silva; costa - entre pinturas corporais e notas musicais

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    Revista Territrios e Fronteiras V.3 N.2Jul/Dez 2010Programa de Ps-GraduaoMestrado em Histria do ICHS/UFMT

    GIOVANI JOS DA SILVA

    ANNA MARIA RIBEIRO FERNANDES MOREIRA DA COSTA

    ENTRE PINTURAS CORPORAIS E NOTAS MUSICAIS: HISTRIA E ETNOGRAFIA NAS OBRASDE DARCY RIBEIRO E DESIDRIO AYTAI

    Doutor em Histria pela UFG (Universidade Federal de Gois). Docente da UFMS (Universidade Federal deMato Grosso do Sul)/ Campus de Nova Andradina, e pesquisador colaborador da UnB (Universidade deBraslia). Atualmente diretor da Regional Centro-Oeste da ABHO (Associao Brasileira de Histria Oral) evice-presidente da Anpuh-MS (Associao Nacional de Histria Seo Mato Grosso do Sul). Endereoeletrnico: [email protected] Doutora em Histria pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Docente do Univag CentroUniversitrio de Vrzea Grande e pesquisadora da Funai (Fundao Nacional do ndio). Atualmente

    presidente do IHGMT (Instituto Histrico e Geogrfico de Mato Grosso). Endereo eletrnico: [email protected]

    Resumo: Este estudo tem como objetivoanalisar as contribuies de Darcy Ribeiroe Desidrio Aytai, tendo como ponto de

    partida a seguinte problemtica: qual acontribuio de ambos etnografiabrasileira? Dividimos este artigo em duaspartes Darcy Ribeiro e a vontade debeleza Kadiwu e Desidrio Aytai e a

    musicalidade Nambiquaraque discorremuma breve biografia dos antroplogos ediscutem a produo de ambos no que dizrespeito aos Kadiwu e Nambiquara.Nossa experincia junto a esses ndiosresponsabilizou-se pela deciso da escolha

    das referidas etnias, j que Ribeiro e Aytaiestudaram tambm outras sociedadesindgenas.Palavras-chave: Darcy Ribeiro,Desidrio Aytai, etnografia indgena

    Abstract: This study aims to analyzethe contributions of Darcy Ribeiro andDesidrio Aytai, taking as its starting

    point the following issues: thecontribution of both the Brazilianethnography? We split this article intotwo partsDarcy Ribeiro and desire forbeauty Kadiwu and Desidrio Aytai

    Nambiquara and musicality thatdiscourse a brief biography ofanthropologists and discuss theproduction of both with respect toKadiwu and Nambiquara. Ourexperience with these Indians was

    responsible for determining the choice ofthose ethnic groups, as Ribeiro and Aytaialso studied other indigenous societies.Keywords: Darcy RibeiroDesidrioAytaiIndian ethnography

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    Introduo

    Nascidos na primeira metade do sculo XX e falecidos na dcada de 1990, o

    brasileiro Darcy Ribeiro e o hngaro Desidrio Aytai, ambos antroplogos, tiveram seusnomes ligados histria de algumas sociedades indgenas localizadas em territrio

    brasileiro, respectivamente os Kadiwu e os Nambiquara. A respeito dos primeiros, Ribeiro

    escreveu sobre a mitologia, o xamanismo e dedicou especial ateno arte, notadamente a

    cermica e as pinturas corporais. Em relao aos Nambiquara, Aytai estudou o complexo

    mitolgico do grupo e a estreita ligao deste com os rituais das flautas retas e das flautas

    nasais. Os Halotesu, grupo Nambiquara do Cerrado, alm dos Mamaind e Katithaulu,

    ambos do Vale do Guapor, foram os sujeitos de suas pesquisas, transcorridas durante osltimos anos da dcada de 1960. Ribeiro e Aytai, portanto, tiveram parte de suas trajetrias

    acadmicas estreitamente relacionadas ao estudo da arte em sociedades nativas,

    representando uma enorme contribuio etnografia indgena no Brasil.

    Expresses da arte desenvolvidas por grupos indgenas localizados atualmente no

    pas fascinaram a viajantes, exploradores e etngrafos, alm de antroplogos e outros que

    tiveram a oportunidade de entrar em contato com tais populaes ao longo do tempo.

    Especialmente no sculo XX, com a popularizao das mquinas de registro de imagens e

    vozes humanas, foi possvel captar e preservar pinturas, msicas e outras formas de

    manifestao artstica que revelaram a aguada sensibilidade dos indgenas.

    Contudo, diferentemente do que ocorre entre os no ndios:

    [...] nas sociedades indgenas, a arte no compreendida sob umaperspectiva completamente intraesttica, pois pertence ao mesmo contextode outras expresses dos objetivos humanos [...]. Como evocaramBaudelaire e tambm Lvi-Strauss, o objeto esttico inteligveljustamente pelas correspondncias, pelas analogias entre seus diferentes

    domnios (VAN VELTHEM, 1994, p. 83).

    As trajetrias de Darcy Ribeiro e Desiderio Aytai representam um momento

    especfico da Antropologia brasileira, em que os pesquisadores, crentes na iminente

    desapario das populaes indgenas, imaginavam que, ao colecionar tais expresses e

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    descrev-las, legariam ao futuro vestgios de sociedades condenadas a se tornarem apenas

    lembranas na conscincia nacional, em futuro bem prximo.

    Passado meio sculo das primeiras publicaes destes dois pesquisadores, sabe-se

    hoje que a ideia do desaparecimento das populaes indgenas no Brasil est longe de se

    concretizar. O valor dos resultados das pesquisas de Darcy Ribeiro e de Desidrio Aytai,

    entretanto, permanece inegvel para a compreenso das trajetrias histricas dos Kadiwu,

    Nambiquara e de outros grupos com os quais estes antroplogos conviveram e sobre os

    quais escreveram (Urubu-Kaapor e Ofay, no caso de Ribeiro e Xavante, Bororo, Karaj e

    Paresi, no caso de Aytai). O objetivo do presente artigo desvendar aspectos da vida e da

    obra desses dois pesquisadores, ao mostrar como entre pinturas corporais e notas musicais,

    ambos, cada qual a seu modo e tempo, contriburam para a compreenso da histria

    indgena no Brasil e, particularmente, sobre a presena de populaes indgenas emfronteiras tnicas e nacionais.

    Darcy Ribeiro e a vontade de beleza Kadiwu

    O corpo humano a tela onde os ndios mais pintam

    e aquela que pintam com mais primor

    (Darcy Ribeiro)

    Contratado como professor de Histria pela Prefeitura Municipal de Porto

    Murtinho, Giovani Jos da Silva chegou pela primeira vez Reserva Indgena Kadiwu em

    julho de 1997. Em sua bagagem, um livro em especial funcionaria como uma espcie de

    guia para o seu primeiro contato com os guerreiros Kadiwu: tratava-se de Kadiwu:

    ensaios etnolgicos sobre o saber, o azar e a beleza (RIBEIRO, 1980a). O autor, Darcy

    Ribeiro, falecera meses antes, razo pela qual Jos da Silva jamais pode entrar em contato

    pessoalmente com o antroplogo durante os anos em que conviveu com aqueles ndios.Passou-se quase uma dcada (1997-2004) de contatos permanentes com a populao

    Kadiwu, em um trabalho de Educao Escolar Indgena que resultou na criao da Escola

    Municipal Indgena Ejiwajegi Plo e Extenses e a formao de crianas, adolescentes

    e jovens da referida etnia no Ensino Fundamental e no Ensino Mdio (Curso de Formao

    de Professores). O livro guia, usado nos primeiros anos desta convivncia, era, na

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    verdade, a publicao dos trabalhos de campo realizados por Ribeiro entre 1947 e 1948 e

    embora tivessem se passado cinquenta anos desde que aquelas anotaes etnogrficas

    haviam sido feitas, era possvel estabelecer ali um dilogo com os Kadiwu, por meio das

    palavras e impresses registradas por Darcy Ribeiro.

    Ribeiro nasceu em 26 de outubro de 1922 em Montes Claros, Estado de Minas

    Gerais, no Vale do Rio So Francisco. Em 1946, formou-se em Antropologia pela Escola

    de Sociologia e Poltica de So Paulo, dedicando seus primeiros anos de vida profissional

    ao estudo dos ndios do Pantanal, do Brasil Central e da Amaznia (1946-1956). Neste

    perodo, criou o Museu do ndio e formulou o projeto de criao do Parque Indgena do

    Xingu. Tambm elaborou para a Unesco (Organizao das Naes Unidas para a Educao,

    a Cincia e a Cultura) um estudo sobre o impacto do contato de no indgenas e indgenas

    brasileiros no sculo XX, publicando-o, pela primeira vez, em 1970 sob o ttulo Os ndios ea civilizao: a integrao das populaes indgenas no Brasil moderno (RIBEIRO, 1970).

    Em 1954, colaborou com a OIT (Organizao Internacional do Trabalho) na preparao de

    um manual sobre populaes indgenas de todo o mundo.

    O primeiro livro publicado por Darcy Ribeiro foiReligio e mitologia Kadiwu, em

    1950. Com ele, recebeu naquele mesmo ano o Prmio Fbio Prado de Ensaios. Mais tarde,

    reuniu este e outros textos que publicara separadamente sobre os Kadiwu, em belssima

    edio, com vrias pranchas que retratam as artes grficas e plsticas daqueles ndios

    (1980a).

    Embora tenha sido [...] econmico em mencionar passagens autobiogrficas

    (PECHINCHA, 2000, p. 155), em seus escritos a respeito dos Kadiwu, Darcy Ribeiro

    revelou em Confissesque:

    A primeira tribo com que trabalhei longamente foi a dos Kadiwu,remanescentes dos antigos Guaikuru, nicos ndios do Brasil quedominaram o cavalo e com ele impuseram sua suserania sobre muitas

    tribos de uma rea extensssima, que ia desde o Pantanal at todo o Sul deMato Grosso e levava seus ataques ao Rio Grande, fronteira de SoPaulo, a Boa Vista, ao alto rio Paraguai e s imediaes de Assuno.Com os Kadiwu foi que, de fato, aprendi a ser etnlogo, porque tanto euos estudava a eles, como eles estudavam a mim e, por meu intermdio, minha gente. [...] Sua mitologia conta que, tendo sido feitos por ltimo,quando o Criador no tinha com que aquinho-los, lhes deu, emcompensao, sua propenso guerreira para conquistar na guerra contrapovos tudo o que quisessem ter. a tpica genealogia de um povo

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    guerreiro, saqueador. Um herenvolk, que levou to a fundo seu papel e suaaristocracia que as suas mulheres deixaram quase totalmente de parir parasubstituir os filhos prprios por crianas tomadas de outras tribos que elesdominavam (RIBEIRO, 2002, p. 162-163).

    Darcy Ribeiro, que comeou sua vida profissional como antroplogo,posteriormente ingressou na rea educacional, chegando a ser ministro da Educao, em

    1962, durante o Governo Joo Goulart, com apenas 29 anos! Sua trajetria sempre esteve

    ligada vida poltica: foi ministro-chefe da Casa Civil do presidente Goulart, em 1963;

    vice-governador do Rio de Janeiro, em 1982; secretrio de Cultura e coordenador do

    Programa Especial de Educao do mesmo Estado, alm de senador da Repblica, de 1991

    at sua morte, em 1997. Durante esses mandatos, tambm concretizou projetos na rea

    ambiental. A intensa produo de livros o transformou em um membro da ABL (Academia

    Brasileira de Letras), em 1993.

    Sua produo na rea da educao e da cultura, no pas, foi marcada por meio da

    criao de universidades, centros culturais e de uma nova proposta educativa com os

    Centros Integrados de Educao Pblica, os Cieps, alm de ter legado inmeras obras

    traduzidas para diversos idiomas. Dedicou-se, tambm, educao superior, participando

    da criao da UnB (Universidade de Braslia), da qual foi o primeiro reitor. Mais tarde,

    chamado por Joo Goulart para ser ministro-chefe da Casa Civil, enquanto coordenava a

    implantao de reformas estruturais no pas ocorreu o golpe civil-militar de 1964, que o

    lanou no exlio, onde comeou a escrever os romances Mara e O Mulo. No retorno ao

    Brasil, em 1976, voltou a dedicar-se educao e poltica, tendo sido eleito vice-

    governador do Estado do Rio de Janeiro, em 1982. No ano seguinte, assentou as bases do

    que viria a ser o Programa Especial de Educao, com o encargo de implantar quinhentos

    Cieps, em horrio integral para crianas e adolescentes.

    Dentre as muitas obras que idealizou esto a Biblioteca Pblica Estadual do Rio de

    Janeiro, a Casa Frana-Brasil, a Casa Laura Alvim, o Centro Infantil de Cultura de Ipanemae o Sambdromo, que inicialmente tambm funcionava como uma enorme escola de Ensino

    Fundamental, alm do Memorial da Amrica Latina, edificado em So Paulo e projetado

    por Oscar Niemeyer. Ribeiro, por meio da atuao poltica, contribuiu ainda para o

    tombamento de praias e encostas do litoral fluminense, alm de mais de mil casas do Rio de

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    Janeiro antigo. A propagao de suas ideias rompeu fronteiras, pois Darcy Ribeiro viveu

    em vrios pases da Amrica Latina, onde conduziu programas de reforma universitria.

    Foi assessor do presidente Salvador Allende, no Chile, e de Velasco Alvarado, no

    Peru. Neste perodo, escreveu cinco volumes de seus Estudos de Antropologia da

    Civilizao (O Processo Civilizatrio;As Amricas e a Civilizao; O Dilema da Amrica

    Latina; Os Brasileiros: Teoria do Brasile Os ndios e a Civilizao), livros que atingiram,

    em conjunto, mais de noventa edies, em diversas tradues. Neles, props uma teoria

    explicativa das causas do desenvolvimento desigual entre os povos americanos. Como

    reconhecimento de sua importncia intelectual, Ribeiro foi agraciado com o ttulo de

    DoutorHonoris Causapor diversas universidades mundo afora.

    Elegeu-se senador da Repblica pelo Estado do Rio de Janeiro, em 1991, tendo

    elaborado a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional), sancionada pelopresidente Fernando Henrique Cardoso, em 20 de dezembro de 1996, como Lei Darcy

    Ribeiro. Entre 1991 e 1992, licenciado do Senado, assumiu a Secretaria Extraordinria de

    Programas Especiais do Rio de Janeiro, completando a rede de Cieps e criando um novo

    padro de Ensino Mdio. Planejou e criou, em 1994, a Uenf (Universidade Estadual do

    Norte Fluminense), sediada em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, na qual

    assumiu o cargo de chanceler. Durante a Conferncia Mundial do Meio Ambiente

    ECO92, realizada no Rio de Janeiro, em 1992

    implantou o Arboretum do Viveiro, dentro

    do Parque da Floresta Branca.

    Publicou, ainda,Aos Trancos e Barrancos, um balano crtico da histria brasileira

    de 1900 a 1980; Sobre o bvio, uma coletnea de ensaios e Testemunho, um balano de sua

    vida intelectual. Editou, juntamente com Berta Ribeiro, a Suma Etnolgica Brasileira, em

    trs volumes. Em 1992, publicouA Fundao do Brasil, um compndio de textos histricos

    dos sculos XVI e XVII, comentados por Carlos de Arajo Moreira Neto e precedidos de

    um longo ensaio analtico sobre os primrdios do Brasil. Em 1995, publicou O Povo

    Brasileiro, livro que encerrou a coleo de seus Estudos de Antropologia da Civilizao,

    alm de uma compilao de seus discursos e ensaios, intitulada O Brasil como Problema.

    Lanou, ainda, um livro para adolescentes, Noes de Coisas, com ilustraes de Ziraldo,

    obra premiada pela Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1996.

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    Naquele mesmo ano, publicou Dirios ndios: os Urubu-Kaapor, que reproduz

    integralmente os dirios de campo escritos em forma de cartas Berta Ribeiro, no perodo

    de 1949 a 1951, quando era etnlogo do SPI (Servio de Proteo aos ndios). Ainda em

    1996, recebeu o Prmio Interamericano de Educao Andrs Bello, concedido pela OEA

    (Organizao dos Estados Americanos) a eminentes educadores das Amricas. Organizou,

    tambm, a Fundao Darcy Ribeiro, com sede prpria, localizada em sua antiga residncia

    em Copacabana, com o objetivo de manter viva sua obra e elaborar projetos nas reas

    educacional e cultural. Um de seus ltimos projetos, lanado publicamente, foi o Projeto

    Caboclo. 1

    Darcy Ribeiro faleceu em 17 de fevereiro de 1997. 2No seu ltimo ano de vida,

    dedicou-se especialmente a organizar a Universidade Aberta do Brasil, com cursos de

    educao distncia, e a Escola Normal Superior, para a formao de professores deEnsino Fundamental. Desde as viagens de 1947-1948, Ribeiro jamais voltou aos Kadiwu,

    mas sempre se referiu a eles, em palestras, entrevistas e conferncias, com carinho e

    reverncia, chamando-os de meus ndios.

    Os Kadiwu, por sua vez, ao que parece, jamais o esqueceram:

    Muito me surpreendeu o entusiasmo que causava em dar notcias deDarcy Ribeiro, bem como o de contarem passagens de sua passagem ali.

    As velhas se recordavam de detalhes: a comida que fizeram, a dana a queele assistiu e o susto em ouvirem a sua voz emitida pelo seu aparelho degravao (PECHINCHA, 2000, p. 153).

    As pinturas corporais dos Kadiwu que tanto encantaram Darcy Ribeiro j haviam

    fascinado outros tantos pesquisadores antes dele, como se pode verificar nas obras de

    Guido Boggiani (1975), Claude Lvi-Strauss (2001) e Erich Freundt (1946). O conjunto de

    manifestaes artsticas, expressas por aquele grupo, recebeu do antroplogo a potica

    alcunha de vontade de beleza.

    1O Projeto Caboclo, de autoria de Darcy Ribeiro, era destinado a criar um plano alternativo de ocupao daAmaznia, baseado na experincia de adaptao dos ndios floresta, experincia esta herdada pelos caboclosque a habitavam, segundo o autor, nicos capazes de faz-la produzir e prosperar.2Para outras informaes sobre a biobibliografia de Darcy Ribeiro, consultar o stio eletrnico da Fundaoque leva seu nome, do qual algumas informaes aqui apresentadas foram extradas.

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    A antroploga Berta G. Ribeiro, companheira de Darcy Ribeiro por muitos anos,

    assim se refere s pinturas corporais dos Kadiwu, relacionando-as aos antigos e ancestrais

    Mbay-Guaikuru:

    O corpo o campo decorativo a que se aplica, de preferncia, a elaboradaarte pictrica Mbay-Guaikuru. Seus motivos entranham infinitascombinaes de desenhos curvilneos, escalonados, espiralados,mendricos e retilneos, simetricamente contrapostos em oposio binria.Dificilmente se ver a repetio de padres (RIBEIRO, 1985, p. 44).

    Darcy Ribeiro procedeu pesquisas de campo entre os Kadiwu no final da dcada de

    1940 e seus trabalhos mais importantes sobre os mesmos esto reunidos no volume

    Kadiwu: ensaios etnolgicos sobre o saber, o azar e a beleza que, como j indica o prprio

    ttulo, trata de mitologia, xamanismo e arte. Escreveu, tambm, um artigo intitulado Osistema familial Kadiwu, de 1948, publicado em Uir sai procura de Deus: ensaios de

    etnologia e indigenismo (1980b).

    Ribeiro, de acordo com a antroploga Mnica T. S. Pechincha (2000, p. 154),

    [...] esteve entre os Kadiwu nos ltimos meses de 1947, e de julho aoutubro de 1948 [...]. Vinculado perspectiva constituinte do pensamentodos pioneiros da etnologia brasileira, que logo se ocuparam com questesreferentes a processos de aculturao e com a ordem e/ou fatores de

    desorganizao social causadas [sic] pelos impedimentos impostospelas compulses do contato, o autor descreveu o povo que ento estudoucomo hostilizado e oprimido, como representante de uma variante domodo de ser dos brasileiros, que vivia e vestia-se como a gente maispobre da regio, e vendia, por temporadas, seu trabalho nas fazendasvizinhas [...] Mas o caracterizou, ainda, como representando uma ilhacultural de origem indgena, de qualquer forma resistente dominao e assimilao.

    Para Darcy Ribeiro (1980a, p. 269), a vontade de beleza Kadiwu, observada por

    ele, se expressava de maneiras distintas entre homens e mulheres. Sobre a pintura Kadiwu,

    de forma geral, observou que:

    Nas pinturas das mulheres a arte Kadiwu alcana sua mais altaexpresso, aquela que melhor espelha seu carter nacional e, na fase dedestribalizao que vivem hoje, eles prprios vem nela o maior motivode orgulho tribal. Com estas pinturas embelezam os corpos dos jovens, osobjetos de uso, desde as esteiras e couros em que dormem e com que

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    arreiam seus cavalos e bois, at os pequenos abanos de palha,emprestando-lhes uma caracterstica tribal inconfundvel.

    A progressiva extino do uso das pinturas corporais entre os Kadiwu, preconizada

    por Ribeiro, felizmente no se concretizou. Embora em desuso, ainda so observadas entre

    esses ndios at os dias de hoje. A esse respeito, o antroplogo Jaime G. Siqueira Jnior

    (1992, p. 53) afirma que:

    Atualmente, as pinturas so feitas em dias de festa pelas mulheres, queusam o suco do jenipapo misturado com o p de carvo, aplicado no rostocom uma lasca de madeira ou taquara. Os desenhos so to variados quenunca se repetem. Mesmo assim, eles marcam o estilo Kadiwu.

    Darcy Ribeiro, ou Betrra, como lhe chamaram os ndios, legou um vasto painel

    etnogrfico sobre os Kadiwu, ainda no superado por nenhum outro pesquisador at o

    momento, em que retratou como viviam estes indgenas no final dos anos 1940, quando

    formavam um contingente de pouco mais de duzentas pessoas. Embora no tenha sido um

    estudioso da msica Kadiwu, recolheu por meio de gravaes os sons produzidos por

    aqueles ndios em festas e rituais (CAMU, 1977). Nada comparado, contudo, com as

    preocupaes de Desidrio Aytai e os estudos que desenvolveu sobre a musicalidade dos

    Nambiquara e de outros grupos indgenas.

    Desidrio Aytai e a musicalidade indgena Nambiquara

    O espetculo era muito parecido a uma orquestra moderna,

    e alguns minutos antes do concerto,

    cada msico tocando outro trecho da partitura.

    (Desidrio Aytai)

    Contratada pela Funai no ano de 1982, Anna Maria R. F. Moreira da Costa chegou Terra Indgena Nambiquara, a noroeste de Mato Grosso com a atribuio de implantar um

    programa de Educao Escolar indgena direcionado s necessidades emergentes dos

    Nambiquara, principalmente quelas decorrentes do asfaltamento da rodovia Marechal

    Rondon, a BR-364, antiga 029. Esperava-se que essa estrada atrasse um enorme

    contingente de trabalhadores de diferentes partes do pas, e sua abertura atingiria vrios

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    territrios indgenas, dentre eles, o dos Nambiquara. Como um dos condicionantes do

    Banco Mundial, instituio financiadora, as populaes que viviam s suas margens,

    indgenas e no indgenas, deveriam receber ateno especial para que no sofressem tanto

    com o impacto que a movimentao da estrada traria s suas vidas. Na anlise do

    antroplogo Paul D. Price (1989, p. 2),

    [...] os ndios tiveram o infortnio de estar no caminho da rodovia de milmilhas, a ser construda ao longo da fronteira oeste do Brasil. A rodovia,agora completa, parte do controvertido Projeto Polonoroeste, que tentoudesenvolver, em uma nica operao, uma rea do tamanho da Califrnia.O projeto custou mais de um bilho de dlares, aproximadamente 1/3 doque foi levantado como emprstimo garantido pelo Banco Mundial.Morando no meio da regio condenada pelo desenvolvimento estavam osNambiquara, um povo livre e orgulhoso, muitos dos quais tinham pouco

    conhecimento dos ocidentais. [...] As sociedades tradicionais, pequenasdemais para revidar, so varridas para o lado; os sobreviventes socercados e deixados para trs. Os princpios gerais do que aconteceu aosNambiquara no Brasil nas mos do Banco Mundial so os mesmosencontrados em muitos outros pases do Terceiro Mundo, onde associedades tribais esto sendo esmagadas. 3

    Foi esse cenrio que recebeu a pesquisadora, uma das autoras do presente artigo, e

    que certamente era mais assustador do que aquele descrito por Claude Lvi-Strauss em

    Tristes Trpicos, quando foi invadido pela buclica vastido da Chapada dos Parecis,

    percorrida apenas [...] por pequenos bandos de ndios nmades, que esto entre os maisprimitivos que se possam encontrar no mundo; e cruzado, de um lado a outro por uma linha

    telegrfica (Lvi-Strauss, 2001, p. 256). A necessidade de conhecer a vida Nambiquara

    direcionou-a a uma multiplicidade de campos ainda por explorar, a substituir e/ou traduzir

    cdigos daquele novo universo. A inexatido das coisas, das ideias e at mesmo de

    comportamentos a fez pensar que [...] compreender menos, ser ingnuos, espantar-se, so

    reaes que podem nos levar a enxergar mais, a apreender algo mais profundo, mais

    prximo da natureza(GINZBURG, 2001, p. 29).

    Tal preocupao tambm se circunscreve nos escritos de Deleuze, para quem:

    3 Paul David Price foi um estudioso dos ndios Nambiquara e que, tambm, de 1974 a 1976 assumiu, naFunai, o cargo de coordenador do Projeto Nambikwarae, em 1980, a consultoria do Banco Mundial, rgofinanciador do Polonoroeste (Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil), implantadonas reas da Amaznia Legal.

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    Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos so objetos deum aprendizado temporal, no de um saber abstrato. Aprender , deincio, considerar uma matria, um objeto, um ser, como se emitissemsignos a serem decifrados, interpretados. No existe aprendiz que noseja egiptlogo de alguma coisa. Algum s se torna marceneirotornando-se sensvel aos signos da madeira, e mdico tornando-se sensvel

    aos signos da doena. A vocao sempre uma predestinao com relaoa signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato deaprender uma interpretao de signos ou de hierglifos (DELEUZE,2003, p. 4).

    Assim, a tentativa de compreenso das prticas cotidianas indgenas foi enriquecida

    pela busca de estudos sobre os Nambiquara. Desde o momento em que ingressou na Funai,

    Costa procurou informaes em arquivos, livrarias, bibliotecas, sebos, hemerotecas, alm

    de bibliotecas eletrnicas virtuais que possibilitassem investigar a presena Nambiquara em

    lugares no registrados e que fornecessem novas pistas. Tambm foram feitos contatos, porcorrespondncia, com pesquisadores que estudaram os ndios Nambiquara. No decorrer do

    ano de 1987, organizou-se o Centro de Documentao e Pesquisa na sede da Funai, em

    Vilhena, Rondnia. Alm dos raros livros sobre os Nambiquara, foram reunidos

    documentos, fotografias, artigos de jornais e revistas com a preocupao de

    instrumentalizar os funcionrios recm-contratados que passaram a atuar junto aos

    Nambiquara da Serra do Norte, Chapada dos Parecis e Vale do Guapor.

    Vrias correspondncias foram enviadas quelas pessoas que entraram em contato

    com os ndios e que realizaram pesquisas etnogrficas, para que incorporassem seus

    estudos ao acervo que ento se organizava. A criao do centro foi um esforo em

    proporcionar um suporte documental e bibliogrfico queles funcionrios que passariam a

    ter uma estreita vivncia com os Nambiquara e que chegariam s suas terras completamente

    desprovidos de informaes. As correspondncias endereadas a Claude Lvi-Strauss, Paul

    David Price e Desidrio Aytai foram extremamente oportunas para que o acervo da Funai

    pudesse incorporar estudos de etnografia Nambiquara.

    Foi nesse contexto que Costa passou, com regularidade, a se corresponder comDesidrio Aytai, entre 04 de dezembro de 1987 e 18 de janeiro de 1998, compondo um total

    de 129 cartas recebidas. O ir e vir desses estudos resultou na constncia de uma

    correspondncia que perdurou at 1998, ano da morte de Aytai, e que passou a orientar os

    trabalhos acadmicos realizados pela pesquisadora juntos aos ndios Potiguara, na Paraba,

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    e aos Nambiquara, de Mato Grosso. Em dez anos, ofcios, cartas, cartes postais,

    aerogramas e telegramas caracterizaram-se por ser da maior relevncia Antropologia, em

    especial, etnografia indgena. Mais do que ler e orientar escritos e desenhos, a presena de

    Aytai significou, na aldeia, a segurana do percurso acadmico que Costa necessitava para

    adentrar em um terreno to rido o da cultura material. E, assim, teve-se acesso ao

    resultado das pesquisas de campo realizadas nos anos 1960, em especial aquelas

    desenvolvidas entre os vrios grupos Nambiquara das trs reas culturais: Cerrado, Serra do

    Norte e Vale do Guapor.

    A seguir, pretende-se apresentar uma breve biografia, bem como a contribuio de

    Desidrio Aytai para a etnomusicologia indgena Nambiquara, tendo por base metodolgica

    uma anlise do levantamento bibliogrfico, sonoro e iconogrfico realizado ao longo desses

    anos, inclusas as cartas trocadas durante os anos de 1987 a 1998. Dentre os estudiosos quedesenvolveram pesquisas com os Nambiquara, Aytai foi o que mais contribuiu para o

    enriquecimento do acervo que se pretendeu criar em Vilhena. Foi nesse perodo que se teve

    acesso s Publicaes do Museu Histrico de Paulnia e aos estudos que Aytai escreveu

    sobre a etnologia Nambiquara, Xavante, Karaj, dentre outras. Na dcada de 1960

    iniciaram-se os trabalhos de campo do engenheiro etngrafo4junto aos grupos Nambiquara,

    bem como a publicao de uma srie de artigos. Entre 1963 e 1966, esteve entre os

    Mamaind e os Sarar, ambos os grupos localizados no Vale do Guapor. Com os grupos

    da Chapada dos Parecis realizou estudos em 1967, mais precisamente com o grupo

    Halotesu, e, nesse mesmo ano, retornou ao Vale do Guapor para pesquisar os Wasusu.

    A histria de Aytai no Brasil teve incio aps aSegunda Guerra Mundial,quando a

    Hungria tornou-se um Estado comunista. Avesso ao iderio comunista, Desidrio Aytai

    deixou a Hungria com sua famlia e trabalhou no Museu da Smithsonian Institution, em

    Washington, no Muse de lHomme, em Paris, e no Museu do Vaticano, em Roma. Em

    1948, o engenheiro mecnico formado pela Real Universidade Hngara imigrou para o

    Brasil, encontrando o espao propcio para construir sua carreira como antroplogo, depois

    de uma longa trajetria comoengenheiro mecnico.

    4Para conhecer mais sobre a atuao acadmica de Aytai, ler a traduo de Thekla Hartmann para o texto dePrice (1988), intitulado Desidrio Aytai: o engenheiro como etngrafo. Nessa mesma revista, Hartmann,ento etnloga do Museu Paulista, apresenta uma breve bibliografia de Desidrio Aytai, s pginas 165-168.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_Guerra_Mundialhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Smitasonian_Institution&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mus%C3%A9e_de_l%C2%B4Homme&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_do_Vaticanohttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Real_Universidade_H%C3%BAngara&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Engenheiro_mec%C3%A2nicohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Engenheiro_mec%C3%A2nicohttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Real_Universidade_H%C3%BAngara&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_do_Vaticanohttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mus%C3%A9e_de_l%C2%B4Homme&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Smitasonian_Institution&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_Guerra_Mundial
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    No campo da Arqueologia, iniciou suas pesquisas nos sambaquis do litoral sul de

    So Paulo. Os resultados das escavaes realizadas por Desidrio Aytai e os alunos do

    curso de Cincias Sociais da PUCC (Pontifcia Universidade Catlica de Campinas), no

    final da dcada de 1950 e no decorrer dos anos 1960, encontram-se no acervo da

    instituio, que tambm rene peas coletadas em expedies a comunidades indgenas do

    Centro-Oeste e Norte brasileiros. No ano de 1963, recebeu convite da PUCC para ocupar a

    cadeira deAntropologia do curso deCincias Sociais.Tambm foi professor e pesquisador

    na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)e em vrias faculdades. Aps aposentar-

    se, fundou na PUCC a Faculdade de Engenharia, momento em que ocupou o cargo de

    primeiro diretor.

    Como professor, Aytai passou grande parte de sua vida na regio de Campinas.

    Entretanto, em outras cidades prximas sua presena marcou uma trajetria no campo daAntropologia e da Arqueologia. Fundou o Museu Histrico Municipal de Paulnia 5, em

    Paulnia, o Museu Municipal Elisabeth Aytai, em Monte Mor, nome atribudo em

    homenagem a sua esposa, pesquisadora que encontrou, no ano de 1971, uma urna funerria

    de tradio Tupi, datada de 800 a 1.000 anos. O desejo pelo campo antropolgico, todavia,

    permaneceu acima de quaisquer outros interesses acadmicos. Organizou diversas

    expedies s terras Xavante, Bororo, Paresi, Guarani, Karaj, Nambiquara (grupos

    Halotesu,Katithaulu, Wasusu,Mamaind), vinculado ao antigo sonho de estudar culturas

    grafas da frica e da Amrica do Sul. Seus estudos preocuparam-se, em especial, pela

    msica indgena.

    Desidrio Aytai, conforme Deise Lucy Oliveira Montardo (2000, p. 6),

    [...] foi um dos primeiros autores a realizar uma anlise aprofundada damsica indgena. Ao transcrever mais de uma centena de canes xavante,o autor apontou, por exemplo, a existncia de uma estrutura polifnicanesta msica, desmistificando um dos preconceitos vigentes at omomento de que a msica indgena no apresentaria tais sofisticaes.

    5Rene Sarli informa que o Museu Histrico Municipal de Paulnia funciona em prdio construdo em 1913.Em 1977 graas ao empenho do professor Desidrio Aytai, feito um acordo entre a Prefeitura Municipal e aPontifcia Universidade Catlica de Campinas para criao do museu que inaugurado no ano seguinte.Criado para reunir e preservar a documentao, memria e objetos de imigrantes que vieram para o Brasil em

    busca de esperana, aventuras, fortuna ou simplesmente fugindo de uma situao difcil nas suas ptrias deorigem. Conta com um acervo histrico de 1.300 peas [...]. Disponvel emhttp://www.conhecapaulinia.com.br/a-cidade/pontos-turisticos/637-museu-historico-municipal-de-paulinia.Acesso em 11/11/2010.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ci%C3%AAncias_Sociaishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_Estadual_de_Campinashttp://pt.wikipedia.org/wiki/Xavantehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Bororohttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Paressi&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Guaranihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Karaj%C3%A1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Hal%C3%B3tessu_da_Serra_Azul&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mamaind%C3%AA&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mamaind%C3%AA&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Hal%C3%B3tessu_da_Serra_Azul&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Karaj%C3%A1http://pt.wikipedia.org/wiki/Guaranihttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Paressi&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Bororohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Xavantehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_Estadual_de_Campinashttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ci%C3%AAncias_Sociaishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia
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    Assim como Jos da Silva, em relao a Darcy Ribeiro, Costa no teve a

    oportunidade de conhecer pessoalmente Desidrio Aytai. Contudo, a etnologia aytaiana

    sobre os grupos Nambiquara deram a ela a oportunidade de conhec-lo e colocaram-na

    mais prxima do grande legado deixado por ele. Na poca da troca de correspondncias,

    Costa exercia a funo de professora de diversas aldeias da Terra Indgena Nambiquara,

    localizada na Chapada dos Parecis. Logo aps a aquisio da cpia de seu acervo

    fotogrfico, a correspondncia entre Aytai e Costa passou a ter um carter mais acadmico,

    na medida em que o pesquisador se incumbiu de orient-la em pesquisas direcionadas

    cultura material e imaterial dos ndios Potiguara, na Paraba. Por outro lado, depois de certo

    tempo, as cartas tambm passam a ter um teor mais pessoal, quando foram trocadas

    informaes sobre preocupaes cotidianas, famlia e ambiente de trabalho.

    Todos os textos da pesquisa desenvolvida entre os Potiguara foram lidos porDesidrio Aytai. Aps o levantamento dos artefatos confeccionados por esses ndios,

    iniciou-se a descrio de cada um deles, a partir da proposta de Berta G. Ribeiro, elaborada

    na obra Dicionrio do Artesanato Indgena (1988). Assim, os artefatos foram distribudos

    em nove categorias e receberam uma denominao em consonncia ao estudo, com o

    intuito de uniformizao da taxonomia. 6As descries passaram pelo olhar criterioso do

    professor Aytai, quando tambm se pode entrar em contato com obras terico-

    metodolgicas fundamentais abordagem, a partir de suas indicaes.

    Em meados de 1989, prosseguiram-se os estudos direcionados cultura material dos

    Nambiquara do Cerrado, quando tambm se contou com a orientao de Aytai. Novamente,

    as cartas foram uma fonte preciosa de informaes. Ao contrrio da documentao

    fotogrfica apresentada no estudo da cultura material e das plantas utilitrias e medicinais

    dos ndios Potiguara, no estudo Nambiquara optou-se pelos desenhos a nanquim sobre

    papel vegetal. Dessa maneira, a produo iconogrfica tambm foi enviada Aytai, para

    obter seu parecer, em que textos e desenhos passaram por sua criteriosa anlise. Algumas

    imagens, a fim de se obter maior clareza nos detalhes das peas, foram redesenhadas, a

    pedido dele. O resultado desta pesquisa, inicialmente depositada na Biblioteca Nacional, no

    Rio de Janeiro, possibilitou a edio de dois livros: Hatisu Nambiquara: lembranas que

    6O resultado da pesquisa sobre os artefatos Potiguara foi publicado pela Secretaria de Cultura do Estado daParaba, no livro intituladoPotiguara: cultura material (COSTA; MOREIRA DA COSTA, 1989).

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    viraram histrias (COSTA, 2005) e Alm do artefato: cultura material e imaterial

    Nambiquara (COSTA, 2009), publicaes estas que infelizmente o professor Desidrio

    Aytai no conheceu.

    A ltima participao de Desidrio Aytai nos trabalhos acadmicos de Costa

    ocorreu entre os anos de 1997 e 1998, durante a elaborao de Irmos do cho: os

    Nambiquara na etno-histria contempornea (COSTA, 1998), monografia apresentada

    UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), no Curso de Especializao em Histria.

    Nesse estudo, Aytai contribuiu de forma mpar na anlise dos textos e no enriquecimento

    da bibliografia referente aos Nambiquara, especialmente os estudos escritos em lngua

    estrangeira. Junto s cartas do professor, foram recebidos os nmeros das Publicaes do

    Museu Histrico de Paulnia, com artigos direcionados aos interesses de estudo da

    pesquisadora. Ao final de poucos anos, pode-se colecionar todos os nmeros do peridico,cuja edio foi interrompida aps a sua morte.

    Poucos estudiosos dedicaram-se especialmente s pesquisas sobre a msica

    Nambiquara. A esse respeito, Aytai informa que:

    [...] vrios autores que visitaram os Nambikuara falam das flautas, sem,porm, dar muitos detalhes. C. Lvi-Strauss, por exemplo, no seuexcelente trabalho sobre vrios grupos destes ndios, diz que as flautas sousadas nas festas do fim da poca das chuvas, mas no menciona a

    existncia de uma choupana especfica para guard-las pelo contrrio,conta que os ndios esconderam as flautas recm-fabricadas entre osgalhos de uma rvore perto da aldeia, e fizeram, a pedido dele, umademonstrao da msica a certa distncia da aldeia, para evitar qualquerindiscrio feminina (AYTAI, 1967-68, p. 69-70).

    As pesquisas de Aytai e, posteriormente, as de Costa, mostram que o espao

    musical entre os Nambiquara d-se tanto no ptio central, circundado por casas

    habitacionais, como no interior de uma casa ritual, construda pelos homens especialmente

    para entoarem os instrumentos de bambu, com e sem ressonador de cabaa. No h aobrigatoriedade da guarda das flautas retas ser exclusivamente na casa das flautas. O

    interior da mata, longe da curiosidade e dos olhos femininos, pode ser tambm um local

    apropriado para esconder os instrumentos musicais, entre galhos e, at mesmo, enroladas

    em cobertores. So entoadas durante o cultivo de plantas comestveis e utilitrias,

    necessria sobrevivncia dos Nambiquara. Ao som da msica, os Nambiquara ingerem

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    uma bebida base de mandioca e despejam-na tambm no interior das flautas,

    alimentando-as, pois creem que ali se encontra a alma do menino que, no tempo mtico,

    transformou-se em plantas utilitrias e comestveis para seu povo.

    Outros pesquisadores dedicaram-se ao estudo da msica Nambiquara tais como

    Halmos que escreveu La flte nasale chez les indiens Nambicuara (BOGR; HALMOS,

    1962), Melody and form in the music of the Nambicuara Indians (Mato Grosso, Brazil)

    (1964) e The music of the Nambiquara indians (1979). Avery destaca-se entre os autores

    por ter maior produo voltada msica dos Mamaind, um dos grupos Nambiquara do

    Vale do Guapor. Publicou, na dcada de 1970, vrios artigos de suma importncia para o

    conhecimento da msica vocal Mamaind (AVERY, 1977). Aspectos musicais da msica

    Nambiquara tambm foram apresentados por Lesslauer (1999).

    Contudo, num cenrio geograficamente mais amplo, o antroplogo Rafael Jos deM. Bastos aponta que:

    [...] o cenrio atual da etnomusicologia das terras baixas da Amrica do Sul extremamente promissor. Se, por um lado, pode-se aqui contar com a existnciade um nmero significativo de estudos, por assim dizer, inaugurais no perodoaqui enfocado [...] por outro, ele inclui, tipicamente no Brasil e a partir dasegunda metade dos anos 1990, uma frtil florao de pesquisas realizadas poruma nova gerao de etnomusiclogos, a maioria deles antroplogos (BASTOS,2007, 295-296).

    Em relao aos ndios Nambiquara do Cerrado e do Vale do Guapor, a maior parte

    dos estudos de Aytai encontra-se nas Publicaes do Museu Histrico de Paulnia (de incio

    denominadas Publicaes do Museu Municipal de Paulnia), atualmente esgotadas e de

    difcil acesso queles interessados em conhec-los e estud-los. 7Duas dcadas marcaram a

    existncia das Publicaes, sendo que de 1977 a 1997, apresentou 72 nmeros, com artigos

    escritos por diversos autores, especialmente no campo da Antropologia. Dentre eles,

    Desidrio Aytai escreveu 74 artigos sobre etnologia indgena, com temtica variada:

    7Anna Maria Ribeiro F. M. da Costa repassou ao acervo do IHGMT (Instituto Histrico e Geogrfico deMato Grosso) a coleo completa das Publicaes do Museu Histrico de Paulnia, a fim de que sejadigitalizado e disponibilizado no site da referida instituio. Em breve, sob a coordenao de Paulo PitalugaCosta e Silva, as Publicaes Avulsas do IHGMT, dedicadas s obras raras e esgotadas sobre Mato Grosso,disponibilizaro, em dois volumes, todos os nmeros das Publicaesque tratam sobre os Nambiquara, deautoria de Desidrio Aytai. Outra oportunidade em se ter acesso a alguns nmeros das Publicaes foiofertada por Joo Veridiano Franco Neto, mestre em Antropologia Social pela Unicamp e membro do Centrode Pesquisa em Etnologia Indgena da mesma universidade, que digitalizou parte dos nmeros dasPublicaes e disponibilizou diversos linksde acesso aos downloads.

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    mitologia, msica, cultura material, arqueologia e outros temas como manuais para

    etnomusiclogos e recomendaes para um antroplogo principiante. Destes, Aytai

    reservou 29 artigos exclusivamente para estudos sobre a etnomusicologia Nambiquara,

    Xet, Xavante, Bororo, Karaj, inclusas as canes e assovios. Os estudos intitulados Da

    caderneta de campo do antroplogo (1986 a 1987) caracterizam-se por apresentar um

    conjunto de informaes contidas em seus apontamentos de pesquisas realizadas no perodo

    em que esteve em expedio junto aos ndios Xet, Bororo, Karaj, Nambiquara e Xavante.

    Os minimanuais para etnomusiclogos, em trs artigos, preocuparam-se em apresentar ao

    pesquisador iniciante condutas para os estudos de campo, atentando-se principalmente para

    a coleta de dados.

    Os escritos especficos sobre msica indgena abarcam desde a gravao em campo

    dos rituais at a descrio do instrumento musical propriamente dito, como fez com osXavante, em sua tese de livre-docncia (AYTAI, 1985). Sua trajetria etnogrfica percorre

    as fontes e a estrutura da msica, os sons que formam os cantos, as melodias, a polifonia, a

    letra, o ritmo. Os ornamentos e a maneira de cantar no passaram despercebidos por Aytai

    e, muitas vezes, foram comparados a outros ritmos musicais. H, em todos os artigos, um

    rico registro iconogrfico, elaborado por suas prprias mos, que extrapola o intento de

    apenas ilustrar, mas que integra o prprio corpo do texto, enriquecendo-o e facilitando sua

    compreenso.

    A msica vocal tambm mereceu a ateno do pesquisador. Cuidou de realizar uma

    compilao de relatrios completos e detalhados dos fatos etnomusicolgicos coletados e

    registrados em pesquisas de campo durante a dcada de 1960, oportunizando o

    conhecimento dos segredos e encantos da msica Nambiquara, at hoje no superada por

    nenhum outro estudo. Desidrio Aytai reuniu um vasto acerto sonoro, gravado em fitas-

    cassetes e que, aps sua morte, chegou s mos de Costa como herana de uma amizade de

    dez anos, calcada nas sensaes que a escrita forneceu a ambos. A coleo das gravaes

    foi repassada ao Museu do ndio, da Funai, no Rio de Janeiro, a fim de receber

    armazenamento adequado e gravao em CD, resguardando-se to precioso registro sonoro.

    Mas, no somente as Publicaes do Museu Histrico de Paulnia apresentam

    estudos de etnomusicologia Nambiquara, de autoria de Desidrio Aytai. A Revista da

    Universidade Catlica de Campinaspublicou, entre os anos de 1965 a 1972, os artigos Os

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    cantores da floresta (Partes I, II, III e IV) (AYTAI, 1964; 1965; 1966; 1972), contendo

    importantes notas etnogrficas sobre os ndios Mamaind, do Vale do Guapor, nelas, com

    exceo da parte IV, inclusas referncias musicais. Peridicos estrangeiros tambm

    contemplaram os escritos de Aytai: os Cahiers de musiques traditionnelles (1989),

    publicados em Genebra, reservaram algumas pginas para La Flte Nasale des Indiens

    Nambikuara, um volume dedicado especialmente msica instrumental. Nesse estudo, a

    flauta nasal tem um destaque merecido por ser um instrumento raro entre populaes

    indgenas. Dois fragmentos de cabaa, de formato arredondado, so unidos por cera de

    abelha. Em uma das partes possui trs orifcios: um destinado ao sopro nasal e dois

    digitao dos dedos indicadores. Tanto a flauta reta de bambu como a flauta nasal so

    instrumentos musicais que estabelecem uma relao dos Nambiquara com o mundo

    espiritual. A msica instrumental como a vocal so uma das possibilidades que osNambiquara tm para estabelecer vnculos com os espritos ancestrais e da natureza.

    Desidrio Aytai, em suas pesquisas de campo, no se ateve somente a descrever e estudar

    os sons produzidos por essas flautas. Estendeu sua aguada observao aos patamares mais

    recnditos da religiosidade, como comprova seus escritos sobre a etnomusicologia

    Nambiquara.

    As mais de cem cartas recebidas de Desi8oportunizaram a Costa conhec-lo, alm

    do inestimvel legado etnogrfico deixado para a Antropologia. Sem dvida, os tantos selos

    postais colados nos envelopes de cores e tamanhos diversos selaram, tambm, uma amizade

    que rompeu distncias e minimizou a impossibilidade de no conhec-lo pessoalmente.

    Entretanto, as cartas de trabalho, aos poucos, foram se tornando tambm cartas de amizade.

    E na cadncia de conversas to variadas, de experincias compartilhadas, desenhou-se seu

    perfil. Pouco antes de sua morte, ainda trabalhando do Museu Elizabeth Aytai, em Monte

    Mor, aos 93 anos, suas ltimas cartas eram assim assinadas como Desidrio fssil!

    Concluso

    8Desi, segundo informaespessoais repassadas aos autores por Zilda Rangel, era a maneira carinhosa comque as pessoas mais prximas se dirigiam a Desidrio Aytai. Rangel , atualmente, coordenadora do MuseuElizabeth Aytai e teve o privilgio de trabalhar um longo perodo ao lado de Aytai.

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    fato que os prognsticos de Darcy Ribeiro a respeito do desaparecimento de

    populaes indgenas no Brasil, felizmente, no se fizeram cumprir. Passados quarenta anos

    da publicao de Os ndios e a civilizao verifica-se no apenas que muitas das

    populaes dadas como extintas pelo autor, de fato, no apenas no desapareceram, como

    esto crescendo demograficamente de forma expressiva. Por outro lado, o registro de

    atividades artsticas Kadiwu, especialmente as ligadas s pinturas corporais, teve o mrito

    de preservar informaes a respeito de uma manifestao de arte estritamente relacionada

    ao universo feminino e que se no est em completo desuso nos dias de hoje, j no

    apresenta o vigor de outrora.

    O prprio Darcy Ribeiro foi um crtico contumaz da tradio antropolgica de

    colecionar objetos de arte indgena, com fins museolgicos, prtica que segundo Lcia

    Hussak Van Velthem (1994) teve incio com a descoberta do Novo Mundo e se estendeuat princpios do sculo XX.

    Para Ribeiro:

    Vivendo a vida indgena e tratando de colecionar objetos com propsitosmuseolgicos, sentimos a estranheza que provocava nos ndios a nossaocupao. Para eles, retirar aquelas coisas do uso corrente e ret-las seriacomo perder a f de que os homens sejam capazes de continuar a faz-las.O importante para os ndios no deter o objeto belo, mas ter os artistasali, fazendo e refazendo a beleza, hoje como ontem, amanh e sempre.Essa certeza de que a vida est composta de coisas que tm tantopotencialidades prticas como expresses de beleza, lhes d uma grandesegurana. Segurana que no temos ns que tanto colecionamosespcimes raros, como desprezamos seus criadores (RIBEIRO, 1987, p.30).

    Darcy Ribeiro voltou inmeras vezes, em seus escritos, ao tema das pinturas

    corporais Kadiwu, desde que publicou, em 1951,Arte dos ndios Kadiuu. Certa vez,

    afirmou que A mais elaborada arte de desenho dos ndios americanos a dos padres de

    pintura de rosto e de corpo dos meus Kadiwu. Esta velha arte feminina assombrou at oscolonizadores europeus, habitualmente cegos para as expresses de beleza dos povos

    indgenas (RIBEIRO, 1987, p. 46; grifo dos autores). No somente os Kadiwu se

    destacaram no cenrio artstico indgena com suas pinturas corporais, mas tambm os

    Asurini, osXavantee os Wayana, dentre inmeros outros. Trata-se de uma atividade no

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    apenas de cunho artstico, mas de importncia social relevante para muitos grupos

    indgenas.

    De acordo com Lux Vidal (1985, p. 16),

    Aplicada no corpo, a pintura possui uma funo essencialmente social emgico-religiosa, mas tambm a maneira reconhecidamente bonita ecorreta de apresentar-se, havendo aqui uma correspondncia entre o ticoe o esttico. Em muitas sociedades indgenas, a decorao do corpoconfere ao homem a sua dignidade humana, o seu ser social, o seusignificado espiritual e identidade grupal. A decorao concebida par ocorpo, mas o corpo s existe atravs dela.

    J em relao msica, a contribuio acadmica do antroplogo hngaro, radicado

    no Brasil, Desidrio Aytai foi inquestionavelmente decisiva para o conhecimento da cultura

    musical dos indgenas no pas, em especial, dos grupos Nambiquara. Seus estudos soconsiderados de referncia para pesquisadores interessados em ter acesso s especificidades

    da msica daqueles ndios. E, ainda, considerando a escassez de obras sobre a cultura

    musical dos ndios que atualmente habitam o territrio brasileiro, a contribuio de Aytai

    atinge maior dimenso, pois teve o mrito de conservar informaes etnomusicolgicas de

    grupos humanos que hoje passam por rpidas transformaes sociais. Os estudos so,

    certamente, uma referncia aos interessados em conhecer o campo da msica indgena,

    ainda pouco explorado pela Antropologia e pela Histria.

    O antroplogo Anthony Seeger afirma que:

    [a] msicaestruturas de som e tempo geralmente considerada pelosndios parte fundamental de sua vida e no apenas uma de suas opes[...] Os instrumentos musicais na Amrica do Sul compartilham daimportncia da msica. So tidos, freqentemente, pelos nativos, comoobjetos que incorporam um poder identificado com diversas espcies deespritos, seres ou grupos de pessoas. [...] A msica uma facetaimportante na vida social e os instrumentos musicais so parte importanteda cultura material (SEEGER, 1987, p. 174).

    Dessa forma, Aytai, por meio de seus estudos, revelou um dos aspectos mais

    relevantes na vida dos grupos indgenas a msica , geralmente negligenciada como

    objeto de estudo por pesquisadores de distintas reas do conhecimento. A exiguidade de

    material sobre a msica indgena deve-se, por um lado, dificuldade em registrar fenmeno

    to efmero como o som e, por outro, dificuldade em se compreender a msica indgena

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    nos contextos em que ela produzida. Desidrio Aytai conseguiu superar tais dificuldades,

    legando um riqussimo acervo ainda a ser explorado. 9

    Ribeiro, por sua vez, legou uma vasta etnografia a respeito dos Kadiwu e foi

    considerado por estes indgenas, um (quase) Kadiwu, uma vez que Histria e mito

    definiram uma aliana e fizeram de Darcy Ribeiro algum capaz de reconfirmar os

    smbolos Kadiwu (PECHINCHA, 2000, p. 161).

    Assim, entre pinturas corporais Kadiwu e notas musicais Nambiquara, Darcy

    Ribeiro e Desidrio Aytai legaram um vasto conhecimento sobre expresses artsticas e

    culturais que, de outra forma, poderiam estar irremediavelmente perdidas, posto que as

    pinturas corporais entre os Kadiwu hoje em dia encontram-se em progressivo desuso,

    enquanto entre os Nambiquara os interesses musicais comeam a se aproximar dos ritmos

    no indgenas. A contribuio de ambos para a etnografia indgena no Brasil, portanto, mpar e revela a trajetria histrica de modos de ser e viver nicos de populaes indgenas

    cujo passado, graas aos trabalhos de dois incansveis pesquisadores, mais belo e sonoro.

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    9Desse acervo, mesmo que a questo central da discusso no discorra totalmente sobre a etnomusicologiaNambiquara, destaca-se o primoroso artigo intitulado Os cantores da floresta. Parte IV: a origem dos ndiosMamaind (AYTAI, 1972). Isso porque se desconhece hipteses consistentes que expliquem a existncia dosmais de trinta grupos que compem a sociedade Nambiquara atual. Os Nambiquara, embora partilhando deuma mesma filiao lingustica e de elementos culturais comuns, distinguem-se claramente entre si pordeterminados aspectos de sua organizao social, de sua cultura material e de seu sistema de crenas

    (COSTA, 2010, p. 91). Nesse estudo de Aytai sobre os Mamaind, ao partir de uma anlise glotocronolgicadas lnguas classificadas como Nambiquara, acredita-se que um grupo ancestral comum (proto-Nambiquara)ocupava uma rea localizada no divisor das guas do alto curso dos rios Guapor e Juruena. Em decorrnciade uma grave crise h aproximadamente 4.000 anos, esse grupo se dividiu em cinco: os Mamaind, Sarar(Katithaulu), Tauit, Tagnani (Tawent), Kkz (Wakalitesu). Aytai calculou que o epicentro da separaoocorreu no territrio ocupado atualmente pelos Mamaind, forando a disperso do que viria a se const ituir noTawent, ao Norte; no Tauit e o Katithaulu, ao Sul; e no Wakalitesu, ao Leste. Este ltimo grupo deuorigem, durante a migrao, h 1.400 anos, ao Anunz (Kithulhu). Pouco depois, h 1.100 anos, se cindiunovamente, formando o Halotesu e, finalmente, h cerca de 400 anos, o Wasusu se separou.

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    Artigo recebido em 01 de novembro de 2010.Artigo aceito em 02 de dezembro de 2010.