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5 ITAICI – REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA, n. 98 (Dezembro/2014) artigo O autor é professor do de- partamento de Teologia da PUC-Rio, membro da equipe de CEI – Jesuítas e diretor da Revista. Sintonizando com a vontade do Senhor em meio às ocupações da vida diária. Uma releitura do Diário Espiritual de Inácio de Loyola Alfredo Sampaio Costa, SJ Introdução: O Diário Espiritual, um documento muito original O Diário Espiritual é o escrito que mais nos introduz na alma de Inácio; o panorama que se descortina dessas excepcionais páginas é de uma grandiosidade da mais sublime mística. Se não as tivessem conservado, o aspecto mais profundo da espiritualidade inaciana teria ficado oculto para sempre e jamais suspeitaríamos dos altos cumes por onde o Senhor conduziu essa alma privilegiada 1 . No Diário Espiritual quase não há registro de ação externa ou fato que possa distrair a atenção e oculte o menor movimento no interior do Santo. Todo ele é voltado para a interioridade do que se passava no coração de Inácio 2 . A importância desse documento não deve ser desmerecida, pois representa um “singular testemunho do itinerário espiritual de Inácio de Loyola” 3 . Singular, porque foi escrito pelas mãos do próprio Inácio, mas é o mais esquecido dos textos inacianos, já que não conheceu uma edição crítica antes de 1934 4 : “No Diário, Inácio deixou a des- coberto, com toda sinceridade, o segredo da sua familiaridade com Deus” 5 . Esse documento demonstra a atenção que Inácio prestava às visitações 6 que recebia de Deus; quando se punha a anotar as moções interiores, as razões de suas eleições, os elementos de confirmação obtidos do Senhor, o Santo manifestava claramente sua delicada e firme correspondência à graça e seu propósito de secundá-la fiel e docilmente 7 . Devemos também dizer, porém, que o Diário Espiritual pode ser mais ambíguo do que iluminador, a menos que seja cuidadosamente estudado e entendido, uma vez que as experiências ali relatadas se 1. I. IPARRAGUIRRE, “Introducción al Diario Espiritual”, em: SAN IGNACIO DE LOYOLA, Obras, Edición Manual, Transcripción, Introducción y notas de Ignacio Iparraguirre, Candido de Dalmases e Manuel Ruiz Jurado, 5. edición, Madrid, BAC, 1991, p. 341-342. Em português: SANTO INÁCIO DE LOYOLA, Escritos de Santo Inácio Diário Espiritual, São Paulo, Loyola, 2002. 2. Ao abrir esse livro, o leitor po- derá sentir uma dificuldade inicial, devido ao próprio estilo da obra: redigido única e exclusivamente para o uso privado do autor, é repleto de frases elípticas, de in- finitivos e gerúndios acavalados uns sobre os outros. Inácio usa termos bascos, palavras mais ou menos arcaicas ou até mesmo estrangeiras, e a impressão de conjunto é que o texto é obscuro. Ficará para sempre o mistério do sentido mais íntimo de muitas de suas expressões e seus dons, como é o caso, por exemplo, da chamada loquela, sobre a qual trataremos mais adiante neste artigo. 3. N. HAUSMAN, “Ignacio de Loyola y la misión del Espíritu Santo. Una 02___05a23_Sintonizando com vontade_____OP 33374.indd 5 01.12.14 13:50:08

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5ItaIcI – revIsta de espIrItualIdade InacIana, n. 98 (dezembro/2014)

artigo

O autor é professor do de-partamento de Teologia da PUC-Rio, membro da equipe de CEI – Jesuítas e diretor da Revista.

Sintonizando com a vontade do Senhor em meio às ocupações da vida diária. Uma releitura do

Diário Espiritual de Inácio de Loyola

Alfredo Sampaio Costa, SJ

Introdução: O Diário Espiritual, um documento muito original

O Diário Espiritual é o escrito que mais nos introduz na alma de Inácio; o panorama que se descortina dessas excepcionais páginas

é de uma grandiosidade da mais sublime mística. Se não as tivessem conservado, o aspecto mais profundo da espiritualidade inaciana teria ficado oculto para sempre e jamais suspeitaríamos dos altos cumes por onde o Senhor conduziu essa alma privilegiada1.

No Diário Espiritual quase não há registro de ação externa ou fato que possa distrair a atenção e oculte o menor movimento no interior do Santo. Todo ele é voltado para a interioridade do que se passava no coração de Inácio2.

A importância desse documento não deve ser desmerecida, pois representa um “singular testemunho do itinerário espiritual de Inácio de Loyola”3. Singular, porque foi escrito pelas mãos do próprio Inácio, mas é o mais esquecido dos textos inacianos, já que não conheceu uma edição crítica antes de 19344: “No Diário, Inácio deixou a des-coberto, com toda sinceridade, o segredo da sua familiaridade com Deus”5. Esse documento demonstra a atenção que Inácio prestava às visitações6 que recebia de Deus; quando se punha a anotar as moções interiores, as razões de suas eleições, os elementos de confirmação obtidos do Senhor, o Santo manifestava claramente sua delicada e firme correspondência à graça e seu propósito de secundá-la fiel e docilmente7.

Devemos também dizer, porém, que o Diário Espiritual pode ser mais ambíguo do que iluminador, a menos que seja cuidadosamente estudado e entendido, uma vez que as experiências ali relatadas se

1. I. IPARRAGUIRRE, “Introducción al Diario Espiritual”, em: SAN IGNACIO DE LOYOLA, Obras, Edición Manual, Transcripción, Introducción y notas de Ignacio Iparraguirre, Candido de Dalmases e Manuel Ruiz Jurado, 5. edición, Madrid, BAC, 1991, p. 341-342. Em português: SANTO INÁCIO DE LOYOLA, Escritos de Santo Inácio – Diário Espiritual, São Paulo, Loyola, 2002.

2. Ao abrir esse livro, o leitor po-derá sentir uma dificuldade inicial, devido ao próprio estilo da obra: redigido única e exclusivamente para o uso privado do autor, é repleto de frases elípticas, de in-finitivos e gerúndios acavalados uns sobre os outros. Inácio usa termos bascos, palavras mais ou menos arcaicas ou até mesmo estrangeiras, e a impressão de conjunto é que o texto é obscuro. Ficará para sempre o mistério do sentido mais íntimo de muitas de suas expressões e seus dons, como é o caso, por exemplo, da chamada loquela, sobre a qual trataremos mais adiante neste artigo.

3. N. HAUSMAN, “Ignacio de Loyola y la misión del Espíritu Santo. Una

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referem a um delimitado período da vida de Inácio. No que diz respeito ao processo de tomada de decisão, poderíamos ser levados a pensar que só concluímos um discernimento após uma longa e dolorosa tarefa8. Ora, isso nem sempre será assim.

Por se tratar de anotações privadas, não é tarefa fácil interpretar a concisão das expressões usadas por Santo Inácio. O antigo Pe. Geral dos jesuítas, Peter-Hans Kolvenbach, realizou um admirável estudo em que analisa a linguagem usada por Inácio no Diário9, mostrando a dificuldade encontrada pelo Santo para exprimir a profundidade de suas experiências por escrito: “Sentia ao Filho muito propício para interceder, e aos Santos — juntos — vendo-os de tal maneira que isto não se pode descrever, nem também explicar as outras coisas”10. Essa dificuldade provém do caráter místico, inefável, das experiências vivenciadas por Inácio, como veremos. Ao mergulharmos nas páginas do Diário Espiritual, tocamos o único texto que se transmitiu até nós sem nenhuma corruptela, em sua própria redação original. É o único escrito de importância do Santo que se conserva autógrafo11.

No Diário, como em todos os Exercícios, domina o mesmo cuidado de encontrar e abraçar a vontade de Deus, de encontrá-la primeiro por experiências internas, sem renunciar, contudo, em nada, ao emprego da razão esclarecida pela fé; o mesmo desejo de confirmação divina das decisões tomadas, como veremos em seguida; a mesma devoção à Santíssima Trindade e o mesmo respeito para com a divina Majestade; o mesmo sentimento de infinita distância entre Deus e nós em meio às mais vivas efusões de amor. Em ambos os documentos, também se dá grande importância aos mediadores: em primeiro lugar, à humanidade de Cristo, nosso chefe e modelo, nosso advogado para o Pai; depois dele, à Virgem e aos santos.

Coloquemo-nos na mesma atitude de Inácio de busca, de foco, de entrega de nossas preocupações nas mãos de Deus, para podermos ler nas entrelinhas da vida o que o Senhor deseja de nós!

1. A busca da confirmação da vontade de Deus ao longo do Diário Espiritual

No Diário Espiritual, vemos como Inácio empenhou muitos dias e energias na busca de confirmação para sua eleição com relação ao tipo de pobreza a ser vivida pela Companhia de Jesus. A intensidade

lectura del Diario Espiritual (1544-1545)”, CIS 63-64 (1990), p. 37.

4. Edição de P. CODINA em Monu-menta Historica Societatis Iesu, sé-rie 3, Constitutiones I, p. 86-158.

5. Cf. A. HAAS, “Die Mystik des heiligen Ignatius nach seinem geis-tlichen Tagebuch”, em: F. WULF-H. RAHNER (ed.), Ignatius von Loyola. Seine geistliche Gestalt und seine Vermächtnis, Würzburg, Echter-Verlag, 1956, p. 185-186.

6. O termo “visitação” significa cer-to estado temporário de devoção ou sentimento da presença de Nossa Senhora ou das Pessoas da San-tíssima Trindade. Algumas vezes, alude também ao dom das lágri-mas (fala-se então de “visitações de lágrimas”) (DE 117, 121, 132, 137). Geralmente, contudo, não é expressado o objeto da visitação e ele passa a significar um não especificado dom de consolação na presença divina (assim em DE 127, 129, 132-133). Cf. J. C. FU-TRELL, “The Mystical Vocabulary of Ignatius in the Diario”, em: Dossier Constitutiones, Roma, CIS, 1972, p. 152.

7. Cf. S. DECLOUX, Comentario a las Cartas y Diário Espiritual de S. Ignacio de Loyola, Roma, CIS, 1982, p. 81-82. Tradução nossa.

8. J. J. TONER, Discerning God’s Will, St. Louis, Institute of Jesuits Sources, 1991, p. 213.

9. P.-H. KOLVENBACH, “Lenguaje y Antropologia. El Diário Espiritual de San Ignacio”, CIS 67 (1991), p. 9-19. Ver também G. DE GENNA-RO, “La expresión literaria mística del ‘Diario Espiritual’, ignaciano”, Manresa 35 (1963), p. 25-46.

10. Diário Espiritual 27. De agora em diante, citado como DE. Ver também DE 31.

11. O que hoje chamamos de Diá-rio Espiritual compreende dois cadernos: o primeiro, de 14 folhas, contém o processo espiritual dos 40 dias que vão de 2 de fevereiro

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com que Inácio se lançou nessa busca de confirmação transparece na seguinte oração transcrita:

Em seguida, ao preparar o altar e ao paramentar-me, vinham-me estas palavras: “Pai eterno, confirmai-me, Filho eterno, confirmai-me! Espírito Santo, confirmai-me! Meu Deus, que sois um só Deus, confirmai-me”! Com tanto ímpeto e devoção e lágrimas, e tantas vezes o dizia e internamente tanto o sentia que ao dizer: “Pai eterno, não me confirmareis?”, como que sentia que sim. E o mesmo com o Filho e com o Espírito Santo (DE 48).

Também nós ansiamos por receber do Senhor um sinal que nos confirme em nossas decisões, e não descansamos até que possamos visualizar ou sentir essa aprovação divina!

1.1. Um dinamismo ritmado de “buscar e encontrar”

A maior parte do Diário está dedicada à experiência espiritual de Inácio de busca e espera da confirmação por parte de Deus sobre a decisão que o Santo havia tomado com a ajuda da razão e das moções internas. Como se articula esse processo de busca de confirmação? Duas palavras recorrem frequentemente sob sua pena, marcando, por assim dizer, a oscilação interior da oração: buscar y hallar. O homem busca por todos os meios que estão a seu alcance, mas somente Deus o faz encontrar sua graça, revelando-a no seu devido tempo. No Diário Espiritual, “buscar” e “encontrar” são termos em estreita correlação, convergindo num mesmo objetivo espiritual12: a busca e o encontro de Deus, seja por meio de uma visão mística, devoção e lágrimas ou outro qualquer de seus dons que vêm como expressão de Sua vontade para Inácio13.

De que modos o Senhor tem se revelado em nossa vida? Tenho sido sensível às Suas manifestações? Sou capaz de reconhecer Sua voz?

1.2. As formas variadas de “confirmação”

No Diário Espiritual, podemos encontrar evidências de que aquilo que Inácio entende por confirmação não se limita à experiência única de consolação espiritual, ainda que essa experiência seja a predomi-nante. A consolação espiritual é sem dúvida uma forma muito evidente de confirmação. No Diário Espiritual, isso é muito claro com relação

a 12 de março de 1544, dedicado pelo santo à questão da pobreza das igrejas da Companhia; o segundo abraça os sentimentos espirituais tidos desde 13 de março até 27 de fevereiro do ano seguinte, 1545.

12. Ver, por exemplo, DE 144: “… muitas vezes, combate a res-peito do que faria para terminar, pois não encontrava aquilo que buscava”; DE 164: “Em seguida, algum tempo depois, parecia-me que fosse vontade de Deus que eu fizesse um esforço para procurar e para encontrar. E não encontrava, mas me parecia bom procurar e que não estava em meu poder encontrar”.

13. Cf. R. MEJÍA SALDARRIAGA, La Dinámica de la integración es-piritual. Buscar y hallar a Dios en todas las cosas, Roma, CIS, 1980, p. 187.

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às consolações que confirmam a Inácio sua decisão com relação à pobreza14. Os termos com que ele normalmente descreve a consolação espiritual se repetem monotonamente a cada parágrafo de seu Diário. Para ter uma comprovação disto, tomem-se, por exemplo, os termos “moção”15, “devoção”16, “lágrimas”17 e “soluços”18, ou ainda “calor”19.

Se olharmos o Diário Espiritual com atenção, poderemos encon-trar outros sinais de confirmação, ainda que não tão numerosos como a consolação. O próprio Inácio nos deixou escapar uma frase muito significativa em suas anotações do dia 23 de fevereiro: “Parecendo uma confirmação, ainda que não recebesse consolações sobre isso…” (DE 67). Assim, o vemos buscar a confirmação repassando várias vezes as razões já examinadas antes, como nos mostram os registros feitos nos dias 6, 8 e 9 de fevereiro. Já no dia 11 de fevereiro, fala de inteligências recebidas (DE 15)20 e no dia 23 de fevereiro, a respeito de outro poderoso argumento que lhe veio à mente (DE 66). Ao lado de consolações e razões, mas necessariamente em conexão com elas, Inácio ainda menciona de passagem outro sinal da vontade de Deus referindo-se a uma maior moção da vontade (DE 8), uma intensifica-ção do impulso volitivo na direção de uma das alternativas sentidas como aquela que Deus quer.

Podemos concluir, portanto, que nem sempre se dá uma con-firmação por meio de uma consolação espiritual. Ainda que a con-solação seja o modo ordinário com que Deus mostra Sua aprovação, poderia não se dar e nem por isso se deveria desautorizar sem mais a eleição feita.

O Senhor é livre de conceder ou não a consolação comprovatória e cabe a nós oferecer nossa decisão e implorar Sua aprovação, venha ela experimentada por nós em modo sensível ou que se manifeste por outros meios que o Senhor quiser. Para Santo Inácio, a busca de confirmação é algo importante e que deve ser levada a cabo com grande diligência e espírito de oração pela pessoa que oferece ao Senhor a eleição feita. De sua experiência, aprendemos também que não se deve ir em busca de consolações nem exigir de Deus sinais para a satisfação própria, mas muito mais: é preciso alcançar essa atitude de profunda indiferença e liberdade interior, de reverência e de acatamento amoroso, além de estar aberto para receber do Senhor a confirmação do modo em que Ele julgar mais oportuno.

Como o Senhor tem confirmado minhas decisões? Tenho buscado essa confirmação divina naquilo que decido fazer?

14. J. J. TONER indica os registros do Diário Espiritual dos dias 10-11 e 13-18 de fevereiro e também a Autobiografia 100. Cf. Discerning 207, nota 37.

15. Ver, por exemplo, DE 8, 11, 17, 26, 28-31, 34, 40, 42, 47, 58, 68-69, 91, 97-98, 122-124, 130 etc.

16. Cf. DE 1, 4, 5, 6-19, 21-29, 32, 36-38, 40-46, 48-51, 56, 58, 60, 63-66, 68-74, 76-82, 85-94, 97-104 etc.

17. Cf. DE 1, 4-8, 12, 14, 16, 18-19, 22-23, 24-36, 38-40, 42, 46-49, 51-53 etc.

18. Cf. DE 16, 24, 27, 30-31, 36, 38, 47, 53, 64, 68, 71, 73, 78, 95, 103 etc.

19. Cf. DE 6, 11, 22, 36, 39, 40, 43, 45, 76-77, 92, 104, 111 etc.

20. O termo “inteligências” ainda vai aparecer nos números 21, 27, 33, 51, 52, 183 e 187. Associado com o termo “clareza”, refere-se ao entendimento iluminado pela graça.

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2. O Diário Espiritual, expressão de um contemplativo em ação

Inácio vai aplicando as normas e os princípios do seu livrinho dos Exercícios não em um retiro espiritual descansado, mas em meio ao burburinho de suas inúmeras atividades no governo ordinário da Companhia. Nesse momento, estava ocupado com a fundação da casa para catecúmenos e da Companhia da Graça e da Casa de Santa Marta para mulheres caídas na prostituição. Também nessa época fez as gestões, nada simples, para a obtenção de uma nova Bula de Paulo III que confirmasse a Companhia e tirasse a limitação do número de pro-fessos. Além disso, levava adiante os negócios correntes, cada dia mais numerosos, de seus filhos dispersos em Portugal, Espanha, Alemanha, Itália, Índia. Além de outros ministérios que fazia, como confessar, estava dedicado ao trabalho de escrever as Constituições. Essa era a vida que Inácio levava nos momentos em que se sentia inundado pelas mais altas comunicações celestiais e quando anotava cuidadosamente a abundância ou escassez de lágrimas experimentadas na missa. Soube ser um verdadeiro contemplativo em meio a uma ação intensa e em um ambiente sobrecarregado de trabalho e de preocupações.

Encontro Deus em meio aos afazeres de minha vida? Como Ele se deixa encontrar?

3. A natureza mística do Diário Espiritual

Escreve o Padre De Guibert, especialista na espiritualidade inaciana, que no Diário Espiritual encontramo-nos “na presença de uma vida mística no sentido mais estrito da palavra, na presença de uma alma conduzida por Deus pelas vias da contemplação infusa no mesmo grau, ainda que não da mesma maneira que um São Francisco de Assis ou um São João da Cruz”21. Os traços principais que os teólogos estão de acordo em considerar como características essenciais da oração infusa se revelam no Diário Espiritual em cada página: visão simples e intuitiva das coisas divinas, sem multiplicidade de conceitos nem discursos; passividade completa do conhecimento e do amor infusos, dados e reiterados por Deus com soberana inde-pendência de todos os nossos esforços.

A mística de Santo Inácio é preferentemente trinitária22. Essa nota sobressai de tal modo sobre todas as demais, que impressio-

21. J. DE GUIBERT, “Mystique Igna-tienne”, RAM 19 (1938), p. 120.

22. Quem trabalhou muito bem essa dimensão trinitária presente no Diário Espiritual foi Maria Clara LUCCHETTI BINGEMER em seu trabalho Em tudo amar e servir. Mística trinitária e práxis cristã em Santo Inácio de Loyola, São Paulo, Loyola, 1990, p. 69-97.

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na à primeira vista. Não existe uma página em que não se fale de uma ou de outra maneira da Santíssima Trindade, centro de suas ilustrações: as visões da Trindade Santíssima manterão em suspen-sa contemplação a essa alma; e diante de seus olhos atônitos irão passando os mistérios mais insondáveis da Divindade, com a mesma essência divina, as três divinas Pessoas em unidade de natureza e distinção de pessoas, as processões divinas e tantos outros mistérios da vida trinitária.

A segunda nota típica da mística de Santo Inácio é a de ser uma mística essencialmente eucarística e litúrgica, centrada no sacrifício de Jesus Cristo. A missa de cada dia é o centro de todas as graças. E, mesmo quando as recebe em outra ocasião do dia, aparecem quase sempre como o prolongamento e o complemento das graças recebidas de manhã. A Eucaristia-oração é um binômio que se converte em “lugar teológico” das manifestações de Deus. Na missa, Inácio sentia mais intimamente a experiência de Deus. Essa experiência ocorre no íntimo da pessoa de Inácio e de toda pessoa, pois a ela só têm acesso Deus e o próprio indivíduo. A Eucaristia se converte em causa ou fonte de sua pleníssima vida interior. Por meio de uma leitura atenta do Diário, não se pode passar por alto a importância colossal da missa. Nenhuma página onde descreve o que sente, quer e busca, fala, oferece, chora, agradece, deixa de ter uma relação com a missa e sua oração pessoal, a qual não deixava nunca. É na Eucaristia que se repete o fenômeno de La Storta, quando sente que “o Pai o coloca com seu Filho”; “se imprimia nele o nome de Jesus”.

A ideia do sacrifício da missa é tão pessoal como sua espiri-tualidade. Como vemos, já desde o início, Inácio se deitava com a preocupação da missa do dia seguinte: “… com o pensamento vol-tado para o que celebrar e como…”. Nenhum detalhe da Eucaristia era tomado às pressas. Escreveu no dia 10 de março: “… Como um pensamento ou juízo que devia andar como anjo para o ofício de dizer missa…”, a expressão é sóbria, mas o alcance é imenso. Uma das características que se destacam é a de que Inácio se apropriava das orações escritas no missal e as dirigia, conforme o caso, a uma ou outra Pessoa ou a toda a Trindade: “Em geral as inteligências da missa e de antes eram sobre o apropriar-se das orações da missa, quando se fala com Deus, com o Pai ou com o Filho etc. e, tendo alcançado isto, me animava a seguir adiante” (DE 54). E o fazia conforme a Igreja se dirige a Deus no missal: “encontrando na missa acesso ao Pai ao nomeá-lo como a missa o nomeia…” (DE 27)23.

23. N. BARRIENTOS, “Linguagem e experiência de Deus”, Itaici 21, 1995, p. 5.

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A mística de Inácio é finalmente uma mística apostólica, de serviço, como atesta De Guibert em seu clássico estudo sobre a espiritualidade inaciana:

Mística de serviço por amor, mais do que de união amorosa quanto à sua orientação geral, resultante de uma ação divina sobre a humana, total, intelectual e sensível, mais do que uma mística de introversão. O que domina em suas relações com as Pessoas divinas e com Jesus Cristo é a atitude humilde e amante do servo, o afã de discernir em seus menores sinais o serviço desejado, a generosidade para cumpri-lo perfeitamente, por mais custoso que seja, em um voo gozoso de amor, mas ao mesmo tempo com um sentido profundo da Majestade infinita de Deus e de Sua transcendente santidade… Para esse serviço amante, magnânimo e humilde, convergem e estão polarizados todos os magníficos dons infusos de que Deus encheu a Santo Inácio24.

Que espaço ocupa a Eucaristia em minha vida espiritual? Vivo também uma oração dialogan-te com a Santíssima Trindade? Vivo minha espiritualidade em busca do maior serviço?

3.1. Multiplicidade de dons místicos

P. Larrañaga reuniu em uma interessante nota a lista dos dons in-fusos de que Santo Inácio fala em seus escritos. São os seguintes:

Lágrimas; gozo e repouso espiritual; consolação intensa; eleva-ção da mente; impressões e iluminações divinas; intensão de fé, esperança e caridade; gostos e sentidos espirituais; inteligência e visitações espirituais; moções intensas; visões; loquela interna e externa; acatamento reverencial; réplicas espirituais; toques; recordações; elucidação do entendimento pela virtude divina; inflamação no amor; consolação sem causa precedente; devoção crescida e amor intenso; alegria interna que chama e atrai às coisas celestiais; quietude e pacificação da alma em seu Criador e Senhor; notícias internas e inspirações divinas25.

3.2. A busca da palavra

A expressão mística vem à luz depois de um árduo processo de busca. Primeiro, deve-se dar uma percepção consciente do aconte-cimento religioso no mais profundo do “eu”; segundo, deve-se dar

24. J. DE GUIBERT, La spiritualité de la Compagnie de Jesus, Roma, IHSI, 1953, p. 33-39.

25. V. LARRAÑAGA, Obras Com-pletas de Santo Ignacio de Loyola, Madrid, BAC, 1947, p. 729, nota 89.

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uma primeira aproximação verbal, intelectual à experiência, que seja suficiente para situá-la no universo religioso que a pessoa já tem configurado sobre si mesma; terceiro, deve-se dar a busca pela palavra mais conveniente; quarta, deve-se encontrá-la e escrevê-la26. O primeiro passo pertence ao âmbito da sensibilidade espiritual e só consiste em trazer à consciência o lúcido “algo está me acontecendo”; o segundo nos mantém ainda em um nível atemático, mas já consiste na conversão de “algo” em experiência religiosa, com a intuição fun-damentada da linguagem do Divino no Espírito. O terceiro passo pretende estabelecer um diálogo entre essa experiência atemática que acontece em zonas não verbais do meu “eu” e seus próprios recursos de intelecção, isto é, sua capacidade intelectual para associar o dado religioso com aquelas parcelas da língua que o autor conheça; ora, a expressão é o resultado de um processo de busca, em muitas ocasiões árido e difícil, como o que ocorre no Diário Espiritual.

Sinto dificuldades também para expressar minhas experiências de oração mais profundas?

3.3. Inácio de Loyola, escritor místico

Na hora de expressar suas ricas experiências místicas, chama a atenção a “pobreza expressiva” de Inácio27. O risco da análise literária está em avaliar a experiência a partir da expressão: uma boa (literária) expressão se apoiaria em uma boa experiência mística e vice-versa, uma deficiente expressão literária estaria refletindo uma experiência mística de baixa qualidade. Ao nos aproximarmos do Diário Espiritual, vemos claramente que, do ponto de vista linguístico, Inácio escolhe a expressão descritiva, e esta é sua luta e sua originalidade.

As páginas do Diário desvelam uma luta incessante com a lin-guagem para tratar de adequar termo e referência (experiência) sem que a expressão passe pelas exigências estéticas da comparação, da metáfora, da metonímia ou do símbolo, pilares fundantes do ato de comunicação. Inácio busca, encontra, pensa, escreve, lê o que escreveu, volta a pensar, em numerosas ocasiões rabisca e por último volta a escrever. Ele mede a palavra, a situa diante do espelho da experiência e, por fim, a cria.

Desde o primeiro dia, vemos Inácio voltado com todas suas ca-pacidades para Deus. Realiza, ele mesmo, uma série de movimentos nesta busca da vontade divina. Escolhe (DE 9, 13, 34), oferece (DE 12, 16, 34, 36, 40), indigna-se (DE 50), pede perdão (DE 23, 25, 27,

26. Seguimos aqui o excelente tra-balho de José García de CASTRO, “Semántica y Mística: El Diario espiritual de Ignacio de Loyola”, Miscelánea Comillas 59 (2001), p. 211-254. Cf. p. 220.

27. Essa “baixa qualidade” literária se torna ainda mais expressiva se o situamos em pleno século XVI, contemporâneo de criadores e inovadores da linguagem, e cumes da experiência mística, como Teresa de Jesus e João da Cruz, e ao lado de tratadistas e mistagogos do caminho para o divino como os franciscanos Bernadino de La-redo, Frei Juan de los Ángeles, Francisco de Osuna ou Frei Alonso de Madrid.

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35, 73, 74), pede reconciliação (DE 76, 98, 110, 112, 115, 122), pede confirmação (DE 48, 53, 67, 110), dá graças (DE 19, 40, 47) etc. Inácio vai articulando sua linguagem com algumas práticas, como a Eucaristia e suas orações diárias (DE 4, 5, 6, 7). Apropria-se algumas vezes das palavras e fórmulas da missa; faz penitência, como comer mais tarde (DE 23, 45); e busca intercessores (DE 4, 6, 14, 27, 46). Pede ao Espírito para discernir e discorrer (DE 15, 36), vê suas faltas durante o dia e revisa sua consciência (DE 35). É tentado (DE 37, 38, 151, 152), desconfia de encontrar a graça (DE 44), sente-se in-digno e pede perdão (DE 63, 64, 73, 74), humilha-se (DE 112, 131, 135), sente-se desolado (DE 32, 39, 44, 104, 139, 145)28. Seu modo de escrever não pode ser entendido como um desconhecimento do castelhano nem como uma despreocupação pela linguagem, nem, enfim, como uma forma de compor o texto de modo espontâneo e descuidado. A seu modo, Inácio forma parte do grupo de místicos que se negaram a silenciar a experiência mística e optou por uma aventura narrativa que começou no dia 5 de fevereiro de 1544.

3.4. O Diário Espiritual, um texto místico: em que sentido?

Em primeiro lugar, a partir do próprio tema do qual se ocupa. Ele reflete a formulação de uma relação direta de Inácio de Loyola com um Tu transcendente e os efeitos que essa relação produz nele. Que essa relação é vivida e expressada de modo direto isso no-lo demonstram afirmações do tipo: “Pai Eterno, confirmai-me!” (DE 48); “Aonde me quereis levar, Senhor?” (DE 113), e outras tantas réplicas espirituais. Ao largo dos 13 meses em que dura a relação descrita, Inácio vive experiências cuja causa está unicamente lo-calizada em Deus. Inácio sente a Deus, busca como formular da maneira mais exata aquilo que sente, e uma vez formulado tenta interpretar o que Deus quer lhe dizer. O dispositivo dos pronomes pessoais no Diário Espiritual não deixa lugar a dúvidas sobre o processo dialogal em que Inácio se expressa. A temática do Diário é espiritual, e dentro dela, mística, isto é, de busca imediata e de encontro com Deus.

Em segundo lugar, é patente no Diário Espiritual a inerente inefabilidade que caracteriza o discurso místico. O fenômeno mís-tico, por ser “estranho”, insólito, cria uma relação problemática com a linguagem. Todo místico se encontra perante essa dificuldade. Diante de sua experiência de inadequação entre a linguagem que

28. Cf. N. BARRIENTOS, “Lingua-gem e experiência de Deus”, Itaici 21, 1995, p. 16.

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dispõe e a experiência que vive, restam-lhe duas possibilidades: inovar a linguagem e a gramática, ou silenciar a experiência, correndo o risco de permanecer na obscuridade por não ser capaz de traduzi-la em palavras.

Apesar de todos os seus esforços para encontrar a palavra exata, em algumas ocasiões Inácio tem que aceitar a derrota ante uma expe-riência que está resultando para ele como incomunicável. Assim que em determinadas ocasiões se vê obrigado a fazer referências explícitas à inefabilidade, “isso não se pode descrever, nem também explicar as coisas” (DE 27); “que não se podem explicar” (DE 21).

José García de Castro ajuda-nos a entender as principais expres-sões literárias da experiência mística no Diário Espiritual29:

1. Luz: Inácio fala de “uma graça calorosa e em parte lúcida” (DE 64); “muita assistência de graça e devoção, clara a princípio, mais lúcida depois” (DE 104); “sentia e via, não em obscuridade, mas em lucidez e muita lucidez, o mesmo ser ou essência divina” (DE 121) etc.

2. Calor: As alusões ao símbolo do calor aparecem frequente-mente unidas às da luz. No Diário Espiritual, encontramos as seguintes expressões: “por todo o dia, calor e devoção notável” (DE 6); “na oração da manhã, mente quieta e bas-tante devoção, com movimento espiritual de calor e moção a lágrimas”; “sem perder o calor e amor intensos” (DE 22); “o calor de dentro lutava contra o vento de fora” (DE 22); “depois, ainda assim quente, pedindo graça para refletir com seu espírito e mover-me com ele” (DE 36), “calor interior” (DE 22, 74), “calor e devoção interior” (DE 36), “lágrimas cheias de calor e sabor interior” (DE 39); “amor intensíssi-mo, calor e sabor grande pelas coisas divinas” (DE 40). Pelo contexto, o calor no DE parece ter estreita relação com a devoção, o fervor, com a presença da graça, isto é, com um sinal da linguagem de Deus que Inácio interpreta como relativo à sua presença30.

3. Circularidade: A perfeição do círculo provocou que com frequência se recorra a ele para se referir à perfeição de Deus. O círculo é a mais perfeita figura plana, significa a eternidade que não tem princípio nem fim. Em Inácio en-contramos expressões como: “nestes intervalos, por diversas vezes, visão do ser divino em forma circular, como antes” (DE 180); “sentia e via … o mesmo ser ou essência divina,

29. Cf. J. GARCÍA DE CASTRO, “Semántica y Mística: El Diario espiritual de Ignacio de Loyola”, Miscelánea Comillas 59 (2001), p. 227-238.

30. Cf. J. C. FUTRELL, “The Mys-tical Vocabulary of Ignatius in the Diario”, em: Dossier Constitutio-nes, Roma, CIS, 1972, p. 161.

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em figura esférica, um pouco maior do que aparece o sol” (DE 121); “sem sair fora da visão esférica” (DE 123); “Com visão do ser divino em figura esférica (DE 174).

4. Sensações corporais: com frequência, o escritor místico se serve da linguagem das sensações e mantém uma analogia com as sensações corporais, para referir-se ao modo de Deus se relacionar com ele. No caso de Inácio, este código é espe-cialmente significativo. O que Deus “diz” é interpretado a partir da análise das sensações: o confirmar com lágrimas (DE 151). As lágrimas são o principal termo, em torno do qual aparece um rico mundo de matizes expressivos. Também aparecem os soluços (DE 40, 4, 47, 12, 53, 27, 31) e se fala de arrepiar os cabelos (DE 47).

5. Sensações interiores: Inácio é um pouco mais expressivo quan-do quer traduzir em palavras o mundo de seus sentimentos interiores. Vejamos os principais campos léxicos nos quais ele se manifesta:

— Confiança e segurança: sua experiência de oração o leva a sentir “confiança” (DE 1), grande confiança (DE 43), “grandíssima confiança” (DE 32), “certa segurança ou assenso” (DE 13), ou “íntegra segurança” (DE 24), “inteira confiança” (DE 103).

— Paz e tranquilidade: tranquilidade de mente (D 11), “paz interior e tranquilidade” (DE 13), “paz e conhecimento” (DE 22), “mente quieta” (DE 11), “quieto e repousado” (DE 80), “com muita e grande serenidade” (DE 32), “tranquilidade e segurança de alma” (DE 19), “muito quieta devoção” (DE 119).

— Doçura e suavidade: Inácio expressa “certa doçura” (DE 32) ou “doçura interior” (DE 28), “muita doçura e gosto interior” (D 44), “amor tanto intenso e doce” (DE 105), “tanta suavidade espiritual” (D 120).

— A alegria da experiência: junto com a doçura se dá o interior “regozijo” (DE 43), “gozo espiritual” (DE 69), “hilaridade de mente” (DE 139), “contentamento da alma” (DE 155).

— Conhecimento recebido: nesta sensação de repouso lhe vêm “certas inteligências” (DE 15), ou “tantas inteligên-cias” (DE 31), “sentindo muitas inteligências, notáveis, saborosas e muito espirituais” (DE 33), “tanta afluência

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de conhecimento” (DE 164), às vezes expressa como “elevação da mente” ( DE 26).

— O Amor: o sentimento do amor divino é expresso como “amor intenso” (DE 22), ou “crescido” (DE 53), “in-tensíssimo” (DE 40), “que provocam uma satisfação na alma” (DE 40.59), que Inácio viverá e formulará com frequência como “acatamento e reverência” (DE 163).

— Sons interiores (loquela): a última expressão que aparece reiteradamente para expressar a relação com Deus é a loquela que consta no DE a partir de 11 de maio (DE 221) e se repetirá frequentemente até o dia 28 de maio (DE 240).

Como eu poderia expressar minha experiência espiritual mais profunda? Que símbolos, expressões poderiam ser utilizadas?

4. O dom das lágrimas no Diário Espiritual

Um dos dons que chamam mais a atenção por sua frequência inusitada, mesmo comparando com outros santos que gozaram de graça semelhante, é o dom das lágrimas31. Nos primeiros quarenta dias do Diário, Inácio fala de lágrimas derramadas até 175 vezes, com uma média de 4 efusões diárias32. À luz dessas páginas, podemos tocar a realidade daquelas páginas de Laínez: “Santo Inácio era tão terno em lágrimas em coisas eternas e abstratas, que me dizia ele que era comum chorar 5 a 6 vezes ao dia”33.

O dom das lágrimas é o único elemento permanente entre as graças recebidas e os diferentes sentimentos expressos desde o dia 2 de fevereiro de 1544 até 27 de fevereiro de 1545. Só ele está presente desde o primeiro até o último dia, de maneira habitual, e nos últimos meses até de forma exclusiva34. As lágrimas são acompanhadas em diversas ocasiões por soluços (26 vezes). São tão fortes, que há oca-siões em que impedem o Santo de falar; tão intensas e abundantes, que o Santo teme perder a vista. Esse extraordinário dom infuso das lágrimas era para Santo Inácio uma vivência saborosamente sentida da íntima comunicação de Deus à sua alma35. O que motivava as copiosas lágrimas de Inácio?

Como já diversos autores notaram, o centro temporal, psíquico e espiritual absoluto da jornada inaciana é a celebração da Eucaristia.

31. Pe. DE GUIBERT escreve a esse respeito: “Não conheço, da minha parte, nenhum caso de outro santo em quem as lágrimas tenham jogado um papel tão importante”, Mystique Ignatienne, p. 125-126.

32. O Diário Espiritual cobre um pe-ríodo de 392 dias. A palavra como tal, “lágrimas”, aparece 236 vezes e juntando-se as outras expressões semelhantes, como “com elas”, “sem elas”, “abundância delas”, “muitas”, alcançamos mais de 450 referências.

33. Carta del P. Laínez, n. 59; Fon-tes narr. I, 140.

34. M.-M. MARTIN, “San Ignacio Místico. Una lectura del Diario Espiritual a partir del don de lágri-mas”, CIS 67 (1991), p. 29.

35. Sentia-se intimamente como-vido e esmagado diante do peso das grandezas divinas. Essa infusão celestial era uma das mais certas confirmações de que Deus aceitava sua oferta. Através delas, apalpava de modo evidente a complacência divina por sua resolução tomada. Sentia o infinito contentamento divino e o gosto com que o Senhor aceitava e recebia sua oblação. As lágrimas eram, nessas ocasiões, o eco da voz de Deus, a garantia divina da aceitação. Cf. I. IPARRA-GUIRRE, Obras, p. 348.

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É com relação ao tempo da missa que ele tomará nota do momento de suas lágrimas: “antes” e de hora em hora; “ao longo” da missa, distinguindo então as diversas partes da missa; e “depois”, fazendo constar inclusive algumas vezes pela “tarde”.

4.1. As lágrimas, um dom ao qual não devemos nos apegar

Para Inácio, elas fluem da percepção do imediatismo divino. Elas assinalam uma complexa e multiforme experiência de Deus. Inácio, apesar de saber muito bem que as lágrimas são um dom de Deus, descobrirá a si mesmo demasiado ávido de ter lágrimas, como ele mesmo assinala no dia 6 de março de 1544: “Pensando comigo, conjeturava que me queria talvez satisfazer sem visitações de lágri-mas, para que não fosse ávido ou desordenado a respeito delas” (DE 119). De fato, o novo caminho que se insinua a Inácio é o de um respeito humilde e amoroso muito profundo tanto no trato com as Pessoas divinas como com as coisas do altar, e inclusive com respeito a todas as criaturas, de maneira que sente o apelo a estar mais atento ao acatamento e à humildade amorosa do que às lágrimas. Assim se expressa no dia 14 de março:

Em todos esses tempos, antes, durante e depois da missa, estava em mim um pensamento que me penetrava dentro da alma: com quanta reverência e acatamento indo à missa, deveria nomear a Deus N.S. etc. e não buscar lágrimas, mas este acatamento e re-verência. A tal ponto que, exercitando-me com frequência neste acatamento, antes da missa, no quarto, na capela e durante a missa, e vindo-me lágrimas, as afastava com presteza, para atender ao acatamento. Não parecendo que era eu que o tinha ou que era coisa minha, o acatamento se me apresentava sempre com aumento de devoção e lágrimas. A tal ponto que me persuadia ser esta a via que o Senhor me queria mostrar (DE 156, 157).

4.2. Lágrimas que brotam da experiência de contato com a Trindade Divina

Inácio considerava a oração um trato de amizade, e era muito sensível com respeito à Pessoa com a qual dialogava. Seu Diário é cheio de evidências disso. Vejamos um exemplo:

Advertindo primeiro em Jesus, pareceu-me que não se deixava ver e sentir claramente, mas de algum modo escuro para se ver.

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Advertindo na Trindade, pareceu-me que se deixava sentir ou ver mais clara ou lucidamente. Começando e continuando a falar com sua divina Majestade, cobri-me de lágrimas, soluços e amor, tão intenso que me parecia ser essa intensa visitação e amor, assina-lados e excelentes entre outras visitações (DE 105).

Com frequência, é tamanho o seu regozijo que tem que abraçar e apertar o peito para não explodir de emoção (DE 43). Quer dizer, a relação é inteiramente pessoal e enriquecida por toda uma história de trato íntimo e frequente, e na mesma espera já produz profunda emoção. Em segundo lugar, surpreende o imenso gozo de confiança e abandono:

Sentia em mim que se me queria comunicar em diversas ma-neiras. A tal ponto o sentia que, preparando o altar, ia dizendo: “aonde me quereis, Senhor, levar? E repetindo isso muitas vezes — me parecia que era guiado e — me crescia muito a devoção, levando-me a lágrimas. A seguir, na oração para paramentar-me muitas moções e lágrimas. Oferecia-me para que me guiasse e me levasse etc. Nestes passos, atento sobre mim, para ver onde me levaria (DE 113).

Em terceiro lugar, caberia enumerar a multiplicidade de pre-sentes recebidos por Inácio nas diversas visitas e a sensação de agradecimento que experimenta. Ele sente repetidamente, por exemplo, a intercessão dos mediadores: Nossa Senhora lhe mostra no momento da consagração como sua carne está na do Filho (DE 31). A Trindade o coloca com Jesus de uma maneira que lhe recorda a visão de La Storta:

Indo a paramentar-me, estes pensamentos foram crescendo em intimidade e me parecia uma confirmação, embora não recebes-se consolações sobre isso. Parecia-me de algum modo ser obra da Santíssima Trindade que Jesus se mostrasse e fizesse sentir, acudindo-me à memória o momento em que o Pai me pôs com o Filho (DE 67).

Por último, é preciso ressaltar as lágrimas produzidas pelos efeitos do puro amor, ativo e passivo. É conhecida a sobriedade de Inácio em utilizar a palavra amor. Nos Exercícios, o amor de Deus recebe um tratamento exaustivo na última contemplação, cujo co-lóquio acaba com o “Dai-me o vosso amor e a vossa graça que isso me basta” (EE 234). No Diário Espiritual, a palavra “amor” aparece

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40 vezes, das quais 18 se acham nos dias consecutivos, o 4 e 5 de março. Vejamos dois exemplos:

Depois, entrando na capela, nova devoção e lágrimas, sempre terminando na Santíssima Trindade. Igualmente, depois de pa-ramentado e já no altar, cobria-me de muito maior abundância de lágrimas, soluços e amor intensíssimo, dirigindo tudo ao amor da Santíssima Trindade (DE 106).Em seguida, quase ao final, tornei a Jesus e recobrei algo do perdido: “Que te seja agradável, Santíssima Trindade” etc., muito excessivo amor e inundação de lágrimas intensas, terminando em sua divina Majestade. Assim todas as vezes que em mim surgiam, na missa e antes dela, visitações espirituais, todas ter-minavam na Santíssima Trindade, levando-me e atraindo-me ao seu amor. Acabada a missa e desparamentado, à oração do altar, tantos soluços e efusão de lágrimas, terminando tudo no amor da Santíssima Trindade que me parecia não me querer levantar, com o sentimento de tanto amor e tanta suavidade espiritual (DE 108, 109).

4.3. Visitações divinas: mística da passividade

A mística do Diário Espiritual é de passividade crescente. Inácio é objeto de diversas “visitações” (ou “visitas”), em que ele é objeto de uma consolação especial por parte de Deus. Com frequência, o “consolo” enviado é o mesmo dom de lágrimas. Outras vezes, sente-se estremecer pelo amor que recebe da mesma Pessoa divina ou que sente por Ela36.

No Diário Espiritual, as “visitações” divinas desempenharão um papel fundamental no sentido de ajudar Inácio a colocar-se sobre o reto caminho ao buscar a vontade de Deus. Podemos ver que se dá uma evolução nas lágrimas que lançará luz sobre a evolução da vida mística de Inácio. Iremos descobrindo três classes de lágrimas que correspondem a três grandes etapas dessa evolução37:

— lágrimas de devoção, ou a busca de lágrimas;— lágrimas de visita, ou a renúncia às lágrimas;— lágrimas de união, ou a superação das lágrimas.

Inácio raciocina da seguinte forma: para dar prioridade a Deus na decisão de finalizar seu discernimento, resolve concluí-lo quando se dê uma visitação ou quando na própria visitação se lhe indique. O

36. S. THIÓ DE POL, “La experien-cia de Dios reflejada en el Diario Espiritual de San Ignacio”, Manresa 75 (2003), p. 33.

37. M.-M. MARTIN, “San Ignacio Mistico. Una lectura del Diario Espiritual a partir del don de lágri-mas”, CIS 67 (1991), p. 30.

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sofisma do seu modo de raciocinar está em pedir, quase exigir, que se dê uma visitação ao final. Os dias vão se passando, Inácio segue confiando poder ganhar-se o favor divino com atos de humildade, mas experimenta certo silêncio. Deus não lhe dá o que ele pretende. Chega, inclusive, a sentir-se desamparado de todo socorro. Em plena desolação, encara a pergunta essencial: “O que Deus realmente quer aqui e agora?”. De novo, considera a hipótese de que o prazer de Deus consistiria em que acabasse seu discernimento sem visitação de lágrimas. Ao reparar nisso, opta decididamente pelo prazer do Senhor, deixando de lado seu próprio querer. E, com essa opção, é inundado por lágrimas! Com elas em abundância, duvida de novo, animado a prolongar e continuar esperando mais visitação. Cessam as lágrimas! Decide acabar: e voltam as lágrimas! O leitor percebe um dueto maravilhoso com contraponto de vozes. Inácio opta só por Deus: Deus lhe concede seus dons. Nesse caso, o dom é precisamente esse essencial: em primeiro lugar, Deus!

Durante vários dias, Inácio revolverá o que aconteceu, caindo na conta da imensidade de Deus, mediante repetidas visões de seu ser em forma esférica ou circular, perfeita. Produz-se então, em seu interior, um total acatamento reverente, à medida que percebe que Deus o guia por um caminho muito melhor e insuspeitado. Ao fim, resumirá essa nova relação com duas belas palavras com as quais nos encontramos: “humildade amorosa”:

O Doador das graças me provê de tanta abundância de conheci-mento, visitação e gosto espiritual, com lágrimas e tão continuadas que perdia a fala e me parecia que em cada palavra nomeava a Deus: Senhor etc. e me penetrava tão dentro, com um acatamento e humildade reverencial38 admirável, que parece não se poder explicar (DE 164).

A experiência desse vaivém de lágrimas e visitações levou Inácio a refazer todo o seu itinerário, para pôr, enfim, sua esperança só em Deus: “Ele me ama mais do que eu a mim mesmo” (DE 185). Com isso ele vai se dar conta de que não se trata na verdade de uma luta entre sua vontade (terminar com uma visitação) e o que agrada a Deus (terminar sem visitação), mas que o que Deus quer é que o seu prazer seja conformar-se com a vontade de Deus.

Em minha vida espiritual, que lugar ocupam as lágrimas? Minha afetividade é afetada por minha experiência espiritual? Ou vivo uma espiritualidade centrada na razão?

38. A “reverência” ou “amor re-verencial” é um estado místico de profundo respeito acompanhado por uma consciência intensa da presença divina. Foi um dos maio-res dons espirituais dados por Deus a Inácio. Cf. J. C. FUTRELL, “The Mystical Vocabulary of Ignatius in the Diario”, em: Dossier Constitu-tiones, Roma, CIS, 1972, p. 155. Cf. também Manuel IGLESIAS, “A graça do acatamento reverencial em Santo Inácio de Loyola”, Itaici 5, 1991, p. 21-38.

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5. O peculiar fenômeno da loquela

Esse termo aparece de maneira inesperada no Diário Espiritual na data do domingo, 11 de maio. Loquela pertence claramente à cele-bração litúrgica da Eucaristia (DE 221), mas o encontramos durante alguns dias consecutivos até 28 de maio, para desaparecer em seguida, enquanto a perda da palavra continua a figurar nas notas espirituais de Inácio (DE 308, 367, 414, 416). Parece certo que se trata, com a loquela, de um fenômeno novo, uma experiência mística particular que se caracterizava por qualidades sonoras, às vezes mais externas, às vezes mais internas, descendo até as profundezas da alma. Com efeito, o termo não é traduzido, como que a indicar a estranheza do fenômeno. Portanto, há sem dúvida recurso a um termo técnico, novo no Diário; de mais a mais, esse termo não aparece senão num período determinado de dias, e está rodeado por um campo semân-tico de tipo musical: harmonia (DE 222), música celeste (DE 224), sonoridade (DE 234). Enquanto as visitas da Santíssima Trindade na palavra são perturbadas por pessoas que falam (DE 107,144), a loquela é atrapalhada por “alguém que assobia” (DE 227).

O mais importante, linguisticamente falando, é, no entanto, o fato de que Inácio busca inserir essa loquela na palavra por meio da dupla articulação: “Eu me comprazia demasiado no tom da loquela, quanto à sua sonoridade, sem prestar a mesma atenção à significação das palavras e à loquela” (DE 234).

A “visita espiritual”, para a qual esse esforço explicitamente apela, não pode “ensinar” ou “instruir” Inácio da parte de Deus sem que nela seja recebida “uma palavra”. Separar o sentido do som e apegar-se somente à sonoridade não pode ser senão uma tentação do mau espírito (DE 234). Não é a primeira vez que Inácio acolhe “um novo sentimento, uma nova devoção” (DE 127) “dada divina-mente” (DE 221). A loquela parece assim situar-se entre a morada de Deus lá no alto e a fórmula (DE 127) da liturgia eucarística (DE 221). De qualquer maneira, as duas experiências, a de 7 de março e a do mês de maio, têm em comum o fato de que Inácio como um infans (alguém que não sabe falar) — “sou uma criança” (DE 127) — acolhe uma palavra que pode assim descer gratuitamente na palavra litúrgica (D 127). A loquela e a visita espiritual que descem na “fórmula” são as únicas “respostas espirituais” (DE 72) registra-das pelo Diário Espiritual de Inácio, se limitarmos nossa análise aos fenômenos linguísticos39.

39. P.-H. KOLVENBACH, “Lingua-gem e Antropologia: O Diário Es-piritual de Santo Inácio de Loyola”, Síntese 18 (1991), p. 312.

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Este termo típico de Santo Inácio em seu Diário não é total-mente equivalente ao de “locuções” dos tratados de espiritualidade, pois estas supõem uma comunicação de alguma mensagem que a pessoa recebe, sejam elas auditivas externas, ou internas (imagina-tivas e espirituais)40. A loquela de que escreve Inácio em seu Diário pode ser externa ou interna. Aparece entre as datas de 11 e 28 de maio com certa frequência; em seguida ele deixa de aludir a ela. Inácio a chama de “dom da loquela divinamente concedido”. Nem sempre o encontrava na primeira semana em que o notou. Depois, anota as loquelas vários dias seguidos, e o adjetivo que mais utiliza em sua descrição é que são “admiráveis”. Deviam comunicar algum conteúdo com devoção e afeto, que o moviam ao amor divino e lhe traziam uma espécie de música celeste de excelente harmonia inte-rior, geralmente com lágrimas, e o faziam consciente de que “sentia ou aprendia divinamente”.

É provável que recebesse algumas palavras interiores com o som musical harmonioso, se prestarmos atenção ao que Inácio escreve depois da festa da Ascensão. Certamente, porém, na presença desse dom extraordinário, sente-se movido a purificar sua intenção, para não se deixar levar por alguma desordem em sua atração pela música:

Entretanto, dúvidas me vinham sobre o gosto ou suavidade da loquela, temendo que ela fosse do mal [sic] espírito, porque então cessava a visita espiritual das lágrimas. Adiantando-me um pou-co, parecia-me que tomava prazer demasiado no tom da loquela, quanto à sonoridade, sem dar tanta atenção ao significado das palavras e da loquela (DE 234).

Não nos consta de outro tempo em que recebesse esse dom especial.

A loquela foi um modo particular de o Senhor comunicar-se a Inácio no mais profundo de sua alma. E em sua vida, qual seria esse modo secreto de o Senhor se revelar?

Algumas conclusões

Um primeiro contato com o Diário Espiritual nos colocou diante de um Inácio Místico, pouco conhecido pelo público. Permitiu-nos conhecer também a importância central da Eucaristia como fonte de suas experiências espirituais as mais elevadas.

40. M. RUIZ JURADO, “La ora-ción de San Ignacio en su Diario Espiritual”, Manresa 84 (2012), p. 74-75.

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Revelou-nos um homem terno, propenso a derramar lágrimas efusivamente, de espírito delicado e atento aos mínimos movimentos de sua alma, sempre desejoso de conformar suas decisões à decisão maior de seu Criador e Senhor, empregando para isso todos os re-cursos que lhe permitissem assegurar-se do favor divino.

O interesse linguístico pelas páginas do Diário é grande, revelan-do o processo difícil de buscar a linguagem mais aproximativamente apta a transmitir e expressar experiências inefáveis. Contudo, para além desse aspecto interessante, quisemos nos centrar na dimensão mística de sua expressão literária.

O Diário Espiritual, na brevidade de suas páginas, mostra um Inácio em busca de confirmação para suas decisões, mas que soube também renunciar a isso ao perceber que o mais importante e fundamental era exatamente abrir mão delas para abandonar-se totalmente ao Senhor.

Da atividade à passividade, de seu gosto e prazer ao que agrada a Deus, uma vida repleta de dons e graças espirituais de todo tipo, mas que não o distraem do seu único objetivo de, como Geral da nascente Companhia, garantir que ela fosse de verdade a “Compa-nhia de Jesus”, seguidora e imitadora de sua pobreza, opróbrios e humilhações.

Que possamos também nós buscar e encontrar o Senhor em meio às nossas atividades cotidianas, sensíveis e receptivos às mais diversas ma-nifestações do Seu Amor, sabendo renunciar às consolações sensíveis para deixar que seja o Senhor mesmo a nos guiar na busca do maior serviço aos nossos irmãos!

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