silva. diresdfsdfitos fundamentais na doutrina de john rawls dissertação 2007

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    ..

    HUDSON M RCELO D SILV

    OS IREITOS FUN MENT IS N OUTRIN E JOHN R WLS

    Dissertao de Mestrado apresentada

    Departamento de Filosofia do Instituto

    Filosofia e Cincias Humanas

    Universidade Estadual de Campinas sob

    orientao do Prof. Dr. Joo C. K. Quart

    de Moraes.

    te exemplar

    dao final

    fendida e

    corresponde

    da Dissertao

    aprovada pela

    Julgadora em

    /

    7:

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    of. Dr. Joo C. K. Quartim de Moraes

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    of. Dr. Luiz Paulo Rouanet

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA

    BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Silva, Hudson Marcelo

    Si3~d

    5i f i

    Os direitos fundamentais na doutrina de John Rawls /

    Hudson Marcelo Silva. - - Campinas, SP: [s.n.], 2007.

    Orientador: Joo C. K. Quartim de Moraes.

    Dissertao mestrado -Universidade Estadual de Campin

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Rawls, John, 1921-2002. 2. Direitos humanos. 3. Iguald

    4. Liberdade. 5. Justia social. 6. Liberalismo. I. Moraes, Joo

    Carlos Kfouri Quartim de, 1941-. 11.Universidade Estadu

    de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    111.Ttulo.

    Palavras-chave em ingls Keywords :

    Rawls, John, 1921-2002

    Human rights

    Equality

    Liberty

    Social justice

    Liberalism

    rea de concentrao: Filosofia

    Titulao: Mestre em Filosofia

    Banca examinadora: Joo C. K. Quartim de Moraes orientador

    Luiz Paulo Rouanet

    Alcino Eduardo Bonella

    Data da defesa: 16/02/2007

    Programa de Ps-Graduao:

    Filosofia

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    RESUMO

    A questo dos direitos fundamentais ocupa um lugar de destaque na obra de John

    Rawls. O filsofo estadunidense empreendeu grande esforo para explicar as

    liberdades fundamentais e sua prioridade por entender que as doutrinas

    tradicionais, especialmente o utilitarismo, no so capazes de assegurar os

    direitos fundamentais aos cidados vistos como pessoas livres e iguais. Segundo

    o autor, os direitos fundamentais devem ser garantidos a todos os cidados

    indistintamente, pois so vistos como bens necessrios para o desenvolvimento

    das duas capacidades morais da pessoa, quais sejam: a de ter uma concepo de

    bem e um senso de justia. Apesar de Rawls conferir prioridade aos direitos

    fundamentais, ele aceita que tais direitos podem sofrer restries. Tais restries

    sero aceitas quando surgirem conflitos entre as diversas liberdades, com o

    objetivo de proteger o sistema global de liberdades. Sero tambm aceitas quando

    forem necessrias para promover as mudanas sociais necessrias para que

    todos os cidados possam efetivamente gozar das liberdades. Aps revisar sua

    teoria, Rawls passou a defender explicitamente a necessidade de garantir aos

    indivduos as condies materiais bsicas necessrias para o efetivo exerccio dos

    direitos fundamentais. Este estudo pretende analisar a questo da prioridade das

    liberdades fundamentais e tambm a sua relao com a questo da soberania

    popular.

    Palavras-chave: Rawls, John, 1921-2002; Direitos humanos; Igualdade;

    Liberdade; Justia social; Liberalismo.

    iii

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    ABSTRACT

    The question of the basic rights occupies a place of prominence in the

    workmanship of John Rawls. The american philosopher undertook great effort to

    explain the basic freedoms and its priority for understanding that the traditional

    doctrines, especially the Utilitarianism, arent capable to assure the basic rights

    to the seen citizens as free and equal persons. According to author, the basic

    rights must indistinctly be guaranteed to all the citizens, therefore they are seen

    as necessary goods for the development of the two moral capacities of the

    person, which are: a capacity for a sense of justice and a capacity for a

    conception of the good. Although Rawls to confer priority to the basic rights, he

    accepted it that such rights can suffer restrictions. Such restrictions will be

    accepted when to appear conflicts between the diverse freedoms, with the

    objective to protect the global system of freedoms. They will be also accepted

    when they will be necessary to promote social changes necessaries so that all

    the citizens can effectively enjoy of the freedoms. After to revise his theory,

    Rawls started to defend explicit the necessity to guarantee to the individuals the

    necessary basic material conditions for the effective basic right of action. This

    study intends to also analyze the question of the priority of the basic freedoms

    and its relation with the question of the popular sovereignty.

    Keywords: Rawls, John, 1921-2002; Human rights ; Equality; Liberty; Social

    just ice; L iberalism.

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    SUMRIO

    TRODUO

    IDIAS FUNDAMENTAIS

    Concepo poltica de justia

    Conceito e concepo de justia

    2 A concepo de justia como equidade

    ociedade como um sistema eqitativo de cooperao social

    2 Caractersticas da sociedade

    2 2 Elementos da concepo da sociedade

    A sociedade bem ordenada

    Umaconcepo normativa de cidado

    4 Cidados livres e iguais

    4 2 As duas capacidades da pessoa moral

    4 3 A questo da autonomia dos cidados

    OS PRINCPIOS DE JUSTIA E AS LIBERDADES E DIREIT

    UNDAMENTAIS

    Os princpios de justia

    Aespecificao das liberdades e direitos bsicos

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    111A PRIORIDADE DAS LIBERDADES E DIREITOS FUNDAMENTAIS

    1 Intrito

    2 A questo da prioridade e sua definio

    3 Os princpios de justia e as regras de prioridade

    4 Condies mnimas e o princpio que assegura as condies mater

    bsicas

    5 Limitao das liberdades fundamentais

    6 A fundamentao da prioridade das Iiberdades

    7 A crtica de Habermas

    7 1 A resposta de Rawls

    8 Um breve dilogo com Hegel ~

    O LUS O

    BIBLIOG RAFIA

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    INTRODUO

    Notoriamente a obra do filsofo estadunidense John Rawls impulsionou o

    debate intelectual especialmente no campo da filosofia poltica. Este trabalho

    pretende analisar o que consideramos a idia central de sua obra, qual seja, a

    questo das liberdades e direitos fundamentais e sua prioridade. O estudo parte

    de sua primeira e grande obra Uma Teoria da Justia, percorre os seus escritos

    posteriores at chegar ao ltimo escrito que trata especificamente da questo,

    qual seja, a oitava conferncia de seu Liberalismo Poltico. O estabelecimento da

    prioridade da liberdade sobre o princpio que trata das desigualdades econmicas

    e sociais fez render Rawls incisivas crticas. De Herbert Hart, passando pela

    crtica de Habermas, at os autores marxistas norte-americanos. Qual a

    justificativa empregada por Rawls para conferir prioridade s liberdades e direitos

    fundamentais? Em quais situaes a sua teoria permitiria uma restrio s

    liberdades? Nos termos da teoria proposta, todos os cidados teriam as suas

    liberdades garantidas? E todos efetivamente poderiam exerc-las? Diante de

    situaes sociais e econmicas desfavorveis, a teoria da justia como eqidade

    apontaria uma soluo ou caminho para a defesa das referidas liberdades? Qual

    foi o tratamento dado pelo autor relao entre liberdade e igualdade e entre a

    primeira e o princpio da soberania popular? Enfim, pretendemos percorrer a teoria

    formulada por Rawls e encontrar algumas respostas essas importantes

    questes.

    1

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    I. IDIAS FUNDAMENTAIS

    1. Concepo poltica de justia

    Entre os objetivos de John Rawls, destacamos o de buscar um consenso

    sobre questes que envolvam, especialmente, as reivindicaes de igualdade e

    liberdade. O autor ressalta, sobretudo no campo terico, os conflitos existentes

    entre as mais variadas doutrinas filosficas que so, em muitos casos,

    irreconciliveis. A abordagem do autor est, especialmente, circunscrita ao debate

    travado precisamente nos pases de lngua inglesa e, portanto, delimitada pela

    tradio liberal. Para ns, apesar de Rawls dialogar com grandes pensadores da

    histria da filosofia, entre os quais Hegel e Marx e trazer para sua obra temas

    tratados por esses pensadores, permanece fiel tradio liberal. Neste cenrio,

    segundo o autor, grandes so as controvrsias, por exemplo, que surgem do

    debate entre os que defendem a liberdade dos modernos, orientada pela

    herana filosfica deixada por John Locke e Benjamin Constant, e os que

    defendem a liberdade dos antigos, tradio herdada de Jean Jacques Rousseau.

    Para enfrentar essas questes ofereceu uma alternativa s doutrinas abrangentes

    mais tradicionais, entre as quais o utilitarismo que domina os pases de lngua

    inglesa, modelada pelos princpios gerais da teoria poltica liberal. Acredita

    fielmente que o seu Liberalismo Poltico capaz de dar respostas, apontar

    caminhos ou solues aos problemas concretos verificados nas atuais

    democracias liberais. No campo da teoria democrtica, pouco acrescenta e se

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    mantm fiel democracia de matiz liberal sustentando, destarte, a tese da

    soberania limitada.

    Enfim, inmeras foram as questes que Ralws se props a resolver. Todas,

    sem exceo, foram objetos da reflexo filosfica. Diante de tantos conflitos e

    aparentes impasses, Rawls pergunta a si mesmo se existe uma maneira de se

    chegar a um entendimento ou acordo sobre essas questes. Imagina ser possvel

    conceber uma sociedade em que possam coexistir todas as doutrinas

    abrangentes, mesmo que conflitantes, e que se possa alcanar um consenso,

    especialmente sobre a questo da justia poltica, que se sobreponha s

    divergncias. possvel chegar a um entendimento acerca da relao entre

    igualdade e liberdade, sobre o modo como as instituies sociais devem ser

    organizadas? possvel chegar a um consenso sobre a questo ou sobre uma

    determinada concepo de justia? Apesar de todas as divergncias, existe uma

    base subjacente capaz de propiciar um acordo? Algo em comum capaz de dar a

    direo para a formulao de uma teoria que contemple as principais idias

    comuns s culturas das democracias liberais modernas?

    Para chegar ao seu intento, Rawls formulou uma concepo de justia

    poltica e social afim s convices e tradies mais profundamente arraigadas

    das democracias liberais modernas1. Inicialmente reconhece que a justia a

    virtude primeira das instituies sociais e procurar demonstrar que o seu primado

    parte de uma convico intuitiva2. Sua teoria parte de idias que ele considera

    familiares e, destarte, vinculadas ao senso comum da vida cotidiana. E j na

    1PL, 354.2TJ: 27-28; EI: 3-4.

    4

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    primeira seo de TJ Rawls estabelece o contedo da justia bem como o seu

    primado sobre o bem, nos termos da famosa passagem:

    Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na

    justia que nem mesmo o bem-estar da sociedade

    como um todo pode ignorar. Por essa razo, a justia

    nega que a perda da liberdade de alguns se justifique

    por um bem maior partilhado por outros. No permite

    que os sacrifcios impostos a uns poucos tenham

    menos valor que o total maior das vantagens

    desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa

    as liberdades da cidadania igual so consideradas

    inviolveis; os direitos assegurados pela justia no

    esto sujeitos negociao poltica ou ao clculo de

    interesses.(TJ:27)3.

    De uma leitura atenta desta citao, percebe-se que ela uma sntese de

    toda teoria da justia como eqidade. a partir deste enunciado, que contempla

    os principais elementos da sua concepo de justia, que Rawls se lanar em

    seu rduo empreendimento. A partir das idias que considera implcitas s

    sociedades democrticas, formulou diversas concepes, entre as quais a de

    pessoa, a de sociedade como sistema eqitativo de cooperao social e a de

    sociedade bem ordenada, procurando disp-las num todo coerente.

    3EI: 3-4.

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    Sinteticamente, destacamos as trs principais caractersticas da concepo

    de justia poltica idealizada por Rawls. A primeira que diz respeito ao objeto da

    justia, qual seja a estrutura bsica da sociedade. A segunda pelo fato da teoria

    da justia como eqidade se relacionar com as vrias doutrinas abrangentes,

    professadas pelos cidados de uma sociedade democrtica, sem depender de

    qualquer uma delas para a sua justificao. Por ltimo, uma concepo poltica

    que tenha um contedo expresso por meio de certas idias fundamentais vistas

    como implcitas na cultura poltica pblica de uma sociedade democrtica4.

    1.1. Conceito e concepo de just ia

    A proposta de Rawls de oferecer uma concepo de justia voltada a

    questo da justia social como contra-modelo ao utilitarismo5. Tanto em TJquanto

    em PLRawls procurou delimitar o mbito de aplicao do conceito de justia e o

    distinguiu de concepo de justia.

    4PL, 56.5 No pretendemos aprofundar essa questo, porm acreditamos que seja interessanteacrescentar o seguinte comentrio de Hffe: A tentativa de superar o relativismo tico-jurdicotambm somente tem sentido se aceitarmos que a relao dos homens entre si determinada pela

    justia. Mas esta hiptese no est por cima de qualquer dvida; e a dvida no vem apenas dolado do positivismo jurdico radical. Tambm o utilitarismo, portanto tambm uma posio ticamuito difundida, no reconhece a justia como conceito normativo-fundamental e lhe concede,quando muito, um significado derivado. Quem quer desenvolver um contramodelo do utilitarismono pode, por isso, pressupor a perspectiva da justia; ele deve fundament-la a limine. (Hffe,Otfried. Justia Poltica: fundamentao de uma filosofia crtica do direito e do Estado; traduo deEnildo Stein. So Paulo: Martins Fontes, 2001.).

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    Nestas observaes preliminares, tenho vindo a

    distinguir o conceito de justia, definido como um

    equilbrio adequado entre pretenses concorrentes e

    concepes da justia, conjunto de princpios inter-

    relacionados que permitem a identificao dos

    aspectos relevantes para a determinao daquele

    equilbrio.(TJ:32; EI: 9).

    A distino realizada por Rawls entre conceito e concepo de justia tem o

    objetivo de destacar o fato de que os cidados podem estar de acordo sobre o

    conceito de justia, mas terem diversas concepes de justia. A partir desta

    distino, poderemos identificar melhor o papel dos princpios de justia social.

    Segundo o autor, o conceito de justia definido pelo papel que os conjuntos de

    princpios e as concepes de justia desempenham em comum. Neste sentido,

    Rawls adota um conceito formal de justia a ser satisfeito por alguns critrios

    formais. Segundo o seu entendimento, as pessoas podem concordar que as

    instituies so justas quando no existem discriminaes arbitrrias e as regras

    estabelecem um equilbrio adequado entre as pretenses dos cidados, por

    exemplo. Essa concordncia, no entanto, s possvel em razo das noes de

    discriminao arbitrria e equilbrio adequado, critrios formais do conceito de

    justia, serem deixadas em aberto e, portando, serem interpretadas por qualquer

    cidado de acordo com os princpios por ele adotados6.

    6TJ,29; EI, 5.

    7

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    1.2. A concepo de justia como eqidade

    Em TJ Rawls deixou claro que a sua preocupao principal era com a

    questo da justia social e parte da considerao que o objeto primrio da justia

    deve ser a estrutura bsica da sociedade, precisamente a maneira como as

    principais instituies distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam

    a diviso dos benefcios da cooperao social7. Destacou como as mais

    importantes instituies a constituio e as principais estruturas econmicas e

    sociais e deu como exemplos a proteo jurdica da liberdade de pensamento e de

    conscincia, da concorrncia de mercado, da propriedade privada dos meios de

    produo e da famlia monogmica. Segundo Rawls, a estrutura bsica da

    sociedade favorece certas posies sociais relativamente a outras e, portanto,

    afeta diretamente a vida e as expectativas dos indivduos que dela fazem parte.

    Isso faz gerar desigualdades profundas e so essas desigualdades, que segundo

    o autor so inevitveis, que os princpios de justia devem cuidar.

    A justia de um modelo de sociedade depende

    essencialmente da forma como so atribudos os

    direitos e deveres fundamentais, bem como das

    oportunidades econmicas e condies sociais nos

    diferentes sectores da sociedade. (TJ,30; EI, 7).

    7TJ,30; EI, 6.

    8

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    Desde o incio, Rawls esteve atento necessidade de delimitar o alcance

    de sua investigao e deixou claro que o seu interesse foi um caso particular do

    problema da justia. Embora o conceito de justia possa ser aplicado a qualquer

    situao que contemple a repartio de algo que racionalmente encarado como

    benefcio ou desvantagem, a preocupao do autor se concentra em apenas um

    dos casos. Como foi dito anteriormente, o problema enfrentado por Rawls se

    refere questo da justia social e no s relaes entre os indivduos. No se

    destinam, ainda, para regular as relaes entre as pessoas jurdicas de direito

    privado como associaes ou grupos sociais. Como diz o autor, no existe razo

    para afirmar que os princpios que so adequados para a estrutura bsica sejam

    vlidos para todos os casos8. O conceito ainda delimitado pelo fato de que os

    princpios devero regular aquilo que ele denomina sociedade bem ordenada, pois

    presume que todos os cidados esto dispostos a agirem com justia e

    contribuirem para manuteno das instituies justas9.

    Sendo ou no uma teoria contratualista em sentido completo, a teoria da

    justia como eqidade foi buscar no contratualismo a sua fonte de justificao. Os

    termos eqitativos da cooperao, contedo dos princpios de justia, so

    alcanados a partir de um acordo em que as partes contratantes encontram-se

    numa situao de igualdade e, dispostas simetricamente uma em relao s

    outras e sob o vu de ignorncia, decidem e escolhem os princpios sob o manto

    da imparcialidade. Nesta posio as parte so concebidas como detentoras dos

    mesmos direitos e das capacidades necessrias escolha. Em outras palavras, a

    8TJ: 30; EI, 7.9TJ: 8; EI, 31.

    9

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    situao inicial (original position) deve estar cercada das condies, decididas

    consensualmente, que garantam que o procedimento de escolha ser eqitativo e,

    portanto, que o objeto do acordo (princpios de justia) tambm o seja. O que deve

    ficar claro que, para a justia como eqidade, se o procedimento empregado

    para se chegar aos princpios for justo (eqitativo) os princpios o sero tambm.

    Essa situao hipottica, que conduz a determinada concepo de justia

    possui como caractersticas essenciais, entre outras, o desconhecimento (dado o

    vu de ignorncia) das partes de sua posio na sociedade, sua situao de

    classe, seu status social, bem como sua sorte na distribuio de dotes e

    habilidade naturais, tais como sua inteligncia, fora e outras qualidades. Tambm

    desconhecem suas concepes de bem e as suas prprias tendncias

    psicolgicas. O vu de ignorncia garante que os princpios de justia sejam

    escolhidos sem que quaisquer das partes contratantes sejam favorecidas ou

    prejudicadas em razo das contingncias histricas, pelas circunstncias sociais,

    pelo status real que ocupa na sociedade ou pelo acaso natural. Assim, os

    princpios resultam de um acordo eqitativo na medida em que todos se

    encontram numa posio de igualdade e o procedimento adotado para escolha

    inibe a qualquer dos contratantes a escolha de princpios que favoream sua

    prpria situao particular. Na posio original as pessoas so pensadas como

    pessoas morais racionais que possuem seus prprios fins e como sendo capazes

    de ter um senso de justia.

    Nesse sentido, Rawls diz que a posio original ... o status quo

    apropriado, e assim os consensos fundamentais nela alcanados so

    10

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    eqitativos.10 E continua, afirmando que a expresso justia como eqidade

    utilizada com o significado de que ...os princpios da justia so acordados numa

    situao inicial que eqitativa.11

    Entretanto, justia como eqidade no significa que justia e eqidade

    sejam a mesma coisa. A eqidade representa o trao mais caracterstico da

    situao em que justo o acordo do qual resultam os princpios de justia. A idia

    de eqidade permite uma viso da posio original como um jogo imparcial,

    atravs do qual se busca um consenso indireto e abstrato em torno dos princpios

    de justia que devem ser escolhidos. O recurso de Rawls ao vu de ignorncia

    fundamental para a construo de sua teoria, pois ele garante a imparcialidade na

    medida em que encobre as partes contratantes, impedindo-as de saberem a sua

    identidade particular.

    2. A sociedade como um sistema eqitativo de cooperao social

    A concepo de sociedade como um sistema eqitativo de cooperao

    social ocupa a posio de idia organizadora e considerada por Rawls como a

    mais fundamental das idias que compem a concepo poltica de justia por ele

    formulada.

    10TJ:13-14; EI, 12.11Idem, 12; 14.

    11

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    Como j disse, a idia organizadora fundamental da

    justice como eqidade, no interior da qual as outras

    idias bsicas se articulam de forma sistemtica, a da

    sociedade enquanto sistema eqitativo de cooperao

    no decorrer do tempo, de uma gerao a outra. (PL:

    58; EI, 15)12.

    Naturalmente que a formulao de uma concepo poltica de justia no

    poderia prescindir de uma discusso sobre uma concepo de sociedade.

    Destarte, Rawls formulou uma concepo abstrata de sociedade necessria

    exposio de suas idias. O fez inicialmente em TJ, ao conceber a sociedade

    como uma associao de pessoas que em sua maioria pautam as suas relaes

    de acordo com regras de conduta publicamente reconhecidas. Tomando como

    base algumas idias implcitas nas culturas das democracias liberais, segundo ele,

    e para complementar a idia anterior, que as pessoas estariam dispostas a viver

    sob um sistema de cooperao social. Sistema este que seria especificado pelas

    mesmas regras e seria concebido com o objetivo de fomentar o bem dos que nele

    participam13. Naturalmente, as sociedades concretas so muito diferentes da

    sociedade idealizada por Rawls, pois so marcadas por graves injustias,

    elevados ndices de criminalidade, alto ndice de desemprego associado a cada

    vez maior informalidade do mercado de trabalho, enfim. Poderamos dizer que

    Rawls desconhece ou simplesmente desconsidera esses problemas? No. Como

    12ver Justia e Democracia, p. 213 e JE, p. 7.13TJ, 28; EI, 4.

    12

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    ser mais bem esmiuado, ao elaborar a sua teoria, Rawls deixou claro que sua

    principal preocupao era com a concepo especial, ou seja, com a teoria ideal14.

    Mas porque Rawls utilizou concepes abstratas? possvel justific-las? No

    caso da concepo aqui abordada, de onde Rawls encontrou as bases para a sua

    formulao?

    Este trabalho no tem o escopo, evidentemente, de aprofundar as questes

    precedentes, eis que as mesmas ensejariam outra dissertao. No entanto, para

    cumprir o nosso intento, preciso apresentar os motivos suscitados pelo autor.

    bem verdade a existncia de diferentes doutrinas religiosas, filosficas e morais

    que so no apenas conflitantes, mas tambm incompatveis. Tais divergncias

    ensejam uma gama de conflitos, muitos dos quais profundos e, do ponto de vista

    terico, insuperveis. Destarte, diante de tantas divergncias, possvel haver

    uma sociedade justa e estvel onde exista uma concordncia acerca de sua

    organizao e que satisfaa uma distribuio eqitativa dos benefcios gerados

    em seu interior? Segundo Rawls, no existe concordncia a esse respeito na

    tradio do pensamento democrtico nos ltimos dois sculos. Se no h

    concordncia, verifica-se a existncia de conflitos profundos no interior das

    sociedades, conflitos estes que devem ser tratados pela filosofia poltica.

    Controvrsias profundas e de longa data preparam o terreno para a idia de

    justificao razovel enquanto problema prtico, e no epistemolgico ou

    metafsico15.

    14Apenas para orientar o leitor, Rawls dividiu a sua teoria em duas partes. A ideal e a no ideal.15PL: 88-89; EI, 44.

    13

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    Rawls tem uma viso sobre a filosofia poltica16que , para alguns, similar a

    de Hegel. Neste sentido, a filosofia poltica no deve estar separada de qualquer

    tradio de prtica e pensamentos polticos e no pode estar separada do mundo

    real, to somente cingida aos seus prprios mtodos. Uma concepo poltica de

    justia, segundo o autor, s poderia ter peso entre ns na medida em que

    ajudasse a colocar em ordem as nossas convices refletidas sobre justia17.

    Portanto, no existe qualquer problema quanto abstrao que, quanto maiores e

    mais profundos forem os conflitos, maior e num nvel mais elevado ela dever

    atingir. Esse exerccio poder afetar nossos juzos particulares, porm no os

    afastar por completo j que eles podero, inclusive, serem reafirmados e at

    modificarem uma concepo de justia proposta. Portanto, o trabalho de

    abstrao necessrio e se mostra como ...uma forma de continuar a discusso

    pblica, uma vez desmoronadas as percepes compartilhadas de menor

    generalidade18. Resta dizer que, diferentemente da abordagem feita em TJ,

    Rawls enfatizou em PL que as idias essenciais que deram a partir das quais

    foram elaboradas as concepes abstratas por ele formuladas, encontram base na

    cultura pblica das sociedades democrticas atuais.

    16Em Justia como eqidade, pp. 1-6, Rawls apresenta quatro funes da filosofia poltica, so

    elas: a) sua funo prtica (que consiste na abordagem profunda dos conflitos e divergncias everificar se possvel, mesmo que as aparncias digam que no, descobrir uma base subjacentede acordo filosfico e moral); b) a funo de orientao (consistente na idia de que cabe razo e reflexo terica e prtica nos orientarem no espao conceitual de todos os possveis fins,individuais e associativos, polticos e sociais); c) a funo de reconciliao (a filosofia pode nosmostrar que as instituies da sociedade e sua histria, do ponto de vista filosfico, so racionais ed) a de cumprir uma funo realisticamente utpica (como exame dos limites da possibilidadepoltica praticvel).17PL, 89.18idem: 90; EI, 46.

    14

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    Como os conflitos da tradio democrtica sobre a

    natureza da tolerncia e a base da cooperao

    apropriadas para uma situao de igualdade tm

    persistido, podemos supor que sejam profundos.

    Portanto, para relacionar esses conflitos com o

    conhecido e o bsico, examinamos as idias

    fundamentais implcitas na cultura poltica pblica e

    procuramos descobrir como os cidados poderiam,

    depois da devida reflexo, querer conceber sua

    sociedade como um sistema eqitativo de cooperao

    ao longo do tempo. (PL: 90; EI, 46).

    2.1. Caractersticas da sociedade

    Dentre as caractersticas da sociedade, Rawls destaca duas: a identidade e

    os conflitos de interesses.

    H identidade de interesses uma vez que a

    cooperao torna possvel uma vida que, para todos,

    melhor do que aquela que cada um teria se tivesse de

    viver apenas pelos seus prprios esforos. H conflitos

    de interesses uma vez que os sujeitos no so

    indiferentes forma como so distribudos os

    15

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    benefcios acrescidos que resultam da sua

    colaborao, j que, para prosseguirem os seus

    objectivos, todos preferem receber uma parte maior

    dos mesmos. (TJ: 28; EI, 4).

    Se a sociedade marcada tanto por identidade quanto por conflitos de

    interesses, surge a necessidade de se estabelecer princpios que sero aplicados

    estrutura bsica para especificarem a forma de diviso dos benefcios sociais e

    os direitos e deveres dos cidados. Atravs da aplicao dos princpios ser

    estabelecida a mais adequada distribuio dos recursos naturais e sociais. A

    identidade e o conflito de interesses e a conseqente necessidade de se recorrer

    a princpios que, aplicados estrutura bsica, determinaro a diviso dos

    benefcios so as exigncias que definem o papel da justia. Portanto, quais

    condies, ou seja, qual o contexto de justia que daria origem a essas

    exigncias? A discusso necessria na medida em que Rawls pretende

    descrever o contexto de justia como sendo o conjunto de condies normais que

    tornam a cooperao humana, simultaneamente, possvel e necessria19. Rawls

    dividiu as condies em dois grupos: o contexto objetivo e o contexto subjetivo. O

    primeiro contexto (objetivo) marcado pela coexistncia de uma multiplicidade de

    indivduos num mesmo territrio e pela escassez moderada de recursos naturais e

    de outros. Estes indivduos temem que a persecuo dos seus planos de vida seja

    impedida por outros indivduos isolados ou agrupados e so cientes sobre a

    escassez de recursos, tanto dos naturais quanto de outros. J o segundo contexto

    19TJ, p. 114.

    16

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    (subjetivo) marcado pela diferena entre os projetos de vida dos indivduos

    cooperantes, acarretando tambm diferenas entre os seus fins e objetivos. Dadas

    essas diferenas, inevitavelmente, surgiro conflitos entre os indivduos,

    especialmente em razo de estarem cientes sobre a escassez dos recursos

    naturais e sociais.

    Ser nesse contexto, e no em outros, que Rawls formular a sua

    concepo de sociedade como sistema eqitativo de cooperao social.

    Por uma questo de simplicidade, costumo salientar,

    entre as condies objectivas, a da escassez

    moderada e entre as subjetivas, o conflito de

    interesses. Assim, podemos dizer, em resumo, que o

    contexto da justia se verifica sempre que so

    formuladas exigncias concorrentes que incidem sobre

    a diviso das vantagens sociais em condies de

    escassez moderada. (TJ: 115; EI, 110).

    2.2. Elementos da concepo da sociedade como sistema eqitativo

    de cooperao social

    Os elementos da idia de sociedade enquanto sistema de cooperao

    social foram abordados detalhadamente nos seguintes escritos: Justice as

    Fairness: Political, not Metaphysical [A teoria da justia como eqidade: uma

    17

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    teoria poltica, e no metafsica]20, na primeira conferncia apresentada em PL21e

    em Justia como eqidade: uma reformulao22.

    O primeiro elemento ou aspecto da cooperao social que esta guiada

    por regras e procedimentos publicamente aceites. Os indivduos agem de acordo

    com as regras de conduta por eles reconhecidas e no vislumbram uma forma de

    cooperao que se equipare a uma mera atividade organizadas por uma

    autoridade central absoluta. A cooperao pressupe, logicamente, termos

    eqitativos, seu segundo elemento. Naturalmente as partes indagariam: quais

    seriam os termos da cooperao social? Seriam os que cada participante poderia

    ou deveria razoavelmente aceitar, desde que todos os outros aceitassem. Por

    qu? Porque todos os indivduos participantes se beneficiaro adequadamente da

    cooperao na medida em que pautem a sua conduta de acordo com as regras e

    procedimentos estabelecidos. Neste sentido, os termos eqitativos incluem a idia

    de reciprocidade, ou seja, todos sero beneficiados de acordo com os critrios

    acordados e publicamente reconhecidos. E quais seriam os termos? Os termos

    eqitativos seriam expressos pelos princpios de justia que especificam os

    direitos e deveres dos cidados, e que especificaro a diviso eqitativa dos

    benefcios produzidos pelos esforos de todos os participantes.

    20Justia e Democracia, p. 199-241.21A idia da sociedade com um sistema eqitativo de cooperao, p. 58-65.22 2.A sociedade como sistema eqitativo de cooperao, p. 6-11

    18

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    3. A soc iedade bem ordenada

    Outra idia fundamental a de sociedade bem ordenada. O autor a

    concebe com o escopo de definir a idia organizadora central da sociedade como

    sistema eqitativo de cooperao social. Conforme bem esclarecera Rawls, a

    sociedade bem ordenada uma idealizao23.

    Assim, dir-se- que a sociedade bem ordenada

    quando no s concebida para aumentar o bem dos

    respectivos membros mas quando tambm

    efectivamente regida por uma concepo pblica de

    justia. Ou seja, trata-se de uma sociedade em que,

    por um lado, cada um aceita, sabendo que os outros

    tambm aceitam, os mesmo princpios da justia e, por

    outro, em que, no geral, as respectivas instituies

    bsicas satisfazem esses princpios, sendo

    reconhecidas como tal. Nesta situao, ainda que os

    sujeitos possam formular, uns contra os outros,

    exigncias que sejam excessivas, eles reconhecem,

    apesar disso, um ponto de vista comum a partir do qual

    sero decididas as respectivas pretenses. (TJ: 28; EI,

    4).

    23PL, 79; JE,p. 12.

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    Segundo Rawls, dizer que uma sociedade bem ordenada significa trs

    coisas. Primeiramente, em razo de que todos os indivduos que nela vivem

    aceitam e sabem que todos os outros aceitam os mesmos princpios de justia.

    Todos acreditam, ainda, que a estrutura bsica da sociedade est em

    concordncia com os referidos princpios. E, finalmente, que todos os cidados

    tm um senso de justia e agem de acordo com as instituies bsicas da

    sociedade, j que as consideram justas. Cumpre salientar que Rawls imps

    algumas restries formais concepo de sociedade bem ordenada, dentre as

    quais a de que ela um sistema fechado, isolado de outras sociedades, no qual

    os indivduos entram pelo nascimento e saem pela morte. Esse entendimento se

    d em razo do autor no considerar ou enxergar a sociedade como uma

    comunidade ou uma associao. A sociedade um sistema completo e auto-

    suficiente, que tem a finalidade de contemplar todos os propsitos primordiais da

    vida humana. Neste sistema, teremos plenas condies de viver num ambiente de

    cooperao social e passar o resto de nossas vidas como membros plenamente

    cooperativos. Deve-se destacar, no entanto, que uma sociedade como tal no

    possui fins ou objetivos ltimos, que ocupam lugar especial nas doutrinas

    abrangentes. Os seus fins especficos de devero fazer parte de uma concepo

    poltica de justia e de sua razo pblica.

    A sociedade bem ordenada dever contemplar um ambiente favorvel ao

    convvio das mais variadas doutrinas e formas de pensamento, dado o fato do

    pluralismo razovel que marca as sociedades liberais. Nesse ambiente,

    independentemente da doutrina que os indivduos professam, todos tero os

    meios necessrios para alcanarem os seus fins especficos. Isso se d em razo

    20

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    do consenso sobre os termos eqitativos da cooperao, especificados pelos

    princpios de justia que, aplicados de acordo com as regras de prioridade,

    asseguraro um igual status de cidadania e uma justa distribuio dos benefcios

    produzidos pela cooperao social.

    Neste sentido uma sociedade bem ordenada deve satisfazer ...uma

    condio necessria (mas no suficiente, com toda certeza) de realismo e

    estabilidade24. Para que isso ocorra, urge a necessidade de que os cidados

    adotem a mesma concepo poltica de justia, mesmo que professem doutrinas

    divergentes e opostas, atravs de um consenso sobreposto (overlapping

    consensus), ou seja:

    ...concordem, em termos gerais, com aquela

    concepo de justia como uma concepo que

    determina o contedo de seus julgamentos polticos

    sobre as instituies bsicas; e desde que, segundo, as

    doutrinas abrangentes que no so razoveis (que,

    supomos, sempre existem) no disponham da

    aceitao suficiente para solapar a justia essencial da

    sociedade. (PL: 82; EI, 39).

    Assim, dado o fato do pluralismo razovel, a sociedade bem ordenada, a

    partir de um consenso sobre os princpios de justia tornar claro os seus

    principais valores polticos a partir de um procedimento construtivista.

    24PL: 82; EI, 38.

    21

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    somente endossando uma concepo

    construtivista uma concepo que poltica, e no

    metafsica que os cidados podem ter esperanas de

    encontrar princpios que todos possam aceitar. Isso

    algo que podem fazer sem negar os aspectos mais

    profundos de suas doutrinas abrangentes e razoveis.

    (PL: 143; EI, 97).

    4. Uma concepo normativa de cidado

    Dentre as idias essenciais compreenso do tema deste trabalho, a

    saber, a prioridade das liberdades e direitos fundamentais, a idia de pessoas

    livres e iguais das mais importantes. A concepo de pessoa apresentada em TJ

    sofreu uma reformulao radical, sobretudo a partir da elaborao do texto

    Kantian Constructivism in Moral Theory [O Construtivismo Kantiano na Teoria

    Moral]25, momento em que Rawls descreveu todos os elementos da idia de

    pessoa moral e acrescentou o conceito de razovel idia de racionalidade. As

    alteraes apresentadas neste texto aproximaram, segundo o autor, a teoria da

    eqidade doutrina kantiana, especialmente verso kantiana do construtivismo,

    segundo a qual em sua opinio A idia diretora (do construtivismo kantiano)

    consiste em estabelecer uma relao satisfatria entre uma concepo particular

    25Justia e Democracia. Trad. Irene A. Paternot. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

    22

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    de pessoa e os princpios primeiros de justia por meio de um procedimento de

    construo.

    A partir da especificao dos seus elementos, Rawls formulou a seguinte

    concepo: os cidados de uma sociedade bem ordenada devem ser

    reconhecidos como pessoas morais livrese iguais, capazes de ter um senso de

    justia e uma concepo do bem26. Pressups, enfaticamente, que os membros

    de uma sociedade bem ordenada so pessoas morais plenamente capazes de

    cooperar na sociedade27ao longo de suas vidas.

    A abordagem da concepo de pessoa essencial para compreenso do

    tema desenvolvido neste trabalho. A partir da abordagem de cada um dos seus

    elementos, pretende-se abrir caminho para a demonstrao da relao existente

    entre a concepo de pessoa e a prioridade das liberdades e direitos

    fundamentais, a ser mais bem esmiuada no captulo III.

    4.1. Cidados l ivres e iguais

    O que significa dizer que os cidados so livres e iguais? A concepo

    poltica de pessoa parte do princpio que essa idia reconhecida na cultura

    poltica moderna. A nfase dada ao aspecto moral da pessoa tem o objetivo de

    destacar um trao de igualdade entre todos os indivduos, independentemente dos

    aspectos econmicos e sociais.

    26O Construtivismo Kantiano na Teoria Moral, in: Justia e Democracia, p. 55.27Nos termos do que fora tratado no tpico precedente.

    23

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    Os cidados so iguais na medida em que se

    consideram uns aos outros como detentores de um

    direito igual de determinar e de avaliar de maneira

    ponderada os princpios primeiros de justia que devem

    reger a estrutura bsica da sociedade. (Rawls, 2002,

    p. 55).

    Desta maneira, Rawls pressupe que os cidados so capazes de

    compreender e aplicar uma concepo de justia e todos, indistintamente e

    independentemente das condies histricas, econmicas ou sociais, tero

    assegurado o seu status de igual cidadania. Todos gozaro das liberdades e

    direitos fundamentais especificados pelos princpios de justia e, como fonte

    autnoma de reivindicaes (um dos aspectos da liberdade), podero formular

    suas pretenses, desde que, evidentemente, elas estejam em consonncia com a

    concepo poltica de justia publicamente reconhecida por todos.

    Cumpre destacar que, sob o ponto de vista da posio original, a igualdade

    das partes caracterizada pela relao de simetria entre elas. Nessa situao

    hipottica todos os participantes tm os mesmos direitos e poderes que os

    possibilitam, atravs de um procedimento eqitativo, chegar a um acordo sobre os

    primeiros princpios de justia. Como pessoas morais, os cidados so iguais

    enquanto detentores das duas capacidades da personalidade moral, quais sejam:

    a de ter uma concepo de justia e uma concepo do bem.

    E tambm so livres, pois sendo plenamente capazes de ter uma

    concepo do bem tero, consequentemente, a liberdade de formar, revisar e

    24

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    modificar essa concepo, desde que o faam sobre base razoveis e racionais.

    Os cidados no se consideram ligados para sempre a uma determinada doutrina,

    a uma concepo particular do bem ou a fins ltimos que o desconsiderem

    enquanto pessoa moral capaz de rever a sua posio. Para eles, o status de

    cidadania igual garante a sua liberdade e independncia enquanto pessoa moral,

    distinta de qualquer sistema particular de fins28. So livres, ademais, enquanto

    fontes autnomas de reivindicaes fundamentadas e

    ...so livres na medida em que pensam ter o direito de

    intervir na elaborao de suas instituies comuns em

    nome de seus prprios objetivos fundamentais e de

    seus interesses superiores. (Rawls, 2002, p. 55).

    No entanto, a liberdade de reivindicar deve ser pautada pela

    responsabilidade dos cidados para com os seus fins particulares. Dada uma

    concepo de justia publicamente reconhecida por todos, que garante as

    condies e meios necessrios para atingirem os seus objetivos, os cidados

    mantm certa independncia de seus objetivos, j que os mesmos estaro

    ajustados e moldados pela sua capacidade de ser razovel.

    28Rawls, 2002, p. 94.

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    4.2. As duas capacidades da pessoa moral

    A pessoa moral dotada de duas capacidades, a dizer: a capacidade de ter

    um senso de justia e a capacidade de ter uma concepo do bem. De acordo

    com a primeira capacidade, os cidados so capazes de agir de acordo com uma

    concepo de justia e de respeitar os princpios de justia que foram objeto de

    um acordo. So capazes de respeitar os termos eqitativos da cooperao social

    e, enquanto pessoas livres, de formularem reivindicaes legtimas nos termos da

    concepo poltica de justia publicamente reconhecida.

    A capacidade de ser razovel, que remete ao justo, pode ser descrita nos

    seguintes termos: sob a perspectiva da posio original, dada as suas

    caractersticas, as partes consideram justa uma sociedade que regida por uma

    concepo pblica de justia. Uma sociedade em que todos os cidados agem de

    acordo com essa concepo e que so, portanto, capazes de respeitar os

    princpios de justia. Princpios que sero aplicados estrutura bsica da

    sociedade que, por sua vez, garantir as condies para que cada membro tenha

    o seu status de cidado igual reconhecido. Sendo assim, os indivduos tero

    motivos suficientes para cumprirem os termos eqitativos, cujo contedo dado

    pelos princpios primeiros escolhidos numa posio inicial de igualdade, atravs

    de um procedimento eqitativo.

    As pessoas so razoveis em um aspecto bsico

    quando, entre iguais, por exemplo, esto dispostas a

    propor princpios e critrios como termos eqitativos de

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    cooperao e a submeter-se voluntariamente a eles,

    dada a garantia de que os outros faro o mesmo. (PL:

    93; EI: 49).

    A segunda capacidade parte do pressuposto de que cada um dos membros

    da sociedade tem os seus fins e interesses fundamentais e, portanto, cada um

    deles possui a capacidade de ter uma concepo particular do bem, portanto, de

    ser racional. Esta capacidade deve ser entendida num sentido mais amplo, qual

    seja, cada indivduo tem a capacidade no apenas de formar, mas tambm a de

    revisar e tentar racionalmente realizar a sua concepo do bem. Destarte as

    pessoas se consideram livres e seguros para perseguirem os seus fins e sabem

    que podero faz-lo, pois, a partir do reconhecimento do status de igual cidadania,

    todos tero assegurados os meios necessrios para realizar o seu projeto de vida.

    No entanto, estando os indivduos sob um sistema eqitativo de cooperao

    social, os seus fins particulares sero orientados pelo desejo de cooperar uns com

    os outros em termos que todos possam aceitar.

    Para os fins de uma concepo poltica de justia, no se pode conceber a

    pessoa to somente com a sua capacidade de ser racional. Segundo o autor, o

    agente racional pode tornar-se um quase psicopata, j que sempre colocar os

    seus objetivos particulares frente e em detrimento dos objetivos dos demais

    agentes, na busca de benefcios para si mesmo29. necessrio enxergar as duas

    capacidades morais como sendo complementares, j que ambas so essenciais e

    conjuntamente especificam os termos eqitativos da cooperao social.

    29PL: 51; EI: 95.

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    Como idias complementares, nem o razovel nem o

    racional podem ficar um sem o outro. Agentes

    puramente razoveis no teriam fins prprios que

    quisessem realizar por meio da cooperao eqitativa;

    agentes puramente racionais carecem do senso de

    justia e no conseguem reconhecer a validade

    independente das reivindicaes dos outros. (PL: 96;

    EI, 52).

    4.3. A questo da autonomia dos cidados

    Segundo o autor, a fim de esclarecer a idia de pessoa, importante que

    se faa a distino entre trs pontos de vista: o das partes na posio original, o

    dos cidados que compem uma sociedade bem ordenada e o nosso ponto de

    vista (Cf. Rawls, 1980; I Conferncia; VII). O nosso ponto de vista (o seu e o meu)

    o ponto de vista a partir do qual avaliada a teoria da justia como eqidade,

    verificando se ela pode servir como base para uma concepo de justia cuja

    interpretao da liberdade e da igualdade seja satisfatria. O ponto de vista das

    partes na posio original e o ponto de vista dos cidados de uma sociedade bem

    ordenada so elementos que fazem parte das concepes-modelo da teoria da

    justia. Nesse sentido, preciso ter-se em vista o papel da posio original como

    concepo mediadora do processo de construo, atravs do qual as partes,

    enquanto agentes racionais, esto submetidos a restries razoveis, alm de que

    28

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    devem considerar-se no dever de optar por princpios que constituam a concepo

    pblica de justia de uma sociedade bem ordenada. Entretanto, preciso ter

    cuidado para no se confundir as deliberaes das partes e sua autonomia

    racional com a autonomia completa.

    A autonomia racional, segundo o autor, aplica-se s partes que so agentes

    artificiais racionalmente autnomos do processo de construo, na posio

    original, de princpios de justia. A autonomia racional deve ser vista, portanto,

    como mero instrumento de representao na medida em que tem a funo de

    vincular a concepo de pessoa aos princpios de justia, atravs da idia

    mediadora da posio original, no processo de construo.

    Quanto noo de autonomia completa, trata-se de um ideal moral que faz

    parte do ideal mais amplo de uma sociedade bem ordenada. Ela no poderia ser

    aplicada s partes que deliberam na posio original, pois essas so agentes

    meramente artificiais e, por isso mesmo, apenas racionalmente autnomos. Como

    tais, representam o aspecto da racionalidade, que faz parte da concepo de

    pessoa moral que atribuda aos cidados que compem uma sociedade bem

    ordenada. Nesse sentido, a autonomia completa s pode ser efetivada

    concebendo-se um ideal de pessoa compartilhado pelos cidados que compem

    uma uma sociedade bem ordenada. Entretanto, para conquist-la, eles devem

    primeiramente reconhecer o procedimento de construo dos princpios de justia,

    consequentemente aceitar os princpios que da derivam, e agir de acordo com os

    princpios escolhidos.

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    II. OS PRINCPIOS DE JUSTIA E AS LIBERDADES E DIREITOS

    FUNDAMENTAIS

    1. Os princpios de justia

    A questo da escolha dos princpios de justia a partir da posio original

    caminha com a questo da prioridade30. A argumentao em favor dos princpios

    contempla a ordenao lexical e as regras de prioridade a ela inerentes. Os

    princpios de justia formulador por Rawls foram apresentados em vrias

    passagens de sua obra. O primeiro esboo foi apresentado no 11 de TJ. Nesta

    obra, o autor apresenta a primeira formulao, precisamente no 46, juntamente

    com as regras de prioridade. A derradeira formulao, concebida em razo das

    incisivas crticas proferidas por Hart, foi apresentada em PL

    [a. Todas as pessoas tm igual direito a um projeto

    inteiramente satisfatrio de direitos e liberdades

    bsicas iguais para todos, projeto este compatvel com

    todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades

    polticas, e somente estas, devero ter seu valor

    eqitativo garantido.

    b. As desigualdades sociais e econmicas devem

    satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar

    vinculadas a posies e cargos abertos a todos, em

    30Esta ltima ser tratada no prximo captulo.

    31

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    condies de igualdade eqitativa de oportunidades; e

    segundo, devem representar o maior benefcio possvel

    aos membros menos privilegiados da sociedade. (PL:

    47-48; EI, 5-6 ver nota 3)31

    Os princpios acima explicitados seriam aqueles que, segundo Rawls, as

    partes, ou seja, os representantes autnomos dos cidados da sociedade

    adotariam numa dada situao hipottica (posio original). Trata-se de um

    experimento mental, portanto, a-histrico, onde os representantes dos cidados

    escolheriam os princpios a partir de uma lista, conforme a tradio da filosofia

    moral e poltica.

    A teoria da justia como eqidade voltada questo da justia social,

    portanto, como afirma Rawls:

    Para ns, o objecto primrio da justia a estrutura

    bsica da sociedade, ou, mais exactamente, a forma

    pela qual as instituies sociais mais importantes

    distribuem direitos e deveres fundamentais e

    31Nota 3: Rawls d a orientao sobre as alteraes elaboradas desde a verso apresentada emTJ: The statement of these principles differs from that given in Theory and follows the statement inThe Basic Liberties and Their Priority() The reasons for these changes are discussed on pp. 46-55 of that lecture. They are important for the revisions in the forceful objections raised by H.L.A.Hart in his critical review () [A formulao desses princpios difere daquela apresentada emTeoria e segue a formulao de As Liberdades Fundamentais e sua Prioridade (...) Os motivosdessas alteraes so discutidos nas pp. 46-55 daquela conferncia. So importantes para asrevises na exposio das liberdades bsicas em Teoriae foram feitas na tentativa de responders importantes objees feitas por H.L.A. Hart, em sua resenha crtica...] A conferncia de Rawlsfoi publicada na obra Political Liberalism[O Liberalismo Poltico].

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    determinam a diviso dos benefcios da cooperao em

    sociedade. (TJ: 30; EI, 6).

    Diante disso, o autor nos adverte que estes princpios no devem ser

    confundidos com aqueles que se aplicam aos indivduos e s suas aes

    particulares.

    De acordo com o primeiro princpio, todo cidado tem direito ao mais amplo

    sistema total de liberdades bsicas iguais. A compreenso dessa idia merece

    alguns esclarecimentos, ofertados pelo prprio pensador:

    Em primeiro lugar, devemos ter presente que as

    liberdades bsicas devem ser avaliadas como um todo,

    como um sistema. O valor de uma dessas liberdades

    depende normalmente da forma como as outras so

    especificadas. Em segundo lugar, admito que, desde

    que as condies sejam razoavelmente favorveis,

    sempre possvel especificar estas liberdades de modo

    a que os efeitos mais importantes de cada uma possam

    ser simultaneamente garantidos e os interesses mais

    fundamentais protegidos. Ou, pelo menos, que tal ser

    possvel desde que se adira de uma forma coerente

    aos dois princpios da justia e s regras de prioridade

    que lhes esto associadas. (TJ: 168-169; EI, 178).

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    O segundo princpio de justia dividido em duas partes. A primeira

    consubstancia-se no princpio da igualdade de oportunidades e a segunda

    consiste no denominado princpio da diferena.

    A primeira parte, ou seja, o princpio da igualdade de oportunidades,

    explicada nos seguintes termos:

    Como atrs ficou dito, a igualdade eqitativa de

    oportunidades equivale existncia de um determinado

    conjunto de instituies que asseguram possibilidades

    iguais de educao e cultura para pessoas com

    motivaes idnticas e que mantm os cargos e

    funes aberto a todos, com base nas qualidades e

    esforos razoavelmente exigidos para a satisfao das

    respectivas tarefas e deveres. (TJ: 223; EI, 245-246).

    O princpio de diferena, consubstanciado na segunda parte do segundo

    princpio de justia, prope a maximizao das expectativas dos que esto em pior

    situao, ou seja, dos menos beneficiados. Destarte, a melhoria das condies

    dos mais favorecidos s pode ser aceita na medida em que proporcione uma

    melhoria das condies dos menos privilegiados. Com isso, podemos entender

    que Rawls, ou melhor, a teoria da justia por ele formulada, comporta

    determinadas desigualdades. A este respeito, declara o autor:

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    Se certas desigualdades de rendimento e diferenas

    de autoridade tornassem a condio de todos melhor

    do que aquela que se verifica nesta situao inicial

    hipottica, elas estariam em harmonia com a

    concepo geral de justia. (TJ: 69; EI, 55).

    A concepo geral da justia no impe restries

    quanto ao tipo de desigualdades que so admissveis.

    Exige apenas que a posio de todos seja melhorada.

    (idem).

    A postura de Rawls, ao aceitar certos tipos de desigualdades, fez render-lhe

    severas crticas. A mais contundente dentre elas foi a de que o princpio de

    diferena permite desigualdades excessivas.

    Vale ressaltar que a aplicao dos princpios deve respeitar as regras de

    prioridade preceituadas por Rawls. No entanto, essas regras tero completa

    aplicabilidade apenas quando se tratar da concepo especial de justia. Esse

    assunto ser abordado com maior clareza no prximo captulo, entretanto,

    ressaltamos que o segundo princpio, dividido em duas partes, deve ser aplicado,

    quando se tratar da concepo especial, da seguinte maneira: a primeira parte, o

    princpio da igualdade de oportunidades tem prioridade sobre a segunda parte,

    qual seja, o princpio de diferena.

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    2. A especificao das liberdades e direitos bsicos

    O presente tpico pretende demonstrar quais so as liberdades

    especificadas por Rawls e a sua relao com o princpio do imprio da lei.

    Pretende-se, ademais, analisar o porqu da formulao de uma lista e questes

    conexas tais como: sistema coerente de liberdades; conflitos entre as

    liberdades; consideraes acerca do desenho constitucional. Ser tambm

    crucial a anlise mais aprofundada sobre a idia de seqncia de quatro

    estgios (deixaremos de abordar a fase de escolha dos princpios, j comentada

    no captulo anterior, mas abordaremos as demais fases: conveno constituinte,

    fase legislativa e a ltima fase de aplicao das leis aos casos concretos). Quais

    so os critrios utilizados por Rawls para especificao das liberdades e direitos

    fundamentais nessas fases?

    As liberdades fundamentais contidas no primeiro princpio so

    especificadas por Rawls numa lista. No 11 de TJ ele apresenta uma primeira

    formulao contendo as seguintes liberdades:

    essencial observar que possvel estabelecer um

    elenco das liberdades bsicas. Entre elas contam-se,

    como particularmente importantes, a liberdade poltica

    (direito de votar e ocupar uma funo pblica) e a

    liberdade de expresso e de reunio; a liberdade de

    conscincia e de pensamento; as liberdades da

    pessoa, que incluem a proibio da opresso

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    psicolgica e da agresso fsica (direito integridade

    pessoal); o direito propriedade privada e proteo

    face deteno arbitrrias, de acordo com o princpio

    do domnio da lei (rule of law). E, de acordo com o

    primeiro princpio, estas liberdades devem ser iguais

    para todos. (TJ: 68; EI, 53).

    Em PL, precisamente no 1 da oitava conferncia, Rawls nos oferece outra

    lista com algumas alteraes, a seguir:

    Uma outra questo preliminar que as liberdades

    fundamentais iguais do primeiro princpio de justia so

    especificadas por uma lista, que a seguinte: a

    liberdade de pensamento e de conscincia; as

    liberdades polticas e a liberdade de associao, assim

    como as liberdades especificadas pela liberdade e

    integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e

    liberdades abarcados pelo imprio da lei. (PL: 345; EI,

    291).

    J em Justia como eqidade, Rawls apresenta uma terceira lista com uma

    redao pouco diferente da anterior, sem, no entanto, propor alteraes

    substantivas, conforme verificamos abaixo:

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    ...liberdade de pensamento e de conscincia;

    liberdades polticas (por exemplo, o direito de votar e

    de participar da poltica) e liberdade de associao,

    bem como os direitos e liberdades especificados pela

    liberdade e integridade (fsica e psicolgica) da pessoa;

    e, finalmente, os direitos e liberdades abarcados pelo

    estado de direito. (Rawls, JE, p. 62).

    A anlise das trs listas demonstra que apenas uma dentre as liberdades

    ou direitos fundamentais especificados na primeira lista no repetida nas listas

    subseqentes. O direito fundamental a que estamos nos referindo o direito

    propriedade privada. Evidentemente que Rawls no alterara o seu entendimento

    aps TJ, pelo contrrio. Apesar de no ter includo este direito na lista em PL,

    Rawls ressalta nesta obra a relevncia do direito de adquirir e fazer uso da

    propriedade pessoal. Este direito considerado fundamental, pois visa garantir ao

    indivduo uma base material necessria32 para a preservao do seu sentimento

    de independncia pessoal e auto-respeito. Esses sentimentos, por sua vez, so

    essenciais para o desenvolvimento e exerccio das duas capacidades morais dos

    indivduos considerados livres e iguais, quais sejam a de ter um senso de justia e

    uma concepo de bem.

    32No conseguimos chegar a uma concluso, se possvel, a partir da leitura dos textos de Rawls,sobre o quantumnecessrio para cada cidado. Ademais, no encontramos qualquer referncia qualquer forma de limitao da acumulao da propriedade privada. Ressaltamos que esse tema,em razo de no ser objeto especfico desta pesquisa e de sua relevncia, merece maiorinvestigao.

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    No nos esqueamos que a referida lista ser submetida juntamente com

    outras listas apreciao das partes na posio original para que elas escolham

    uma dentre as apresentadas. A elaborao de uma lista de direitos fundamentais

    algo que suscita vrias indagaes. Entre elas, qual a importncia de uma lista

    que especifique os direitos fundamentais? A partir da especificao, qual o

    fundamento e a justificao para a adoo destes e no de outros direitos? Rawls

    responde a primeira questo dizendo que uma lista contendo as liberdades e

    direitos fundamentais algo que uma concepo filosfica de justia poderia

    dispensar. No entanto, ele nos adverte que a especificao das liberdades

    essencial, pois quando elas so incorporadas aos princpios de justia e

    apresentados s partes na posio original, juntamente com outras concepes de

    justia como o perfeccionismo e o utilitarismo, os princpios de justia contendo

    essas liberdades seriam escolhidos e os demais seriam descartados33. Desta

    maneira, seria alcanado o objetivo inicial da justia como eqidade, qual seja:

    Esse objetivo mostrar que os dois princpios de

    justia propiciam uma compreenso melhor das

    exigncias da liberdade e da igualdade numa

    sociedade democrtica do que os princpios primeiros

    associados s doutrinas tradicionais do utilitarismo, do

    perfeccionismo ou do intuicionismo. (PL: 346; EI, 292).

    33As razes para escolha dos princpios sero melhor esmiuadas no prximo captulo.

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    Neste sentido, a definio de uma lista deve ser feita com a exatido

    necessria para sustentar a concepo de justia como eqidade. A lista, no

    entanto, deve conter apenas aquelas liberdades e direitos que so essenciais,

    pois as liberdades ali contidas ocupam um status superior.

    Antes de tudo, a prioridade da liberdade significa que o

    primeiro princpio de justia atribui s liberdades

    fundamentais, apresentadas na lista, um status

    especial. (PL: 348; EI, 294).

    A especificao de outras liberdades ficar para os estgios posteriores da

    conveno constituinte ou do processo legislativo ordinrio. Uma lista desta

    natureza no pode ser muito extensa, sob pena de enfraquecer as liberdades que

    so realmente essenciais. Ademais, ao invs de termos uma noo clara e

    circunscrita das liberdades e de sua prioridade, poderamos gerar no sistema uma

    confuso e uma indeterminao indesejveis. O processo de escolha dos

    princpios na posio original ficaria comprometido, pois as partes teriam maiores

    dificuldades de se convencerem pela adoo dos princpios de justia que contm

    as liberdades e direitos fundamentais. Uma lista muito extensa faria com que uma

    noo adequada de prioridade fosse prejudicada.

    A razo para esse limite lista de liberdades

    fundamentais o status especial dessas liberdades.

    Toda vez que ampliamos a lista das liberdades

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    fundamentais, corremos o risco de enfraquecer a

    proteo das mais essenciais e de recriar no interior do

    sistema de liberdades os problemas de indeterminao

    e desorientao que tnhamos a esperana de evitar

    com uma noo adequadamente circunscrita de

    prioridade. (PL: 350-351; EI, 296).

    Deste modo, as liberdades no especificadas no sero classificadas como

    bsicas e, portanto, no estaro amparadas pelas regras de prioridade, conforme

    Rawls salienta:

    evidente que liberdades no compreendidas na lista,

    como, por exemplo, o direito de deter certas formas de

    propriedade (e.g. meios de produo) e a liberdade

    contratual nos termos em que entendida pela doutrina

    do laissez faire, no so liberdades bsicas; e assim

    no so protegidas pela prioridade do primeiro

    princpio. (TJ: 69; EI, 54).

    As liberdades bsicas proclamadas por Rawls esto intimamente

    relacionadas entre si e, conjuntamente dispostas, devem ser especificadas ...de

    forma a obter o melhor sistema completo de liberdade34. A ressalva oportuna

    em razo das liberdades bsicas estarem sempre restringidas ou limitadas pela

    34TJ: 169; EI, 178.

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    lei, j que as partes tero, vez ou outra, que avaliar uma liberdade em relao

    outra, como sugere o exemplo proposto por ele, a seguir: a liberdade de

    expresso com o direito a um julgamento justo 35. Tais restries ou limitaes

    devem atender a critrios, especificamente delineados, determinados pelo

    significado da liberdade igual e pela aplicao lexical dos princpios de justia.

    Esses critrios tm o escopo de evitar as duas violaes possveis, adverte o

    autor, do primeiro princpio (princpio de igual liberdade), quais sejam

    A liberdade desigual quando uma classe de pessoas

    goza de maior liberdade do que uma outra, ou se a

    liberdade menos ampla do que aquilo que deveria

    ser. (TJ: 169; EI, 178).

    O pensador, no entanto, ciente da existncia dos mais variados conflitos de

    interesses entre os cidados, em razo do pluralismo de idias, comum s

    sociedades liberais, admite a possibilidade de limitao das liberdades apenas nos

    casos especificados em sua teoria, quais sejam:

    Uma liberdade bsica, includa no primeiro princpio,

    s pode ser limitada se tal beneficiar a prpria

    liberdade, isto , somente para assegurar que a

    mesma, ou outra liberdade bsica, fique devidamente

    35Ibidem. Cf. Art. 5o. inc. LIV da CF/88: ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem odevido processo legal (grifo nosso) - Princpio constitucional do devido processo legal.

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    protegida e para ajustar o sistema conjunto das

    liberdades da melhor forma possvel. Este ajustamento

    do sistema completo das liberdades depende apenas

    da definio e extenso das diversas liberdades

    concretas. (TJ: 169; EI, 179).

    A defesa desta idia perpetrada de maneira radical, pois a mesma denota

    a essncia da doutrina rawlsiana. A justia como eqidade no admite qualquer

    possibilidade de limitao ou restrio da liberdade, a no ser aquelas

    preconizadas por seu criador. Com esse fundamento, Rawls pretende que sua

    doutrina seja uma alternativa s demais doutrinas compreensivas, entre elas o

    utilitarismo. Isso porque o utilitarismo, como fora acima apontado, no oferece as

    bases seguras para a proteo das liberdades bsicas, segundo Rawls,

    consolidadas na cultura democrtica constitucional das sociedades liberais. Por

    corolrio, Rawls no admite a troca das liberdades por uma maior satisfao do

    bem estar geral, conforme expe:

    Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que

    decorre da justia, a qual nem sequer em benefcio do

    bem-estar da sociedade como um todo poder ser

    eliminada. Por esta razo, a justia impede que a perda

    da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de

    outros passarem a partilhar um bem maior. No

    permite que os sacrifcios impostos a uns poucos sejam

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    compensados pelo aumento das vantagens usufrudas

    por um maior nmero. Assim sendo, numa sociedade

    justa a igualdade de liberdades e direitos entre os

    cidados considerada como definitiva; os direitos

    garantidos pela justia no esto dependentes da

    negociao poltica ou do clculo dos interesses

    sociais. (TJ: 27; EI, 3-4).

    3. A distino entre liberdade e valor da liberdade

    Ao abordar a questo da liberdade, Rawls deliberadamente ignorou a

    controvrsia que se tornou clssica entre liberdade negativa e liberdade positiva,

    tal como foi formulada por Isaiah Berlin em seu ensaioTwo Concepts of Liberty36.

    A discusso promovida por Rawls no contempla um debate sobre o conceito de

    liberdade, mas sobre o que ele denomina valor da liberdade. No entanto, apesar

    de desconsiderar a controvrsia clssica, Rawls vai operar com o conceito de

    liberdade negativa, ou seja, vai pensar a questo da liberdade como ausncia de

    restrio (ou conjunto de restries) ao agir do indivduo. Historicamente, os

    liberais sustentam a tese de que a todo indivduo deve ser assegurada uma rea

    36BERLIN, Isaiah. "Dois conceitos de liberdade?", In: HARDY, Henry e HAUSHEER, Roger (orgs.).Isaiah Berlin: Estudos sobre a Humanidade: uma antologia de ensaios , So Paulo, Companhia dasLetras, 2002. p. 226-272.

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    de ao livre de quaisquer oposies de outros indivduos e, especialmente, do

    Estado: necessrio proteger o indivduo, inclusive dele prprio.

    Cumpre notar que ao empregar o termo liberdade, o autor est se referindo

    ao conjunto de liberdades fundamentais, especialmente quelas contidas no

    primeiro princpio de justia e no liberdade enquanto tal. A liberdade representa

    o sistema total de liberdades bsicas asseguradas a todos os indivduos

    indistintamente. Todos os cidados, dada a aplicao dos princpios de acordo

    com as regras de prioridade, tero garantidos o igual status de cidadania. No

    entanto, nem todos os indivduos tm a capacidade de atingir os seus fins dentro

    da estrutura definida pelo sistema. Todos tem liberdades iguais, mas o valor da

    liberdade de cada um pode ser desigual, j que depende da capacidade de cada

    um. A justia como eqidade garante a todos o mesmo status de cidadania, mas

    no pode assegurar que todos tero as mesmas capacidades para atingirem os

    seus fins. O valor da liberdade se refere ao proveito que as pessoas tiram de suas

    liberdades. A questo, notadamente, complexa e a argumentao oferecida por

    Rawls sofisticada. O primeiro princpio garante liberdades iguais a todos. No

    entanto, o segundo princpio permite certas desigualdades. Como equacionar a

    igualdade do primeiro princpio com a desigualdade permitida pelo segundo

    princpio? Aqui entra a distino entre liberdade e valor da liberdade. Se o

    segundo princpio permite certas desigualdades, algumas pessoas podero ter

    maior riqueza e, portanto, melhores condies para perseguirem os seus fins. A

    distino, segundo Rawls, tem o objetivo de combinar a igualdade e a liberdade

    em uma noo coerente. A distino, evidentemente, arbitrria e concordamos

    com Norman Daniels, quando afirma que o objetivo de Rawls o de excluir os

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    fatores econmicos dos tipos de restrio a liberdade37. Pois, para a justia como

    eqidade, a liberdade s pode ser restringida em nome da prpria liberdade e de

    acordo com o princpio do rule of law. A distino pode gerar situaes absurdas,

    pois, o primeiro princpio garante a mesma liberdade tanto para um indivduo como

    o Antnio Ermrio de Moraes quanto para qualquer funcionrio de seu aglomerado.

    Ora, notadamente o segundo no poder exercer a liberdade como o primeiro.

    Resta saber se a aplicao do princpio de diferena garantir a todos os

    indivduos a possibilidade de exercerem efetivamente as liberdades iguais

    garantidas pelo primeiro princpio. Quanto ao valor das liberdades esse jamais

    ser igual, a justia como eqidade garantir to somente, segundo o autor, o

    valor das liberdades polticas.

    37 Daniels, Norman. Equal Liberty and Unequal Worth of Liberty. In: The two principles and theirjustification. Edited with an introduction By Henry S. Richardson. New York & London: GarlandPublishing, Inc, 1999.

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    III. A PRIORIDADE DAS LIBERDADES E DIREITOS FUNDAMENTAIS

    1. Intrito

    A questo a ser abordada neste captulo perpassa toda a obra de John

    Rawls. A leitura dos seus escritos, especialmente TJe PL, torna evidente que a

    questo da prioridade das liberdades e direitos fundamentais dos cidados ocupa

    um lugar de destaque, seno o principal objetivo do empreendimento rawlsiano.

    No entanto, nos perguntamos se durante a elaborao de sua teoria o autor

    realmente considerou os graves problemas concretos que marcaram a sua

    existncia e a de milhes de seres humanos. Como garantir os direitos

    fundamentais a todos os cidados das sociedades liberais que, notadamente, so

    marcadas por profundas desigualdades, especialmente as de natureza

    econmica? Como garantir as mesmas liberdades diante do notrio processo

    econmico de concentrao oligopolista? Ser que Rawls realmente acredita que

    esse processo, mais avanado do que nunca, poderia ser controlado no plano

    poltico ou mesmo no campo econmico com a adoo de uma teoria que

    contempla, entre outras coisas, uma manifesta defesa livre economia de

    mercado? Ora, John Rawls foi um pensador de respeitvel erudio e certamente

    bem informado sobre a realidade interna de seu pas (E.U.A) e dos pases

    perifricos. No entanto, manifestamente no levou a srio os graves problemas

    ao seu redor. Teria ele, durante a elaborao de sua teoria, considerado o papel

    desempenhado por seu pas no contexto histrico da poca que fora marcado,

    sobretudo, pela Guerra Fria (com destaque ao Macartismo), pela operao

    47

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    Mongoose38, pela Guerra do Vietn (1964-1975)39, pelo massacre de populaes

    civis na Guerra do Golfo e pela poltica imperialista estadunidense, entre outros

    fatos? No. Se o autor realmente os tivesse considerado, atravs de uma anlise

    rigorosa e profunda40, certamente no teria elaborado uma teoria to morna. E o

    que dizer dos conflitos tnicos, do tratamento dispensado aos imigrantes,

    especialmente os de origem rabe e latino americanos, e grande massa de

    encarcerados existente em solo estadunidense41? Nunca demais denunciar o

    caso dos prisioneiros de guerra afegos, confinados na base militar norte-

    americana de Guantnamo, arquiplago cubano. A todos esses cidados seriam

    garantidas as liberdades e direitos fundamentais? Sabemos que no. E no

    poderia ter sido diferente, tendo em vista a opo do autor pela formulao de um

    38Trata-se de uma operao terrorista iniciada pelo governo Kennedy contra Cuba, lanada aps ofracasso da tentativa de invaso da Baa dos Porcos que, conforme denuncia Chomsky, ...ganha oprmio de principal operao terrorista internacional isolada do mundo. (Chomsky, Noam. Paraentender o poder: o melhor de Noam Chomsky. Org. Peter R. Mitchell & John Schoeffel; trad. deEsduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.39Oportuno lembrar que os EUA novamente fizeram uso de agente laranja, napalm, entre outrasarmas de destruio, no apenas contra soldados, mas contra a populao civil.40V. nota 16.41A pesquisa divulgada pela revista The Economist em 2002 revela que os EUA apresentava em2000 o maior nmero de encarcerados do planeta, ultrapassando a cifra de 2 milhes decidados estadunidenses. Os nmeros atingem uma proporo de 700 presos a cada 100.000habitantes. A pesquisa mostrava ainda o grave problema com os egressos (presidirios quevoltavam ao convvio da sociedade) e que cerca de 7% da populao adulta (12% dos homens) jhaviam sido condenados por crimes graves. (A stigma that never fades.http://www.economist.com/world/na/displayStory.cfm?story_id=1270755 - Aug 8th 2002,CHICAGO). A pesquisa fora comentada no editorial do jornal Folha de So Pauloem 11.08.02.O aumento do nmero de encarcerados no uma peculiaridade to somente verificada nosE.U.A.. Mas vale ressaltar a evoluo do sistema repressivo e penitencirio norte-americano que,inclusive, tem exportado o seu principal modelo de penitenciria aos pases perifricos, entre osquais o Brasil. O modelo ao qual nos referimos denominado por Supermarxe tem feito sucesso,

    sobretudo no estado de So Paulo. Para essas prises, conhecidas como Centro de ReabilitaoPenitenciria e que comportam o denominado RDD (regime disciplinar diferenciado), as primeirascriadas em Presidente Bernardes e Iaras (lembrando que h tempos j existia o temvel Anexo daCasa de Custdia de Taubat - conhecido como Piranho - temvel aos presidirios da poca),so enviados os lderes de rebelies, seqestradores, chefes de faces criminosas, entre as quaisem destaque o PCC. Cabe-nos a seguinte indagao: Se tantos liberais existem e tanto se fala emliberdade, se as liberdades e direitos fundamentais so considerados valores supremos para osliberais, donde podemos deduzir que o estado liberal tem como uma de suas finalidades proteg-las e garanti-las a todos os cidados, qual o porqu da essencialidade de um sistema repressorto voraz?

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    http://www.economist.com/world/na/displayStory.cfm?story_id=1270755http://www.economist.com/world/na/displayStory.cfm?story_id=1270755
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    modelo abstrato que no pretendia ser descritivamente exato em detalhes, quando

    muito, extrair to somente alguns aspectos que o interessaram. Mas a crtica

    persiste e legtima, na medida em que o autor, a partir de um modelo abstrato

    pretende justificar as instituies concretas. No mnimo, devemos perguntar o

    quanto a teoria de Rawls realmente apreende a complexa realidade.

    Apesar da posio por ns adotada, no podemos deixar de reconhecer a

    importncia de suas contribuies que para ns se expressa no seu

    reconhecimento de que no basta estabelecer um sistema formal de liberdades,

    deve-se, antes, garantir as condies materiais bsicas a todos os cidados. Teria

    Rawls, sugerido a proteo legal a direitos materiais? Neste sentido a sua obra

    marca um avano no interior da tradio liberal que, dificilmente, poder

    retroceder. No deixa de ser, ainda, um reconhecimento da fora das crticas

    enunciadas desde Hegel e depois por Marx ao liberalismo.

    Bom, como dissemos, o ponto de partida de toda a sua construo terica

    foi a idia de que todo cidado detentor de liberdades e direitos fundamentais

    inalienveis. Rawls era conhecedor da histria da filosofia poltica e se esforou

    para dialogar com grandes pensadores, entre os quais: Kant, Hegel e Marx. A

    impresso deixada pela leitura de sua obra a de que esta traz continuamente em

    seu bojo a tentativa de responder s objees suscitadas pelos grandes

    pensadores da histria da filosofia poltica. As obras Justia como eqidade: uma

    reformulao42eA histria da filosofia moral43tornam isso evidente. E no se trata

    42Justia como eqidade: uma reformulao. Organizado por Erin Kelly; traduo Claudia Berliner;reviso tcnica e da traduo lvaro de Vita. So Paulo: Martins Fontes, 2003.43Histria da filosofia moral. Organizado por Barbara Herman; traduo Ana Aguiar Cotrim; revisoda traduo Marcelo Brando Cipolla. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

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    de uma peculiaridade de John Rawls. De certo modo, todo pensador se esfora

    para procurar respostas s grandes questes j suscitadas e trabalhadas pelos

    grandes pensadores da histria do pensamento filosfico. No entanto, apesar de

    Rawls ter trazido temas importantes para a sua obra, inclusive os de natureza

    marxista, ele no os encarou e muito menos os incorporou rigorosamente em sua

    teoria.

    2. A questo da prioridade e sua definio

    Para que possamos compreender a justificao da prioridade do primeiro

    princpio, necessrio entender a questo da prioridade em si. E porque a

    questo da prioridade to importante para Rawls? Como dissemos, a explicao

    das liberdades fundamentais e a sua prioridade constituiu o primeiro objetivo da

    justia como eqidade44. A defesa de Rawls parte da crtica e do reconhecimento

    de que as principais doutrinas filosficas, entre as quais o intuicionismo e o

    utilitarismo, so insuficientes para solidamente justificar e garantir as liberdades e

    direitos fundamentais45. Ambas as doutrinas no oferecerem uma soluo

    garantidora s liberdades individuais ao se depararem com o problema da

    ponderao de princpios de justia concorrentes. Recorrer em ltima instncia

    intuio para dar uma resposta construtiva ao referido problema no seria

    confivel, muito menos resolv-lo com a referncia ao princpio da utilidade. Como

    44TJ: xii; 2045TJ: xii; 19-20

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    alternativa, o autor oferece uma concepo poltica de justia que tenha como

    objeto a estrutura bsica da sociedade, ou seja, o conjunto das principais

    instituies da sociedade, entre as quais destaca a constituio, o regime

    econmico, a ordem legal e sua especificao de propriedade e congneres, e

    como essas instituies se combinam para formar um sistema46. Oferece,

    portanto, um modelo substitutivo especialmente ao utilitarismo, modelo

    predominante nos pases de fala inglesa.

    Voltando questo da prioridade em si, bom que faamos a seguinte

    indagao: como adotar princpios de justia que assegurem as liberdades e

    direitos fundamentais a todos os indivduos? Seria possvel chegar a um consenso

    sobre princpios de justia atravs de um procedimento justo (eqitativo) na

    situao inicial sugerida por Rawls, sem o emprego de um critrio mais definido?

    Entendo que no. Imaginar que as partes, apesar de terem sido idealmente

    concebidas, seriam capazes de escolher e chegar a um acordo sobre os primeiros

    princpios de justia diante de uma lista de alternativas47, configuraria demasiada

    exigncia. Situao esta que seria dificultada em razo do acordo sobre os

    princpios exigir um consenso prvio sobre as condies em que a escolha deles

    seria realizada48. Condies marcadas, especialmente, pelo fato das partes

    estarem privadas de vrias informaes, como as que dizem respeito ao seu

    statussocial enfim, inclusive dos fatos que afastam os homens uns dos outros e

    que permitem que eles se deixem guiar pelo preconceito49. Tal recurso (vu de

    46PL, 355.47TJ, 112.48idem, 38.49Idem.

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    ignorncia) garantiria, segundo o autor, um acordo eqitativo, dada a posio de

    imparcialidade em que as partes estariam dispostas50. Diante de uma situao to

    mpar, poderamos acreditar que as partes, apesar de serem racionais e

    razoveis51, estariam aptas a escolherem princpios (presumindo que antes iriam

    cotej-los) dentre uma lista complexa de concepes de justia, sem se

    socorrerem da intuio ou a algum princpio nico como o da utilidade? Como

    escapar deste problema?

    O caminho apontado por Rawls o seguinte. Existem duas maneiras de

    encarar o problema: ou as partes chegam a um acordo sobre a forma como os

    princpios sero ponderados ou identifiquem princpios que possam ser

    classificados numa ordenao lexical. A primeira exigiria que o acordo

    estabelecido pelas partes na posio original deveria contemplar os princpios de

    justia e tambm a forma como eles seriam ponderados, pois: A ponderao

    uma parte essencial, e no das menores, da concepo de justia.52A segunda

    maneira de encarar o problema, por sua vez, exige a adoo de uma ordenao

    serial ou lexical, ou seja, os princpios devem ser classificados por ordem, tal

    como as palavr