sim 87herzog (ii) cinema hipnótico

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OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 8 DE FEVEREIRO DE 2015 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Herzog II: Cinema Hipnótico V ocê já viu algum filme de Werner Herzog? Seja a resposta sim ou não, vamos falar deles nesta Sim? Na noite em que levei Herzog no meu carro ao aeroporto de Belém, co- mo contei na Sim passada, rompendo o silêncio de mais de uma hora enquanto esperamos seu voo de volta para Muni- que, contei a ele a história da mulher alada Caminá e do cego Dias e dos homens escravos na plantação de ur- tigas, que estava acabando de escrever no segundo livro visível de Andara, Os animais da terra. Foi a minha maneira, na linguagem da Arte, de reafirmar o que já havia dito nas minhas críticas de cinema: que não apenas gostava mui- to dos seus filmes, mas, também, me sentia irmanado a ele pela sua absoluta liberação das potências do Imaginário -através encontro entre o olho humano e o olho mecânico da câmera de filmar - como meio de desvelar as várias reali- dades visíveis que nos cercam ocultan- do o invisível Real das coisas de nós. Sabe-se que Herzog hipnotizou os atores do seu filme Coração de Cristal , para que atuassem como em sonhos – o que intensificou indescritivelmen- te a atmosfera onírica do filme. Foi com essa fronte hipnótica, de intenso poder concentrado e emitido pelo seus olhos, que me defrontei durante o bem prolongado abraço de despedida, en- quanto o chamavam para embarcar: um abraço que selou uma cúmplice amizade entre nós, confirmada na sua segunda vinda à Amazônia. É desse olho hipnótico de Herzog Ser é perceber. Ser é ser percebido. BERKELEY dos filmes, graças ao encontro fortuito do olho mecânico da câmera de filmar com o interrogador olho humano pos- to diante da Vida. O cinema de Herzog realiza plenamente, como o de raros ou- tros cineastas – Tarkovski, por exemplo - o diálogo entre o espectador e o filme nos termos com que - uma centena de anos antes da invenção do Cinema pe- los irmãos Lumiére, em 1895 - o filósofo Berkeley definiu o que para ele seria a essência da existência: - Ser é perceber. Ser é ser percebido. Sou o que são meus filmes Mas, ah, com palavras não há como dizer essa alquimia de imagens & sons que são os filmes de Werner Herzog. Resta, como consolo, apenas tentar resumidamente transmitir, àqueles que ainda não conhecem seu cinema ou só um pouco, visões sumárias de alguns de seus filmes mais significativos desejan- do que um dia consigam vê-los todos. O que tento aqui – mas falando so- mente daqueles que mais me marcaram, entre os que vi. Sinais de Vida: Contrariamente à loucura da guerra, revela a loucura da paz que atinge soldados isolados numa ilha da Grécia durante uma longa pau- sa nos combates - paz que explode em uma chuva de fogos de artifícios lança- dos contra os céus. Os Anões Também Começaram Pequenos: Já no título a ameaça de ca- os se anuncia, num filme sobre anões revoltados em uma colônia penal em que a câmera jamais se ergue à estatu- ra de um homem comum. Fata Morgana: Pura alucinação visu- al engendrada com a cumplicidade - e não apenas sobre elas - das miragens dos desertos. País do Silêncio e da Escuridão: So- mos levados a conviver, por duas ho- ras, com o mundo silencioso e escuro de surdos, mudos e cegos – o estilo do- cumental aprofunda o sentimento de participar de uma abissal experiência ontológica. Aguirre, a Cólera de Deus: Primei- ro filme de Herzog feito na Amazônia – febril e contaminado pelos mesmos delírios que enlouqueceram os coloni- zadores europeus que penetraram na grande floresta atraídos pelo mito do El Dorado. O Grande Êxtase do Escultor Stei- ner: Através de imagens deslumbran- tes, os mergulhos sobre a neve de um esquiador que sonha um dia realmente poder voar. O Enigma de Gaspar Hauser: Uma parábola fulgurantes - com o título ori- ginal Cada um por si e Deus contra to- dos/ Jeder für sich und Gott gegen alle, uma visão da Inocência crucificada por um mundo corrompido e cruel. Woyzek: Convite a uma temporada no limiar da loucura - perturbador e alucinado como a peça de teatro escrita pelo belo e secreto dramaturgo Georg Buchner em que o filme se inspirou. Coração de Cristal: Atores hipnoti- zados por Herzog interpretam homens que buscam o segredo da pedra rubi. Quem sabe essas visões sumárias do Cinema de Herzog, se não conse- guirem esboçar o que são seus filmes, pelo menos transmitam a você um es- boço do Homem que ele é. Percebendo os dois, é impossível não comprovar a verdade da sua afirmação, quando ele diz: - Sou o que são meus filmes. que cumpre falar, vendo como ele se manifesta em seus filmes. Permanente- mente , da primeira à última imagem, di- latando imensamente aquele momento mágico que Buñuel dizia haver, às vezes só por alguns segundos, mesmo no pior Aguirre, a Cólera de Deus

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Retrato do homem enquanto Artista

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Page 1: Sim 87Herzog (II) Cinema Hipnótico

O LIBERALBELÉM, DOMINGO, 8 DE FEVEREIRO DE 2015 MAGAZINE 11

sim [email protected] CECIM

Herzog II: Cinema Hipnótico

Você já viu algum filme de Werner Herzog?Seja a resposta sim ou não, vamos falar deles nesta Sim?

Na noite em que levei Herzog no meu carro ao aeroporto de Belém, co-mo contei na Sim passada, rompendo o silêncio de mais de uma hora enquanto esperamos seu voo de volta para Muni-que, contei a ele a história da mulher alada Caminá e do cego Dias e dos homens escravos na plantação de ur-tigas, que estava acabando de escrever no segundo livro visível de Andara, Os animais da terra. Foi a minha maneira, na linguagem da Arte, de reafirmar o que já havia dito nas minhas críticas de cinema: que não apenas gostava mui-to dos seus filmes, mas, também, me sentia irmanado a ele pela sua absoluta liberação das potências do Imaginário -através encontro entre o olho humano e o olho mecânico da câmera de filmar - como meio de desvelar as várias reali-dades visíveis que nos cercam ocultan-do o invisível Real das coisas de nós.

Sabe-se que Herzog hipnotizou os atores do seu filme Coração de Cristal, para que atuassem como em sonhos – o que intensificou indescritivelmen-te a atmosfera onírica do filme. Foi com essa fronte hipnótica, de intenso poder concentrado e emitido pelo seus olhos, que me defrontei durante o bem prolongado abraço de despedida, en-quanto o chamavam para embarcar: um abraço que selou uma cúmplice amizade entre nós, confirmada na sua segunda vinda à Amazônia.

É desse olho hipnótico de Herzog

Ser é perceber.Ser é ser percebido.BERKELEY

dos filmes, graças ao encontro fortuito do olho mecânico da câmera de filmar com o interrogador olho humano pos-to diante da Vida. O cinema de Herzog realiza plenamente, como o de raros ou-tros cineastas – Tarkovski, por exemplo - o diálogo entre o espectador e o filme nos termos com que - uma centena de anos antes da invenção do Cinema pe-los irmãos Lumiére, em 1895 - o filósofo Berkeley definiu o que para ele seria a essência da existência: - Ser é perceber. Ser é ser percebido.

Sou o que são meus filmes

Mas, ah, com palavras não há como dizer essa alquimia de imagens & sons que são os filmes de Werner Herzog.

Resta, como consolo, apenas tentar resumidamente transmitir, àqueles que ainda não conhecem seu cinema ou só um pouco, visões sumárias de alguns de seus filmes mais significativos desejan-do que um dia consigam vê-los todos.

O que tento aqui – mas falando so-mente daqueles que mais me marcaram, entre os que vi.

Sinais de Vida: Contrariamente à loucura da guerra, revela a loucura da paz que atinge soldados isolados numa ilha da Grécia durante uma longa pau-sa nos combates - paz que explode em uma chuva de fogos de artifícios lança-dos contra os céus.

Os Anões Também Começaram Pequenos: Já no título a ameaça de ca-os se anuncia, num filme sobre anões revoltados em uma colônia penal em que a câmera jamais se ergue à estatu-ra de um homem comum.

Fata Morgana: Pura alucinação visu-al engendrada com a cumplicidade - e não apenas sobre elas - das miragens dos desertos.

País do Silêncio e da Escuridão: So-mos levados a conviver, por duas ho-ras, com o mundo silencioso e escuro de surdos, mudos e cegos – o estilo do-cumental aprofunda o sentimento de participar de uma abissal experiência ontológica.

Aguirre, a Cólera de Deus: Primei-ro filme de Herzog feito na Amazônia – febril e contaminado pelos mesmos delírios que enlouqueceram os coloni-zadores europeus que penetraram na grande floresta atraídos pelo mito do El Dorado.

O Grande Êxtase do Escultor Stei-ner: Através de imagens deslumbran-tes, os mergulhos sobre a neve de um esquiador que sonha um dia realmente poder voar.

O Enigma de Gaspar Hauser: Uma parábola fulgurantes - com o título ori-ginal Cada um por si e Deus contra to-dos/Jeder für sich und Gott gegen alle, uma visão da Inocência crucificada por um mundo corrompido e cruel.

Woyzek: Convite a uma temporada no limiar da loucura - perturbador e alucinado como a peça de teatro escrita pelo belo e secreto dramaturgo Georg Buchner em que o filme se inspirou.

Coração de Cristal: Atores hipnoti-zados por Herzog interpretam homens que buscam o segredo da pedra rubi.

Quem sabe essas visões sumárias do Cinema de Herzog, se não conse-guirem esboçar o que são seus filmes, pelo menos transmitam a você um es-boço do Homem que ele é. Percebendo os dois, é impossível não comprovar a verdade da sua afirmação, quando ele diz: - Sou o que são meus filmes.

que cumpre falar, vendo como ele se manifesta em seus filmes. Permanente-mente, da primeira à última imagem, di-

latando imensamente aquele momento mágico que Buñuel dizia haver, às vezes só por alguns segundos, mesmo no pior

Aguirre, a Cólera de Deus