sinais raizes de um paradigma

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CARINGINZBURG MITO S, EM BL EMAS, S/N//S MORFOI,OGIA E HISTdRIA Tiaducao: FEDERICO CAROTTI 2. edi?ao 2' reimPlessao -&,- COMPANHIA DAFIETRAS

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Nessas páginas tentarei mostrar como, por volta do final doséculo XIX, emergiu silenciosamente no âmbito das ciências humanasum modelo epistemológico (caso se prefira, um paradigma ao qual até agora não se prestou suficiente atenção. A analise desseparadigma, amplamente operante de fato, ainda que não teorizadoexplicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incomodos da contraposição entre ':racionalismo" e "irracionalismo".

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Page 1: Sinais Raizes de Um Paradigma

CARINGINZBURG

MITO S, EM B L E MAS, S/N//S

MORFOI,OGIA E HISTdRIA

Tiaducao:FEDERICO CAROTTI

2. edi?ao2' reimPlessao

-&,-COMPANHIA DAFIETRAS

Page 2: Sinais Raizes de Um Paradigma

s1N,41SRAIZES DE UM PARADIGMA INDICIARIO

Deus estd no particular.

A. Warbutg

Um objeto que fala da pcrda, da destruiqio, dodesaparecimento de obietos. Nio fala dc si. Falade outros. Incluird lamMm a clcs?

J. lohns

Nessas p6ginas tentarei mostrar como, por volta do final do

siculo xlx, emergiu silenciosamente no dmbito das ci€ncias huma-nas um modelo epistemol6gico (caso se prefira, um patadigma r)

ao qual at€ agora nao se prestou su{iciente ateneeo. A an6lise desseparadigma, amplamente op€rante de fato, ainda que nao teorizado

explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos inc6modos da col-tt1P9:4a:tT ':racionalismo" e "irracionalismo". I 1' r r

I.

i. Entre 1874 e 1876, apareceu na Zeitscbrilt l r bildenleKunst wa s6rie de artigos sobre a pintura italiana. Eles vinham

assinados por um desconhecido estudioso russo, Ivan Lermolieff,

e fora um igualmente desconhecido Johannes Schwarze que os

14)

Page 3: Sinais Raizes de Um Paradigma

lrrduziru pur:r o alcmao. Os artigos propunham um novo mdtodolrtru u aribuigdo dos quadros antigos, que suscitou entre os his-toriudorcs da attc reagoes contrastantes e vivas discuss6cs. Somen-tc alguns anos depois, o autot tilou a dupla mdscara na qual secscondera. De fato, tratava-se do italiano Giovanni Morelli (sobre-nome do qual Schwarze i uma c6pia e Lermolieff o anagrama, ouquasc). E do "m€todo morelliano" os historiadores da arte lalamcorrcntemente ainda hoje,'

Vejamos rapidamente em que consistia esse m6todo. Os mu-seus, dizia Morelli, est6o cheios de quadros atribuldos de rnaneireincorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor €dificil: muitissimas vezes enconFamq.nos ftente a obras ndo.assi-nadas, talvez repintadas ou num mau estado de conservagdo. Nes-sas condig6es,6 indispensCvel poder distinguir os originais dasc6pias. Para tanto, por€m (dizia Morelli),6 preciso n6o se basear,como normalmente se faz, em caracteristicas mais vistosas, portan-to mais facilmente imitdveis, dos quadros: os olhos erguidos parao cdu dos personagens de Perugino, o sorriso dos de Leonardo, eassim por diante. Pelo conft6rio, i necessCrio examinar os porme-nores mais negligenciCveis, e menos influenciados pelas caracteris-ticas da escola a que o pintor pertencia: os l6bulos das orelhas,as unhas, as formas dos dedos das m6os e dos p€s. Dessa maneira,Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de ore-lha pr6pria de Botticelli, a de Cosmi Tura e assim por diante:traEos presentes nos originais, mas nio nas c6pias. C,om esse m6tqdo, prop6s dezenas e dezenas de novas aribuig6es em alguns dosprincipais museus da Europa. Freqiientemente uatava-se de atri-buig5es sensacionais: numa V6nus deitada conservada na galeriadc l)resden, que passava por uma c6pia de uma pintura perdida de'l iciano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pou-rlrrissimas obras segutamente aut6grafas de Giorgione.

A1rcsar desses resultados, o m6todo de Morelli foi muito cri-l(r(kr, talvez tamb6m pela seguranga quase arrogante.b- qua ar"prolxrsto l)osteriormente foi julgado rnecinico, grosseitamente po-r|n\'rrtr, c caiu em derridito.3 (Por outro lado, € poss(vel que

muitos estudiosos que t'alavam dele com dcql{m continuerrm rusd-lo tacitamente para as suas auibuigSes.) O rcnovr<b Intcttrrcpelos trabalhos de Morelli i m€rito de Vind, quc viu nclcr unrexemplo iipico da alitude modErna em relagdo l obn & utcatitude que leva a apieciat os porniiir-oies, de prcfcr0ncir I obrrem seu conjunto. Em Morelli existiria, segundo \0ind, umr crrcerbagio do culto pela imediaticidade do g€nio, assimilrdo Jxrr clcna juventude, no contato com os clrculos romanticos bcrlincnrcr.'

E r.rma interpretagio pouco convincente, visto que Morclli nlo rcolocava problemas de ordem estdtica (o que depois lhe foi cenlr.rado), mas sim problemas preliminares, de ordem- filoldgica.r Nrrcalidade, as implicag6es do mdtodo prcposto por Morelli cramoutas, e muito mais ricas. Veremos que o pr6prio !0ind estevcmuito prdximo de intul-les.

2. "Os livros de Morelli" - escreve \flind - "t€m umaspecto bastante ins6lito se comparados aos de ouros historiadores da arte. Eles est6o salpicados de ilustrag6es de dedos e otelhas,cuidadosos registros das minfcias caracteristicas que traem a pre-senga de um detcrminado artista, como um criminoso € traldopelas suas impress6es digitais... qualquer museu de arte €stu-dado por Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museucriminal..."6 Essa comparagSo foi brilhantemente desenvolvidapor Castelnuovo, que aproximou o mdtodo indiciCrio de Morelliao que era anibuido, quase nos mesmos anos, a Sherlock Holmespelo seu criador, Arthur Conan Doylc.? O conhecedor de erte 6comparCvel ao detetive que descobre o autor do crime (do que-dro) baseado em indicios imperceptiveis piri a maioria. Os exem-plos da perspicCcia de Holmes ao interpretar pega&a na lama,cinzas de cigarro etc. sao, como se sabe, incontdveis. Mas, para seconvencer da exatidao da aproximagio proposta por Castelnuovo,veja-se um coDto como "A caixa de papel6o" (1892), no qualSherlock Holmes literalmente "dd uma de Morelli". O caso come-

Ca exatamente com duas orelhas cortadas e enviadas lxlo correioa uma inocente senhorita. Eis o conhecedor com m6os i obra:Holmes

144 145

Page 4: Sinais Raizes de Um Paradigma

ic Inrcrr(rll)cu c cu IWatson] fiquei surpreso, olhando-o, ao vcrqrrc clc fixava com singular atengeo o perfil da senhorita. porrunr scgunrlo foi possivel ler no seu rosto ansioso surpresa e satis-l{(rio do mesmo rempo, ainda qr_.re, quando ela sC virou paratlcscobrir o motivo do seu sil€ncio, Holmes tivesse sc tornadoinrpassivel como sempre.g

Mais adiante, Holmes explica a \Uatson (e aos leitores) o1'crcurso do seu brilhante mabalho mental:

Na sua qualidade de midico o seDhor neo ignorard, Vatson, queneo existe parte do corpo humano que oferega maiores variag6csdo que uma orelha. Cada orelha possui caracterlsticas propria-menre suas e difere de todas as outras. N^ Reoirta Arrttopoligicado ano passado o senhot enconmard sobre este assunto duas 6re-ves monografias de minha lavra. portanto, examioei as orelbascontidas na caixa com olhos de especialista e observei acurada-mente as suas caracteristicas anat6micas. Imagine ent6o a miohasurpresa quando, pousando os olhos sobre a senhorita Cushing,notei que a sua orelha correspondia exatamente i orelha femininaque havia examinado pouco antes. Nio era posslvel pensar numacoinciddncia. Nas duas existia o mesmo encurtamento da aba. amesma ampla crrrvatura do l6bulo superior, a hesma circ-trnvo.lugio da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais rata-va-se da mesma orelha. Naruralmenr. p..."bi d. imediato a enor-me importincia de uma tal observagdo. Era evidente que a vltimadevia ser uma parente consangiiinea, provavelmente muito pr6xima, da senhor i ta. . .e

J. Veremos em breve as implicag6es dcsse paralelismo.r0Antes, porim, seri bom retomar uma outra preciosa intuigio deWind:

A alguns dos criticos de Morclli parecia estranho o ditame det1ue "a persooalidade deve ser procurada onde o esforco pessoalt:rnenos inrenso". Mas sobre este ponto a psicologia modernacsraria certamente do lado de Mdrelli: os no"*. p.qrr"no, g""to,rnconscientes revelam o nosso cardter mais do que qualquer at!trrt lt frrrmal, cuidadosamente preparada por n6s.I

"()s n()ssos pequenos gestos inconscientes, . , ": a cen€dcacrl 'rc\\. i.r "psicologia moderna" pode ser diretamente substituidalrl, ' rr, 'rrr..t lc lrrcud. As pdginas de D7ind sobre Morell i, de fato.

irtrairam a atengeo dos estudiososrr pafa uma passs8cm, tx)r multt l

rcmpo negligenciada, do famoso eDsaio dc FrcwJ O Mou(t lt

'Vicbelargelo (1914). No comeeo do segundo ParCgmfo, I:reud

cscrevla:

Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicnntrlir.vim a saber que um especialista de arte russo, Ivan l-ermolicfl.cujos primeiros elNaios foram publicados em alemdo entrc lllT{e 1876, havia provocado uma revolueeo nas galerias da Europrrecolocando em discussdo a atribuigao de muitos quadtos a cndrpintor, ensinando a distinguir com seguranCa enue as imitacaict

e os oliginais, e _construindo novas individualidades artisticas rpartir daquelas obras que haviam sido liberadas das suas ltri-

buigSes antetiores. Ele chegou a esse resultado prescindindo doimpressao geral e dos traeos fundamentais da pintura, ressaltando,p€lo contrdrio, a importincia catactedstica dos detalhes secundd'rios, das particularidades insignificantes, como a conformacio das

uohas, dos lobos auriculares, da aurdola € outros elementos quc

normalmeote passavam desaPercebidos e que o copista deixa dc

imitar, ao passo, po!6m, que cada artista os executa de um modoque o diferencia. Foi depois muito interessante Para mim sab€lquc sob o pseuddnimo russo escondia-se um mddico italiano dcnome Morelli. Tendo se toroado senadot do reino da Itdlia, Morelli morreu em 1891. Creio que o seu m€todo estd estreitamenteaparentado i t€cnica da psicandlise mddica. Esta tamb€m tem Perhibito penetrar em coisas concretas e ocultas aravds de elemen'tos Douco notados ou desapercebidos, dos detriros ou "refugos"da nossa observagio (auch iiese ist gewiihnt' aus gering gesch?itz-

ten oder nicht beachteoten Ziigen, aus dem Abhub - dem

"refuse" - der Beobachtung, Geheimes und Verbotegenes zu

erlaten).ll

O ensaio sobre o Moisis de Michelangelo num primeilo mG

mento apareceta an6nimo: Freud reconheceu sua paternidade so'

mente na ocasiao de incluilo em suas obras completas. SuP6s-se

que a tend€ncia de Morelli p?|r^ ap^g t, ocultandoa sob pseud6-

nimos, sua personalidade de autor acabass€ de certo modo por

contagiar tamMm a Frcud; apresentaram-se hip6teses mais ou

menos aceitiveis sobre o significado dessa converg€ncia.rt O certo

6 que, coberto pelo vdu do anonimato, Freud declarou de maneira

ao mesmo temPo explicita e reticente a considerCvel infiu€ncia

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Page 5: Sinais Raizes de Um Paradigma

rotclcclual quc Morelli exetceu sobre ele, numa fase muito antc.rror ii dcscoberta da psicandlise ("lange bevor ich etwas von derl)svchoanalyse hiiren konnte..."). Reduzir essa influ€ncia, comosc lcz, apenas ao ensaio sobre o Moisir de Michelangelo, ou emgcral aos ensaios sobre temas ligados i hist6ria da arte,rt significarcsringir indevidamenre o alcance das palavras de Freud: "Creioque o seu mdtodo (de Morelli) esti esrreitamente aparentado lIicnica da psican6lise midica". Na rgalidacle, rcda a declaragiodc Freud que ciramos garante a More-lli um lugar eslxcial na his-r6ria d_4 formacio.da psicanilise. De faro, rrata-se de uma cone-x-Iodocumentada, e nio conjetural, como a maior parte dos "antece.dentes" ou "precursores" de Freud; al6m do mais, o enconro comos textos de Morelli ocoreu, como jd dissemos, na fase "pri-ana-lit ica" de Freud. Temos de ratar, [rcrrranro, com um elementor;ue contribuiu diretamente para a cristalizaqSo da psicanilise,e nio (como no caso da pdgina sobre o sonho de J. Popper"Lynkeus", lembrada nas reedig6es da Truumdeutungl 16 com umacoincid€ncia encontrada posteriorment€, quando jd se dera a des-coberta.

4. AnIes de tentar entender o que Freud p6de extrair daIeitura dos textos de Morelli, serd oponuno determinar o momen-to em qu€ ocorreu essa leitura. O momento, ou melhor, os mo-mentos, visto que Freud fala de dois enconrros distinros: "muitotempo antes que eu pudesse ouvir (alar de psicandlise, vim asaber que um especialista de arte russo, Ivan Lermolieff...";' 'Foi depois muito interessante para mim saber que sob o pseud6.trimo russo escondia-se um mddico italiano de nome Morell i. . . ".

A primeira afirmagdo i datdvel apenas hiporeticamente. Comoltnnints anle qaem ytdemos colocar 1895 (ano da publicagio,ltrs l:rtrlor sobre a bisteria de Freud e Breuer) ou 1896 (quando

l'rcrrd Lrsorr pela primeira vez o termo " psicanil ise " ) .r7 C-cmo !er.,,tt,,ut po!t 4ucn , 188). Em dezembro daquele ano, de faro, Freud(,'rr(!u nurD:r longa carta i noiva a "descoberta da pintura" feita,Irr,rrrrt.urrra visita i galeria de Dresden. No passado, a pinturarrrro r' rrrtocssar.i agora, escrevia, "t irei de mim a barbirie e come.

eci a admirar".[ E dificil supor que, antes deslr drt., Irtud lrrrcatraido pelos textos de um desconhecido historirrlor dr rrtc, (perfeitamente plausivd, p€lo contdrio, quc sc purrr r I hrpouco depois da carta i noiva sobre a galeria dc Drcrlcn, vlrtoque os primeiros ensaios de Morelli reunidos em livru (hiprl;.1880) referiam-se is obras dos mesres italianos nas gdcriu &Munique, Dresden e Berlim.re

O segundo enconno de Freud com os textos de Morclli d dr'tdvel com uma precisio talvez maior. O verdadeiro nomc dc IvrnLermolieff totnou-se p(blico pela primeira vez no frontispfcio Jttradug6o inglesa, publicada em 1883, dos ensaios que acabrmorde citar; nas reedi$es e uaduc6es posteriores a 1891 (data drmorte de Morelli) aparecem sempre tanto o nome como o pscud6.nimo.' N6o C de se excluir que um desses volumes chegasse antcsou depois is m6os de Freud; mas provavelmente ele veio a co-nhecer a identidade de Ivan Lermolieff por puro acaso, em setembro de 1898, bisbilhotando numa livraria milanesa. Na bibliotccade Freud conservada em l.ondres, de fato, aparece um exemplardo livro de Giovanni Morelli (Ivan krmolieff), Da pintala its-liam. Ettados bist6ricos criticos. As galerias Borgbese e DotiaPanpbili em Roma, MiliLo, 1897. No frontispicio esti escrita adata da aquisigdo: Milio, 14 dc setembro.2r A rinica estada mila.nesa dc Freud ocorreu no outono de 1898.2 Naquele momento,por outro lado, o livro de Morelli tinha para Freud mais um outromotivo de interesse. Havia alguns meses, ele vinha se ocupandodos lapsos; pouco tempo antes, na Dalmricia, ocomeu o epis6dio,depois analisado na Psicopatologia da uida cotidiana, em que ten.tara inutilmente lembrar o nome do autor dos afrescos de Orvie.to. Ora, tanto o verdadeiro autor (Signorelli) como os autorcsficticios que num primeiro momento vieram i mem6ria de Freud(Botticelli, Boltraffio) eram mencionados no livro de Morelli.rl

Mas o quc p6dc rcptcsentar para Freud - para o iovemFreud, ainda muito distante da psicanilise - a leitura dos ensaiosde lvlorelli? E o pr6prio Freud a indicdlo: a proposta de um m6.todo interpretativo centrado sobrc os residuqs, sobre os dadosmarginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores nor.

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Page 6: Sinais Raizes de Um Paradigma

rrrrhrcntc considerados sem importangia, ou ate tdvi4is, "baixos",forncciam a chave para

"."d.. i* prod.rto-, rngiqdeyadgs do-aspi-

rito humano: "os meus adversdrios", escrevia ironicarnente Mo-relli (uma ironia talhada para agradar a Freud), "comprazem-secm me julgar como alguim que n6o sabe ver o sentido espiritualde uma obra de arte e por isso dri uma importincia particular ameios exteriores, como as formas da m6o, da orelha e atl, boni-bile dictu, de um objeto tao antipAtico como as unhas".2a Morellitambim poderia se apropriar do lema virgiliano caro a Freud, es-colhido como epigtafe para A interpretuCAo d.e sonbos: "Flecteresi nequeo Superos, Acheronta movebo" [Se nio posso dobrar ospoderes superiores, moverei o Aqueronte].A Al€m disso, essesdados marginais, para Morelli, eram reveladores porque consti-tuiam os momentos em que o controle do artista, ligado i radi-

, E6o cultural, distendia-se para dar lugar a ragos puramente indi' viduais, "que lhe escapam sem que ele se d€ conta".ft Ainda mais

do que a alusdo, n6o excepcional naquela 6poca, a uma atividadeinconsciente,2? impressiona a identificagio do nricleo htimo da in-dividualidade altistica com os elementos subtraidos ao controle daconsci€ncia.

l. Vimos, portanto, delinear-se uma analogia entre os m€to-dos de Morelli, Holmes e Freud. Do nexo ffiGiii]Fi6li?i-ETllo-lEll-r-Freud jd falamos. Da singular converg€ncia entre os proc€-dimentos de Holmes e os de Freud por sua vez falou S. Marcus.2rO pr6prio Freud, alids, manifestou a um paciente ("o homem dosIobos") o seu interesse pelas aventuras de Sherlock Holmes. Mas,a um colega (T. Reick) que aproximava o m6todo psicanalitico aodc Holmes, falou antes com admiraEio, na primavera de 1911,das tdcnicas atributivas de Morelli. Nos r€s casos, pistas talvezinfinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, deoutra forma inatinglvel. Pistas: mais precisamente, sintomas (nocnso dc Freud), indicios (no caso de Sherlock Holmes), signoslricttlricos (no caso de Morelli).t

Oomo se explica essa tripla analogia? A resposta, ) primeiravistl, <. muito simples, Freud era um mddico; Morelli formou-se

cm medicina; Conan Doyle havia sido mddico antes de dcdicar-sei literatura. Nos n6s casos, enrev€-se o modelo da semi6tica m6-dica: a disciplina que permite diagnosticar as doengas inacessiveisi observagSo direta na base de sintomas superficiais, is vezcsirrelevantes aos olhos do leigo - o doutor \fatson, por exemplo.(De passagem, pode-se notar que a dupla Holmes - Vatson, o de-tetive agud(ssimo e o mddico obtuso, representa o desdobramentode uma figura real: um dos professores do jovem Conan Doyle,famoso pelas suas exraordindrias capacidades diagn6sticas.) r Masnao se trata simplesmente de coincid€ncias biogrrificas. No {inaldo s6culo xrx - mais precisamente, na ddcada de tA?O-80 -,comegou a o 41ry4{ nas ci€ncias humanas um paradigma indi-cidrio haseadp iustamenre n1s-riiiiiGi.Tdas- as -zuis raizes erammuito antigas.

I I .

.1. Por mil€nios o homem foi cagador, Durante inimeras per-seguiE6es, ele aprendeu a reconsruir as formas e movimentos daspresas invisiveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotasde estetco, tufos de p€los, plumas emaranhadas, odores estagna-dos. Aprendeu a Iarcjat, registrar, interpretar e classi{icar pistasinfinitesimais como fios de barba. Aprendeu a {azer operagdes men"tais complexas com rapidez fulminante, no interior de um densobosque ou numa clareira cheia de ciladas.

Gerag6es e gerag6es de cagadores enriqueceram e transmiti-ram esse pahimdtrio -cognoscitivo. Na f-alta-dt uma documintagaoverbal para se p6r ao lado das pinturas lupestres e dos artefatos,podemos recorrer is nanativas de fribulas, que do saber daquelesremotos cacadores ttansmitem-nos is vezes um eco, mesmo quetardio e deformado. Tr€s irmSos (narra uma fribula oriental. difundida entre os quirquizes, tdrtaros, hebreus, turcos. . . ) 3r encon-tram um homem que perdeu um camelo - ou, em ouras varian-tes, um cavalo. Sem hesitar, descrevem-no para ele: i branco,cego de um olho, tem dois odres nas costas, um cheio de vinho, o

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Page 7: Sinais Raizes de Um Paradigma

outro chcio de 6leo. Portanto, viram-no? Nio, nio o viram. Entiosio acusados de roubo e submetidos a julgamento. E, para osirmios, o triunfo: num instante demonstram como, afav6s d€indicios mfnimos, puderam reconsnuir o asp€cto de um animalque nunca vitam.

Os m€s irmios sao evident€mente depositdrios de um saberdr tipo venat6rio (mesmo que nao seiam descritos comoiiiCil6-res). O que cliacteriza esse saber 6 a capacidade de, a partir dedados aparentemente negligenciCveis, remontar a uma realidadecomplexa nio expedmentivel diretamente. Pode-se acrescentar queesses dados sio sempre dispostos pelo observador de modo talC darlugar a uma seqii6ncia nanadva, cuja formulagdo mais slmples po- -deria ser "algu€m passou por Id". Talvez a pr6pria id6ia de narra-gdo (distinta do sortildgio, do esconjuro ou da invocagdo) 3r tenhanascido pela primeira vez numa sociedade de cagadores, a partir daexperi€ncia da decifragio das pistas. O fato de que as figuras tet6ricas sobre as quais ainda hoje funda-se a linguagem da decifragiovenat6ria - a pafte pelo todo, o efeito pela causa - sdo tecondu-ziveis ao eixo nanativo da metonimia, com rigorosa exclus6o dametifola,3! reforgaria essa hipxltese - obviamente indemonstr{vel.O cagador teria sido o primeiro a "narrar uma hist6ria" porque erao fnico capaz de ler, nas pistas mudas (se n6o impercept(veis)deixadas pela presa, uma s6rie coerente de eventos.

"Decilgrl' o! ''letl' as pistis !9s animais sio met6{oras. Se-n-rimo-nos tentados a tomi-las 4o pd da leLr4, cgllla qondensaqaoverbal de um proces,so hist6rico que_ levoq.Sg3q espaqo 4!_!:Tp_ralvez longuis_simo, i invengdo da escrita. A mesma conexdo dformulada, sob forma de mit<iitiol6iico, pela tadigio chinesa quearribuia a invengio da escrita a um dto funcionirio, que observaraas pcgadas de um pCssaro imprimidas nas margens arenosas de umrro * Por ourro lado, se se abandona o imbito dos mitos e hip&tescs pelo da hist6ria documentada, fica-se impressionado com asrrrr'lrivcis analogias entre o paradigma venat6rio que delineamosc r' I'nrndigma implicito nos textos divinatdrios mesopotamicos,rcrhlrtk's a partir do terceiro mil€nio a.C, em diante.$ Ambospfc.rulxxnr o minucioso reconhecimento de uma realidade talvez

infima, para descobrir pistas de eventos nio diretamcntc cxperi-mentdveis pelo observador. De um lado, esterco, pegadas, p€los,plumas; de ouro, entranhas de animais, gotas de Sleo na dgua,astros, movimentos involuntCrios do corpo e assim por diante. 6verdade que a segunda #rie, i diferenga da primeira, i prarica.mente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, p,rxliatornar-se objeto de adivinhagio para os adivinhos mesoporimicos.Mas a principal diverg€ncia aos nossos olhos i outrar o fato dcque a adivinhagio se voltava para o futuro, e a decifragio, para opassado (talvez um passado de segundos). Pordm a atitude cognos-citiva era, nos dois casos, muito parecida; as operag6es intclcctuaisenvolvidas - anilises, comparag6es, classificaq6es -, (ormalmcn-

te id€nticas. E certo que apenas formalmente: o contexto stxialera totalmente diferente. Notou-se. em particular,l como a invcn-

cdo da escrita modelou profundamente a ane <livinat6ria mcsoyxr-timica. As divindades, de fato, era atribuida, cnrre as ourras prcr-rogativas dos soberanos, a de se comunicar com os sr'rditos atravisde mensagens escriras - nos astros, nos corpJs humanos, cm todaparte -, que os adivinhos tinham a tarcfa de decifrar (idCia essadestinada a desembocar na imagem multimilenar do "livro da na-tureza"). E a identificagdo da arte divinat6ria com a decifrag5ode caracteres divinos inscritos na realidade era reforgada pelascaracteristicas pictogrificas da escrita cuneiforme: e_la tambdm,como a arte divinat6ria, designava coisas abav6s de coisas.t

Tambdm uma pegada indica um animal que passou- Em com-parageo com a concretude da pegada, da pista materialmente en-tendida, o pictograma ii representa um incalculdvel passo i lrenteno caminho da abstragdo intelectual. Mas as capacidades abstrati-vas, prcssupostes na introdugio da escrita pictogrifica, sio por

sua vez bem poucas em comparacao com as exigidas pela passagempara a escrita fonitica. De fato, elementos pictogrificos e fondticos continuaram a coexistir na escrita cuneiforme, assim como naliteratura divinat6ria mesopotamica a progressiva intensificagiodos tragos apriorlsticos e generalizantes ndo apagou a tend€nciafundamental de inferir as causas a oariii ilos-eGltis} E essa atitu-de que explica, por um lado, a iniiltrafAo na Il-ngua da arte divi

1t2 1r)

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Page 8: Sinais Raizes de Um Paradigma

nat6ria mcsoporamica de termos ticnicos extraidos do lixic.o juridico; por ouno, a presenga nos tratados divinat6rios de trechosde fisiognomonia e semi6tica m6dica.t

Depois de um longo rodeio, portanto, voltamos i semi6tica.Enconramola incluida numa constelagio de disciplinas (mas otermo i evidentemente anacrdnico) de aspecto singular, Poder-se-iaficar tentado a contrapor duas pseudoci€ncias como a arte divina-t6ria e a fisiognomonia a duas ci€ncias como o direito e a medici-na - atribuindo a heterogeneidade da aproximagdo i distinciaespacial e temporal das sociedades de que estamos falando. Masseria uma conclusio superficial. Algo ligava realmente essas for-mas de saber na aodga M€sopodeia (se excluirmos a adivinhagioinspirada, que se fundava em experi€ncias de tipo extdtico):o umaatitude oricnrada para a an ilise ae casqr ,ldfy!4ais, reconstrul-veis somente arravds de pistas, sintomas, indicioi. Oi pr6prioi.tcxtos dc jurisprud€ncia mcsopotimicos nio-ionsistem em coleta.neas de lcis ou ordenag6t's, mas na discussio de uma casu(sticaconcrcta.'r Em suma, 1.lodc-se falar de paradigma indicidrio ou di-vinat6rio, dirigido, segundo as formas de saber, para o passado,o prcsentc ou o futuro. Para o futuro - e tinha-se a arte divina-trjr ia em sentido pr6prio -; para o passado, o presente e o futu-ro - c tinha-sc a semi6rica m6dica na sua dupla Iace, diagn6sticae progn6stica --; para o passado - e tinha-se a jurisprud€ncia.Mas, por n{s desse paradigma indicidrio ou divinat6rio, entrev€-se o gesto talvez mais antigo da hist6ria intelectual do g€nerohumano: o do cagador agachado na lama, que escruta as pistasda presa.

2. Tudo o que disscmos ati aqui explica como uma diagnosede faumatismo craniano, formulada a partir de um estrabismobilateral, podia se encontrar num tratado de arte divinat6ria me-sopotamico; 42 de modo mais geral, explica como apareceu historicamente uma constelagio de disciplinas centradas na decifragiodc signos de vdrios tipos, dos sintomas is escritas. Passando dascivilizaq6es mesopotamicas para a Gr6cia, essa constelagdo mudouprofundamente, em iiguida ? mrrstitrrigiio de disciplinsr novas,

como a historiografia e a filologia, e e conquiln dc umr novrautonomia social e epistemol6gica por parte drs rntitlr dirctpli.nas, como a rnqlicina. O- corpo,

-a linguagem c r hntdrir rlor

homens foram lu.bqtgtidos pela primeira vez a umr invertiXrglosem preconccito,s,guc p91 principio exclu(a a intervenglo divinr,Dessa virada decisiva, que caracterizou a cultura da polh, 16somos, como € 6bvio, ainda herdeiros. Menos 6bvio C o frto dcque nessa virada um paprel de primeiro plano tenha sido dcscmpc.nhado por um paradigma definivel como semi6tico ou indicidrio.{Isso 6 particularmente evidente no caso da medicina bipocrdtica,quc definiu seus m6todos refletindo sobre a nogio decisiva de sin.rcma (semeion\. Apenas observando atentamente e registmndocom cxttema minfcia todos os sintomas - xfilpsylsl os hipocrd-ticos -,6 poss(vel elaborar "hist6rias" precisas de cada doenga:a doenEa 6, em si, inatingivel. Essa insist€ncia na natureza indi-cidria da medicina inspirava-se, com todas as probabilidades, naconnaposigSo - enunciada pelo midico pitag6rico Alcmeon -entre a imediatez do conhecimento divino e a conjeturalidade dohumano.{ Nessa negagio da transpar€ncia da realidade, impllcitalegitimagio encontrava um paradigma indiciririo de fato opeianteem esferas de atividades muito diferentes. Os mddicos. os hfsto-riadores, os politicos, os oleiros, os catpinteiros, os marinheiros,os cagadores, os pescadores, as mulheres: sdo apenas algumas enhe7s categorias que operavam, para os gregos, no vasto tetrit6rio dosaber conjetural. Os confins desse temit6rio, significativamente gcvernado por uma deusa como M6tis, a primeira esposa de Jfpiter,que personificava a adivinbagio pela dgua, eram delimitados portetmos como "conietura", "conjeturar" (tekmor, rekrnairesthai\ .Mas esse paradigma permaneceu, como se disse, impllcito..;- esma-g;do pelo prestigioso (e socialmente mais elevado) modelo dc co;nhecimento elaborado por PlatSo.'s

J. O tom apesar de tudo defensivo de certas passagens do"corpus" hipocritlrco$ dA a entender que, iri nors&rilo v iE, comegara a manifestar-se a pol€mica, destinada a durar at6 nossosdias, contra a ince.teza da medicina. Tal pcrsist6ncia sc explic{

1t4 1t5

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Page 9: Sinais Raizes de Um Paradigma

pelo fato de que as relag6es entre o midico e o paciente - calac-

terizadas pela impossibilidade, para o segundo, dc conttolar o

saber e o poder detidos pelo primeiro - nio mudaram muito

desde o temln de Hipdcrates' Mudaram, pelo conttCrio, durante

quase 2500 anos, os tetmos da pol€mica, a pal com as piofin?as

transformag6es sofridas pelas nog6es de "rigor" e "ci6ncla;. Gio

6 6bvio, a cesura decisiva nesse sentido i constitulda pelo apare'

cimento de um paradigma cientifico centrado na lGica galiliana,

- mas que se revelou mais duradouro do que ela. Ainda que a (isi-

ca moderna ndo se possa definir como "galileana" (mesmo nio

tendo renegado Galileu), o significado epistemol6gico (e simb6li

co) de Galileu para a ci€ncia em geral permaneceu intacto.'? Ora,

€ claro que o grupo de disciplinas que chamamos de indicidrias

(incluida a medicina) nao enma absolutamente nos crit€rios de

cienrificidade deduziveis do paradigma galileano Trata-se, de fato,

de disciplinas cminentemente qualitativas, que t€m por objeto

casos. situac(-)cs c documentos individuais, enquanlo inditt iduais, e

iustamcnte por isso alcanqam rcsultados que tem uma maiSem

ineliminivel de casualidade: basta lxnsar no peso das conieturas

(o pr6prio tcrmo d de origem divinat6ria)s na medicina ou na

filologia, alim da arte mAntica. A ci€ncia galileana tinha uma natu-

rcza totalmente diversa, que poderia adotar o lema escolistico

indiuidaum est inellabile, do que 6 individual n6o sj- pode, lalar.O emprego da maremdtica e o mitodo experimental, de fato, im'

plicavam respectivamente a quantificagdo e a repetibilidade dos

fen6menos, enquanto a Perspectiva individualizgqe . ex9!ui4 por

definigio a segunda, e admitia a primeira apnas em fung6es auxi'

liares. Tudo isso explica por que a hist6ria nunca conseguiu se

rolna! uma ci€ncia galileana. Justamente durante o s€culo xvtt,

pelo contr6rio, o enxetto dos m6todos do conhecimento antiqu6'

rio no tronco da historiografia trouxe indiretamente i luz as

<listantes origens indicidrias desta 6ltima, ocultas durante s&ulos

F)sse ponto de partida Permaneceu inalterado, n5o obstante as

rclag6es sempre mais estreitas que ligam a hist6ria is ci€ncias

s<riais. A hist6ria se manteve como uma ci€ncia sxial stti generis,

irrcmcdiavelmente ligada ao concreto. Mesmo que o historiador

nio possa deixar de se referir, expl(cita ou implicitamente, a sdriesde fen6menos compariveis, a sua estratdgia cognoscitiva assimcomo os seus c6digp-s exprcssivos permanecem inminsecamenteind-iv-iiluali,',,tes (;;-o ;". o individuo seja talvez um gruposocial ou uma sociedade inteira). Nesse senrido, o historiadot €corn-paidvel ao mddico, que utiliza os quadros nosogrdficos paraanalisar o mal especifico de cada doente. E, como o do m€dico, oconhEcimento hist6rico 6 indircto, indicidrio, conieturd.e

Mas a contraposigio quc sugerimos i esquemitica demais. Noimbito das disciplinas indiciririas, uma delas - a filologia, e maisprecisamente a critica textual - constituiu desde o seu surgimen-to um caso sob certos aspectos atipico.

O seu obieto, de fato, constitui-se anav6s de uma dristicaselegio - destinada a se rcduzir ulteriormente - dos elementospertinentes. Esse acontecimento interno da disciplina foi escondido por duas cesuras hist6ricas decisivas: a invengio da escrita e ada imprensa. Como se sabe, a critica tcxtual nasceu depois daprimeira (quando decidiu-se transcrever os po€mas homdricos) econsolidou-se depois da segunda (quando as primeiras e freqiien-temente apressadas edig6es dos cldssicos foram substituidas poredig6es mais confidveis).s Inicialmente, foram considerados niopertinentes ao texto os elementos ligados i oralidade e i gestualidade; depois, tamb€m os elementos ligados ao car6ter fisico daescrita. O resultado dessa dupla operagSo foi a progressiva desma-terializagio do texto, continuam€nte depurado de todas as refe.r6ncias sens(veis: mesmo que seia necessdria uma relag6o senslvelpara que o texto sobreviva, o texto neo se identifica com o seusuporte.sr Tudo isso nos parece 6bvio, hole, mas nio o i em termosabsolutos. Basta pensar na fung6o decisiva de entonagdo nas lite-ratutas orais, ou da caligrafia na poesia chinesa, pata perceber quea nog6o de texto que acabamos de invocar estC ligada a uma esco-lha cultural, de alcance incalculdvel. Que essa escolha nio tenhasido determinada pela afirmag6o da reprodugio mecAnica em lugarda manual i demonstrado pelo exemplo clamoroso da China, ondea invenEio da imprensa nio rompeu o elo enre texto litetirio e

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Page 10: Sinais Raizes de Um Paradigma

caligrafia. (Veremos em breve como o problema dos "textos" figu-rativos se colocou historicamente em termos totalmente di{e-rentes.)

Essa nojlo profundamente abstrata de texto explica por quea cririca textua-_-l,

-mEmo se miniendo Ltgi-!;r.-diuinat6ria, tinha

em si potencialidades de desenvolvimento em sentido rigorosa-mente cientifico que amadureceriam durante o s6culo xrx.52 C-omuma decisio radical, ela levara em consideragdo apenas os elemen-tos reprodutiveis (antes manualmente, depois mecanicamente, apartir de Gutenberg) do texto. Desse modo, mesmo assumindocomo objeto os casos individuais,5! acabara por evitar o principalobstdculo das ci€ncias humanas: a qualidade. E significativo que,no momento em que se fundava - com uma redugio igualmentedrdstica - a moderna ci6ncia da natureza, Galileu tenha invocadoa filologia. A tradicional comparaeao medieval enre mundo elivro funda-sc na cvid€ncia, na legibil idade imediata de ambos:Gali leu, pelo contri ir io, rcssaltou que "a fi losofia . . . escrita nestecnorme livro qlrc cstri continuamcntc aberto diante dos nossosolhos (digo o univcrso) . . . nao sc pode entender se crtes nAo teaprcntlc t.nlcrtJ(r d l itgua, conhecer ot caracleres not quait ettacrcrito", rsto d, "tri ingulos, circulos e outras figuras geomdtri-cas".q Para o fil6sofo natural, como para o fil6logo, o texto iuma cntidade profunda invisivel, a ser reconstruida para al€m dosdados sensiveis: "as figuras, o! n(Ee!p!_! gl _movjmentos, mar -nao os. adqres, nem os sabores, nem 9.! sg!!r.!I_{!41l!y-4g orl!,mal oiuo n6o cteio que sejam nada al6m de nomes",ts

Com essa frase Gali leu imprimia i. ie*i" a" natureza umaguinada em sentido tendencialmente antiantropoc€nhico e anti-antropom6rfico que ela n6o viria mais a abandonar. No mapa dosaber abria-se um rasgo destinado a se alargar continuamente. Ecertamente enre o fisico galileano, pro{issionalmente surdo aossons e insensivel aos saboiei e aos odores, e o mi[iio contErioo-rineo seu, que arriscava diagnSsticos pondo o ouvid-Fpeiioscstertorantes, cheirando fezes e ptovando urinas, o coniiaitC ndo

4. Um desses mddicos era Giulio Mancini, de Siena, midico.mor de Urbano VIIL Neo parece que conhecesse Galileu pessoal-mente; mas 6 bem provdvel que os dois tenham se encontrado,porque freqiientavam os mesmos ambientes romanos (da cortepapal i Accademia dei Lincei) e as mesmas pessoas (de FedericoCesi a Giovanni Ciampoli, a Giovanni Faber).s Num vivissimoretrato, Nicio Eitreo, alias Gian Vittorio Rossi, delineou o atels-mo de Mancini, suas exnaordindrias capacidades diagn6sticas (des-

citas com tetmos do l€xico divinat6rio) e a falta de escnipulosem extorquir dos clientes os quadros de que era "intelligen-tissimus".s7 Mancini de fato redigira uma obra intitulada Algu-mas corsid.etag1es relelentes d pintura como deleite de rm gentil-bomem robte e como introdaCao ao que se deoe dizer, que circulouamplamente em manuscrito (a primeira impressio integral remon-ta a duas d6cadas).$ O livro, como mostra o titulo, era dirigidonio aos pintores, mas aos gentis-homens diletantes - aqueles vir-tuoses que, em nfmero sernpre maior, lotavam as exposig6es dequadros antigos e modernos que aconteciam todos os anos noPantheon, em 19 de marEo.re Sem esse mercado artistico, a partetalvez mais nova das Consideraqder de Mancini - a dedicada ao"reconhecimento da pintura", isto 6, aos mitodos para reconheceros falsos, para distinguir os originais das c6pias e assim pordiante@ - nunca teria sido escrita. A primeira tentativa de {un-da96o da connoisseursbip (como se chamaria um s6culo depois)remonta, portanto, a um m6dico cdlebre pelos seus fulminantesdiagn6sticos - um hqrnsrn que, enconhando um doente, com umrripido olhar "quem exitum morbus ille esset habiturus, divinabat"

Iadivinbava que fim aquela doenga viria a tcr].6r Serd permitido,

a esse ponto, ver no Dar olho clinico-olho do.inh;d**;toomais oue uma simoles coincid6ncra.

Antes de seguir de perto os argumentos de Mancini, desta-quemos um pressuposto comum a ele, ao "gentil-homem nobre" aquem se dirigiam as Considerag6es, e a n6s. Um pressuposto naodeclarado porque julgado (erroneamente) 6bvio: o de que entreum quadro de Rafael e uma c6pia sua (trate-se de uma pintrrra,uma gravura ou, hoie, uma fotografia) existia uma diferenga ineli-

grderia ser maior.

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Page 11: Sinais Raizes de Um Paradigma

min:ivel. As implica@s comerciais desse pressuposto - de queuma pintura € por definjgdo um unictm, irrepetivel @ - sio5bviaC. A. efis istri ligado o surgimento de uma figura social comoo do conhecedor. Mas trata-se de um pressuposto que nasce dauma escolha cultural de forma alguma prevista, como

-ottra o

fato de n6o se aplicar aos textos escritos. Os supostos caractetesetetnos da pintura e da literatura nio cabem ai. J6 vimos antesas guinadas hist6ricas pelas quais a nog6o de texto escito foi de-purada de uma s6rie de elementos considerados neo-trrrtinentes.No caso da pintura, essa depuragdo (ainda) ndo se verificou. Porisso, aos nossos olhos, as c6pias manuscritas ou as edie6es doOtlando Farioso podem reproduzir exatamente o texto desejadopor Ariosto; as c6pias de um retrato de Rafael, nunca.63

ajuda a ouras disciplinas, em vias de formagio.

O primeiro problema que ele se colocava era o da datagaodas pinturas. Para tanto, afirmava, € necessdrio adquirir "umacerta prdtica na cognigio da variedade da pintura quanto ao seutempo, como t€m esses antiqudrios e bibliotec6rios dos calacteres,os quais reconhecem o tempo da escrita",6 A alus6o i "cogni-gio, . . dos caracteres" refere-se quase certamente aos mdtodos ela-borados nos mesmos anos por Leone Allacci, bibliotecirio da Va-ticana, para datar os manuscritos gregos e latinos - m6todosdestinados a ser retomados e desenvolvidos meio seculo mais tardepelo fundador da ci€ncia paleogrCfica, Mabillon.G Mas, "al€m dapropriedade comum do s€culo", existe - continuava Mancini -"a propriedade pnipria individual", assim como "vemos nos escri-totes em que se reconhece essa propriedade distante". O nexornrl6gico cntre pintura e escrita, sugerido antes em escala macros-cdpicr ("os tempos", "o s6culo"), era enteo novamente propostocnr cvcala microsc6pica, individual. Nesse Ambito, os m€todosprotoprlo.rgrCficos de um Allacci neo eram utilizCveis. Houvera

160

porim, nesses mesmos anos, uma tentativa isolada de subm€ter Aan6lise, de um ponto de vista incomum, as escritas individuais. Omddico Mancini, citando Hip6crates, observava que C possivel re-montar das "operag6es" ds "imprcss6es" & alma, que por sua veztem raizes nas "propriedades" dos corpos singulares: ,,suposigdo

pela qual e com a qual, como ceio, algumas belas inteligdnciasdeste nosso sdculo escreveram e quiseram dar regra para reconhe-cer o intelecto e a intelig€ncia dos outros com o modo de escrevere da escrita deste ou daquele homem". Uma dessas',belas intelig€ncias" era, com tdas as probabilidades, o midico bolonh€sCamillo Baldi, que em seu Tratado sobre como de uma carta mis-siua se corbece a ttattreza e a qrclidade do esuitor havia incluldoum capltulo que pode-se considerar o mais antigo texto de grafo-logia jC aparecido na Europa. "Quais sio os significados" - € otitulo- do capitulo vt do T ratado - "que na figura do cardterpodem-se apreender": onde "cardter" designa "a figura, e o traga-do da letta, que se chama elemento, feito com a pena sobre opapel".67 Mas, neo obstanrc as palavras elogiosas que lembramos,Mancini desintercssou-se quanto ao obietivo declarado da nascentegrafologia, isto €, a reconstrugio da personalidade dos escreventestemontando-se do "cariter" escrito ao "carCter" psicol6gico (sino-nimia esta que remete, uma vez mals, a uma mesma remota mgttizdi{pllnafl. Ele se deteve, pelo contfirio, no pressuposto da novadisciplina: a diversidade, ou melhor, a singularidade inimitdveldas escritas individuais. Isolando nas pinturas elementos igualmen.te inimitiveis, estaria alcangado o fim que Mancini se prefixava:a elabomgdo de um mCtodo que permitisse distinguir entre osoriginais e os falsos, as obras dos mestres e as c6pias ou trabalhosde escola. Tudo isso explica a exortagio para se conferir se naspintutas:

v€-se aquela desenvoltura do mesre, e em particular naquelaspartcs que necessariamente fazem-se com resoluqio, de modo quenio podem passar bem com a imitagio, como seo em particularos cabelos, a barba, os olhos. Que o anelar dos cabelos, quaodose deve imitar, faz-se com muito custo, que depois na c6pia apa-t_ece, e, se o copiador nio quer imit6-lo, entio neo tctn a per.feigio do mestre. E essas partes na pintum sio como os tragos e

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Page 12: Sinais Raizes de Um Paradigma

olr vokclos nrr cscrita, que precisam daquela dcseovoltura c rcso.luqio dc mcsrc. Isso deve-se ainda observar em alguns soptos cgollxs de luz de espaEo em espalo, que p€lo mestre seo posto!tle unra vez e com a resolugao de uma pincelada inimitivel; assimnas dobras dos tecidos e em sua luz, os quais dependem mais drfanrasia e resolugio do mestre do que da verdade da coisa criadr.o

(irmo se v€, o paralelo, jd sugerido por Mancini em virioscontextos, cntre o ato de escrever e o de pintar i retomado nessapassagem de um ponto de vista novo, sem precedentes (se se exce.tuar uma fugaz alusio de Filarete, que Mancini podia n6o co.nhecer6e). A analogia se ressalta com o uso de termos tCcnicosrecorlentes nos tratados de escrita contemporaneos, como "desen-voltura", "tragos", "volteios".D Tambdm a insist€ncia na "veloci-dade" tem a mesma origem: numa ipoca de crescente desenvol.vimento burocrdtico, as qualidades que asseguravam o sucesso dcuma'lefta chanceleresca cursiva no mercado escritur6rio eram, al€mda elegincia, a rapidez no dactas (conduEio da pena).?r Em geral,a importAncia ahibuida por Mancini aos elementos omamentaisdemonstra uma reflexdo nio superficial sobre as caracteristicas dosmodelos de escrita predominantes na Itilia entre o final do seculoxvI e o inicio do s6culo xvrr.?2 O estudo da escrita dos "caracte-res" mosftava que a identificagdo da mao do mestre deveria serprocurada de prefer€ncia nas partes do quadro c) exetutadas maisrapidamente e, portanto, 6) tendencialmente desligadas da repre-sentaEio do real (emaranhado de cabeleiras, tecidos que "depen-dem mais da fantafsia e resolugio do mestre do que da verJadeda coisa criada"). Sobre a riqueza que iaz nessas afirmag6es -uma tiqueza que nem Mancini n€m os seus contemporineos foramcapazes de trazer i luz -, voltaremos mais adiante.

J. "Caracteres". Por volta de 1620, a pr6pria palavrarcr()rna, em sentido pr6prio ou anal6gico, de um lado nos textos.k' {rrndador da fisica moderna e, de outo, nos iniciadores da pa-lcogrrfia, da grafologia e da connoisseursDip, respectivamente. E,clt( ' q(tr, cntre os "caracteres" imateriais que Gali leu l ia com os,' l lu' ' ,1,' ctrrcbro?r no l ivro da natureza, e os que Allacci, Baldi,'rr Nlar<irri clecifravam materialmente em papdis e pergaminhos,

rclas ou quadros, o parentesco era alrnas mcte(6rirw. Mlr r irlcnridade dos termos ressalta ainda mais a heterogencidrr.lc dn dirrplinas que comparamos. O seu grau de cientificidrdc, nr .(cl{},galileana do termo, decrescia btuscamente, i mcdidr quc rln"propriedades" univetsais da geome$ia passava-sc As "propric<lr.lcs comuns do seculo" das escritas e, depois, is "propricdrdcrpr6prias individuais" das pinturas - ou ati das caligra{ias,

Essa escala decrescente confirma que o verdadeiro obst{culoi aplicag6o do paradigma galileano era a centralidade maior oumenor do elemento individual em cada disciplina. Quanto maisos ragos individuais eram considerados pertinentes, tanto mais secsvaia a possibilidade de um conhecimento cient(fico rigoroso.Certamente a decisio preliminar de negligenciar os tragos individuais nio Sarantia por si s6 a aplicabilidade dos m6todos fisico-matemdticos (sem a qual nio se podia falar em adogio do para-digma galileano propriamente dito) - mas, pelo menos, excluia.ade vez.

6. Nesse 1rcnto, abriam-se duas vias: ou sacrificar o conheci-mento do elemento individual i generalizagdo (mais ou menos rigorosa, mais ou menos formulCvel em linguagem matemdtica), ouprocurar elaborar, talvez )s apalpadelas, um paradigma di{ercnte,fundado no conhecimento cientlfico (mas de toda uma cientifici.da{. por s.Etiniil?o ind-ividual- A-piinaia vA loi-peicoiiiifapelas ci€ncias naturais, e s6 muito tempo depois pelas ci€nciashumanas. O motivo i evidente. A tend€ncia a apagar os tragos in-dividuais de um objeto 6 diretamente proporcional I distdnciaemocional do observador. Numa pigina doTrutado de arqaitetara,Filarete, depois de afirmar que 6 imposslvel consnuir dois edifl-cios perfeitamente id6nticos - assim como, apesar das apar€ncias,as "{ugas tCrtaras, que t€m todas a mesma cara, ou as da Eti6pia,que s6o todas negras, se olhares direito, ver6s que existem di{e-rengas nas semelhangas" -, admitia que existem "muitos animaisque sio semelhantes uns aos ouffos, como as moscas, formigas,vennes e ras e muitos peixes, que daquela especie n6o se reconhe-ce um do outro". Aos olhos de um arquiteto europeu, as di(eren-

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Page 13: Sinais Raizes de Um Paradigma

lrf, nrcsll() lx,quenas entre dois edi{icios (europeus) eram relevan.rc!i, as cntrc duas fuEas tdttatas ou etiopes, negligencidveis, e ascntrc dois vermes ou duas formigas, at€ inexistentes, Um arqui.tcr() tdrtaro, um etiope desconhecedor de arquitetura ou umaformiga teriam proposto hierarquias diferentes. O .onhe.]Gii6-individualizante i sempre an&opoc€ntrico, etnoc€n[ico e assim

lxrr diante especificando.6 certo que tamb€m os animais, mine-rais ou plantas poderiam ser considerados numa perspectiva indi-vidualizante, por exemplo divinat6ria?s - sobretudo no caso deexemplates claramente fora das normas. Como se sabe, a tefato-logia era uma parte importante da arte divinat6ria. Nas primeirasdecadas do siculo xvrr, a influ€ncia exercida mesmo que indireta-mcnte por um paradigma como o galileano tendia a subordinar oestudo dos fen6menos anormais i pesquisa sobre a norma, a adivi-nhagio. ao conhecimento generalizante da natureza. Em abril de1625, nasceu nas cercanias de Roma um bezerro com duas cabe.eas. Os naturalistas ligados ) Accademia dei Lincei interessaram-se pelo caso. Nos jardins vaticanos de Belvedere, enconftavam-seem discussio Giovanni Faber, secretririo da Accademia, Ciampoli(ambos, como se disse, muito ligados a Galileu), Mancini, o car-deal Agostino Vegio e o papa Urbano vrrr. A primeira perguntaa ser colocada foi a seguinte: o bezerro bicilalo deve ser conside-rado um animal (nico ou duplo? Para os m€dicos, o elemento quedistingue o individuo 6 o cdrebro; para os seguidores de Arist6te-les, i o corag6o.76 Nessa descrig6o de Faber, percebe-se o eco pre-sumivel da intervengio de Mancini, o rinico m€dico presente nadiscuss6o. Portanto, apesar dos seus interesses asFol6gicos,T eleanalisava as caracterlsticas especificas do parto monsnuoso naoeom um fim de tirar auspicios, mas para chegar a uma definig6ornais precisa do individuo nq1mal - o individuo que, por perten-(cr a uma espicie, podia com todo o direito ser considerado repc-t ivcl. Com a mesma atenCao que normalmente dedicava ao exame(lc unra pintura, Mancini teve de investigar a anatomia do bezcrroI'rtcfalo. Mas a analogia com a sua atividade de conbecedor parava

;x'r rri Num ccrto sentido, iustam€nte um p€rsonagem como Man-(rr cxprcss.tva a uniio entre o paradigma divinat6rio (o Mancini

(liagnosticador e conhecedor) e o paradigma gcncralizantc (o Mrncini anatomista e naturalista). A uniio, mas tambdrn a di{crcngtNio obstante as aparCncias, a descrigao precisa da autdpsir doI'ezerro, redigida por Faber, e as minuciosas gravuras que a acom.panhavam, rcpresentando os 6rgios internos do animal,Tr nio scpropunham captar as "propriedades comuns" (aqui naturais, niohist6ricas) da esp6cie. Desse modo, era retomada e aperfeiqoada {tradig6o naturalista que se (undava em Arist6teles. A vista, sim-bolizada pelo lince de olhar agudlssimo que ornamentava o brasaoda Academia de Federico Cesi, tornava-se o 6rgio privilegiado dasdisciplinas para as quais estava vedado o olho supra-sensivel damatemitica.D

7. Enre essas estavam, pelo menos apafentemente, as ci€n-cias humanas (como as definir(amos hoie). A fotiori, num certorenlido - quando menos pelo seu tenaz antropocentrismo, expres-so com tanta simplicidade na pdgina ji lembtada de Filarete. Noentanto, houve tentativas de introduzir o rn€todo matemdtico tam-b6m no estudo dos fatos humanos.s 6 compteensivel que a pri-meira e mais bem-sucedida - a dos aritm6ticos pollticos - tenhaadotado como seu objeto os gestos humanos mais determinadosem sentido biol6gico: nascimento, procriagio e morte. Essa dr6sti-ca redugio permitia uma pesquisa rigorosa - e, ao mesmo tem.po, bastava para as finalidades cognoscitivas militares ou fiscaisdos Estados absolutistas, orientados, dada a escala das suas opera-

Edes, em sentido exclusivamente quantitativo. Mas a indi{erengaqualitativa dos comitentes da nova ci€ncia - a estatistica - naodesfez totalmente v(nculo entre ela e a eslera das disciplinas que

chamamos de indici6rias. O cilculo das probabilidades, como dizo titulo da obra cldssica de Bernouilli (Ars coniectaxdi\, prcxnru-

va dat uma formulagio matemdtica rigorosa aos problemas que

haviam sido enfrentados pela arte divinat6ria de maneira comple-tamente diferente.rl

Mas o conjunto das ci€ncias humanas permaneceu solidamen-re ancorado no qualitativo. Nao sem mal-estar, sobretudo no casoda medicina. Apesar dos progressos realizados, seus m€todos mos-

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Page 14: Sinais Raizes de Um Paradigma

nirlnnr-sc ince os, e os resultados, dfbios. Urn texto como.?4 cel-tt u du n,.dicina de Cabanis, publicado no final do s&ulo xvrrr,s2lrlrrritia cssa falta de rigor, ainda que depois se esforgasse em reco-rrhcccr i medicina, apesar de tudo, uma cientificidade sui generis.As raz6cs da "incerteza" da medicina pareciam ser fundamental-nrcnte duas. Em prirneiro lugar, nio bastava catalogar todas asclenqas at6 compdJas num quadro ordenado: em cada individuo,a doenEa assumia caracteristicas diferentes. Em segundo lugar, oconhecimento das doengas permanecia indireto, indicidrioi o corpovivo era, por definig6o, inatingivel. Certamenre podia-se seccionaro caddver; mas como, do caddver, ji corrompido pelos ptocessosda morte, chegar is caracteristicas do individuo vivo? sr Diantedessa dupla dificuldade, era inevitrivel reconhecer que a pr6priacficricia dos procedimentos da medicina era indemonsndvel. Emconclusio, a impossibilidade de a medicina alcangar o rigor pr6priodas cidncias da natureza derivava da impossibilidade da quantifi-caqdo, a nio ser em funE6es pulamente auxiliares; a impossibili-dade da quantificagio derivava da presenga inelimindvel do quali-tativo, do individual; e a ptesenea do individual, do fato de que oolho humano 6 mais sensivel is diferengas (talvez marginais) entteos seres humanos do que is diferengas entre as pedras ou as folhas.Nas discuss6es sobre a "incerteza" da medicina, ii estavam for-mulados os futuros n6s epistemol6gicos das ci€ncias humanas.

8. Enne as linhas do texto de Cabanis nansparecia umacompreensivel impaci6ncia. Apesar das objeE6es, mais ou menosjustificadas, que lhe poderiam ser dirigidas no plano metodol6gico,ru nredicina sempre se mantinha, pordm, uma ci€ncia plenamente re-crrnhecida do ponto de vista social, Mas nem todas as formas de,onllccirnsnlr indicidrio se beneficiavam, naquela ipoca, de seme-llrarrtc lrrcstigio. Algumas, como a cottxoisseurrblp, de origem re-Lrrrrirrrt.rlc recente, ocupavam uma posigdo ambigua, i margem,l.r., irsr' i1' l inas reconhecidas. Ounas, mais l igadas i prit ica conti-, lr,rrr.r, crrirvrm simplesmente de fora, A capacidade de reconhecer

'rrr ,.r ' ,.r l, ' r lcfeituoso pelos jaretes, a vinda de um temporal pela

repentina mudanqa do vento, uma intcngio hosti l l lrr lr l ttr\ lo (lr lc

sc sombreia celtamente nio se aprendia nos tratad(rs .lc l lvctl,rtt '1,

Je meteorologia ou psicologia. Em todo caso, cssns l, ' tttt lr , lc

saber eram mais ricas do que qualquer codificagit.r cs(rrtr. trl(r

eram aprendidas nos l ivros mas a viva voz, pelos gcst,rs, 1rl, ' .olhares; fundavam-se sobre sutilezas ceftamente n6o-fornralizr[vcrr,

freqiientemente nem sequer traduziveis em nivel verbal; ct'ttstt

tuiam o parimdnio, em parte unitdrio, em parte diversif ica<lo, . lc

homens e mulheres pertencentes a todas as classes sociais Um sutil

parentesco as unia: todas nasciam da experi€ncia, da concretudc du

experi€ncia. Nessa concretude csiava a fotga desse tipo de saber,

e o seu limte - a incapacidade de servir'se do poderoso e terri

vel instrumento da abstraq6o.e

Desse corpo de saberes locais,$ sem origem nern mem6ria ou

hist5ria, a cultura escrita tentara dar a tempo uma formulaqio

verbal precisa. Tratava-se, em geral, de formulag6es desbotadas e

empobrecidas. Basta pensar no abismo que sepatava a rigidez

esquemdtica dos uatados de fisiognomonia e a acuidade fisiogno-

m6nica flexlvel e rigorosa de um amante, um metcador de cavalos

ou um,ogador de cartas. Talvez s6 no caso da medicina a codifi

caeeo escrita de um saber indicidrio tenha dado lugar a um verda'

deiro enriquecimento (mas a hist6ria das relaE6es entre medicina

culta e medicina popular ainda esti por ser escrita). Ao longo do

s6culo xvrIt, a situaqdo muda. Hri uma veldadeira ofensiva cultu-

ral da burguesia, que se apropria de grande Parte do saber, indi-

cidrio e n5o-indici6rio, de artesios e camponeses' codificando e

simultaneamente intensificando um gigantesco processo de acultu-

racao, jri iniciado (obviamente com formas e conte6dos diversos)

pela Contra-Reforma. O simbolo e o instrumento cental dessa

ofensiva i, naturalmente, a Encycloptdie. Mas tamMm selia pr€'

ciso analisar epis6dios insignificantes mas reveladores, como a in-

lervengeo do an6nimo mestre.pedreiro romano. que demonstra a

\Xinckelmann, ptovavelmente estupefato, que a "pedrinha peque'

na e chata" reconhecivel enlre os dedos da m5o de uma estdtua

descoberta em Porto d'Anzio era a "bucha ou a rolha da Ambula"'

166 167

Page 15: Sinais Raizes de Um Paradigma

A colctinca sistemCtica desses,,pequenos discernimentos",como chama-os Winckelmann em outro lugat,& alimentou entrcos s(culos xvrrl e xrx as novas formulag6es de antigos saberes _dr cozinha i hidrologia e A veterindria. Para um nfmero semorecrcsccnte de leitores, o acesso a determinadas experi6ncias toma.sc cada vez mais mediado pelas p{ginas dos livros. O romancesimplesmente forneceu i burgucsia um substituto e, ao mesmorempo, uma refounulagdo dos ritos de iniciagio - isto 6, o acessoi experi€ncia em geral.d E € justamente gragas i literatura deimagioagSo que o paradigma indiciCrio conlreceu nessa Cpoca umnovo, e inesperado, destino.

9. J4 lembramos, a prop,6sito da remota origem provavelmen-te venat6ria do paradigma indicidrio, a fibula ou conto orientaldos tr€s irmios que, interpretando uma #rie de indicios, conrc-guem descrever o aspecto de um animal que nunca viram. Esseconto apareceu pela primeira vez no Ocidente aravds da coletAneade Sercambi,u Posteriormente, retomou como ponto alto de umacoletinea de contos muito mais ampla, aprescntada como ttadu-gdo do persa para o italiano aos cuidados de Crist6foro Arm€nio,que apareceu ern Veneza na metade do sdculo xvr sob o tituloPeregrinagdo dos tr1s iouens lilbos do rei de Seremlip. Dessaforma, o livro foi recditado e traduzido outras vezes - antes emalemio, depois, durante o s€culo xvrrr, na onda da moda orienta-lizante de enteo, nas principais llnguas eurolt'ies.D O sucesso dahistdria dos filhos do rei de Serendip foi tal que levou HoraceWalpole, em 1754, a cunhar o neologismo serendipity para desig.nar as "descobcrtas imprevistas, feitas gragas ao acaso e I inteli-g€ncia".e Alguns anos antes, Voltaire rcelaborara, no terceiro cr-pitulo de Zadig, o pimciro conto da Peregrinag o, que lcre naradugdo franccsa. Na reelaboragio, o camelo do original havia setrrnsformado numa cadele e num cavalo, que Zadig conseguiadcrcrever minuciosamente decifrando as pistas sobre o teneno.Acusrd<r dc furto e conduzido pemnte os iufzes, Zedig iustilicava-|c rcconsriruindo em voz altr o trabalho mentel que lhe permitirarafrr o r€rroto dos dois animais quc nunca havir visto:

J'ai vu sur la sable les traces d'un animal' et j'ai iug{ rir{mcnt

<;ue c'€taient celles d'un p€tit chien Des sillons ldgcrs ct loogr,

imprim€s sur de petitcs €minences de sable entre lcs traccs dcr

pa;tes, m'ont faii ccnnaltrc que c'€tait une chienne dont lcr

mamelles itaient pendantes, et qu' ainsi elle avait fait des pctits

i l y a pcu de iours...ei

Nessas linhas, e nas quc seguiam, estava o embriio do ro-

mance policid. Nelas inspiraram-se Poe, Gaboriau, Conan Doyle

- os dois primeiros diretamente, o terceiro talvez indiretamente.e

Os motivos do extraordindrio destino do romance Policidsio conhecidos. Sobre alguns deles voltaremos adiante. Mas Pode-se observar desde iri que ele se fundava num modelo cognoscitivo

ao mesmo tempo antiqiifssimo e moderno. Da sua antiguidade

simplesmente imemorial iri falamos' Quanto i sua modernidade,

bastard citar a pigina em que Curvier exaltou os m€todos e suces-

sos da nova ci€ncia paleontol6gica:

... auiourd'hui, quelqu'un qui voit seulement la piste d'un picd

fourchu pcut en conclure que I'animal qui a laiss€ cet empncint€rumioait. et cette conclusion cst tout aussi certainc qu'aucune

autre em physiquc et en moral€. Ccttc seule Piste donne donc Icelui qui I'observe, et la forme dcs dents, et la forme des mlchoi-res, et la forme des vertlbres, et la forme dc tous les os des

iambes, des cuisses, dcs €paules ct du bassin de I'animd qui

vicnt de passcr; ctst une marque plus s0te que toutes celles de

Zadig.es

Um sinal mais segunr, talvez; mas tambdm intimamente se-

melhante. O nome de Zadig tomara-se tio simb6lico que Thomas

Huxley, em 1880, no ciclo de confer€ncias profcridas Para a difu'

sio das descobertas de Darwin, definiu como " m6todo de Zadig"

o prccedimento que reunia a hist6ria, a rrqucologia, a geologia, a

astronomia lisica e a paleontologia: isto C, a capacidade de fazer

ptofecias retrospectivas. Disciplinas como estas, profundamente

permeadas peh diactonia, nio podiam deixar de se voltar para o

paradigma indiciCrio ou divinat6rio (c Huxley {alava explicita-

ment€ de adivinhag6o voltada para o passado),q descartendo o

paradigma galileano. Quando as causas nao s6o reproduzivcis, s6

reste infcri-las r partir dos cfeitos-

168 169

Page 16: Sinais Raizes de Um Paradigma

ut.

L Poderiamos comparar os fios que compSem esta pesquisaaos fios de um tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-sc numa trama densa e homog€nea. A coer€ncia do desenho 6 ve-rificdvel percorrendo o tapete com os olhos em vdrias direg6es,Verticalmente, e terenros uma seqii€ncia do tipo Serendip-Zadig-Poc-Gaboriau-C,onan Doyle. Horizontalmente , e teremos no inlciodo seculo xvrrr um Dubos que classifica, uma ao lado da outra,em ordem decrescente de inconfiabilidade, a medicina, a connois-seurship e a identificagSo das escitas.e5 At6 mesmo diagonalmen-te - saltando de um contexto hist6rico para outro -, e is costasde monsieur Lecoq, que percomeu febrilmente um "terreno in-culto, coberto de neve", pontilhado de pistas de criminosos, com-parando-o i "imensa pdgina branca onde as pessoas que procura-mos deixaram escrito nio s<i seus movimentos e seus passos mastambim seus p€nsamentos secletos, as esperaneas e angristia queas agitavam",$ veremos perfilarem-se autores de tratados sobre afisiognomonia, adivinhos babil6nicos empenhados em ler as men-sagens escritas pelos deuses nas pedras e nos c€us, cagadores doNeolitico.

O tapete 6 o paradigma que chamamos a cad,a vez, conformeos contextos, de venat6rio, divinat6rio, indicidrio ou semi6tico.Trata-se, como d claro, de adjetivos n6o-sin6nimos, que no entan-to remetem a um modelo epistemol6gico comum, articulado emdisciplinas diferentes, muitas vezes ligadas enue si pelo ernpristi-mo de m€todos ou termos-cbave. Ora, entre os s€culos xvrll e xrx,com o aparecimento das "cidncias humanas", a constelagio dasdisciplinas indiciirias modifica-se profundamente: aparecem novosastros destinados a um rdpido crepisculo, como a frenologia,eT ou.r Lrn grande destino, como a paleontologia, mas sobretudo afirma-

'., lrlc' seu prestigio epistemol6gico e social, a medicina. A ela ser,lt rcnr, cxplicita ou implicitamente, todas as "ci€ncias humanas".i\lirs rr rluc parte da medicina? Na metade do s€culo xrx, vemos,i,-scrrlrrrt sc r.rma alternativa: o modelo anat6mico de um lado, orcrrrrr 'rt rco rlc oumo. A metrifora da "anatomia da sociedade". usada

170

r)uma passagem crucial tambdm por Marx,'3 cxpritnc a aspiraqio

ir um conhecimento sistemitico numa dpoca quc virit cnlitrr o <lcs'

r)roronamento do ri lt imo sistema fi los6fico, o hegeliano. Mits, rri io

,rbstante o grande destino do marxismo, as ci€ncias humanas lc,t '

Iraram por assumir sempre mais{ com uma relevante excc(itr. errttr,r

veremos) o paradigma indicidrio da semi6tica. E aqui recncontrit

rnos a triade Morelli-Freud-Conan Doyle da qual partimos.

2. Att agora falamos de um paradigma indiciirio (e seus si'

ndnimos) em sentido lato. Chegou o momento de desarticuld-lo.

Uma coisa 6 analisar pegadas, astros, fezes (animais ou humanas),

catarros, c6rneas, pulsagdes, campos de neve ou cinzas de cigarro;

outra d analisar escfitas, pinturas ou discursos. A distingio enne

natureza (inanimada ou viva) e cultura i fundamental - cetta-

mente mais do que aquela, infinitamente mais superficial e mutdvel,

entre as disciplinas individuais. Ora, Morell i propusera-se buscar,

no interior de um sisrema de signos culturalmente condicionados

como o pict6rico, os signos que tinham a involuntariedade dos

sintomas (e da maior parte dos ind(cios). Nio s6: nesses signos

involuntdrios, nas "miudezas materiais - um caligrafo as chama-

ria de garatujas" compardveis is "palavras e frases prediletas"

que "a maioria dos homens, tanto falando como escrevendo...

introduzem no discurso is vezes sem inrengio. ou seja, sem s<

aperceber", Morell i reconhecia o sinal mais certo da individuali-

dade do artista.s Dessa maneira. ele retomava {talvcz indiretamen-

te) rm e desenvolvia os principios clc mitodo formtrlaclos htvia

tanto tempo pelo seu predccessor (l iulio Mancini. Qtrc aquelcs

principios viessem a amadurcccr dclxris t lc t i lnl() tclnlx) nio era

casual. Justamente enteo vinha sr.trginrkr ttnta tcntl incia cada vez

mais nit ida de um controlc qualit l t ivt, e nrintrcioso sobrc a socie-

dade por parte do poder estltal. qtrc rlt i l iravd trrla noqao de indi'

viduo baseada, tambim cla, crn trit(()s minimos e involuntdrios.

J. Cada sociedade observa a ncccssiclade de distinguir os setrs

componentes; mas os modos dc cnfrcnlar cssa necessidade variam

conforme os tempos e os lugarcs.'u' Existe, aotes de mais nada, o

I7I

Page 17: Sinais Raizes de Um Paradigma

norr(. nr-r\, quanto mais a socicdade i complexa, tanto mais on.rrrt( | i lrcc( insuficienre para circunsclever inequivocamcnre ai<lcntirladc de um individuo. No Egito greco-romano, por exemplo,,l< .1uem se complometia perante um notdrio a desposar umanrulhcr ou a cumprir uma ttansaeao comercial eram registrados,ao lado do nome, poucos e sumdrios dados fisicos, acompanhadospla indicaqdo de cicarizes (se existiam) ou ouros sinais oarticula-rcs.'or As possibil idades de erro ou subsrituigio dolosa da pessoa,Jurdm, continuavam elevadas. Em comparagio. a assinatura apostaa,' pi da pdgina nos contratos apresentava muilas vantagens: nofinal do s6culo xvrrr, numa passagem da sL.a Hist6ria pict6ricd, de-dicada aos m€todos dos conhecedores, o abade Lanzi afirmava quea inimitabilidade das escritas individuais fora desejada pela natu.reza para a "seguranqa" da "sociedade civil" (burguesa).t03 Certa-mente, as assinaturas tambdm podiam ser falsificadas - e, sobre-tudo, excluiam do conuole os analfabetos. Mas. aoesar dessasfalhas, por seculos e sdculos as sociedades europiias neo senrira-a necessidade de mdtodos mais seguros e prdticos de averiguaEioda identidade - nem quando o nascimenro da grande indfstria,a mobilidade geogrlfica e social a ela ligada, a rapidissima forma-qdo de gigantescas concentrag6es urbanas alteram radicalmente osdados do problema. Todavia, numa sociedade com tais caracteris-ticas, fazer deSaparecer os pr6priOs lastros e reaparecer Com umaoutra identidade era uma brincadeira de crianga - n6o s6 numaci,lade como Londres ou Paris. Mas somente nas riltimas d6cadasdo s6culo xtx foram pfopostos por vdrios lados, em concorCnciacnlre si, novos sistemas de identificagdo. Era uma exig€ncia quesrrrgia dos fatos contemporineos da luta de classes: a constituigeorlc uma associaq6o internacional dos rabalhadores, a repressao da,'lxrsigno operdria depois da Cnmuna, as modificaq6es da crimina-l r , l , r . lc .

() lparecimento de relaq6es de produqio capitalistas bavia

I'r, 'r ' , 'r:r,.kr - na Inglaterra desde 1720 aproximadamente,rq norrrt,r t l .r lrrrropa quase um sdculo depois, com o C6digo Napole6-

'r(r, unrx lransformaEeo, l igada ao novo conceito burgu€s de1,r,,1'rrc,l;rt lc, t la legislagio, que aumentara o nimero de delitos

puniveis e o valor das peoas. A tendencia |r crirnirralizaqrit ' t l ,r l trta

,le classes veio acompanhada p€la construcao dc utn sislcnta clrcc-

rdrio fundado sobre a detencao por longo Prazo.r.5 Mas tr crircctc

produz criminosos. Na Franga, o n(meto de reincidentcs, cnt cort

t inuo aumento a partir de 1870, alcangou no (inal do s&trlo rtntrt

porcentagem igual ) metade dos criminosos submetidos a pr(rcs

so.rft O problema da identificagdo dos reincidentes, que sc col(xotr

naquelas decadas, constituiu de {ato a cabe9a-de-ponte de um pro-

jeto geral, mais ou menos consciente, de controle generalizado c

sutil sobre a sociedade.

Para a identificagio dos reincidentes era necessirio provar

a) que um individuo jri havia sido condenado, e 6) que o indivi-

duo em questAo efa o mesmo que i5 sofrera condenagdo r0T O pri-

meiro ponto foi resolvido pela criaqdo dos regisnos policiais. O

segundo levantava dificuldades mais sirias As antigas penas que

marcavam um condenado Para sempre, estigmatizando-o ou muti-

lando-o, haviam sido abolidas. O lirio gravado no ombro de Mi-

lady permitira a D'Artagnan teconhecer nela uma envenenadorajd punida no passado pelos seus g1img5 - enquanto dois fugiti-

vos como Edmond Dant€s e Jean Valjean pudetam reapatecer na

cena social dis(argados sob traies respeitdveis (bastariam esses

exemplos pata mostrar atd que ponto a figura do criminoso rein'

cidente pesava na imaginag6o oitocentista) r@ A respeitabilidad(

burguesa precisava de sinais de leconhecimento igualmente inde-

ldveis, mas menos sanguindrios e humilhantes do qtrc os inrlnstos

sob o axclen rigime.

A id€ia de um enorme arquivo fotogrif ico crirninrl loi num

primeiro momento clcscarta<la, gxtrquc coltrava ltrobl:nras tle clas'

sif icaqio insoliveis: c()rrl() rec()rtar clenlcntos tl iscrctos no conti-

nuo da imagem)16 A via t l , t qtrat l l i l i ( i r ( . l i ) I ) i t rc(1rr l l l . l r : t s imples

e rigorosa. De 1879 em dianle, trm fttnciorri ir io rla prcfeitura de

Paris, Alphonse Berti l lon, el,tborotr rrnl nrt 'trt. l tt antr<lPomitrico

(que depois i lustrou em virios cnsaios c rncrl<irias) "o baseado em

minuciosas mediq6es do corpo, qlre cottvctgiam para uma ficha

pessoal. E claro que um peqttctt() cngatro de poucos milimetros

criava as premissas de um erro jtrdicial; mas o principal defeito do

172 I7 )

Page 18: Sinais Raizes de Um Paradigma

nrctod() dntropom6trico de Bertillon era outro, isto 6, o de ser pu-rdnlente negativo. Ele permitia separar, no momento do reconhe-cimcnto, dois individuos diferentes, mas ndo afirmar com seguran-1'a que duas siries id€nticas de dados se referissem a um mesmoindividuo.rrr A irredutivel elusividade do individuo, expulsapela porta a[av6s da quantificagao, voltava a entrar pela janela.Por isso, Bertillon prop6s integrar o m6todo annopom6trico como chamado "retrato falado", isto i, a descrieao verbal analiticadas unidades discretas (nariz, olhos, orelhas etc.), cuja soma deve-ria restituir a imagem do individuo - possibilitando assim o pro-cedimento de identificagio. As p6ginas de orelhas exibidas porBertillont!2 relembram imesistivelmente as ilusrag6es que, nosmesmos anos, Morelli incluia em seus ensaios. Talvez ndo se tra-tasse de uma influ€ncia direta - ainda que seja surpreendenteverificar que Bertillon, em sua atividade de especialista grafol6gi-co, considerava indicios reveladores de uma falsificagdo as parti-cularidades ou "idiotismos" do original que o falsririo n6o conse-guia reproduzir e, eventualmente, substituia pelas suas pr6prias.1l3

Como se terd percebido, o mitodo de Bertillon era incrivel-mente complicado, Jri nos referimos ao problema posto pelas media96es. O "retrato falado" piorava ainda mais as coisas. Comodistinguir, no momento da descrig6o, um nariz giboso-arcado deum nariz arcado-giboso? Como classificar os matizes de um olhoverde-azulado?

Mas desde a sua dissertagio de 1888, posteriomente corrigi-rla e aprofundada, Galton propusera um mitodo de identificagiomuito mais simples, no que se referia tanto i coleta dos dadoscomo i sua classificagio,rt{ O m6todo baseava-se, como se sabe,nrs impress6es digitais. Mas o pr6prio Galton, com muita hones-ti<lade, reconhecia ter sido precedido, te6rica e praticamente, po!( ' l r I r ( )s,

A anrilise cientifica das impress6es digitais iniciara-se desdelf{.l } com o fundador da histologia, Purkyne, na sua dissertagioI t),,t,,t. ut.ttio de examiae pbysiologico organi uisas etr ,Jstemalis' ut,t"t !tt\ l l lc disringuiu e descreveu nove tipos fundamentais delrrrlr.r ' 1'.rf i lart.s, ao mesmo tempo afirmando, potim, que nio exis-

tem dois individuos com impress5es digitais id€nticas. As possibi-lidades de aplicagdo pritica da descoberta eram ignoradas, ao con-trdrio de suas implicag6es {ilos6ficas, discutidas num capitulointitulado "De cognitione organismi individualis in generc".rrn C)conhecimento do individuo, dizia Purkyne, d cenrral na medicinapr6tica,

^ comegar lrla diagnose: em individuos diferentes os sin-

tomas se apresentam de formas di{erentes e, portanto, devem scrcurados de modos diferentes. Por isso, alguns modernos, que n6onomeava, definiram a medicina pr6tica como "artem individuali-sandi (die Kunst des Individualisitens) ".1r7 Mas os fundamentosdessa arte se €nconnavam na filosofia do individuo. Aqui Purky-ne, que quando jovem estudara filosofia em Praga, reencontravaos temas mais profundos do pensamento de Leibniz. O individuo,"ens omnimodo determinatum" [ente totalmente determinado],possui uma singularidade verificdvel at€ em suas caracterlsticasimperceptiveis, infinitesimais. Nem o acaso nem os influxos exter-nos bastam para explici-la. E necessdrio supor a exist€ncia de umanorma ou "typus" interno, que mant6m a diversidade dos orga-nismos dentro dos limites de cada esp€cie: o conhecimento dessa"norma" (afirmava profetivamente Purkyne) "descenaria o co-nhecimento oculto da natureza individual".Ir8 O emo da fisiogno-monia foi o de enfrentar a diversidade dos individuos i luz deopini6es preconcebidas e conjeturas apressadas; dessa maneira, foiate

^gor^ impossivel fundar uma fisiognomonia cientifica, descriri"

va. Abandonando o estudo das linhas da mdo i "vd ci€ncia" dosquiromantes, Purkyne concentrou a sua atenCao num dado muitomenos aparente linhas impressas nas pontas dos dedosencontrava a senha oculta da individualidade.

Deixemos a Europa por um momento c passemos I Asia. Adiferenga de seus colegas europeus, e de forma totalmente inde-pendente, os adivinhos chineses c japonescs tamb6m haviam seinteressado pelas linhas pouco aparentes quc sulcam a pele da mdo.

O costume, atestado na China, c sobrctudo em Bengala, de impri

mir nas cartas e documentos uma ponta de dedo borrada de piche

ou tintarre provavelmente tinha por trds uma sdrie de reflex6es

de cariter divinat6rio. Quem esrava habituado a decifrar escritas

174 l / )

Page 19: Sinais Raizes de Um Paradigma

ur:it(n(,sls n()s veios das pedras ou da madeira, nos rastros deir;rrk,s pckrs pdssaros ou nos desenhos impressos nas costas dasr:rnarug:rs'r certamente chegaria sem esforeo a concebet comorrrrrrr cscrita as l inhas impressas por um dedo sujo numa superficie(lrralquer. Em 1860, rir William Herschel, adminisnador-chefe dodislrito de Hooghly em Bengala, notou esse costume di{undidocntre as populaE5es locais, avaliou sua utilidade e pensou emusi-lo para um melhor funcionamento da administraEio britAnica.i()s aspectos te6ricos da questao nao o interessavam; a disserta-qiio latina de Purkyne, que por meio siculo permaneceu comoleta morta, eraJhe totalmente desconhecida.) Na realidade, obser-vou Galton retrospectivamente, sentia-se uma grande necessidadedc um instrumento de identificagdo gfis42 - 14s col6nias britAni-cas, e ndo somente na India: os nativos eram analfabetos, litigio-sos, astutos, mentirosos e, aos olhos de um europeu, todos iguaisentre si. Em 1880, Herschel anunciou em Nature que, depois dedezessete anos de experi€ncias, as impress6es digitais foram intro-duzidas oficialmente no disrito de Hooghly, onde j6 eram usadashavia tr€s anos com 6timos resultados.r':r Os {unciondrios impe'riais tinham-se apropriado do saber indicidrio dos bengaleses eviraram-no contta eles.

Do artigo de Herschel, Galton tirou a inspiraEdo para repen-sar e aprofundar sistematicamente toda a quest6o. O que possibi-litava sua pesquisa era a conflu€ncia de n6s elementos muito di{e-rentes. A descoberta de um cientista puro como Purkyne; o sabercc,ncreto, ligado i prdtica cotidiana das populaqdes bengalesas; asagacidade politica e administrativa de sir William Herschel, fielfunciondrio de Sua Majestade BritAnica. Galton prestou homena-gcm ao primeiro e ao terceiro. Tentou, al6m disso, distinguir

1'cerrliaridades raciais nas impressSes digitais, mas sem sucessoi,lc rlualquer maneira. comprometeu-se a prosseguir as pesquisas.,'l,rt algrrmas uibos indianas, na esperanqa de nelas encontrar(.frir(rcrisl icas "mais pr6ximas is dos macacos" (a more moxkey-Itl 'r p,rtttrn) lrz

Allrrr rlc dar uma contribuigio decisiva i an{lise das impres-..r 'r r irgitars. (ialton, como se disse, vira tamMm suas .implicag6es

prit icas. Em pouquissimo tempo o mitodt-r frt i irrtrotltrztcltr na

lnglaterra, e dali gtadualmente no mundo todo (unr tkrs ti l t inxrs

paises a ceder foi a Franga). Desse modo, cada scr hunrtn() -

observou orgulhosamente Galton, aplicando a si mesmo o cltrgio

ao seu concotrente Bertillon proferido por um funciondrio .ltr

Minist€rio do Interior franc€s - adquiria uma identidadc, trnrl

individualidade sobre a qual poder-se-ia se basear de modo ccrto

e duradouto.l2l

Assim, aquela que, aos olhos dos administradores britdnicos,(ora at€ pouco antes uma multiddo indistinta de "fugas" benga-

lesas (para usar o termo pejorativo de Filarete) tornava-se subita-

mente uma sdrie de individuos assinalados cada qual por um traco

biol6gico especifico. Essa prodigiosa extenseo da noq6o de indivi-

dualidade oconia de fato atravds da relacSo com o Estado e seus

6rg6os buroc6ricos e policiais. At6 o riltimo habitante do mais

miserrivel vilarejo da Asia ou da Europa totnava-se, gragas is im-

press6es digitais, reconhecivel e conttoldvel.

4. Mas o mesmo paradigma indiciririo usado para elaborar

formas de conftole social sempre mais sutis e minuciosas pode se

converter num instrumento para dissolver as ndvoas da ideologia

que, cada vez mais, obscutecem uma estfutura social como a do

capitalismo maduro. Se as pretens5es de conhecimento sistemdtico

mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a iddia

de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrdrio: a exist6ncia tlc

uma profunda conexio que explica os {enOmenos supcrficiais €

reforqada no pr6prio momento em que se afirma quc um conheci

mento direto de tal conexao n6o d possivcl. Sc a realidadc 6 opaca,

existem zonas privilegiadas - sinais, indicios - quc permitem

decifrdJa.

Essa idiia, que constitui o ponlo esscncial do paradigma indi-

cidrio ou semi6tico, penetrou nos mais variirdos imbitos cognosci

tivos, modelando profundamentc as cidncias humanas Minfsculas

particularidades paleogrrificas foram emprcgadas como pistas que

permitiam reconstluir trocas e trans{ormag6es culturais - com

uma expllcita invocagdo a Morelli, que saldava a divida que Man'

176 177

Page 20: Sinais Raizes de Um Paradigma

rrt lr (onrraira junto a Allacci, quase tres siculos antes, A repre.scntd(il() das roupas esvoagantes nos pintores florentinos do s&ulorv. trs ncologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escr6fulaI'ckrs reis da Fraoga e da Inglatera sao apenas alguns ente oscxcrnplos sobre o modo como, esporadicamente, alguns indiciostrinimos eram assumidos como elementos reveladores de fen6me-nos mais gerais: a vis6o de mundo de uma classe social, de umcscritor ou de toda uma sociedade.rt. Uma disciplina como a psica-nilisc constitui-se, como vimos, em torno da hip6tese de que por_rncnores apareDtemente negligeDciiveis pudessem revelar fen6me.n.rs profundos de notdvel alcance. A decad6ncia do pensamentosrstemdtico veio acompanhada pelo destino do pensamento aforis-mdtico - de Nietzsche a Adorno. O pr6prio termo ,,aforismdtico"

i revelador. (E um indicio, um sintoma, um sinal: do paradigmanio se escapa.) Com efeito, Alorismos era o tltulo de uma famosaobra de Hip6crates. No siculo xvrr, comegatam a sair coletdneasde Alorismos politicos.ta A literatura aforismdtica €, por definigio, uma tentativa de formular juizos sobre o homem e a socieda_de a partir de sintomas, de indicios: um homem e uma sociedadeque esteo doentes, erz crise. E tamHm',crise', 6 um termo m6dico, hipocritico.'a Pode-se demonstrar facilmente que o maior ro-mance da nossa dpoca - a Recbercbe - 6 constitu(do segundoum rigoroso paradigma indiciririo.rt

-i. Mas pode um paradigma indici6rio ser rigoroso? A orien-tacao quantitativa e antianFopocenEica das ciencias da naturezar partir de Galileu colocou as ci€ncias humanas num desagradriveltfilema: ou assumir um estatuto cientifico ft gil para chegar a re-sulraclos relevantes, ou assumir um estatuto cientlfico forte paratlrtgar a resultados de pouca relevAncia. 36 a l ingii istica conse-grrirr, no decorrer deste s&ulo, subtrair-se a esse dilema, por issol'rkk) sc como modelo, mais ou menos atingido, tamb6m para, ' r r t r , rs r l isc ip l inas.

trl.rs vcm a divida de que este tipo de rigor € n6o s6 inatin-fr\,1 r).rs rirmbim indesejdvel para as formas de saber mais l igadas,r .\ lx.[cr)(t it ct:t idiana - ou, mais precisamente, a todas as situa-

(ocs em que a unicidade e o cardter insubstituivel dos dados s6o,,ros olhos das pessoas envolvidas, decisivos. Alguim dissc quc orpaixonar-se € a superestimaEio das diferengas marginais quc cxis-rcm entre uma mulher e outra (ou enffe um homem e outro). Masisso tamb6m pode se estender is obras de arte ou aos cavak)s.rrllim situag6es como essasJ o rigor flexivel (se nos for permitirlo o

oximoro) do paradigma indicidrio mostla-s€ ineliminrivel.'l'rata-sc.le formas de saber tendencialmente mad.as - no sentido de quc,

como jd dissemos, suas regras neo se prestam a ser formalizadasnem ditas. Ningu€m aprende o oficio de conhecedor ou de diagnos-ricador limitando-se a p6r em prdtica regras preexistentes. Nessetipo de conhecimeoto entram em jogo (diz-se normalmente) ele-mentos imponderdveis: faro, golpc de vista, intuiE6o.

At€ aqui abstivemo-nos escrupulosamente de empregar essetermo minado. Mas, se se insiste em querer us6-lo, como sin6nimode processos racionais, serd necessdrio distinguir entte uma intui-gAo baixa e uma intuigdo clla.

A antiga fisiognomonia drabe estava baseada na fbasa: nogdocomplexa, que designava em geral a capacidade de passar imediata-mente do conhecido para o desconhecido, na base de ind(cios.r' Otermo, exraido do vocabuldrio dos rafi, era usado para designartanto as intuig6es misticas quanto as formas de discernimento esagacidade, como as atribuidas aos fi lhos do rei de Serendip.rsNessa segunda acepgio, a lirasa ndo 6 senao o 6196o do satrr indi-cidrio.rr!

Essa "intuigio baixa" cstd arraigada nos scnticlos (mcsmo su-perando-os) - e enquanto tal nio tcm nacla a vcr conr l intuigdosupra-sensivel dos vdrios irracionalismos dos sicrrlos xtx c xx. Edifundida no mundo todo, scm linritcs geogrdficos, hist6ricos,itnicos, sexuais ou de classc e cstri, lxrnanto, nruito distantede qualquer forma de conhccincnto supcrior, privildgio de poucoseleitos. E patrim6nio dos lrngalcscs exprtpriados do seu saberpor Jil rVilliam Herschel, dos cag:rdores, dos marinheiros, dasmulheres. Une estreitamenlc o rnimal homem is outras esodciesanimais.

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