silviano santiago machado e rosa, nossos contemporâneos · 1o letras josÉ eduardo agualusa...

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J jornaldeletras.pt * 21 de junho a 4 de julho de 2017 1o * letras JOSÉ EDUARDO AGUALUSA Silviano Santiago Machado e Rosa, nossos contemporâneos Silviano Santiago “A ideia de sobrevivência não é exclusiva dos géneros criativos” alto funcionário da República, mestre literário de todos, ele vive solitariamente. A epilepsia – tabu naqueles anos − acentua-se e desespera. O escritor abandona os farmacêuticos de plantão e procura o máedico Miguel Couto, que cuida das suas sucessivas crises epilépti- cas. Eis o quadro inicial esboçado. Pensava um romance/biografia que desse conta dessa vida vivida em toda intensidade e a exalar a última chama no romance Memorial de Aires, publicado no ano da mor- te. Decidi: era preciso enfrentar a “costura enigmática entre obra e autor” (Michel Foucault). Graças à associação das hipóteses de vida aos documentos levantados é que escre- veria um romance híbrido, misto de biografia, ensaio e ficção. O Rio de Janeiro daqueles anos, em profunda renovação urbanística, é também objeto de investigação e de relato fundamental no livro. Porque lhe interessou a cidade? O grande escritor passa os últimos anos na cidade em que nasceu e se desfigura pela modernização apres- sada. Os velhos sobrados são deita- dos abaixo e abre-se, em linha reta, a Avenida Central, hoje Rio Branco. Machado escreve em carta a amigo - ”morro no exílio”. Nos sobrados viviam ex-escravos e imigrantes pobres europeus. O “bota-abaixo” leva-os a criar as favelas no alto dos morros. Alteia-se também uma reflexão sobre as relações entre arte e doença. Valho-me da formulação de André Breton – “a beleza será convulsiva, ou não será”. A epilepsia não é mero ornamento médico. Encaminha a discussão sobre a for- ma ficcional adotada por Machado nos melhores romances. A forma do romance machadiano é comparada a uma folha de sismógrafo. Vai-e- vem, saltos, digressões, etc. Uma das ousadias narrativas do seu fascinante livro é o cruzamento/ convergência que faz da "biografia" do "protagonista" Machado com a "autoficção" do "personagem" Silviano... Faltava o narrador. O acaso mo deu. Machado morre no dia em que nasço: 29 de setembro. No papel em branco, de um lado, as lágrimas sentidas e sofridas pelo protagonis- ta; no outro, as polcas imaginárias, forjadas pelo narrador Silviano. Somos companheiros na caminha- da do romance, bras dessous, bras dessus. Há uma densa e estranha cronologia a compor o desenrolar do romance. Publicado o romance sobre o enorme Machado, como lhe surgiu a Genealogia da Ferocidade, sobre um livro também enorme, Grande sertão: veredas? Foi a necessidade de fazer uma crítica da crítica sobre o livro e uma nova proposta de leitura? A ideia de sobrevivência não é ex- clusiva dos géneros criativos. É tam- bém alavancadora da reflexão. Ao terminar Machado, dei-me conta de que escrevia os ensaios literários segundo o padrão da minha forma- ção universitária. Caiu-me como uma bomba um fato extraordiná- rio: tinha lido o inigualável Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no ano em que foi publicado, 1956. Portanto, antes de me matricular na Faculdade de Letras ,em 1957. Tinha uma leitura do romance um tanto ingénua, mas forte e poderosa. Fui lê-lo posteiormente com a ajuda da crítica alheia, pós-Faculdade. Vali-me do melhor na bibliografia roseana. A descontinuidade entre a leitura anterior, ingénua, e a posterior, com visão armada, me espicaçava. Algo de óbvio se deu a ver de repente: a dificuldade que o leitor sente ao entrar no ema- ranhado anárquico – linguístico, sintático, narrativo – do romance de Rosa tinha sido “facilitada” por comparação com outra grande obra da literatura brasileira, Os sertões, de Euclides da Cunha. Líamos Grande sertão pelo viés equivocado da história social do Brasil. E não como a originalíssima alegoria que é. Sem dúvida, a entrada do leitor no universo anárquico – e sem data alguma − de Grande sertão fora facilitada... Com que consequências? Ao facilitá-la, desvirtuava-se a letra roseana. Um único e definitivo exemplo. O sertão árido de Canudos nada tem a ver com o enclave aquo- so e fértil que se situa no Alto do Rio São Francisco. Resultado: Grande sertão: veredas fora sendo “domesti- cado” pela melhor crítica nacio- nal. Paradoxo? Ou novo caminho teórico a seguir? Parecia urgente surpreender o “selvagem” e “ani- mal” que nele convivem. Desenhar a genealogia da ferocidade, que não era apenas algo de profundo da prosa alegórica, mas também das populações marginalizadas pela construção de Brasília. Não o líamos pelo que era. Era um enclave no Alto do São Francisco, onde dominavam duas forças maiores. A ferocida- de que unia o grupo de jagunços. A irascibilidade que movia todos aqueles que queriam controlá-los. Desenhava-se uma noção de políti- ca, típica de enclaves, ontem e hoje. Portanto, a sua leitura... A leitura que proponho alinha Grande Sertão ao Machado de Assis que observa a capital federal a criar favelas nos morros. Os dois grandes romancistas substantivam o enclave feroz e irascível resultante de todo movimento desenvolvi- mentista que não leva em conside- ração os valores humanos e sociais. Grande sertão torna-se a alegoria mais radical em literatura brasi- leira a dar conta dos desmandos da modernização - nada contra a modernização em si, claro, mas contra o modo como é feita. Explica tanto enclaves como a favela cario- ca, ou como as prisões espalhadas nas grandes metrópoles brasileiras, onde a lei é ditada pelo confronto entre a ferocidade do excluído e a irascibilidade da polícia. Esse é o valor bem especial de obras que se distanciam politicamente da atua- lidade tal como apresentada pelo documentário, a fim de represen- tarem o contemporâneo (Giorgio Agamben). São válidas a qualquer hora em que são lidas. Machado e Rosa são nossos contemporâneos.J Silviano Santiago é um dos nomes destacados da literatura brasilei- ra atual. Em diversos domínios, entre os quais se destaca o ensaio e a ficção. Basta lembrar que três vezes foi atribuído a livros seus o importante Prémio Jabuti, e que pelo conjunto da obra recebeu, em 2013, o Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Mais, além do José Donoso, do Chile, em 2015 venceu o Prémio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa, instituído no Brasil mas para escritores de todo o mundo lusófono, com o romance Mil Rosas Roubadas; e depois dele publicou quase de rajada os dois livros sobre os quais o JL o ouviu. Prof. com um rico percurso universitário, que en- sinou em prestigiadas universidades de vários países e foi foi catedrático da PUC do Rio de Janeiro - e que é também poeta, tradutor, etc., Silviano Santiago, 80 anos, esteve agora em Lisboa para falar, na Feira do Livro, no dia 15, exatamente na 'qualidade' de vencedor do Prémio Oceanos. Mas ainda antes de chegar a Lisboa respondeu, por escrito, a questões que lhe foram postas, para o JL, pela sua colega e amiga Maria Fernanda de Abreu, profª (jubilada) de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas da FCSH da Un. Nova de Lisboa e, designadamente, membro correspondente da Real Academia Espanhola Jornal de Letras: Em três meses publicou dois livros sobre dois dos maiores escritores brasileiros e de língua portuguesa: Machado, um romance sobre Machado de Assis, claro (Companhia das Letras, dezembro de 2016) e Genealogia da Ferocidade, um ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (CEPE, março de 2017). Como lhe surgiu a ideia dos dois livros? Silviano Santiago: Estava à beira dos 80 anos e aposentado. Fazia- se urgente escrever literatura. Dar sentido à condição de professor e escritor com mais tempo disponí- vel. Por que não me aventurar pelos dois maiores prosadores da nossa literatura no século XX? Machado de Assis e Guimarães Rosa. Opostos em tudo e complementares na formação de todo jovem escritor. Tomei o impulso corajoso em livros que publicara: De cócoras, novela escrita em dívida com o Ivan Ilitcvh, de Tolstoi, e Cheiro forte, coleção de poemas escritos por um corpo que exala o perfume e o fedor da morte anunciada. Sempre fui leitor de Machado e Rosa e tinha recordações profundas de leitura, anotações em cadernos, pequenos ensaios e notas a flutuarem em arquivo talvez mais imaginário que real. A inevitabi- lidade do countdown em matéria de vida e arte me levava a um novo género no romance, o romance da sobrevivência. Em Werther, Goethe deu-nos de presente os princípios do “romance de formação”. Para retomar título-chave e posterior de Gustave Flaubert, a vida sentimental do jovem é dramatizada sob a forma de Retrato do artista quando jovem (James Joyce). Perguntei-me então: por que não escrever o “Retrato do artista quando velho”? Por que não enfrentar a vida sentimental do es- critor pelos frutos que, por estarem muito maduros e já apodrecendo, caem do galho da árvore e se espati- fam no chão? Para tratar a personagem de Machado de Assis, recorreu a uma documentação vastíssima sobre a epilepsia, o seu diagnóstico, sinais, tratamentos ao longo dos séculos e a sua representação artística: em tratados de medicina, em textos literários e na história de arte. Recorreu até a episódios da Biblia e suas representações iconográficas. Porquê? Um dos períodos menos conhecidos da vida e obra de Machado inicia-se com a morte da esposa Carolina, em 1904. No auge da fama, presidente da Academia Brasileira de Letras, Ensaísta, ficcionista e muito mais, já lhe foram atribuídos os principais prémios brasileiros, nesses dois domínios. Aos 80 anos, publicou agora, em três meses, dois importantes livros, um romance sobre o autor de Dom Casmurro e um ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, dos quais aqui nos fala , respondendo a perguntas de Maria Fernanda de Abreu

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Jjornaldeletras.pt * 21 de junho a 4 de julho de 20171o * letras JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

Silviano SantiagoMachado e Rosa, nossos contemporâneos

Silviano Santiago “A ideia de sobrevivência não é exclusiva dos géneros criativos”

alto funcionário da República, mestre literário de todos, ele vive solitariamente. A epilepsia – tabu naqueles anos − acentua-se e desespera. O escritor abandona os farmacêuticos de plantão e procura o máedico Miguel Couto, que cuida das suas sucessivas crises epilépti-cas. Eis o quadro inicial esboçado. Pensava um romance/biografia que desse conta dessa vida vivida em toda intensidade e a exalar a última chama no romance Memorial de Aires, publicado no ano da mor-te. Decidi: era preciso enfrentar a “costura enigmática entre obra e autor” (Michel Foucault). Graças à associação das hipóteses de vida aos documentos levantados é que escre-veria um romance híbrido, misto de biografia, ensaio e ficção.

O Rio de Janeiro daqueles anos, em profunda renovação urbanística, é também objeto de investigação e de relato fundamental no livro. Porque lhe interessou a cidade?O grande escritor passa os últimos anos na cidade em que nasceu e se desfigura pela modernização apres-sada. Os velhos sobrados são deita-dos abaixo e abre-se, em linha reta, a Avenida Central, hoje Rio Branco. Machado escreve em carta a amigo - ”morro no exílio”. Nos sobrados viviam ex-escravos e imigrantes pobres europeus. O “bota-abaixo” leva-os a criar as favelas no alto dos morros. Alteia-se também uma reflexão sobre as relações entre arte e doença. Valho-me da formulação de André Breton – “a beleza será convulsiva, ou não será”. A epilepsia

não é mero ornamento médico. Encaminha a discussão sobre a for-ma ficcional adotada por Machado nos melhores romances. A forma do romance machadiano é comparada a uma folha de sismógrafo. Vai-e-vem, saltos, digressões, etc.

Uma das ousadias narrativas do seu fascinante livro é o cruzamento/convergência que faz da "biografia" do "protagonista" Machado com a "autoficção" do "personagem" Silviano...Faltava o narrador. O acaso mo deu. Machado morre no dia em que nasço: 29 de setembro. No papel em branco, de um lado, as lágrimas sentidas e sofridas pelo protagonis-ta; no outro, as polcas imaginárias, forjadas pelo narrador Silviano. Somos companheiros na caminha-da do romance, bras dessous, bras dessus. Há uma densa e estranha cronologia a compor o desenrolar do romance.

Publicado o romance sobre o enorme Machado, como lhe surgiu a Genealogia da Ferocidade, sobre um livro também enorme, Grande sertão: veredas? Foi a necessidade de fazer uma crítica da crítica sobre o livro e uma nova proposta de leitura?A ideia de sobrevivência não é ex-clusiva dos géneros criativos. É tam-bém alavancadora da reflexão. Ao terminar Machado, dei-me conta de que escrevia os ensaios literários segundo o padrão da minha forma-ção universitária. Caiu-me como uma bomba um fato extraordiná-rio: tinha lido o inigualável Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no ano em que foi publicado, 1956. Portanto, antes de me matricular na Faculdade de Letras ,em 1957. Tinha uma leitura do romance um tanto ingénua, mas forte e poderosa. Fui lê-lo posteiormente com a ajuda da crítica alheia, pós-Faculdade. Vali-me do melhor na bibliografia roseana. A descontinuidade entre a leitura anterior, ingénua, e a posterior, com visão armada, me espicaçava. Algo de óbvio se deu a ver de repente: a dificuldade que o leitor sente ao entrar no ema-ranhado anárquico – linguístico, sintático, narrativo – do romance de Rosa tinha sido “facilitada” por comparação com outra grande obra da literatura brasileira, Os sertões, de Euclides da Cunha. Líamos

Grande sertão pelo viés equivocado da história social do Brasil. E não como a originalíssima alegoria que é. Sem dúvida, a entrada do leitor no universo anárquico – e sem data alguma − de Grande sertão fora facilitada...

Com que consequências? Ao facilitá-la, desvirtuava-se a letra roseana. Um único e definitivo exemplo. O sertão árido de Canudos nada tem a ver com o enclave aquo-so e fértil que se situa no Alto do Rio São Francisco. Resultado: Grande sertão: veredas fora sendo “domesti-cado” pela melhor crítica nacio-nal. Paradoxo? Ou novo caminho teórico a seguir? Parecia urgente surpreender o “selvagem” e “ani-mal” que nele convivem. Desenhar a genealogia da ferocidade, que não era apenas algo de profundo da prosa alegórica, mas também das populações marginalizadas pela construção de Brasília. Não o líamos pelo que era. Era um enclave no Alto do São Francisco, onde dominavam duas forças maiores. A ferocida-de que unia o grupo de jagunços. A irascibilidade que movia todos aqueles que queriam controlá-los. Desenhava-se uma noção de políti-ca, típica de enclaves, ontem e hoje.

Portanto, a sua leitura...A leitura que proponho alinha Grande Sertão ao Machado de Assis que observa a capital federal a criar favelas nos morros. Os dois grandes romancistas substantivam o enclave feroz e irascível resultante de todo movimento desenvolvi-mentista que não leva em conside-ração os valores humanos e sociais. Grande sertão torna-se a alegoria mais radical em literatura brasi-leira a dar conta dos desmandos da modernização - nada contra a modernização em si, claro, mas contra o modo como é feita. Explica tanto enclaves como a favela cario-ca, ou como as prisões espalhadas nas grandes metrópoles brasileiras, onde a lei é ditada pelo confronto entre a ferocidade do excluído e a irascibilidade da polícia. Esse é o valor bem especial de obras que se distanciam politicamente da atua-lidade tal como apresentada pelo documentário, a fim de represen-tarem o contemporâneo (Giorgio Agamben). São válidas a qualquer hora em que são lidas. Machado e Rosa são nossos contemporâneos.J

Silviano Santiago é um dos nomes destacados da literatura brasilei-ra atual. Em diversos domínios, entre os quais se destaca o ensaio e a ficção. Basta lembrar que três vezes foi atribuído a livros seus o importante Prémio Jabuti, e que pelo conjunto da obra recebeu, em 2013, o Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Mais, além do José Donoso, do Chile, em 2015 venceu o Prémio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa, instituído no Brasil mas para escritores de todo o mundo lusófono, com o romance Mil Rosas Roubadas; e depois dele publicou quase de rajada os dois livros sobre os quais o JL o ouviu. Prof. com um rico percurso universitário, que en-sinou em prestigiadas universidades de vários países e foi foi catedrático da PUC do Rio de Janeiro - e que é também poeta, tradutor, etc., Silviano Santiago, 80 anos, esteve agora em Lisboa para falar, na Feira do Livro, no dia 15, exatamente na 'qualidade' de vencedor do Prémio Oceanos. Mas ainda antes de chegar a Lisboa respondeu, por escrito, a questões que lhe foram postas, para o JL, pela sua colega e amiga Maria Fernanda de Abreu, profª (jubilada) de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas da FCSH da Un. Nova de Lisboa e, designadamente, membro correspondente da Real Academia Espanhola

Jornal de Letras: Em três meses publicou dois livros sobre dois dos maiores escritores brasileiros e de língua portuguesa: Machado, um romance sobre Machado de Assis, claro (Companhia das Letras, dezembro de 2016) e Genealogia da Ferocidade, um ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (CEPE, março de 2017). Como lhe surgiu a ideia dos dois livros?Silviano Santiago: Estava à beira dos 80 anos e aposentado. Fazia-se urgente escrever literatura. Dar sentido à condição de professor e escritor com mais tempo disponí-vel. Por que não me aventurar pelos dois maiores prosadores da nossa literatura no século XX? Machado de Assis e Guimarães Rosa. Opostos em tudo e complementares na formação de todo jovem escritor.Tomei o impulso corajoso em livros que publicara: De cócoras, novela escrita em dívida com o Ivan Ilitcvh, de Tolstoi, e Cheiro forte, coleção de

poemas escritos por um corpo que exala o perfume e o fedor da morte anunciada. Sempre fui leitor de Machado e Rosa e tinha recordações profundas de leitura, anotações em cadernos, pequenos ensaios e notas a flutuarem em arquivo talvez mais imaginário que real. A inevitabi-lidade do countdown em matéria de vida e arte me levava a um novo género no romance, o romance da sobrevivência. Em Werther, Goethe deu-nos de presente os princípios do “romance de formação”. Para retomar título-chave e posterior de Gustave Flaubert, a vida sentimental do jovem é dramatizada sob a forma de Retrato do artista quando jovem (James Joyce). Perguntei-me então: por que não escrever o “Retrato do artista quando velho”? Por que não enfrentar a vida sentimental do es-critor pelos frutos que, por estarem muito maduros e já apodrecendo, caem do galho da árvore e se espati-fam no chão?

Para tratar a personagem de Machado de Assis, recorreu a uma documentação vastíssima sobre a epilepsia, o seu diagnóstico, sinais, tratamentos ao longo dos séculos e a sua representação artística: em tratados de medicina, em textos literários e na história de arte. Recorreu até a episódios da Biblia e suas representações iconográficas. Porquê?Um dos períodos menos conhecidos da vida e obra de Machado inicia-se com a morte da esposa Carolina, em 1904. No auge da fama, presidente da Academia Brasileira de Letras,

Ensaísta, ficcionista e muito mais, já lhe foram atribuídos os principais prémios brasileiros, nesses dois domínios. Aos 80 anos, publicou agora, em três meses, dois importantes livros, um romance sobre o autor de Dom Casmurro e um ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, dos quais aqui nos fala , respondendo a perguntas de Maria Fernanda de Abreu