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SISTEMA FINANCEIRO, CRESCIMENTO E INCLUSÃO # Fernando J. Cardim de Carvalho * 1. Introdução São raros os consensos entre economistas, mas certamente um deles é o de que a recuperação do crescimento econômico brasileiro, após um hiato de mais de vinte anos, exigirá um amplo esforço de aumento de investimentos. Estima-se, na maioria das vezes, que seria preciso alcançar uma relação investimento/PIB taxa de pelo menos 25% (ainda muito distante das surpreendentes asiáticas, superiores a 30%) do PIB para que o país pudesse finalmente por um fim à seqüência de “décadas perdidas” em que vive desde o fim dos anos 70. Um segundo consenso estabelecido nos últimos anos é o de que o financiamento da retomada dos investimentos e do desenvolvimento terá de se dar em bases diversas daquelas que sustentaram os períodos de expansão no pós-segunda guerra. Do famoso tripé capital público/capital estrangeiro/capital privado doméstico, do primeiro praticamente pouco ou nada se espera, e o segundo é visto com reservas, dados os compromissos que engendra. Resta o apelo ao capital privado nacional, tradicionalmente visto, contudo, como o elo mais fraco desta corrente. Para alicerçar a retomada do crescimento no capital doméstico, é necessário criar fontes de recursos e construir canais de financiamento que permitam que eles cheguem aos investidores a custos compatíveis com a rentabilidade esperada dos projetos de acumulação de capital e em termos contratuais suportáveis. # Preparado para o seminário Financiamento do Desenvolvimento, da série Brasil em Desenvolvimento, promovido por IE/UFRJ, CEPAL e DDAS/UFRRJ, 15/09/2003. * Professor Titular do Instituto de Economia da UFRJ. O autor agradece o apoio do CNPq. 1

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Page 1: SISTEMA FINANCEIRO, CRESCIMENTO E INCLUSÃO · bancários modernos operam no que se chama de reservas fracionárias, o que objetivamente significa que a qualquer momento a capacidade

SISTEMA FINANCEIRO, CRESCIMENTO E INCLUSÃO #

Fernando J. Cardim de Carvalho*

1. Introdução

São raros os consensos entre economistas, mas certamente um deles é o de que a recuperação do

crescimento econômico brasileiro, após um hiato de mais de vinte anos, exigirá um amplo esforço

de aumento de investimentos. Estima-se, na maioria das vezes, que seria preciso alcançar uma

relação investimento/PIB taxa de pelo menos 25% (ainda muito distante das surpreendentes

asiáticas, superiores a 30%) do PIB para que o país pudesse finalmente por um fim à seqüência de

“décadas perdidas” em que vive desde o fim dos anos 70.

Um segundo consenso estabelecido nos últimos anos é o de que o financiamento da retomada dos

investimentos e do desenvolvimento terá de se dar em bases diversas daquelas que sustentaram os

períodos de expansão no pós-segunda guerra. Do famoso tripé capital público/capital

estrangeiro/capital privado doméstico, do primeiro praticamente pouco ou nada se espera, e o

segundo é visto com reservas, dados os compromissos que engendra. Resta o apelo ao capital

privado nacional, tradicionalmente visto, contudo, como o elo mais fraco desta corrente. Para

alicerçar a retomada do crescimento no capital doméstico, é necessário criar fontes de recursos e

construir canais de financiamento que permitam que eles cheguem aos investidores a custos

compatíveis com a rentabilidade esperada dos projetos de acumulação de capital e em termos

contratuais suportáveis.

# Preparado para o seminário Financiamento do Desenvolvimento, da série Brasil em Desenvolvimento, promovido porIE/UFRJ, CEPAL e DDAS/UFRRJ, 15/09/2003.* Professor Titular do Instituto de Economia da UFRJ. O autor agradece o apoio do CNPq.

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Para alguns, as medidas mais importantes deste esforço de redefinição política são aquelas que

aumentariam a propensão privada a poupar. Argumenta-se que a poupança privada no Brasil é baixa

e parcialmente consumida pela despoupança do setor público. Em conseqüência, o investimento é

restrito e financiado em proporção considerável pela poupança externa, criando dependência externa

e sujeitando o país aos efeitos negativos de eventuais interrupções do fluxo de poupança provinda

do resto do mundo. A esta abordagem opõe-se a teoria keynesiana, que vê na poupança um papel

subordinado, e focaliza suas atenções na operação do sistema financeiro, mais do que na decisão de

poupadores. Este trabalho não pretende contribuir para o debate em torno da relação

poupança/investimento, cuja continuidade depois de mais de setenta anos atesta tanto sua

importância quanto sua persistente obscuridade. Na verdade, o autor explicita nesta introdução a

afiliação teórica das idéias aqui expostas, enraizadas na macroeconomia de Keynes. Toma-se como

ponto de partida a proposição de que o volume de poupança gerado em uma economia resulta dos

gastos com investimentos. Assim, parte-se do pressuposto de que disponibilidade de poupança não é

jamais um obstáculo à realização de investimentos. Esta conclusão vale para economias em pleno

emprego, tanto quanto com desemprego, para economias fechadas tanto quanto abertas.1

1 Os impactos são diferentes em cada classe de economias, mas em nenhum dos casos o volume de poupança disponívelé capaz de limitar investimentos. A poupança agregada de uma economia é criada pelo investimento. Quando hádesemprego, a poupança é gerada através do crescimento da renda; quando a economia está em pleno emprego, oinvestimento gera poupança através de um processo inflacionário. Em economias abertas, investimentos gerarão tantopoupança externa quanto doméstica, sendo a proporção verificada entre poupança externa (representada por déficits naconta de transações correntes do balanço de pagamentos) e poupança doméstica determinada pelos preços relativos debens e serviços produzidos no país e no exterior (em cuja determinação a taxa de câmbio tem papel essencial).

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Afirmar que o investimento não pode ser limitado pela poupança disponível não significa, contudo,

que não existam constrangimentos importantes sobre a decisão de investir. Na verdade, como o

próprio Keynes observou nos anos 30, um empresário, ao decidir-se a fazer um investimento, tem

de estar confiante que conseguirá obter os meios de pagamento necessários para proceder à

aquisição dos equipamentos e estruturas desejados e que poderá, mais tarde, estruturar seu passivo

da forma mais adequada possível ao perfil dos ativos adquiridos.2 Deste modo, os obstáculos a

serem eventualmente enfrentados pelos investidores não são criados pelos poupadores, mas pelos

mercados monetário e financeiro.

No que se segue, estes possíveis obstáculos são discutidos. Na seção 2, discutimos em mais detalhe

a primeira das duas condições, o acesso a meios de pagamento que possibilitem a aquisição dos

bens de investimento. A seção 3 é dedicada à segunda condição, qual seja, a de que as firmas

possam encontrar meios permanentes de financiamento de seus ativos condizentes com as

características destes últimos. A seção 4 examina algumas formas de tornar o sistema financeiro não

apenas mais eficaz na sustentação de investimentos, como também de fazê-lo mais sensível às

preocupações atuais com a concentração da riqueza. A seção 5 sumariza os principais argumentos

apresentados.

2. O Financiamento da Aquisição de Bens de Investimento

O ponto de partida da abordagem keynesiana do investimento não poderia ser mais simples ou

intuitivo: como ocorre com a aquisição de qualquer bem, a condição para que a operação se realize

é a de que o comprador tenha consigo meios de pagamento. A obtenção dos meios de pagamento

necessários à realização de uma despesa é o que Keynes chamou de “financiamento” (finance).

Trata-se de um tipo de demanda por moeda, tanto quanto as demandas transacional, precaucionária2 Cf. Keynes (1937), p. 664.

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e especulativa por moeda, conhecidas dos livros-texto de macroeconomia. As quatro classes de

demanda por moeda descrevem motivos para demandar moeda em antecipação a alguma despesa.

Em uma economia monetária, a provisão prévia de moeda é condição par que alguma transação de

mercado possa ter lugar.3

Colocada a questão nesses termos, resulta clara a razão por que Keynes recusa a idéia de que

poupadores financiem investimento em qualquer sentido. Poupança é uma alocação de um fluxo de

renda recebido em um período. Financiamento é a reserva de parte do estoque de moeda em

circulação em um dado instante para utilização em data posterior. Financiamento não utiliza renda

em nenhum sentido. Trata-se de retirar em um dado momento moeda de circulação, mantendo-a em

reserva para uso na ocasião adequada (quando o dispêndio daquele valor devolverá a moeda à

circulação). Financiamento, assim, é um problema a ser resolvido no sistema monetário, não na

interação entre investidores e poupadores, onde quer que esta última possa se dar.

Uma empresa com planos de investimento pode obter financiamento por vários canais. O modo

mais óbvio é a obtenção de receitas monetárias pela venda de bens e serviços. Lucros de vendas

passadas retidos sob a forma de reservas liquidas (como depósitos bancários, por exemplo) são um

canal de acesso a meios de pagamento. Outra possibilidade é a venda de outros ativos,

transformando-os assim em moeda. Uma terceira é a venda de obrigações, isto é, o endividamento

junto a outros detentores de riqueza, fazendo com que o estoque de moeda existente mude de mãos.

Finalmente, um subgrupo destas últimas é o endividamento junto ao sistema bancário, cuja

conseqüência não é fazer meios de pagamento simplesmente mudarem de mãos, mas efetivamente

criar novos meios de pagamento (sob a forma de depósitos à vista). Não é a origem das reservas que

importa, mas sua forma: financiamento é a obtenção de poder de compra sob a forma de meio de

pagamento por parte do investidor prospectivo.3 Este argumento é desenvolvido em detalhe em Carvalho (2002a).

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Deve-se notar, embora este não seja o tema deste trabalho, que a presença do poupador não é notada

em nenhuma das fontes listadas. A primeira destas fontes, as reservas monetárias geradas pelas

receitas de venda de bens e serviços é particularmente interessante porque ilustra um principio

fundamental da teoria keynesiana, que é o de que despesas de consumo são fontes tão ou mais

importantes de financiamento de investimentos do que poupança. Despesas de consumo fazem o

dinheiro chegar às mãos da empresa e esta é a condição crucial para viabilizar o gasto inicial em

investimento.

Esta abordagem coloca suas ênfases, neste primeiro estágio do argumento, em elementos como a

agilidade dos sistemas de pagamentos (que faz com que receitas possam ser efetivamente recebidas

pelos vendedores de bens e serviços com rapidez e segurança), a elasticidade do sistema bancário

em atender ás demandas de crédito que lhe são colocadas e a organização dos mercados de ativos

que lhes dão liquidez e permitem, portanto, sua realização em dinheiro quando desejado pelo

investidor prospectivo.

Dentre estes elementos, os dois mais importantes são provavelmente o sistema de pagamentos e a

elasticidade da oferta de crédito. Ambos nos remetem ao mesmo lugar: o sistema bancário. A

transferência de titularidade sobre depósitos à vista em bancos comerciais é o mais importante modo

de pagamento em operação em qualquer economia moderna. Depósitos à vista nada mais são do que

obrigações privadas emitidas por bancos caracterizadas pela redenção sob demanda ao par. Sistemas

bancários modernos operam no que se chama de reservas fracionárias, o que objetivamente

significa que a qualquer momento a capacidade efetiva de redenção destes depósitos é

extremamente limitada. Este sistema de pagamentos repousa assim em bases muito frágeis, apoiado

na confiança do publico na liquidez destes depósitos. Por outro lado, a existência desta confiança

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permite aos bancos utilizar recursos captados sob a forma de depósitos para fazer aplicações

rentáveis, reduzindo significativamente o custo de operação deste sistema de pagamentos. A

percepção por parte da sociedade de que a existência deste sistema de pagamentos se constitui em

uma externalidade extremamente positiva justifica a criação de redes de segurança (sob a forma de

facilidades de empréstimos de emergência, o emprestador-de-última-instância, ou de esquemas de

seguros de depósitos) e a criação de regras de regulação prudencial.4

Deste modo, um primeiro grupo de prescrições de política de estímulo ao investimento refere-

se à necessidade de modernização constante dos sistemas de pagamentos, particularmente via

sistema bancário, de modo a reduzir custos de transações com depósitos, permitindo que

vendedores de bens e serviços possam se apropriar da forma mais ágil, segura e barata

possível dos meios de pagamento gerados por suas vendas. Um segundo grupo de prescrições

tem a ver com estratégias de regulação financeira, especialmente a de natureza prudencial,

reforçando a segurança do sistema de pagamentos, e antimonopólica, já que há evidências

importantes de existência de restrições à concorrência na provisão desses serviços.

Ainda sobre financiamento, porém, não é importante apenas a agilização e barateamento da

circulação do estoque existente de meios de pagamento. É necessário que o sistema bancário seja

suficientemente elástico para satisfazer a demanda crescente por meios de pagamento que

acompanha um processo de crescimento dos investimentos e da economia. A criação de meios de

pagamentos adicionais deve acompanhar a expansão do investimento e do produto para que a

economia não sofra pressões de liquidez que possam elevar a taxa de juros e reduzir a demanda

agregada. Deste modo, para que a economia possa exibir uma taxa de crescimento positiva, é

preciso que o sistema monetário seja capaz de acomodar a expansão da renda. Isto exige que a

4 Veja-se, a respeito, Carvalho (2003 a).

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autoridade monetária aumente as reservas bancárias pari passu no ritmo adequado e que os bancos

expandam o volume de depósitos à vista conforma a demanda da economia.

O sistema bancário expande depósitos à vista ao conceder empréstimos (ou comprar ativos em

geral). Deste modo, um sistema bancário eficiente na criação da liquidez necessária para sustentar

uma economia em expansão é aquele capaz de responder positivamente às demandas legitimas de

crédito que lhe forem colocadas.

Define-se, assim, um segundo grupo de políticas necessárias à sustentação financeira da

retomada do crescimento econômico: a reorientação das aplicações do sistema bancário para

o atendimento das demandas privadas por crédito, especialmente das empresas que buscam

financiar a expansão de suas atividades produtivas e iniciar processos de investimento. Nas

últimas décadas, o principal ativo buscado por bancos foram títulos da dívida pública,

capazes de oferecer combinações imbatíveis de risco e retorno.5 A reorientação das aplicações

bancárias exige, por um lado, a mudança no perfil da dívida pública, atualmente consistente

de papéis de retorno muito elevado para suas características de risco. Títulos públicos são

desprovidos de risco de crédito, já que a esmagadora maioria do estoque de títulos é pagável em

moeda nacional. Estes papéis, no entanto, tornaram-se também imunes a praticamente todos os

outros riscos relevantes: a indexação de parcela expressiva da dívida à taxa de juros de curto prazo

tornou-a imune ao risco de capital; a indexação de outra parcela significativa ao dólar imunizou

esses títulos contra o risco de câmbio; finalmente, a disposição sempre manifestada pelo governo de

estender redes de segurança nesse mercado em ocasiões de turbulência, eliminou o risco de liquidez.

Para configuração de riscos como esta, a taxa de juros sobre o ativo correspondente deveria ser nula.

Sendo, na verdade, positiva e sempre elevada, o retorno sobre estes papéis, ajustado pelo risco, é

impossível de ser alcançado por qualquer aplicação no setor privado.5 Veja-se, por exemplo, Andima (2001).

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A reorientação das aplicações bancárias para o setor privado, porém, não pode ser obtida apenas

pela eliminação de um investimento excepcionalmente favorecido, como é a dívida pública. É

desconhecida a capacidade do setor bancário brasileiro atual para a concessão de crédito privado em

larga escala, especialmente quando se considera que amplos setores da economia têm sido

consistentemente mantidos fora do mercado formal de crédito por longo tempo. Políticas têm de

ser desenvolvidas, principalmente de natureza regulatória, para incentivar a modernização

dos sistemas de análise de crédito e gerenciamento de risco no sistema bancário brasileiro, de

modo a prepará-lo para lidar com combinações de risco profundamente diversas daquelas

com que o setor acostumou-se em todos estes últimos anos. A ocasião para a realização deste

esforço é particularmente propicia, dada a proximidade de aprovação do novo acordo da

Basiléia sobre regulação bancária, cujas principais disposições se definem exatamente em

torno das mesmas preocupações.

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O setor bancário doméstico brasileiro, especialmente na década de 90, mostrou-se bastante eficaz,

quando critério de eficiência utilizado é sua capacidade de geração de lucro. Sua eficácia na redução

de custos, por outro lado, é bastante reduzida. Isto indica menos a incapacidade das empresas

nacionais operando no setor (bancos estrangeiros operando no país reproduzem o mesmo resultado)

e mais as características do próprio mercado financeiro brasileiro. Em uma economia marcada pela

extrema concentração de renda, e ainda maior, provavelmente, de riqueza, tende a tornar a

diferenciação de produtos uma estratégia competitiva mais eficaz que a massificação. O resultado,

no sistema bancário, é a coexistência de amplas parcelas não-bancarizadas da população com um

mercado marcado pela sofisticação e variedade de serviços oferecidos aos grupos de renda mais

alta, com recursos significativos para investir em produtos financeiros. Por outro lado, serviços mais

simples, e de alcance mais amplo, como a concessão de crédito ou a manutenção de contas

correntes, são ou racionados ou oferecidos a preços extorsivos.6

Como argumentado, o problema, em parte não-desprezível, não foi gerado pelo sistema bancário.

Este se adaptou ao padrão de concentração de riqueza, moldando sua estrutura de operação ao

mercado disponível. Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que as características atuais

do mercado bancário são extremamente favoráveis às empresas do setor e que qualquer mudança

neste quadro enfrentariam a resistência dessas instituições.7 Uma mudança mais profunda do padrão

de oferta de serviços financeiros no país exigirá uma forte pressão sobre as instituições bancárias no

sentido de expandir significativamente serviços na área de crédito privado, ao mesmo tempo em que

6 A distinção entre eficácia com relação a lucros e eficácia com relação a custos é muito importante na análise do setorbancário brasileiro, porque um dos critérios pode apontar para a direção oposta à apontada pelo outro. A lucratividadede uma empresa pode aumentar, por exemplo, criando produtos mais caros (que envolvam custos maiores), mas cujascaracterísticas de demanda façam com que as receitas aumentem mais que os custos. Esta empresa será identificadacomo eficaz em relação a lucros, mas ineficaz com relação a custos. Esta parece ser precisamente a situação do setorbancário brasileiro. Sobre os conceitos relevantes de eficiência de instituições financeiras, veja-se Harker e Zenios(2000), especialmente parte 1.7 Nos últimos anos, não apenas o setor bancário tem sido capaz de auferir ganhos crescentes como também seu padrãode lucratividade, em contraste com outros países, se mostra imune à sucessão de episódios de turbulência ou crise, comoa substituição do regime cambial em 1999, a sucessão de períodos de estagnação que marcou o governo FH Cardoso.Mesmo a recessão induzida pela política econômica do governo Lula em 2003 não parece ter afetado a lucratividade dosetor bancário.

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seu custo deva ser barateado. A extensão e barateamento do crédito passa pela adoção de

mudanças institucionais, como a modernização da lei de falências, que racionalize o uso de

colaterais em contratos financeiros, e pelo abandono de instrumentos de política mais

grosseiros, como o uso de depósitos compulsórios para controlar crédito, que aumentam

custos e promovem o racionamento de empréstimos. No entanto, estas medidas dificilmente

serão suficientes para modificar a situação atual na medida necessária. É amplamente reconhecido o

elevado grau de concentração vigente no setor bancário brasileiro, aumentado ainda mais nos

últimos anos pelo intenso movimento de consolidação que ainda não dá sinais de esgotamento.8 O

resultado deste movimento é a criação de uma estrutura industrial oligopolística, em que bancos

líderes são capazes de fixar referências de preços para serviços e a competição se dá principalmente

pela diferenciação de produtos, destinados prioritariamente aos clientes de maior poder aquisitivo.

Os bancos menores, em geral incapazes de competir com os lideres nos mercados mais importantes

(e, assim, sem condições, mesmo que desejassem de pressionar preços de forma mais significativa),

sobrevivem pela ocupação de nichos de mercado, seja em termos de produtos, seja em termos

regionais, seja em termos de outras características.

Não há como vislumbrar meios eficazes de aumentar a competição via preços a partir do próprio

sistema bancário. A diferença de tamanho e peso de mercado que separa os líderes da massa de

bancos existentes atualmente é excepcionalmente alta. Por outro lado, o tamanho absoluto dos

bancos líderes serve para desencorajar novos participantes potenciais deste mercado. A experiência

de bancos estrangeiros que se instalaram no país a partir de 1996 com planos em enfrentamento dos

lideres locais, todos fracassados, mostra que pouco ou nada há a se esperar desta via.9 O único modo

potencialmente eficaz de mudar a natureza da competição entre instituições financeiras nas

8 A elevada concentração no sistema bancário brasileiro tem sido notada por diversos analistas. Para uma referênciamais recente, veja-se, por exemplo, Belaisch (2003).9 Sobre a presença de bancos estrangeiros no mercado doméstico brasileiro, veja-se Carvalho (2000 e 2002b) e Paula(2001).

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condições atuais é o desenvolvimento de canais alternativos ao sistema bancário. A experiência

norte-americana a partir dos anos 80 sugere um caminho alternativo, a promoção de formas

desintermediadas de financiamento, com o desenvolvimento de mercados de títulos, seja de curto

prazo, como os commercial papers, seja de longo prazo, como os bônus de empresas ou ações.

No caso norte-americano, as evidências sugerem que o custo dos empréstimos bancários foi

efetivamente pressionado para baixo pelo crescimento do mercado de commercial papers. Um

efeito colateral importante, contudo, do caso americano, a ser evitado, é a segmentação criada entre

as empresas tomadores, separando as maiores empresas, capazes de apelar diretamente a

investidores, contornando a necessidade de solicitar crédito a bancos, e as médias e pequenas, cujo

volume de negócios não justificaria incorrer o custo relativamente elevado de promover colocações

de papéis no mercado. Em outras palavras, o chamado processo de securitização efetivamente

aumentou a pressão competitiva sobre o sistema bancário americano, mas às custas da segregação

das médias e pequenas empresas em um segmento mais desfavorecido do mercado.

Deste modo, a promoção de formas securitizadas de financiamento constitui um terceiro

grupo de políticas proposto para mudar as condições em que a intermediação financeira se dá

atualmente no Brasil. O desenvolvimento de mercado de títulos exige uma série de mudanças

institucionais, principalmente as que aumentem a transparência do mercado e o

desenvolvimento de investidores institucionais com interesses voltados para cada tipo de

papel. As grandes empresas, contudo, não parecem estar mal-servidas de crédito bancário.

São as médias e pequenas, também aqui no Brasil, que são racionadas ou que pagam os

preços mais extorsivos por serviços financeiros, ou, ainda, são submetidas aos termos de

contrato mais draconianos. É necessário abrir o canal da securitização para estas empresas,

sob a forma de colocação coletiva de papéis, em moldes semelhantes aos utilizados no sistema

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de financiamento imobiliário norte-americano.10 Alem disso, ao menos até que os riscos da

atividade sejam conhecidos e possam ser administrados eficientemente por agentes financeiros

privados, é recomendável a criação de estruturas de apoio, como, por exemplo, seguros de

crédito, pelo Estado como forma de impulsionar o mercado.

Em suma, a reorientação do crédito bancário para o apoio às atividades do setor privado, apesar de

ser já de si um objetivo difícil, dada a trajetória do setor bancário nas últimas décadas, não é

suficiente para garantir uma maior oferta de recursos às empresas, em termos e custos compatíveis

com os retornos normais de uma economia de mercado. É fundamental intensificar-se as pressões

competitivas sobre o setor bancário, já que a competição no interior do sistema existente já é forte,

mas toma a forma determinada pela estrutura oligopolística que caracteriza esta indústria no Brasil,

pressionando na direção da diferenciação e sofisticação dos serviços, e não de sua massificação e

barateamento.

Alem disso, o Brasil padece de carência de oferta de serviços financeiros no segmento de médio e

longo prazos ainda maior que no de curto prazo. Estratégias especificas têm de ser formuladas para

o atendimento destas demandas, e particularmente para viabilizar o chamado funding de

investimentos.

3. O Financiamento da Retenção de Bens de Investimento

10 Nos Estados Unidos, hipotecas individuais, assinadas em contratos padronizados, são empacotadas de forma a lastrearuma emissão de bônus, que é então vendida a investidores institucionais. Este mecanismo permite a tomadoresindividuais de empréstimos hipotecários ter acesso a formas securitizadas de financiamento, muito embora cada contratoindividual tenha valor muito abaixo do que seria preciso para acessar isoladamente o mercado de títulos.

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A observação de Keynes, mencionada no início deste trabalho, de que o investidor prospectivo

espera duas coisas do sistema monetário/financeiro (a provisão inicial dos meios de pagamento

necessários à realização das despesas iniciais com a aquisição de bens de investimentos e,

posteriormente, a provisão de meios permanentes de financiamento) nos adverte que o processo de

financiamento do investimento é mais complexo do que possa parecer à primeira vista. Com efeito,

a distinção proposta por Keynes relaciona-se, grosso modo, com outra, mais familiar, talvez, entre

crédito de aquisição e crédito de retenção de bens de investimento. O crédito de aquisição visa

permitir o inicio do processo de investimento. A origem dos recursos (se obtidos por acumulação

prévia, ou por tomada de empréstimos bancários, ou, ainda, por colocação de papéis ou por venda

de ativos) é um aspecto de importância menor para a determinação da dinâmica macroeconômica,

mas em economias em crescimento é geralmente a expansão do crédito bancário quem responde

pelo aumento do estoque de meios de pagamento que acomoda estas transações. O crédito ofertado

por bancos comerciais (isto é, aqueles cuja principal fonte de captação de recursos são os depósitos

à vista) é, via de regra, de curto prazo, para evitar descasamento excessivo entre os ativos bancários

(representados pelos empréstimos) e seu passivo (depósitos à vista).11

Em geral, o valor a ser despendido por um investidor para iniciar o processo não é necessariamente

o valor integral do investimento. Assim, mesmo que o investidor não possua qualquer reserva

líquida previamente acumulada, o crédito inicialmente demandado é uma proporção talvez mesmo

reduzida do investimento total. Idealmente, na concepção keynesiana, o crédito de aquisição obtido

11 Note-se que nosso interesse prioritário são os bancos comerciais porque seus empréstimos cumprem um duplo papelno processo de investimento: ao mesmo tempo em que concedem crédito, financiando a operação desejada peloinvestidor, estes bancos criam depósitos à vista, provendo com isto os meios de pagamento necessários para aacomodação do aumento de transações sem pressões sobre a liquidez do sistema (e, assim, sobre a taxa de juros).Investimentos poderiam, naturalmente, ser financiados por instituições de outro tipo, como agências financeirasespecializadas, mas neste caso seria necessário que a agência financiadora fosse capaz de conseguir meios depagamentos em outro lugar, já que não poderia criar depósitos à vista em nome do tomador. O problema da liquidezteria que ser resolvido por apelo, em ultima análise, a criadores de moeda, bancos comerciais ou autoridade monetária,ou desviando liquidez represada em outros pontos do sistema. Note-se, ainda, que a consideração de bancos universais,do tipo alemão, nada altera do mecanismo aqui referido. Bancos universais captam recursos de prazo mais longo do queaqueles captados por bancos comerciais, mas ao conceder empréstimos o mecanismo é o mesmo destes últimos: credita-se recursos na conta corrente dos tomadores, criando, assim, depósitos à vista correspondentes ao empréstimo feito.

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junto ao sistema bancário deveria ser o mínimo necessário para induzir os produtores de bens de

capital a dar a partida no processo de produção dos equipamentos e estruturas demandados. A

produção destes bens (e as despesas em bens de consumo que são induzidas pelo aumento da renda

dos empresários e trabalhadores da empresa de bens de capital) gerará a renda adicional da qual

resultará a poupança e, em certas condições, como se verá, a demanda por ativos financeiros que

permitirá ao investidor fazer o funding de sua divida e obter o crédito de longo prazo, ou de

retenção de ativos, necessário para manter seu balanço saudável.12

Assim, o financiamento de aquisição, disparador do processo de investimento, pode ser muito

menor que o valor do investimento desejado (e, conseqüentemente, da poupança que será gerada)

porque seu papel é iniciar outro processo, o de geração da renda da qual sairá a poupança que, em

última análise, direta ou indiretamente, proverá o funding necessário para a empresa manter consigo

os ativos recém-criados.

O processo de investimento envolve, deste modo, na concepção keynesiana aqui explorada, não

apenas uma questão de equilíbrio de fluxos, mas também de estoques: o investidor prospectivo

espera que, ao final, terá um balanço caracterizado pela relativa harmonia entre as obrigações

assumidas e as rendas a receber como renda de seus ativos.

O papel do sistema financeiro neste processo é estratégico porque este equilíbrio de estoques não é

garantido pela simples constatação de que o investimento cria a poupança a ele correspondente, ou,

em outras palavras, de que a poupança nunca será insuficiente para “financiar” o investimento.

Realmente, o problema não está no total de poupança, mas na sua estrutura. Poupar significa,

naturalmente, demandar ativos que conservem a riqueza obtida através do tempo. Ainda que

12 O modelo teórico aqui sumariamente referido é explorado em detalhe em Carvalho (1992), caps. 8 e 9.

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poupança, do ponto de vista do mercado de bens, implique apenas uma subtração de demanda13, do

ponto de vista do mercado de ativos, há um aumento da demanda por ativos quando a poupança é

positiva. Idealmente, poderíamos pensar que a situação ideal seria exatamente aquela em que esta

demanda por ativos por parte dos poupadores fosse satisfeita pelos novos títulos de dívida criados

pela empresa investidora como forma de financiamento da retenção de ativos. Fosse este o processo

normal, o poupador encontraria um ativo financeiro que remunerasse a riqueza por ele acumulada, e

a empresa encontraria uma fonte de financiamento de longo prazo compatível com a duração dos

equipamentos que adquiriu.

Este equilíbrio é inviabilizado, segundo Keynes, pelo papel da incerteza em economias

empresariais. A incerteza com relação ao que o futuro reserva a cada um estimula a adoção de

estratégias defensivas, dentre as quais a mais importante talvez seja o que se chama de preferência

pela liquidez. A preferência pela liquidez nada mais é do que a expressão da demanda por

flexibilidade que todos temos frente a futuros incertos. Se não sabemos o que o futuro nos trará, a

posse de riqueza em forma liquida (e a moeda é a mais liquida das formas de riqueza) “acalma

nossa inquietação”. Poupar, pelo menos em parte, é um comportamento precaucionário: indivíduos

poupam, entre outras coisas, para constituir uma rede de segurança que garanta um certo padrão de

vida no futuro, mesmo em presença de choques adversos. Se esta hipótese for verdadeira, o

poupador preferirá manter sua poupança em forma líquida, isto é, evitará comprometer-se com

títulos emitidos por empresas cujo sucesso futuro não está garantido, preferindo outros tipos de

obrigações que impliquem menores riscos. Ocorrendo esta situação, ainda que, em termos

agregados, investimento e poupança sejam (como sempre serão) iguais, os ativos demandados pelos

poupadores não serão aqueles oferecidos pelos investidores em busca de financiamento de retenção.

13 Na conhecida formulação de Keynes, poupar não significa trocar o jantar de hoje pelo jantar de amanhã mas, sim,simplesmente, cancelar o jantar de hoje. Cf. Keynes, (1964), p. 210.

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Conciliar as duas demandas é uma das funções essenciais do sistema financeiro. Instituições

financeiras podem transformar as características dos ativos (em termos de maturidades, liquidez, ou

outras) ao fazer a intermediação entre poupadores e investidores, ou, no caso de mercados

desintermediados, facilitar o encontro de grupos com demandas afins.

No caso da intermediação, a instituição financeira internaliza, em seu balanço, as diferentes

demandas de poupadores e investidores, oferecendo aos primeiros, em geral aplicações mais

liquidas e de prazos menores, e aos segundos prazos maiores e maior estabilidade. Isto implica,

porém, que a instituição financeira se expõe a vários riscos. Em grande medida, o que diferencia os

tipos de instituições financeiras operando em uma dada economia é exatamente a variedade de

riscos a que se expõem e as formas de proteção (hedge) que adotam.14 Nenhuma proteção, no

entanto, pode ser perfeita, já que os descasamentos presentes no balanço da instituição financeira

refletem um desajuste fundamental entre o que buscam tanto o emprestador último (o poupador) e o

tomador último (investidor). Da exposição da instituição financeira a estes riscos deriva-se o

conceito de fragilidade financeira.

Ao contrário das demandas examinadas na seção anterior, é difícil imaginar-se que esta segunda

função do sistema financeiro no processo de investimento, prover financiamento de retenção de

ativos, possa ser exercida pela simples reorientação de atividades (como no caso da mudança das

aplicações em dívida pública para empréstimos ao setor privado). No caso deste financiamento de

longo prazo, dada a necessidade de manter os riscos da intermediação financeira em intervalos

aceitáveis (para não sujeitar a economia a turbulências excessivas que acabariam por afetar

negativamente a própria decisão de investir), não se trata apenas de reorientar as aplicações dos

bancos na direção do crédito de longo prazo. É preciso que as fontes de captação dos próprios

bancos sejam transformadas ou que novos canais de circulação de recursos financeiros sejam14 Cf. Kregel (1998).

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criados para viabilizar a provisão dos financiamentos desejados. Bancos jamais poderão prover

crédito de longo prazo se suas próprias fontes de financiamento continuarem sendo depósitos à

vista ou depósitos a prazo de curta duração. Estivessem os bancos brasileiros oferecendo crédito de

longo prazo, seria uma obrigação dos supervisores financeiros coibir esta atividade!

É preciso, portanto, promover também aqui uma série de mudanças na forma de operação do

sistema financeiro para torná-lo capaz de apoiar a realização de investimentos e o crescimento

econômico.

Uma primeira possibilidade seria transformar os bancos brasileiros em bancos universais, mais

próximos do modelo alemão. A definição de banco universal refere-se geralmente á possibilidade de

operação em segmentos diferentes do mercado financeiro (combinando, em particular, operações de

banco comercial com as de banco de investimento), como permitido, por exemplo, pela legislação

bancária alemã.15 Na prática, contudo, o banco universal alemão não operava em diversos mercados,

mas, sim, em segmentos diferentes do mercado de crédito. Estes bancos captavam recursos tanto

através de depósitos à vista quanto a prazo, ou mesmo colocando títulos junto a seus clientes,

utilizando os primeiros para as aplicações de prazo mais curto, como empréstimos de capital de giro

a empresas, e os outros para aplicações de longo prazo. Este procedimento visava minimizar o

descasamento de maturidades no balanço do banco alemão e era, na verdade, resultado de

disposições regulatórias.16 Assim, o banco poderia fazer aplicações de maturidade maior sem a

preocupação com suas próprias fontes de financiamento.

15 A partir de dezembro de 1999, com a Lei de Modernização Financeira, os Estados Unidos também aderiram a estemodelo, que havia sido abandonado na década de 30.16 Veja-se Kregel (1992). Edwards e Fischer (1994), por outro lado, afirmam que as diferenças entre a forma deoperação dos bancos alemães e os bancos ingleses, por exemplo, mais próximos do modelo “anglo-saxão” do qual osEstados Unidos eram o maior representante, são exageradas pelos analistas.

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No Brasil, oficializou-se a adoção do modelo de banco universal em 1988 com a autorização de

criação dos chamados bancos múltiplos. O desaparecimento dos segmentos do mercado financeiro

operando com maturidades maiores fez com que o banco múltiplo, porém, se aproximasse mais do

modelo de operação em vários mercados, do que do modelo alemão, de concessão de créditos a

várias maturidades. É possível tomar-se medidas que estimulem os bancos universais

brasileiros, mas isto só será apropriado se forem tomadas medidas concomitantes de mudança

das formas de captação de recursos por estas instituições. A experiência da maioria dos

aplicadores em atividade atualmente com as práticas desenvolvidas no longo regime de alta inflação

viesou suas preferências para aplicações financeiras caracterizadas mais pela liquidez do que pela

rentabilidade, sempre desenhadas para permitir o seu resgate o mais cedo possível. Mesmo

aplicadores que não antecipem a necessidade de resgate acabam privilegiando aplicações mais

liquidas. Esforço importante de educação e formação de investidores terá de ser desenvolvido

para tornar factível a criação de instrumentos financeiros de maturidade mais longa.

Certamente, este esforço passa pela experiência de estabilidade de preços obtida desde 1994,

mas passa também pela correção das distorções geradas no segmento de divida pública,

discutidas na seção anterior. Em grande parte, a renitência de aplicadores em aceitar outras

combinações de maturidade e rentabilidade se apóia na disponibilidade de um ativo que

combina retornos elevados, riscos excepcionalmente reduzidos e alta liquidez. A mudança no

perfil de captações de recursos por parte das próprias instituições financeiras exige a correção

destas distorções. A mudança deveria ser induzida através de estímulos à emissão de notas

por parte dos bancos.17 O estímulo poderia ser de uma dentre duas formas: o reforço da

rentabilidade do papel para o aplicador, pelo oferecimento de benefícios fiscais a quem

mantivesse o título em carteira até seu vencimento; o reforço de sua liquidez através de

medidas que apoiassem a criação e operação de mercados secundários para estes papéis.

17 Notas são títulos de maturidade média, em contraste com letras, de curta duração, e bônus, papéis de maiormaturidade. A proposta é iniciar o alongamento de prazos pela emissão de notas, de forma a evoluir gradativamentepara as condições de mercado que permitam eventualmente a emissão de bônus privados.

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Provavelmente, a primeira alternativa poderia ser mais adequada, inclusive como forma de

promover uma nova atitude no mercado com relação a títulos, passando estes a ser vistos

também como investimento e não apenas como ativo negociável.

Se isto for conseguido, será possível induzir os bancos brasileiros a se tornarem universais no

sentido alemão, captando recursos por maturidades maiores e dirigindo-os para empresas em busca

de crédito de longo prazo. É preciso observar, no entanto, que esta prática encontra-se em declínio

mesmo nos países onde se originou, como é o caso da Alemanha. Mesmo nas condições mais

favoráveis, a intermediação bancária parece se dar, neste segmento, a custos muito elevados. A

perda de clientes entre as empresas alemãs, por exemplo, que, com a globalização financeira,

passaram a ter a oportunidade de demandar recursos em outros mercados financeiros, tem

estimulado os bancos universais daquele país a modificar suas formas de operação, aproximando-se

da outra noção de banco universal, aquela que combina a participação tanto nos mercados de crédito

quanto de títulos. Embora não haja indicações seguras de que a forma tradicional de operação do

banco universal, provendo crédito a diferentes maturidades, tenha se esgotado, é certamente

prudente explorar formas alternativas de prover a sustentação desejada.

A intermediação bancária, de qualquer forma, não deve ser o único canal a ser explorado. Mercados

de títulos, tanto de dívidas quanto de participação em capital, também devem receber estímulos e

ser objeto de políticas de modernização e reforma. A literatura recente sobre estruturas financeiras

indica que a contraposição entre sistemas baseados em mercado e sistemas baseados em crédito

pode ser um falso problema. Por um lado, não há evidências de que uma forma de organização seja

consistentemente superior a outra em todas as circunstâncias. Por outro, canais diferentes de

alocação de recursos financeiros podem responder a demandas diferentes, de modo a tornar um

sistema financeiro mais diversificado provavelmente mais eficientes em atender às necessidades de

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financiamento colocados por uma economia não apenas em crescimento, mas também em

transformação estrutural.18 Finalmente, é preciso ter em mente os limites da engenharia institucional

na criação de estruturas econômicas definitivas. Mercados financeiros são plásticos, como quaisquer

outros mercados, e evoluem de acordo com as necessidades e os modos de interação entre

financiadores e financiados. Estruturas financeiras mais rigidamente definidas sobreviveram durante

décadas no século XX em função mais do isolamento destes mercados e da natureza intrusiva da

regulação financeira que por sua eficiência. O movimento de liberalização financeira que tomou

força a partir dos anos 80 em todo o mundo liberou forças transformadoras dentro do próprio

sistema financeiro, que parecem apontar para a convergência de modelos estruturais, com

características tanto dos sistemas baseados em crédito quanto dos sistemas baseados em mercado.

Deste modo, preparar o sistema financeiro brasileiro para apoiar decisivamente uma nova onda de

investimentos exige dar atenção especial ao desenvolvimento de um mercado de títulos privados, já

que estes mercados no Brasil têm sido completamente dominados pela divida pública.

A condição mais importante para o desenvolvimento de um mercado de títulos privados é a

drástica redução do espaço ocupado por títulos públicos. Este não é o lugar para discutir

políticas para o problema da dívida pública, mas é forçoso reconhecer que qualquer proposta

de desenvolvimento do mercado de papéis privados será inócua enquanto títulos públicos não

apenas continuarem sendo negociados no volume em que o são atualmente, como nos termos

que tornam qualquer alternativa privada não competitiva.

18 A experiência dos Estados Unidos nos anos 90 mostrou, por exemplo, a importância do papel dos mercados de ações(especialmente os chamados “novos mercados”) na sustentação de investimentos realizados por empresas emergentes,especialmente em setores de serviços, como a produção de softwares. Estes projetos exigem o financiamento a muitasempresas em valores individuais relativamente pequenos. O mercado de ações permite precisamente esta diluição derecursos. Já o apoio a projetos industriais, especialmente os de grande monta, parecem ser melhor atendidos pelo créditobancário, capaz de reunir recursos em grande escala e dirigi-los para projetos específicos.

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Uma segunda condição prévia ao desenvolvimento deste segmento do mercado financeiro é a

drástica redução da probabilidade de que choques de juros semelhantes aos sofridos no Brasil

desde 1995 se repitam. O risco de capital de qualquer papel privado de duração mais longa,

nas condições atuais, é tão grande a ponto de gerar também riscos de crédito.19 20

As linhas de modernização do sistema financeiro brasileiro, caso as pré-condições mencionadas

sejam atendidas, devem ser inspiradas nas experiências bem-sucedidas de outros países e nas

peculiaridades da economia brasileira. Assim, deve-se, por exemplo, estimular a expansão do

mercado de debêntures e de notas, aumentando-se gradativamente a maturidade destes papéis.

Novamente, a modernização das leis de falências é essencial para que regras de colateralização

eficazes possam ser definidas e implementadas. Por outro lado, as regras de governança corporativa

devem também ser aperfeiçoadas de modo a aumentar a transparência da situação patrimonial e

econômica das empresas que recorrem a este mercado. A infraestrutura do mercado deve ser

desenvolvida, agilizando-se e dando segurança à custódia e transferência de papeis bem como ao

reconhecimento e liquidação de pagamentos.

A dificuldade maior para o desenvolvimento deste segmento se encontra, provavelmente, pela lado

da demanda. Como já mencionado anteriormente, os grandes investidores em papéis no país são

bancos e fundos de investimento. O objeto de demanda é, naturalmente, a dívida pública. Tanto

bancos quanto fundos de investimento são intensamente atraídos pelo atributo de liquidez destes

papéis. Para bancos, esta preocupação é relativamente natural, já que títulos públicos, em condições

normais, seriam demandados como reserva secundária, ainda que, atualmente, o elevado retorno

destes papéis os tornem também o investimento privilegiado pelas instituições. Fundos de19 Isto é, choques de juros podem não apenas fazer o valor de mercado de papéis privados cair significativamente (riscode capital), como também levá-la mesmo à insolvência (risco de crédito).20 Este autor tem defendido em várias ocasiões a visão de que choques de juros no Brasil dos anos 90 têm origem emturbulências na conta de capitais do balanço de pagamentos. Em conseqüência, defende-se a introdução de controles decapitais como forma de redução da vulnerabilidade a essas turbulências e redução da probabilidade de ocorrência denovos choques no futuro. Para uma discussão destes controles veja-se Carvalho (2003b) e Carvalho e Sicsu (2003).

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investimento, por outro lado, deveriam ter preocupações diversas. No entanto, deformações

especificas da experiência brasileira das duas últimas décadas moldaram um comportamento

anômalo nessas instituições. Aplicações em fundos popularizaram-se no Brasil como substitutos

para depósitos à vista durante o regime de alta inflação. Estas aplicações, portanto, eram buscadas

menos por sua rentabilidade mas, sim, pela sua liquidez a que se acrescentava o atributo adicional

de ser (parcialmente) defendido contra a corrosão inflacionária que atingia os depósitos à vista. Com

isto, o aplicador típico em fundos acostumou-se a buscar nos fundos duas características centrais

que distorcem sua atuação e impedem que, hoje, exerçam funções mais apropriadas. A primeira

característica era, como já visto, a liquidez: os fundos procurados são, via de regra, aqueles que

oferecem a mesma liquidez dos depósitos à vista. A segunda, é a segurança: os aplicadores não

parecem considerar, mesmo após a estabilização de preços, a aplicação em fundos como um

investimento de risco. Assim, o piso do retorno esperado é zero, o mesmo dado pelo depósito à

vista.21 O terceiro foco de atenções parece ser a taxa de administração cobrada e apenas então a

rentabilidade se torna um critério.

Os aplicadores em fundos (e seus administradores) têm, portanto, de ser reeducados para

operar em um sistema onde as taxas de inflação já não justificam a existência de saldos

transacionais remunerados. Um instrumento para tanto pode ser, também já mencionado

acima, a concessão de incentivos fiscais para a aplicação em papéis de mais longa maturidade

calculados em função da permanência do papel em carteira. Naturalmente, tal incentivo reduz o

atributo de liquidez destes papéis ao reduzir o interesse na negociação secundaria com papéis, mas a

medida pode se justificar em uma economia em que a atenção à liquidez é exagerada como a

brasileira.

21 Evidência desta expectativa foi a reação à introdução da marcação a mercado das carteiras de títulos em 2002: apercepção de que estes fundos estavam sujeitos a riscos, e que o valor das aplicações podia efetivamente diminuir, levoua uma ampla retirada de recursos, levando o Banco Central a recuar na exigência de avaliação por este método.

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Mercados de títulos de dívida privada de longo prazo são tão excludentes quanto os de dívida de

curta maturidade. Assim, para torná-los eficazes também no financiamento de médias e pequenas

empresas são necessárias medidas especiais semelhantes às propostas na seção anterior,

especialmente no que se refere à criação de notas lastreadas em títulos de dívida de empresas

individuais que não tenham dimensão suficiente para colocar papéis próprios no mercado. O

governo poderia tomar a iniciativa de securitizar a demanda por crédito destas empresas

criando uma entidade nos moldes de uma Sociedade de Propósito Especial que absorvesse os

títulos daquelas empresas, e os usasse para como lastro para a emissão de notas e,

eventualmente, bônus a serem colocados junto, por exemplo, a investidores institucionais,

como fundos de pensão ou fundos de investimento. Ao menos nos primeiros anos de operação

de um tal mercado, haveria a necessidade, certamente, de reforços de crédito, seja sob a forma

de venda de opções de venda destes papeis (por exemplo, na eventualidade de ocorrência de

um choque de juros), ou de um seguro contra inadimplência. A vantagem destes instrumentos

está, naturalmente, no fato de que, caso o governo seja capaz de defender a estabilidade

macroeconômica , nenhum dispêndio seria efetivamente necessário.

Mercados para títulos de dívida privada não serão suficientes para garantir o financiamento

adequado da expansão dos investimentos se as empresas que pretendem investir tenham

expectativas particularmente incertas com relação a influxos de caixa. Esta incerteza pode ser muito

importante se a estratégia de desenvolvimento econômico apoiar-se mais fortemente na geração e

implementação de inovações do que na instalação ou expansão de setores já conhecidos. É no apoio

à primeira estratégia que a modernização e reforma do mercado de ações pode se tornar

estratégico. Instituições específicas devem ser desenhadas, especialmente no sentido de

viabilizar a parceria entre empresas emergentes e financiadores menos avessos ao risco.

Parcerias (venture capital) devem ser estimuladas, pelas quais o financiamento inicial é obtido

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pela empresa inovadora junto a consórcios de financiamento, até que seja possível o apelo a

mercados de capitais mais amplos, possivelmente através de incentivos de natureza fiscal,

desde que estas parcerias sejam, naturalmente, restritas ao tipo de investimento realmente

inovador que se quer promover.

O desenvolvimento de um mercado de capitais privados mais diversificado e flexível permitirá que

o setor público possa confinar suas ações de apoio direto àqueles setores onde haja um interesse

estratégico nos seus investimentos ou que se justifiquem por motivos não diretamente econômicos.

Nestes casos, mesmo subsídios ao investimento podem ser necessários sendo melhor que tenham

sua natureza e volume explicitados.

4. Promovendo a Distribuição de Riqueza

As propostas delineadas nas duas seções anteriores atendem, por si mesmas, em grande parte

objetivos que pode chamar de sociais, já que promovem a inclusão de tomadores até hoje mantidos

geralmente ao largo dos mercados financeiros formais ou atendidos por estes a preços e termos

exageradamente desfavoráveis. Algumas medidas adicionais, no entanto, podem ser propostas para

acelerar o processo de integração de grupos excluídos nos mercados financeiros.

Uma primeira série de medidas proposta é inspirada na experiência norte-americana com a Lei de

Reinvestimento Comunitário (Community Reinvestment Act, CRA). Esta lei, adotada nos anos 70

nos Estados Unidos e implementada principalmente nos anos 90, torna a permissão aos bancos para

proceder a certos atos (como compras de outros bancos, expansão da rede de atendimento, etc)

condicional ao desempenho no atendimento de grupos sociais excluídos, como tomadores de

empréstimos em comunidades de renda mais baixa, pequenas empresas, etc.22 Esta iniciativa não se22 Sobre o CRA, veja-se US Treasury Department (2000).

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confunde com a promoção do micro-crédito, que está voltado para aqueles demandantes de recursos

que não teriam como serem atendidos pelo sistema financeiro formal, seja por exigirem métodos

próprios de monitoração (estes tomadores são geralmente desprovidos de ativos, por exemplo, que

possam servir de colaterais), seja por envolver operações de valor tão reduzido a ponto de não

justificar o custo operacional da concessão do empréstimo por um banco comercial. O CRA visa

atender às demandas de grupos que poderiam, em princípio, ser atendidos pelo mercado financeiro

convencional, mas não o são por razões que variam de posturas racistas23 ao simples desinteresse

em atender, por exemplo, empresas de pequeno porte cuja demanda potencial por serviços

financeiros adicionais seja pequena.

O CRA se apóia em dois princípios: 1. grupos de clientes potenciais deixam de ser atendidos pelo

sistema bancário ainda que preencham os requisitos básicos que justificam a realização de um

negócio; 2. o sistema bancário tem sua operação subsidiada pela sociedade, sob a forma de redes de

segurança, como a existência do emprestador-de-última-instância, que reduzem seus riscos de

operação, diminuindo assim seus custos de captação frente a outras instituições financeiras e

empresas não-financeiras que não contam com esse suporte.

O esforço adicional de atendimento dos grupos identificados no primeiro princípio é visto como

uma contrapartida que a sociedade pode legitimamente demandar pelo subsídio reconhecido no

segundo princípio.

No caso brasileiro, uma iniciativa semelhante poderia ser implementada para garantir o atendimento

das demandas de crédito de pequenas e médias empresas, de cuja operação depende a maior parte

dos empregos gerados na economia do país. Novamente, não se deve confundir estas operações com

micro-crédito, cujo valor e condições são muito diferentes daqueles característicos das demandas23 Chamadas nos Estados Unidos de redlining.

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mesmo das pequenas empresas. Trata-se de operações comerciais normais, que são, no entanto,

preteridas pelo sistema bancário por qualquer razão.

5. Conclusão

Na perspectiva deste trabalho, o problema do financiamento do desenvolvimento não está na

geração de poupança, nem mesmo no da substituição de poupança externa por poupança doméstica,

mas no como fazê-la chegar aos investidores. Na verdade, o problema está em entender que o

sistema financeiro participa do processo de sustentação do investimento de forma mais complexa do

que aquela concebida na visão clássica de poupança como oferta de capital e no investimento como

demanda por capital.

Argumentou-se neste texto que o sistema bancário/financeiro participa do processo de duas

maneiras, criando a liquidez necessária para financiar a aquisição de bens de investimento e criando

os canais pelos quais as empresas investidoras obtêm recursos para promover o funding de suas

obrigações para um perfil adequado à longa duração dos seus ativos.

Deste ponto de vista, propôs-se que a modernização do sistema financeiro brasileiro deve ser

buscada através de um amplo conjunto de medidas que têm por pré-requisito não apenas a redução

do espaço ocupado pela dívida pública como também a alteração dos seus termos, que tornam

impossível a realização de qualquer negociação privada em escala significativa.

Alem da “normalização” das operações com dívida pública, um segundo requisito essencial é a

reeducação dos aplicadores, especialmente os administradores de fundos de investimento e seus

clientes, para que suas aplicações sejam vistas como investimentos ao invés de depósitos à vista

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remunerados. O desenvolvimento de um mercado financeiro mais eficaz passa pelo aumento da

capacidade de discernimento dos investidores a respeito das diversas combinações risco/retorno que

contratos diferentes oferecem.

Se estes requisitos forem cumpridos, a modernização dos mercados financeiros brasileiros com

vistas a que cumpram suas funções no processo pode ser tarefa relativamente simples, dada a

variedade de experiências de outros países e do próprio Brasil em que os reformadores podem se

inspirar. Neste texto, algumas das iniciativas de reforma foram identificadas, dando-se especial

ênfase no desenvolvimento dos mercados de títulos, inclusive apoiados por iniciativas voltadas para

a viabilização da participação nestes mercados de pequenas e médias empresas, e nas formas de

captação, pelos bancos, de recursos de prazos maiores, para viabilizar o alongamento de seus

próprios empréstimos.

Ênfase particular foi dada à preocupação de que o financiamento do desenvolvimento possa se dar

com inclusão social, e nesta direção, propôs-se a reflexão em torno da Lei de Reinvestimento

Comunitário, como modelo para iniciativas semelhantes no Brasil.

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