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CULTURA E RESISTÊNCIA POLÍTICA NA NOVA CANÇÓ Alberto Moby Ribeiro da Silva * Alexandre Felipe Fiuza RESUMO Este artigo se propõe a discutir o movimento musical conhecido como Nova Cançó, que teve no cerne de sua articulação a luta contra a ditadura franquista, mediante a afirmação de uma identidade linguística, cultural e de autonomia catalã em relação ao Reino Espanhol. Em razão de sua relevância no país, o movimento sofreu uma significativa perseguição política e de censura pelo regime franquista, não só em relação às obras de seus autores como também aos espetáculos e à execução de suas canções na mídia. Para tratar deste tema, este texto se valeu de uma gama de fontes, como discografia, bibliografia e uma extensa e inédita documentação da censura discográfica espanhola. Palavras-Chave: Nova Cançó. Censura Discográfica. Franquismo. Cultura. CULTURE AND POLITICAL RESISTANCE IN NOVA CANÇÓ ABSTRACT This article proposes a discussion on the musical movement known as Nova Cançó (The New Song in Catalan), which was articulated on the basis of the struggle against the Francoist dictatorship by affirming the Catalan linguistic and cultural identity, as well as the Catalan autonomy from the Spanish Kingdom. Due to its relevance in the country, this musical movement faced significant political persecution and censorship by the Francoist regime, not only in relation to the works of its composers but also in relation to the shows and the performance of their songs in the media. For addressing this topic, this text uses a wide range of sources, such as discography, bibliography and a vast and unpublished documentation of the Spanish discographic censorship. * Doutor em História Social pela UFF; professor da Universidade Estácio de Sá e da rede municipal de educação de Angra dos Reis. Endereço eletrônico: [email protected] . Pós-Doutor em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri e professor do Colegiado de Pedagogia e do Mestrado em Educação da UNIOESTE/ Campus de Cascavel. Endereço eletrônico: [email protected] . 1

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CULTURA E RESISTÊNCIA POLÍTICA NA NOVA CANÇÓ

Alberto Moby Ribeiro da Silva*

Alexandre Felipe Fiuza

RESUMOEste artigo se propõe a discutir o movimento musical conhecido como Nova Cançó, que teve no cerne de sua articulação a luta contra a ditadura franquista, mediante a afirmação de uma identidade linguística, cultural e de autonomia catalã em relação ao Reino Espanhol. Em razão de sua relevância no país, o movimento sofreu uma significativa perseguição política e de censura pelo regime franquista, não só em relação às obras de seus autores como também aos espetáculos e à execução de suas canções na mídia. Para tratar deste tema, este texto se valeu de uma gama de fontes, como discografia, bibliografia e uma extensa e inédita documentação da censura discográfica espanhola.Palavras-Chave: Nova Cançó. Censura Discográfica. Franquismo. Cultura.

CULTURE AND POLITICAL RESISTANCE IN NOVA CANÇÓ

ABSTRACTThis article proposes a discussion on the musical movement known as Nova Cançó (The New Song in Catalan), which was articulated on the basis of the struggle against the Francoist dic-tatorship by affirming the Catalan linguistic and cultural identity, as well as the Catalan auton-omy from the Spanish Kingdom. Due to its relevance in the country, this musical movement faced significant political persecution and censorship by the Francoist regime, not only in re-lation to the works of its composers but also in relation to the shows and the performance of their songs in the media. For addressing this topic, this text uses a wide range of sources, such as discography, bibliography and a vast and unpublished documentation of the Spanish disco-graphic censorship.Keywords: Nova Cançó. Discographic Censorship. Francoist. Culture.

Introdução

Durante as décadas de 1960 e 1970, em cada um dos cinco continentes, em quase todos os países, e sob os mais variados sistemas políticos, o mundo conheceu uma espécie de sentimento comum de rebeldia entre os jovens. Ao lado das guerras, as manchetes dos jornais falavam da odisséia de 519 milhões de inconformados. Contestando e contestada, uma onda de rebeldia tomou uma parte significativa da juventude, que lutou com todas as armas para destruir o “velho” e impor o “novo”, mesmo que para ela nem sempre estivesse muito claro o significado dessas duas palavras. Foram anos de luta e de recusa, pacífica ou violenta.

A revolta juvenil dos anos 60 deixou de ter simples motivações psicológicas ou filosóficas, como, por exemplo, as vinculadas ao existencialismo francês, para ganhar componentes sociológicos novos e se constituir em problema social. De um dia para o outro “a nossa esperança do amanhã”, como diziam os adultos, resolveu fazer o presente. Como afirmaram, era preciso deixarem de ser objetos para serem sujeitos da História, passando a ser destruidores de tudo o que estava estabelecido e consagrado: valores e instituições, ideias e tabus. Com a pressa da sua provisória condição e com a coragem da idade, eles afrontaram a * Doutor em História Social pela UFF; professor da Universidade Estácio de Sá e da rede municipal de educação de Angra dos Reis. Endereço eletrônico: [email protected]. Pós-Doutor em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri e professor do Colegiado de Pedagogia e do Mestrado em Educação da UNIOESTE/ Campus de Cascavel. Endereço eletrônico: [email protected].

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moral vigente e arrancaram as pedras das ruas para com elas sepultarem as estruturas da sociedade: capitalista ou comunista, de opulência ou de miséria. Criticavam o autoritarismo, a violência, o imperialismo, o anticomunismo, a repressão sexual e política, o conservadorismo, o moralismo, a miséria, a fome, a desigualdade social, o atraso econômico, as guerras, as armas e tantas práticas e tradições que pareciam ir contra tudo o que a explosão de juventude e renovação do início da segunda metade do século XX trazia.

No campo das artes, merece destaque especial a música popular urbana, um produto evidente de um complexo industrial-ideológico que procura explorar ao máximo a força penetrante que esta arte tem. O extraordinário poder de propagação social que vem de sua própria materialidade, do seu caráter objetivo/subjetivo (está fora, mas está dentro do ouvinte) e simultâneo (vivido por muitas pessoas ao mesmo tempo) não impede que ela seja, simultaneamente, instrumento de luta, dado seu enraizamento popular. Por essa razão, nas décadas de 1960 e 1970, surgiu ao redor do mundo um novo cancioneiro para o qual foram cunhados os mais variados termos, tais como “canção política”, “canção engajada”, “canção de intervenção”, “canção de protesto”, “canção de réplica”, “canção de circunstância”, “canção de testemunho”, “canção contestatória”, entre outros. Em alguns países ou regiões cunharam-se expressões que quase se confundem com a identidade nacional e/ou com conjunturas políticas próprias, tais como “nueva canción” (países da América Latina, com destaque para o Chile), “nueva trova” (Cuba), “nova cançó” (Catalunha), “nova canción” (Galícia), entre outros. Nesses casos, apesar de não haver fronteiras para a música, dadas as condições específicas de cada país, a canção nacional pôde assumir características também bastante específicas e interessantes que, se não desautorizam as semelhanças entre os vários movimentos musicais das décadas de 1960 e 1970, merecem ser analisados em suas singularidades.

É o caso do movimento conhecido como Nova Cançó, que reflete as lutas de cantores e compositores da região da Catalunha, na Espanha, contra a ditadura do general Francisco Franco (1939-1975). Apesar das semelhanças com outros movimentos de conscientização política, de protesto e de resistência a situações injustas ou a regimes de força, como a protest song dos EUA, a Nueva Canción chilena ou a MPB do regime militar brasileiro, pretende-se discutir aqui o movimento musical Nova Cançó como articulação dessa luta contra a ditadura franquista mediante a afirmação de uma identidade linguística e cultural e da autonomia catalã em relação ao Reino Espanhol. Contra ela foi impiedosa a ditadura franquista, não só com relação às obras de seus autores como também com relação à sua atuação em público e à execução de suas canções na mídia.

A Nova Cançó prontamente foi objeto de investigação acadêmica e de trabalhos do campo do Jornalismo. A primeira obra de maior fôlego foi publicada já em 1968, intitulada Antología de la “Nova Cançó” catalana, de Manuel Vázquez Montalbán. Segundo o próprio autor, este livro foi: “[...] concebido como un reportaje cultural informativo, dirigido preferentemente al público de habla castellana: de ahí la parte fundamental dedicada al cancionero bilingue y las continuas aclaraciones culturales [...]” (1968, p. 09). Esta obra conta com uma entrevista com um dos criadores da Nova Cançó, Miquel Porter Moix, e com uma cronologia e discografia escrita por seu irmão Josep Porter Moix. Por sua vez, coube a Vázquez Montalbán uma breve introdução ao tema, uma antologia com as principais letras de canções e a realização de outras seis entrevistas com cantores do movimento: Enric Barbat, Maria del Mar Bonet, Guillermina Motta, Raimon, Francesc Pi de la Serra e Joan Manuel Serrat (na verdade, nesse capítulo, o autor explica porque não conseguiu realizar a referida entrevista).

Outro livro fundador na exploração do mesmo tema é intitulado La nova cançó e foi escrito por Jordi García-Soler. Para ele, o fenômeno musical em apreço é: “Testimonio canviant i viu del nostre esdevenidor ciutadà canviant i viu, fenomen artístic de gran

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transcendència i moviment cultural d’inquestionable repercussió popular, la nova cançó constitueix un dels aspectes més interessants de tota la nostra vida artística, cívica, cultural, política y social” (1976, p. 107). Portanto, com o surgimento da Nova Cançó, o idioma catalão teria um novo alento e uma maior visibilidade, para além do seu emprego no universo doméstico. A canção era um meio privilegiado para a valorização da língua e da cultura da Catalunha, ao passo que também trazia um forte conteúdo político pelo emprego do idioma e pelos temas presentes no discurso musical. Acresce-se a tal fato seu poder aglutinador em meio a espetáculos culturais e políticos durante a ditadura franquista.

Para Jordi Turtós e Magda Bonet, o papel desempenhado pelos músicos ligados ao movimento musical é ainda mais complexo e teve como ponto de partida o advento do principal grupo que alavancou todo este processo: “La Nova Cançó, en la cual los expertos dicen ver uno de los hilos conductores sobre el que se creó la base del pensamiento moderno catalán de finales de siglo, se aglutinó en torno a los Setze Jutges. Dieciséis autores i intérpretes que, a falta de infraestructura para moverse por las latitudes y longitudes de los Países Catalanes, daban recitales juntos” (1998, p.15).

Por sua vez, uma das principais obras sobre este movimento musical advém da tese de doutoramento defendida em 1991 junto à Faculdade de Filologia da Universidade Autônoma de Barcelona, por Llorenç Soldevilla i Bailart1 e lançada em livro em 1993, sob o título: La Nova Cançó (1958-1987): balanç d’uma acció cultural. Trabalho de cunho multidisciplinar, nele o autor realiza cuidadosas análises sócio-históricas, literárias, musicais, estéticas e bibliográficas. No livro há ainda uma das mais completas discografias da nova cançó já realizadas.

Não caberia aqui neste breve texto uma fortuna crítica da extensa bibliografia sobre a Nova Cançó, mas podemos acrescer ainda a tal produção o esclarecedor artigo “La nova cançó catalana: génesis, desarrollo y trascendencia de un fenómeno cultural en el segundo franquismo”, de Carlos Araguez Rubio (2006). Um dos méritos deste breve trabalho é o fato de conjugar uma revisão bibliográfica com a análise da documentação da Censura discográfica, fonte raramente observada. O autor explora questões chave para o entendimento do movimento, como a influência da canção francesa, a defesa da língua e da cultura catalã, seu caráter músico-literário, as primeiras gravações, os festivais da canção, além da importância do grupo El Setze Jutges em todo este processo. O autor também aborda as mudanças pelas quais passou o serviço censório: “La realidad en estos momentos, ya entrando en los setenta, era que se empezaba a abandonar la fórmula de declarar a las canciones ‘No radiables’, para censurar completamente algunos temas sin escrúpulos. Probablemente esto venía dado por los cambios al frente del Ministerio (Fraga lo abandona en 1969) y de la censura musical” (Araguez Rubio. 2006, p. 92).

A exemplo de outros autores, Araguez Rubio reitera a forte inserção da Nova Cançó para além da Catalunha: “[...] el modelo catalán fue seguido en regiones como el País Vasco o Galicia, donde a fines de los sesenta se empieza a hablar de Nueva Canción Vasca y Gallega respectivamente”.2 No mesmo caminho, e também advinda de uma inovadora investigação, 1 O mesmo autor já havia publicado em 1984 uma cuidadosa coletânea intitulada La cançó catalana (1959-1984): Antología. Barcelona: Edicions 62, 1984.2 As entrevistas que Alexandre Fiuza realizou com os músicos Benedicto García Villar (gravada em Santiago de Compostela, em 2004) e com Jesús Vicente Aguirre (em Logroño, em 2008) são esclarecedoras de todo o processo homólogo ocorrido fora da Catalunha. Os dois músicos das duas comunidades autônomas, respectivamente, Galicia e La Rioja, também relataram sobre as multas gubernativas e as perseguições que ambos sofreram por suas atividades musicais. Sobre a trajetória de Benedicto (que pertenceu ao memorável grupo musical galego Voces Ceibes) e da canción gallega, ver: GARCÍA VILLAR, Benedicto. Sonata de Amigos. Santiago de Compostela: Edicións Xerais de Galicia, 2008. Para conhecer a história do trio musical Carmen, Jesús e Iñaki, do qual fez parte Jesús Vicente Aguirre, ver um dos capítulos do livro de sua autoria: La Rioja empieza a caminar. 2 ed. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2002. Do mesmo autor ver ainda seu monumental livro sobre a violenta repressão que se seguiu à Guerra Civil em La Rioja: Aquí nunca pasó nada

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destaca-se a obra de Belen Oronoz Antxordoki intitulada Gazteri berria, kantagintza berria: euskal kantagintza berriaren ("Ez dok Amairu") eta nova canço catalana-ren (Els Setze Jutges") arteko azterketa konparatiboa. Neste trabalho publicado em basco, a autora realiza uma comparação entre a Nueva Canción Vasca (a partir do grupo musical Ez dok Amairu) y La Nova Cançó Catalana (em particular, através do grupo Els Setze Jutges). Em uma resenha de seu próprio livro, a autora explica que se utilizou de várias entrevistas e destaca o papel desempenhado por Mikel Laboa na criação de um sucedâneo do Els Setze Jutges no País Basco. Para ela, Laboa conseguiu reunir solistas e grupos musicais num único movimento de valorização da cultura e do idioma bascos. Apesar de a autora apontar que não houve relações orgânicas entre os dois grupos, ela confirma os produtivos contatos que se firmaram entre os músicos dos dois países.

A gênese do movimento

Com o término da Guerra Civil Espanhola, em 1939, o general Francisco Franco dissolve todas as instituições da chamada II República, impondo uma ditadura que se estende até sua morte, em 1975. Com o fim da democracia e das autonomias3, Franco passa a reprimir tudo aquilo que não fosse considerado signo de identidade espanhola. Nesse contexto, o franquismo vai anular todas as instituições de autogovemo catalães, reprimindo a língua e a cultura catalãs e quaisquer manifestações da identidade nacional catalã. Para a Catalunha, na política, o franquismo representa a mais absoluta negação de aspiração ao autogovemo. Assim, tanto a língua quanto a cultura catalã passam a sobreviver apenas na clandestinidade.

Por outro lado, o imobilismo político que caracteriza a trajetória do regime vai

(La Rioja 1936). La Rioja: Editorial Santos Ochoa, 2008.3 Não é fácil traçar um histórico do processo de lutas, idas e vindas que levou à ampla autonomia relativa da região da Catalunha. Ela remonta à Catalunha feudal do século XI, com o casamento do conde Ramón Berenguer IV (do Condado de Barcelona) com Petronila de Aragão (do Reino de Aragão), quando formou-se a Coroa de Aragão, cuja expansão se inicia com a conquista das cidades de Lérida, Tortosa, do Reino de Mallorca (nas Ilhas Baleares), do Reino de Valencia (que permaneceu com corte própria), da Coroa da Sicília, de Minorca (também nas Ilhas Baleares) e da Sardenha. Sua fase mais importante vai até as primeiras décadas do século XIV. Catástrofes naturais, crises demográficas, recessão econômica, o surgimento de tensões sociais e uma crise de sucessão (o Rei Martin I não deixou sucessor nomeado) contribuíram para o começo de um período de crise. Em 1443, após a conquista do Reino de Nápoles, a crise se agravou. O casamento de Fernando II de Aragão com Isabel I de Castela, em 1469, conduziu a uma união dos dois reinos e à formação de uma monarquia espanhola, principal contribuição para o período de decadência que a Catalunha viveria nos séculos XVI e XVII. Nesse período os catalães se envolveriam num conflito, a Guerra dos Segadores, de 1640 até 1652, contra o domínio hispânico do rei Felipe IV. Durante a Guerra de Sucessão Espanhola, a Catalunha apoiou o pretendente austríaco (tal como Inglaterra e Portugal), mas acabou tendo que se render às tropas do pretendente francês. O novo rei, Filipe V de Espanha (Filipe d’Anjou, neto do rei francês Luís XIV), incorporou os territórios da antiga Coroa de Aragão sob o nome de Catalunha. A região deixou de ter um Estado próprio (a Generalitat e o Consell de Cent), perdeu os seus direitos e foi incorporada definitivamente ao Reino da Espanha. No final do século XIX nasceu o movimento chamado em catalão Renaixença, que dá início às reivindicações do catalanismo político. Em 1914 forma-se a Mancomunitat, primeiro organismo administrativo de Catalunha reconhecido pelo Estado Espanhol desde a Guerra de Sucessão Espanhola. Essa entidade, no entanto, seria dissolvida pela ditadura de Primo de Rivera em 1923. Com a proclamação da II República Espanhola, em 1931, reconheceu-se a Comunidade Autônoma da Catalunha, apesar de os catalães terem chegado a proclamar unilateralmente a República da Catalunha. Depois de prolongadas negociações aprovou-se o seu Estatuto em 1932. Depois da derrota dos republicanos e a vitória fascista na Guerra Civil (1936-1939), a Catalunha perdeu sua autonomia e sofreu uma importante e pesada repressão cultural e linguística (com a abolição do uso do catalão) por parte do regime do general Francisco Franco. Com a morte de Franco, em 1975, e o fim da ditadura, foram sendo recuperadas a autonomia e língua catalãs, primeiro com o restabelecimento da Generalitat, em 1977 e o Estatuto, em 1979, nascido com a democracia, depois a Constituição de 1978 e o Estado das autonomias. Finalmente, em 2006, foi aprovado o Estatut d’Autonomia de Catalunya, que amplia ainda mais sua autonomia em relação ao Estado Espanhol. Apesar disso, há grupos independentistas, à esquerda e à direita, que defendem a independência total da Catalunha.

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contrastar com sua abertura econômica, o que vai permitir que a Catalunha, como ocorre com o resto do Estado espanhol, possa conhecer os melhores anos de crescimento econômico, superando, assim, as difíceis condições de vida do longo pós-guerra. Dessa forma, em nível econômico, o franquismo coincide, apesar da ditadura, com uma das melhores fases de expansão econômica catalã. No entanto, a industrialização da Catalunha vem acompanhada pela imigração massiva de contingentes populacionais de outras províncias do Estado espanhol, que vão encher as cidades, que geralmente oferecem infraestrutura pouco adequada, levando a problemas como a falta de condições dos serviços urbanos e à favelização, entre outros. Por outro lado, o desenvolvimento econômico catalão significa também o acesso da população à sociedade de consumo.

Como podemos observar, a história da Catalunha durante o franquismo é a história de dois mundos que convivem em diferentes condições. Por um lado, temos o mundo do poder, das “autoridades competentes”,

pintado com o azul dos falangistas ou com o cinza da polícia do regime, o das proibições, o da perseguição, da censura, das multas, dos calabouços, do “hable en cristiano”, que se via nos “No-Do”4 do começo das seções de cinema e se sentia nos “telediarios” da TVE... Um mundo fechado, inflexível, imóvel... Um mundo de vozes caladas pela ameaça, pela detenção, pela tortura, prisão ou morte. Era o mundo dos vencedores da guerra. E a Catalunha havia perdido a guerra (BUXADERA I VILÀ).

Paralelamente a este mundo, presente no dia-a-dia cabe destacar um outro, ousado – dado o evidente perigo que se corria – e esperançoso: o dos protestos contra o regime, com as manifestações, que sempre acabavam em correrias diante dos porretes dos “cinzas”, as campanhas, os atos de afirmação catalanista, o da luta clandestina e das forças políticas e sindicais, o da ação dos trabalhadores, estudantes, intelectuais, setores da Igreja católica, enfim, o mundo da resistência. Mundo que às vezes não tinha vontade de se calar e dizia não. O mundo que, com todas as dificuldades, conseguiu que o catalão continuasse sendo falado, que se pudesse ler e cantar em catalão, que fosse possível sonhar com um mundo mais aberto, como o que existia do outro lado dos Pirineus.

A tarefa a ser cumprida em todos os níveis era fundamental para que, derrubada a estaca (como na canção L’estaca, do cantor Lluís Llach, de 1973) e liberta, a Catalunha continuasse de pé e, em um marco menos hostil e mais permissivo, recuperasse o que tinha antes daquela gente “que trucava de matinada” [que chamava de madrugada], como dizia a canção Que volen aquesta gent? [O que quer esta gente?], de Lluís Serrahima e Maria del Mar Bonet, gravada por essa cantora em 1968. Resistência que teria um papel fundamental no restabelecimento da democracia e da recuperação das liberdades e do autogoverno da Catalunha.

A origem da Nova Cançó pode ser localizada entre o fim da década de 1950 e começo da década de 1960, depois de uma dura repressão franquista sobre a cultura catalã. Uma gradual liberalização da ditadura permitiu o nascimento desse fenômeno que com o passar dos anos seria política e culturalmente importante não só na Catalunha como também no conjunto

4 NO-DO (NO+DO ou Nodo) é o acrônimo de Noticiario y Documentales Cinematográficos. O NO+DO era um noticiário obrigatório exibido nas salas de cinema espanholas antes do filme comercial entre 1942 e 1981. Depois de uma primeira etapa, no período da Guerra Civil, quando se chamava simplesmente Noticieros, o NO+DO foi criado em dezembro de 1942 com o objetivo de “mantener, con impulso propio y directriz adecuada, la información cinematográfica nacional” (B.O.E., 22/12/1942). Durante anos o regime franquista se serviu do NO+DO para apresentar aos espanhóis sua visão particular da Espanha e do resto do mundo, com escassas possibilidades de contestação, já que a imprensa e o rádio estavam sob censura. Durante sua existência o NO+DO manteve o monopólio das reportagens exibidas nas salas de cinema. Sua projeção foi obrigatória até janeiro de 1976, mas ainda sobreviveu até 1981, embora com caráter apenas opcional.

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dos Países Catalães5. Podemos localizar seus primórdios nas apresentações, nos programas de rádio apresentados por Joaquin Soler Serrano, do cantor Font Sellabona, conhecido como “El trobador de Catalunya”, primeiro compositor catalão moderno a compor em sua própria língua; e, de outro lado, na fundação da gravadora Edigsa, decisiva para a evolução futura do movimento.

Além disso, dois fatos bastante relevantes têm a ver com o nascimento da Nova Cançó: a gravação, em 1958, pelo cantor Raimon, da canção Al vent [Ao vento] e, em janeiro de 1959, a publicação do artigo Ens calen cançons d’ara [Precisamos de canções de agora], na revista Germinàbit, por Lluís Serrahima, que deixa claro o desejo generalizado de pôr em marcha um novo movimento musical no país.

Esses dois fatos têm uma rápida resposta: a criação, em 1961, do grupo Els Setze Jutges [Os Dezesseis Juízes], que em um de seus primeiros recitais já utiliza o termo Nova Cançó e afirma que seu “programa” é “fer cançons d’ara” [fazer canções de agora]. Pretendiam fomentar a criação de uma canção moderna em catalão que servisse para recuperar a língua e a cultura catalãs, reivindicando essa nova canção como forma de expressão da identidade nacional catalã.

Já desde o início o movimento é impulsionado por setores da burguesia, movimento operário, setores universitários e eclesiais catalanistas na luta pela recuperação das raízes e identidade nacional catalãs. Era, na verdade, uma das poucas possibilidades que tinham os nacionalistas catalães se de expressar como povo, resultado de uma busca por formas de comunicação popular que levassem a esses objetivos. O público, por sua vez, via na canção um caminho para chegar à tão desejada democracia, além de símbolo da catalanidade. Por essa razão, o nascimento da Nova Cançó é, sem dúvida, claramente político e ideológico.

Embora muitos estudiosos questionem se realmente a Nova Cançó foi um movimento, seu papel e sua importância para a Catalunha dos anos 60 e 70 do século passado parecem não deixar muitas dúvidas. Vejamos o que diz o jornalista Jordi García-Soler (1996, p. 23-24):

Talvez [a Nova Cançó] não o fosse, no sentido exato, mas é evidente que entre seus impulsionadores havia já de início umas poucas ideias-força compartilhadas: a necessidade de dar à Catalunha canções populares atuais e na sua língua, o interesse de dignificar a canção como um gênero poeticamente próprio e a vontade de abarcar ao mesmo tempo todos os estilos da canção, sem excluir os mais comerciais.

Como já mencionado, o artigo de Lluís Serrahima na revista Germinàbit aglutinaria compositores e cantores e, depois do sucesso extraordinário de uma série de shows realizada na Câmara Municipal da cidade de Lleida, daria origem a um grupo homogêneo, Els Setze Jutges. Iniciado pelos cantautores6 Remei Margarit, originalmente uma psicóloga e mãe de 5 Os Países Catalães são um grupo de territórios nos quais seus habitantes falam o catalão. Sua extensão é de cerca de 70 mil km2, com uma população de cerca de 13 milhões de habitantes, segundo dados de 2004. Não estão reconhecidos como uma entidade política e, de fato, estão fragmentados em diversas regiões, com distintos graus de autonomia política, pertencentes à Espanha, França, Andorra e Itália. Na Espanha, o catalão é falado nas comunidades autônomas da Catalunha, embora a comarca catalã do Val d’Aran fale a língua occitana; na “Franja del Ponent” (a “franja do Poente”), uma área pertencente à região de Aragão (o “País Aragonés”); nas Ilhas Baleares; e, na modalidade valenciana, no “País Valencià”, com exceção de algumas comarcas; El Carxe, uma pequena comunidade valenciana dentro da comunidade autônoma de Murcia; no microestado de Andorra; na maior parte do departamento francês dos Pirineus Orientais, também chamada de le Pays Catalan em francês ou Catalunya (del) Nord em catalão; na cidade italiana de Alghero, na ilha da Sardenha. O catalão é a língua oficial em Andorra; co-oficial, junto com o castelhano e a língua occitana, na Catalunha; co-oficial com o castelhano nas Ilhas Baleares e na comunidade valenciana (com a denominação de valenciano); e co-oficial com o italiano na cidade de Alghero. Não é considerado língua oficial em Aragão, Murcia ou nos Pirineus Orientais, embora recentemente (dezembro de 2007) o Conselho Geral dos Pirineus Orientais tenham oficialmente reconhecido o catalão, junto com o francês, como idioma desse departamento.6 Palavra que, tanto em catalão quanto em castelhano, se refere ao compositor que é ao mesmo tempo intérprete

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família, e Josep Maria Espinàs, um escritor, a eles logo depois se juntaram Delfí Abella, um psiquiatra, Miquel Porter, um livreiro e cinéfilo7, todos, evidentemente, de classe média.

O nome do grupo foi extraído de um trava língua infantil bastante conhecido tanto na Catalunha quanto no País Valenciano e nas Ilhas Baleares, cujo objetivo é testar a habilidade no manejo do catalão falado. Sem nenhum sentido profundo, o texto do trava língua de onde foi extraído o nome do grupo reúne uma sequência de palavras que contêm os fonemas [j] e [z], típicos do catalão (assim como em português), considerados pelos catalães como muito difíceis de pronunciar para os não falantes do catalão, particularmente, os espanhóis de fala castelhana. A escolha do nome era, portanto, uma provocação contra a cultura oficial do franquismo. Quando o nome foi escolhido o grupo era formado por apenas três membros e a referência a 16 juizes8 já mostrava claramente sua intenção de atestar o espírito de luta nacionalista catalão do grupo, assim como a ideia de um “tribunal” para “julgar” a cena política, social e cultural da época, além da intenção de dar espaço a mais membros.

É importante lembrar que Els Setze Jutjes não formavam uma banda ou coral, mas um grupo de artistas que sob esse nome se propunha a lutar em favor dos valores mencionados. Em 1962 surgem os primeiros discos do movimento, ao mesmo tempo em que começam a se diversificar as tendências musicais dos seus integrantes: conjuntos musicais, conjuntos vocais, cantautores, intérpretes de canções de outros autores, etc.

Com o avanço da profissionalização e em função do grande sucesso comercial de vários de seus membros em 19689, principalmente Francesc (ou Quico) Pi de la Serra, Maria del Mar Bonet, Joan Manuel Serrat e Lluís Llach, os Setze Jutges se dissolveram10, já não

de suas canções, como é o caso, no Brasil, de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Djavan, entre tantos outros.7 Sua participação nos Setze Jutges é, na verdade, uma das muitas atividades culturais de Miquel Porter Moix (10/05/1930-18/11/2004). Embora seu disco Miquel Porter canta les noves cançons, de 1962, seja um dos primeiros representantes dos Jutges e, portanto, da Nova Cançó, sempre alternou suas atuações como cantor com as atividades de comentarista nos abundantes fóruns sobre cinema dos anos sessenta e setenta do século XX na Catalunha. Tendo o cinema como verdadeira paixão, começa nessa época a colaborar como especialista em cinema nas revistas Serra d'Or e Destino e, posteriormente, com a democratização, transforma-se em comentarista e crítico de cinema do jornal Avui, atividade que desenvolve até 1989. Também escreveu para as revistas Jano e Revista de Catalunya. Foi também autor de vários livros, entre os quais Cinema, final de trajecte i començament d'utopia (1961), Cinema per a infants (1963), Historia del cine ruso y soviético (1968) e Història del cinema català (1969). Participou ainda em diversos congressos europeus e norte-americanos e foi organizador ou jurado de uma grande quantidade de festivais de cinema. Em 1974 publica Cine en España:una guia informativa e em 1978 obtém o doutorado da Facultat de Geografia i Història com uma tese sobre o cinema primitivo na Catalunha, publicada em versão resumida em 1985. Além disso, foi articulista e colaborador de algumas enciclopédias temáticas e roteirista de produções cinematográficas. Nos anos oitenta participa de várias entidades ligadas às artes, às questões sociais e políticas catalãs, desenvolvendo paralelamente a atividade de escritor. Publica em 1986 o romance Renoi, quina portera e em 1988 Las claves del cine e Las claves de la historia del cine. Entre 1996 e 2000 foi reitor da Universidade Catalã de Verão de Prada del Conflent, cargo que ocupou até 2000, ano em que também se aposentou como catedrático de História do Cinema da Universidade de Barcelona. Agraciado com vários prêmios e distinções, Miquel Porter é figura fundamental na luta pelas liberdades democráticas e em favor da cultura catalã, entre eles o Prêmio Nacional de Cinematografia da Generalitat de Catalunya (1991), a Cruz de São Jorge (1992) e a Medalha de Ouro da Cidade de Barcelona (2003). (Fonte: Associació d’Escriptors em Llengua Catalana. Pàgines d’Autors i d’Autores. Disponível em: http://www.escriptors.cat/autors/porterm/pagina.php?id_sec=2513)8 A íntegra do trava língua é a seguinte: “Setze jutges d’un jutjat mengen fetge d’un penjat. Si el penjat es despengés, els setze jutges del jutjat no menjarien més el fetge del penjat”. (Dezesseis juízes de uma corte comem o fígado de um enforcado. Se o enforcado se livrar da forca, os dezesseis juizes não comerão mais o fígado do enforcado.)9 O grupo contava, em sua composição final, com Miquel Porter, Remei Margarit, Josep M. Espinàs, Delfí Abella, Francesc Pi de la Serra, Enric Barbat, Xavier Elies, Guillermina Motta, Maria del Carme Girau, Marti Llauradó, Joan Ramon Bonet, Maria Amélia Pedrerol, Joan Manuel Serrat, Maria del Mar Bonet, Rafael Subirachs e Lluís Llach, completando, assim a “corte” dos “16 juizes”.10 Em abril de 2007, 46 anos depois de sua primeira apresentação e 39 depois de sua dissolução, todos os

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fazendo mais sentido se apresentarem em grupo, já que, como enfatizado, não formavam uma banda ou qualquer outro tipo de grupo em termos estritamente musicais.

Outro personagem fundamental para a história da Nova Cançó desde suas origens e que não pertencia aos Setze Jutges é o cantautor Raimon. Na visão apaixonada do jornalista Jordi García-Soler, “o melhor e mais importante cantautor catalão de todos os tempos” (apud A CANTIGA)11. Raimon nasceu na cidade de Xàtiva, no País Velenciano, em 1940. Era um jovem estudante de História quando, descoberto pelos Setze Jutges, se apresenta em Barcelona, em 1962, e obtém sucesso imediato com canções como Al vent, que surpreendem pelo uso do grito e pelo existencialismo rebelde que jorra dos textos. Em 1963 ganha o Festival de la Cançó Mediterrània de Barcelona, dividindo com Salomé – uma cantora profissional já conhecida – a canção S’en va anar [Se foi], de J. M. Andreu e L. Borrel. Alguns autores consideram que seria injusto reduzir Raimon apenas à condição de líder de um movimento de resistência, já que ele seria também um hábil musicador de poemas do poeta Salvador Espriu (Indesinenter [Incessantemente, em latim], He mirat aquesta terra [Vi esta terra] e Cançons de la roda del temps [Canções da roda do tempo], por exemplo) e de poetas dos séculos XV e XVI como Ausiàs March, Roís de Corella ou Joan Timoneda. Além disso, Raimon escreveu também canções de um grande lirismo e qualidade poética como Com un puny [Como um punho], Als matins a la ciutat [Pelas manhãs na cidade] e Al meu país la pluja [No meu país a chuva]. Tais qualidades seriam responsáveis pelo fato de Raimon ter superado a crise subsequente à transição democrática e ainda ser considerado como um clássico que ainda é capaz de mobilizar um público significativo.

Entretanto, é importante lembrar que, além da resistência ao franquismo, a obra de Raimon personifica também a luta catalanista. Para os tempos globalizados e multiculturais de hoje, como lembra Antoni Batista,

pode ser difícil entender que um compromisso cívico se baseasse na fidelidade a um idioma e que essa fidelidade implicasse ter de prescindir de outras. [...] Quando a Canção Catalã irrompe, os setores mais combativos interpretavam que compaginar Catalão e Castelhano era fazer uma concessão ao inimigo, quando não mesmo traição. A luta pela conservação de um idioma que queriam liquidar, a “maltractada llengua”, segundo a adjetivação de Raimon, exigia para muitos um compromisso sem meias tintas. Espriu tinha bem presente que a milenar língua catalã estava em perigo de extinção, falava de “salvar as palavras” como valiosos tesouros, como seres de uma espécie em vias de extinção. (BATISTA, 2005, p.34)

Por outro lado, não há como negar que a música de Raimon era diferente da canção popular feita até então, inclusive da música dos Setze Jutges. Em primeiro lugar, Raimon não era nem barcelonês nem de família burguesa e nem usava gravata, como era comum inclusive entre os Jutges. Em segundo lugar, segundo Batista

Raimon não canta para preencher um vazio cultural, como tarefa de serviço à cultura catalã nem como contestação ao regime; canta simplesmente porque lhe brota, como o ser humano que, como diz Nietzsche, “desanda a falar” nos primórdios da proto-história, e isso explica-se com as palavras ut supra mencionadas [referindo-se às próprias palavras de Raimon em algumas de suas entrevistas] relativas às necessidades biológicas ou fisiológicas. (BATISTA, 2005, p. 28)

Além disso, Diguem no ultrapassa, pela esquerda, os temas propostos pelos Setze

membros do grupo receberam a Medalha de Honra do Parlamento da Catalunha, em reconhecimento à sua luta em favor da cultura e da língua catalãs durante a ditadura franquista.11 A cantiga foi uma arma. Disponível em http://a-cantiga-foi-uma-arma.blogspot.com/2007/04/herdade-do-vale-fanado.html.

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Jutges. Enquanto estes, até então, seguiam de alguma forma a linha do folclorista Joan Amades12, passando pela chanson francesa, e o seu compromisso – que, diga-se, não é pequeno –, de reivindicação linguística, quando Raimon compõe Diguem no inclui reivindicações sociais de classe e políticas. Raimon fala de repressão, de fome, de trabalhadores – palavra proibida pelo vocabulário franquista, que a substitui por “produtores” –, de prisão. Em plena ditadura, adicionar conteúdos sociais à língua catalã era multiplicar por dois o ataque e, portanto, o perigo. Seja como for, para Josep Benet, “se Raimon não tivesse surgido naquele momento, a Nova Cançó teria corrido perigo. ‘Raimon foi decisivo, foi uma grande sorte que tivesse aparecido naquele momento’” (BATISTA, 2005, p. 26).

Malgrado as restrições e as dificuldades administrativas na transmissão radiofônica e televisiva e na produção discográfica, a Nova Cançó reunia cada vez mais adeptos e abrigava muitos intérpretes a optar por uma autêntica profissionalização, reclamada pela crítica e um público cada vez mais exigente. Em consequência, por um lado, surgiam os “profissionais” e, por outro, os chamados cantores folclóricos e de protesto, como na maioria dos países europeus. Neste sentido, apareciam formações como o Grup del Folk e, mais adiante, o grupo Esquirols. Destacavam-se artistas que contribuíam para enriquecer o mundo da canção no começo com suas personalidades artísticas, como então o fizeram Salvador Escamilla, Guillem d’Efak e Núria Feliu – prêmio da crítica espanhola em 1966 –, ou os novos membros dos Setze Jutges, alguns chegando mesmo a alcançar sucessos internacionais.

Mais tarde aparecem cantores bilíngues e posições ideológicas que pareciam desvirtuar os ideais iniciais da Nova Cançó. Assim como Raimon, alguns outros antigos membros dos Setze Jutges obtêm novos êxitos: Guillermina Motta, Francesc Pi de la Serra, Maria del Mar Bonet, Lluís Llach e, sobretudo, Joan Manuel Serrat superam largamente a área linguística catalã estrita. Mais tarde destaca-se, no País Valenciano, Ovidi Montllor. Como consequência, nascem também movimentos paralelos na Galícia, no País Basco e na região de Castela.

Essa nova realidade traz o dilema relacionado à necessidade ou não de seus membros manterem o discurso crítico e, por outro lado, se profissionalizarem. Para uns, manter a proposta de dignificação artística da canção como gênero e promover sua contribuição pública para a conscientização e sensibilização popular em relação aos problemas que a sociedade catalã tinha que enfrentar significava alguns problemas sérios. Na opinião de Jordi García-Soler, por exemplo, “Uma profissionalização convencional traria – como de fato infelizmente continua trazendo ainda hoje – a renúncia a tudo isso: a renúncia ao uso único e exclusivo do catalão e a renúncia também à dignificação qualitiva da canção e a sua utilização como consciência social crítica” (GARCÍA-SOLER, 1996, p. 30).

No entanto, ao mesmo tempo, questões polêmicas como o dilema entre a profissionalização – e a consequente massificação pop – e a manutenção do projeto político que gerou o movimento ou, de outro lado, entre a manutenção da produção musical e performance dos artistas exclusivamente dentro dos marcos do idioma catalão (já que a razão inicial do movimento era reivindicar o direito à catalanidade frente à repressão franquista) ou a abertura para o castelhano – como foi o caso particular de Joan Manuel Serrat, considerado por muitos como um “traidor” – levaram a Nova Cançó a uma outra etapa, talvez mais madura e tão ou mais rica e interessante que sua fase inicial.

Em 1967, os membros do movimento Nova Cançó chegam a um grau de popularidade importante, tanto pela vendagem de discos como pelos concertos e também por seu 12 Joan Amades i Gelats (Barcelona, 23/07/1890-17/01/ 1959 ), foi um destacado etnólogo e folclorista catalão. De formação autodidata, trabalhou no Arquivo Municipal de História e no Museu de Indústrias e Artes Populares de Barcelona. Colaborou também com a UNESCO, a partir de 1956. De sua extensa obra destaca o livro Costumari Català, obra fundamental para o estudo da cultura popular catalã. Para saber mais, ver ANGUELA, Antoni & CALVO, Lluís Calvo (orgs.). El món de Joan Amades. Barcelona: Departament de Cultura de la Generalitat de Catalunya, 1990.

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compromisso político. Só para dar dois exemplos, naquele ano Raimon (26 de janeiro) e Joan Manuel Serrat, talvez o cantor da Nova Cançó mais conhecido fora da Catalunha e da própria Espanha (1o de abril), fazem apresentações no Palau de la Música, em Barcelona, para milhares de pessoas.

Em outubro daquele ano, às vésperas do anúncio do cantor Joan Manuel Serrat de sua decisão de cantar em castelhano, diante das reiteradas críticas surgidas nos meios de comunicação, a nona e última edição do Festival de la Cançó Mediterrània13 se vê obrigada a admitir no concurso duas composições em catalão – Com el vent (Como o vento), de Josep Maria Andreu e Lleó Borrell, e T’estim e t’estimaré (Te amo e te amarei), de Antoni Muns e Antoni Parera Fons. Ironicamente, as duas chegam à final.

É importante salientar que o Festival de la Cançó Mediterrània era uma iniciativa da direção da Rádio Nacional da Espanha (RNE) em Barcelona, uma potente emissora estatal, organizado juntamente com a TV Espanhola (TVE) com o patrocínio do Ajuntament (prefeitura) de Barcelona e que contava com alguns trunfos como a sua retransmissão na íntegra e ao vivo para toda a Espanha através da RNE e da TVE. Era um festival cuja premiação era concedida através do voto popular, da platéia. Sua primeira edição aconteceu em 1959 e a vencedora foi uma canção italiana. Na segunda edição (1960) a vencedora foi uma canção grega. No ano seguinte, a vencedora foi da França. Na quarta edição finalmente vencia uma canção espanhola – e em castelhano, como esperava o regime de Franco. No entanto, essa vitória acabou se transformando em um escândalo, já que recebeu mais votos do que a capacidade do local de sua realização. Isso obrigou a Direção Geral de Radiodifusão e Televisão do Ministério da Informação e Turismo a anular a escolha popular – obviamente adulterada, ao que tudo indica para servir a interesses comerciais.

Esse escândalo, no entanto, fez com que o festival ficasse mais popular e por essa razão alguns dos expoentes da Nova Cançó passam a ver nele um espaço interessante para apresentarem seus trabalhos. Na verdade, desde sua primeira edição havia a participação de canções em catalão, embora houvesse clara rejeição, por parte da organização do festival, a canções feitas por gente ligada à Nova Cançó, contradições, segundo Jordi García-Soler, inerentes a um festival que, apesar das boas intenções de alguns de seus promotores, “era uma peça mais na engrenagem propagandística, cultural e midiática do regime franquista” (GARCÍA-SOLER, 1996, p. 28).

No entanto, na sua quinta edição, em 1963, a canção vencedora foi Se’n va anar (Se foi), de Josep Maria Andreu e música de Lléo Borrell, interpretada por Raimon e Salomé. Aquela época Raimon já era um nome importante e popular da Nova Cançó, tendo se tomado um autêntico fenômeno de mídia, enquanto a cantora Salomé, valenciana como ele, representava uma vertente mais comercial e, portanto, mais apropriada para os propósitos do festival. É importante dizer que a competidora mais direta de Se’n va anar era a canção Paz, de autores também catalães, mas com letra em castelhano e, segundo García-Soler, com um título “premonitório da comemoração daquilo que o franquismo definia como os 25 años de paz” (GARCÍA-SOLER, 1996, p. 28). A polarização entre as duas músicas acabou transformando as demais concorrentes em meras coadjuvantes, contribuindo para a polarização das posições no Palau de les Nacions de Montjüic, onde o festival era realizado. Nesse contesto, a vitória de Se ‘n va anar foi vista como “o primeiro plebiscito popular a favor da Nova Cançó” (GARCÍA-SOLER, 1996, p. 28).

Ao mesmo tempo, porém, a vitória de Se’n va anar expõe os limites do que era 13 O Festival de la Cançó Mediterrània era uma iniciativa da direção da Rádio Nacional da Espanha (RNE) em Barcelona, uma potente emissora estatal, organizado juntamente com a TV Espanhola (TVE) com o patrocínio do Ajuntament (prefeitura) de Barcelona. Contava, segundo Jordi García-Soler, com alguns trunfos evidentes, como a retransmissão na íntegra e ao vivo para toda a Espanha através da RNE e da TVE. Sua primeira edição aconteceu em 1959. Em sua quinta edição, em 1963, a canção vencedora foi Se’n va anar (Se foi), de Josep Maria Andreu e música de Lléo Borrell, interpretada por Raimon e Salomé.

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conhecido na época como “entrismo” – a utilização dos mecanismos do próprio sistema dominante em benefício de interesses que eram claramente contrários a ele. Mostra também

as contradições entre a comercialização absoluta e a manutenção de níveis de exigência artística tais como uma atitude clara e dura de resistência contra um sistema político ditatorial, aniquilador não só das liberdades nacionais da Catalunha como também de todas as liberdades políticas, econômicas e sociais. Entre a assimilação e o confronto, era lógico e natural que se impusesse este último, mesmo que isso representasse muitos problemas – fundamentalmente, um grande endurecimento dos mecanismos da censura em todas as manifestações direta ou indiretamente relacionadas com a Nova Cançó – e fechadas as portas e muitas plataformas que haviam permitido uma difusão pública maior (GARCÍA-SOLER, 1996, p. 30-31).

Não obstante, outras portas se abriam, como foi o caso da Ràdio-Scope, programa diário apresentado por Salvador Escamilla na Rádio Barcelona e que durante muitos anos foi um porta-voz permanentemente aberto para todos os cantores, compositores e grupos catalães, evidentemente dentro dos limites da época.

A partir de 1969 aparecem problemas internos entre os Setze Jutges relacionados, entre outras coisas, ao fato, mencionado acima, de Joan Manuel Serrat adotar uma postura bilíngue, gravando também em castelhano. Ao mesmo tempo, os músicos da Nova Cançó começam a enfrentar um grave problema: o recrudescimento da censura.

A censura franquista e a canção catalã

Velha conhecida dos espanhóis, a censura era responsabilidade da Dirección General de Cultura Popular y Espectáculos e esta, por sua vez, estava subordinada ao Ministerio de Información y Turismo. No entanto, a rigidez da atividade censória espanhola sobre a música popular só se inicia em meados da década de 1960 e corresponde

ao desenvolvimento da indústria fonográfica e à complexificação dos meios de comunicação por onde eram veiculadas tais canções. Em resposta a esta modernização da indústria cultural e à popularização das canções de protesto, os Estados14 criaram ou também modernizaram repartições encarregadas da censura prévia dos discos e programações das rádios e canais de televisão. Enfatizamos que este complexo esteve baseado em uma legislação muito anterior ao período em questão. (FIUZA, 2005, p. 2)

A censura discográfica não era tão distinta da censura a outras artes, inclusive porque os censores analisavam as letras de canções como faziam, por exemplo, em relação à censura literária. Não foram comuns os casos da Censura que se ocuparam das gravações para produzir as proibições ou autorizações, assim, o modus operandi é muito similar ao aplicado à poesia. A investigadora Lucía Montejo Gurruchaga, ao analisar a documentação do mesmo Arquivo e em relação a duas antologias de poesias da década de 1950, enumera os diferentes níveis e especialidades dos censores, que no MIT (Ministerio de Información y Turismo) eram denominados “lectores”: chefe de leitorado, especialistas, eclesiásticos, efetivos, eventuais e pluriempregados. Tanto a censura discográfica como a de poemas estavam subordinadas à mesma Subdirección General de Promoción y Ordenación Editorial.

De acordo com alguns documentos encontrados, havia uma seção nesta Subdirección denominada Sección de Empresas Discográficas y Ediciones Sonoras. Na década de 1960, no

14 Referimo-nos ao Brasil, Portugal e Espanha.11

interior do MIT, os discos estavam sob o controle da Dirección General de Radiodifusión y Televisión que respondia pela consulta e comprovação de discos (e de seus textos) e catálogos. Na década de 1970, na Dirección General de Cultura Popular y Espectáculos eram produzidos os processos de censura discográfica mediante expedientes em resposta às solicitações das empresas discográficas. Estes documentos eram constituídos pela Solicitud de Autorización para editar discos, enviada pela empresa, e por um expediente interno da Censura em que aparecia a lista das canções, com as letras anexas, anotações datilografadas e à mão, feitas pelos censores e seu chefe. Uma significativa parte dos processos cujo resultado havia sido a proibição era reenviada pelas empresas discográficas com justificativas que pediam a liberação das letras. Outras vezes os censores faziam exigências de alterações nos textos e cabia às empresas efetuar tais mudanças.

A resposta do MIT ao pedido de gravações contava com um resumido veredicto ou com um informe mais pormenorizado com a justificativa dos censores (identificados com um número, por exemplo, “lector nº 23”, ou às vezes com seus nomes). Nos documentos apareciam as decisões através das expressões: denegar, autorizar, radiable e no radiable. Assim, uma canção no radiable tinha a autorização para ser gravada, mas não para ser irradiada publicamente. O fato é que o cerceamento da criação artística não se resumiu ao aspecto legal da obrigatoriedade de tais solicitações, posto que havia outras estratégias da ditadura e outros meios de coerção que impediam a livre expressão cultural. São esclarecedoras destas outras táticas as detenções de músicos, as multas emitidas pelos governos locais, a pressão sobre as gravadoras e empresas de espetáculos, a perseguição e a vigilância policial, entre outras.

Contudo, como atestam os documentos de início da década de 1970, algumas vezes as canções eram autorizadas com um pedido de liberação com uma mera explicação da empresa quanto aos conteúdos das canções. Outras vezes, o chefe do leitorado autorizava o que um dos lectores havia proibido. Em outras situações uma simples alteração no título já bastava para livrar-se do veto, uma vez que a relação das canções autorizadas ou não no catálogo dos serviços censórios se organizava a partir de seus títulos. Neste sentido, estes documentos também apontam os processos de negociação entre artistas, gravadoras e Censura. O depoimento do músico Luis Pastor corrobora tal assertiva: “Mandábamos las canciones […] te contestaban, te prohibían, algunas las volvías a mandar cambiando el título y así conseguías a veces engañar y pasar. [...] el primer single, por ejemplo, que es La Huelga de Pablo Neruda, esto era la cara A del primer single. Muy bien, y le pusimos el título de La Huelga del Ocio, quedó sin sentido y ahí la aprobaron, se grabó con este título.”15

Com base em um material quase inexplorado, presente no Archivo General de la Administración, em Alcalá de Henares, obteve-se uma gama significativa de processos da censura discográfica espanhola. Contudo, elegemos para este artigo a análise dos processos censórios que envolvem canções catalãs. É sabido que houve uma preocupação do regime franquista com o tema do nacionalismo, o que obviamente envolvia o idioma que poderia lhe dar suporte. Tal preocupação pode ser observada num parecer de um censor, no ano de 1970:

La canción titulada “Va com va” está escrita con mucha astucia, ya que su crítica aparece muy velada. Creo que debe denegarse por las siguientes razones: la frase “va como va” es una expresión muy popular en Cataluña y significa ineptitud e injusticia por parte de los gobernantes; frente a este estado de injusticia, el último verso contiene un grito de rebelión al afirmar que irá “como quiero”; y añade “como queremos” (nosotros, los

15 Entrevista concedida a Alexandre Felipe Fiuza em Madrid, em 18 de Julho de 2008.12

catalanes), lo cual tiene gran sabor separatista. Madrid, 6-X-70. 16

Enfim, devido a este veto, a canção Va com va, de Ovidi Montllor, é gravada somente em 1974, no disco A Alcoi (Ovidi Montllor), onde também consta outra canção sua, inicialmente proibida, Tot explota per el cap o per la pota (Tudo explode pela cabeça ou pela pata). Sua crítica explícita gerou uma interdição: “Ja no ens alimenten molles/ Ja volem el pa sencer/ Vostra raó es va desfent/ La nostra es força creixent” (tradução: Já não nos alimentam migalhas/ Já queremos o pão inteiro/ A razão de vocês se desfaz/ A nossa é força crescente).17 Nesse mesmo processo da Censura, em meio a dezesseis letras de canções, consta uma outra canção considerada “no radiable”: El tio sam se’n va a muro (letra: Ovidi Montllor/ música: popular valenciana): “El Tio Sam se’n va a muro/ Tio Sam/ De muro què em portaràs?/ Tio Sam/ Una orelleta grogueta/ Tio Sam/ Per anar-se acostumant/ al Vietnam/ Tio Sam” (tradução: O Tio Sam vai ao muro / Do muro o que me trará?/ Tio Sam / Uma orelhinha amarela/ Tio Sam /Para ir-se acostumando / ao Vietnam).18

As canções que faziam referência às guerras eram geralmente proibidas, mesmo aquelas com discurso pacifista e sem uma explícita vinculação a um conflito determinado. Sobre esta questão é esclarecedora a resposta da Censura ao pedido de liberação de discos pela gravadora Movieplay no tocante a duas canções de Luis Llach: Cancionita [sic! na gravação em disco, consta como Cançoneta] e Esposa [gravada com o título de Dona]: “Propongo denegar con reservas las canciones 2 y 7, ya que parecen contener cierto fermento antibélico y revolucionario, tanto en catalán como en castellano, aunque resultan de difícil interpretación”.19 Em 1972, ambas canções seriam gravadas no disco Com un arbre nu, de Llach.

São comuns os processos em que um ou mais censores proíbem determinada canção, mas que acabam sendo liberadas pelo parecer final do chefe da Censura. Num texto desta vez em espanhol temos um caso de proibição por motivos similares aos anteriores em duas letras de Fernando Unsain: “Ella (por erótica) y Escucha (por antimilitarista) son denegables”.20

Numa outra solicitação da gravadora Discophon, em que constavam vinte letras de canções, sendo onze em catalão, ocorre uma nova proibição, desta vez de Els dimonios (Os demônios), também de Montlor: “A l’escola vaig aprende/ a mai no fer pactes/ amb ningu demoni”.21 Esta canção, por sua vez, seria gravada com outro título, Els banyetes, no disco Crònica d'un temps. Como não encontramos o possível pedido de liberação da gravadora, tampouco a justificativa do censor para o veto, tal mudança pode ter vindo tanto da estratégia de mudar unicamente o título para burlar os censores como da exigência da própria Censura para a alteração no título da canção. Em 1972, a Discophon enviaria quatro letras de Ovidi Montllor para aprovação censória: Cançó ficció (Canção ficção), Sí senyor (Sim senhor), Una de por (Uma sobre medo) e La dolça vida (A doce vida). Apesar do texto crítico, os três censores consideraram-nas “autorizables”, muito embora a ressalva: “Todas las canciones tienen cierto aire de protesta, muy leve, y contra la sociedad en general, sin implicaciones

16 AGA (Archivo General de la Administración), Sección: Cultura, caixa 67381, datado de 06 de outubro de 1970, com solicitação de Discophon S.A. Sobre tal processo e mais informações sobre o tema, como a legislação censória e os temas proibidos, podem ser encontrados em FIUZA, Alexandre Felipe. “A censura fonográfica espanhola nas décadas de 1960 e 1970”. Actas del XIII Seminário APEC. Barcelona: APEC, 2008, pp.29-36.17 AGA, caixa 44002, top. 23/72, nº: 70M-808, Discos Discophon, de 14 de dezembro de 1970. 18 Idem.19 AGA, caixa 67639, top. 73/45, exp. 38/72, Discos Discophon, de 11 de janeiro de 1972.20 AGA, caixa 67639, top. 73/45, exp. 76/72, Discos Columbia, de 14 de janeiro de 1972.21 AGA, caixa 44004, top. 23/72, nº: 71M-105, Discos Discophon, de 05 de fevereiro de 1971.

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políticas ni eróticas”.22 Esta era uma tônica da ditadura, ou seja, num jogo ideológico, considerar a crítica ao regime como extensiva a toda a sociedade.

Como se sabe, não eram unicamente os temas políticos os únicos alvos do controle oficial, pois também são encontradas inúmeras proibições de cunho moral. Outro dado é que tais vetos não se restringiam à produção musical dos artistas mais engajados politicamente na oposição ao regime. São encontrados inúmeros processos que envolveram canções românticas, de cunho mais comercial e de apelo popular. A estreita relação entre o regime franquista e setores eclesiásticos ainda reverberava no início da década de 1970 e isso levou a um maior controle do discurso considerado imoral. Outro dado é que são também recorrentes as interdições de letras que abordavam a religião ou que se remetiam a símbolos do catolicismo para expor temas não religiosos. Por exemplo, a canção El torito del amor, de Alejandro Cintas e do Maestro Jaen, foi proibida justamente por este tipo de apropriação do sema religioso: “El amor/ es un torito que no pudieron apuntillar/ El amor es un hoguera/ en mitad del corazón/ y aquel que diga que no se quema con ese fuego/ que no presuma de que conoce que existe Dios”.23 Outro caso que aponta a confluência do veto de ordem moral com o político refere-se a proibição da canção Ves-hi Moises (de Josly): “Quand a L’Egipte era Israel, donnas llibertat […]”. Segundo a tradução para o espanhol presente no documento: Ve, Moises: “Cuando en Egipto estaba Israel, danos libertad/ Así habló el Señor a Moisés, danos libertad/ Ve Moisés, delante del rey de Egipto;/ Dile: Viejo Faraón danos libertad!/ Tanta opresión no hemos de sufrir, danos libertad/ o a tu heredero haré morir, danos libertad/ Ve Moises, delante del rey de Egipto, danos libertad”. No mesmo processo a canção La santa Espina (de Morera e Maragall) é considerada “no radiable”: “Som i serem gent catalana/ tant si es vol com si no es vol” (Somos e seremos gente catalã / querendo ou não querendo).24

Finalmente, não foram encontrados processos da Censura que tenham vetado canções unicamente por estas serem compostas em um idioma distinto do espanhol, ao menos nos documentos do início da década de 1970. Portanto, particularmente neste período, gravar em catalão não era motivo para o veto, muito embora a atenção dos censores pudesse ser redobrada nestes casos, dada a forte influência exercida pela nova cançó nos rumos da canção moderna espanhola. Outro dado é que tais vetos, embora pudessem não trazer explícitas motivações do emprego do catalão, poderiam influenciar os censores na proibição por outros motivos.

O discurso metafórico e o embate com o poder censório

Devido à Censura, os artistas passam a não poder expressar seu descontentamento com a ditadura franquista. Assim, os músicos da Nova Cançó passam a se utilizar da metáfora, da elipse, das entrelinhas25. Mas o público sabe perfeitamente o significado das letras, que na Nova Cançó é um elemento fundamental. Prova disso são as muitas canções que passam a ser adotadas como verdadeiros hinos na luta contra o franquismo. A canção L’estaca, de Lluís Llach (1973), por exemplo, é um lema que todos os seguidores da Nova Cançó carregam como bandeira. É entendida como um hino de combate contra a repressão e o fascismo. Se 22 AGA, caixa 67639, top. 73/45, exp. 29/72, Discos Discophon, de 08 de janeiro de 1972.23 AGA, caixa 44007, top. 23/72, 71M-545, Discos Columbia, de 07 de junho de 1971.24 AGA, caixa 44005, top. 23/72, 71M-266, gravadora Sayton, de 20 de maio de 1971.25 É interessante pensarmos um paralelo entre essa fase da Nova Cançó e a MPB, principalmente quanto às estratégias dos compositores para burlar a censura. A esse respeito, ver: SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/1969-78). Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. Ver também VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977, principalmente quanto ao conceito de “linguagem da fresta” utilizado por esse autor.

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ficamos apenas na superfície da canção, ela retrata uma conversa entre um avô, Siset, e seu neto. Neste caso a metáfora é bem clara:

Si jo l’estiro forte per aqui (Se eu puxo com força daqui) i tu l’estires fort per allá(e você puxa com força daí)segur que tomba, tomba i tomba(com certeza cai, cai e cai)i ens podrem alliberar(e poderemos nos libertar)

De certa forma, portanto, as metáforas da canção catalã em resposta ao endurecimento da censura espanhola podem ser comparadas às estratégias utilizadas pela MPB, no Brasil, durante os chamados “anos de chumbo”26. Ainda pensando em termos comparativos, poderíamos arriscar que, de forma semelhante, as canções “de protesto” ou “contestatórias” catalãs da primeira metade dos anos 60 do século XX são aparentadas ao que aqui na mesma época ficou conhecido como “arte engajada” e que aparece no trabalho de compositores envolvidos com o CPC da UNE, no trabalho daqueles que tentavam resgatar algum tipo de possibilidade político-ideológica na bossa nova, que deveria fazer uma “ponte” entre o “asfalto” e o “morro”, na utopia defendida pela vanguarda artística estudantil de “elevar” o gosto musical do “povo” ou, ainda, na “era dos festivais”. Há muitas semelhanças, por exemplo, entre a produção de Geraldo Vandré dessa época e Raimon. Um bom exemplo é a canção Diguem no [Digamos não], de 1963. Esta canção enfrentaria sérias dificuldades com a censura e apenas chegaria ao disco e aos palcos após a mudança do título para Ahir [Ontem], que não quer dizer absolutamente nada, e um par de substanciais alterações na letra. Reproduzimos aqui o original e as mudanças em negrito:

Ara que som junts(Agora que estamos juntos)diré el que tu i jo sabem(vou dizer o que você e eu sabemos)i que sovint oblidem.(mas sempre esquecemos.)Hem vist la por(Temos visto o medo)ser llei per a tots.(ser lei para todos.)Hem vist la sang,(Temos visto o sangue,)que sols fa sang,(que só produz sangue)ser llei del món.(ser lei do mundo.)No.(Não.)Jo dic no.(Eu digo não.)Diguem no.(Digamos não.)Nosaltres no som d’eixe món.

26 Para uma tipologia da MPB sob censura, ver: SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal Fechado, cit., particularmente p. 120-141.

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(Nós não somos deste mundo.)

Hem vist la fam(Temos visto a fome)ser pa(ser pão)dels treballadors (per a molts).dos trabalhadores (para muitos).Hem vist tancats (com han fet)(Temos visto encerrados (como fizeram))a la presó (callar a molts)(na prisão (calar muitos))homes plens de raó.(homens cheios de razão.)No...(Não...)

Talvez não seja mera coincidência a semelhança entre esta canção e, por exemplo, Caminhando, de Geraldo Vandré. Evidentemente, também, não é mero acaso que o discurso, tanto no Brasil quanto na Catalunha, após o recrudescimento da Censura, seja o metafórico e elíptico, com todas as consequências disso.

Conclusão

Como se vê, são inúmeras as possíveis aproximações entre o cancioneiro brasileiro e espanhol. Entretanto, há um incômodo desconhecimento mútuo entre a produção dos músicos destes países, pois a canção brasileira não teve uma forte inserção na Espanha, apesar de alguns raros casos de aproximação. Curiosamente, um dos instrumentos musicais mais usados na moderna canção espanhola nos últimos trinta anos é o cajón. Trata-se de um instrumento de percussão peruano, adaptado à canção espanhola pelo percussionista brasileiro Rubem Dantas, quando este integrava a banda de Paco de Lucía, numa turnê em 1978. Hoje em dia, são raras as canções espanholas, dos mais distintos gêneros, que não se utilizem deste instrumento.

Tal abismo entre os dois países foi ultrapassado em breves relações artísticas, cuja prova mais contemporânea advém da inserção de Caetano Veloso naquele país, em particular após sua aparição no filme Hable con ella (2002), de Pedro Almodóvar. Contudo, um dos primeiros músicos brasileiros a fazer sucesso na Espanha foi Jayme Marques, onde vive há mais de quarenta anos e é um dos maiores divulgadores da música brasileira em toda Europa, apesar de ser desconhecido em seu país natal. Outra aproximação contemporânea advém de uma turnê de Milton Nascimento com Maria del Mar Bonet, acompanhados pelo grupo brasileiro Uakti, em 1986. Esta mesma cantora, musa e expoente da Nova Cançó, gravaria canções de Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento. Por outro lado, canções de Luis Llach e do cancioneiro catalão foram gravadas pela cantora brasileira Diana Pequeno. Por sua vez, um dos maiores êxitos fonográficos na Espanha é o disco Vinicius de Moraes en La fusa con Maria Creuza y Toquinho, de 1970. Por fim, encontra-se naquele país até mesmo a gravação em catalão de Els Músics de Bremen, uma versão de Chico Buarque de Os Saltimbancos, por sua vez, uma tradução e adaptação da peça italiana I Musicanti (de 1976), com música do argentino radicado na Itália, Luis Enríquez Bacalov e textos do italiano Sergio Bardotti. O texto foi levado à Espanha pelo diretor teatral uruguaio Ever Blanchet, traduzido por Eles Alavedra e com a versão musical a cargo de Sergi Cuenca. Nos últimos anos continuou sendo encenada por outro grupo de Barcelona.

Assim como aqui no Brasil se ampliou o conhecimento, por parte do público de classe 16

média e mesmo das camadas mais baixas da sociedade, sobre a música popular brasileira de outras épocas e estilos através dos músicos “modernos e sofisticados”, ao mesmo tempo em que nascia o público da MPB moderna, que incorporava parte da tradição, também na Catalunha parece ter havido movimento semelhante, abrindo-se, na contramão da censura, todo um leque de possibilidades, que pretendemos estudar mais a fundo e do que estas anotações são apenas reflexões iniciais. Conhecer a Nova Cançó é também aproximar reflexões sobre realidades distintas, mas que também contribuem no entendimento do próprio processo histórico nacional. Enfim, em tempos de um revisionismo que relativiza as ações das ditaduras e do pensamento autoritário, examinar este período da história é também contribuir para que este apagamento da memória não permita o retorno ou o ressurgimento de outras realidades de molde autoritárias.

Referências

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