<pga>v: Suppl. 593. nakaíqxnoz: A. 750; Th. 766„ naXalxQow: Th. 105.

(17) Como é evidente, não está de todo ausente a valorização do passado. A própria enunciação de leis gerais de causalidade pressupõe o recurso a um nexo entre o passado e o presente e a dedução, a partir daí, de um elo semelhante a unir presente e futuro, tendo o poeta concluído esse nexo a partir da observação.

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Justiça, dado pela anáfora êfioXe ... S/A,OáS ... (vv. 935 e 937) (18), que o tempo, no qual ela se revela e age recebe o seu estigma de 7iavrsXi)ç. O elemento -xsXrjç é a expressão, em nosso entender, dos desígnios divinos que nele actuam e que nele se querem ver cumpridos. E o tempo é o seu servidor. Quanto ao elemento nav -, pensamos que ele assinala em chronos o carácter de fiel instrumento dos deuses, de cumpridor absoluto, que este possui. Assim, o tempo há-de estar ao serviço de uma justiça dos deuses prestes a revelar-se, definitiva­mente, em todo o seu poder (19), como luz há muito esperada a ilu­minar a casa de Agamémnon e permitir, àqueles que nela moram, a libertação das trevas para «olhar a luz» (961).

Pensamos ser este o valor fundamental da referida personificação do tempo.

Uma outra construção que merece o nosso interesse é a do acusa-tivo XQóVOV regido pela preposição elç, construção essa de particular frequência nas Euménides e associada ao propósito, por parte da divin­dade, de fazer prevalecer, com validade imorredoura, princípios ou instituições que funda (20).

A respeito do Areópago e do princípio que estabelece para o seu funcionamento, diz Atena que o estabeJecera «para sempie» {ròv elç ãnavra %QóVOV EU. 484). Pouco depois (571-572) profere as seguintes palavras :

aiyãv àqriyei xal /mdeïv Qeafioèç èfiovç TIÓÃIV xs nãaav elç ròv alavrj %QóVOV

«convém que se faça silêncio e que toda a cidade conheça as leis por mim estabelecidas para sempre ...»

(18) A anáfora prossegue em 946. O verbo tem aí como sujeito Orestes, que o Coro aponta como instrumento da Justiça que o conduz (948 sqq.).

(19) No capítulo dedicado a Esquilo, da obra já citada, J. de Romilly refere a conexão estabelecida pelo tragediógrafo entre o tempo e a justiça divina como cerne da sua perspectiva religiosa. Segundo a autora, com quem concordamos, é essa a razão fundamental por que Esquilo apresenta muito menos personificações do tempo que os outros autores trágicos.

(20) Com valor semelhante encontramos na mesma peça navxl xQÓveoi (965) ou nqónavxoç XQóVOV (898). Em contrapartida o oposto, isto é, acções humanas que não são correctas, não as pode o homem fazer perdurar com proveito iç noXvv XQóVOV (A. 621), conforme diz o arauto, a propósito de mentiras agradáveis que poderia contar, mas que não conta.

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Para todo o sempre — entenda-se: da sua existência — determina Apolo a fidelidade de Orestes a Atena, numa expressão aproximável das anteriores: êç rò nãv %QóVOV {EU. 669-670).

Orestes, por sua vez, ao conhecer a absolvição que o tribunal ateniense lhe concede, compromete-se, sob juramento, a manter fideli­dade à polis que o recebeu, até ao fim dos seus dias — e mesmo para além dele:

ró Xomòv slç ÕTtavra nXeiarriQH] %QóVOV

Eu. 763,

«para o futuro, para todo o tempo incomensurável...

Os textos que até aqui referimos levam-nos a concluir que a força díctica do chronos soloniano se esbate para deixar ainda mais vincada a dinâmica daquilo que no tempo actua, em Esquilo, apesar de ambos os poetas se situarem em perspectivas muito afins. Ou podemos supor, também, que a necessidade, por parte de Sólon, de chamar a atenção dos seus concidadãos para a função do tempo como testemunha da justiça ou de os advertir que há uma lei actuante no tempo — e que o tempo mostra — pela qual chegará por certo um futuro ruinoso, nascido dos desvarios presentes, é substituída, no tragediógrafo, pela possi­bilidade de o demonstrar através do desenvolvimento dramático do mito, sendo a deixis operada pelo tempo e espaço dramáticos e conhe­cendo aquele uma profunda ampliação: no passado, como dissemos, se encontram as raízes, apreensivamente rememoradas, da catástrofe iminente.

Na extensão desse tempo trágico operam Zeus, a Justiça, as Moirai, as Erínias e se revelam como sustentáculos dessa ordem inte­riorizada pelo homem através do nádst /uádoç, depois de a transgredir. Por isso a aprendizagem humana se faz no tempo {sv %QóV(úI fiadwv, Supp. 938) e o tempo pode exercer sobre o homem uma função peda­gógica. Assim o diz Prometeu (981) em palavras que nos fazem recordar a pedagogia soloniana do envelhecimento (cf. frg. 18 West) (21):

'AXX êxôiôáoxei Tiávd' o yrjqáarMv %QóVOç.

«Mas tudo o tempo ensina, ao envelhecer.»

(21) Cf. Esquilo, Eu. 286: XQÓvoç xadaigeí návxa yrjQámscov iptuõ: «o tempo tudo destói enquanto vai envelhecendo.» Este verso não é, contudo, isento de

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A certeza esquiliana de que no tempo está reservada ao homem

a punição ou, mais latamente, a manifestação da justiça, é expressa

pelo dramaturgo através da noção, já herdada da tradição literária,

de divindade omnividente (22). A tal noção não permaneceu Sólon

insensível, como o atestam a «Atena vigilante» — episkopos — da

Eunomia (v. 3) ou o Zeus da elegia às Musas (13 West 17):

âXXà Zsvç Ttávrcov ècpooãi réXoç.

«mas Zeus vela pelo fim de tudo.»

Compreende-se, no entanto, pelo que ficou exposto, que a ideia

de vigilância omnividente, por parte da divindade, tenha no trage-

diógrafo uma força mais relevante do que aquela que o elegíaco lhe

confere (23).

polémica, já que Musgrave o considera interpolação e Buckley entende dever des­locá-lo para antes de 276. Page, na edição oxoniense, adopta a emenda xadaíçet, preferindo-a à forma xadaiosï dos códices.

Em relação à aprendizagem no tempo, através do sofrimento, daquele que agiu erradamente, não podemos deixar de recordar aqui as considerações de B. Snell, Aischylus unddas Handeln im Drama, Leipzig, 1928, cap. I, nomeadamente pp. 14 sqq. : no antagonismo ôQõV / itáa%eiv, que é ponto-chave da tragédia esquiliana, o segundo termo é consequência natural da própria essência do drama, a que dran corresponde.

(22) Os exemplos são numerosos. Os três momentos : a acção sem justiça, o castigo que vem com o tempo e a divindade que olha o insensato e dele se ri estão condensados em Eu. 550-562. Em Supp. 138-139 também Zeus, «o pai que tudo vê» —narrjQ õ navrómaç — é invocado para atendimento das súplicas do Coro, no tempo. O mesmo Zeus omnividente é invocado no fecho da Oresteia: Eu. 1045. A divindade pode ser convidada a contemplar uma situação, como pedido de exer­cício da sua justiça ou da sua acção protectora: Supp. 206,210, bem como Ch. 246 sqq. Cf. Euripides, El. 771, onde Dike é «aquela que tudo vê». Em Esquilo a força da Justiça «vigia» (Ch. 61 sqq.). Vigilante é também a atitude das Erínias (A. 461-463). Em Homero o Sol, enquanto testemunha a quem nada escapa, é invocado nos jura­mentos, como omnividente, a par de Zeus e das Erínias: e.g. //. 3.277: cf. Esquilo, Ch. 985-987 e frg. 192,5 Radt.

Significativamente o tempo ganha nas personificações em Sófocles esse estatuto de omnividência que Esquilo lhe não conhecia: e.g. OT, 1213.

(23) Embora haja, de facto, passos de ambos os autores que muito se aproxi­mam, como o verso de Sólon acabado de citar e Supp. 139-140. Se há inspiração soloniana neste verso trágico ou se ambos remetem para um fundo sentencioso comum, não nos é dado apurar. Note-se, mesmo assim, que a expressão esquiliana

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A vigilância do deus, a sua capacidade de tudo «compreender» pela visão — que pode, de algum modo, corresponder ao avvotôs da Dike soloniana — são absolutamente indissociáveis da sua capacidade de acção universal (24).

Zeus assegura o cumprimento da justiça — ele é o portador da justiça (A. 525-526) — e por isso esta é dada, mitologicamente, como sua filha (Ch. 949). A vigilância divina, a que nada escapa, quanto à observação da justiça-—ovx ãaxonoi dsoí (A. 461-462) — pode ser manifestada, na sua eficácia, pelo próprio raio fulminante de Zeus (ibid. 469-470). O tempo é o seu coadjuvante e o lugar da sua exe­cução (XQóVCOI, 463). Quer isto dizer que, como actuação do olhar divino, a justiça é, por si, concebida com natureza luminosa — ela refulge, conforme o entoa o Coro da Agamémnon (772) (25).

Quando se manifesta aos homens, a justiça pode envolver, na sua luminosidade, tudo aquilo sobre que incide, como libertadora das trevas, ou sobre que se abate, precisamente como o brilho mortífero do fogo de Zeus (26). Tal como a Dike soloniana, ela pode agir a coberto do olhar e compreensão dos homens. Na sombra podem os desígnios de Zeus permanecer, isto é, para além da inteligência e percepção

é mais vigorosa, na medida em que a acção vigilante de Zeus é convertida em atributo imanente ao Olímpico (pantoptas), a quem é reconhecido, sob a forma de voto, o poder de tudo cumprir, de acordo com a sua vontade. A primeira aproximação que conhecemos entre o pensamento de Sólon e o de Esquilo, nomeadamente na associação acção humana / desencadear da justiça/fófoí é de Bruno Snell, no seu livro sobre Esquilo, já citado, pp. 38-39. Para uma aproximação entre o nexo luz-justiça-manifestação divina em Hesíodo, Sólon e Esquilo, vide D. Bremer, Licht und Dunkel in der fruhgriechischen Dichtung Bonn, 1976, pp. 353 sqq. Veja-se ainda o trabalho de P. Solmsen, também utilizado por D. Bremer, Hesiod and Aeschy­lus, Ithaca, 1949.

(24) Cf. D. Bremer, op. cit. p. 361-362: «in der aischyleischen Gestalt des Zeus ist die Kraft des Allvollendes mit der des Allsehendes verbunden.»

(25) D. Bremer ocupa uma parte do seu capítulo dedicado à linguagem de luz e trevas neste tragediógrafo com o estudo minucioso da relação luz-justiça na Oresteia {pp. cit. pp. 341-423).

(26) Veja-se, para além de A. 469-470, Suppl. 91 sqq. A luz ambivalente da justiça que se manifesta como brilho salvador para uns, mas também como por­tadora de destruição para outros, para os injustos, isto é, aqueles que agiram de modo a que o esplendor da justiça permanecesse oculto, tem já um paralelo na epopeia homérica. Tanto Heitor (77. 11.62-66), como Aquiles (22.26 sqq.) surgem, aos olhos do inimigo, como astros de brilho mortífero. Vide D. Bremer, op. cit. pp. 79-91. Também Orestes recém-chegado para a vingança se compara a um astro, na Electra

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humanas, mas no tempo se virá a manifestar, cedo ou tarde, a vingança do Olímpico (27) e a certeza da imposição final da sua justiça perma­nece sempre.

Só que, enquanto Sólon sente necessidade de advertir os seus concidadãos da fatalidade de esperar as consequências desastrosas dos seus erros — o que eles parecem não saber, ou ter esquecido — várias das personagens esquilianas, entre elas o Coro, de sobremaneira, conhe­cem a verdade desta lei. Por isso mesmo, por essa certeza interior a cujo peso parecem até, por vezes, querer esquivar-se inutilmente, são postas numa atitude de expectativa ou de espera que as oprime, reconhecendo-se, contrafeitas, como profetas de desgraça.

7]ôrj

xaxó/uavríç ãyav ÔQaoÀonslrai dv/J,òç eacodev

Pe. 9-11, « Já o meu íntimo se agita em sobressalto, terrível profeta de desgraça.»

confessa o Coro de Conselheiros do Rei (28). Em termos análogos se manifestam os Anciãos de Micenas (A. 975-979):

Tinte fioi róò" ê/xnéòcoç ôeïpa nQoararrjQiov xagôíaç teQaaxÓTZov Ttoxãrai (xavrittoleÃ, ô'axéÀevoroç ã/xiadoç âoiôá...

de Sófocles (66) : vide M. C. Fialho, Luz e Trevas no Teatro de Sófocles diss, doutora­mento, Coimbra, 1988, p. 267, n. 37.

Para um estudo mais geral sobre a luz e as trevas na Oresteia veja-se também M. Russo, The imagery of light and darkness in the Oresteia, diss. Ohio State University 1974.

(27) Cf. Sólon, Elegia às Musas, 25 sqq. O braço vingador pode operar oculto (Ch. 946), dirigido pela Dike, e a acção desta ocorrer a qualquer momento, de surpresa (vv. 61-65).

(28) Mais adiante (114-115) o Coro confessa o sentimento que lhe domina o espírito, numa bela imagem que Mazon não respeita, na sua tradução em Les Belles Lettres: «e assim o meu espírito, envolto em negra túnica, é despedaçado pelo medo.» Estes versos são proferidos após alusão à Ate que seduziu Xerxes.

Podem as Erínias, pelo que de funesto trazem consigo, ser apodadas de kako-mantis {Th, 722-723).

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«Porque é que este terror esvoaça, em assédio constante, à volta do meu coração pressago? E o meu canto faz de adivinho, sem ordem nem salário ...

Encontra aqui o seu fundamento o tom de presságio das inter­venções corais. Aqui presente está também um outro aspecto da espera : deima (ibid. 976), a angústia confessa que de ambos os Coros se apodera e os persegue, inesquivável {A. 998-1000):

£V%0(iai ô' ê£ èfxãt;

êÃmôoç ipvd?] neaelv

êç rò fxrj reXsGcpÓQOv.

«Mas possa a minha ansiedade ser apenas ficção que jamais se realiza!»

Análogo é o terror que se apodera de Atossa, adensado pelo sonho ominoso (29).

Com efeito, à espera se associa o sentimento de medo, em todas as suas cambiantes, da apreensão—phrontis (cf. A. 165) — ao terror quase físico que cerca e domina o homem, como nota J. de Romilly num seu trabalho sobre esta temática (30). Atesta-o o emprego con­densado da terminologia deste campo semântico nos momentos fulcrais de expectativa, onde todo o peso de um passado de excessos e infracções

(29) É notável, nas duas primeiras intervenções da rainha, a variação da escala do medo, dada pelo vocabulário que vai da simples preocupação (161,165) ao medo acentuado ou ao terror (162, 206), em curioso jogo de falsa etimologia entre phobos e Febo.

(30) La crainte et l'angoisse dans le théâtre d'Eschyle, Paris, 1958. Abriu caminho ao estudo desta problemática o cap. II da tese de B. Snell, acima citada, dedicado precisamente ao phobos trágico. Nas pp. 43-44, ao considerar o phobos como uma das constituintes internas da própria situação trágica e da acção da tra­gédia, o insigne helenista fundamenta a atitude de prece de muitos dos coros, nomea­damente dos de Esquilo, no medo que os atinge. Numa segunda etapa da sua reflexão estabelece um interessante nexo entre o phobos trágico e a amechania lírica, onde a insegurança prende o homem à presente situação, ao dia em que se encontra, sem procurar caminho em frente.

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é invocado. É através desse sentimento que um Coro como o de Agamémnon se pode converter de observador em personagem afectada pela acção dramática.

Finalmente, não podemos deixar de recordar as palavras postas pelo dramaturgo na boca de Clitemnestra e que exprimem a vivência de um tempo de tensa espera, nos anos passados {A. 894):

. . . rov ÇVVEVÒOVTOç %QóVOV.

«... o tempo que comigo dormia.»

Se é justa a observação de H. Fránkel, em relação a Homero, de que ao esperar o homem descobriu o tempo (31), em Esquilo, o peso obsidiante de tal experiência é fonte animadora de uma das perso­nificações de chronos de maior valor expressivo e maior capacidade plástica, e apresenta-se como origem de uma valorização temporal nova (32). Ela é ainda estranha ao mundo de Sólon. Falamos da dimensão qualitativa do tempo, dimensão essa nascida de uma condi­ção fundamental de ser-no-mundo e da consciência múltipla das nossas raízes nesse mundo que nos condiciona, afecta e determina e nos abre ao mesmo tempo a riqueza e abismo da nossa humanidade.

MARIA DO CéU FIALHO

Universidade de Coimbra

(31) Op. cit. p. 2. (32) Vide S. Accame, op. cit. p. 389. Discordamos, no entanto, radical­

mente, da interpretação que o autor não explicita mas parece defender para XQÓvcoí ... xvQÍwi de Supp. 732 — «com o tempo soberano» —ao aproximar o verso da alusão de Píndaro ao tempo «pai de todas as coisas» Esquilo mais não quer dizer que «num dia marcado». Esta acepção do adjectivo como qualificativo de tempo ou de terminologia do seu âmbito semântico está atestada: cf. Píndaro, 0.6.52, ou Heródoto, 5.50.93. O próprio Esquilo documenta o emprego da forma neutra, substantivada, do adjectivo com o valor de «o momento decisivo»: A. 766. Mas, para além disso, há um aspecto de ordem linguística pelo qual não podemos entender Accame: a colocação da enclítica TE no verso em causa liga XVQíCM a tf/uéoai e não a XQóVOM. Accame esqueceu, certamente, que esse é um dos adjectivos que oscilam entre uma declinação triforme e biforme. Esqueceu também que a enclítica não tem, necessariamente, que ocorrer entre o primeiro e o segundo sintagma nominal, mas pode aparecer entre os dois elementos do segundo sintagma. O que ocorre com frequência extrema no grego.