sítios da pré-história recente da ribeira do enxoé (serpa): apontamentos acerca da variabilidade...

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Breve síntese sobre os sítios pré-históricos identificados no decurso da construção de canais de rega na área da ribeira do Enxoé, no concelho de Serpa, distrito de Beja.

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  • Patrocinador oficial

    FUNDAO MILLENIUM BCP

    150 anos

  • COMEMORAES DOS 150 ANOS DA ASSOCIAO DOS ARQUELOGOS PORTUGUESES

    Comisso de Honra

    Primeiro Ministro

    Presidente da Cmara Municipal de Lisboa

    Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana

    Directora da Biblioteca Nacional de Portugal

    Presidente da Fundao Calouste Gulbenkian

    Presidente do Centro Nacional de Cultura

  • 351 Arqueologia em Portugal 150 Anos

    stios da pr histria recente da ribeira do enxo (serpa): apontamentos acerca da variabilidade das estruturas em negativoLdia Baptista / Arqueologia & Patrimnio Lda., CEAUCP CAM, FLUP / [email protected]

    Srgio Gomes / Arqueologia & Patrimnio Lda.; CEAUCP CAM / [email protected]

    Resumo

    O presente texto versa sobre os resultados obtidos nos trabalhos realizados pela equipa da Arqueologia &

    Patrimnio Lda. no mbito da execuo do Bloco de Rega de Brinches Enxo (Serpa). Os trabalhos incidiram

    num conjunto de estaes localizadas nas margens da Ribeira de Enxo. Nestas estaes foram identificados

    contextos cujo conhecimento contribui para a discusso da complexidade do mundo em negativo da Pr

    histria Recente do interior alentejano. Com efeito, estas estaes apresentam um conjunto diversificado de

    estruturas em negativo, morfologicamente distintas e com diferentes enchimentos, sendo o objetivo deste

    texto a apresentao de uma sntese acerca desta variabilidade.

    AbstRAct:

    This paper addresses the prehistoric sites dug during the construction of the Bloco de Rega Brinches Enxo

    (Serpa, Beja, Portugal). These sites present several negative structures morphologically distinct and present

    ing different fills. We will present some of the main aspects of this variability, aiming to contribute to the under

    standing of this architecture tradition during the Late Prehistory in Alentejos hinterland (South Portugal).

    0. INtRoDuo

    Os trabalhos arqueolgicos desenvolvidos no mbito da execuo do Bloco de Rega de Brinches Enxo, promovidos pela EDIA SA, permitiram a interveno em 24 stios de estruturas em negativo de cronologia pr histrica (figura 1). A anlise preliminar destes stios, que cronologicamente se situam entre o Neoltico Final/Calcoltico e a Idade do Bronze, permitiu constatar uma variabilidade acentuada no que diz respeito morfologia e aos enchimentos das estruturas (Baptista & Gomes 2012a). Saliente se que este cenrio tem vindo a ser continuamente registado noutras reas do interior alentejano (Valera & Brazuna, 2011, por exemplo). Assim, se por um lado, o conjunto de intervenes recentemente realizadas nesta regio vem consolidando uma imagem de uma longa tradio arquitetnica que parece

    construir um mundo em negativo (Valera & alii, no prelo), por outro lado, mostra nos tambm que a formalizao de tal tradio e de tal mundo se constitui numa contnua integrao de diferenas. Estamos, ento, perante uma realidade que nos desafia a um estudo sistemtico dos dados de modo a compreender tal variabilidade. Este texto pretende constituir um contributo para essa sistematizao; decidimos escreve lo na forma de Apontamentos porque, no atual estado da investigao que desenvolvemos e nos limites que nos foram concedidos para a redao do texto, o modo possvel de partilharmos o que o nosso estudo nos levou a conhecer.

    APoNtAmeNto 1. sobRe os lImItes e As PossIbIlIDADes Dos DADos O Bloco de Rega de Brinches Enxo localiza se nas margens da Ribeira do Enxo. Na rea de implanta

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    o do projeto, este afluente da margem esquerda do Guadiana desenvolve se num vale encaixado de orientao E W. O relevo da margem Norte apresenta um ondulado mais acidentado onde se desenvolve o Barranco de Grafanes, que desagua na Ribeira do Enxo. Do lado sul, de salientar a presena de inmeras linhas de gua, que correm em vales abertos e ladeados por elevaes suaves com uma orientao SE NW. Do ponto de vista geolgico, caracteriza se por uma rea de formaes bastante heterogneas, das quais se destacam o complexo gabro diorito de Cuba e os Porfrios de Baleizo. O substrato local, comummente designado por calios, de tons esbranquiados (por vezes rosados/alaranjados ou acinzentados), fcil de esculpir.As reas de afetao do projeto correspondem, fundamentalmente, abertura de corredores de valas de implantao de condutas que, na maioria dos casos, apresentam traados perpendiculares ribeira do Enxo. Na margem Sul, tais corredores apresentam traados mais ou menos paralelos aos afluentes da ribeira. Na margem Norte, o nmero de corredores menor (estendendo se entre as ribeiras do Enxo e de Grafanes); nesta margem procedeu se tambm construo do Reservatrio de Montinhos, permitindo a observao direta do subsolo de uma rea correspondente a duas colinas. Comparando as reas afetadas e os resultados obtidos, devemos ter em conta vrios aspetos. O elevado nmero de estaes identificadas na margem Sul, pode ser decorrente do maior volume de trabalhos efetuados. Com efeito, do lado Norte, durante a execuo do Bloco de Rega de Brinches (Valera & Brazuna, 2011), a densidade de stios ganha uma expressividade semelhante registada na margem Sul. Ou seja, a menor densidade de ocorrncias registadas na margem Norte pode, efetivamente, estar associada a um menor nmero de corredores de obra e, consequentemente, a uma menor possibilidade de observao do subsolo. A este propsito, refira se que a construo do Reservatrio de Montinhos permitiu a identificao de uma estao (Montinhos 6) cuja rea de disperso de estruturas em negativo se estende pelas duas colinas afetadas durante a execuo desta construo, ou seja, esta imagem de menor densidade de stios pode, efetivamente, ser decorrente de uma menor rea de afetao do projeto. Os corredores de obra se, por um lado, proporcionam a avaliao de reas muito extensas (a partir das quais se pode ter uma imagem da densidade

    de distribuio dos stios), por outro lado, limitam a observao em rea, levantando uma questo de fundo: na ausncia de marcadores espaciais delimitadores (um fosso, por exemplo), quais so os limites destes stios? Neste momento, para a maioria dos casos, no foram reunidas as condies para responder a esta questo. Porm, os corredores de obra permitiram cartografar zonas de concentrao de estruturas em negativo cuja anlise articulada pode ir no sentido de explorar a possibilidade de constiturem partes de uma mesma organizao do espao.Apesar das limitaes dos dados obtidos nestes trabalhos, esses mesmos dados contriburam de modo muito positivo para o conhecimento das dinmicas de ocupao do espao durante a Pr histria Recente do Sudoeste Peninsular (Valera & alii no prelo, por exemplo), lanando elementos que permitem, por exemplo, compreender o modo como esta regio se articula com o Sudeste Peninsular (Alves & alii, 2010). Estes dados possibilitam, ento, uma problematizao que, centrada numa escala de anlise supra regional, contribui para edificar uma sequncia de continuidades e descontinuidades culturais durante a Pr histria Recente. Em articulao com esta escala de anlise mais ampla, podemos tambm explorar a anlise contextual das estruturas que, como veremos, nos remete para um conjunto diversificado e entrelaado de prticas em associao com esta tradio arquitetnica. APoNtAmeNto 2. moRfologIA e oRgANIzAo esPAcIAl DAs estRutuRAs

    O conjunto das estruturas em negativo identificado pauta se por uma grande variabilidade morfolgica, cuja sistematizao passa por um exerccio de tipificao que excede os objetivos deste texto. Deste modo, optamos por considerar categorias morfolgicas muito abrangentes que nos permitem traar, provisoriamente, uma cartografia das questes que podem ser colocadas ao modo como tais estruturas participam na delimitao/especificao do espao. Essas categorias so as seguintes: fossas; estruturas de planta em forma de osso; estruturas de planta sub retangular; hipogeus; valados (figura 2).As fossas correspondem categoria mais frequente, tendo se registado a sua ocorrncia em quase todas as intervenes efetuadas. O elevado nmero de estruturas acompanhado de uma acentuada variabilidade formal. Com efeito, esta categoria aglutina

  • 353 Arqueologia em Portugal 150 Anos

    estruturas de formas e dimenses consideravelmente diferentes. Em termos espaciais, estas estruturas tanto ocorrem, aparentemente, isoladas, como em ncleos, sem uma estruturao aparente. Salientese que, como j referimos, a anlise da distribuio espacial das estruturas se encontra condicionada pela rea de observao possibilitada pelo corredor de obra. Mas acrescentemos mais uma dificuldade. Como veremos no prximo apontamento, a anlise da cronologia das estruturas remete para uma longa ocupao dessas reas de concentraes de estruturas, dificultando, assim, a anlise da sua distribuio espacial, nomeadamente no caso de estruturas para as quais no temos elementos datantes.As estruturas de planta em forma de osso e as estruturas de planta sub retangular no so to recorrentes como as fossas. Apresentam tambm alguma variabilidade morfolgica e a anlise da sua distribuio espacial apresenta as mesmas condicionantes. Porm, existem trs casos, em que estas estruturas se apresentam concentradas e com uma logica de distribuio, que permitem ilustrar as suas possibilidades enquanto elementos estruturadores/delimitadores do espao. Os dois primeiros casos dizem respeito a duas concentraes de estruturas de planta em forma de osso identificadas em Montinhos 6 e Santo Estvo 1 (Baptista & Gomes, no prelo). Em Montinhos 6, a rea de afetao do projeto permitiu a observao da totalidade do conjunto, permitindo constatar que as estruturas se distribuem num conjunto de linhas paralelas que parecem delimitar um espao de planta poligonal. O terceiro caso diz respeito a um conjunto de estruturas de planta sub retangular identificado em Horta da Morgadinha. Neste caso, as estruturas apresentam se tambm em linhas paralelas que, considerando as relaes estratigrficas que as estruturas apresentam entre si, sugerem a construo de corredores com um orientao NO SE, cujos limites desconhecemos por excederem a rea intervencionada.Os hipogeus identificados nestes trabalhos apresentam sempre elementos que permitem a sua associao Idade do Bronze. Esta categoria morfolgica apresenta alguma variabilidade interna, que se traduz tanto na planta da cmara e da antecmara que, por vezes, aparece associada a uma fossa prexistente (Baptista, Rodrigues & Pinheiro, 2012). No que diz respeito s relaes espaciais que estas estruturas estabelecem entre si, registaram se dife

    rentes cenrios: em Montinhos 6, foram identificados catorze hipogeus, dez dos quais se encontravam na colina NE e os restantes na colina SW (na distribuio espacial destes elementos, para alm de apresentarem quase todos uma orientao NE SW, no se registou qualquer lgica de distribuio especfica); em Torre Velha 12, os trs hipogeus encontramse afastados entre si, estabelecendo uma relao de proximidade com as fossas (Gomes, Baptista & Rodrigues, no prelo); em Maria da Guarda 3, foi identificado um hipogeu, aparentemente, isolado.Quanto aos valados, a anlise morfolgica encontra se muito comprometida pelas reas intervencionadas. Com efeito, apenas nos foi possvel observar segmentos destas estruturas, a partir dos quais no possvel reconhecer o tipo de delimitao espacial que tais estruturas permitiriam. Apesar destas limitaes, os segmentos intervencionados permitem constatar que esta categoria de estruturas tambm apresenta uma variabilidade formal significativa, podendo corresponder a interfaces verticais de perfil em U com pequenas dimenses (como o caso dos valados de Horta da Morgadinha e Monte da Laje, por exemplo) ou a interfaces com dimenses maiores, aparentando tratar se de fossos (como exemplo o caso da estrutura identificada em Horta da Morgadinha 2).

    APoNtAmeNto 3. cRoNologIA e temPoRAlIDADe

    O estudo da cronologia das estruturas encontra se circunscrito anlise da componente artefactual. Assim, sempre que os conjuntos artefactuais apresentavam elementos datantes, foi possvel a sua as so ciao aos seguintes perodos cronolgicos: Neo ltico Final/Calcoltico; Calcoltico; e Idade do Bronze. A considerao destes perodos cronolgicos permite constatar que a maioria dos stios apresenta contextos articulveis com os diferentes perodos. Neste sentido, alguns destes stios correspondem a reas de construo que persistem ao longo de mais de 2000 anos. Nesta construo do espao de salientar que as estruturas de diferentes cronologias no apresentam uma relao direta entre si, isto , podem situar se numa mesma rea, mas a sua construo no interfere com as construes anteriores. Este aspeto remete para uma apropriao do espao num tempo longo no qual podemos ver uma lgica de adio

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    de estruturas, cuja espacialidade se sobrepe, sem alterar fisicamente uma lgica espacial anterior. Esta no sobreposio de estruturas de cronologia distinta, neste tempo longo de construo, sugere a existncia de uma memria de marcaes espaciais anteriores, cuja materialidade preservada nos sucessivos perodos de construo do espao. A exceo a esta regra espordica, tendo sido registada em Torre Velha 12 e Montinhos 6. Em Torre Velha 12, foi registado um conjunto de fossas de cronologia Neoltico Final/Calcoltico, que viria a ser cortado durante a construo de fossas e hipogeus da Idade do Bronze. Em Montinhos 6, a rea de concentrao de estruturas de planta em forma de osso apresentava vrias estruturas que se encontravam cortadas por dois hipogeus da Idade do Bronze, ou seja, a modelao espacial definida pelas estruturas de planta em forma de osso d lugar construo de dispositivos arquitetnicos diferentes. Nestas duas estaes temos casos em que a adio de estruturas, em perodos afastados no tempo, implica a alterao fsica de uma organizao espacial anterior.

    APoNtAmeNto 4. PRtIcAs De INumAo

    Este Quarto Apontamento relativo s estruturas que apresentam contextos associveis a prticas de inumao de cadveres humanos e animais (figura 3). Tais contextos esto articulados com diferentes perodos cronolgicos, ocorrem em estruturas de morfologia distinta e apresentam formalizaes tambm muito diferentes entre si. As prticas de inumao do Neoltico Final/Calcoltico dizem respeito a trs contextos de Horta da Morgadinha 2 (Gomes, Baptista & Oliveira, no prelo). O primeiro contexto relativo inumao de dois indivduos sub adultos, depositados em decbito lateral, nos nichos parietais de uma fossa de planta sub circular. Estes nichos, um localizado quase no topo e o outro a meio da parede da fossa, encontravam se colmatados por construes ptreas. As inumaes no apresentavam qualquer elemento artefactual. O segundo contexto relativo inumao de um conjunto de candeos quase na base do enchimento de uma fossa. Foram identificados dois cadveres quase inteiros de candeos (num deles, o crnio est ausente e no outro no se identificaram as vrtebras caudais), o crnio de um outro candeo e 2 concentraes de ossos. Uma

    dessas concentraes localizava se no centro da estrutura, sendo constituda maioritariamente por elementos de ovi caprideos. A outra concentrao diz respeito ao entrelaamento de partes de animais e blocos ptreos localizada junto da parede Norte da estrutura, nesta concentrao foram identificadas partes de candeos (dois crnios e outras conexes anatmicas) e um membro posterior de bovdeo em conexo. Em associao com este nvel registou se a ocorrncia de um elemento malacofauna (Pectem Maximus), de um pequeno recipiente inteiro, de uma colher inteira e de um conjunto de fragmentos cermicos e elementos lticos. O nvel onde ocorrem estes cadveres encontrava se coberto por uma sucesso de depsitos argilosos de matriz argilosa; abaixo do nvel, encontravam se depsitos semelhantes, mas com concentraes de blocos ptreos. O terceiro contexto relativo inumao de um candeo. Este cadver foi inumado sem associao a outros elementos numa fossa de planta em 8. A inumao localizava se quase no topo de um dos mdulos da estrutura, numa zona em que as paredes so muito inclinadas. O cadver encontrava se encostado parede Este, tendo sido depositado sobre uma estrutura ptrea, onde estavam apoiados o seu crnio e coxais. Este nvel encontrava se colmatado e assentava em depsitos de matriz argilosa.No que diz respeito ao perodo Calcoltico, apenas foi identificado um contexto desta natureza em Santo Estevo 1. Trata se de uma inumao em fossa de dois indivduos de idade adulta do sexo feminino. A inumao foi efetuada sobre a base da fossa, encontrando se um dos indivduos em decbito lateral direito e o outro, possivelmente, em posio sentada, voltada para a parede Este da estrutura. O nvel relativo aos restos sseos encontravase colmatado por um depsito argiloso. Porm, considerando a disperso dos elementos sseos do indivduo em posio sentada, provvel que os cadveres estivessem expostos durante algum tempo, sendo a colmatao efetuada num perodo em que os cadveres j se encontravam em elevado estado de decomposio. (Tabela 1)

    Os contextos de inumao de Idade do Bronze ocorrem em fossas e em hipogeus. Quando consideramos a formalizao dos nveis de inumao em funo destas duas categorias de estruturas, constata se que os nveis das fossas apresentam uma variabilidade formal muito mais acentua

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    da do que a variabilidade dos nveis dos hipogeus (Baptista, Rodrigues & Pinheiro, 2012). No grupo de hipogeus em questo, os nveis de inumao localizam se invariavelmente nas cmaras, onde os cadveres so colocados, individualmente ou em grupo, em decbito lateral; apresentando tambm, por vezes, nveis de ossrio. Os indivduos inumados tratam se, na sua maioria, de adultos. Na maioria dos casos, os cadveres estavam acom panhados por recipientes cermicos, artefactos metlicos e oferendas crneas. As cmaras encontravam se seladas por estruturas ptreas e as ante cmaras apresentavam se colmatadas por depsitos de matriz semelhante ao substrato geolgico (calio); estes nveis de colmatao, de um modo geral, no apresentavam elementos artefactuais. A variabilidade das fossas faz se notar, desde logo, na presena de inumaes de animais. Com efeito, ainda que se trate apenas de um caso, numa das fossas de Horta da Morgadinha foi identificado, quase no topo do enchimento da estrutura, a inumao de um carnvoro. Porm, a variabilidade ainda mais notria quando consideramos o lugar que os cadveres humanos ocupam no interior das estruturas, podendo ocorrer quase no topo, a meio do enchimento, na base da estrutura ou em nichos parietais. Esta variabilidade topogrfica acompanhada de uma variao no modo como so depositados os indivduos (em decbito lateral, em decbito dorsal, em posio sentada, por exemplo). Os indivduos tanto so sub adultos como adultos de ambos os sexos, sendo depositados, na sua maioria, individualmente. No que diz respeito s oferendas, a maioria dos nveis de inumao no apresentava elementos deste tipo, tendo se constatado trs excees a esta regra: duas delas em Montinhos 6, onde uma das fossas apresentava um indivduo em posio sentada que exibia um dormente na zona do ventre e outra em que um indivduo subadulto, inumado em decbito lateral, apresentava um colar de bzios e uma conta tubular em osso; em Laje 2 foi identificado um nvel de inumao de dois

    indivduos adultos do sexo feminino em posio de decbito lateral que apresentavam entre si uma oferenda crnea e um depsito de malacofauna. de salientar que, este ltimo caso, apresenta um elemento que evoca as oferendas identificadas nos hipogeus. Neste sentido, se os contextos de inumao em fossa apresentam uma maior variabilidade do que os dos hipogeus, de salientar que nessa variabilidade parece existir aspetos que sugerem um dilogo entre as prticas em questo.Para alm dos contextos acima mencionados, em Torre Velha 12 foram identificados trs contextos de inumao que no permitiram a articulao com um perodo especfico. O primeiro desses contextos trata se de uma fossa onde ocorrem dois nveis de inumao de cadveres animais; as peas sseas encontravam se em mau estado de conservao, porm parecem tratar se de indivduos que foram colocados inteiros, correspondendo um deles a um cervdeo. O segundo contexto corresponde a uma mandbula humana identificada no topo de uma fossa que no foi intervencionada. Por ltimo, aps a remoo das terras de lavra, foram identificados dois conjuntos de peas sseas compatveis com um nico indivduo; a localizao destes conjuntos sseos era coincidente com uma rea de concentrao de estruturas, porm no foi possvel estabelecer a sua associao a nenhuma das estruturas.

    APoNtAmeNto 5. coNceNtRAes e NveIs De mAteRIAIs

    As sequncias de enchimento das fossas apresentam diferentes graus de complexidade, sendo que muitas das vezes, tal complexidade surge acompanhada de concentraes ou nveis de diferentes categorias de artefactos (figura 4). Tais contextos ocorrem, com uma frequncia distinta, em quase todos os stios intervencionados estando em articulao com diferentes perodos de ocupao desses stios. A presena destas concentraes e nveis de materiais remete nos para prticas de enchimento

    Maria da Guarda Laje 2 Horta da Morgadinha Montinhos 6 Torre Velha 12

    Fossa h1 a1 h7 h4

    Hipogeu h1 h1 h14 h2

    tabela 1 Contextos de inumao da Idade do Bronze. O h relativo a cadveres humanos e o a a cadveres de animais.

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    que parecem estar em associao a prticas de deposio que se entrelaam, assim, nas prticas de construo dos enchimentos destas estruturas. Essas prticas de deposio podem aparecer, por sua vez, associadas a prticas de fragmentao de materiais (nomeadamente cermicos) e de distribuio de fragmentos, que se entrelaam tambm na construo destas estruturas (Baptista, no prelo; Baptista & Gomes, 2012b, por exemplo). No seu conjunto, as vrias concentraes e nveis de diferentes categorias materiais remetem para uma biografia onde esses materiais so manipulados em diferentes cenrios que culminam na sua deposio no interior destas estruturas. Descrever os contextos e problematizar as biografias que podem ser analisadas nestes nveis e concentraes de materiais excede o mbito deste texto. Neste sentido, vejamos apenas uma srie de casos que ilustram a complexidade destes contextos. Existem situaes em que o nvel de materiais pode corresponder a um nico recipiente inteiro que colocado no centro da base de uma estrutura (Torre Velha 12, Estrutura 18), ou ento a um conjunto de recipientes inteiros, ou quase inteiros, que se concentram tambm na zona da base da estrutura (Horta da Morgadinha, Estrutura N. 11; Horta da Morgadinha 2, Estrutura 10/11). Outra das situaes registada, corresponde a um conjunto de fragmentos cermicos, ou partes de vasos, concentrados em diferentes partes da estrutura: na base (Horta da Morgadinha 2, Estrutura N. 36; Montinhos 6, Estrutura 146), no topo do ltimo depsito de enchimento (Montinhos 6, Estrutura 42) ou a meio do enchimento da estrutura (Montinhos 6, Estrutura 120). Por vezes, as estruturas apresentam tambm diferentes partes do mesmo recipiente distribudo por diferentes depsitos de enchimento (Montinhos 6, Estrutura 34; Vale de guas 3, Estrutura 2). A anlise dos fragmentos permite constatar que, em alguns casos, possvel estabelecer colagens entre estruturas (Montinhos 6, entre as Estruturas 34 e 42, entre as Estruturas 40 e 42, entre as Estruturas 100 e 120). Para alm das situaes em que os nveis so polarizados por elementos cermicos, existem casos que tais elementos surgem em associao a elementos faunsticos (Montinhos 6, Estrutura 100). Ou, a concentrao pode ser exclusivamente constituda por elementos de fauna (Horta da Morgadinha 2, Sondagem 14; Montinhos 6, Estrutura 45 e 172). Uma situao recorrente a

    presena de nveis ptreos, que tanto podem ocorrer no topo da estrutura, a meio do enchimento, na base ou apresentarem se alternados com depsitos argilosos (Montinhos 6, Estrutura 149); frequentemente, estes nveis ptreos apresentam fragmentos de elementos lticos (nomeadamente fragmentos de elementos de moagem). Tambm existem casos em que os depsitos de enchimento apresentam uma elevada frequncia de ocorrncia de fragmentos de diferentes categorias, sem que seja possvel definir um plano da sua ocorrncia. A falta de sistematizao do pargrafo anterior no decorrente apenas da dificuldade de sintetizar a realidade que se pretende enunciar. Com efeito, esta realidade a que nos referimos , neste momento do seu estudo, de difcil sistematizao. Trata se de um conjunto de contextos que nos interpela pela sua estranheza e que nos desafia a uma anlise de mltiplos aspetos, de modo a tentar encontrar associaes, que nos permitam edificar uma ordem para a sua variabilidade. Talvez, com essa anlise, consigamos reconhecer algumas das dinmicas em que se compem estes nveis e concentraes.

    APoNtAmeNto 6. APoNtAmeNto fINAl

    Comeamos este texto por referir o extenso conjunto de dados que os trabalhos arqueolgicos desenvolvidos no mbito da execuo do Bloco de Rega de Brinches Enxo permitiu construir; salientamos, desde logo, o carcter diversificado dos contextos arqueolgicos em questo. Nos Apontamentos que aqui partilhamos tentamos sistematizar tal diversidade, ensaiando a sua ordenao em funo de aspetos decorrentes da anlise morfolgica das estruturas, da sua distribuio espacial e da cronologia dos contextos que apresentam. Quando passamos anlise dos enchimentos das estruturas, ficamos face a um conjunto de contextos cuja variabilidade nos desafia a encontrar as ordens dessa variabilidade; a ordem de associao entre os participantes que compem este mundo em negativo. Procurar esta ordem um percurso longo e laborioso de anlise e sistematizao. A convico na necessidade deste percurso , porm, acompanhada de uma inquietao. Uma inquietao que reconhecemos no modo como Marco Polo descreve o desafio da experincia da linguagem e da traduo em Hispcia das Cidades Invisveis de Italo Calvino (2000 [1990], p. 50): De todas as mudanas de lngua que tem de

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    enfrentar o viajante em terras longnquas, nenhuma iguala a que os espera na cidade de Hispcia, porque no diz respeito s palavras mas sim s coisas. Na experincia da cidade, vai se explorando as coisas e compreende se, por exemplo, que quando a minha alma no pede outro alimento e estmulo que no seja a msica, sei que tenho de procur la nos cemitrios: os tocadores escondem se nos tmulos; de uma cova para a outra correspondem se trinados de flautas e acordes de harpas (ibid.). O receio do visitante o momento da partida porque sei que no deverei descer ao porto mas sim subir ao pinculo mais alto da fortaleza e esperar que passe um navio l por cima. Mas passar alguma vez? No h linguagem sem engano (ibid.). Talvez. Mas talvez tambm haja uma cidade sem lugar de chegada e de partida; sem lugar s perguntas que colocamos. O desafio , ento, como fazer emergir a possibilidade dessa diferena atravs das ordens de associao que conseguirmos registar.

    bIblIogRAfIA

    ALVES, C.; COSTEIRA, C.; ESTRELA, S.; PORFRIO E.; SERRA, M.; SOARES, A. M. M.; MORENO GARCA, M. (2010) Hipogeus funerrios do Bronze Pleno da Torre Velha 3 (Serpa Portugal). O Sudeste no Sudoeste?!. Zeph y rus LXVI, pp. 133 153.

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    VALERA, A. C.; GODINHO, R.; CALVO, E.; MORO BERRAQUERO, F. J.; FILIPE, V. e SANTOS, H. (no prelo) Um mundo em negativo: fossos, fossas e hipogeus entre o Neoltico Final e a Idade do Bronze na margem esquerda do Guadiana (Brinches, Serpa). In Actas do IV Colquio Arqueolgico de Alqueva (Beja, 2010), em linha http://www.academia.edu/953825/_Um_mundo_em_negativo_fossos_fossas_e_hipogeus_entre_o_Neolitico_Final_e_a_Idade_do_Bronze_na_margem_esquerda_do_Guadiana_Brinches_Serpa_

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    Figura 1 Mapa de distribuio dos stios pr histricos identificados na rea do Projeto do Bloco de Rega BrinchesEnxo: 1 Folha da Vereda 1; 2 Meirinho 4; 3 Vale de guas 3; 4 Monte da Lage; 5 Maria da Guarda 3; 6 Cidade das Rosas 4; 7 Lage 2; 8 Alcaria 5; 9 Alcaria 4; 10 Santo Estevo 1; 11 Espicharrabo 4; 12 Horta da Morgadinha 2; 13 Torre Velha 12; 14 Horta da Morgadinha 1; 15 Horta da Morgadinha; 16 guas Alvas; 17 guas Alvas 1; 18 Monte da Chilra; 19 Monte da Chilra 1; 20 Monte da Chilra 2; 21 Montinhos 6; 22 Montinhos 3; 23 Salsa 3; 24 Escalfa Ces 1. Outros projetos EDIA: 25 Torre Velha 3; 26 Torre Velha 5; 27 Entre guas 5; 28 Corte do Poo 1.

    Figura 2 Morfologia das estruturas: A Vale de guas 3 concentrao de estruturas de tipo fossa; B Torre Velha 12 concentrao de estruturas de tipo fossa e hipogeus; C Montinhos 6 concentrao de estruturas de planta em osso; D Horta da Morgadinha 2 valado/fosso de perfil em V (sond. N. 31/32).

  • 359 Arqueologia em Portugal 150 Anos

    Figura 3 Prticas de inumao: A Santo Estevo 1 nvel de inumao humana em fossa com 2 indivduos (um em decbito lateral e outro em posio sentada) (sond. N. 7); B Montinhos 6 nvel de inumao em fossa de um indivduo em posio sentada com um dormente junto ao ventre (sond. N. 127); C Montinhos 6 nvel de inumao humana em hipogeu com inumaes primrias e ossrio (sond. N. 59); D Horta da Morgadinha 2 nvel de inumao de animais (maioritariamente candeos) (sond. N. 19).

    Figura 4 Concentrao de materiais: A Torre Velha 12 deposio de um prato no centro de estrutura (sond. N. 18); B Horta da Morgadinha 2 nvel de concentrao de elementos ptreos e cermicos (sond. N. 11); C Horta da Morgadinha 2 nvel de elementos faunsticos (sond. N. 14); D Montinhos 6 deposio de um vaso sobre uma haste de veado (sond. N. 100).